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RENATO BACON

A Carta de Ane.
A CARTA DE ANE

um conto escrito por


Renato Bacon

Capa e Ilustração por


BlueWillow

Março de 2023
Olá, pessoas. Olá, Mundo.

Eu sou a Ane. E senti fortemente a necessidade de


escrever essa carta aqui. Embora minha vida
profissional já me faça passar horas e horas por dia
escrevendo coisas que precisam vir da minha cabeça
com a devida e correta inspiração, eu pouco escrevo
sobre mim. Eu pouco falo de mim. Talvez seja agora o
momento e vou, simplesmente, deixar as palavras
fluírem de mim mesmo com um dia todo que vem
pela frente já que o dia acaba de nascer e hoje ter
acordado cedo. Que as palavras coloquem para fora
um pouco do que tem em minha alma.

Quem olhar para mim nesta manhã, verá a mais


alegre das mulheres. É essa a imagem que eu
externo. Um sorriso, uma luz, um encanto. É como a
bela imagem do dia bonito logo cedo que se vê ao
abrir a janela.
Acordei hoje com uma sensação tão boa no peito.
Sabe aquela felicidade que vem do nada e te faz
querer sair pulando da cama? Pois é, é exatamente
assim que eu me sinto agora. Por quê? Bom, se
alguém me perguntar, eu tenho a resposta na ponta
da língua: aos 35 anos, acho que finalmente consegui
colocar as coisas nos eixos e estou conquistando
tudo aquilo que sempre sonhei. Não foi fácil, mas
consegui.
Minha vida financeira, por exemplo, nunca esteve tão boa.
Depois de anos economizando, consegui finalmente fazer
uma viagem internacional e ainda sobra dinheiro na
conta. Parece besteira, mas é uma sensação incrível de
realização. Sempre fui aquela que na metade do mês a
conta corrente já pedia socorro. Olhar a fatura do cartão
de crédito? Eu fugia disso. Mas não, eu mudei! Onde havia
falta, agora tem abundância. Não tanto como gostaria,
mas tem.

Na minha família, as coisas também estão ótimas. Meus


pais estão saudáveis e felizes, meus irmãos também
estão bem e temos nos falado com mais frequência do
que nunca. Assim como com meus cunhados e meus
sobrinhos. A minha fama de “tia distante” deve ter ficado
no passado mesmo para eles.

E o melhor de tudo é que meu relacionamento com meu


marido está cada vez mais forte. Nós estamos nos
entendendo melhor do que nunca e nossa vida sexual tem
sido incrível. Eu poderia ficar horas e horas de como foi
que chegamos a esse ponto. De todos os altos e baixos que
passamos nesses oito anos juntos. Hoje, os pontos altos
são muito mais frequentes e isso que importa.

No trabalho, eu também tenho conseguido grandes


conquistas. Fui promovida recentemente e agora tenho
mais responsabilidades, mas também tenho mais
reconhecimento. Isso nunca é fácil. Para uma mulher de
pele escura como eu, a dificuldade aumenta muito
mais. Não por acaso ainda sou a única pessoa negra, além
de única mulher, em cargo de chefia. Mas eu olho para
cada uma das outras meninas lá que são como eu e
penso: quero ajudar a subir!

E, para completar, tenho feito novas amizades no meu


círculo social, o que tem me deixado muito feliz.
Frequentar novos locais tem ajudado muito nesse sentido.
Novos hábitos nos levam a novas pessoas. Novas pessoas
ampliam esse leque. Agora, com todos os fatores
anteriores juntos, o que eu vejo é surgirem cada vez mais
oportunidades de não ficar trancada em casa vendo
filmes na Netflix todo fim de semana. Agora só nos que eu
quero realmente fazer isso.

Então, por que eu escrevi isso tudo? Expor uma vida


maravilhosa? Olha, eu disse: é apenas resposta na ponta
de língua. E não, não menti em nada.

Mas será que eu sou feliz?

