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ROMA

ANCE
cena I . amo-te

Diz que me amas

Eu também te amo

Amo-te muito

Diz : Eu sei

Tu sabes

Diz: Sim sei

Como é que sabes?

Diz: Não sei


Não papagueies só porque as palavras são fáceis de usar

Diz: Mas é verdade, eu amo-te, sempre te amei

Diz: O que é que pensas que me trouxe aqui hoje, com este
frio?

Diz: Achas que não tinha nada para fazer em casa?

Diz: Tinha, mas não me basta. Nada me basta

Diz: E olha que sou milionário!

Ah sim?

Diz: Milionário de amor

Ah bom

Diz: E quero esbanjar-me em ti

Ah

Diz: Deitar-me todo a perder contigo

Ah que charmoso

Diz: Estou em falência cardíaca por ti

Diz: Estou de alma toda à vista

Diz: Quero deixar a minha alma escorrer pelos teus braços e


dos teus braços para as pernas

Que nojo

Diz: Eu quero trocar-me por ti

Diz: Quero beijar cada célula do teu corpo


Diz: Quero respirar-te até rebentar

Diz: Quero embrulhar-me em ti como um pastel em papel


pardo

Diz: E quero falar com metáforas o resto da minha vida

Pronto está bem

Diz: Contigo nada tem só um lado

Diz: Perfuraste a minha realidade

Diz: Tudo te rodeia quando olho para ti

Diz: Tu és o único espaço em branco, és todo o futuro e toda a


esperança

Diz: Eu quero morrer por ti

Diz: Eu vim aqui para desaparecer contigo através dos céus

Pois sim, ambos sabemos que nada do que disseste é literal-


mente possível por isso não posso levar muito a sério. Mas
mesmo que fosse. Olha à tua volta. Repara como tudo tende
para a nossa separação
Vê só todas estas pessoas que esperaram em tempos o mesmo
que tu e repara como todas elas já resignaram ao seu lugar

Diz: Não, não me deixes aqui sentado, eleva-me, eleva-me!

Tem de ser, não posso deixar-te continuar a acreditar naquilo


que te sai da boca para fora

Diz: Eleva-me, por favor, eleva-me!

Diz : Eu também te amo


Tu também?

Diz: Eu amo-te

Mas não pode ser

Juro que não estava à espera

Diz: Também eu

Mas estão todos doidos?

Começa a chorar

Pára de chorar

Começa a dizer um poema

Diz que queres vir ter comigo

Diz: Tu és lindo, lindo, olha para ti...

Eu sei, eu sei. Estão-me a envergonhar, aqui não é sítio para


estas conversas devíamos abordar outros temas

Diz que não te interessa o que os outros pensam

Diz que ninguém nos sabe aqui, ninguém nos está a ver

Estás cego?

Diz: Estou, estou atolado na solidão que me criaste, e começa


a chorar

Tu começa a chorar

Começa a chorar

Começa a chorar
Começa a chorar.

Começa a chorar.

Ok, vamos beber um copo depois do espectáculo, agora não


chores mais

cena II . felicidade

Venham cá. Vou-vos contar uma coisa

Há várias coisas que fizeram de mim a pessoa feliz que sou

Uma foi a morte de familiares, porque assim posso dizer que


tudo o resto se torna relativo mas de uma forma transcenden-
te, percebem? Relativo mas transcendente?

Não sei o que é que isso quer dizer, mas creio que deve querer
dizer que me é atribuído mérito por alguém que me era queri-
do ter ido desta para melhor. Tornas-te feliz por contraste, por
obrigação, feliz para sempre, independentemente da merda de
vida que leves

Mas é assim que funciona, não é? Toda a felicidade tem uma


cor encarniçada, não tem? Ou existe outra? Uma pessoa só
diz que sorte tenho quando tem a enorme oportunidade de
se regalar com o azar dos outros. Por isso é que os milionários
andam a passar férias em favelas, não é? É para poderem sabo-
rear melhor os sofás e tapetes das suas casas, não é?

