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o MUNDO COMO

FUNÇAO DE MUSAS
DISCURSO SOBRE UMA CANÇAo NUMINOSA

o que se lerá neste livro é um discurso sohre (\ nefando e sohre o


incf ável. i.e.. um discurso sohre a experiência do Sagrado. um discurso
sobre o quc não deve e não pode scr dito. quer por ser motivo'do mais
desgraçoso horror (o Nefando). quer por ser motivo e objcto da mais
sublime vivência (o Inefável).
Portanto. o trabalho aqui apresentado (con )centra-se num pr(lblcma
rnetodológico insolúvel. j.í que este trahalho se propiie a executar o
inexeqüível. ou seja: se propõe como um discurso sohre a expcriência
do Sagrado. Se essa experiência for aprcendida e comprccndida llal Vl'Z
fosse mai s adequado dizer não com-l'rl'l'lIdida. mas con- ,'i\'ida) cm Sl'U
mais próprio sentido e vigor. - então este discurso lJUl' se prop()c
apresent,í-Ia deve necessariamente frustrar-.H' (,/Il/IUlI/t/1
discurso.
Um discurso que se propõe dizercornrigor a essência doqucl'm Sl'U
vigor é indizível (nefando e/ou incfá\'el) não pode cumprir-sc a ri!,!or.
Se ele se fizercomo um discurso rigoroso, ele dcvcr<Ípara isso falsificar
a apresentação de seu objeto e. portanto. ele dever<Í,para scr rigo('(}so.
ser também falso.
Este discurso. portanto. mais do que se resignar a scu prÚprio
fracasso - já que tem por escopo realizar a impossihilidadc enquanto
ela vigora como impossibilidade - dr\'cní programar /1.1'('/1 "ní"rio
fracasso e deverá. na avaliação que fizer de sua prÚpria díciêllt'ia c
cfetividade. estar atento a que sÓ pode computar como êxito c conse-
cução do objeto perseguitlo os seus l11omentosde fracasso. nHlI11l'n!os
nos quais não atingiu o objeto ao qual perseguia.
1\las o Sagrado (ou melhor: o Numinoso). sohre o qual estc trahalho
propõe-se constituir um discurso. é uma qualificação espccial a quc
podem servir dc suportc determinados objetos. Se esta quali ficação
especial constituída pelo N/lmil/osa é que é indizível (e, por conscqÜ-
ência. a especial qualidadc da experiência humana dcsta qualifica~'ão
constituída pelo Numinoso). - não é absolutamcnte indizívcl o objcto

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quc suporta a qualificação de lll/1/lilloso;esse objeto pode ser dito,
descrito e definido. - Por conseguinte, além de se propor a consecução
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do que' -não se deve (porque não se pode) conseguir (i.e., dizer o
indizível), cste trabalho se propõe apresentar, por meio de uma descri-
ção, dctcrminados objetos enquanto suportesdesta inexprimível qua- OUVIR VER VIYER A CANÇÃO
lificação que é o numinoso.
Assim, este trabalho se propõe descrever a linguagem enquanto
objeto de uma experiência numinosa arcaica, Esta experiência da A poesia de Hcsíodo é arcaica e, a mCIIver, sÚpodemos apreci.í.la
linguagem cst;í profunda e inextricavelmente ligada a uma certa em sua p1cnitude e vigor se cstivcrmos atentos ao sentido cnl que ela o
concepção arcaica da linguagem, a uma certa concepção arcaica de é e às suas implicaçõcs. Na afirmação segundo a qual a poesia dc
tempo, a uma certa concepção arcaica de Ser e de Verdade. Hesíodo é arcaica, dcvcmos levar em conta o sentido historiogr<Írico da
O objetivo a que se programa este trabalho é, além de seu próprio palavra arcaico ("Época Arcaica"), o sentido quc aponta a anteriorida-
fracasso (entcndido como a mais adequada medida para o seu êxito), de e a antiguidade (uma canção composta quando o pensamento
descrever como foi vivida e apresentada na Teogollia hesiódica a racional começava a pré-figurar-se), c ainda um sentido etimohígico,
complcxão das concepçõcs arcaicas de linguagem, de tempo, de Ser e que envolve a idéia de arkhé, de um princípio inaugural. consliIUli\'o
de Verdade. e dirigente de toda a experiência da palavra poética. Se meditarlnlls
A linguagem é, neste caso, a linguagcm do aedo, i.e., a canção- nessas três direções implicadas no arcaiCl'.lo poema hesiÚdico. lah l'Z
uma canção quc ao mesmo tempo é veículo de uma concepção do nos aproximemos com maior clarcza das condiçlles cm qlle esta 1)\Jl'~ia
mundo e suportc dc uma expcriência numinosa. se deu pela primeira vez aos homens e possamos cOlnlHTclHltTa hlnçã\ "
nature7.a e sentidu com quc então ela se fazia prescnte.
Os estudiosus designaram Arcaica a (:poca el11 cujos umhrais
Hcsíodo viveu e compôs seus cantos. Na Grécia, os séculos VIII-VII
a.c. testemunharam a gcrminação ou transplantc dc institui~'llcs sociais
e culturaiscujo Oorescimento ultcriortransl1lutari a rcvolucionariamenle
as condições, fundamcntos e pontos de referência da cxistência huma-
na: a pólis, o alfabeto e a moeda. No entanto, a poesia de \Iesíodo é
anterior ao Oorescimento dessas três invenções catastrÓficas e, ainda
que j,í tcnha sido escrita ao ser composta, toda ela sc orienta e vigora
dentro das dimensões anteriores às condições paulatinamcnte tra7.idas
por essas três. A pólis e a mocda estão auscntcs ou sÚprcssentidas no
poema aque, porsuaenvcrgadura social, agrícola c I11crcantiI, mais l'laS
interessariam: Os trabalhos e os dias. E o uso do alfabeto e suas
conseqüências (cujo caráter dcletério para a McmÓria SÓcralcs acusa
no Fedro) estão ausentes e afastados da concepção de poesia quc é
exposta na TeogOllia (no hino ilS Musas, vv, 1-11)) c que
subjacentemente fundamenta tanto a elaboração como a dcvida fruição
do poema.

