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Cleópatra   promoveu   a   expansão   de   Alexandria.   Com   o   passar   dos   séculos,


 milhões   de   Alexandrinos   foram   se   espalhando   pelo   mundo,   ligados   à
 
Irmandade  do  Sol.  Sonhos  confusos  mexem  com  a  cabeça  de  Thea  e  sua  vida
 está   prestes   a   dar   uma   reviravolta.   Um   segredo   guardado   a   sete   chaves   no
 Papiro   do   Sol   pode   ajudá-­‐la,   mas   a   resposta   às   suas   dúvidas   pode   estar   em
suas  mãos.
Capítulo 1

A sombra de uma mulher sempre invadiu meus sonhos. Seu rosto feio e
indecifrável abrigava um olhar penetrante. Preto jabuticaba era a cor
desses olhos e combinava com seus cabelos negros e pele morena. El Ela
não era bonita e eu sequer a conhecia. Mas era o seu sorriso sombrio que
me atormentava. Por que ela sorria pra mim? Quem era ela? Ela não dizia
nada, apenas me encarava. Até hoje...

Acordei no meu aniversário de 15 anos de sobressalto. A mulher havia,


finalmente, falado comigo. Uma frase idiota, mas falou, com voz de
sussurro. "Não seja como a lua, mas tenha seu próprio brilho como o sol".
Sorri. Definitivamente, a criatura era maluca. Provavelmente eu era maluca.

Sim, isso! Ela com certeza era o meu subconsciente enlouquecido com a
vida monótona nessa cidadezinha interiorana. Certamente ele queria me
trazer alguma graça à vida. Como assim "lua" e "sol"? Do que diabos ela
estava falando? Essa dúvida me tomou alguns bons minutos, além das
habituais "estou viva?" e "onde meu subconsciente arrumou essa criatura
taciturna?".

Eu ainda estava sentada na cama tentando acordar quando minha mãe e


meu pai entraram no quarto cantando o tradicional "parabéns" anual.

- Parabéns a você nessa data querida.... O que houve, Thea? Que cara essa?
Parece que viu um fantasma.....

- Ah, mãe, aquele sonho de novo...

Como eu não queria preocupa-la mais uma vez e nem contar detalhes da
história lua-sol, desconversei, pulando da cama para assoprar a vela posta
sobre o meu sanduíche de queijo minas, na esperança de que minha mãe
não fizesse o interrogatório que sempre fazia quando eu sonhava com a
mulher. "Ela disse alguma coisa?", "O que ela estava fazendo?", "Ela estava
vestida como?" eram apenas algumas das perguntas de praxe. Realmente,
não queria responder nenhuma pergunta hoje.

Minha mãe é professora primária e meu pai dono de uma pequena empresa
de mudanças. Moro em uma cidade histórica do interior do Rio de Janeiro
chamada Petrópolis, no distrito ecológico de Araras. A verdade é que nunca
vi uma arara por aqui.

Araras é um vale, um lindo vale cheio de vegetação e animais silvestres. E


mosquitos. Muitos mosquitos. Brincadeiras à parte, Araras é mesmo rico
em espécies exóticas de aves e flores, até mesmo algumas ameaçadas de
extinção.

Petrópolis é uma cidade de clima ameno, com muitas casas antigas de


enormes gramados frontais. A cidade já abrigou o imperador do Brasil e
ainda há um museu onde foi sua "residência de verão", construído em
meados do século XIX. Meu lugar favorito na cidade é o Palácio de Cristal,
presente de Conde D'Eu para a Princesa Isabel, com a intenção de abrigar
flores e pássaros. É realmente lindo.

A cidade tem inúmeras construções históricas como a casa de Santos


Dumont, a igreja de São Pedro, o convento. Costumo me esconder em um
lugar chamado Trono de Fátima, que fica no alto de um morro bem no
centro da cidade. É um segredo meu, mas às vezes fico sentada horas
olhando a cidade. Quando minha mãe pergunta onde eu estava, costumo
dizer que estava no jardim do Museu. Não quero que ela descubra meu
lugar secreto.

Minha casa é pequena, em tons frios de rosa, com um enorme quintal à


frente, onde minha mãe planta tulipas cor-de-rosa. Ela é apaixonada por
tulipas. Tulipas e gatos. Como meu pai é extremamente alérgico aos
bichanos, ela ficou só com as flores. E são muitas flores. Há duas estátuas de
gatos na frente da casa, que me lembram gárgulas. Assustadores gatos
sentados olhando os visitantes, como se questionassem o motivo da visita.

Costumo brincar no colégio sobre a minha casa. Digo que, na verdade, eu


me escondo no meio de um matagal florido, porque não tem nem estrada
asfaltada até a minha casa. É quase uma bat-caverna sem morcegos...

Nos mudamos para cá quando eu tinha 6 anos e eu não lembro bem de


onde morávamos antes. Lembro que recebemos a visita de uns homens de
terno e cabelos longos, que procuravam a herdeira. Minha mãe não sabia
do que eles falavam. Nem abriu a porta. Mudamos no dia seguinte.

Dificilmente eu saio de Petrópolis. Aliás, acho que só saí daqui para ir até o
centro de Teresópolis, uma cidade vizinha. Petrópolis, de Dom Pedro;
Teresópolis, de Dona Teresa. Criativo, né?! Já imaginei que a minha cidade
seria "Theópolis", mas isso é papo pra outra hora...

Não conheço basicamente ninguém da minha família, nem materna, nem


paterna. Minha avó, a mãe da minha mãe, mora em uma pequena cidade da
Itália chamada Salerno. Ela só nos visitou duas vezes nesses anos todos. Ela
diz que é alérgica a cobras, mas acho que é uma piada. Todo mundo deve
ser alérgico a picadas de cobra, afinal!

Ela não é velha, mas acho que a viagem é cara demais para que ela possa vir
mais vezes. Ou o trabalho dela, sei lá. Nem sei se ela trabalha, pra ser
sincera. Acho que era escultora ou artesã ou algo assim, porque conhece
muito sobre obras de arte. Ela e meu pai nunca se entenderam bem. Ele diz
que ela "uma megera velha, soberba, mandona e egoísta". Ele deve ter tido
tempo pra pensar em tantos adjetivos. Coisas de genro e sogra,
provavelmente.

Nunca soube do resto da família da minha mãe. Ela é filha única e não
comentam muito sobre primos distantes, que eu sei que existem. Parece
que ela não gosta deles. Mas sei que ela carrega um forte sofrimento por
conta da morte do meu avô. Ele morreu em um incêndio, tentando salvar os
amigos. Heroico, não fosse trágico.

Meu pai nasceu em uma comunidade pobre do Rio de Janeiro. Favela


mesmo. A família dele mora lá até hoje: 3 tias e 5 primos. Não conheci meus
avós por parte de pai. Morreram há muitos anos e meu pai foi praticamente
"criado" pela irmã mais velha, tia Célia. Todos os primos são filhos dessa
mesma tia, que teve ou tem um rolo com o "dono" do morro. Nem deve ser
tão pobre assim, porque ouvi dizer que os "donos de morro" sempre têm
muito dinheiro.

Não sei por que alguém com muito dinheiro moraria em um lugar com
nenhuma infraestrutura de esgoto, com luz roubada e gás de bujão. Mas,
enfim... Deve ser o status de ser "dono" de alguma coisa. Ela deve se sentir
uma "rainha", mesmo que seja da sucata. Nunca entendi direito porque as
pessoas gostam de se sentir superiores aos outros.

Não visitamos eles por causa disso. Acho que minha mãe tem medo de ir
até lá. Voltando ao parabéns no quarto, não consegui enganar muito bem
minha mãe.

- Conversamos amanhã sobre esse sonho, querida. Por hora, abra seu
presente!

- Ah, mãe, vocês já gastaram tanto... Não precisava me dar mais nenhum
presente.

Uma lágrima escorreu pelos meus olhos e eu não resisti em dar um longo
abraço nos dois. Minha família, meu porto seguro, ricos naquilo que
importa: o amor. Só isso já era o maior presente que eu podia ganhar. Meu
pai, uma pessoa humilde e séria, que dificilmente conversava comigo,
proferiu uma expressa e longa declaração de amor.

- Ora, Thea, você é nosso maior tesouro e nossa filha única. Fazemos tudo
por você. Você sabe que te amamos demais. Nenhum sacrifício é muito
perto do que sentimentos por você.

Minha mãe, como se tivesse pressa para ver minha cara de surpresa,
bradou:

- Deixe disso, Antonio! Ela sabe o que sentimos! Vamos, filha, abra seu
presente!

- Mãe, seja lá o que for, vou adorar.

Uma enorme caixa escondia outra caixa menor, depois outra e outra e
outra. Depois de rir bastante da piada da minha mãe – que sempre
disfarçava os embrulhos do presente para eu não imaginar o que era –
consegui desembrulhar um pequeno livro escrito à mão em francês, de
cerca de 100 páginas.

- Mas mãe, eu não falo francês...

Era nítido o meu espanto e, sim, a minha decepção com aquele presente.
Adoro livros, mas prefiro aqueles que consigo ler.

- É o diário da minha mãe. Este livro vai te ajudar a entender que você pode
ser quem quiser e que não há nada que você não possa mudar. Ninguém
poderá trilhar o seu caminho. Só você mesma. - disse meu pai.

- Mas eu não falo francês. - repeti, em tom baixo, quase que para mim
mesma, com receio de decepcionar as duas pessoas mais importantes da
minha vida.

- Falará quando for necessário que você leia o livro. Era a língua-mãe da sua
avó. A necessidade de ler e entender esse livro vai se revelar para você no
momento certo. Aí, você aprenderá francês.

Eles saíram do quarto e eu fiquei olhando o pequeno livro, admirando a


letra desenhada da minha avó paterna. Acho que é um livro de receitas. Me
deu até vontade de falar francês e aprender a cozinhar... Eu ficaria um
pouco mais próxima da avó que nunca tive.

Ao abrir a porta do quarto para descer as escadas, ouvi vozes alteradas


vindo da sala, mas não entendi uma só palavra do que era dito. Parecia
italiano. Por fim, minha mãe engrossou a voz. Eu conhecia bem aquela voz
grossa e irritada de quem estava se impondo. Certamente estava
acompanhada de olhos medonhos saltados para fora do rosto. Minha mãe
nervosa era a visão do capeta, com o perdão da palavra.

- Você não pode fazer isso com ela!

Isso o quê? Comigo? Desci as escadas e vi uma silhueta de costas para mim,
sentada ao sofá. Cabelos negros e bem curtos foi a minha primeira visão. Ao
me ver, minha mãe amenizou a expressão nervosa e me olhou, suavizando
seus lindos olhos amendoados.

- Vovó!- gritei eufórica, esquecendo que havia uma discussão na sala e


correndo para seus braços! Poucas vezes eu havia conseguido abraçar
minha avó e a alegria de vê-la depois de tanto tempo foi mais forte do que o
último degrau da escada.

- Querida, mas que saudade! Você ainda não aprendeu a pisar com leveza?
É uma habilidade útil, Thea... Mulheres devem ser respeitadas por suas
ideias, não pelos sons pesados de seus pés. Bom, trouxe-lhe alguns
presentes...

- Ora, vovó, obrigada!!

Dei-lhe mais um abraço apertado. Dentro da caixa, uma linda sandália


prateada, com a sola desenhada e pedras em cima.

- Acho que você deveria usar na festa do seu aniversário!

- Mas ela não tem salto, vovó...

- As maiores mulheres da história não usavam salto, querida. Deixe-me ver


você... Está exuberante como uma rainha! Mas falta algo no seu figurino
para ficar perfeito! Aqui está! Esta joia está na família desde a antiguidade.
Esperei muito tempo para entregá-la a você. É feita de prata pura e significa
a proteção que os deuses conferem a todas as mulheres de nossa família.

- Mamãe, não é hora para isso! Thea não precisa de nada disso agora!

- Quieta, Ísis! É um presente que quero dar a ela. E prata é atemporal,


sempre elegante. Não estrague o momento da menina!

Esse, eu acho, foi o argumento final para minha mãe engolir seu próximo
grito e olhar para mim. Incrível como, mesmo adulta, mamãe continuava
abaixando a cabeça para as ordens da vovó. Fiquei imaginando se comigo
será assim também...

Abri a caixa e vi um pingente em formato de sol, com uma cobra enrolada


nele. No olho da cobra, uma pedra hexagonal lilás. Vovó tirou o pingente da
caixa e colocou em um cordão prateado que estava no fundo da caixa.
Virou-se para mim, fazendo sinal para que eu abaixasse a cabeça e,
colocando o cordão, me disse:

- Apenas o sol tem luz própria.

E sorriu.

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Capítulo 2

Fui para o colégio feliz. Faltavam poucos dias para a minha super festa!
Todo mundo foi convidado! Bom, todo mundo "fora-família", é claro. "Nossa
família somos eu, você e sua mãe. O resto é agregado, acessório.", me disse
papai.

Confesso que lamento um pouco essa distância. Imagino que a sensação de


ter primos e tios deve ser incomparável.

Sonho com isso há meses! Todo o colégio foi convidado, inclusive as


professoras. Acho que meus pais juntaram dinheiro desde que eu nasci
porque não tem como eles conseguirem pagar essa festa de outra forma.
Eles estão realizando todos os meus desejos e vontades. Escolhi o salão, a
comida, a quantidade de convidados, a cor do convite, o vestido.... Ah... e
que vestido!

Meu vestido é branco e prateado, com alças largas e corte reto. Não quis
aquele modelo "noiva" com saias rodadas e cara de bocó. Vou usar algumas
pérolas pelo cabelo e pescoço, já que minha avó fez questão. Preferi um
estilo mais "adulto", que tirei de uma revista que meu namorado me deu. Só
não fiquei muito satisfeita com a ideia de usar uma túnica de seda.

Por falar em namorado, o nome dele é Júlio e eu vou, finalmente, apresentá-


lo aos meus pais! Estou ansiosa, nervosa, agitada e animada. Tudo ao
mesmo tempo, se é que isso é possível.

Estamos juntos desde que mudei para este colégio, no ano passado. Ele é
alto, lindo, com olhos cor-de-mel e um cabelo loiro cortado estilo asa delta.
Quando anda, parece que dança, pendendo de um lado para outro de
maneira despretensiosa e bem desajeitada. Está sempre com a camisa para
fora da calça, o que lhe traz alguns bons aborrecimentos com os inspetores
do colégio. Nada que ele não resolva com um sorriso.

Ele usa um perfume amadeirado entorpecente, provavelmente francês,


porque todo mundo que é rico usa perfume francês. Mas o melhor de tudo
mesmo? Ele é apaixonado por mim. Perfeito, se não tivesse o colégio todo
atrás dele, fazendo intrigas, inventando histórias e arquitetando planos
para que nosso namoro acabe. Cambada de invejosos...

Soube por uma amiga que os amigos dele disseram que eu sou "sem sal
demais para ele”. "Meu tempero é pimenta", foi o que eu disse pra ela. E
rimos bastante disso. Mas foi apenas um trocadilho, porque não acho que
eu tenha qualquer pimenta ou sal. Sou feia, a verdade é essa.

Acho o destino curioso. Eu, "sem sal", nariz reto de uma origem genética
ridiculamente grega, cabelo preto opaco e sem corte há tempos, filha de
uma professora primária e um dono de caminhão ("empresa de mudanças"
é como me refiro ao caminhão que meu pai dirige para fazer as mudanças
da vizinhança). Ele, filho do vice-presidente de uma multinacional do ramo
de perfumes, lindo e charmoso.

Me sinto uma Cinderela moderna. Apesar de quê, a Cinderela era filha de


um nobre... Então, me pergunto: "como ele me escolheu dentre todas as
patricinhas engomadinhas da escola?". Não sei. Ele costuma me esperar na
porta do colégio e, nesse dia, não foi diferente. Avistei ele de longe.
Encostado, com a mochila no chão e um envelope na mão.

- Hei, linda! - e me deu um longo e apertado abraço, com um beijo na testa.

- Oi! Tudo bem?

- Tudo ótimo! Tome.

Dentro do envelope que ele me passou, um voucher para um "Dia de


Princesa", no qual um cabeleireiro e sua assistente me arrumariam para o
evento.
- Obrigada... Nem sei o que te dizer.

- Não diga nada. Você terá tudo o que uma rainha merece.

Entramos no colégio de mãos dadas, mas só até cruzar com o primeiro


inspetor, que fez cada um seguir o seu caminho até as respectivas salas de
aula.

O primeiro tempo seguiu normal. Aula de Música com a Dona Filomena e


ensaios do coral do colégio para a apresentação de fim-de-ano. Quando
estava quase no fim do ensaio, na parte onde a professora faz a chamada e
pergunta se alguém quer se apresentar com o quinteto de flautas (ninguém
nunca vai), começamos a ouvir um violão baixinho, longe... Dona Filomena
abriu a porta e, com um sorriso, me chamou.

- Vai.... Acho que é uma serenata pra você...

