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não é nada

não se é culpada de nada


abra lá o avental
3
2
1

Oh!

o Gabinete de Penitência

Eu fazia a correr e às escondidas


as coisas mais inocentes
por isso fui punida
fecharam-me numa casa chamada
Gabinete de Penitência
deram-me uma tesoura e uma folha de papel
vai dobrar a folha de papel
recortar meia menina
com as pontas dos cabelos viradas para fora
com uma saia
com mãos
com pés
quando abrir o que recortou
verá duas meninas
ligadas pelas pontas dos cabelos
pelas pontas das saias
pelas mãos
pelos pés
dobrei o papel em quatro
recortei meia menina
quando abri o papel
as duas meninas estavam separadas
a menina fez batota bem vi

UM JOGO BASTANTE PERIGOSO [17]


mas vai aprender a fazer dobragens
para se penitenciar
cortando-as

Arte Poética

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

[18] ADÍLlA LOPES


Esta Irene não me deixa ouvir a sirene
vou-me pôr a ver passar a ambulância
se for carro dos bombeiros decerto
vermelho se for da
Polícia normalmente azul
levarei para o parapeito
o meu peito velho e virgem e a lata
das bolachas maria mas podia
em vez de octogenária e bulímica
ter alguns meses biquentos e usar babadoiro
ser talvez qual tímida donzela
pela miúda gelosia espreitando
feia no berço: bonita à janela não
não a avisto ainda apenas a sirene
e aquela abelhuda da Irene a cantar:
Minha mãe é pobrezinha
Não tem nada que me dar
Dá-me beijos, coitadinha ... !
e eu que queria ouvir bem a sirene
e ver o incêndio o assalto a estropiada o estupro
rilharei bolachas mar ia
até ao fim deste dia
e do outro?

Eu realmente falo muito


em raparigas
ora as raparigas
haverá excepções
foram sempre muito minhas amigas
da onça
um dia convidei uma
para morrer comigo
hei-de tentar entrar na morte

[42] ADÍLlA LOPES


a dançar disse-lhe eu
ela disse-me o que tu dizes
não se escreve
pois não não lhe disse eu
e o que eu escrevo não se diz
então vamos comer um gelado
eu não vou eu digo
apetece-me um gelado
mas não como disse-me ela
o que é que se pode fazer
com uma rapariga destas?

Enquanto pegavas na arrufada com açúcar pilé


de manhã vi que tinhas o cabelo apartado ao lado
apertado atrás apanhado oh muito regrado o sulco
da risca qualquer coisa de esquilo esquivo ou de raposa
que não adjectivo ou as duas coisas em ti ambas
me apeteciam despentear com ambas as mãos
oh não o farei nunca acaba de comer sem medo
a arrufada olha tens a boca suja de açúcar pilé

Livres livres cavalos que vêm pastar


no prado azul de milheirais
livres livres cavalos que vêm beber
à beira-rio (o rio é lamacento)
livres livres cavalos que vêm bafejar
o pueril bandido moribundo

UM JOGO BASTANTE PERIGOSO [43]


A poor young shepherd

Fui uma menina demasiado protegida


a minha mãe arrancava o cochicho
aos bonecos de chiar
para eu não o engolir
eu apertava os bonecos de chiar
os bonecos de chiar não faziam barulho
deitavam ar e era tudo
aos gatos de peluche arrancava os bigodes
para eu não me picar
às meninas que vinham brincar comigq
cortava as unhas rentes
para não me arranharem
se estava na aldeia
tapava-me os ouvidos com bolas de cera
para eu não poder ouvir os morteiros
da festa de Santa Úrsula
aos livros da Condessa de Ségur
arrancou as páginas
em que as crianças são chicote~das
com vergastas pelas madrastas
e aquelas em que Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
por ela lhe ter feio um arranhão
se me lia contos de fadas
saltava por cima da maçã envenenada da Branca de Neve
e do fuso envenenado da Bela Adormecida
cresci completamente vestida de algodão
porque achava que a lã e as fazendas
me picavam
queria muito ir à praia
mas a minha mãe tinha medo que eu me afogasse
deu-me um búzio
para eu fazer uma ideia