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1\ marca da oral idade não está somente nas características exterio- scntido político, inclusivc). O acdo (llesíodo) sc P(-)l'ao LHI(JL'por \"('/cs
rcs c formaisda Tcogollia, a saber: acima dos basifcís (reis), nobres
locais que delil1h;lIl1 o podn til-
I) lIas fÚnllulas e frases pré-fabricadas que, combinando-se como conservar e interpretar as fÚrmulas pré-jurídicas não-csniLls e admi-
mosaicos, vão compondo os versos em seqÜências saIpicadas por nistrar ajustiça entre querelantes e qucencarnavam a autoríd;llk 111ais
palavras e expressões inevitavelmente retornantes; alta entre os homens. Esta exlrema iIllpor!;\l1cia que se cpn klc ao ppcta
2) na justaposição com que as seqÜências narrativas se associam sem e à poesia rcpousa em parte nc) fato de o pocta sn. dCl1tnJ d;IS
que nenhuma delas se centralize articulando em torno de si as outras, perspectivas dc uma cultura oral, UIl1cultor da t-.lemÚri;1 (I1U scnlidp
mas antes tendo cada seqÜência narrativa um igual valor na sintaxe religioso e no da eficiência pr;ílica), e em parle I}() illlL'nso podcr ql1L' os
da narração total c podcndo portanto sempre e ao arbítrio do poeta P°\"l)S ,ígraros sentem na for~'a da palavra t' quc a ;ldo,';lo do alLlbeto
articular-se a uml1límeroquase indefinidode novas seqÜências;
solapou até quase destruir. Este poder da força da p;davra se .inslaura
3) nos catúlogos (listas de nomes pníprios) que se oferecem como um por urna relação quase mÚgica cntre o nome e a coisa n01l1l'ada, pl'la
espetacu larjogo I11nemÔnico,que só a h,lbilidade do poeta redime do qual o nome traz consigo. uma vcz pronunciado, a prl'SL'n\'a da pnípria
gratuito e lhe confere uma função motivada e significativa dentro do coisa. Nascida antes que o veneno do ai fabeto ent( IIpccessc a f\ Il'mÚria.
contexto do poema. a poesia de Hesíodo é também anlerior Üelaboração da prpsa L'IIlSL'US
drios registros e à din'rsificação da experiCl1cia ppl-tiC<1L'11lscus
1\ marca da oral idade est,í.tilmbém na própria concepção de lingua- característicosgênerps.O aedocanla sem que ao e:\l'rcíl.jp dl' Sl'U C<ll1lp
gcm poética quc Hesíodo tem e expõe nos prologais I 15 versos do hino se l;ontraponha ()utra Il1pdalidade artí.stica do usp da pa!;1\ra. Sl'U\
;ISMusas, e sobretudo no usb que ele faz desta linguagem e na plena versos he";\Illetms nascem num Ilu.\p cpntílll)p, CI'llllJ a )')Ilil'a f(ll 111;1'
certeza que ele tem do poder de presentificação de seu canto. pnípria para a palavra ml1slrar-se elll toda aSila pknitude L' /"PI\a
Nesta comunidade agrícola e pastoril anterior ~Iconstituição da ontpf;tnicas. como a mais alta revela~'ão da\ida. dus I )cUSl'S. do 111l111llo
fliífi.1e it adoção do alfabeto, o aedo (i.e., o poeta-cantor) representa o e dos seres. De nenhum outm modo a palavra libera toda a slIa IlII\'a,
m<Íximopoder da tecnologia de comunicação. Toda a visão de mundo nenhuma outra forma poética se pÜecomo alternativa Úl'ln que o L'alHo
e consciência de sua prÚpriahist(JI"Ía(sagrada e/ou exemplar) é, para se configura.
este grupo social, conservada c transmitida pelo canto do poeta. É SÚ Ljuase um século depois de I Icsíodo surge, com I\rquíloco de
através da audição deste canto que o homem comum podia romper os Paros; a poesia lírica que, tematizando o aqui e agora, os scntil1lL'ntos,
restritos limites de suas possibilidades físicas de movimento e visão, atitudes e valores indi viduais do poeta, consti tui-se com os .seus melros
transcender suas frontei ras geogrMicas e temporais, que de outro modo vÚrios um novo gênero. uma nova gi:ncse, uma nova forma dc Illaniks-
permaneceriam infranqueáveis, e entrar cm contato e contemplar tação da palavra, nascida e pn'lpria das novas condi,'Cles tral.idas pela
figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis, pÚlis, pela reforma hoplítica, pelu usotlo alfabeto. 1\0 mesmo tempo e
visíveis c presentes. O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder solidariamente ao nascimento da lírica, os primeiros pensadores ji'H1icos
de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e e os 10gÚgrafos (autores de registros de fundaçÜes de cidadL's-coli'Jllias
temp( H,lis, um poder que só lhe é conferido pela MemÚria (MIICI110S}/lc) e de genealogias da nobreza) COIlleçam a elaboração da prosa: ;1!J'ngua
através das palavras cantadas (Musas). Fecundada porZeus Pai, que no grega começa a adquirir palavras abstratas (sobretudo pcla
panteão hesiÔdico encarna aJustiça e a Soberania supremas, a Memória substantivação de adjetivos no Ileutro singular); e o 11L'I1S;lI11Cnlo
gera e d,[Üluz as Palavras Cantadas, que na língua de Hesíodo se dizem racional começa a abrir novas perspectivas a partir das quais illlpor;í
Musas. Portanto, o canto (as Musas) é nascido da' Memória (num novas exigências. Com os pensadores a linguagem p(-)e-Sl'a c<ullinhp dc
sentido psicol(lgico, inclusive) e do mais alto exercício do Poder (num tornar-se abstrato-conceitual, raciona\' hipot;ítica l' dcscncarnada (na