Era o Júlio, sentado na frente da minha sala, tocando "Time After Time", da
Cindy Lauper, em uma versão voz e violão. Ele estava sozinho. Todo mundo
olhava de longe, quase que faltando coragem de se aproximar e estragar
aquela melodia perfeita. Era hora do recreio e o corredor do colégio estava
cheio. Quando me viu, ele abriu um sorriso. Interrompeu o violão e disse:

- Time after time, linda.

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Capítulo 3

Era sábado. Finalmente sábado. O dia da minha festa! Bebi o suco de


laranja, desprezando sanduíche e a maçã que minha mãe insistia em servir
para o café da manhã "porque maçã faz bem para a saúde" e corri para a
sala, esquecendo de trocar a camisola de algodão por uma roupa
apresentável. Chegando na sala, me deparei com cinco pessoas.

- O...oi... sou a Thea.

- Bom dia, linda Thea, sou o José, seu novo cabeleireiro, se é que algum
profissional já colocou a mão nesse cabelinho e esta é a minha equipe:
Marcela, minha assistente; Claudia, a massagista; Fernanda, a maquiadora;
e Flavia, a auxiliar de produção para os retoques finais.

Equipe? Massagista? Maquiadora? Auxiliar de produção? Eu ouvi bem?. Me


senti em uma peça de teatro, mas, respirei fundo e focalizei no mantra "dia
de princesa". Ele continuou:

- Vamos trabalhar para relaxar você e deixa-la lindíssima para o grande


evento. Onde podemos ter privacidade?

- No quarto dos meus pais, que é suíte e tem um pouco mais de espaço que
o meu quarto.

E, claro, certamente está mais arrumado que o meu, onde as paredes são
recobertas de desenhos de olhos e silhuetas, as roupas estão
"organizadamente bagunçadas" e meus livros, bom, dominam o ambiente.
Subindo a escada, José soltou a pérola:

- Precisamos dar uma cortada nesse cabelinho. Está horrível e maltratado


demais, né?! Vou deixar você com cara de rainha, como o Julinho pediu.
Pode deixar que você será muito bem tratada por nós, né, meninas?!
Enquanto eles riram daquilo que devia ser uma piada, eu me sentia a
porcaria da humanidade. Se a pessoa queria elevar a minha moral, estava
pelo caminho errado.

Ri para mim mesma do apelido carinhoso: “Julinho” Sério? Era assim que
ele chama o Júlio? O meu Júlio? Enfim... Certamente eu ia comentar isso
com ele assim que possível... Mas seguimos em frente para o quarto da
mamãe.

A primeira coisa que ele me pediu foi para tomar um rápido banho, lavando
bem o cabelo duas vezes apenas com o shampoo antirresíduos que me deu.
Quando terminei, ouvi o som de um suave piano tocando.

José me deu um roupão com uma lua delicada bordada na gola, me virou de
costas para o espelho e atacou meu cabelo com a tesoura. Atacou mesmo.
Eu só via os fios caindo. Arrisco dizer que perdi uns 15 centímetros de
cabelo. Na hora, eu só pensava no tempo que demoraria a crescer, no
tempo que eu tinha levado para deixar ele crescer, enfim, parei de pensar e
fechei os olhos.

Assim que terminou, massageou o cabelo com um creme e enrolou em uma


toalha que trouxe, igualmente bordada com a delicada lua. Felpuda e
confortável, observei que na barra tinha outro pequeno bordado: "JC".
Provavelmente, eram suas iniciais: José Carlos, José Claudio, José qualquer-
coisa-com-C. Mas que era o cúmulo do chiquê, para não dizer frescurite!

Encaminhada para a cama dos meus pais, começou o trabalho da Claudia.


Uma massagem bem relaxante nas minhas costas e meus pés, que culminou
com pedras quentes posicionadas em lugares que, julgo eu, faziam algum
sentido para ela. Depois, fez uma dolorida esfoliação e me encharcou de
lama. Ergh!

- Não se assuste, Thea, é lama trazida diretamente do Nilo, usada para


hidratar e revitalizar sua pele. Feche os olhos e procure descansar um
pouco enquanto ela faz efeito.

Ok, me sinto uma idiota toda suja de lama. Comecei a divagar em quanto
dinheiro o Júlio deve ter gastado com todo esse paparico e acho que
cheguei a cochilar uns minutinhos, quando fui interrompida pelas batidas
na porta da minha mãe.

- Trouxe café para todos e um prato de comida para Thea. Vocês estão
servidos? - disse, antes de olhar para mim e assustar-se com a lama - Thea,
o que é isso?

- É lama medicinal do Nilo, sra. Ísis - apressou-se José a acalmá-la - Não


deixaremos nenhuma sujeira no quarto ou no banheiro, não se preocupe. A
lama possui propriedades terapêuticas para a pele e ajudará Thea a ficar
ainda mais radiante na hora do evento.

- Muito bem... Lama terapêutica... Assim seja... Vou deixar seu prato aqui,
Thea. Quando você se limpar, coma para não passar mal.

- Obrigada, mãe.

Mas logo que ela saiu do quarto, Claudia me orientou a tomar banho e
retornar para finalizar a massagem com óleo de amêndoas. José aproveitou
e me pediu para lavar o cabelo apenas com água e retornar para as
finalizações.

Muito tempo passei embaixo da água, na esperança de tirar toda aquela


lama suja de mim. Duvido que fosse mesmo do Nilo e que, mesmo sendo,
fizesse o efeito prometido. Tentei acalmar a cabeça. Aquilo tudo era demais
para mim e eu me sentia uma exploradora de namorado rico. Aviltada, de
certa forma. Será que era despeito meu?

Minha consciência pesava e eu só queria mandar todos embora. Por outro


lado, não queria chatear o Júlio ou deixar ele sequer imaginar que eu
estivesse fazendo uma desfeita. Então, resolvi seguir em frente. Afinal, um
dia de paparicos não ia matar, né?

Devo ter demorado bastante, porque José chegou a bater na porta


perguntando se eu estava bem e, quando saí do banho, tudo já estava limpo
e arrumado, até o que não estava arrumado antes de eles chegarem.

Havia uma mesa posta para mim, com o prato de comida que minha mãe
havia trazido e uma jarra de suco de mamão que eu nem havia reparado.
Salada, frango grelhado e purê de batatas baroas. Um luxo que só eu tinha
vez ou outra, porque a batata baroa é muito cara... Uma tulipa colhida do
jardim da minha mãe completava o mimo.

- Coma, minha querida. Nenhuma rainha passa fome.

- Não me sinto muito rainha... Na verdade, me sinto mais um monstro que


precisa de lama pra ficar apresentável...

- Ora, Thea, a beleza é algo que vem de dentro e não de fora. Só estamos
relaxando seus poros para deixar ela sair. Você precisa entender que deve
se cuidar e se valorizar se espera que os outros tenham a mesma atitude e
respeitem você. Somos o que vendemos ser. Você será rainha assim que se
portar como uma. Será linda, sempre que se enxergar linda no espelho.
Suas decisões dependem de como você se coloca. Se olhe, se ajeite e se
admire. Tudo para si mesma. Nunca para os outros. Quando você passar a
se admirar, a opinião dos outros a seu respeito deixará de pesar e você será
feliz. Você vai se amar e se cuidar, independente do Júlio. Mas vamos deixar
de papo... Coma. Ainda preciso secar seu cabelo e deixar as meninas
terminarem contigo.

Comi tudo sem muito sacrifício - já que era apenas uma salada e um
purezinho com frango grelhado - e parti para as tais "finalizações". Secador,
óleo, maquiagem... e a tal auxiliar de produção me bajulando com elogios.
Por fim, ela mesma pegou o meu vestido e ajudou a colocá-lo. E também foi
ela que encheu meu cabelo com as voltas de pérolas. José trouxe um
enorme espelho do carro dele e colocou minha frente.

- Isso é um espelho decente! Aqui você pode apreciar meu trabalho por
completo. Vamos, admire-se! Elogie-se! Respire fundo e infle esse peito.
Olhe reto, nunca para baixo. Você precisa de mais honestidade do que
humildade.

Aí eu descobri que não foram só 15 centímetros de cabelo que foram


embora. Meu cabelo estava um pouco abaixo do ombro! E algo no espelho
me lembrou a figura taciturna dos sonhos.... Mas, olhando com cuidado, me
senti bem bonita! Junto do cabelo, acho que a cara de menina-moleca-de-
rua também tinha sumido. Eu parecia uma mulher madura.

- Obrigada, pessoal. Estou me sentindo ótima.

- Você está linda! - disse Flávia, pela enésima vez, cumprindo seu papel da
auxiliar de produção: puxar o saco!

- Aqui está jogo de toalhas e roupão que você usou. São um presente do
Julinho para você.

- Presente do Júlio? "JC"?

- Ora, querida, Júlio Cesar. Tudo de Julinho é feito de fios egípcios e bordado
à mão! Um luxo!

Ok. Sem pânico. É dia de festa e eu não vou achar que meu namorado
galanteador é, na verdade, um esnobe... Focalizei em mim mesma. A
maquiagem ficou ótima, devo assumir. Um olho bem marcado com sombra
fumê e um toque esverdeado em cima, batom rosa claro e um toque final
delicado: duas borrifadas de um perfume que eu nunca havia sentido.

- Canela, cardamomo e bálsamo. Uma delícia, não? Mas devemos usar


apenas um pouco, para não esconder seu próprio cheiro, mas apenas dar
um toque complementar. O cheiro de uma mulher revela muito de sua
personalidade. - disse Flavia ao espirrá-lo em mim – Tome. Este perfume é
outro presente do Julinho, feito especialmente para você.

Como assim? Quantos presentes ele vai me dar? Comecei a ficar irritada de
verdade! Mas esbocei um sorriso forçado e peguei o vidro sem nome.

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 4

Acho que foi Edgar Allan Poe quem disse que "tudo o que vemos ou
parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho".

A escada descendo à minha frente era cruelmente íngreme. Meus pés


desencontrados sempre me traíam nessas horas - horas de nervosismo.
Tropeços, quedas, dor, estas eram as minhas lembranças de escadas. Minha
entrada na festa tinha que ser diferente.

Meu nome, dito com todas as letras em pompa e circunstância ao som de


uma agoniante peça de “Nocturnes” de Chopin, soou muito mais comprido
do que normalmente. Luzes apagadas destacavam o único foco rosa que
mirava, pela primeira vez, em mim. Me senti uma princesa de verdade. Eu
não podia errar. Não erraria.

Mais de duzentos pares de olhos estavam acompanhando o momento.


Muitos eu reconheci da escola. Outros tantos, acho que nunca havia visto.
Ao primeiro degrau que pisei, palmas calorosas, gritos e assobios. Olhei
para trás procurando quem estava descendo comigo para merecer todo
aquele alvoroço.

Ninguém. Era eu, sozinha com meus pensamentos e a vozinha irritante da


cerimonialista perua, dentro da minha cabeça, repetindo: "Mantenha a
cabeça erguida e os passos firmes.". Agradeci mentalmente à vovó pela
sugestão de usar as sandálias. Não sei como me sairia com saltos... Será que
era realmente tão difícil?

Houve um silêncio no salão e os degraus seguintes foram assim, a música e


eu. Me concentrei. Avistei meu pai, mas eu ainda estava na metade da
escada. Ele estava lindo, elegante e, como nunca o vi antes, emocionado.
Percebi um misto de orgulho e devoção em seu jeito. Ajeitou o terno,
estendeu a mão para mim e rendeu-se às lágrimas. Não um choro
escandaloso de carpideira. Um choro sutil, feito de lágrimas compridas e
espaçadas.

Meu pai é um homem humilde, fruto de um casamento entre uma francesa


delicada e um grosseiro italiano, que a deixou assim que teve a
oportunidade, levando o dinheiro da família e deixando a todos na miséria.
Posso imaginar tudo que se passava em sua cabeça naquele momento. O
esforço que ele e minha mãe fizeram para pagar essa festa era óbvio.
Nenhum deles ganhava o suficiente para arcar com tudo aquilo.

Na verdade, eu não poderia pedir nem tampouco fazer questão de uma


festa. Parecia mais o sonho dele do que o meu. Ou uma forma de provar à
família da minha mãe que ele podia pagar. O que seria engraçado, porque
minha avó não devia ser rica para justificar essa competição.

Cheguei ao último degrau sem acidentes e respirei aliviada, confiante de


que meus pés não eram ambos esquerdos. Segurei nas mãos suadas e
machucadas do meu pai. Usualmente desengonçado, ele deve ter ensaiado
bastante para aquele momento. Agia naturalmente, me conduzindo pelo
salão como se sempre houvesse dançado.

- Você está divina, minha filha. - cochichou ao pé do meu ouvido.

Meu pai não havia me visto desde antes do "trabalho" de José. Suas mãos
calejadas me seguravam suavemente, esquecendo toda a brutalidade e
virilidade do dia-a-dia em uma dança leve e, por que não, perfeita.

Dançamos e rodopiamos ao som de "Rain", do Brian Crain, tocada em piano


e violino pelos próprios músicos do salão. Parecia um som saído de uma
antiga caixa de música, daquelas em forma de piano com uma bailarina
muito pequenininha rodando dentro.

Devo reconhecer que mamãe tinha razão. As rosas deram um tom especial
ao salão. "Sua fragrância impede a embriaguez", dizia ela, em uma
demonstração de fé na crendice popular de seus antepassados. Eu e papai
sempre ríamos muito dessas observações, mas não contrariávamos mamãe.
Um toque em seu ombro interrompeu nossa dança mítica. Era Júlio, lindo,
alto, perfeito e, falando com meu pai!

- Senhor, gostaria de ter a honra de dançar com sua filha.

- Rapaz, sequer sei quem você é e já está estragando um momento único em


minha vida.

Senti Júlio enrubescer. Nesse momento, salvo pelo gongo, outras duplas
entraram no salão para dançar também.

- Peço desculpas por isso. Estou ansioso por este momento e aguardando
há meses... Me chamo Júlio, senhor, e se não se importar, terei a honra de
responder a todas as perguntas após a dança e, assim, pedir sua permissão
para namorar a sua filha.

- Ah, sim, o pretenso namorado. Vamos ver, Júlio... vamos ver...

- Senhor Jorge, como vai? - uma voz firme interrompeu papai e todos
observamos o homem imponente, alto, de nariz e rosto bem angulosamente
marcados.

Olhos negros e penetrantes harmonizavam com um cabelo grisalho


elegante, demonstrando uma altivez que eu nunca havia visto antes. Ele era
muito elegante, intimidante até. Me lembrava o Richard Gere, de certa
forma, ainda que seu rosto tivesse molares bem salientes. Então, estendeu a
mão esquerda para apertar a mão de meu pai, mantendo a direita dentro
do paletó, e se apresentou:

- Me chamo Otávio e sou o pai do Júlio. Perdoe a audácia de meu filho, a


qual certamente podemos atribuir à imaturidade de sua pouca idade. Ele
não aprendeu a esperar o momento correto de falar. Mas estamos
trabalhando nisso, certo, Júlio?

Vi os ombros de Júlio se encolherem. Uma tensão se espalhou no ar assim


que o tom austero e impositivo do pai dominaram o ambiente e seu olhar
direcionado que - por que não? - fuzilou o filho. Quis intervir e, antes que
meu pai pudesse dizer qualquer coisa, achei melhor "enquadrar" o ricaço:

- Ora, Sr. Otávio, creio que, na verdade, foi o senhor quem se mostrou
inoportuno, ainda que imaturidade esteja longe de justificar suas atitudes.
Acho que o Júlio foi perfeito e educado. De mais a mais, papai estava apenas
brincando, não é, papai?

Sem pestanejar ou gaguejar, nem tampouco esperar qualquer resposta à


pergunta retórica, me virei para Júlio, querendo salvá-lo daquela pressão e
querendo sair correndo daquele momento estranho.

- Vamos dançar, então?

Nunca me senti tão forte. Lembrei das palavras do José, o cabeleireiro:


"somos o que vendemos ser". Espero ter "vendido" uma imagem forte para
aquele homem tão rude.

Júlio sorriu, saindo do transe causado pelo pai, segurou delicadamente


minha mão e deu uma piscadela. A música que dancei com papai foi
abaixando e sendo substituída harmonicamente por outra assim que ele
tocou minha cintura. Reconheci a música na primeira frase, mas a voz
suave da cantora não era bem o que eu costumava ouvir.

Júlio sorriu, me puxou para perto – bem perto – me deu um beijo demorado
e carinhoso na testa e sussurrou a letra da música no meu ouvido. Nesse
momento, não importava quem estava dançando à nossa volta. Não
importava mais quem tinha dinheiro, quem era mais bonito, quem tinha sal
ou outro tempero. Éramos apenas duas metades de uma mesma alma,
separada nos céus, lutando para voltar à integração. Para mim, o salão
esvaziou e ficamos sós na pista, envolvidos em uma bolha romântica e
íntima:

- If you're lost, you can look and you will find me time after time... If you fall,
I'll catch you, I'll be waiting time after time... - uma voz grossa, mas
incrivelmente afinada, cantava entre sussurros tão próximos do meu
ouvido que arrepiavam minhas entranhas, traziam sensações novas ao meu
corpo, faziam meu coração acelerar e me faziam crer que estava levitando.