[114] ADÍLIA LOPES


do que era o barulho do mar
e deixou-me chapinhar na banheira
mais tempo do que era costume
também a Veneza não me deixou ir
por dizer que cheirava mal
deu-me uma colecção de estampas
e uma gôndola em miniatura
mas não tão pequena
que se pudesse engolir
da primeira vez que saí de casa
fui atingida por uma bala perdida
em tempos de paz
que duraram pouco
quando ouvi na rádio as rajadas da metralhadora
que certa facção tinha postado
nos estúdios das emissoras regionais
para fingir que havia uma revolução na capital
e assim justificar os fuzilamentos
do dia seguinte
acreditei que essa facção
agia por motivos maternais
ainda hoje as páginas que mais me agradam
são aquelas em que Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
e se falo ao telefone com um namorado
tenho medo de um beijinho como de uma abelha

Caprichos

Conheci uma menina


muito caprichosa a comer
tinha dias que só comia chocolate
ou então ovos mexidos
diziam dela está a chocolate

o DECOTE DA DAMA DE ESPADAS (ROMANCES) [115]


como se diz de Picasso
que teve uma fase azul
de uma vez gritou
que tinha fome de queijadas de Sintra
e de mais nada
partiu brinquedos
até que mandaram uma criada à Periquita
comprar-lhe queijadas
amigos da família notavam
que uma criança tem de se habituar
a comer de tudo
não porque se seja a Rainha Isabel
que por uma questão de cortesia diplomática
teve de comer ratos no Punjab
nem porque esteja próximo um período de racionamento
mas porque é a comer do que não se gosta
que se aprende a saber do que se gosta
as crianças mimadas
acabam por escrever gostava de gostar de gostar
e contraem doenças infecciosas
com muita facilidade
esta apanhou tosse convulsa
e enquanto teve tosse convulsa
só comeu pombinhas de pão
um dia a padeira enganou-se
em vez de pombinhas trouxe vianinhas
e a mãe da menina
ao vê - la chorar como uma possessa
despediu a padeira
a menina durante a convalescença
refinou
tinha ódio ao pão com manteiga
todos estavam a par deste seu ódio
pois em casa da tia Balbina
só aceitava comer pão com manteiga
dizia pão têga
o que já não era próprio da sua idade

[116] ADÍLIA LOPES


acontecia que se recusava a pronunciar
certos sons
está em não dizer man nem ei
murmuravam na sala de visitas da tia Balbina
mas como quem fala de um prodígio
e não como quem diz coitadinha
depois de sete criadas terem sido despedidas
por não saberem cozinhar a preceito
pudim de beiço de vaca
apresentou-se uma que era extraordinária
a menina passou a tratá-la por Predilecta
a Predilecta compreendeu tão bem a menina
que no dia em que preparou com mais esmero
o prato preferido da menina
pudim de pardais assados em água
deitou no pudim um punhado quase mortal de arsénico

Não é di noité di dia

o vestido de flanela da mãe estava já um pouco puído nos


cotovelos. Todo ele, de resto, tinha um ar enxovalhado por
mais que o passassem a ferro. Então a mãe decidiu transformar
aquele vestido de flanela escocesa para a filha mais nova, o pati-
nho feio da casa, escurinha, atrasada na fala e no andar e pelu-
da no sentido próprio e figurado. Se ela amuava, lá vinha, de
alguma boca, o ralho: «Não sejas peluda!» Ela, rodeada pelo
bando de irmãos loiros, finos, branquíssimos, ensimesmava-se.
Viraram o vestido, aproveitaram-lhe as partes menos estra-
gadas e saiu dali uma espécie de bibe colegial de xadrezinho ,
com golinha branca, peitilho, a saia pregueada. A Peluda - os
irmãos chamavam-lhe assim como se esporeassem um potro -
lá andava com o vestido e até se afeiçoou a ele . Era macio, era
uma coisa da mãe e, por ser em segunda mão, podia brincar
mais à vontade com ele do que com os vestidos novos.