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perfeiçãodo processo, () nome se torna um signo convencionado para elaboração do discurso em prosa, - por outro lado também se li!!a a
a coisa nomeada. cL Crútilo de Platão). Com os poetas líricos a certas práticas inauguradas pela poesia lírica: Hesíodo se nomcia a si
linguagem perscruta a realidade do indivíduo humano, examina seus mesmo no seu canto sobre o nascimento dos Dcuses (v. 22) e lhí. nos
sentimentos, valores e motivações, até começar a transmutá-Ios e seus dois principais poemas ~upérstites, a respeito de sua prÓpria vida
transportá-Ios~ de forças divinas e cósmicas que eram (v.g. Éros, Éris, touas as notícias de que hoje dispomos sobre ela com maior segurança
/\idós, ÂplÍte, Áte, L)'ssa, etc.) para um interiorizado pár/lOs humano (Trabalhos, vv. 27-41,631-40. 650-62; Tcogol/ia. 23-34).
(amor, rivalidade, pudor, engano, loucura, furor, etc.). Assim é arcaica a poesia hesiódica: ligaua foql1almente ~Iépica
Poetas líricos e pensadores colaboram inicialmente (séculos VII e homérica (hexâmetros, estilo próprio à composição oral), ligada
VI) na grande tarefa de elabprar uma linguagem abstrato-conceitual e prenuncial e prefiguradoramente às <.luasmais importantes correnlcs
apta como instrumento de análise tanto do cosmos como da realidade culturais ulteriores a ela (a dos pensadores e a da poesia lírica).
humana; e em verdade nos pródomos deste processo multi-secular de exponuo lima concepção caracteristicamcnte ;ígrafo-oral de pocsia e
transformação da linguagem eminstrumento está Hesíodo. A tentativa expondo-se rigorosamente segundo essa concepção. (Analisarcmos
globalizadora de sinopse dos mitos com a qual a Teogollia se esforça adiante mais ampla e pormenorizadamentc que concepção é esta e
por organizá-Ias em torno da figura e da soberania de Zeus é de fato o como o é.)
primeiro (ou um dos primeiros) alvorda atividade unificante, totalizante No que concerne ao sentido historiogrMico ("I~poca Arcaicl") e ao
e subordinante do pensamcnto racional. Perseguir a totalidade unificada, scntido llsual (antigo, anterior) <.lesteadjetivoorco;clI, a pocsia hcsilídicl
o Todo-Uno (pall /i(~I/),é a aspiração extrema do pensamento racional pertence a uma outra época por tudo diversa e dislante da nossa c de
e da prosa, que um ao outro se'elaboram e se trabalham, a partir das nossos hábitos, pertence a um outro mundo mental. para nÓs scm
novas condições oferecidas pelo alfabeto para se aprisionar as palavras interesse porque com nenhum ou s6 escassos pontos de contato com o
pela artc da cscrita; despojá-Ias paulatinamente de seu poderencantatório nosso próprio mundo mental. E se fosse apenas pelos dois IJrimeiros
e de sua magia musical e imagética, despojá-Ias do domínio que sentidos do arcaico, a leitura da Teogollia seria deveras estudiosa c
exercem numinosamente sobre o homem e domesticá-Ias no cativeiro trabalhosa, do interesse e competência apenas da pesquisa erudita e
da escritura e torná-Ias instrumento seco, fixo e preciso. Em Hesíodo acadêmica. !\Ias não é nada disso, porque não é s6 arcaica ncsses dois
as palavras são forças divinas, Deusas nascidas de Zeus e Memória (as sentidos. A leitura da Tco!.:ollia ultrapassa e extrapola o interesse da
Musas), mas Hesíodo já ouve o apelo do Todo-Uno e é claramente mera erudição acadêmica, porque o mundo que este poema arcaico piie
perceptível na Tengollia a tendência de toda a polimorfa realidade e os à luz, e no qual ele prÓprio vive, está vivo de um modo permanentc e
múltiplos âmbitos do Divino convergirem subordinados à realeza de - enquanto formos homens - imortal. Um mundo mágico, mítico.
Zeus Pai dos homens e dos Deuses. A luta de Zeus pelo poder e a arquetípico e divino, que beira o Espanto c o Horror, que permite a
manutenção do poder por Zeus é à uma o ápice e o centro da visão do experiência do Sublime e do Terrível, e ao qllal o nosso pníprio mundo
mundo apresentada na Teogol/ia; - isso e ainda ser a Teogol/ia uma mental e a nossa própria vida estão umoilicalmente ligados. Porque
sinopse não sÓde mitos de diversas procedências mas uma sin-opse do também num sentido etimológico a poesia hesiÓdica é arcaica.
próprio processo cosmogônico e mundificante mostram que neste Durante milênios, anteriores à adoção e difusão da escrita, a poesia
canto arcaico pulsa já o primeiro impulso do pensamento racional. foi oral e foi o centro e o eixo da vi<.laespiritual dos povos, da gcnte quc
Em Os trahalhos e os dias Hesíodo tematiza o seu aqui e agora- - reunida em tomo do poeta numa cerimônia ao mcsmo tempo
o que é a radical descoberta e invenção dos líricos gregos. E se por um religiosa. festiva e mágica - a ouvia. Então, a palavra tinha o poder de
lado, como vimos, a Tengol/ia se liga a uma ulterior corrente da Época tornar presentes os fatos passados e os fatos futuros (Teogol/ia, vv. 32
Arcaica, a uo pensamento com o qual a Razão se manifestou através da e 38), de restaurar e renovar a vida (idem, vv. 9R-103).