- Como você faz isso?

- Faço o quê?

- Cria esse clima tão facilmente. Parece que o DJ já sabia o que tocar, sabia o
momento certo para tocar. Uma conspiração a seu favor...

- A seu favor, Thea. O universo conspira a seu favor, tenha certeza disso. Eu
sou apenas uma peça de um grande tabuleiro.

- Não diga isso! Eu sou apenas eu, a Thea de sempre que não sabe como o
famoso Júlio resolveu namora-la...

- E eu sou apenas o Júlio, apaixonado pela incrível mulher que é você e por
todas as possibilidades que me traz todos os dias. Essa música diz muito do
que quero que você saiba...

- Essa música é linda. Mas a melhor versão foi a que você tocou no recreio,
lá no colégio...

- Essa é Eva Cassidy. Esse CD ainda não foi comercializado...

Então, ele parou de dançar, olhou dentro dos meus olhos e murmurou:

- Linda, como sempre. Rainha, como nunca antes.

Seu olhar me despiu. Me senti frágil, entregue, toda e absolutamente dele.


Não importava nada naquele momento. Todos os pelos do meu corpo
ficaram arrepiados com a profundidade de seu olhar e com o significado
das palavras. Senti um calor vindo do pendente que minha avó me deu...

- Está tudo bem, Thea? Você parece assustada...

- Está tudo bem. Só estou emocionada com tudo isso que você disse e com
todo esse momento.

Ele sorriu.

- Hummm... Você foi bem firme com meu pai. Deve ter causado excelente
impressão, já que ninguém responde ao grande sr. Otávio III. Com certeza
ele vai tecer muitos elogios a você mais tarde...

- Eu não sabia que ele vinha. Não sei o que deu em mim... Acho que eu só
quis sair logo dali. Ele estava me assustando.

- Bom, ele costuma fazer isso. Espero que o José e as meninas tenham lhe
tratado bem.

- Ah, sim. Eles foram ótimos com as toalhas bordadas e tal.

- Gostou?

- Claro... Que frescura! – rimos - Mas você realmente não precisava ter se
incomodado. Mamãe poderia ter me ajudado. E o meu cabelo? Não sabia
que você não gostava dele comprido. Podia ter me dito que preferia que eu
cortasse. Foram muitos anos deixando ele crescer.

- Thea, não se chateie. Quis fazer apenas uma surpresa e achei que o
formato do seu rosto ficaria excelente com um cabelo mais curto. Lindas
pérolas, aliás. Pérolas são sempre muito elegantes. E este pingente aqui? A
pedra é uma Alexandrita?

- Não sei. Está há algumas gerações na família da minha avó. Ela me deu
hoje.
- Entendo. Parece Alexandrita, como as da sua sandália.... Mas venha, vamos
até o jardim. Tenho mais uma surpresa.

Meu coração parou. O que será que ainda tinha pra mim?

Segurou minha mão olhando dentro dos meus olhos com um sorriso, deu
um beijo entre os meus dedos. Sem soltar minha mão, apontou para o
jardim e foi me conduzindo. Seu andar não estava dançante como na escola.
Estava firme, determinado, como seguro de um destino certo. Olhando para
ele, imaginei-o bem mais maduro do que estava acostumada.

O jardim estava decorado de uma forma absurdamente romântica. Não


imaginei isso do lado de fora do salão. Não posso acreditar que essa
decoração foi sugerida pela minha mãe, já que não usaríamos essa parte.

Um caminho de velas até um banco situado no meio de um caramanchão foi


a cena que vi. O jardim estava todo escuro e a luz da lua refletia no cabelo
dele. Ou era ele quem refletia em todo o resto. A música do salão estava
ficando baixa e ele caminhava cada vez mais devagar, como em um passeio
sem pressa.

- Sabe, Thea, sonhei com você nesse cenário mais vezes do que posso
admitir. Mas nada se compara ao que sinto agora... - disse ele, com o rosto
tão perto que cheguei a sentir seu hálito de hortelã e o calor da sua
respiração.

Meu rosto esquentou. No meu peito, o pingente da vovó queimava. Mas


nada importava... Eu estava entregue a ele. Naquele momento, eu era toda
dele, derretida como sorvete na frigideira. Ele passou os dedos pelo meu
rosto, colocando o meu cabelo atrás da orelha, e se aproximou ainda mais.

Fui sentindo sua respiração ofegante e imaginando as mil possibilidades de


desfecho, desde as mais românticas, que culminavam com uma declaração
de amor ao estilo "Romeu e Julieta" até as mais trágicas, com a chegada
abrupta do meu pai com uma espingarda. Pensando bem, também seria um
final bem triste ao estilo "Romeu e Julieta"...

Um beijo, demorado e seguido de um suspiro foi o que bastou para minhas


pernas trepidarem e eu sentir o chão rachando. Não foi um beijo quente,
mas um beijo sereno que comprimiu meus lábios e preencheu minha alma.
Ele envolveu meu corpo em um abraço apertado e eu pude sentir todos os
músculos de seu braço agindo para me aconchegar. O perfume dele me
inebriava. Amadeirado, forte e viril. Tão dele.

- Você gostou do perfume?

- Ahn? - eu estava tonta com o beijo, com o cheiro, com o abraço e com
todas as reações do meu corpo ao corpo dele.

- O perfume? Você gostou? Mandei fazer para você. Eu mesmo escolhi os


elementos. Percebi que está usando. Você colocou pouco, como sugeri...

- Claro, é ótimo...

- Você está linda, Thea. Não canso de dizer isso. Linda e perfeita.

Ainda estávamos perto demais para que eu mantivesse a consciência...


Linda, eu? Não. Mas ele? Ele estava um deus grego como os que vi nas fotos
da aula de artes. Um deus grego moderno. Todo de preto, terno e camisa,
com os dois primeiros botões desabotoados, mas sem mostrar mais do que
o necessário.

Seus cabelos loiros e os olhos cor-de-mel, irretocáveis, faziam dele não


apenas um cara, mas "o" cara. E não era só... Era toda a atmosfera
romântica que ele criava e todas as reações bioquímicas que ele causava no
meu corpo.

Ele colocou a mão dentro do bolso do paletó e tirou algo. Uma caixa
pequena de joias com uma imagem de uma lua gravada em cima. Estendeu
para mim.
- Thea!!! Thea, os convidados estão aguardando os seus cumprimentos!

Uma voz feminina ecoou pelo jardim. Era minha avó! Nenhuma das
possíveis interrupções que imaginei tinha minha avó como personagem.

- Já estou indo.

- Só um minuto, Sra Arkensus. - disse Júlio, guardando a caixa no bolso.

Como ele sabe o sobrenome de solteira da minha avó?

- Mas, e a caixa? – perguntei.

- Voltamos aqui mais tarde. O que está na caixa precisa de uma longa
conversa. Há muito que preciso lhe dizer, lhe explicar...

- Diga agora ou cale-se para sempre! - brinquei, como costumava fazer


quando ficava nervosa. - Vou ser abduzida pelos convidados e não sei que
horas vou conseguir vir aqui de novo.

- Resgato você às onze de onde você estiver. Agora vamos, antes que sua
avó venha até aqui gritando mais...

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Capítulo 5

Algumas pessoas têm o poder de ver como somos por dentro. Nos despem
com olhos que penetram e sacodem nossa alma de cabeça pra baixo até
descobrirem o que querem. Nem sempre isso provoca arrepios românticos.
Muitas vezes é medo. Puro e simples medo.

- Aquele é o filho do Otávio III?, atirou vovó assim que cheguei perto dela.

- Si - sim... - gaguejei - mas a senhora conhece o pai dele?

- Não importa. - e olhando dentro dos meus olhos com um jeito sério e até
assustador, como se me investigasse por dentro, disparou: - Você está bem?

- Estou, vovó. Por quê?

- Preste atenção na sua alma, Thea. Escute a sua alma. Agora venha. Quero
que você conheça seu primo, Aurélio - e me puxou para dentro do salão.

Honestamente, estava ficando cansada das frases de efeito de hoje. Tudo


me soava muito estranho. Mas prestar atenção na alma? Quem presta
atenção na alma? Prestamos atenção ao coração, seguimos a cabeça, mas a
alma? Eu sei lá o que minha alma diz? Alguém sabe? De toda sorte, estava
bem chateada pela interrupção dela.

- Thea, este é Aurélio, seu primo de terceiro grau. Ele mora na Itália, em
Florença, e estuda Neurociências na Università degli Studi di Firenze.

- Como vai, Thea? Você está linda.

- Obrigada, Aurélio. - e, olhando para vovó que estava se preparando para


sair de perto, arranjei uma desculpa: - Vovó, preciso falar com minha mãe.

- Mas, Thea, Aurélio veio exclusivamente para a sua festa!

- Fico feliz de tê-lo conhecido e agradeço sua presença, Aurélio. Aproveite a


festa.

Aurélio era um rapaz muito bonito. Alto, cabelos negros raspados em


máquina baixa, sobrancelhas grossas e harmonicamente dispostas no rosto,
ombros largos de quem malha muito, um sorriso perfeito e brilhante. Devia
ser inteligente, também. O homem perfeito, quem sabe. Resta saber
“perfeito” para quem, não é?!

Virei e fui procurar os colegas do colégio, visivelmente aborrecida pela


interrupção da vovó ao momento mágico do jardim. O fato é que nunca tive
amigos de verdade. Não tinha um grupo no colégio ou mesmo quem se
importasse se eu faltava ou não. Conseguia me dar bem com todos e não ter
problemas com ninguém. E a verdade é que eu passava boa parte do tempo
com o Júlio.

- Vamos dançar? - disparei aleatoriamente para o grupo, esperando que


alguém finalmente me ouvisse e aceitasse uma das minhas ideias...

- Vamos, é o seu dia! - gritou Flavia, exageradamente animada, como de


costume.

Como ela costumava centralizar as atenções, umas 10 pessoas se animaram


com ela, formando um enorme grupo que lotou a pista de dança. Ao
perceber a movimentação na pista, o DJ mudou a música para os famosos
funk melodies da época. Em uma sequência de passos coordenados, todos
dançavam como robôs sincronizados, imitando o mestre. E, acredite se
quiser, o mestre hoje era eu.

Aos poucos fui percebendo que tudo que eu fazia era imitado por todos.
Não era ela o centro das atenções: era eu. Eu estava coordenando a dança.
Eu nunca coordenava nada! Uma força estranha estava conspirando a meu
favor.

Tudo estava dando certo. Eu não caí da escada na entrada da festa, encarei
o pai do Júlio sem travar (como eu sempre faço quando estou nervosa), o
vestido estava ótimo, papai não teve um chilique quando o Júlio chegou
perto e, agora, eu coordenava os passinhos do funk da galera da escola.

Aproveitei o máximo que pude daquele momento glorioso. Todos riam para
mim, concordavam comigo. Comecei a entender a sensação gloriosa de ser
importante. Quando minha barriga deu o primeiro sinal de fome, corri pra
mesa de frios e belisquei uma fatia de queijo e uma de salame. Eu precisava
voltar logo antes de perder o meu momento.

- Você deveria comer mais, Thea. Rainhas costumam se alimentar direito,


melhor do que seus súditos.

Gelei ao perceber: a voz grossa, ao meu lado, era do pai do Júlio! Na mesma
hora, um enjoo percorreu meu corpo e eu pensei no fora que ele ia me dar.
Um sorriso fino meio Monalisa surgiu em seu rosto. Com a mão esquerda,
apontou em ângulo largo para a mesa, sugerindo a existência de fartura.

- Não sou uma rainha, Sr. Otavio. Sou apenas uma plebeia curtindo sua
primeira festa.

- Ora, mocinha, na sua idade, Cleópatra já era praticamente rainha. E


acostume-se às festas.

- Outros tempos, Senhor. Na sua idade, o pai dela já havia morrido! -


ataquei, chutando uma informação que eu nem sabia se era verdade.

- Touchè! Mas não sou um libertino como Ptolemeu.

- Thea, como vai? - perguntou minha professora de música, a Sra Filomena.


- Estou adorando sua festa, muito obrigada pelo convite!

- Dona Filomena, que bom que a senhora veio! – disse, virando-me de


costas para o pai do Júlio, sem perceber que o interesse dela era assuntar
com ele.
- Desculpe interrompê-lo. Sou Filomena, professora de música da Thea e do
seu filho.

A Sra. Filomena é uma pessoa sempre muito gentil e doce, mas tenho quase
certeza que ela carrega uma mágoa consigo. Quando olho para ela, vejo
uma luz verde escura. Acho que perdeu um filho. Já ouvi fofocas de que ela
o matou quando tinha 16 anos, mas acho difícil acreditar. Ela tem uma
clave de sol tatuada no braço esquerdo e uma lua no direito. Pequenos, mas
bem bonitinhos.

- Sim, como vai a senhora?

- Vou bem. Gostaria mesmo de conversar com o senhor sobre o dom para
música do Júlio...

Aproveitei a oportunidade para fugir e voltar para a pista de dança e pude


notar que, assim que eu cheguei na pista, voltei a ser o centro das atenções.
Havia um campo magnético que atraía mais e mais pessoas. Como se
realmente o universo estivesse conspirando por mim e para mim hoje.

Dessa vez, Júlio se juntara ao grupo. E como ele dançava bem... Seu corpo
mexia com a música e acompanhava todos os passos como se fizesse isso
todo dia, como se dançasse comigo todo dia. Eu nunca tinha visto ele
dançar antes e fiquei um tanto impressionada. Era muito charmoso. Até o
jeito desajeitado dele parecia proposital e rítmico.

Dançamos um bom tempo no meio de todos. Rimos demais e nos


divertimos mais ainda. Estávamos em uma sintonia perfeita. Sabíamos o
que o outro ia fazer, para que lado o outro ia virar. Eu estava exultante!
Quando começou a tocar uma musiquinha mais lenta, ele me abraçou e
sussurrou no meu ouvido um convite irrecusável...

- Hei, vamos até o jardim de novo?

Senti o calor do seu corpo suado. Ele já estava sem o paletó e as mangas da
camisa social estavam dobradas até a altura do cotovelo. Faltava pouco
para as 23 horas.

- Claro! Só preciso ir ao banheiro rapidinho dar uma conferida no cabelo.

- Ok. Vou esperar você aqui. Não demore.

Olhando para o espelho, vi a imagem da mulher soturna dos sonhos, me


olhando com ar de reprovação. Fechei os olhos, respirei fundo e voltei a ver
a minha imagem, incrivelmente parecida com a mulher. Passei um pente no
cabelo que respondeu muito bem à investida e um papel úmido pela testa,
na vã esperança de me secar e parecer mais apresentável!

Na saída do banheiro, me deparei com Égido, irmão de Júlio, me esperando.


Égido era alto como o irmão, mas seus cabelos eram mais escuros e
penteados de lado. Seu sorriso era igual ao do Júlio, mas algo nos seus olhos
denunciava que ele não tinha o mesmo caráter, a mesma inocência. A luz
que emanava dele era marrom, negra demais para uma pessoa tão jovem. E
que espécie de nome era esse? Provavelmente homenagem a algum
antepassado ou a mistura de nomes, sei lá. Só sei que era muito esquisito e
faz bem jus ao seu dono, outro esquisitão. Olhando dentro dos meus olhos,
com um jeito sério e inusitado, me ameaçou categoricamente:

- Você e Júlio são de mundos muito diferentes. Opostos, na verdade. Meu


pai não entendeu isso ainda. Afaste-se dele, rainha do sol, ou eu mesmo
acabo com a sua festa.

Dizendo isso, saiu de perto, deixando meus olhos arregalados e meu


coração acelerado. Fiquei parada, literalmente congelada nos pensamentos
e sentindo o ardor do pingente me manter de pé. Rainha do sol? Que diabos
é isso? Do que ele estava falando? Estou me sentindo em um lugar diferente
ao que pertenço.

Minha cabeça parou junto com meu coração, tentando entender o que era
aquilo tudo. Como se o chão desaparecesse, me senti caindo. Fechei os
olhos com força e vi a mulher do sonho, olhos firmes em mim, testa
expressivamente nervosa. E ela disse: "Acorde, Thea. Use Égido a seu favor."
Abri os olhos.

Égido caminhou até a pista de dança, triunfante com sua taça de vinho
temperado com mel, e eu fiquei ali, tentando imaginar do que diabos ele
estava falando. Só pode ser dinheiro... Ele só pode me achar pobre demais
para o irmão dele. Deve me achar uma oportunista. Eu precisava dizer a ele
boas verdades! Não estava interessada em dinheiro!