Ah... E como muitos deles, também tenho a felicidade de ter


nascido no mundo ocidental, ou seja no civilizado, o que quer
dizer que sou feliz porque existem biliões de criancinhas e
adultos cuja fome é saciada ora com arroz ora com farinhas

Por isso sou feliz quando como um bife bem encarniçado

Ah! E porque olho para o futuro, porque ainda tenho imagina-


ção, pouca mas ainda tenho

Dizem que as pessoas felizes olham sempre para o futuro e


não se prendem com o passado

Óptimo, o meu passado é cheio de dor e ressentimento por


isso sou feliz

Diz: Eu também sou feliz

cena III . recuperação

Diz baixinho para a pessoa a teu lado: Ou isto sobe de nível


ou vou-me embora

Responde: A culpa não é dela


Diz : Isto é inadmissível!
Diz: Hoje em dia há formação nesta área
Diz: Deviam ser mais selectivos, abrir um concurso ou assim

Diz: Deixem-na dêem-lhe uma oportunidade

Desculpem, podem esperar um pouco enquanto recupero?


Toda a gente precisa de tempo para recuperar das coisas, ou
não?

Diz: Pois é

Diz: Eu entreguei agora um trabalho, tenho de recuperar


Eu sei eu sei...

Diz: Eu trabalhei o ano todo, ainda estou a recuperar

Eu sei eu sei...

Diz: Fiz uma directa há dois dias e só agora estou a recuperar

Eu sei...
Estivemos todos doentes, não foi? Vocês também estiveram,
também estão a recuperar

Diz: Pois é...

Coitadinhos

E eu aqui sentada neste pódio, não é?

O chão deitado à minha frente feito justamente para eu o pisar...

Diz: Mas já está tão pisado

Eu sei...

Diz: A cadeira onde descanso só me está a cansar

Eu sei eu sei...

Diz: O dinheiro que eu gasto está tão desgastado

Eu sei...

Vesti-me de azul porque é a cor do mar, mas está-me tão apertado

Diz: Pois está pois está...

E esta luz, está russa


Diz: Pois está...
Estamos todos um pouco russos, usados

Diz: Pois é...

Mas por quem?

Diz: Não sei, não sei...

Alguém nos usou

Diz: Alguém!

Não estamos a estrear absolutamente nada

Diz: Nada foi tudo usado!

Tudo 2ª mão, ou 3ª!

Diz: Pois é, pois é...

Diz: Mas tudo feito para nós!

Diz: Também para nós!

Sim, também para nós

Diz: Todos!

Pois, todos jovens mas muito usados, temos todos de ser mui-
to usados primeiro para podermos prever de antemão

Diz: Pois é

Para depois sabermos como recuperar das nossas ilusões

Diz: Isso é muito importante, recuperar das desilusões

Eu disse ilusões
Diz: Eu sei, eu sei...
Estás-me a ouvir, eu disse ilusões, não disse necessariamente...

Diz: Eu sei.
Sei, já sei, já sei!

Diz: Vá, vai pôr-te na cama!

Diz: Eu não quero, eu não quero descansar

Diz: Põe-te na cama a fraquejar, fraqueja, fraqueja!

Diz : Não posso, eu estou inquieto, a minha cabeça não pára...

Diz: Tu? Tu fizeste do teu cérebro cerelac só para não teres de


lidar com a fome e a desordem!

Diz: Juro que ainda não comi nada

Diz: Não há fome nem caos na tua vida!

Na tua também não, na tua também não, na tua também não,


na tua um bocadinho, de caos quero eu dizer, tu já jantavas...

Mas não há caos nem fome na vossa vida, nenhum dos princi-
pais motores da vida, nem um!

Só gasolina, sem motor, ou muita gasolina, muito pouco mo-


tor, nenhuma ignição
cena IV . casamento

Diz: Como comes?

Quem eu?

Diz: Não ele

Ele?

Diz: Não ele

Diz: Como como como

Diz: Como comes o pão?

Diz: Duro

Diz: Eu cá como o meu pão molinho

Diz: Tu sais de casa todos os dias?

Diz: Sim, pela manhã

Diz: E compras pão fresco?

Diz: Sim

Diz: E barras a manteiga sem muita pressão para não fazer


migalhas?

Diz: Exactamente

Diz: Eu estou farto de torradas

Diz: Pois é!