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T\bs sobretudo a palavra cantada tinha o podcr dc fazcr o mundo e o


ICIIIJ)()rc'tOlI1;IICI11
:1 sua matriz original e re'isurgirem COTllo vigor.
pcr!eiç~o e opulf:ncia de vida com que vieram à luz pela primcira vez. A 111
rccitação de cantos cosmogÔnicos tinha o poder de pôr os doentes que os
ouvisscm Cll1contato com as fontes originárias da Vida e restabelecer-Ihes
MUSA3 E SER
a saÚde,talo poder e impacto que a força da palavra tinha sobre seus
ouvintes,- Nasolidáriacolaboraçãodoshomenscoma Divindade,orei-
cantor na antiga BahilC)I]iadevia entoar, nas festas de I\no Novo, o poC'ma
narrativo dc COIllO a ordem cÚsmicadivina e humana surgiu prevalecendo A primeira pala na que se pronuncia IJl's[e cantu S(Ibn: u nasci lIlenlu
sobre as antcriorcs trevas amorfas, e por meio desta declamação do canto dos Deuses c uo munuo é /I!II.HlS
, no genitivo plural. Pur que esta

proverqllc o nov()CÍrculodo Ano, o novo ciclodo Mundo, tendo retomado palavra e não outra? Dentro da perspectiva ua experiência areaica da
a suas fontes originais, se refizessem ue novo no Novo I\no. - Este poder linguagem, por outra palavra qualquer u canto niiu poderia CIH11l\'ar,
ontopoético que a palavra cantaua teve multimilenarmente nas culturas não poderia se fazer canto, ler a força de trazer consigu us seres e os
orais se faz presente na poesia ue Hesíodo como um poder ontofânico. O âmbitos em que são. É precisu que primeiro u nome das I\lusas se
mundo. os seres, os Deuses (tuuo são Deuses) e a vida aos homens surgem pronuncie c as I\lusas se apresentem comu a nUIllinosa fon;a q lIe <i( IlLIS
palavras cantauas. para que o canto se dê em SCUenCln!o. Pois dl'lIllO
no canto uas Musas no Olimpo, canto divino que coincide com o próprio
canto do pastor Hesíodo, a n)ostrar como surgiu e a fazer surgir o uesta perspectiva arcaica, o nome uas i\lusas siio as I\lusas e as T\lus;ls
mundo, os seres, os Deuses e a viua aos homens. Este poderontofânico são o Canto em seu encanlo. O nOl!1e das T\lusas é o pIÚprio ser (LIs
da pala VIa perdura ainda hojeem nossaexperiênciapoéticae em nossa
I\lusas, porque as I\lusas se pronunciam quando o r](l I11L' delas SL'

ex periência bem mais vulgar ue temor a certas palavras aziagas. Desde apresenta em seu ser, porque quanuo as Musas se apresentam em seu
ser, o ser-nomeuelas se pronunciu.
sempre e ainua hoje - e creio que assim será sempre -- o maior
encanto da poesia reside no seu poder,ue instaurar uma realidaue Elas são o princípio do canto, tanto no sentido inaugural COI!1Uno
pnJpria a ela, ue iluminar um ll1unuo que sem ela não existiria. Para dirigente-constitutivo (da o/"kl/(;),A exortação "pelas Musas cumeCL'-
IIcsíodo,esle mundo instaurauopela poesiaé o próprio munuo; - por mos a cantar" diz também que tenhamos nelas o princípio por que nus
isso certos Dcuses monstruosos e terríveis não uevem ser nomeados, deixar guiar c exprime ainda a vontaue ue que seja pela fun;a delas que
s~o n~o-nol1lc(1veis(ollk OI/O/1/(/sloí,7'eoK.v. 14R),é o uomínio do ne- se cante. Não é nem a voz nem a habiliuaue humana do cantor que
fando, o que não deve ser uito (olÍ liphaleiáll, ide/1/v. 31O).Em Hesíouo imprimirá sentiuo c força, uire~'ão c presen~'a ao canto, mas é a pn')pria
força e presença das Musas que gera e dirige o nosso canto'. .- Assi m
as palavras eantadas não são uma constelação de signos abstratos e
vazios, mas forças divinas nascidas ue Zeus Pai e da Memória, que o canto irrompe e se manifesta, a partir uo nome que o numeia em sua
sabiamente fazem o mundo, os Deuses e os fatos esplenuerem na luz ua força numinosa, e os versos que seguem ao versu inicial siio desdohra-
Prescnça, e implantam, na vida dos homens, um sentiuo que, com o mentos e eXplicitações do que neste nome (MOIl.l'lÍoll =Pelas Musas) se
vigor uo eterno, centra-a e ultrapassa-a. I) () gcnili,'o-ablati\'o MtJ/HIÍOII('Telas r.lusas") c o sllhjllnli\'o 1I10dio'pa"i,o /lIl.iJ';/lI<.tiJ"
("coll1cccmos"f".,cjall1os dirigidos") 1i'lIllIlI1l1u:lllccamcllt,. scm5ntico mai,'r d" que
Neste sentido de que nela estú total e vigorosamente encarnado o () podcm supOr1Jr as pala'TJS pO!1ugllcsas dc nOSSJlraduç~o e meslI1o maiol do qUl'
que é a maior força de encantamento ua poesia ainda hoje' e o podcm suspeilar os nossos h:íbilos ltigieo.analilicos. A <lislin\':lo enlll'" senlido
multimilcnarmente, a poesia hesiódica é arcaica, - porque nela mais JJrliprio i\ \'ozrnédia ("colllecclllo,") e o prÓprio iI passi\'a ("sejaIJlPs diri:-:idps ") aqni
neSlc I"erq) principiJI é lJIuilo lJIenor dp que o n""ori[:or :lIIalilico al"l'l'i", ia \ l'l:
plena e claramente se manifesla a arkhé da poesia: o seu pouer a J1('Ç~Odc tlrkhé conlida no \'erbo tlrl./U;/IIfll1l1lelÍnl' nUllla IInidadeindis('elllÍ\d o
on to fflll ico. ,enlido dc princípio-colJlcço c o de princípio-poder. illlp01 io