o DECOTE DA DAMA DE ESPADAS (ROMANCES) [117]


A chave perdida
(com duas coisas de Selma LagerloÚ

As duas amigas eram muito unidas


como dois relógios
que numa sala isolada
pendurado,s em paredes opostas
acabam sempre ao fim de certo tempo
por sincronizar os seus pêndulos
o que uma perdia a outra encontrava
depois de muitas velas terem sido
acesas ao milagroso Santo António
mas era sempre a mesma a perder coisas
e a outra a encontrar as coisas
havia criadas que se aborreciam
com as suspeitas de roubo
e que saíam a rosnar contra as duas amigas
uma com mais espírito de espia
do que as outras
insinuou que as duas amigas
gostavam de brincar ao trapo queimado
de facto uma delas mudava o lugar às coisas
e a outra sofria a procurar as coisas
e se não sofria era a outra que sofria com isso
nunca se averiguou
se a que mudava o lugar às coisas
o fazia sem querer ou de propósito
discutiam muito à mesa
sobre o desaparecimento das coisas
que sempre acabavam por aparecer
insultavam-se uma à outra
enquanto continuavam a comer manjar branco
quando a que mudava o lugar às coisas
apareceu morta

o DECOTE DA DAMA DE ESPADAS (ROMANCES)


a outra não conseguiu encontrar
a chave de uma gaveta
que estava fechada
era como não podia deixar de ser
a gaveta onde ela guardava
as velas para acender a Santo António
procurou muito a chave da gaveta
como nunca mais desapareceu coisa nenhuma
ela achou que a chave não fazia falta
e concluiu sobre a amiga
estava certa da sua afeição por mim
eu fazia-a sofrer e ela fazia-me sofrer

Os papelotes

Nunca choraremos bastante


termos querido ser belas
à viva força
eu quis ser bela
e julguei que para ser bela
bastava usar canudos
pedi para me fazerem canudos
com um ferro de frisar e papelotes
puxaram-me muito pelos cabelos
eu gritei
disseram-me para ser bela
é preciso sofrer
depois o cabelo queimou-se
não voltou a crescer
tive de passar a andar com uma peruca
para ser bela é preciso sofrer
mas sofrer não nos faz forçosamente belas
um sofrimento não implica como consequência

[160] ADÍLlA LOPES


uma recompensa
uma dor de dentes pode comover a nossa mãe
que para nos consolar sem saber de quê
nos dá um rebuçado
mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes
a consequência de um sofrimento
pode ser outro sofrimento
a causa é posterior ao efeito
o motivo do sofrimento é uma das consequências
do sofrimento
os papelotes são uma consequência da peruca

Os cordéis

Passava os dias a dar nós em cordéis


para desfazer os nós a seguir
não tinha ninguém para a aplaudir
nem esperava Ulisses
mas continuava
aquilo não era um passatempo
os cordéis sem nós
serviam para desfazer os nós
enquanto os embrulhos trouxeram cordéis
as sobrinhas não estranharam
mas quando os cordéis se tornaram raros
lembraram -se de que ela na juventude
fora capaz de seguir cinco conversas diferentes
ao mesmo tempo
como Napoleão era capaz de ditar
dez cartas diferentes
ao mesmo tempo
só que a guerra e os bailes no consulado
tinham acabado

o DECOTE DA DAMA DE ESPADAS (ROMANCES) [161]