Diz: Dizem que as torradas fazem cancro


Diz: A sério?

Diz: Sim, é o carbono

Pergunta: Os hidratos?

Diz: Não, outro...

Diz: Ah...
Diz: Eu posso ir buscar o pão

Diz: Podes?
Diz: E o jornal?

Diz: Sim

Diz: Eu posso-te usar

Diz: Eu posso-te ser útil

Diz: Dá-me a mão

Diz: Tenho dois filhos

Diz: Eu tenho três

Diz: Eu tenho dois cães

Diz: Eu tinha um gato mas já o dei

Diz: Eu tenho um fogão e um frigorífico

Diz: Os meus estão velhos podemos vendê-los

Diz: Eu sou católica

Diz: Eu também mas não pratico

Diz: Eu sou filha de funcionários públicos


Diz: Eu sou muito rigoroso com a educação da minha mulher

Diz: Eu cá nunca paro em casa, vou buscar o pão e vou à mi-


nha vida

Diz: Eu não sei fazer almoço nem jantar

Diz: Eu não compreendo como é que se espera comer nesta


vida sem cozinhar

Diz: Eu não compreendo como é que ainda te vai parar o pão


à mesa

Diz: Eu não compreendo porque é que me dão tanto pão se


não tenho sequer tempo para o digerir

Diz: Eu não compreendo como é que conseguiste sequer che-


gar aqui a horas

Diz: Não foi fácil

Diz: Imagino que não

Diz: Ainda me falta o ar, e arfa

Diz: É preciso deixar o carro trancado

Diz: É preciso deixar o fogão desligado e o frigorífico fechado

Diz: É preciso deixar as coisas no seu lugar

Diz: Os chineses na China a trabalhar

Diz: É preciso deixar a maré vazar

Diz: As habilitações literárias na gaveta

Diz: É preciso deixar as crianças a trabalhar nos países em que


trabalham as crianças
Diz: As pessoas a rezar nos países em que rezam as pessoas

Diz: Deixar foder aqueles que estão a foder sem estarmos


sempre a pensar nisso

Diz: E não ver filmes

Pergunta: Porno?

Diz: Qualquer um

Diz: E deixar coisas feitas

Diz: Filhos feitos e entregues a pessoas responsáveis

Diz: Ou não e ri-te

Diz: Sim, ou não e ri-te

Diz: Crimes bem encobertos para não ser preso

Diz: Ou não e ri-te

Diz: Pois

Diz: Pessoas que não se importam de fazer as coisas por nós


Diz: O senhor do café, a mulher a dias, o arrumador, o homem
da porta, a menina da bilheteira

Diz: E muitos ucranianos

Diz: Pois e muitos pretos

Diz: Pessoas que ficam a fazer as suas coisas para nós fazer-
mos as nossas coisas

Diz: Pessoas que gostam de se levantar cedo e que são menos


sensíveis à dor
Diz: Que não têm os meus problemas de estômago

Diz: Ui!

Diz: Nem o meu colesterol

Diz: Nada, não têm nada, eles não têm nada

Diz: Mas eu também não me importo de fazer coisas se tiver


que ser...

Diz: Ah pois, eu também não me importo!

Diz: Vir aqui cria-nos a disponibilidade para nos pormos no


lugar do outro

Diz: Sim, imaginamos que nos podemos por no lugar do ou-


tro, se tiver que ser...

Diz: É um lugar de imaginação...

Diz: De fantasia, de suposição...

Diz: É

Diz: Não tens que te levantar às 6h da manhã para ir traba-


lhar, pois não?

Diz: Eu? Não

Diz: Então, chega aqui

Diz: Agora?

Diz: Sim agora

Diz: Não posso estou cansado, não tenho tempo...

Diz: Anda lá anda lá!


E repete: Anda lá anda lá!

Diz: Oh pá, não, deixa-me!

E repete: Oh pá, não, deixa-me!

E repete, e repete, e repete, e repete...

cena V . socorro

Foda-se diz que me ajudas

Diz que me ajudas!

E ajuda-me a ajudar os outros, ou achas muito?