Respirei fundo, buscando a força no ar. Lembrei novamente das palavras do


cabeleireiro. "Hoje sou forte e essa é a imagem que vou vender", pensei.
Tentando me localizar no tempo e no espaço, caminhei como quem não foi
ameaçada. Ou como a presa em direção ao algoz, certa de seu fim inevitável
e lutando para manter sua dignidade. Caminhei como se a ameaça seca e
fria não tivesse realmente me assustado.

Caminhei, com olhos fixos nos olhos de Égido, sentindo um misto de medo
e vontade de reagir, querendo dizer poucas e boas para ele, dizer que ele
não me afastaria do Júlio. Fui organizando as frases na cabeça, me sentindo
irritada e aviltada. A maneira como ele enfatizou "rainha do sol" soou como
um xingamento, mas eu não entendi direito de que tipo seria. Então, ele
piscou para mim e uma briga se instaurou no salão.

O mundo parou. Vi um sorriso maquiavélico no rosto de Égido e uma


confusão de socos e chutes. Não era possível! O que estava acontecendo? As
meninas haviam se afastado e faziam uma roda ao redor da briga. Júlio e
um outro menino que eu não sei quem é brigavam no meio da pista de
dança.

Égido se afastou do grupo e sentou-se à mesa com a mãe. O menino batia


muito, muito em Júlio e Égido abandonou o irmão lá. Não o defendeu. Não o
ajudou. Corri em direção a eles, gritando para que parassem, mas fui
puxada com força.

- Venha, Thea. Eles beberam demais, mas vão ficar bem. Os seguranças do
salão vão intervir em breve e a dona do salão mandou encerrar a festa.

- Papai, preciso intervir... O Júlio....

- Chega, Thea. Não quero arriscar ver você e sua mãe feridas. Ela e sua avó
já estão indo para o carro.

- E o Júlio?

- Chega, Thea. Sem discussão, vamos embora.

E me arrastou de lá. A última coisa que vi da minha linda festa de 15 anos


foram os olhos cor-de-mel do Júlio fecharem ao serem atingidos por um
soco certeiro que o derrubou no chão.

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 6

Músicas me dizem muito. Cada verso colocado mexe com um sentimento,


com uma parte de mim. Podem desenterrar uma lembrança ou inspirar um
deja vù ou mesmo me levar a lugares que nunca fui. Mas o silêncio me diz
muito mais. O silêncio me faz escutar meus pensamentos - ou minha alma,
como minha avó diz.

A viagem do salão até minha casa foi longa e em silêncio. As cenas da festa
ficavam se repetindo na minha cabeça. Papai disse que eles haviam bebido,
mas Júlio não estava bebendo. Ou estava? Meu pai disse que sim. Quem era
aquele garoto brigando com ele? Por que eles estavam brigando?

Os dias seguintes foram longos e os diálogos se resumiam às futilidades do


dia-a-dia. Em casa, pouco se falava sobre a festa. Meu pai e minha avó mal
trocaram palavras enquanto ele esteve em casa. Eu queria notícias do Júlio,
mas não conseguia. O jornal local veiculava que "ele estava se recuperando".
Ninguém sabia o estado exato de saúde, nem mesmo por que a briga havia
começado.

Aurélio foi até a minha casa umas duas vezes. Tomou café com vovó e ela se
esforçou para estabelecer um assunto entre eu e ele. Mas eu não conseguia
conversar e, normalmente, me desculpava e saía da sala. Na segunda vez,
ele me levou um livro de presente. Agradeci e fui para o quarto, sem nem
desembrulhar o pacote.

Na minha cabeça, Égido tinha alguma coisa a ver com a briga. Mas por que
colocaria o irmão em perigo? Ele disse que acabaria com a festa, mas dessa
forma? Três semanas depois e o Júlio ainda não tinha voltado. Égido não
dava notícias na escola. Seu jeito de me olhar, com escárnio, um jeito meio
vitorioso, me feria como chagas.
Eu tinha coisas a serem ditas a ele, mas de alguma forma o universo
conspirava contra. Repassei a cena da festa inúmeras vezes. Lembrei que a
mulher dos sonhos me disse para eu usar Égido a meu favor. Como, se ele
me tratava daquela forma?

A Sra. Filomena se esforçava para me manter ocupada. Resolveu me colocar


como "monitora de música". Eu, que não tocava nada e era desafinada
como uma gralha distraída. Nem no chuveiro eu cantava. Mas, enfim, ela
pediu e eu não tive como negar. Era uma maneira de minha cabeça pensar
em outra coisa.

Passei a ouvir Chopin e Brian Crain. "Secret Letter" se tornou uma das
minhas músicas favoritas. Dizia muito, sem nenhuma palavra. Fui
aprendendo a tocar piano, me perdendo e me achando em partituras
antigas e escritos amarelados. Aprendi a apreciar harmonia e métrica
musicais.

No fundo, era agonizante. Cada acorde me lembrava o Júlio, os seus olhos


feridos se fechando, e Égido... Meus dias estavam vazios, estranhos e tristes.
Eu tentei descobrir se a Sra. Filomena sabia alguma coisa, mas ela limitava-
se a repetir as notícias do jornal. E quanto mais eu perguntava, mais
músicas ela me passava para tocar. Chegou a me inscrever no quinteto de
flautas!

Eu chorava muito no início, mas o choro foi diminuindo e deu lugar a


sonhos. Eu sonhava quase que diariamente com os lindos olhos cor-de-mel
se fechando ao levar um soco. Muitas vezes, a mulher estava na cena,
olhando seriamente, analisando friamente. Acordava assustada,
normalmente com taquicardia e uma sensação de estar sendo observada.

Meu pai viajou para um trabalho com o caminhão uns quatro dias depois da
festa e ainda não tinha voltado. Foi uma viagem repentina. Uma mudança
grande no Rio de Janeiro de um antigo cliente que não confiava em mais
ninguém para o serviço.

Minha avó resolveu ficar no Brasil. Segundo ela, precisaria manter minha
cabeça ocupada. E o fez. Estudos sobre gregos e romanos, aparentemente
sua grande área de conhecimento, tomavam todo o meu tempo livre em
casa. Descobri muito sobre ela. E, principalmente, reconheci sua erudição.
Ela não era soberba. Era extremamente inteligente e racional.

Vovó me fez ler “Ilíada” várias vezes em voz alta. Quando eu estava
cansada, ela lia para mim, usando uma entonação diferente que dava vida
às palavras de Homero. Livros sobre o Vale dos Reis e até mesmo sobre as
cheias do rio Nilo. E eu devia usar o colar todos os dias. Segundo vovó, ele
me protegeria do mal.

A estranha mulher do sonho aparecia cada vez mais, mas não voltou a falar
comigo. Só me olhava. Um olhar parecido com o de Égido, na verdade, me
desafiando, como se eu tivesse que fazer algo que não fazia.

Como a casa era pequena, vovó dormia na minha cama e eu, no chão ao
lado dela. Cada vez que eu acordava de um pesadelo, vovó cantava uma
linda canção de ninar em italiano, que me acalmava e me remetia a um
lugar de paz interior. “Ouça sua alma.. ouça sua alma...”, repetia como um
mantra.

Com a ausência do papai, o clima em casa era mais leve, sem brigas, salvo
as cada vez mais raras discussões da mamãe com a vovó. Acho que mamãe
não queria que eu estudasse nada fora dos assuntos da escola, mas vovó
dizia "cultura, cultura" e encerrava o assunto.

Cada vez mais fui me afastando de todos na escola. Todos me lembravam o


Júlio, perguntavam sobre o Júlio e era estranho eu não saber nada sobre o
meu namorado. Eu nunca sabia o que responder. Meu peito queimava no
pingente da vovó e era certo eu sonhar com os olhos cor-de-mel
ensanguentados, quase que pedindo socorro, toda vez que ia escola.
Então, fui parando de ir. E cada vez mais me dedicava aos estudos com a
vovó. Ela dizia que grandes nomes da história não tinham ido à escola ou
tinham sido reprovados porque contestavam os ensinamentos. E insistia
que a escola limitava o conhecimento. "Cárcere" era a palavra que ela
usava. Dizia que o conhecimento ficava "encarcerado" nos muros da escola,
onde só era dito o que era conveniente e omitido o outro lado da história.

A Sra. Filomena passou a me trazer os trabalhos em casa e parece que o


diretor permitiu que eu fosse ao colégio apenas para as provas.
Frequentemente, ela também trazia um teclado para eu “praticar” e não
“enferrujar” os dedos. Só não me trazia notícias do Júlio. E eu morria um
pouco a cada dia.

Cinco semanas após a festa, papai voltou. Com ele, a notícia de um bom
emprego no Rio de Janeiro e a necessidade de nos mudarmos em pouco
tempo. Mamãe não questionou, como se já esperasse a notícia. Senti como
se eles já houvessem combinado isso há algum tempo. Estavam
mancomunados para mudar de Araras. Relutei, esbravejei, briguei... Pedi
ajuda à vovó. Tudo em vão. A mudança já estava certa e eu não tive voto na
questão.

- Você é jovem demais para entender, Thea. O emprego é muito bom e eu


não pude recusar. Vamos morar em um bom apartamento na Tijuca, que é
um bairro com boas escolas para você. Será bom mudar de ares. Você nem
vai mais à escola, minha filha. Sua mãe já pediu transferência no trabalho
para a filial de lá e está tudo arrumado. Agora, chega. Nós mudamos no
próximo fim-de-semana.

Incrivelmente, acho que pela primeira vez desde que se conhecem, vovó
concordou com ele, reforçando os argumentos sobre a importância de eu
me afastar daquele lugar.

- E o Júlio, papai? Não tenho nenhuma notícia dele nem estando aqui,
imagina se eu sair daqui... Como vou poder vê-lo quando ele voltar?

Eu estava sendo egoísta, eu sei. Mas não consegui evitar.

- Não irá. Outros rapazes aparecerão na sua vida. Você é uma criança e eu
nunca estive confortável com esse namorico.

E foi assim que papai encerrou o assunto e o meu namoro.

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 7

Os livros se tornaram meu esconderijo nada secreto. Com eles, aprendi a


fugir e me esconder de contato humano. Aprendi a viajar para lugares
desconhecidos e redescobrir memórias. O tempo passava mais rápido e
cada vez menos dolorido.

O silêncio presente no buraco deixado pelo Júlio – e pela total e absurda


falta de notícias com relação a ele – foi se tornando suportável. Escondida
nos livros, eu era outra pessoa: ora Pollyana, ora Mariane Dashwood, ora
sua irmã... Cheguei a me imaginar uma Capitú. Eu podia ser qualquer
pessoa dentro dos meus pensamentos. Qualquer pessoa, menos Thea.

Vovó voltou para a casa dela assim que a mudança foi esquematizada. Ao se
despedir, me deixou com uma pilha de novos livros e um papel onde
anotou seu endereço. Os livros incluíam muitos clássicos, mas também
vário sobre história antiga. Muitos bem chatos, devo confessar.

Ela me fez prometer que escreveria pelo menos duas vezes por mês e que
continuaríamos estudando à distância, através de cartas. Prometeu que me
escreveria, enviaria livros e que eu nunca estaria sozinha. Para me ajudar,
abriu uma conta no meu nome, na qual ela depositaria uma espécie de
"mesada" para eu comprar livros e material de estudo.

“Sua alma é sua melhor companhia, Thea. Sempre preste atenção nos seus
instintos”, ela me disse. E naquele momento, soube que sentiria falta dela e
da canção de ninar balbuciada na madrugada. Vovó falava muito sobre
"alma" e realmente agia como se a minha falasse comigo através dos
sonhos. Ela escutava atentamente o que eu dizia ao acordar de um
pesadelo, interpretando-os silenciosamente.

A mudança para o Rio de Janeiro foi rápida e prática. O apartamento novo


era realmente bem maior. Meu quarto se tornou minha caverna. Uma
estante de livros próxima à cama abrigava meus melhores – e únicos –
amigos. Era uma pequena biblioteca reabastecida periodicamente pela
vovó e, agora, também pela mamãe que, aparentemente, "descobriu" meu
gosto pela leitura e estava "orgulhosa", segundo suas próprias palavras.

Fui matriculada intempestivamente em um novo colégio e teria que


apresentar trabalhos para compensar as primeiras provas que perdi. Pelo
que entendi, era um "excelente colégio, muito tradicional". Era bem grande
e eu conseguia entrar e sair quase despercebida. Exceto pelo meu professor
de Geografia, que cismou comigo e puxava assunto todas as vezes que me
via. E pelo inspetor, que mais parecia um cão-de-guarda na porta da escola.

O sr. Carlos, o tal professor, me enchia de perguntas, momentos que eu


odiava, porque toda a turma se virava para o "fantasma na última cadeira",
como fui apelidada.Fiquei pensando se eu parecia mesmo um fantasma ou
se era o fantasma da mulher dos sonhos que refletia através de mim.

Fui obrigada a estudar muito Geografia. Mas confesso que ele me lembrava
a professora Filomena. Ambos me tratavam com muito carinho e paciência,
como os tutores gregos (sem qualquer conotação sexual, devo frisar).

Perdi o contato com todos os conhecidos da outra escola e da outra cidade,


o que foi, de certa forma, bem reconfortante. Aos poucos, os pesadelos com
os olhos cor-de-mel do Júlio foram se tornando cada vez mais raros.

Eu ainda chorava quando ouvia música – mesmo porque quase todas as


músicas me lembravam ele – mas havia aprendido a disfarçar. Eu queria
notícias. Eu ansiava por notícias. Eu sentia raiva do Égido, eu queria saber
quem era aquele cara que bateu no Júlio e, o mais importante, porque ele
estava socando o Júlio. Mas eu não tinha respostas.

A estranha mulher, entretanto, me visitava os sonhos cada vez mais


frequentemente. Certa vez, ela estava sentada em uma mesa de pedra
desenhando. Seus olhos compenetrados levavam o riscado aos dedos. Era o
desenho de uma mulher com cabeça de gato e um sistro na mão – Bastet,
segundo meus estudos – e, ao lado dela, o olho de Hórus.

Deuses egípcios nunca foram minha predileção. Múmias, faraós, mulher


com cabeça de gato, falcão, guardiões dos mortos... Tudo isso me arrepiava
até o último cabelo do corpo. Mas, curiosamente, nesse mesmo dia, à
tardinha chegou uma carta da vovó explicando o significado de alguns
símbolos, dentre os quais, desenhos de Bastet e Hórus.

Segundo vovó, os olhos de Bastet podem ver através da escuridão. Ela me


disse que Bastet ou Ailuros era uma divindade solar, de luz.
Aparentemente, tinha poder até mesmo sobre eclipses. Por conta dela,
gatos foram mumificados e tratados com honrarias. Ela me disse que os
gregos distorceram tudo e associaram Bastet a Artemis, quando deixou de
ser uma divindade solar para se tornar uma divindade da lua.

Sobre Hórus, disse pouco. Apenas que traz proteção. Preciso saber mais
sobre Hórus.... Vovó nunca era tão concisa em suas explicações e me deixou
curiosa. Enfim, com a carta da vovó e sem conseguir falar com ela sobre o
sonho, interpretei do meu jeito: eu precisava de proteção na escuridão.

As cartas da vovó eram bem esclarecedoras, mas o melhor do meu dia eram
os longos papos com a mamãe. Desde os acontecimentos do meu
aniversário, sinto como se ela me entendesse mais ou procurasse me
entender melhor. Ela passou a perguntar sobre a mulher dos sonhos, sobre
o que eu havia lido naquele dia, sobre o que eu havia entendido, sobre o
que eu estava sentindo, sobre a escola.

Descobri que mamãe era praticamente uma enciclopédia ambulante, muito


mais inteligente do que eu imaginava. Especialmente sobre Egito e Grécia, o
que provavelmente era influência da vovó. O único assunto que ela não
tocava – nunca – e que sempre cortava quando eu mencionava era o Júlio.
Não falávamos dele ou do ocorrido. O Júlio era um ponto negro para mim.
Olhos cor-de-mel na escuridão. Que Bastet me proteja.

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Capítulo 8

Olhos cor-de-mel cheios de lágrimas. Esse era o sonho mais triste que eu
tinha. Era o sonho que mais mexia comigo. Eu sempre acordava
desanimada. Muito tempo se passara, mas eu continuava a lembrar daquela
cena. Meses, pra ser sincera.

E eu ainda não havia tido notícias do Júlio. Nem uma carta! Mas, também,
como ele poderia me enviar carta se nem sabia para onde eu tinha me
mudado? Eu não falava com ninguém sobre ele, exceto com o psiquiatra
que eu era obrigada a ver uma vez por mês. Mas ele não expressava
nenhuma opinião, nem me dava ideias. Eu podia falar e falar o quanto eu
quisesse, mas ele não desenvolvia este assunto.

Naquela sexta-feira, uma discussão entre meus pais me acordou. "Pérfido"


foi a palavra que ouvi minha mãe dizer mais claramente. Quando entrei na
cozinha, entretanto, eles se calaram. Minha mãe tinha os olhos cheios de
lágrimas e meu pai carregava um peso na alma que eu nunca havia sentido
antes.

