Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A sombra de uma mulher sempre invadiu meus sonhos. Seu rosto feio e
indecifrável abrigava um olhar penetrante. Preto jabuticaba era a cor
desses olhos e combinava com seus cabelos negros e pele morena. El Ela
não era bonita e eu sequer a conhecia. Mas era o seu sorriso sombrio que
me atormentava. Por que ela sorria pra mim? Quem era ela? Ela não dizia
nada, apenas me encarava. Até hoje...
Sim, isso! Ela com certeza era o meu subconsciente enlouquecido com a
vida monótona nessa cidadezinha interiorana. Certamente ele queria me
trazer alguma graça à vida. Como assim "lua" e "sol"? Do que diabos ela
estava falando? Essa dúvida me tomou alguns bons minutos, além das
habituais "estou viva?" e "onde meu subconsciente arrumou essa criatura
taciturna?".
- Parabéns a você nessa data querida.... O que houve, Thea? Que cara essa?
Parece que viu um fantasma.....
Como eu não queria preocupa-la mais uma vez e nem contar detalhes da
história lua-sol, desconversei, pulando da cama para assoprar a vela posta
sobre o meu sanduíche de queijo minas, na esperança de que minha mãe
não fizesse o interrogatório que sempre fazia quando eu sonhava com a
mulher. "Ela disse alguma coisa?", "O que ela estava fazendo?", "Ela estava
vestida como?" eram apenas algumas das perguntas de praxe. Realmente,
não queria responder nenhuma pergunta hoje.
Minha mãe é professora primária e meu pai dono de uma pequena empresa
de mudanças. Moro em uma cidade histórica do interior do Rio de Janeiro
chamada Petrópolis, no distrito ecológico de Araras. A verdade é que nunca
vi uma arara por aqui.
Dificilmente eu saio de Petrópolis. Aliás, acho que só saí daqui para ir até o
centro de Teresópolis, uma cidade vizinha. Petrópolis, de Dom Pedro;
Teresópolis, de Dona Teresa. Criativo, né?! Já imaginei que a minha cidade
seria "Theópolis", mas isso é papo pra outra hora...
Ela não é velha, mas acho que a viagem é cara demais para que ela possa vir
mais vezes. Ou o trabalho dela, sei lá. Nem sei se ela trabalha, pra ser
sincera. Acho que era escultora ou artesã ou algo assim, porque conhece
muito sobre obras de arte. Ela e meu pai nunca se entenderam bem. Ele diz
que ela "uma megera velha, soberba, mandona e egoísta". Ele deve ter tido
tempo pra pensar em tantos adjetivos. Coisas de genro e sogra,
provavelmente.
Nunca soube do resto da família da minha mãe. Ela é filha única e não
comentam muito sobre primos distantes, que eu sei que existem. Parece
que ela não gosta deles. Mas sei que ela carrega um forte sofrimento por
conta da morte do meu avô. Ele morreu em um incêndio, tentando salvar os
amigos. Heroico, não fosse trágico.
Não sei por que alguém com muito dinheiro moraria em um lugar com
nenhuma infraestrutura de esgoto, com luz roubada e gás de bujão. Mas,
enfim... Deve ser o status de ser "dono" de alguma coisa. Ela deve se sentir
uma "rainha", mesmo que seja da sucata. Nunca entendi direito porque as
pessoas gostam de se sentir superiores aos outros.
Não visitamos eles por causa disso. Acho que minha mãe tem medo de ir
até lá. Voltando ao parabéns no quarto, não consegui enganar muito bem
minha mãe.
- Conversamos amanhã sobre esse sonho, querida. Por hora, abra seu
presente!
- Ah, mãe, vocês já gastaram tanto... Não precisava me dar mais nenhum
presente.
Uma lágrima escorreu pelos meus olhos e eu não resisti em dar um longo
abraço nos dois. Minha família, meu porto seguro, ricos naquilo que
importa: o amor. Só isso já era o maior presente que eu podia ganhar. Meu
pai, uma pessoa humilde e séria, que dificilmente conversava comigo,
proferiu uma expressa e longa declaração de amor.