Não me perguntes o que é que eles precisam. Todos sabemos o


que é que eles precisam. Merda para a demagogia!

E não faças essa cara!

Foda-se, diz que vais fazer alguma coisa mais relevante do que
desenrascares-te bem!

Foda-se, diz que vais!

Foda-se, diz para eu parar de dizer foda-se


Diz que me emprestas dinheiro se eu não arranjar trabalho

Diz que acreditas que depois te pago

Diz que não me deixas a viver na rua assim vestido

Diz-me que não estamos aqui a viver a típica situação de uma


pequena burguesia de esquerda a empatizar com os pobrezinhos
Diz-me que não estamos! Diz!

Não negues que estás!

Foda-se, diz-me que é normal estar preocupado

Diz-me que não é normal este stress que nos entope as veias
e as ideias devido a excessos e todos os outros, que não têm
sequer energia para ter nervos, morrem à fome e ainda lhes re-
bentam bombas em cima da cabeça

Diz para eu falar mais devagar

Diz que me queres ouvir

Diz que vai correr tudo bem que não há problema

Diz: Sempre tememos pelos nossos filhos!

Diz! Foda-se, diz!

Bebés a nascerem e a caírem dos telhados com cães a morde-


rem-lhes os pezinhos e aviões também eles apinhados de bebés
e nós que não sabemos onde eles estão

Diz que há radares

Diz-me onde estamos


Foda-se promete-me alguma coisa

Diz-me que estás aqui

Diz!

Diz: Estou aqui

Diz: Salvaste-me
Agora respira, está tudo bem

Pois foi. Sempre fui dado a actos heroicos só ainda não tinha
encontrado o contexto certo

cena VI . contexto dinheiro

Diz: Um herói sem contexto era só o que nos faltava

Diz: Sem contexto não vais sair nunca da cepa torta

Diz: Arranja um contexto

Diz: Contextualiza-te
Diz: Estuda
Diz: Um invólucro
Diz: Invólucro
Repete
Diz: Um sobrescrito
Diz: Sobrescrito
Repete
Diz: Um embrulho
Diz: Embrulha
Repete
Diz: Rótulo
Diz: Película aderente
Diz: Pessoa influente
Diz: Polida mas demente
Diz: Feliz não contente
Diz: Palavra sem gente
Diz: Palavra
E repete
Diz: Buraco e repete
Diz: Palavra buraco e repete
Diz: Cada palavra um buraco
Diz: Outra palavra outro buraco
Diz: Toda a larva no saco
Diz: Em cada pessoa um oráculo
Diz: Larva
Diz: Ráculo
Diz: Larvaráculo
Diz: Lar
Diz: Var
Diz: Cu
Diz: Grrrr
Diz: Lvrc
Diz: Rcl
Diz: Raiva
Diz: Saco
Diz: Muito estreito
Diz: Muito escuro
Diz: Muito apertado
Diz: Muita responsabilidade
Diz: Eu quero é sair daqui
Diz: Então sai!
Diz: Não me mandem sair daqui
Diz: Então fica!
Diz: Fico se quiser
Diz: Tens problemas com a autoridade?
Diz: Com a tributária
Diz: Então tens de sair senão apanham-te
Diz: Eu só não saio porque não quero, é porque não quero,
não é porque não posso, é porque não quero!

És um atraso de vida
É no apego que está o problema da nossa cultura
Diz: Cultura? Cultura é negócio não é para ficar a olhar

Não nos deveríamos afeiçoar nem aos próprios pais, se eles


ficam também é porque querem ficar. Podiam ter previsto me-
lhor, acautelado, fugido a tempo, pôr-se a caminho...

Diz: De quê?

De nada! De absolutamente nada! Estar a caminho de nada é


ser cauteloso

Diz: Mas então para quê pôr-me a caminho?

Porque és um fluxo

Diz: Eu? um fluxo?

Sim, um fluxo

Diz: Como o ar?

Sim, mas mais gordo

Diz: Eu gordo?

Sim, cheio

Diz: Cheio de quê?

De dinheiro claro!

Diz: Eu não tenho dinheiro

Como?

Diz: Eu não tenho dinheiro

Pois sem dinheiro não fluis


Diz: Como?