"Peso na alma"? Acho que a convivência com a vovó me agregou mais do


que conhecimento histórico. Parecia que papai carregava um piano nas
costas. Ambos olharam para mim, acho que sem saber o que eu havia
escutado. Sem hesitar, perguntei o que estava acontecendo. E meu chão
sumiu mais uma vez...

Meu pai traiu minha mãe. Mas não foi qualquer traição, dessas com a
secretária ou com a vizinha. Ele a traiu com a mãe do Júlio! É sério! Com a
mãe do Júlio! Tantas mulheres no mundo e ele escolheu logo ela! Como,
quando e onde eles se conheceram é um mistério que aguça minha
curiosidade e trava meu instinto. Como eles vinham se encontrando? De
onde saiu esse romance? Minha vida saiu do eixo, do prumo.

Como ele pôde fazer isso? E logo com ela? Com a mãe do cara que todo
mundo sabia que eu queria notícias! Por que ninguém me dava notícias do
Júlio? Por que meu pai, especificamente meu pai, não me dava notícias do
Júlio? Era um tabu louco criado pelas esquisitices da família, mas ele estava
saindo com a mãe do cara! Não é possível que não soubesse nada!

Posso dizer que meu aniversário de 15 anos foi um marco na minha vida.
Muita coisa vem acontecendo e eu sinto como se minha alma flutuasse
sobre a minha vida. Parece que estou olhando de fora. A vida está passando
e eu estou só "acompanhando", como uma idiota e inativa expectadora.

Não queria mais ser expectadora. Eu precisava assumir os rumos.

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Capítulo 9

Minha mãe e eu ficamos no apartamento da Tijuca. Meu pai se mudou para


a comunidade perto das minhas tias, uns dois dias depois da discussão.
Irônico isso, porque a mãe do Júlio é a maior perua que eu já vi. Ela vai
morar com ele na comunidade? Ela se separou do pai dele? Nossa... Que nó
na minha cabeça!

Os papos com a minha mãe foram "suspensos". Ela me evitava e chorava


bastante. E eu confesso que evitava ela também. Não queria conversar
sobre a realidade com ela. Queria conversar sobre o passado e sobre
história, sobre romances que eu havia lido, sobre a interpretação de "Dom
Casmurro" ou sobre José de Alencar. Queria virar um dos personagens de
Jane Austen. Queria viver dentro de uma das peças de Shakespeare. Mais
uma vez eu queria estar em qualquer universo paralelo. Mas eu sei que
esses assuntos eram inoportunos para ela e as conversas "reais" eram as
feridas dela. Preciso que ela cicatrize sem mim, porque eu preciso cicatrizar
também.

Duas vezes por semana eu visitava meu pai. Passava lá depois da escola
para jantar com ele. Dormia lá e ia embora no dia seguinte de manhã. Não
encontrava a mãe do Júlio. Acho que meu pai procurava mantê-la afastada
quando eu ia lá. Não conversava sobre ela com ele, nem sobre a minha mãe.
Ele queria falar, mas eu cortava o assunto.

Eu tinha muitas dúvidas, mas não queria ouvir dele, não queria ouvir a
"versão" de ninguém. Eu só queria a verdade e nem ele nem minha mãe me
dariam a verdade. Uma raiva enorme tinha dominado meu coração. Eu não
chorava mais nem por Júlio, nem pelo papai. Então, quando ele resolvia
puxar um assunto mais sério, eu falava da escola.
Racionalizei tudo, fugi dos sentimentos. Endureci. O psiquiatra me disse
que eu criei uma espécie de casca, que me impedia de lidar
sentimentalmente com a realidade. Ele disse que, enquanto eu não
separasse choro e chorume, não teria paz. Metáfora estranha para “retirar
da sua vida o lixo”.

Hoje, quando fui visitar meu pai, acabei surpreendida e repreendida, ainda
do lado de fora. Não pude sequer entrar na casa do meu pai. Da porta
mesmo, meu pai deu um show aos gritos, acompanhado pela namorada.
Pela primeira vez, eu a encarava, escondida atrás do meu pai como a cobra
de Adão e Eva: sorrateira. Decorei as ásperas palavras de meu pai: “Você
escolheu o caminho das loucuras da sua avó. Você me apunhalou pelas costas.
Não quero mais ver você. Nunca mais. Você não é mais minha filha”.

E assim, fui expulsa da casa do meu pai por ele e pela nova namorada, que
abria um sorriso sarcástico que me lembrou Égido. Só pude sentir mais
raiva dela. O que eu fiz pra ele? Não sei. O que eu fiz naquele momento? Saí
correndo da casa dele, em plena terça-feira, às 10 horas da noite, sozinha,
em meio a uma comunidade carente, desconhecida e famosa pelos tiroteios
e invasões policiais. No meu peito, o amuleto da vovó queimava.

Estava tão atordoada que peguei o ônibus errado, indo pra Copacabana.
Depois peguei outro que fez a volta ao mundo, passando pelo centro da
cidade antes de chegar à Tijuca. Demorei a chegar em casa. Tempo bastante
para colocar a namorada do meu pai na lista dos chorumes e o meu pai na
lista das lágrimas secas.

Minha mãe já estava dormindo e eu acabei me livrando do interrogatório.


Meus olhos estavam visivelmente inchados do choro, mas com certeza o
que mais marcava o meu rosto era a interrogação. Do que diabos meu pai
estava falando? Apunhalei pelas costas? Por quê?

Um copo de água foi tudo que consegui engolir. Eu olhava para o horizonte,
vendo as luzes da cidade acendendo e apagando, pessoas indo e vindo. Bebi
aos goles e cada gole queimava na garganta como álcool vagabundo. Raiva?
Acho que sim. Agora, meu coração endureceria de vez.

Passei pelo quarto da minha mãe e notei um vidro de remédios e uma taça
de vinho na mesa de cabeceira. Liguei o ar refrigerado, cobri a minha mãe,
fechei o vidro de remédios, peguei a taça para levar para a cozinha e
cochichei no ouvido dela que eu já estava em casa.

Uma vontade de cuidar daquela pessoa tão forte e, ao mesmo tempo, tão
fragilizada, tomou conta de mim. Dei um beijo suave na bochecha dela e fiz
questão de dizer que a amava. Ouvi ela sussurrar o nome do meu pai. Saí do
quarto com o peito ainda mais apertado.

Entrei no meu quarto e vi uma das caixas da vovó em cima da escrivaninha.


Mais uma pilha de livros, pensei. Abri a caixa, tentando tirar o foco da cena
na casa do meu pai, e vi dois livros e um caderno de desenhos de capa dura.

Um dos livros era uma lição de italiano para iniciantes. Isso pode ser útil. O
outro, um livro que ensinava a cifrar e decifrar mensagens "para os meus
segredos". Em cima da minha mesa, sobre todos os livros, o pacote do livro
dado por Aurélio. Abri e me deparei com um diário de desenhos em branco.
Na contracapa, a dedicatória: "Seja quem você quiser ser, nunca o que te
impõem ser. Construa-se e seja feliz consigo mesma. Conte comigo. A.C."

Peguei o pijama e fui até o banheiro. Achei bem legais aquelas palavras do
Aurélio. Ele devia ser um cara bacana. Com a esperança de que a água fria
deletasse as imagens doloridas da cabeça, me enfiei em uma chuveirada
gelada, que só serviu para me dar uma considerável dor-de-cabeça.

Quando consegui adormecer, a figura soturna resolveu dar as caras e voltar


a falar: "há momentos para guerrear e momentos de ir pra casa". Acordei no
meio da madrugada com aquela frase na cabeça. O que é isso? Homero? Por
que meus sonhos me levaram para a “Ilíada” em um dia tão dolorido? Não
sei.

Preciso assumir: a infeliz tinha razão. Aquele era um momento de me


recolher, de ir para casa e não insistir na guerra com meu pai e a outra. Eu
precisava acalmar o pensamento. Organizar o pensamento. Adormeci mais
tranquila, com o amuleto já esfriando.

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Capítulo 10

"Distorcem-se os fatos para satisfazer teorias. Não o contrário."


Desconheço o autor.

O tempo passava e eu não tinha notícias do Júlio, nem do meu pai. O buraco
no peito ficava cada vez maior. Minha vida estava triste e estranhamente
preenchida. Eu lia e estudava ainda mais. Me escondia nos livros e nos
desenhos, que passei a centralizar no caderno que o Aurélio me deu.

As férias da escola possibilitaram que eu me escondesse cada vez mais e


saísse cada vez menos. Não de casa. Do quarto mesmo. Passei a comer e
viver no quarto. Lendo e relendo tudo que eu podia. A separação de meus
pais não havia sido simples. A cena grotesca na casa do meu pai tampouco.
Mas ver o sofrimento da minha mãe me incomodava muito mais. Ela passou
a beber cada vez mais.

Um dia, ela bebeu duas garrafas de vinho e tomou dois comprimidos de


algum remédio que ela tirou o rótulo. No dia seguinte, liguei para minha
avó pela manhã. Pela diferença de fuso, ela certamente estaria acordada.
Expliquei o que tinha acontecido, mas focalizei no sentimento da minha
mãe.

Fria como nunca havia sido antes, ela me disse que sabia que, cedo ou
tarde, meu pai acabaria decepcionando minha mãe e a mim. Disse que
minha mãe tinha que aprender a se controlar sozinha. Que ninguém
poderia ajuda-la. Não me conformei. Não consigo ainda ser tão racional
quando se trata de mamãe. Ela é choro, não chorume.

Nesse mesmo dia, tive uma outra consulta com o psiquiatra. Descobri que
ele é um senhor até engraçado, bem atencioso e gentil. Ouve atentamente e
dá poucas opiniões. Fala pouco, como que fazendo intervenções
elucidativas ou tentando me fazer ter os próprios insights.

Nesse dia, ele me disse que o meu "diagnóstico" era acúmulo de energia
com excesso de inteligência. Nem sei se isso é viável em termos médicos,
mas me senti até lisonjeada. A sugestão? Desenhar e fazer uma arte
marcial!

- Precisamos fazer você liberar essas energias. Canalizar. Por que você não
desenha tudo o que vem à sua cabeça e nós conversamos na próxima
sessão? Também queria que você escolhesse uma arte marcial para fazer.
Qualquer uma. Só quero que você se dedique seriamente a isso.

Aí eu tive que rir. Eu precisava desenhar aleatoriamente tudo que me


viesse a cabeça, mesmo que fosse apenas pontos e setas. Não consegui
conter a gargalhada, mas eu precisava perguntar ainda uma coisa.

- E minha mãe?

- Sua mãe é alcoólatra. Precisa de ajuda. Mas precisa, primeiro, entender


que é alcoólatra. Ela tem que aceitar a doença para poder lidar bem com o
tratamento.

Não era a resposta que eu esperava. Queria que ele tivesse um remédio pra
eu dar pra ela parar de beber. Ou me dissesse pra esvaziar as garrafas de
vinho e colocar suco de uva. Ou, sei lá, dissesse pra eu internar minha mãe
em uma clínica de recuperação. Ele é o médico, afinal de contas!

No ônibus mesmo comecei a esvaziar a cabeça e rabiscar desenhos... A ideia


de uma arte marcial, no entanto, coloquei numa gaveta no fundo do
armário do meu cérebro. Arte marcial seria algo que minha mãe nunca
aprovaria. Ela queria que eu fizesse sapateado!

A semana passou e eu, basicamente, desenhei. Consegui uma desculpa para


não ir à escola. Estava com crise de enxaqueca. Não era exatamente
mentira, mas certamente a cabeça dolorida nunca me impediria de fazer
nada. A verdade é que eu simplesmente não queria ir ao colégio.

Olhos cor-de-mel, mulher soturna, pirâmides, Bastet, Hórus, sketchs de


corredores sinuosos que levavam câmaras e túmulos... Esses foram, via de
regra, os desenhos que fiz nos dois cadernos que levei na consulta seguinte,
marcada para 15 dias depois.

- Ora, Thea, seus estudos sobre o Egito estão te levando por caminhos
ótimos nos desenhos - disse o médico, sem tirar os olhos dos papeis.

- Obrigada, Doutor. Mas não tenho estudado Egito. Acho que são memórias
desses últimos tempos.

Focalizando no desenho dos corredores sinuosos e câmaras, disparou:

- Já pensou em fazer Arquitetura?

- Venho pensando nisso... Minha avó já mencionou algumas vezes...

- Você é muito criativa, muito talentosa. Seus desenhos estão realmente


muito bons. Tem sonhado menos com o rapaz? - direto na ferida, me
surpreendeu.

- Não. Sonho com ele muitas vezes. Mas a mulher esquisita me visita quase
todo dia.

- Cleópatra? É normal, considerando sua área de foco.

- Não, Doutor. A mulher dos sonhos.

- Sim, Cleópatra. Conforme seus desenhos, você sonha com Cleópatra. Você
não sabia?

Caminhou até sua enorme estante de livros. Pegou um e começou uma


leitura silenciosa, com alguns balbucios e sibilos.

- Grega da Macedônia, brilhante, engenhosa... hummmm.... falava 10


idiomas... Viu? Inteligente que nem você. - sorriu, me olhando por sobre os
óculos. - Conhecia bem história, literatura e filosofias gregas. Nossa...
muitas coincidências. Mas fisicamente... não acho descrição física... Aqui!
Veja essa imagem de uma moeda cunhada com o rosto dela!

- Doutor! A imagem que eu fazia de Cleópatra era mais associada a


Elizabeth Taylor...

Ele gargalhou espontaneamente.

- Ora, Thea, aquilo é apenas a visão do cinema. Cleópatra era grega e,


provavelmente, queixuda e nariguda. Alguns até afirmam que ela era negra,
o que eu particularmente não acredito considerando sua ascendência.
Apesar de que, ela aparece morena nos seus sonhos. Enfim... Existem muito
poucos registros sobre ela que merecem créditos. A maioria foi escrita
mesmo para denegrir sua imagem. Mulheres sempre foram descritas como
inferiores ou ignoradas dos registros para enaltecer as participações
masculinas. E outro tanto fruto da imaginação de diretores de cinema do
século XX. O que se pode afirmar quase com certeza que ela era muito
inteligente e auspiciosa.

- Nossa... sempre pensei em cabelos sedosos pretos e rosto perfeito, em


uma mulher com jeito de cobra. Escorregadia, sabe?

- Thea, perfeição é um referencial que, além de subjetivo, varia muito pelo


tempo e cultura. É possível dizer que, para a sua época, para os padrões de
beleza da época, ela era linda. Além do mais, estudos recentes informam
que ela era, efetivamente, bonita. Muito interessante eu não poder associar
as aparições em seu sonho com os seus estudos, já que você sequer a
reconhecia como Cleópatra...

Fez anotações em seu papel A4 branco preso com clips ao maço de outras
tantas coisas anotadas a meu respeito. Acho até que já era uma resma
inteira!
- Eu vejo essa criatura há anos. Foi ela quem apareceu no dia da minha festa
de 15 anos falando sobre o brilho do sol.

- Sim, lembro disso, mas achei que sua avó já tivesse iniciado você nos
estudos sobre Egito por esta época. Fale mais das pirâmides e túmulos.

E assim, nosso papo prosseguiu, quase que com uma aula de Arquitetura. O
médico entendia disso, também...

Fui para casa com nó na cabeça, mas basicamente pensando em Cleópatra e


no que ela fazia nos meus sonhos. Coloquei um CD no discman novo com as
músicas que me levavam ao pensamento na vovó. Sinto falta dela e de
nossos papos, e sinto falta da música em italiano que ela cantava para mim.

Entrei no ônibus e lembrei da última vez que fiz esse percurso. Hoje em dia,
talvez o Krav Magá não seja tão esquisito na minha rotina. Preciso mesmo
de uma atividade física. Puxei o caderno e comecei os desenhos.

Colunas, corredores, um templo em estilo grego. Uma imagem nítida na


minha cabeça e, de repente, o rosto de Cleópatra. Preciso me lembrar de
estudar mais sobre Cleópatra. Tudo que sei é que ela não devia ser linda
como no filme e que era bem inteligente.

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 11

Chegar em casa nunca era muito fácil. Desde a separação, encarar minha
mãe e sua tristeza evidente era como furar meu peito novamente,
mantendo uma ferida eternamente aberta, impossível de cicatrizar. Via de
regra, ela estava chorando silenciosa no sofá olhando para a mata no
horizonte, perdida em pensamentos e lembranças. Cada vez ela bebia mais.
Tinha sido afastada do trabalho, depois que chegou trocando pernas em
uma aula.

Quando abri a porta da sala me deparei com minha mãe aos prantos e
soluços, uma mulher inteligente e forte que havia desabado. Nitidamente
esgotada, nitidamente destruída e entregue.

- Seu pai, Thea, está muito doente. Provavelmente fígado... É a bebida,


Thea... Seu pai vinha bebendo muito há anos. Ele não está bem, querida...
Será que vai ter que operar? - falou para si mesma, quase que em uma
conclusão tristemente lógica e até mesmo esperançosa - Ah, meu Deus, ele
um homem bom, Thea... Um homem bom que tomou decisões erradas...
muito erradas...