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i
diz no início c como o Princípio: o pronomc Elas (vv. 2 e 22), a inuicar com os h,íbitos uas mortai s gregas e fluma n 11110 pt Ilestades onlt lLinicas
scmpre cste nome-ser uo Canto, retoma-o como sujeito uas cláusulas que <io. Banham-se antes de formarem os coms. conHI as ~rl'!!a,
descritivas e narrativas das atividades habituais deste Canto (i.e., uas cuidaumas dc se mostrarcmmais helas no espel;iculo: hanham-se nos
I\lusas) que pelo nome numinoso se evoca e se faz presente. cÜrre!!os c fontes e dançam sobre os cimos das montanhas. c\lmo se
"Elas têm grande e divino o monte Hélicon." O verbo grego ninfas desses lugarcs. Mas elas s.ão sohretudo ;1 hdÚs;1II11 \'0;- qlll'
(;k//{)/I,I;1l("t0m") conserva a dupla acepção de ter-ocupar- brilha no negror ua noite (do Não-Ser). "Ocultas por muita nl'\'Ila" é
habitar e a de ter-manter-suster2. Como as Deusas o têm por fórmula épica para indicar a invisibilidadc: as f\1usas. il\l'isíveis,
habitaçüo, elas o mantêm na grandeza e sacralidade em que ele mani festam-se unicamente corno o canto e o som de dança a espknder
se mostra. É pela presença delas que ele, o Hélicon, se dá em dentro da noite. A procissão noturna, invisível. dc canloras-dançari-
sua presença imponente e sagraua. Mantenuo o Hélicon como nas faz surgir por suas vozes os Deuses da "atual" fase ctísmica c os
sua habitação, elas o mantêm como uma hierofania - como das uuas "anteriores", como se neste cat:ílogo (VI'. 11-21) se dcssc
mantêm no encanto uo canto o poder de presentificar o que sem uma teogonia "ascendente,,3. a remontar dos Deuses "atuais", Zcus.
elas é ausente.
Hera, Apoio, às Divindades de gerações
"anteriores", até as forças
Presentes, asMusassão um poderde presençae de presentificação. originárias donde tudo saiu à luz: "a Terra. o grande Occano. a Noite
Isto é o que se vai mostranuo em inúmeros momentos e de vários modos negra". A irrupção da voz, imponuo-se fiNoite ncgra. traz consigo os
nestc hinoque abre a Teogo1/ia.eneste canto teogônico assim aberto. Deuses senhoresue cada fase cÚsmica, a ordem L'lísmil'a que este"
A dança em lulta ua fonte (VI'.3-4) é uma prática de magia simpatética Deuses ueterminame em si mesmos são,e traz ainda l'onsigo a pnípl ia
com qlleo pcnsamento mítico aimlógieocrê garantir a pereniuade do fluxo nui te ci rcunuante uentro ue que as ]I.1usas surgem como he Iíss ima 1'\11
da fonte.O círculo ininterrupto,que a dança constitui,comunicariapor e fazem surgir múltiplo o cosnHl di vino. Fcchall!esle cat;Ílogo a N\lite
cont,ígio () seu caráter de renovação constante eueinesgotávelinfinitude negra (expressão uo Não-Ser, filha uo Kluíos, a noitc circunstante e a
ao fluxo da água, preservando-o e fortalecendo-o. Nestes dois versos solitária gerauora ue touas as forças que marcam pela pri va~'iio e não-
justapostos (1-4), as Musas uançam em tomo da fonte violácea e do altar ser a vida do homem) e a referência fi sagrada geração (= scr) dlls
do f0l1ÍssimoZeus. Corno centros criados 'pela circunferência da dança, outros imortais sempre vivos. Assim, enantiologicamcnte. as potên-
a fOlltee o altar seequivalem.E todoo cuntextodesteProêmiomostrará cias ontofânicas (Musas) situam-sc no mcio da potência do n:lo-ser e
que, COI1JO a fonte é fortalecida e mantida pela dança, o altar do bem furte ua privação (Noite) e mais: trazem junto à sua plenituue configuradora
filho de Cruno (i.e., a presença da própria furça de Zeus) é mantido pelo da Oruem e da Vida esta Força originária da Negação.
canto e dança das Musas. O fluxo recebe da dança a sua força, e o altar de A manifestação das Musas não é apenas um esplendor e diacosmese
Zeus, força suprema, também a recebe da voz e da dança das Musas. Um que se opõcm ao reino das trevas e da carência, mas sohretudo tCII! IH>
verbo como lI1élfJoll1a; (= "cantar-dançar"), donde o nomeMelpolllé1/e antinômico reino da Noite o seu fundamento e, ao esplentler cm scu
para uma delas, indica u quanto eram sentidos pelos gregos antigos como funuamento, dá a este mesmo reino antinilmico a sua fundallll'nt:u;ão,
IIltla uniuade os atos ue cantar e dançar, a voz e o gesto. - Voz e gestos Nesta sabedoria arcaica, que encontrou em J Ier;Íclito a sua exprcssão
que, executaum pelas Musas, tornam aqui presente a Força ue Zeus entre mais clara (e mais obscura). cada contr<Írio,ao surgir flluz da existência.
os homens. traz também, pordetcrminação ue sua pnípria cssência. o scu cOlllr:írio.
A seqüência dos versos 5-21 descreve as Deusas ambiguamente Na oposição em que se opõem, os opostos vigoram no mcsmo vigor em
que um contra o outro os opõe a unidade que na essência deles tiSrctinc
2, N~o no, ~,qllcçalllos dc qllc hahitare ("habitar") é UIIIfrcqiicntativodc l/lIbere ("Icr"). quc 3) Cr. Méautis. Gcor~c. "Lc prologuc a Ia Théogonic d'lIésiodc" /1/: Reme .11'.1{rlldn
1:lIlIklu conscrva cllllatilll cssa dupla accl'ção. Grecque.f. L 11. 1939.l'p. 573.10.