- Ora, Thea, você é nosso maior tesouro e nossa filha única. Fazemos tudo
por você. Você sabe que te amamos demais. Nenhum sacrifício é muito
perto do que sentimentos por você.
Minha mãe, como se tivesse pressa para ver minha cara de surpresa,
bradou:
- Deixe disso, Antonio! Ela sabe o que sentimos! Vamos, filha, abra seu
presente!
Uma enorme caixa escondia outra caixa menor, depois outra e outra e
outra. Depois de rir bastante da piada da minha mãe – que sempre
disfarçava os embrulhos do presente para eu não imaginar o que era –
consegui desembrulhar um pequeno livro escrito à mão em francês, de
cerca de 100 páginas.
Era nítido o meu espanto e, sim, a minha decepção com aquele presente.
Adoro livros, mas prefiro aqueles que consigo ler.
- É o diário da minha mãe. Este livro vai te ajudar a entender que você pode
ser quem quiser e que não há nada que você não possa mudar. Ninguém
poderá trilhar o seu caminho. Só você mesma. - disse meu pai.
- Mas eu não falo francês. - repeti, em tom baixo, quase que para mim
mesma, com receio de decepcionar as duas pessoas mais importantes da
minha vida.
- Falará quando for necessário que você leia o livro. Era a língua-mãe da sua
avó. A necessidade de ler e entender esse livro vai se revelar para você no
momento certo. Aí, você aprenderá francês.
Isso o quê? Comigo? Desci as escadas e vi uma silhueta de costas para mim,
sentada ao sofá. Cabelos negros e bem curtos foi a minha primeira visão. Ao
me ver, minha mãe amenizou a expressão nervosa e me olhou, suavizando
seus lindos olhos amendoados.
- Querida, mas que saudade! Você ainda não aprendeu a pisar com leveza?
É uma habilidade útil, Thea... Mulheres devem ser respeitadas por suas
ideias, não pelos sons pesados de seus pés. Bom, trouxe-lhe alguns
presentes...
- Mamãe, não é hora para isso! Thea não precisa de nada disso agora!
Esse, eu acho, foi o argumento final para minha mãe engolir seu próximo
grito e olhar para mim. Incrível como, mesmo adulta, mamãe continuava
abaixando a cabeça para as ordens da vovó. Fiquei imaginando se comigo
será assim também...
E sorriu.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 2
Fui para o colégio feliz. Faltavam poucos dias para a minha super festa!
Todo mundo foi convidado! Bom, todo mundo "fora-família", é claro. "Nossa
família somos eu, você e sua mãe. O resto é agregado, acessório.", me disse
papai.
Meu vestido é branco e prateado, com alças largas e corte reto. Não quis
aquele modelo "noiva" com saias rodadas e cara de bocó. Vou usar algumas
pérolas pelo cabelo e pescoço, já que minha avó fez questão. Preferi um
estilo mais "adulto", que tirei de uma revista que meu namorado me deu. Só
não fiquei muito satisfeita com a ideia de usar uma túnica de seda.
Estamos juntos desde que mudei para este colégio, no ano passado. Ele é
alto, lindo, com olhos cor-de-mel e um cabelo loiro cortado estilo asa delta.
Quando anda, parece que dança, pendendo de um lado para outro de
maneira despretensiosa e bem desajeitada. Está sempre com a camisa para
fora da calça, o que lhe traz alguns bons aborrecimentos com os inspetores
do colégio. Nada que ele não resolva com um sorriso.
Soube por uma amiga que os amigos dele disseram que eu sou "sem sal
demais para ele”. "Meu tempero é pimenta", foi o que eu disse pra ela. E
rimos bastante disso. Mas foi apenas um trocadilho, porque não acho que
eu tenha qualquer pimenta ou sal. Sou feia, a verdade é essa.