Diz: Nenhum?

Diz: Não

cena VII . mulheres

Diz: Mesmo não tendo, gastas não gastas?

Diz: Sim, claro

Diz: E se soubesses tinhas poupado mais aqui há 20 anos


quando fizeste o inter-rail, não é?

Pois pois, só as árvores passam por nós sem se queixarem

Diz: O que é que estás para aí a dizer?

Diz: Dá-me o teu casaco

Mas eu não tenho casaco

Diz: Então dá-me o que tens!

Eu não tenho nada, não trouxe nada

Diz: Mentira! Olha para mim!

Diz: Eu não estou a brincar, eu sou uma pessoa violenta!

Mas minha senhora, pode ver que estou toda nua


Estava calor, não vi ninguém, não me incomodei em vestir-me
só para cá vir
Tenho conta no bar, não trouxe a carteira...
Não sei como ajudar

Diz: Vira-te de costas!

Alguém faz alguma coisa? Alguém me ajuda?

Diz: Mãos nos joelhos!


Diz: Cabeça nos joelhos!

Diz: Eu não estou a brincar!

Diz: Eu sou uma mesmo pessoa muito violenta

Eu já fiz coisas muito violentas...

Quando?

Diz : Eu já fiz coisas ...

Quando? Onde?

Agora chora

Pronto pronto!

Diz a chorar: O que é que tu tens contra mim?

E tu?

Diz: Não faz mal, deixa-a

Que pesadelo, pára de chorar!

Diz: Está a expressar o que sente

Diz: É, agora é normal mostrar estes sentimentos

Diz: É saudável

Diz: Mais vale pôr para fora


Diz: Sim, guardar cá dentro é que faz mal

Diz: Está a resolver a História

Diz: Hoje em dia estamos todos mais extrovertidos

Diz: É, temos mais assunto, vemos mais documentários

Diz: Sim, sim, estamos todos a desabrochar graças às mulhe-


res!

Diz: É!

Diz: Elas é que nos chamaram a atenção para as pequenas coi-


sas

Diz: É, as pequenas coisas são muito importantes!

Diz: E o poder é cego

Diz: É, as pequenas coisas são gratas e humildes e não ligam


às aparências

Diz: Mas cuidam-se

Diz: Sim, cuidam-se muito

Diz: Muito

Diz: E cuidam dos outros

Diz: Sim, e dos outros

Diz: E estão sempre a cuidar...

Diz: Sempre...

Diz: E depois ninguém reparou que estavam a cuidar e deixa-


ram de ter tempo para si
Diz: Ah pois!

Diz: Ingratos!

Diz: Todos ingratos!

Diz: E assim passam a cuidar só de si

Diz: Bem feita!

Diz: E muito...

Diz: Porque merecem serem muito cuidadas porque ainda


têm muitos créditos dos séculos passados

Diz: Porque os homens foram uns brutos!

Diz: Pois foram

Diz: Andaram para aí a arranjar confusão e não traziam o sufi-


ciente para casa

Diz: Foi preciso nós começarmos a trabalhar e a consumir que


nem umas doidas!

Diz: Para lhes criarmos empregos e vidas estáveis para não an-
darem para aí em tonterias

Diz: A emigrar...

Diz: A guerrear...

Diz: Politiquices

Diz: Coisas cegas, obcecadas

Diz: Noites em branco


Diz: Agora não, é só caridade, não há política mas há muita ca-
ridade, muita caridade...

Diz: Deixam-se engordar...

Diz: Uma vergonha!

Diz: O que vão dizer as minhas amigas!

Diz: Amigas?

Diz: Amigas!

Diz: O que dizem?

Eu bem te vi a conversar para o lado

Diz: O que é que dizem?

Diz: Nada?

Diz: Amigas e não dizem nada?

Andaram para aí a falar...

Diz: Eu, estive sempre caladinha

Queriam o meu homem?

Diz: Tenho mais que fazer!

Bom, parece que fui eu a única a conseguir emancipar-me. Vo-


cês praí todas casadas...
Tudo bem, continuo a nossa emancipação sozinha: Vou à praia!

Sim, aqui mesmo, agora mesmo!