Era o Guilherme
e não eu
quem devia escrever
as minhas cartas de amor
para si

Maria Cristina espera


por Guilherme
mesmo quando não tem
nenhum encontro marcado
com ele

Podia ser muito feliz


se não fosse muito infeliz

o suicídio remoçou
Maria Cristina
extraordinariamente
Maria Cristina dedica-se
com entusiasmo redobrado
ao comércio de fazendas

[190] ADÍLIA LOPES


Tenho de trabalhar
para ganhar o meu pão
meu querido Guilherme
não tenho tempo
para uma paixão infeliz
e complicada

Maria Cristina cansa-se


a contar anedotas
ou a sua vida
a si mesma

Minha querida Cristininha


há horas difíceis
como dizem os cauteleiros
ou os Tampax

E aJudite? qual Judite?


uma loira vesga
Maria Cristina não se lembrava

MARIA CRISTINA MARTINS [191l


Em pequena
queria ter muitos bebés
e um cão
ser cançonetista
como a Madalena Iglésias
e ser freira
como a irmã Maria Antonieta
minha professora
por isso vi
umas oito vezes
a Música no coração
e bebi com a Victoria
um cocktail chamado
Mary Poppins
no bar La Filmo
a Julie Andrews
era para mim
a mulher mais bonita
do mundo

A Maria Antónia
era a minha amiga
imaginária
dona de muitas casas

Entrei no Senhor dos Passos


da Graça
e bati as palmas
porque julguei

[342] ADÍLlA LOPES


que alguém fazia anos
por estarem as velas acesas

Gracinhas de menina

Joaninha a ladra
a filha da moleira
vem brincar
comigo
às missas

A Maria
dá-me clisteres

Abracei o Manuel
o Manuel não me abraçou

o Pedro Nuno
faz chichi
à minha frente

Dinheiro e literatura

A viúva do escritor
pedia esmola
à minha avó
a título de viúva
do escritor

SETE RIOS ENTRE CAMPOS [343]


para namorada querida
deles
foi só uma fantasia minha
(e muito mais
apesar de tudo)

Lesma
é o meu lema

E basta

Deus é um boomerang
e eu sou a sua filha pródiga

Bodyart?

Com os remédios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre

SETE RIOS ENTRE CAM pos [363]


Emagreço 2I Kg
as colegas
da Faculdade de Letras
perguntam - me
se é menino
ou menina

No metro
um rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grávida
o rapaz quer-me
dar o lugar

Detesto
o sofrimento

o 38 vai cheio
um homem
dá - me beliscões
no rabo
entre o Campo Pequeno
e o Saldanha
que hei-de eu fazer?
se digo alguma coisa
ainda fazem troça
de mim
deixo de poder
rêvasser
fico mais pobre

[364] ADÍLlA LOPES


La feInIne de trente ans

Amarás
o meu nariz
brilhante
as minhas estrias
os meus pontos pretos
os meus textos
os meus achaques
e as minhas manias
e as minhas gatas
de solteirona
ou não me amarás

Sou feliz
fui-o há pouco tempo
agora
embora
não outrora

(sou descarada
mas tímida
sou tímida
mas desenrasco-me)

SETE RIOS ENTRE CAMPOS [375]


2
Sou uma mulher loira
com um bebé
ao colo
o belo quadro de Uccello
que vi em Dublin

La consolation de l' absence

Podia espezinhar
o teu retrato
dar um beliscão
ao cão
despejar no tapete
os apetrechos de costura
nada disso farei
porém
mas também não sei
o que hei-de fazer
maIS
para me entreter

Podia beijar
o teu retrato
afagar o cão
bordar um amor-perfeito

FLORBELA ESPANCA ESPANCA [409J


capela de rosas
Menino Jesus
a osga diz cró

Não gosto tanto


de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever

FLORBELA ESPANCA ESPANCA [421]