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a um e outro. Assim a epifania diacosmética das Musas (filhas de Zeus indica corno idéia fundamental da simiIitude a unidade I. I'I)r nll'il) 1:lmhl:m

Olíl11pÍOe da f>.1cmÓria) se dá nas trevas me-(H1ticasda Noite (geradora desta raiz podemos apreender e pensar a similitude que une as 11lL'ntira,e
do sono. da nl\1rte, dos massacres e do esquecimento) e, ao nomear as os fatos. unidade-similitude em que a mentira e o ser-mesmo se dão n In\ll
gerac;lIes(:::\)s seres) divinas fazendo-as presentes porforça da belíssi ma símels. Ao dar-se corno sÍmil. o ser-mesmo se dissimula pela sin1lll:II,'ão
voz, nomeia também a Noite, dando-lhe por fundamento o ser-nome, desta similitude que, na força'tlo a~semelhar e do simular, apresenta-o
Esta tensão.enantio\(igica aduzida pela visão aguda da unidade dos corno simulacro (a mentira símil). () Sílllilmesmo é j;i Outro ao dar.se
opostospenetrae perpassatoda a Tcogollia- e todoo Mitoe Religião corno símil, pois aí o ser-mesmo se oculta soh a similitude que o une illl
gregos. Outro. Assim. na unidade desta similitude. estão unidos as mentiras c
Na primeira epirania das Musas a IIesíodo, quando estas lhe os fatos, pois os fatos, enquanto símeis, ocultam-se eles mesmos soh a
outorgam COIIIo cetro o dom do canto, outras oposições e identidades similitude com outra coisa. - subtraindo-se enquanto ipseidade.
(ou, tahcz, melhor: mesmitudes) são postas em relevo pelas palavras E se a presença de um Dcus vige e impiie-se essencialmente COlll0
mesmas das Musas. Primeiro, as Deusas rcveladoras de todos os seres ipseidade (i.e.. como Ele-T\1esmo), o encobrir-se da ipseidade por suh
e de todos os acontecimentos se contraplícm, enquanto plenitude de a similitude faz com que a prÚpria Presença se esconda e se suhtraia sob
vida e de visão, Üvida meramente gástrica de pastores cegos, sendo o o simulacro \'crbal de mentiras símeis.
que ultrapassa as suas possibilidades eorpcireas; a estes pastores elas se :\ similitude com que os fat()s Sl' dissimnlaJn \' se ()l',lIt:lIll sob ;1
revelam: "Ií pastores agrestes, vis infÜmias e ventres sÓ" (v. 26). Esta simulação das mentiras símeis é a JIII"pria fl)lI;a lia ocuILl\':'II). I: nU
epi rania numinosa é ullla cons;igração: inspi ram ao pastor Hesíodo o força não é outra senão as l\ Iusas, i.e.. a prÚpria fIIlça da des-I )l'ulla\';11I.
canlu que elas pníprias cantam e o poder de torná-Ias presentes pelo presentificação.
canto ("e a elas prillleiro e por último sempre cantar", v. 34). Depois Como desocultação é que os gre1.!°s antigos ti\Tram a cxperi0nl'ia
desta epifania, o pastor agreste encarna, de certa forma e parcialmente, fundamental da Verdade. t\ pala\Ta gre1.!aa/i:/!icia, que a nomeia. indil'a-
o Poder nUlllinoso das Musas, -o qual é, em qualquer de seus aspectos a como nela-esquecimento. no sentido cm que eles experiml'ntaram o
e partes, sempre o Poder numinoso das [vlusas. Esquecime/lla não como um fato psicolÚgico, mas corno uma fÚr\'a
As Deusas sublinham ainda a ambigüidade do Poder que são elas. numinosa de ocultação, de encobrimento. Desde as rellexI-)es de f>.lal1in
A força de presenti ficação e descobri l11entoque põe os seres e fatos Ü Heidegger~ estamos afeitos a traduziralét!ieia por rC-I'clllçcio (o 'mo fiz no
luz da Presença é a mesma força de ocultação e encobrimento que os v. 2R), des-{l("ultaçlio. ou ainda. nÚo.csq//('cil1lcnto. Islo porquc a e\pl'li-
suhtrai ~lluze Ihesimplle a ausência: ência que originariamente os gregos tiveram da Verdade é radicalmentc
distinta e diversa da noção comum hodierna que esta nossa palavra
".\(/III'IIItJS /IIlti/tlS /IIell/iras di;:.er síll/cis aos fa/os \'erdade veicula.
"e .wlwlIlos. se querclI/os. dar (/ ollrir rerelaÇlJes", As mentiras símeis aos fatos opiiem-se. portanto, Üs re"elal;iies
(1'1'. 27-28) como a força da simulação ocultadora sc opiie ~lda presen\'a mani fcsla
- e são.. no entanto, uma só e mesma for\'a. Para bem comprecndn-
Dizer mentiras símeis aos ratos é furtá-Ios ~lluzda Presença, encobri- mos o sentido dos versos 27-28, em que as MlIsas indicam que saher
los. As mentiras são símeis aos fatos enquanto só os tornam manifestos constituem, devemos evitar a mera contraposição de verdade e men-
COIIIOmani lestação do que os encobre. As mentiras são símeis (=IlOmoia)
4) Boisaq, Énúle. Dicrit>flllllire itnlll.fogi,/,u' de Illf.WlglIC (;'('{"//I/f'. 2' cd. lleidclhcrg I'al i<.
aos fatos enquanto se dissimula a unidade que, por estar na raiz da
Winler-Klincksicck. 192.1.1'1'. 2.,0.1 (heis) e 70 1-2 (h(íIllOi(l~/h(llIllÍ')
sill1ilitude, 1Ine simultaneamcnte cmllm s6111garo símil e o ser-mesmo, 5)Cr.. por exemplo, "Alélheia" cm 0-, !',é.S/.,.,.,ífic(lS «cleç~() de Ic\I(I< e "'pCI \"i,~" d" 1'1"f
.\ílllil (lal. sil1lilis) e o grego hOl1loia têm a mesma raiz etimolÜgica, que Jn<é Cavalcanle de Sou?a). São Paulo, Ahril C"l1ma!. 1"7.1.1'. 121)..12