Ela voltou a chorar, mas acho que agora estava se lembrando da traição.
Apenas meses após a separação, mas ela disse que ele bebia "há anos"...
Como posso não ter reparado nisso?

- Mãe, fique calma... Me explique isso direito. Doente como? Como você sabe
disso? Ele ligou?

Eu estava estranhamente calma e racionalizando tudo. Acho que a dureza


no meu coração era verdade. Uma verdade que eu imaginava, mas não
reconhecia.

- Não, minha filha. A esposa dele, namorada sei lá, veio aqui. Ela veio aqui! E
estava tão feliz e exultante... Elegante, até. Arrumada, maquiada, pomposa.
Feliz? Como ela podia estar feliz, Thea? Ele está doente, meu Deus!

- Mãe, isso não importa. Não quero saber dela, quero saber dele. Onde ele
está? Na casa deles?

- Internado.... No hospital do Câncer na Vila da Penha. Nossa... um homem


de tantas posses....

- Cân... cân... câncer? Ele está com câncer?

Minha ficha caiu.

- Sim, Thea.

E desabou em lágrimas mais uma vez. Abracei minha mãe e ficamos assim
até ela adormecer, em silêncio e fragilizada. Mais uma vez atingida por um
torpedo. Não sei se ela aguenta muito mais.

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 12

Estou caindo, caindo livremente de um prédio de 60 andares. Não há


chance de sobreviver. Não há paraquedas ou qualquer chance de eu sair
ilesa. Acima de mim, como se pairando no espaço, estão minha mãe, meu
pai, minha avó e ela – que agora sei – Cleópatra.

Olho para o lado e vejo janelas de vidro fumê reluzindo a luz do sol, mas
quando olho para o céu, é noite. Uma noite sem estrelas e sem lua. Uma
noite escura, nublada e sombria. Nuvens cinza esfumaçadas, escondendo
toda a beleza do céu. Sombria como ela. De repente, vejo uma mão
estendida para mim. Sigo o braço até o tronco e vejo uma lua tatuada, mas
não há rosto. Caio da cama e acordo.

Balancei a cabeça para tentar me localizar. Ainda estava no meu quarto e o


silêncio da noite só foi quebrado pela minha própria respiração ofegante.
Foi muita coisa em um dia só. Eu ainda era uma jovem adolescente que
preferia estar lidando com os problemas comuns de um adolescente, como
o pai que não permite a ida a uma festa ou uma bronca por conta de notas
nas provas.

Queria ser ruim em matemática, como metade do colégio ou odiar as aulas


de redação, como outros tantos. Queria me preocupar se minha mãe ia me
ver na rua Dulce, no meio da tarde, matando aula pra jogar futebol ou se
meu pai ia me pegar com o namorado no metrô.

Minhas preocupações eram outras e não, eu não era ruim em matemática


nem odiava as aulas de Português. Não tinha problema nenhum com notas,
mesmo porque os livros são e sempre foram grandes amigos meus. Consigo
me esconder na barra da saia de Gertrude Stein ou cair das letras de
Virginia Woolf. E, bom, nem preciso dizer que "pai" e "namorado" eram
assuntos bem distantes de mim.

Lembrei de algo que minha mãe disse ontem: "um homem de tantas posses".
Do que será que ela falava? Preciso me lembrar de perguntar, já que meu
pai era duro como coco verde. Olhei para o relógio e já passava de 4 da
manhã. Peguei o telefone, fiz contas rápidas de fuso horário e liguei para a
Itália.

- Vó, meu pai está com câncer. Mas estou preocupada mesmo com a minha
mãe. Não acho que ela está lidando bem com tudo isso. Está bebendo cada
vez mais e esse baque é o tiro de misericórdia... Ela não vai aguentar.

- Thea, o câncer do seu pai estava previsto. O destino é perverso como


Chronus. Veja Ptolemeu Auletes... Vocês já deviam estar preparadas -
reprimiu, visivelmente alterada - Talvez agora sua mãe leve efetivamente a
sério tudo que venho dizendo há anos...

- Do que a senhora está falando?

- Cansei dessa sua nuvem de ignorância, Thea. Achei que você estivesse
estudando sua história, seus antepassados, seu destino. Já é hora de você se
informar. Seus pais mantiveram você longe de tudo, mas você precisa
acordar para a vida e para suas responsabilidades. Ptolemeu Auletes foi o
pai de Cleópatra, sua madrinha de alma. Assim como o dele, o destino de
seu pai era certamente a bebida, a boemia e a doença.

- Madrinha de alma? O quê? Mas o que...? Minha história? Do que a senhora


está falando?

- Chega, Thea. Estou indo para o Brasil e nós precisamos ter uma conversa
séria. Leia os livros que lhe enviei com urgência. Estude. Descubra quem foi
Cleópatra, entenda seu legado espiritual e suas responsabilidades. É o
mínimo que você deve fazer. Deixe sua mãe comigo. Vou enviar um médico
hoje mesmo para conversar com ela.
- Minha mãe está dormindo... Eu-eu estou indo visitar meu pai daqui a
algumas horas.

- Você não pode ir sozinha. Onde é?

- No Hospital do Câncer, vovó. Preciso ir...

Desliguei o telefone, bambaleando até o sofá. Vovó nunca falou assim


comigo. Grosseira, até. Meu coração empedrado não admitia que aquela
mulher que balbuciava canções de ninar e me fazia carinhos para
adormecer tinha sido tão insensível com a doença de meu pai e da minha
mãe. Comigo. Sua única neta.

Fui até a cozinha tentando não fazer muito barulho. Não sei até que horas
os 2 comprimidos de Frontal segurariam a mamãe dormindo. Fiz um café
bem forte, mas não havia nenhum vestígio de fome em mim. Eu queria
sumir, essa era a verdade.

Queria sumir no mundo e me tornar outra pessoa. Queria me tornar médica


humanitária dos Médicos Sem Fronteiras e trabalhar nas comunidades
paupérrimas da África. Queria ajudar os outros e esquecer de mim. Mas me
sinto como a protagonista de "A Hora da Estrela", como é mesmo o nome
dela?

Tomei um banho rápido pra tentar acordar de vez, passei a bolsa


transpassada pelo ombro, pus um elástico no cabelo, vesti a calça jeans
rasgada e o boot do Exército que era do papai, três números maior que meu
pé e saí.

Perguntei, no ponto final do ônibus, como eu fazia pra chegar à Penha. A


viagem ia demorar e me custar uns 3 coletivos diferentes. Paciência. Não
tinha dinheiro pra táxi. Puxei meu caderno da bolsa, mas os desenhos
arquitetônicos não saíam.

Só conseguia desenhar Anúbis. Fiz um único e elaborado desenho do deus


com cabeça de chacal da mitologia egípcia. Sombras ao redor dele, almas de
todas as pessoas que ele havia acompanhado para outra vida. Eu lembrava
de um texto antigo que havia lido, onde ele estava presente no enterro do
faraó. Reza a lenda que ele protegia os mortos, acompanhava
mumificações. Faz sentido eu ter pensado nisso nesse momento, eu acho...

Cheguei ao hospital por volta de 9 horas. O trânsito e todos os ônibus que


peguei errado não ajudaram em nada. Mas não demorei a achar o quarto do
meu pai. Ele estava em coma induzido. Aparentemente sua doença já havia
se apresentado há algum tempo e ele já tinha até tinha operado uma vez.
Magro, parecia dormir um sono profundo, mas intranquilo.

Ele estava sozinho, para minha sorte. Não queria lidar com aquela mulher
nesse momento. Segundo o médico, eu era a primeira pessoa a visitá-lo em
semanas. Me explicou que ele poderia me ouvir, mas estava desenganado.
Estavam apenas aguardando sua morte. Aparentemente, aquela mulher
horrorosa não tinha autorizado a cirurgia dele, mesmo com quarenta por
cento de chance de cura.

Olhando meu pai, não consegui chorar ou sentir pena. Sentia apenas a raiva
do meu coração. A raiva acumulada desde a minha festa. Raiva de Égido, do
sumiço do Júlio, dos sonhos estranhos. Raiva de tudo que ele tinha feito.
Raiva de ele ter dito que não deixaria a mim e à minha mãe e, no entanto,
ter nos trocado pelo engodo da mãe meu namorado. Bom, não era mais
namorado. Mas, enfim...

Perdida nos pensamentos, apenas o silêncio e o bip-bip do aparelho


controlavam o lugar. Havia uma cadeira, mas não quis sentar. Fiquei em pé
tempo o suficiente para me sentir cansada. Puxei a folha com o desenho de
Anúbis do caderno e coloquei embaixo do travesseiro dele.

- Que Anúbis te acompanhe.

Foi tudo que eu consegui dizer, sem lágrimas, sem abraços e sem dramas.
Sem chorume. Seca, fria, estranhamente distante daquela cena triste. Para
mim, aquele corpo já não trazia mais a figura carinhosa que lia pra mim
quando eu era criança, que me balançava no parque e que dançou comigo
na festa de 15 anos.

Na minha cabeça, as palavras duras dele me dizendo que eu havia cedido às


loucuras da minha avó e me expulsando de casa, os olhos triunfantes da
oportunista que ele havia escolhido para casar e a visão das tantas vezes
que minha mãe adormeceu chorando. Tudo era demais para mim. Lembrei
das palavras de vovó no telefone. "Madrinha de alma"? Cleópatra... Sim,
acho mesmo que havia loucura nas palavras da minha avó.

Não havia conseguido perdoá-lo e sequer sei se conseguiria um dia. Nunca


havia desejado sofrimento para ele, mas era como se estivesse morto para
mim desde o dia que me expulsou da casa dele, há quase um ano.

Saí do quarto com passos firmes, me sentindo segura de mim mesma, de


minhas atitudes. Ouvi um longo bip e o silêncio do aparelho. Nesse
momento soube que Anúbis tinha cumprido seu dever.

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 13

"Ala de Recuperação" é o que estava escrito na porta da sala em frente ao


elevador. Quis entrar na sala para me recuperar da loucura. Decididamente,
não ando muito normal, mas me toquei que não era um hospital
psiquiátrico.

O apito do elevador revelou um frágil paciente em uma cadeira de rodas


sendo empurrado por um rapaz que deveria ser seu enfermeiro particular.
O paciente tinha míseros fiapos de cabelo na cabeça, era magro –
magérrimo – e carregava um livro na mão. Quando me viu, o paciente fez
sinal para que o enfermeiro parasse.

Pegou o livro, procurou uma página específica, arrancou sua pulseira de


identificação do braço e usou-a como marcador. Estendeu o livro em minha
direção e disse: "seja o conhecimento o meu legado e sua libertação". Ele
tinha uma cicatriz no pescoço e uma lua tatuada no braço, igual ao meu
sonho. A cicatriz era uma linha torta que parecia ferida de faca.

Não consegui agradecer. Estava imobilizada pela imagem daquele homem,


que tanto me lembrou meu pai e meu sonho. Fez um novo sinal para o
enfermeiro e entrou na sala. Não acho que ele estivesse "em recuperação"
de nada. Acho mesmo que ele estava quase morrendo.

Não era um livro comum. Era escrito à mão e encadernado para parecer um
livro editado. Na primeira página, em letras grandes e maiúsculas, estava
escrito o que, acredito, fosse o título do livro "1963-1986, Klaus Von Uhlav".
Fui direto para a página marcada. Peguei a pulseira e li "Klaus Von Uhlav α
24/11/1925 / Ω 17/08/1997". A data de hoje... Meu coração acelerou. Não
é possível que ele fosse Klaus Von Uhlav.

Olhei para a página marcada e havia um poema chamado "Testamento". Ele


terminava assim: “e para quem me matou, toda a minha felicidade e o meu
amor”. Mórbido... Senti calafrios pelo corpo todo. E o cordão da vovó
quente, mais uma vez. Mas já tinha me acostumado com isso. Entrei no
ônibus e me sentei no último assento.

Estava chovendo, mas eu me sentia abafada com as janelas embaçadas. Abri


a minha janela e senti a chuva cair no meu rosto. Não tive vontade de fechar
a janela. Só de sentir a chuva. Comecei a chorar e pensei "que clichê":
"Crying in the Rain" já fez muito sentido para mim um dia. Será que minha
"madrinha de alma" aprovaria? Ri sozinha. Devo estar caindo mesmo nas
loucuras da minha avó... Abri a bolsa e peguei o discman.

- Assalto! Me passe o discman e o dinheiro!

- Como?

Me assustei, mas não deu tempo nem de processar o que tinha ouvido,
quanto mais ver o rosto do homem que balbuciou no meu ouvido. Uma
confusão se instalou quando uma mulher de cabelo curto acertou um único
golpe certeiro direto na garganta do cara. Ele caiu desmaiado na cadeira da
frente e a mulher desceu do ônibus. Só consegui ver uma tatuagem em
forma de lua na nuca dela.

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 14

Minha mãe estava acordada quando cheguei em casa, molhada e assustada.


A cena deveria ser bizarra, realmente. O choro pela confusão da minha vida
– não, eu não chorava pela morte do meu pai –, o susto com o quase-assalto,
a água da chuva. Minha mãe quase enfartou quando me viu.

- Thea? Thea? O que houve com você? É o seu pai?

- Mãe, houve muita coisa. Acho melhor você sentar.

Ela deu ré até esbarrar no sofá e eu disparei, já sem os freios na língua que
permitiam dar notícias ruins devagar.

- Meu pai morreu, quase fui assaltada, peguei um pouco de chuva.

Ela me interrompeu.

- Morreu? - acho que foi tudo que ela ouviu.

- Sim, mãe. Sinto muito. Mas ele estava em coma induzido, sofrendo, muito
magro e a esposa dele não autorizou nova cirurgia. Aliás, ela o abandonou
lá, segundo o médico. Ele faleceu logo que eu saí.

Ela começou a chorar, como eu já imaginava. Nos abraçamos em um longo


silêncio. Senti o suor da minha mãe gelar o meu corpo. Ela estava fraca. Não
devia comer direito há muito tempo. Ela começou a fraquejar nos meus
braços. Como eu pude ser tão insensível com ela? Por que a afastei tanto
quando ela mais precisou de mim? Será que eu estava absorvendo tudo de
ruim da minha avó?

- Ah, Thea... Seu pai era um homem tão bom, tão vivaz. Gostaria de ter ido
visitá-lo, mas nem vi você sair... Podíamos ter ido de carro. Acho que dormi
demais.... E ele estava abandonado? Coitado... Eu devia ter imaginado que
aquela mulher não ficaria ao lado dele... Mas, Thea, o Hospital do Câncer é
longe. Você não pode se arriscar dessa forma.

- Meu anjo da guarda é atento. Quase fui assaltada no ônibus, mas uma
menina acertou o ladrão e apagou ele com poucos movimentos. Muito legal!
Quero aprender uma luta também... Será que era Karatê? O doutor Luiz já
tinha me dito pra eu aprender uma luta... Krav Magá eu acho... O que você
acha?

- Hummmm.... Pode ser útil, mas falamos depois. Ela tinha alguma marca? -,
minha mãe ficou séria e sombria.

- Uma tatuagem de lua na nuca.

- Uma guardiã. Sua avó me ligou. Deve ter mandado eles atrás de você.
Precisamos conversar...

- Guardiã? Atrás de mim? Eles, quem? Mãe, que história é essa de


"madrinha de alma"? Minha avó disse que a morte do meu pai era prevista?
Como assim? E que guardiã? Eu tenho uma guardiã? Aliás, olha que
estranho o que eu ganhei hoje no Hospital de um paciente.

- Um livro... - ela concluiu e, quando leu o nome na primeira página,


derrubou-o, revelando a pulseira e a página aberta.

- O que houve, mãe?

- O Klaus... Ele... Bom, ele foi o amor da sua avó... – os olhos dela estavam
esbugalhados e assustados.

- Mãe, olhe na pulseira... Acho que deram uma data pra ele morrer... Que
coisa horrível, né?!

- Klaus teve câncer no pulmão e morreu ano passado... Eu-eu preciso te


explicar a história do início. Não somos uma mera família de ascendência
grega. Somos descendentes legítimas de Cleópatra. Mais do que isso...
Cleópatra é nossa "madrinha de alma". Ela acompanha os sonhos das
mulheres da família desde sempre, guiando e orientando. Ela começa a
interagir quando completamos quinze anos e, então, não para mais. Quanto
mais você se informa e adentra o mundo das irmandades, mais ela aparece.
Vou fazer um café para nós conversarmos melhor...

- Você voltou a beber café?

- Hummmmm... Acho que sim. Tive vontade de tomar hoje pela manhã.

- E o vinho? Já bebeu quantas garrafas hoje?

- Nenhuma.

Respirei aliviada. É difícil demais acreditar, mas preferi não insistir para
não instigar.

- Mãe, estou perdida. Que irmandades são essas? Nós somos mesmo
descendentes de Cleópatra? Você também sonha com ela?