Acho o destino curioso. Eu, "sem sal", nariz reto de uma origem genética
ridiculamente grega, cabelo preto opaco e sem corte há tempos, filha de
uma professora primária e um dono de caminhão ("empresa de mudanças"
é como me refiro ao caminhão que meu pai dirige para fazer as mudanças
da vizinhança). Ele, filho do vice-presidente de uma multinacional do ramo
de perfumes, lindo e charmoso.
- Não diga nada. Você terá tudo o que uma rainha merece.
Era o Júlio, sentado na frente da minha sala, tocando "Time After Time", da
Cindy Lauper, em uma versão voz e violão. Ele estava sozinho. Todo mundo
olhava de longe, quase que faltando coragem de se aproximar e estragar
aquela melodia perfeita. Era hora do recreio e o corredor do colégio estava
cheio. Quando me viu, ele abriu um sorriso. Interrompeu o violão e disse:
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 3
- Bom dia, linda Thea, sou o José, seu novo cabeleireiro, se é que algum
profissional já colocou a mão nesse cabelinho e esta é a minha equipe:
Marcela, minha assistente; Claudia, a massagista; Fernanda, a maquiadora;
e Flavia, a auxiliar de produção para os retoques finais.
- No quarto dos meus pais, que é suíte e tem um pouco mais de espaço que
o meu quarto.
E, claro, certamente está mais arrumado que o meu, onde as paredes são
recobertas de desenhos de olhos e silhuetas, as roupas estão
"organizadamente bagunçadas" e meus livros, bom, dominam o ambiente.
Subindo a escada, José soltou a pérola:
Ri para mim mesma do apelido carinhoso: “Julinho” Sério? Era assim que
ele chama o Júlio? O meu Júlio? Enfim... Certamente eu ia comentar isso
com ele assim que possível... Mas seguimos em frente para o quarto da
mamãe.
A primeira coisa que ele me pediu foi para tomar um rápido banho, lavando
bem o cabelo duas vezes apenas com o shampoo antirresíduos que me deu.
Quando terminei, ouvi o som de um suave piano tocando.
José me deu um roupão com uma lua delicada bordada na gola, me virou de
costas para o espelho e atacou meu cabelo com a tesoura. Atacou mesmo.
Eu só via os fios caindo. Arrisco dizer que perdi uns 15 centímetros de
cabelo. Na hora, eu só pensava no tempo que demoraria a crescer, no
tempo que eu tinha levado para deixar ele crescer, enfim, parei de pensar e
fechei os olhos.
Ok, me sinto uma idiota toda suja de lama. Comecei a divagar em quanto
dinheiro o Júlio deve ter gastado com todo esse paparico e acho que
cheguei a cochilar uns minutinhos, quando fui interrompida pelas batidas
na porta da minha mãe.
- Trouxe café para todos e um prato de comida para Thea. Vocês estão
servidos? - disse, antes de olhar para mim e assustar-se com a lama - Thea,
o que é isso?
- Muito bem... Lama terapêutica... Assim seja... Vou deixar seu prato aqui,
Thea. Quando você se limpar, coma para não passar mal.
- Obrigada, mãe.
Mas logo que ela saiu do quarto, Claudia me orientou a tomar banho e
retornar para finalizar a massagem com óleo de amêndoas. José aproveitou
e me pediu para lavar o cabelo apenas com água e retornar para as
finalizações.
Havia uma mesa posta para mim, com o prato de comida que minha mãe
havia trazido e uma jarra de suco de mamão que eu nem havia reparado.
Salada, frango grelhado e purê de batatas baroas. Um luxo que só eu tinha
vez ou outra, porque a batata baroa é muito cara... Uma tulipa colhida do
jardim da minha mãe completava o mimo.
- Ora, Thea, a beleza é algo que vem de dentro e não de fora. Só estamos
relaxando seus poros para deixar ela sair. Você precisa entender que deve
se cuidar e se valorizar se espera que os outros tenham a mesma atitude e
respeitem você. Somos o que vendemos ser. Você será rainha assim que se
portar como uma. Será linda, sempre que se enxergar linda no espelho.