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1
tira e ;\illdamais evitar ent(~nderverdade e mentira corno adequação que <;epr\1nuncia esta palana que se i111 pile e allla dic\I.I1\l'llll'. quL'l lia'
(ou não) do inte!ccto Ücoisa ou como a confirmação (ou não) que a assem!'léia<; guerreiras. quer n;ls reunil-Il's onde os reis (/'/1.Ii/hl) del'i.
verificação empírica traz ao que a palÜvra afirma. As revelações que dem litígios entre o povo. quer nlls círcullls de (1\1\'intes a deleitare1l1-
as 1\lnsas, se querem, sahem dar a ouvir são des-velações, o retirar-se se COIl1a \'01. do aedo. () cetro r a insígnia que. social1l1ente. IIlos!r;IIHI
seres e fatos do reino noturno (i ,c" me-tmtico) do Esqueci mcnto e poeta U1l1senhor da P:dana eiica7. e atuante: - l- UIl1aspecto lI1atni:d
fund:í-Ios como manifestação e Presença. do d01l1do ca nto. Ao recebê- 10 das' 1\lusas, o 1'(Il'la é por l' Lls in, pi r;lllo
() que passa despercebido, o que est<Íoculto. o não-presente. é o que a cantar os Deuses. os herÚis e os fatos IHl'senll". p;"s:ldIIS l' futllros.
resvalou j:í no reino do Esquecimento e do Não-Ser. O quc se mostra Elas lhe lllJtorgam o poder qu(: são ebs prÚpri:I<;. _.~'ou. dilo de oulro
Üluz, o que brilha ao ser nomeado, o não-ausente, é o que Mem(lria modu. mais usual e menos Ilítido. o puder de que elas s:io as detl'lltor:".
recolhe na força da belíssima voz que são as Musas. No entanto. Que significa gloriar LIfuturo e o passado'!
MellHíria gerou as Musas também como esquecimento ("para ohlívio Gloriar é expor um ser ou um fato ;11111. da ll1anikst;II;:io. tal COIIlO
de males e pausa de aflições", v. 55) e, força numinosa que são. as a essência mesma deste scr Oll fato o exige e i111 p(-'e. t; kl\i a (/..//(1.1'Il: esl a
Musas [ornam () ser-nome presente ou impõem-lhe a ausência, mani- força de desveJação pr('rria "do que é glorioso, i.e.. dll que ppr 'ua
festam o ser-rnesmo como lúcida presença ou o encobrem com o véu essência mesma reclama a desvelaç:io: - e esta força r ":feiti. (;kll ia.
da similitude, presentificam os Deuses configuradores da Vida e uma das I\lusas. Por isso. o poeta. consagrado pelo podn das 1\luq<;;II'
nomeiam a Noite negra. O próprio ser das Musas geradas e nascidas da exercício deste mesmo poder. tem por func,':io gloriar, i.e., dcs\'l'lar p
1\lellHíria as cOllstitui como força de esquecimento e de memória, com que por essência reclama a desvelac,':io. - Mas por qlll~o fUllIro C o
o poder entre presença e ausência, entre a luz da nomeação e a noite do passado'! - Porque esta PIÚclamação desveladora que o poeta eXnl'l'
ohlívio. Porque as Musas são o Canto e o Canto é a Presença como a como o seu poder pníp~io é por excelência a profecia.
nunlillosa força da parusia: este é o reino da Memllria, Detlsa de Para a percepç:ip mítica c arC;lica. o que ua presen\'a se d:j'l'(IJIJO
antiguidade venerável, que surge da proximidade das Origens presente opõe~se. :1 uma. ao passado e ao futuro, os ljuais, enquanto
Mundifieantes, nascida do Céu e da Terra (v. 135). ausência. estão igualmente excluídos da presença. Assim. passado e
O que as Musas fazem, quando assim falam (vv. 26-R), é, tanto futuro. equivalentes na indiferença da exclusão. pertencem t!01l1es1l1o
quanto a fala, explicitação da natureza delas: modo ao reino noturno do Esquecimento até que a ~lenH'nia de l:í IIS
recolha e faça-os presentes pelas vozes das Musas. () poeta, portanto,
"/ior('e/roderam-me 11/11ramo, a IImlrmreiro \'içoso pelo mesmo dom das I\,lusas, é o profeta dc fatos passados e de fatos
"('ofhelldo-o admirável, e inspiraram-me 11111 canto futuros. Só a força nomeadora e ontofânica da voz (das ~lusas) pode
"di\';lIo para qlle 1'11glorie (Ijillllro e o passado, redimi-]os. aos fatos passados e futuros, do Esqueei1l1enln, i.e.. da
"impcliram-me a lrillear ° ser dos \'clIllIrosos sempre viros Força da Ocultação, e presentifid-los como o que brilha ao sn
"e a elas primeiro e porríltimo sempre ca/ltar". nomeado, o que se mostra à luz: re-velação.
1\ voz das Musas é esplendor.jÚbilo c expans:io da I're<;l'II\'a li!Hl1l'ada.
I.oureiro é <Írvorede Apoio, é a forma que assume no reino vegetal O grande espírito de Zeus Pai se compraz 110intcrim do (1limpll COIl10<;
a cratofania de Apoio, - este Deus que juntamente com as l'vlusas hinos que se hineiam. O grande espírito de Zeus é a !!randc pcrccpc,'ão
atriblli(I dOIl1 docantoe da citarodia(execuçãode citara).Colheremas (mégol/ mí(l/1) da totalidade desle Canto que. i111 pOlido-se a Il-I11de loda
1\lusas u f11rall1o a ul1llourei ro viçoso (v. 30-1 ) indica esta proxi lI1idade interrupç:io e dos limiles lemporais. coincide com o Sn. "ao diln (I
C!mfluenle destas dllas forças divinas, COll10confluell1 li c;intlle a dtara. prl'sl'nte, o fultllol' o passado" (v. ~X). () Cantil SI' l':\P;IJHIl'. jllhil(\',(\ ('
() cdl () é, entre os gregos, símbolo de competência e autoridade com esplêndido, na intelimidade do Olimpll (cl/trls U/Y/1/fI(JlI. v. .H) l' Li I. n 1111