Ao mesmo tempo em que tudo isso me traz alegria, eu não


posso deixar de pensar em como eu estou me sentindo
por dentro. Porque, para ser sincera, eu me sinto
amargurada.

Não sei se você que está lendo já sentiu a sensação da


amargura. Mas é como um sabor amargo dentro de sua
boca, que se espalha cada vez mais por todo o corpo.

Sabe quando você conquista tudo o que sempre quis,


mas ainda assim se sente insatisfeita? Pois é, é
exatamente assim que eu me sinto. Às vezes me pergunto
se tudo isso realmente é bom. Se todo o esforço que eu
estou fazendo está valendo a pena.

Porque, apesar de todas essas conquistas, eu ainda me


sinto sozinha e incompleta em diversos momentos da
minha vida. Tenho um marido incrível. Tenho uma família
que não nunca me largou embora eu que fizesse o
contrário. Tenho diversas outras pessoas ao meu redor
que são insuperáveis e não as trocaria por ninguém! Mas
eu também ainda tenho medo do futuro e me preocupo
muito com o que pode acontecer. E às vezes eu me sinto
tão perdida e confusa que não sei mais o que fazer.

Talvez isso seja um medo de tudo o que conquistei


simplesmente ruir.
E se um dia eu chegar em casa e descobrir que meu
marido não quer mais estar comigo? Ou pior: e se ele me
der razões para não querer mais estar com ele?

E se minha família se afastar de mim e eu não ter mais


pessoas com extrema confiança para contar cada passo
da minha vida? E se acharem que não sou uma boa
presença para terem por perto?

E se não eu tiver mais emprego? Como seria toda a


dificuldade de me recolocar no mercado, alcançar
novamente tudo o que alcance. Como seria para manter
meu padrão de vida que, enfim, hoje tenho
com a qualidade que sempre esperei ter, podendo pagar
pelos meus hábitos que sempre sonhei?

Isso não era pra ser uma preocupação constante comigo,


já que tenho tudo muito bem estruturado. Meu diálogo
com meu marido é totalmente aberto. Minha família
entende como ninguém minhas imperfeições e sempre
me acolheu assim. E meu networking e portfólio é bom o
suficiente para manter minha vida profissional mesmo
fora da empresa e não por acaso já tive convites para
mudar, que por ora recusei.

Mas talvez pela dificuldade de enfim ter a vidinha quase


perfeita que tanto almejei, eu fique sempre insegura com
o amanhã.

Mas, ao mesmo tempo, eu não quero parecer ingrata. Eu


sei que tenho muito a agradecer e sou grata por todas as
bênçãos que recebi. Que conquistei. Sei as portas que me
abriram. Mas eu também sei que preciso encontrar uma
maneira de lidar com esses sentimentos e encontrar um
equilíbrio entre minha vida externa e meu eu interno.

E, por isso, estou aqui, escrevendo essa carta. Porque


acho que é importante falar sobre essas coisas e não
temer expor nossos sentimentos, angústias e aflições.
Porque, no fim das contas, é isso que nos faz humanos. E é
isso que nos ajuda a encontrar o nosso caminho na vida.
E só de ter colocado para fora aqui todos esses medos, eu
já sinto menos medo.
Só de ter colocado para fora as razões de minhas
amarguras, já sinto menos esse sabor e mais doçura em
mim.

Obrigada por ter lido minhas palavras.


E espero que de alguma maneira, assim como foi bom
para mim falar, tenha sido bom para você ouvir.

E, como me fez bem fazer isso, em breve escreverei mais.

Um abraço,
Ane.
Mensagem do autor.

às leitoras e leitores desta carta da Ane:

A história da Ane não acaba por aqui. Nós apenas lemos a


sua primeira forma de se expressar, de falar diretamente
com cada um aqui que está lendo.

Mas a jornada de Ane que iremos acompanhar está


apenas começando.

Em breve, Ane está de volta às páginas para conhecermos


cada vez mais essa mulher incrível que ela é.

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