Suas decisões dependem de como você se coloca. Se olhe, se ajeite e se
admire. Tudo para si mesma. Nunca para os outros. Quando você passar a
se admirar, a opinião dos outros a seu respeito deixará de pesar e você será
feliz. Você vai se amar e se cuidar, independente do Júlio. Mas vamos deixar
de papo... Coma. Ainda preciso secar seu cabelo e deixar as meninas
terminarem contigo.
Comi tudo sem muito sacrifício - já que era apenas uma salada e um
purezinho com frango grelhado - e parti para as tais "finalizações". Secador,
óleo, maquiagem... e a tal auxiliar de produção me bajulando com elogios.
Por fim, ela mesma pegou o meu vestido e ajudou a colocá-lo. E também foi
ela que encheu meu cabelo com as voltas de pérolas. José trouxe um
enorme espelho do carro dele e colocou minha frente.
- Isso é um espelho decente! Aqui você pode apreciar meu trabalho por
completo. Vamos, admire-se! Elogie-se! Respire fundo e infle esse peito.
Olhe reto, nunca para baixo. Você precisa de mais honestidade do que
humildade.
- Você está linda! - disse Flávia, pela enésima vez, cumprindo seu papel da
auxiliar de produção: puxar o saco!
- Aqui está jogo de toalhas e roupão que você usou. São um presente do
Julinho para você.
- Ora, querida, Júlio Cesar. Tudo de Julinho é feito de fios egípcios e bordado
à mão! Um luxo!
Ok. Sem pânico. É dia de festa e eu não vou achar que meu namorado
galanteador é, na verdade, um esnobe... Focalizei em mim mesma. A
maquiagem ficou ótima, devo assumir. Um olho bem marcado com sombra
fumê e um toque esverdeado em cima, batom rosa claro e um toque final
delicado: duas borrifadas de um perfume que eu nunca havia sentido.
Como assim? Quantos presentes ele vai me dar? Comecei a ficar irritada de
verdade! Mas esbocei um sorriso forçado e peguei o vidro sem nome.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 4
Acho que foi Edgar Allan Poe quem disse que "tudo o que vemos ou
parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho".
Meu pai não havia me visto desde antes do "trabalho" de José. Suas mãos
calejadas me seguravam suavemente, esquecendo toda a brutalidade e
virilidade do dia-a-dia em uma dança leve e, por que não, perfeita.
Devo reconhecer que mamãe tinha razão. As rosas deram um tom especial
ao salão. "Sua fragrância impede a embriaguez", dizia ela, em uma
demonstração de fé na crendice popular de seus antepassados. Eu e papai
sempre ríamos muito dessas observações, mas não contrariávamos mamãe.
Um toque em seu ombro interrompeu nossa dança mítica. Era Júlio, lindo,
alto, perfeito e, falando com meu pai!
Senti Júlio enrubescer. Nesse momento, salvo pelo gongo, outras duplas
entraram no salão para dançar também.
- Peço desculpas por isso. Estou ansioso por este momento e aguardando
há meses... Me chamo Júlio, senhor, e se não se importar, terei a honra de
responder a todas as perguntas após a dança e, assim, pedir sua permissão
para namorar a sua filha.
- Senhor Jorge, como vai? - uma voz firme interrompeu papai e todos
observamos o homem imponente, alto, de nariz e rosto bem angulosamente
marcados.
- Ora, Sr. Otávio, creio que, na verdade, foi o senhor quem se mostrou
inoportuno, ainda que imaturidade esteja longe de justificar suas atitudes.
Acho que o Júlio foi perfeito e educado. De mais a mais, papai estava apenas
brincando, não é, papai?
Júlio sorriu, me puxou para perto – bem perto – me deu um beijo demorado
e carinhoso na testa e sussurrou a letra da música no meu ouvido. Nesse
momento, não importava quem estava dançando à nossa volta. Não
importava mais quem tinha dinheiro, quem era mais bonito, quem tinha sal
ou outro tempero. Éramos apenas duas metades de uma mesma alma,
separada nos céus, lutando para voltar à integração. Para mim, o salão
esvaziou e ficamos sós na pista, envolvidos em uma bolha romântica e
íntima:
- If you're lost, you can look and you will find me time after time... If you fall,
I'll catch you, I'll be waiting time after time... - uma voz grossa, mas
incrivelmente afinada, cantava entre sussurros tão próximos do meu
ouvido que arrepiavam minhas entranhas, traziam sensações novas ao meu
corpo, faziam meu coração acelerar e me faziam crer que estava levitando.