2() 27

t
que a Casa da Divindade seja júbilo e esplendor (gelâi... dÓlllatapatrós,
v.40).
IV
Voz infatigável, suave, lirial e imperecível espalha-se aí onde tem
a sua residência a Divindade e é a voz mesma esta residência, porque
por esta voz é que se revela a glória divina, e a própria voz se revela MUSAS E PODER
glória divina (vv. 36-52). - Revelando-se a glória divina, revela-se
também o que a ela se opõe: o ser dos homens e dos poderosos (ou
cruéis: o adjetivo kraterós é ambíguo) gigantes. Os homens se opõem Com a narração do nascimento das Musas inicia-se a segunda
ao jubiloso esplendor da vida divina enquanto eles têm por destino a metade do hino-proêmio da Teogoflia. A primeira parte (vv. I-52)
miséria, a penúria, o sofrimento e a morte. E os poderosos gigantes se concentra-se em tomo da relação entre linguagem e ser, ou seja: entrc
opõem à triunfal plenitude da vida olímpica enquanto são adversários o Canto em seu encanto e a aparição do que sc canta, e conscqÜcntc-
derrotados e submetidos. Este é o sentido da palavra mítis que inicia o mente entre a Revelação (alethéa) e o Esquecimento (le:wlOs)'flC).A
v. 50: aí/tis marca a oposição entre Deuses e homens, e entre a harmonia segunda parte (vv. 53-103) narra o nascimento das Musas e Jcscreve,
da paz olímpica e os poderosos e por ora vencidos adversários dessa como decorrência deste nascimento e da natureza dos progenitores, os
harmonia. diversos aspectos e implicações do poder presenlificante (o podcr que
Neste hino às Musas que é o hino das Musas (bem como toda a são as I\lusas) e das funções dcsse poder. Uma conseqÜente evocação
Teog 011ia éo hino das Musas a Zeus Pai), revela-se que oSeréoencanto e Slíplica às Musas (vv. 104-115) completa o hino-proêmio e serve de
das Vozes (i.e., as Musas) e as' Vozes não é outra coisa que a múltipla . transição ao corpo do poema.
Presença do Divino. A rigor, não há na Teogoflia uma re/arilo entre linguagem e ser, mas
urna imaflêflcia recíproca entre eles. Na Teogollia o reino do ser é o
não-esquecimento, a aparição (alcthéa); toda negação de ser vem da
manifestação da Noite e seus filhos, entre eles o Esquecimento (léthe,
lesmos)'lle). A linguagem, - que é concebida e experimentada por
Hesíodo como uma força múltipla e numinosa quc elc nomeia com o
nome de Musas, - é filha da Memória, ou seja: deste divino rodeI'
trazer à Presença o não-presente, coisas passadas ou fUlllras. (ha, ser é
dar-se como presença, como aparição (alcrhéa), e a aparição se d~í
sobretudo através das Musas, estes poderes divinos provenientes da
I\1cmlÍria. O ser-aparição portanto dá-se através da linguagem. ou seja:
por força da linguagem e na linguagem. O ser-aparição é o desempcnho
(= a função) das Musas. E o descmpenho das Musas é ser-aparição. (~
na linguagem que se dá o ser-aparição - e também o simulacro, as
mentiras (v. 27). É na linguagem que impera a aparição (afl'r/u;a)- ('
também o esquecimento (Ies/IlosY/le v. 55). O ser sc d;Í na linguagel1J
porque a linguagem é nu minosamcnte a força-de-nol11ear. E a fInça-dc-
nomear repousa sempre no ser, isto é, tem scmpre força de ser e de dar
ser. Não se traIa portanto de ullla relaçiio mas de uma imanêllcia

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