Só depois de ler
Barthes
é que Camila
ficou a saber
que o dedo da masturbação
é o médio
até aí tinha usado
sempre
o indicador
experimentou também
o polegar
e viu que todos serviam
meu menino
seu vizinho
pai de todos
fura bolos
mata piolhos
depois de perder a virgindade
experimentou
com um tubo de Cecrisina
metido num Durex Gossamer
também servia
mas isto nada
tem a ver com o amor
tem a ver com o escrever
e com o pintar
e dá menos satisfação
a menos que Camila
se lembre de Jénia
e da penetração
então usa
só os dedos
e serve
para adormecer

[422] ADÍLlA LOPES


Dois ciprestes

o que foi atado


na Terra
continua atado
no Céu
e o que foi desatado
na Terra
continua desatado
no Céu
(no Inferno
é ao contrário)
mas o que não chegou
a ser atado na Terra?
penso em ti
meu marido
não vivemos
no mesmo século
nem na mesma cidade
nunca nos cruzámos
porque não pudemos
procurámo-nos
um ao outro
lavados em lágrimas
a ver os outros
namorarem -se
às três pancadas
eu li o Yoga para grávidas
e o Vou ter um bebé
eram a ficção científica
que eu mais apreciava
não aceitei o bolo
em forma de coração
que os rapazes

FLORBELA ESPANCA ESPANCA [423]


Gato das Botas pelo Teatro do Gerifalto. Nunca tinha ido ao
teatro. Eu acreditava que, no teatro, se viam gatos de carne e
osso a falar. Mas o Gato das Botas era uma mulher vestida com
um maillot preto justo de modo que se notavam as maminhas.
Achei horrível. Fiquei a odiar o teatro.

(os amantes para sempre)

Era uma vez a primeira Primavera do mundo. Os amantes


conheceram-se nessa Primavera e fizeram amor na terra em
cima das flores debaixo das árvores cheias de flores e de ovos.
Continuaram a fazer amor no Verão debaixo das árvores car-
regadas de frutos e de folhas no meio dos grilos e das cigarras,
no mar e nas searas. Quando veio o Outono, continuaram a
fazer amor na terra, as folhas caíam sobre eles e eles não se
importavam, até gostavam. No Inverno, a neve caiu sobre eles e
tapou-os completamente. Era o último Inverno do mundo,
um Inverno que durou para sempre. A neve cai sempre sobre a
neve sobre os amantes e os amantes fazem amor dentro da neve
para sempre.

Deus gosta das famílias dos animais, dos ninhos, das nI-

nhadas, mas das das pessoas não. Por isso, para Deus, a maior
invenção da humanidade é a contracepção.

Diz o Sr. Dinis que Cristo foi o homem mais inteligente


que veio ao mundo. E eu concordo porque a caridade é a ver-
dadeira inteligência. Não importa muito saber se Cristo é Deus
feito homem ou que espécie de relações estabelece com o
Espírito Santo.

[430] ADÍLlA LOPES


o maior elogio que o Ferdinand Schmatz me fez foi dizer-
-me "You are really real".

Os homens são uns senhoritos. E uns Édipos. Mesmo


Adão, que não tinha pai nem mãe, acusa Eva que acusa a víbo-
ra.

(Irene-Adrienne acha que os homens são tão bons que não é de


estranhar que haja homens homossexuais) .

(a última chula em Paredes de Coura)

Adão Loppes assinava Loppes com dois pp porque era dos


Loppes de dois pés oriundos de Paredes de Coura. Deus
furioso com Adão Loppes por se gabar de ter um avô barão,
Dom Lopo de Coura e Paredes, e por não se contentar com o
nome de baptismo, deixou Eva Loppes, que não tinha as
peneiras do marido, dar à luz criaturas que não eram do sangue
dela, seres de sangue frio e de clorofila. Deixa Eva Loppes dar
à luz irmãs, primas, tias, mães, pais, amigos, amigas , inimigos,
inimigas, conhecidos, conhecidas, desconhecidos, desconheci-
das. Eva Loppes dá mesmo à luz víboras e maçãs . E gosta de
todas as suas crias, sem nunca abortar.