- Faço o quê?
- Cria esse clima tão facilmente. Parece que o DJ já sabia o que tocar, sabia o
momento certo para tocar. Uma conspiração a seu favor...
- A seu favor, Thea. O universo conspira a seu favor, tenha certeza disso. Eu
sou apenas uma peça de um grande tabuleiro.
- Não diga isso! Eu sou apenas eu, a Thea de sempre que não sabe como o
famoso Júlio resolveu namora-la...
- E eu sou apenas o Júlio, apaixonado pela incrível mulher que é você e por
todas as possibilidades que me traz todos os dias. Essa música diz muito do
que quero que você saiba...
- Essa música é linda. Mas a melhor versão foi a que você tocou no recreio,
lá no colégio...
Então, ele parou de dançar, olhou dentro dos meus olhos e murmurou:
- Está tudo bem. Só estou emocionada com tudo isso que você disse e com
todo esse momento.
Ele sorriu.
- Hummm... Você foi bem firme com meu pai. Deve ter causado excelente
impressão, já que ninguém responde ao grande sr. Otávio III. Com certeza
ele vai tecer muitos elogios a você mais tarde...
- Eu não sabia que ele vinha. Não sei o que deu em mim... Acho que eu só
quis sair logo dali. Ele estava me assustando.
- Bom, ele costuma fazer isso. Espero que o José e as meninas tenham lhe
tratado bem.
- Gostou?
- Claro... Que frescura! – rimos - Mas você realmente não precisava ter se
incomodado. Mamãe poderia ter me ajudado. E o meu cabelo? Não sabia
que você não gostava dele comprido. Podia ter me dito que preferia que eu
cortasse. Foram muitos anos deixando ele crescer.
- Thea, não se chateie. Quis fazer apenas uma surpresa e achei que o
formato do seu rosto ficaria excelente com um cabelo mais curto. Lindas
pérolas, aliás. Pérolas são sempre muito elegantes. E este pingente aqui? A
pedra é uma Alexandrita?
- Não sei. Está há algumas gerações na família da minha avó. Ela me deu
hoje.
- Entendo. Parece Alexandrita, como as da sua sandália.... Mas venha, vamos
até o jardim. Tenho mais uma surpresa.
Meu coração parou. O que será que ainda tinha pra mim?
Segurou minha mão olhando dentro dos meus olhos com um sorriso, deu
um beijo entre os meus dedos. Sem soltar minha mão, apontou para o
jardim e foi me conduzindo. Seu andar não estava dançante como na escola.
Estava firme, determinado, como seguro de um destino certo. Olhando para
ele, imaginei-o bem mais maduro do que estava acostumada.
- Sabe, Thea, sonhei com você nesse cenário mais vezes do que posso
admitir. Mas nada se compara ao que sinto agora... - disse ele, com o rosto
tão perto que cheguei a sentir seu hálito de hortelã e o calor da sua
respiração.
- Ahn? - eu estava tonta com o beijo, com o cheiro, com o abraço e com
todas as reações do meu corpo ao corpo dele.
- Claro, é ótimo...
- Você está linda, Thea. Não canso de dizer isso. Linda e perfeita.
Ele colocou a mão dentro do bolso do paletó e tirou algo. Uma caixa
pequena de joias com uma imagem de uma lua gravada em cima. Estendeu
para mim.
- Thea!!! Thea, os convidados estão aguardando os seus cumprimentos!
Uma voz feminina ecoou pelo jardim. Era minha avó! Nenhuma das
possíveis interrupções que imaginei tinha minha avó como personagem.
- Já estou indo.