- Sim, todas nós há séculos. Você lembra daquela escultura dos filhos
gêmeos de Cleópatra e Marco Antonio? Somos descendentes de Alexandre
Helios. Lembra que ele aparece com o Sol sobre sua cabeça, enquanto
Cleópatra Selene aparece com a Lua? Estão abraçados... Helios, a
personificação grega do Sol. E Selene, a deusa grega da Lua. Lembra dessa
parte? Você precisa estudar! Bom, Cleópatra fazia parte de algo muito
maior do que o noticiado nos livros. Ela era a rainha do Egito, mas não só.
Foi a maior rainha da Irmandade do Sol, espalhada por diversos lugares.
Lugares onde o sol nasce, digamos assim. Com o passar do tempo, a
Irmandade cresceu e se espalhou pelo mundo, muito além do Império
Romano.

- Irmandade?

- Escute, Thea... Pergunte depois. Espere eu terminar. Bom, vai ser mais um
resumo... A história é muito maior do que isso... A Irmandade começou
muito antes de Cleópatra. Hatshepsut foi a primeira faraó mulher, durante
a XVIII Dinastia do Novo Império. Foi uma excelente faraó. Trouxe muita
prosperidade para o Egito. Ela era filha de Tutmés I, mas, na verdade, foi
gerada pelo deus Amon-Rá e Ahmés-Nebetta.

- Amon-Rá? O "rei" dos deuses?

- Isso. Você estudou os livros que sua avó mandou?

- Bom, alguma coisa.

- Enfim, estude. É importante que você conheça sua história. Amon-Rá


tomou a forma de Tutmés I, em um plano elaborado pelos deuses, inclusive
duas protetoras, Serket, a deusa escorpião, e Neit, deusa da guerra. Assim,
nasceu Hatshepsut. Quando o primeiro marido dela faleceu, ela assumiu
como faraó. A primeira mulher reconhecida como faraó. Como ela sabia
que seria impossível às mulheres manterem-se na liderança, criou a
Irmandade do Sol e determinou que as rainhas depois dela seriam,
também, rainhas. O primeiro guardião foi Senemut. Ele protegia
Hatshepsut. Depois dela, muitas outras passaram, como Nefertiti e Twosret,
até chegar em Cleópatra.

- Mas o que aconteceu depois que Cleópatra morreu? Não houve mais
nenhuma mulher na mesma posição, não é?

- Bom, quando ela procurou Júlio Cesar, a Irmandade do Sol não apoiou sua
decisão de unir-se a um romano. Seria uma união espúria, basicamente,
ainda que Cleópatra não pensasse em casar com ele. Tentaram matá-la
algumas vezes, mas Cleópatra conseguiu expurgar seus opositores mais
ferozes, além de ser uma mulher forte, de carisma e sedução inegáveis. Não
sedução no sentido sexual, você entende, né? Ela seduzia seus
interlocutores com uma clareza de pensamento e uma retórica impecáveis.
Ela nunca amou Júlio Cesar, nem sequer cogitou se unir a ele em
matrimônio. Mas com Marco Antonio foi diferente. Ela queria casar com
Marco Antonio e a pressão da Irmandade não permitiu. Então, ela tentou
manter sua alma no poder, mesmo que casada com quem escolhesse.
Alguns membros mais antigos da Irmandade acreditam que foi a poção que
ela ingeriu que a matou, mas também passou parte de Cleópatra para seus
descendentes, nós. O fato é que Cleópatra manteve Alexandria no mapa e
fez seu nome, especialmente dentro da Irmandade. Não se sabe ao certo,
mas nossa família sempre sonhou com Cleópatra e isso manteve nossa
legitimidade no trono. Muito foi dito sobre ela. Muitas mentiras. E pouco é
conhecido pela humanidade. Alexandria se espalhou e virou uma cidade do
tamanho do mundo. Estamos em todos os lugares. Sua avó é a rainha atual,
mas precisa passar o reinado para você o quanto antes. Ela quer prepará-la
para isso...

- E por que não você? Não devia ser você?

- Quando casei com seu pai, fui deserdada do trono pelas regras da
Irmandade. Ninguém nunca achou o Papiro do Sol, escrito pela própria
Cleópatra. Eu mesma acho que esse Papiro é uma lenda... Enfim, quando
casei com seu pai, é como se eu tivesse me unido a um espúrio também, por
assim dizer. Pela ordem, eu deveria casar com um membro da Irmandade.
Cleópatra casou com dois irmãos. Não faça essa cara de nojo, Thea. Era
costume da época. Uma forma de manter o reinado na família. Com os
avanços da medicina, as descobertas sobre possíveis deformidades e as
adaptações culturais do mundo, o casamento entre irmãos de sangue foi
abolido da prática da Irmandade. Sua avó mesmo casou com um primo
distante.

- Mãe, isso é nojento!

- Cale-se, Thea. Tudo isso é muito maior que você e os costumes ocidentais
modernos. Acreditamos que uma parte da alma de Cleópatra mora nas
mulheres de nossa família, através do tal ritual mágico.
- Mãe, por favor, isso é demais. Somos uma espécie de reencarnação? Fala
sério...

- Thea, você não anda estudando nada! Estou muito aborrecida com você!
Acreditamos na imortalidade. A alma imortal vive após a morte do corpo
físico. Cleópatra conseguiu essa imortalidade da forma mais real que se
pode conseguir. Não existe apenas a forma física, e sim, oito partes
imortais, que sobrevivem à morte. Ka, nosso centro de energia; Ba, uma
espécie de espírito físico; Akh, resultado da união do Ba e do Ka, que é o
nosso intelecto, nossos desejos, intenções; Sahu, nosso corpo espiritual;
Sekhem, a força vital do homem; Ib, nosso coração, nossa fonte de bem e
mal, nosso caráter; Ren, nosso nome verdadeiro atribuído por Ptah, vivo
conforme seu nome for falado; e Shwt, nossa proteção. Cleópatra passou
parte da alma para nós. Passou seu Ba.

- Não entendo... Como ela fez isso?

- Ora, Thea, você ainda não entendeu? Cleópatra era uma bruxa!

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 15

- Bruxa? Mãe, isso é impossível!

- Nada é impossível, minha filha. O universo tem elementos muito mais


poderosos do que se supõe. Mas depois que você estudar sua história, nós
conversamos melhor. Por hora, escute o que eu tenho a dizer.

- Você perdeu o Ba quando casou com meu pai?

- Claro que não. Fui apenas impedida de assumir o reinado.

- E por que ela parou de falar contigo quando você casou com meu pai?

- Não sei. Simplesmente, parou. Acho que ela não fala mais com a sua avó,
também.

- Por que?

- Não sei, Thea. Parou quando sua avó casou com seu avô. Ela seguiu as
regras da Irmandade, mas não seguiu as regras da própria Cleópatra, eu
acho. Sei lá... É confuso para mim. Se o tal Papiro do Sol existe, isso
supostamente está escrito nele.

- E como funciona essa Irmandade?

- São classes. Quatro classes. Nossa família está no cume. Há ainda a classe
média, formada pelos comerciantes; uma classe baixa e uma de escravos.

- Escravos?

- Bom, na nossa Irmandade, os escravos não são assim como no Brasil. Eles
têm alguns direitos e podem ser libertados. Mas, sim, em suma, são
escravos. Serventes. Subalternos. Os guardiões, por exemplo.

- Eles são escravos? Mas... mas a vovó...


- Bom, ela era apaixonada pelo Klaus, mas se curvou às ordens da
Irmandade quando tentaram matar ele. Ele foi atacado por um dos
guardiões com uma faca, depois que deixou sua avó em casa na volta da
escola. Era para ele ter morrido, mas, por algum motivo, não morreu. Ela
ficou com medo e fugiu dele, casando-se com o primo. No meu caso, bom,
eu era muito jovem... Conheci seu pai muito jovem, em um momento de
questionamentos e rebeldias. Ele não fazia parte da Irmandade. Bom, você
é mais madura do que eu era na sua idade. Mas, enfim, casei com seu pai e
não assumi o reinado. Sua avó foi obrigada a ficar mais 20 anos por conta
disso... Cleópatra continuou aparecendo nos meus sonhos, mas parou de
falar comigo. Ela voltou a falar há alguns meses. E eu não queria ouvir. Ela
falou algo sobre proteger o seu pai. Mas descobri que, quando bebo, ela não
aparece...

- Por isso você bebe? Por isso minha avó e meu pai discutiam tanto?

- Digamos que sim e sim. Sua avó queria iniciar você desde cedo nos
estudos da Irmandade, mas eu e seu pai sempre mantivemos você afastada
disso. Queríamos que você seguisse seu próprio caminho, independente
das corrupções e responsabilidades da Irmandade. Lembra do livro que te
demos nos seus 15 anos? Eu ganhei do seu pai quando nos conhecemos.
Leia, assim que puder e eu te explico essa parte. Seus sonhos com Cleópatra
foram se tornando cada vez mais constantes. Até que ela falou com você
também. No seu aniversário, quando você acordou assustada, eu sabia que
ela tinha falado. Quando sua avó chegou, me perguntou se ela já tinha se
manifestado plenamente, por isso estávamos discutindo... E trouxe o
amuleto de Ísis, que tem o objetivo de manter o mal afastado de você. Ele
"atrai" os guardiões, de certa forma.

- Mas como a tal guardiã me achou, se é que era mesmo uma dessas?

- Os guardiões estão espalhados pelo mundo. São rostos conhecidos e


desconhecidos que fazem parte da Irmandade e são mantidos pela rainha.
Há um salário bem generoso. Ganham mais do que eu na escola... Eu sei
que a senhora Filomena é uma também.

- A professora de música? Mas... como?

- Eles são muitos, Thea. Pessoas que você nem imagina. Os melhores são
direcionados para a guarda real. Bom, os guardiões que acompanham sua
avó. São treinados para defender a rainha onde quer que ela se encontre.
Treinam Krav Magá desde cedo. Na maioria das dinastias, o faraó era
apenas o rosto. Cleópatra foi o cume e o fim, já que Roma assumiu depois.
Nesse momento, quando Roma entrou no cenário egípcio, criou-se a
Irmandade da Lua, os filhos de Roma, filhos de Cleópatra Selene.

- Não entendo, mãe, isso tudo é demais para mim...

- Se você tivesse lido e estudado, não estaria assim. O reino de um faraó era
passado através das princesas, por isso a preocupação com elas e, assim,
com você. Você carrega o amuleto no peito. Eles sabem que você é. Todos
os seus súditos. As mulheres egípcias sempre foram mais independentes
que as de outras civilizações. Estudamos, nos informamos, lideramos.
Somos figuras fortes. Criadas para dominar.

- E-eu nunca vi ninguém acompanhando a vovó também...

- Uma das exigências do seu pai para que sua avó viesse para o seu
aniversário foi manter os guardiões afastados.

- Mas ele podia fazer "exigências"?

- Quando seu pai casou comigo, passou a ser da realeza, querendo sua avó
ou não. Se não tivéssemos você e algo acontecesse à sua avó, eu sou a
próxima na linha de sucessão, independente de com quem me casei. A
linhagem da nossa família deve prosseguir.

- Mas a vovó ficou desprotegida, então?


- Claro que não, Thea, não seja ingênua. A Rainha do Sol é uma das filhas de
Amon-Rá. Você acha que o próprio deus supremo deixaria sua filha
desprotegida? Ela é o topo da importância entre os membros. Nunca ficaria
desprotegida, nem se dispensasse todos os guardiões. Eles estiveram o
tempo todo por perto. Mas eu mesma não os conheço. Sei que muitos são
jovens. Alguns, inclusive, têm a sua idade. Mas sua avó faz questão de
mantê-los indistinguíveis.

- A minha idade? No meu aniversário de 15 anos tinha um rosto que eu


nunca vi. O menino que brigou com o Júlio...

- Bom, querida, não sei se era guardião ou apenas alguém na festa, mas
precisamos conversar sério sobre o Júlio.

- Agora? Esse tempo todo depois?

- Sim, Thea, agora. Agora você está conhecendo a verdade. Quero explicar
logo tudo. Estou com a sensação de que, se você soubesse desde sempre,
tudo teria sido diferente. Mas fico feliz que eu esteja conseguindo conversar
com você antes de qualquer outra pessoa. Mas, enfim, o Júlio... Júlio faz
parte da Irmandade da Lua, descendentes de Cleópatra Selene. O objetivo
da Irmandade da Lua é unir Sol e Lua, como na escultura. Uma união que
dominará o mundo de uma forma imprevisível no eclipse da lua azul.

- Ah, mãe, agora você está indo longe demais....

- Thea, cale-se. O pai do Júlio é um homem perigoso. Ambicioso,


inescrupuloso. Sua avó o reconheceu assim que o viu!

- Mas por que o Júlio e não o Égido?

- Porque o Égido não é filho do Otávio.

- Não?

- Não. Eles o adotaram depois de alguns anos tentando ter um filho. E o


registraram, como se fosse herdeiro natural. Mas quando ela engravidou do
Júlio, divulgaram que Égido não é descendente de Otavio e, portanto, não é
descendente de Selene.

- O Júlio sabia o nome da vovó... E ela interrompeu a gente quando


estávamos no jardim do salão. Ela estava nervosa...

- Sim, sua avó não gostou quando viu Otávio, mas gostou menos ainda
quando viu você com o Júlio.

- Mãe, é muito para mim... O Júlio ainda é muito importante para mim...
Tudo isso está me deixando tonta. Estou perdida, minha cabeça está
doendo. Não quero café. Vou para o meu quarto...

- Thea, tome cuidado. A família da Lua tem interesses obscuros na união.


Você precisa se manter afastada dele.

- Mãe, já estou afastada dele. Vocês conseguiram. Não sei nem onde está o
Júlio... E, de mais a mais, tem os espiões-guardiões espalhados pela rua!

- Thea! Tudo isso é muito maior do que você. São milhões de pessoas
subordinadas à mesma rainha, no mundo todo. Como uma única nação,
harmônica e auto preservativa. Você consegue entender?

- E você, mãe? Por que você não assumiu se tudo é tão maior assim?

- Eu era muito jovem, Thea... Eu... eu me apaixonei pelo seu pai. Ah, Thea...
seu pai foi um homem muito compreensivo comigo.

- Tão compreensivo que casou com a mãe do Júlio! Mãe, ele casou com a
mãe do Júlio! Ele te traiu muito mais profundamente do que eu imaginava.

- A mãe do Júlio... Bom, como vou explicar... Eu acredito que tenha sido
armado para tirar seu pai do seu caminho. E eles conseguiram. Tenho
quase certeza que o Otavio ordenou à esposa que seduzisse seu pai para
que ele se afastasse de você. E ela o envenenou contra você e contra mim.
- Mãe, me poupe! É muita informação... Que homem enviaria a própria
esposa nessa "missão"?

- Um homem frio que confia na esposa e que faz qualquer coisa pelos seus
objetivos. Ele é um homem frio, Thea. Quem melhor do que a esposa, que
ele escolheu para ser sua mais fiel companheira, para um trabalho de tal
importância?

- E por que o Júlio não apareceu esse tempo todo? Eles conseguiram tirar
meu pai do caminho...

- Mas eles precisavam que você estudasse para se tornar rainha. Você ainda
estava crua demais e não serviria aos propósitos da Irmandade da Lua.

Não quis conversar mais. Fui para o quarto, me trancando e querendo


sumir no mundo.

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 16

Pela primeira vez, os livros não me ajudaram em nada. Eu olhava para eles,
eles olhavam para mim e nenhum deles chamou a minha atenção. Não
conseguia ler nada. Nada, exceto o tal caderno do falecido Klaus – será que
era a tal criatura da cadeira de rodas do hospital? Isso é tão fantasioso! – e
comecei a ler os poemas. Mais do que poemas, eram mensagens. Era uma
história contada com poemas e desenhos, mapas e rotas, instruções. No
fundo, era uma história de amor. Dele e da vovó.

"Éramos jovens demais, mas feitos um para o outro como a lua e o sol que,
apaixonados, se encontram às escondidas no mar azul de casas brancas. Lá
naquela encosta, está marcado o nosso amor." Profundo... Brega, mas
profundo.

"Nosso segredo foi guardado, enterrado com a Rainha, não importa sua
origem. Não importa a minha origem. Nunca acharão nossa verdade, nem
saberão que sou sua metade."

Adormeci em cima do livro. Era blábláblá demais para o meu coração


endurecido.

Olhos cor-de-mel ensanguentados e o rosto de Cleópatra. "Um amigo leal


vale 10 mil parentes", ela disse. Acordei suada, com febre, assustada e
gritando.

- Thea, Thea! É apenas um pesadelo! - minha mãe entrou correndo no


quarto.

- Mãe, o Júlio... eu preciso ver o Júlio, descobrir o que aconteceu com ele,
como ele está. Ele mentiu para mim? Ele tinha alguma coisa pra me dar no
jardim! Eu continuo sonhando com ele. Você me disse que ele era apenas
um pau-mandado do pai, mas eu não acredito. O que a gente tinha parecia
tão... tão real...