Mário Soares chamou a Nicole Fontaine dona de casa e não


estadista, como se ser dona de casa fosse menos que ser
estadista.

IRMÃ BARATA, IRMÃ BATATA [431]


Freitas do Amaral chamou a Lourdes Pintasilgo biblio-
tecária e não engenheira, como se ser bibliotecária fosse menos
que ser engenheira.

(o pai pródigo)

É O oposto do avarento. O pai pródigo é riquíssimo em fi-


lhos. A fortuna do pai pródigo consiste nos filhos. Está sempre
a fazer filhos como as plantas gordas. Mesmo na barriga da
mãe, como todos nós, fez um filho que é ele mesmo. Dá esper-
ma, muito esperma, muitas vezes, para vários bancos de esper-
ma (o esperma do pai pródigo não cabe todo num banco só).
Fica com os filhos todos para ele e simultaneamente está sem-
pre a dar os filhos todos a toda a gente e a tudo. O pai pródigo
nunca se afasta dos filhos. Há sempre prendas para todos e
muita comida, tanto slow food como fast food. É sempre festa,
sempre Natal, sem que ninguém se suicide ou tenha vontade de
se suicidar no dia de Natal. Ao pé do pai pródigo é sempre
Natal. Um Natal e pêras em calda.

Não sei contar esta parte do enredo da fábula. Pouco sei de


pulgas. Sei que a minha avó dizia quando matava uma pulga "já
ganhei o dia".

(o Inferno)

É O vazio da Física e do Barroco (há sempre mais um quark


ou coisa assim). Não está lá ninguém, pois não? Para Roma é
perigoso pensar se o Inferno tem um fim. E é de pensar, uma
vez que Deus é infinitamente misericordioso. E Deus é o cria-

[432] ADíLlA LOPES


dor do Inferno, uma vez que é o criador de todas as coisas
visíveis e invisíveis. Deus pode acabar com o Inferno. Acho que
o que é perigoso é achar que há questões perigosas. Jesus faz
perigar a noção de perigo.

Que farei eu com este Portugal? Escrevo-o e faço-o, claro.


Que farei eu com o inteligente Dr. Vasco Pulido Valente? Que
farei eu com o escultural Dr. Álvaro Cunhal?

Li a Morte dafamília em 77 (comprei em Paris, numa FNAC,


a tradução francesa). Desse livro de David Cooper lembro - me
de três coisas: quando A ama B e C ama B, A quer ter uma
relação homossexual com C; as crianças educadas segundo os
preceitos do Dr. Spock invejam as que levam pancada; um
psiquiatra é um prostituto.

As mulheres só pensam em roubar os homens (e as mu-


lheres) umas às outras.

Há mulheres que me atraem quase tanto como os homens


que me atraem mais (a Armanda Duarte, a Lúcia Sigalho, a Eva
Michel , a Anik Feit, a Véronique Pittolo, a Leonor Queiroz ,
etc .). Mas sobejam-lhes sempre maminhas, falta-lhes um pénis
e têm um buraco a mais.

Em 8r disse à Dr. a Manuela Brazette, psiquiatra, "Eu sou


feia". Ela disse-me "Não é ser feia. Não há pessoas feias. Não

IRMÃ BARATA , IRMÃ BATATA [433]


1

tem é atractivos sexuais". Lembrei-me então do homem que


em 74, tinha eu 14 anos, se cruzou comigo no Arco do Cego.
Lembrei-me do homem, da cara do homem vagamente, mas
lembrei-me muito bem do que ele me tinha dito ao passar por
mim. Tinha-me dito "Lambia-te esse peitinho todo". Lem-
brei-me também da meia-dúzia de outros homens que durante
a minha adolescência me tinha dito quando eu passava "Coi-
sinha boa" e "Borrachinho". Ainda hoje me sinto profunda-
mente agradecida a esses homens. Pensei que eles estavam a
avacalhar, que eram uns porcalhões. Mas quem estava a avaca-
lhar era a Dr. a Manuela Brazette, ela é que é uma porcalhona.
Acho que um homem nunca consegue ser mau para uma mu-
lher como outra mulher.