- Voltamos aqui mais tarde. O que está na caixa precisa de uma longa
conversa. Há muito que preciso lhe dizer, lhe explicar...
- Resgato você às onze de onde você estiver. Agora vamos, antes que sua
avó venha até aqui gritando mais...
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 5
Algumas pessoas têm o poder de ver como somos por dentro. Nos despem
com olhos que penetram e sacodem nossa alma de cabeça pra baixo até
descobrirem o que querem. Nem sempre isso provoca arrepios românticos.
Muitas vezes é medo. Puro e simples medo.
- Aquele é o filho do Otávio III?, atirou vovó assim que cheguei perto dela.
- Não importa. - e olhando dentro dos meus olhos com um jeito sério e até
assustador, como se me investigasse por dentro, disparou: - Você está bem?
- Preste atenção na sua alma, Thea. Escute a sua alma. Agora venha. Quero
que você conheça seu primo, Aurélio - e me puxou para dentro do salão.
- Thea, este é Aurélio, seu primo de terceiro grau. Ele mora na Itália, em
Florença, e estuda Neurociências na Università degli Studi di Firenze.
Aos poucos fui percebendo que tudo que eu fazia era imitado por todos.
Não era ela o centro das atenções: era eu. Eu estava coordenando a dança.
Eu nunca coordenava nada! Uma força estranha estava conspirando a meu
favor.
Tudo estava dando certo. Eu não caí da escada na entrada da festa, encarei
o pai do Júlio sem travar (como eu sempre faço quando estou nervosa), o
vestido estava ótimo, papai não teve um chilique quando o Júlio chegou
perto e, agora, eu coordenava os passinhos do funk da galera da escola.
Aproveitei o máximo que pude daquele momento glorioso. Todos riam para
mim, concordavam comigo. Comecei a entender a sensação gloriosa de ser
importante. Quando minha barriga deu o primeiro sinal de fome, corri pra
mesa de frios e belisquei uma fatia de queijo e uma de salame. Eu precisava
voltar logo antes de perder o meu momento.
Gelei ao perceber: a voz grossa, ao meu lado, era do pai do Júlio! Na mesma
hora, um enjoo percorreu meu corpo e eu pensei no fora que ele ia me dar.
Um sorriso fino meio Monalisa surgiu em seu rosto. Com a mão esquerda,
apontou em ângulo largo para a mesa, sugerindo a existência de fartura.
- Não sou uma rainha, Sr. Otavio. Sou apenas uma plebeia curtindo sua
primeira festa.
A Sra. Filomena é uma pessoa sempre muito gentil e doce, mas tenho quase
certeza que ela carrega uma mágoa consigo. Quando olho para ela, vejo
uma luz verde escura. Acho que perdeu um filho. Já ouvi fofocas de que ela
o matou quando tinha 16 anos, mas acho difícil acreditar. Ela tem uma
clave de sol tatuada no braço esquerdo e uma lua no direito. Pequenos, mas
bem bonitinhos.
- Vou bem. Gostaria mesmo de conversar com o senhor sobre o dom para
música do Júlio...
Dessa vez, Júlio se juntara ao grupo. E como ele dançava bem... Seu corpo
mexia com a música e acompanhava todos os passos como se fizesse isso
todo dia, como se dançasse comigo todo dia. Eu nunca tinha visto ele
dançar antes e fiquei um tanto impressionada. Era muito charmoso. Até o
jeito desajeitado dele parecia proposital e rítmico.
Senti o calor do seu corpo suado. Ele já estava sem o paletó e as mangas da
camisa social estavam dobradas até a altura do cotovelo. Faltava pouco
para as 23 horas.
Minha cabeça parou junto com meu coração, tentando entender o que era
aquilo tudo. Como se o chão desaparecesse, me senti caindo. Fechei os
olhos com força e vi a mulher do sonho, olhos firmes em mim, testa
expressivamente nervosa. E ela disse: "Acorde, Thea. Use Égido a seu favor."
Abri os olhos.