- Ah, minha filha... não sofra assim. Você ainda é muito jovem...

- Mãe, ela falou. Falou alguma coisa sobre amigos leais e família...

- Acalme-se, minha filha. Acalme-se... Você teve um dia muito cheio.


Conversamos outra hora. Você está muito suada. Tome um banho enquanto
eu faço um chá para tentar acalmá-la...

Entrei no banheiro e me olhei no espelho. Tanta coisa na cabeça... as frases


da minha avó no dia do meu aniversário, o pendente queimando no meu
peito, a pequena caixa que o Júlio queria me dar, o livro do Klaus... Uma lua
na caixa... "a lua e o sol que se encontram escondidos no mar azul de casas
brancas". Minha história se embaralhava na cabeça e tudo que eu sabia que
precisava me afastar de toda aquela loucura.

Imaginar que o menino que bateu no Júlio na minha festa era um guardião
era surreal demais para mim. Ainda assim, faz todo sentido. Eu nunca o
havia visto. E o esquisitão do Égido, que sempre me deu arrepios. E ela,
Cleópatra, me dizendo para usar o Égido. Mas como? Lembro bem do que
ele me disse: ele me chamou de "rainha do Sol", me disse para ficar longe
do Júlio.

- Filha, tome o chá. - minha mãe abriu a porta do banheiro de repente e me


tirou dos pensamentos - Tome um banho, Thea... Você está precisando
descansar e não acho que sua avó vá te dar folga quando chegar.

- Ela está vindo?

- Sim... Deve chegar em algumas horas. A tempo do enterro, creio eu.

- Claro, enterro... Nem me lembrava mais que haveria um enterro. Mãe, ela
me disse umas coisas: "escute sua alma"...

- Cleópatra?
- Não, minha vó. Ela me disse pra eu escutar minha alma e me disse algo
sobre luz própria. "Apenas o sol tem luz própria", eu acho. Foi a mesma frase
que a Cleópatra disse na primeira vez que falou comigo.

- Sim, o lema da Irmandade do Sol.

- E isso de escutar minha alma?

- É uma forma de dizer para seguir seu coração. Lembra do que eu


expliquei sobre Cleópatra e Ba? Sua avó não acredita em amor,
provavelmente por conta da ferida deixada pelo Klaus. Acredita que serve a
uma ordem maior do que o próprio coração. Ela se acha altruísta por
pensar em "toda a população mundial da Irmandade". Ela não deixa de ter
razão, mas às vezes acho que ela foi muito infeliz. Fico triste por ela.

- Mãe, o pingente da vovó... o amuleto...

- O amuleto de Ísis?

- Sim. Ele queima meu peito em alguns momentos...

- Hummmm.... como vou te explicar... Ele queima para lhe dar um "alerta",
não necessariamente negativo. Algo como "preste atenção no que vai
acontecer".

- Ele queimou quando eu estava perto do Júlio.

- Bom, a interpretação é complexa e depende muito da sua consciência


quanto ao que sente. Mas é possível que ele estivesse lhe protegendo de um
filho da Lua.

- Pode ser....

- Vamos, tome seu chá... Ainda está escuro e acho que você ainda pode
descansar um pouco antes de sua avó chegar.

Tomei um banho frio e voltei para a cama. Adormeci, lembrando da frase


que Cleópatra havia me dito hoje: "Um amigo legal vale 10 mil parentes".

--------------- ☼ ---------------
Capítulo 17

Flores, coroas de flores, muita gente chegando e me cumprimentando. Sol


forte e frio, muito frio. O corpo inerte do meu pai, cercado de tulipas de
todas as cores, não me comovia. Assim como no hospital, ver aquela pessoa
que traiu a minha mãe e me colocou para fora de casa não me fazia querer
chorar. Não sei qual era o sentimento, e não consegui descobrir.

O velório foi rápido. Aparentemente, quando a pessoa está muito adoecida,


não há risco de catalepsia e, assim, pode ser enterrada em menos de 24
horas se tiver um laudo médico. Pelo que entendi, meu pai estava
realmente doente. E tenho certeza que a perua acelerou o enterro pra se
livrar logo dele.

Preciso confessar que fui ao enterro para procurar a mãe do Júlio, ainda
que eu saiba que não seria o momento oportuno para o embate inevitável.
Ela não foi.

Eu não conseguia falar. Olhava ao redor para todos aqueles familiares


estranhos, que não estavam ao meu lado em nenhum momento importante
da minha vida, e me sentia sozinha. Minha avó não veio. Ela preferiu ficar
em casa "repousando" do longo voo. Segundo ela, seria "elegante entregar
apenas uma coroa de flores para atender aos costumes locais, mas isso não
seria um enterro digno, não garantiria a entrada no pós vida". Não me dei ao
trabalho de discutir.

Minha mãe foi. Parecia dopada, em estado de alfa. Não falou com ninguém.
Limitou-se a sentar ao lado do caixão e olhar. Sei que ela não tomou nada.
Bom, pelo menos eu não a vi tomar nenhum remédio. Ou vinho. Acho que
ela só estava absorta em seus próprios pensamentos. Posso jurar que a vi
colocar algo entre as tulipas, como uma pequena imagem de Nossa Senhora
de Lourdes que meu pai tinha na gaveta da cabeceira. Mas não sei se era
isso mesmo...

Não consegui acompanhar o cortejo. Fiquei sentada, enquanto preparavam


a sala vazia para o próximo cadáver. Recebi uns cartões de visita de
pessoas que não conhecia. Passavam por mim, me cumprimentavam como
se me conhecessem e me davam cartões. Em maioria, advogados. Irônico,
porque uma pessoa totalmente pobre como meu pai não chamaria a
atenção desses "carpideiros". Pensando bem, minha mãe falou mesmo em
“tantas posses”.

Fiquei com isso na cabeça e voltei para casa contando piadas no carro
sobre carpideiras, mas não pareceu ter agradado minha mãe. Meu talento
para humor negro não estava sendo bem aceito. Até que ela resolveu me
contar que, na verdade, meu pai era um homem rico. Dei uma gargalhada
alta.

- Rico, mãe? Só se o caminhão dele é clássico e atraiu um colecionador. Meu


pai não tinha onde cair duro, mãe.

- Thea, seu pai construiu um império. Ele não tinha apenas o caminhão.
Aquele caminhão ele usava para manter-se perto dos empregados. "A
empresa só funciona sob os olhos do patrão", era o que ele dizia. Tinha muito
medo de ser enganado pelos administradores. Então, mantinha-se perto,
fazia algumas entregas, conversava com clientes. Apenas o vice-presidente
sabia quem ele era. Para todo mundo, ele era apenas mais um motorista.

- Mãe, do que você está falando? Sempre vivemos apertados.

- Sim, queríamos que você desse valor ao dinheiro. Saber que éramos ricos
poderia te causar alguns problemas de personalidade.

Descobri, então, porque os carpideiros estavam atrás de mim. Há dinheiro


para ser partilhado. Isso também explica a perua atrás do meu pai. Devia
estar de olho no dinheiro dele. Por isso não autorizou a nova cirurgia.
Minha raiva só aumentava. Mas minha mãe prosseguiu:

- Seu pai abriu uma fundação, a Fundação Ensino Vivo, que mantém escolas
em comunidades do Rio de Janeiro e uma grande biblioteca. O advogado da
sua avó já está cuidando de tudo. Ele só aguarda o processamento dos
documentos do óbito no cartório, mas isso deve sair logo.

Por Rá, minha vida tinha virado de cabeça para baixo. Tudo que eu
conhecia como verdade, já não era mais. Muitas novidades surgiram. Muita
coisa para assimilar, todos os dias. Seguimos o caminho até a nossa casa em
silêncio.

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Capítulo 18

Os dias seguintes não foram de muito assunto. Minha avó me procurava


para conversar, mas eu fugia. Dizia que tinha muito a estudar, que estava
atrasada, que me sentia mal, que estava com cólica, com sono, com
enxaqueca... Tudo era desculpa para não conversar com ela e encarar o
inevitável discurso sobre Irmandades. Eu queria aprender antes. E, mais
importante, queria ler os dois diários que eu tinha em mãos: o da minha
avó paterna, escrito em francês, e o do Klaus.

Meu aniversário passou em branco. Não havia clima para celebrações.


Ganhei um anel de ouro branco da mamãe, escrito "sempre estarei aqui
para você" dentro. Da vovó, ganhei um tradicional envelope com dinheiro.
Acho que a única vez que ganhei algo diferente disso foi com 15 anos. De
toda forma, o dinheiro veio gordinho esse ano. Deixar as coisas claras
acabou sendo rentável para mim. Vovó não precisava mais esconder que
era rica e me dar pouco dinheiro.

Comecei a praticar Krav Magá 3 vezes por semana. Era uma maneira de
ficar longe da minha avó, a princípio. Depois, fui tomando gosto.

Nunca mais vi minha mãe beber. Vovó voltou para casa duas semanas
depois do enterro. Quando percebeu que minha mãe tinha estabilizado e o
advogado já estava quase resolvendo tudo, resolveu voltar.

- Preciso cuidar dos assuntos da Irmandade. Mas eu volto em breve, Thea. E


você está me devendo uma conversa séria sobre seu futuro.

Pouco mais de um mês após o enterro, saí pela rua e ainda estava escuro.
Eu, minha mochila jeans com desenhos aleatórios, o diário do Klaus, um
caderno, um lápis, um pouco de dinheiro, um tênis confortável e um forte
instinto que me levou direto para a Rodoviária.
Deixei o cordão com o amuleto de Ísis, que tirei pela primeira vez desde
que ganhei, e o anel que a mamãe me deu para trás. Eu precisava retomar
as rédeas da minha vida. Me refazer e me recompor. Eu só tinha 17 anos,
mas carregava mágoas de uma longa vida. Eu queria ter 17 anos.

"Mãe, estou escutando minha alma. Não se preocupe. Os guardiões vão me


achar e me proteger. Ou vão me trazer de volta. Nunca esqueça que amo
você. Beijos, T." Foi assim que me despedi da minha mãe: um bilhete na
mesa de cabeceira da cama dela.

Mas nada era simples assim, muito menos para alguém com menos de 18
anos. Não dá pra fugir, simplesmente, no primeiro ônibus que conseguimos
achar. Não consegui comprar a passagem.

Sentei em frente a uma cafeteria pensando que não era hora de começar a
gastar o dinheiro que eu tinha – não sei quando ia voltar pra casa e
precisava economizar. Além disso, certamente iam bloquear minha conta
no banco. Estava com fome, porque, idiota, não havia comido em casa antes
de sair e nem coloquei um pacote de biscoitos na mochila. Enfim, fiquei um
tempo pensando no que fazer.

Uma música suave tocava nos alto-falantes, mas o falatório não permitia
que eu ouvisse nada. Percebi que a pessoa do caixa não cobrava identidade
de todo mundo. Então, talvez fosse mais fácil do que pensei. Questão de
estratégia.

Fui até o final da fila e encontrei um senhor que estava comprando


passagem para o mesmo lugar que eu. Eu disse a ele que estava fugindo de
um pai violento e uma mãe omissa, uma mentirinha básica, mas que
comoveu a senhora que estava à frente dele. Quando vi que ela tinha
acreditado, pedi a ela que comprasse a passagem para mim. Dito e feito. A
mulher do caixa nem questionou para quem seria a outra passagem.
Petrópolis, aí vou eu!
Cochilei no ônibus e, felizmente, não sonhei com nada. Acho que o cansaço
e a fome bloquearam a minha mente. Duas horas depois, desembarquei na
estrada, em Araras. A barriga já colada nas costas de tanta fome, resolvi
entrar no café da estrada para comer alguma coisa, qualquer coisa. Já era
quase hora do almoço e eu ainda não tinha comido nada. Assim fiz.

Comi qualquer coisa feita em um dia qualquer, de qualquer maneira. Estava


horrível. Gelado, sem gosto, esquisito. Era um joelho de queijo com
presunto, tudo muito duvidoso, mas que encheu. Ao invés de café, pedi uma
garrafa de água. No primeiro gole, já me vi arrependida. A comida
misturada com a água estufou na barriga. Azia certa, mas paciência. Foi o
que se pode arrumar em uma fuga mal planejada de uma adolescente.

Estava feliz, todavia. Nenhum guardião tinha me achado. Ou, pelo menos,
que eu saiba. Era hora de organizar o roteiro. Primeiro, o colégio. Como
estava quase na hora da saída, imaginei que encontraria alguém para me
dar uma informação, quem sabe até o Júlio mesmo. Na mesma hora,
lembrei da Sra. Filomena. Tantos meses como monitora de música e eu
jamais desconfiei de alguma coisa. Então, para onde eu iria? Casa do Júlio,
foi pra lá que eu fui.

Assim que cheguei na porta, me arrependi da aventura. A casa enorme, de


estilo barroco e muitas plantas, estava tomada por heras. Os vidros da
frente quebrados, o portão enferrujado e entortado. Na caixa de correio,
um desenho de lua. "Óbvio", pensei, "o narcisista do pai do Júlio tem uma lua
desenhada para marcar a 'casa do chefão'".

Quem entra em uma casa abandonada? Ninguém de sã consciência. Mas eu


entrei. Estava me achando uma grande aventureira. Irresponsável, mas
aventureira. Dentro da casa, os móveis cobertos com lençóis amarelados e
empoeirados deram o clima de suspense. As paredes peladas mostravam a
marca de onde antes havia quadros. Obras de arte, provavelmente. Não
havia eletrodomésticos. Na sala, uma mesa de 8 lugares e um enorme sofá.
Na cozinha, a mesa e armários embutidos com todas as portas abertas. Um
cheiro forte de mofo e umidade me fizeram espirrar muitas vezes. As
cortinas de seda ainda estavam lá e uma foto, uma única foto da família
toda, estava rasgada na pia.

Subi a escada pé ante pé na esperança de uma pista que me levasse ao Júlio.


Mas os quartos estavam todos vazios. "Maravilha, vim à toa". Quis sumir.
Por que será que nos últimos anos eu só pensava em sumir da minha
própria vida? Resolvi voltar pra casa. Mas não no Rio de Janeiro. Voltei para
a nossa velha casa de tulipas.

O granito rosa da fachada me lembrou os livros sobre Alexandria. E os


gatos... Agora percebi que são imagens de Bastet. Nunca tinha reparado
nisso. Como era de se esperar, as tulipas da minha mãe estavam
horrorosas. Não havia ninguém que cuidasse delas e a maioria já tinha
cedido seu lugar para mato. A casa estava fechada, intocada.

Não quis entrar. Sentei na varanda da frente e fiquei olhando as plantas


murchas, as ervas daninhas que cresceram desordenadamente. Nesse
momento, chorei. Senti a mosquitada me comer e resolvi ir embora.

Quando estava saindo da casa, decidi olhar dentro da caixa de correio. Com
certeza tem alguma coisa, já que ninguém vem aqui há muito tempo. Mas
não eram contas. Havia apenas uma carta já amarelada e com marcas de
umidade. Puxei o envelope.

"Remetente: Júlio Cesar VI

Destinatário: Thea Rodrigues"

E o meu coração parou de bater. Demorei muito tempo olhando para o


envelope, sem abrir. Uma carta do Júlio pra mim, datada de dois meses
após a festa... As respostas a todo esse tempo de silêncio estava aqui, na
caixa de correio da casa das tulipas. Minha viagem já tinha valido a pena.
"Thea, minha rainha,

Muito aconteceu desde a sua festa e eu queria que pudéssemos conversar. A


essa altura, sei que sua avó deve ter enchido sua cabeça contra mim e minha
família, mas queria ter a chance de olhar nos seus olhos para você ver que
não há mentira no meu sentimento.

Eu queria te explicar tudo. Eu ia explicar tudo. Estaríamos juntos. Fomos


feitos um para o outro.

Não sou bom com palavras, mas preciso dizer o quanto lamento tudo que
aconteceu. Preciso dizer muita coisa, mas pessoalmente. Preciso sentir seu
cheiro e respirar perto do seu rosto. Sentir a nossa conexão se refazendo.

Minha família está se mudando para São Paulo e eu não sei quando você vai
ler essa carta, mas vou resgatar você como prometi na sua festa. Te garanto
que em breve estaremos juntos. Eu vou te encontrar. Vou varrer o mundo
atrás de você. E, quando eu te encontrar, não vou deixar mais ninguém te
levar para longe.

Amo você ‘time after time’.

Sempre seu, JC"

Ri. E falei para mim mesma, em voz alta, "Bom, você não me encontrou, né,
JC?!".

- Encontrei, sim. - falou uma voz atrás de mim.

FIM
"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez
que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao
calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num
banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que
entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora
tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se
cobria de um luxo radioso de sensações!
Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os
transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de
agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz,
uma certa tranquilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa
de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com
uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que
passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria:
sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as
agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado
naquele repouso. Foi-se ver ao espelho."

Eça de Queiroz - "O Primo Basílio"

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