Diz: Assim é que se fala!


cena VIII . diva

Vou à procura do sol e do mar no meu corpo, quero assistir à


temperatura da areia, interessam-me os cremes para o cabelo e
a música
Música mesmo, música sem letra, música dos mudos, dos
olhos, dos olhares...
Vou absorver, vou para um canto absorver!
Deixem-me em paz!
Vou ser uma esponja
Uma esponja do mar
Vou beber até rebentar
Não vos quero mal seus idiotas. Tudo de bom, tudo de bom
para todos!

Diz: Armada em diva?

É por vocês meus queridos, vocês!

É isso mesmo que as divas dizem, não é? Dizem, tomem lá, o


meu corpo, o meu sal, o meu mar e ainda enfiem-me uma peru-
ca dourada na cabeça, mas o que elas estão realmente a dizer é,
dêem-me roupas, férias e dinheiro e ainda podem ficar a ver...

Mas não, nada disso, o que eu quero é só coisas boas e positivas


Só coisas boa energia
Coisas que dizem ser boas para mim
Cremes absorventes, toalhas macias, chinelos, calcinhas...

Diz: Mas eu sou bom para ti

Mas eu prefiro coisas boas para mim

Diz: Mas as coisas são coisas


As coisas não são boas nem más

Mas eu gosto das coisas!

Diz: Mais do que de mim?

Muito mais!

Troco-te por qualquer pequenina coisa

Diz: Não, não faças isso!

Ah isso é que faço, pronto já está

Vês?

Diz: Não faças isso, vais-te arrepender

Esta coisa não é só uma coisa, esta coisa é símbolo da minha


liberdade, da minha capacidade de ter, de ser eu e a coisa, só
nós os dois sem interferências

Diz: Mas entre ti e essa coisa, não há nada, está tudo escuro
entre vocês

cena IX . medo do escuro

Diz-me para apagar a luz devagarinho

Diz: Não tenhas medo do escuro

Diz: Vai habituando os teus olhos à escuridão, prepara-te para


descansar um bocadinho

No escuro não
Diz: Não penses que te vou ver a esmorecer

Diz: Para isso apago a luz, fecho os olhos, durmo um bocadi-


nho

Não faças isso, olha para mim, sem o teu olhar eu não valho
nada

Diz: Tu não vales nada

Vá lá, isto são só circunstâncias, por favor não me façam ter


de vos ensinar a apreciar-me

Diz : Ainda tens alguns minutos

Diz: Estamos a fazer uma bela viagem mas tu não a podes ver

Diz: Nós estamos todos a deslizar para um sítio que não po-
des controlar

Diz: Mas estamos a pensar em ti, não era isso que tu querias?

Não, isso não

Diz: Dá-te jeito não seres ninguém em particular para poderes


andar a azucrinar a nossa paciência impunemente

Diz: Agora estamos todos a ir embora para um sítio crepuscu-


lar, muito calmo, sem palavras

Diz: Estamos todos a ir embora para um sítio crepuscular,


muito calmo, sem palavras e sem pessoas

Diz: Estamos todos a ir para vastos sofás crepusculares e sem


palavras

Diz: Estamos todos a ir para um sítio que a tua imaginação


não pode mesmo alcançar
Diz: Para não sabermos nada de ti

Diz: Nem de ninguém de preferência

Diz: Não vás tu voltar a cair na tentação de nos dizeres aonde


estamos

Diz: Como se soubesses

Diz: Como se soubesses que sítio é esse para onde nos queres
levar

Diz: Sempre desconfiei de ti assim mascarado

Diz: Sempre desconfiei de ti por nenhuma razão em especial

Diz: A desconfiança aprende-se na rua

Diz: Quem te manda fazer batota

Mas isto é a fingir

Diz: Ba-to-ta!

Não acreditem numa palavra do que estão a dizer, desconfiem


de quem vos disse para dizer isto

Diz: Como poderei viver se não puder confiar nas palavras


que me dão a dizer

Mas isso não faz qualquer sentido

Diz: Já o meu pai me dizia

Diz: Diz o que o outro diz e terás amigos, pensa por ti e terás
sarilhos

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