Égido caminhou até a pista de dança, triunfante com sua taça de vinho
temperado com mel, e eu fiquei ali, tentando imaginar do que diabos ele
estava falando. Só pode ser dinheiro... Ele só pode me achar pobre demais
para o irmão dele. Deve me achar uma oportunista. Eu precisava dizer a ele
boas verdades! Não estava interessada em dinheiro!
Caminhei, com olhos fixos nos olhos de Égido, sentindo um misto de medo
e vontade de reagir, querendo dizer poucas e boas para ele, dizer que ele
não me afastaria do Júlio. Fui organizando as frases na cabeça, me sentindo
irritada e aviltada. A maneira como ele enfatizou "rainha do sol" soou como
um xingamento, mas eu não entendi direito de que tipo seria. Então, ele
piscou para mim e uma briga se instaurou no salão.
- Venha, Thea. Eles beberam demais, mas vão ficar bem. Os seguranças do
salão vão intervir em breve e a dona do salão mandou encerrar a festa.
- Chega, Thea. Não quero arriscar ver você e sua mãe feridas. Ela e sua avó
já estão indo para o carro.
- E o Júlio?
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 6
A viagem do salão até minha casa foi longa e em silêncio. As cenas da festa
ficavam se repetindo na minha cabeça. Papai disse que eles haviam bebido,
mas Júlio não estava bebendo. Ou estava? Meu pai disse que sim. Quem era
aquele garoto brigando com ele? Por que eles estavam brigando?
Aurélio foi até a minha casa umas duas vezes. Tomou café com vovó e ela se
esforçou para estabelecer um assunto entre eu e ele. Mas eu não conseguia
conversar e, normalmente, me desculpava e saía da sala. Na segunda vez,
ele me levou um livro de presente. Agradeci e fui para o quarto, sem nem
desembrulhar o pacote.
Na minha cabeça, Égido tinha alguma coisa a ver com a briga. Mas por que
colocaria o irmão em perigo? Ele disse que acabaria com a festa, mas dessa
forma? Três semanas depois e o Júlio ainda não tinha voltado. Égido não
dava notícias na escola. Seu jeito de me olhar, com escárnio, um jeito meio
vitorioso, me feria como chagas.
Eu tinha coisas a serem ditas a ele, mas de alguma forma o universo
conspirava contra. Repassei a cena da festa inúmeras vezes. Lembrei que a
mulher dos sonhos me disse para eu usar Égido a meu favor. Como, se ele
me tratava daquela forma?
Passei a ouvir Chopin e Brian Crain. "Secret Letter" se tornou uma das
minhas músicas favoritas. Dizia muito, sem nenhuma palavra. Fui
aprendendo a tocar piano, me perdendo e me achando em partituras
antigas e escritos amarelados. Aprendi a apreciar harmonia e métrica
musicais.
Meu pai viajou para um trabalho com o caminhão uns quatro dias depois da
festa e ainda não tinha voltado. Foi uma viagem repentina. Uma mudança
grande no Rio de Janeiro de um antigo cliente que não confiava em mais
ninguém para o serviço.
Minha avó resolveu ficar no Brasil. Segundo ela, precisaria manter minha
cabeça ocupada. E o fez. Estudos sobre gregos e romanos, aparentemente
sua grande área de conhecimento, tomavam todo o meu tempo livre em
casa. Descobri muito sobre ela. E, principalmente, reconheci sua erudição.
Ela não era soberba. Era extremamente inteligente e racional.
Vovó me fez ler “Ilíada” várias vezes em voz alta. Quando eu estava
cansada, ela lia para mim, usando uma entonação diferente que dava vida
às palavras de Homero. Livros sobre o Vale dos Reis e até mesmo sobre as
cheias do rio Nilo. E eu devia usar o colar todos os dias. Segundo vovó, ele
me protegeria do mal.
A estranha mulher do sonho aparecia cada vez mais, mas não voltou a falar
comigo. Só me olhava. Um olhar parecido com o de Égido, na verdade, me
desafiando, como se eu tivesse que fazer algo que não fazia.