(autobiografia sumária de Adília Lopes 2)

Não deixo a gata do rés-do-chão brincar com as minhas


baratas porque acho que as minhas baratas não gostam de brin-
car com ela.

Era uma vez uma mulher sem sombra que encontrou uma
sombra de homem sem homem. Isto encheu-a de tristeza.
Começou a chorar por não ter sombra própria nem homem
propriamente dito, homem de carne e osso. Então as lágrimas
da mulher deixaram pegadas no chão e o homem pôde encon-
trar a sua sombra com a sua mulher porque seguiu o rasto dei-
xado pelas lágrimas da mulher. A mulher deixou de se
preocupar com a sua sombra. Está contente. Nada lhe falta.
Nem a sombra que não tem.

[434] ADÍLlA LOPES


sexo não é porco nem deixa de ser. Nada na vida dá a garantia
de ser limpo nu liso inteiro. Nem aquele quartinho em que
está o eu, um quartinho que seja seu, porque mesmo o eu é o
outro. Às vezes tenho medo de me despir na rua e de falar
muito alto. Chamo a isto o sentimento de irrealidade.

Como a cigarra, também eu no Inverno quero dançar. O


mundo pode acabar e eu não quero morrer sem ter fodido.
Nunca fodi. Sei como é: vi muitos filmes, li muitos livros. Mas
gosto do saber de experiência feito. Nunca nenhum homem me
beijou na boca nem nenhuma mulher. Tenho 41 anos. Não me
acho velha. Acho-me feia e gorda. E afinal já me acho velha por
me achar feia e gorda. Não, acho-me velha por ter 41 anos e
por nunca ter fodido. Acho que se pode dizer: fade ou morre.
Como se diz na Faculdade: publica ou perece.

(copiado de Sophia)

Antígona
não aprendeu
a ceder
aos desastres

(copiado de Agustina)

Eva não era má. Adão também não. Eva e Adão eram novos
de mais na Terra como nós todos.

[436J ADÍLIA LOPES


Não é verdade que tudo é relativo. Nem a teoria da rela-
tividade ensina isso, mas eu conheço muito mal a teoria da re-
latividade. Acho que para foder é preciso ser linda como ' a
Claudia Schiffer e inteligente como Einstein. Mas vejo nas pa-
ragens dos autocarros mulheres grávidas feias e com ar de bur-
ras e não penso que tenham recorrido todas à inseminação
artificial.

Fui crismada, com outras pessoas, em 97, por D. Albino


Cleto, na igreja dos Anjos, em Lisboa. D. Albino Cleto disse na
homilia que não nos crismava para termos receio de afirmar no
café ou na praia que éramos cristãos. Disse também que não
nos crismava para não nos responsabilizarmos pelos nossos
actos como fizeram Adão e Eva: Adão culpou Eva que culpou a
serpente.

(que caras que baratas batatas comem os irmãos em Cristo de Van Gogh)

A lógica é uma batata. A gramática é lógica aplicada. a=a


não interessa nem ao Menino Jesus. a=b só tem interesse
porque a não é bem b. Uma rosa não é uma rosa não é uma
rosa. Partir de a=b para chegar a a;ta. Reduzir ao absurdo.
Cante Kant. Conte Comte. O verbo ser não é igual a ser igual.
Mas a linguagem do homem e da mulher e a do tentilhão-
-macho e do tentilhão-fêmea reduz-se a equações como a
natureza de Newton. Se Deus não jogava aos dados quando
criou a Criação, nunca um lance de dados provará o acaso.

IRMÃ BARATA , IRMÃ BATATA [437J

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