Como a casa era pequena, vovó dormia na minha cama e eu, no chão ao
lado dela. Cada vez que eu acordava de um pesadelo, vovó cantava uma
linda canção de ninar em italiano, que me acalmava e me remetia a um
lugar de paz interior. “Ouça sua alma.. ouça sua alma...”, repetia como um
mantra.
Com a ausência do papai, o clima em casa era mais leve, sem brigas, salvo
as cada vez mais raras discussões da mamãe com a vovó. Acho que mamãe
não queria que eu estudasse nada fora dos assuntos da escola, mas vovó
dizia "cultura, cultura" e encerrava o assunto.
Cinco semanas após a festa, papai voltou. Com ele, a notícia de um bom
emprego no Rio de Janeiro e a necessidade de nos mudarmos em pouco
tempo. Mamãe não questionou, como se já esperasse a notícia. Senti como
se eles já houvessem combinado isso há algum tempo. Estavam
mancomunados para mudar de Araras. Relutei, esbravejei, briguei... Pedi
ajuda à vovó. Tudo em vão. A mudança já estava certa e eu não tive voto na
questão.
Incrivelmente, acho que pela primeira vez desde que se conhecem, vovó
concordou com ele, reforçando os argumentos sobre a importância de eu
me afastar daquele lugar.
- E o Júlio, papai? Não tenho nenhuma notícia dele nem estando aqui,
imagina se eu sair daqui... Como vou poder vê-lo quando ele voltar?
- Não irá. Outros rapazes aparecerão na sua vida. Você é uma criança e eu
nunca estive confortável com esse namorico.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 7
Vovó voltou para a casa dela assim que a mudança foi esquematizada. Ao se
despedir, me deixou com uma pilha de novos livros e um papel onde
anotou seu endereço. Os livros incluíam muitos clássicos, mas também
vário sobre história antiga. Muitos bem chatos, devo confessar.
Ela me fez prometer que escreveria pelo menos duas vezes por mês e que
continuaríamos estudando à distância, através de cartas. Prometeu que me
escreveria, enviaria livros e que eu nunca estaria sozinha. Para me ajudar,
abriu uma conta no meu nome, na qual ela depositaria uma espécie de
"mesada" para eu comprar livros e material de estudo.
“Sua alma é sua melhor companhia, Thea. Sempre preste atenção nos seus
instintos”, ela me disse. E naquele momento, soube que sentiria falta dela e
da canção de ninar balbuciada na madrugada. Vovó falava muito sobre
"alma" e realmente agia como se a minha falasse comigo através dos
sonhos. Ela escutava atentamente o que eu dizia ao acordar de um
pesadelo, interpretando-os silenciosamente.
Fui obrigada a estudar muito Geografia. Mas confesso que ele me lembrava
a professora Filomena. Ambos me tratavam com muito carinho e paciência,
como os tutores gregos (sem qualquer conotação sexual, devo frisar).
Sobre Hórus, disse pouco. Apenas que traz proteção. Preciso saber mais
sobre Hórus.... Vovó nunca era tão concisa em suas explicações e me deixou
curiosa. Enfim, com a carta da vovó e sem conseguir falar com ela sobre o
sonho, interpretei do meu jeito: eu precisava de proteção na escuridão.
As cartas da vovó eram bem esclarecedoras, mas o melhor do meu dia eram
os longos papos com a mamãe. Desde os acontecimentos do meu
aniversário, sinto como se ela me entendesse mais ou procurasse me
entender melhor. Ela passou a perguntar sobre a mulher dos sonhos, sobre
o que eu havia lido naquele dia, sobre o que eu havia entendido, sobre o
que eu estava sentindo, sobre a escola.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 8
Olhos cor-de-mel cheios de lágrimas. Esse era o sonho mais triste que eu
tinha. Era o sonho que mais mexia comigo. Eu sempre acordava
desanimada. Muito tempo se passara, mas eu continuava a lembrar daquela
cena. Meses, pra ser sincera.
E eu ainda não havia tido notícias do Júlio. Nem uma carta! Mas, também,
como ele poderia me enviar carta se nem sabia para onde eu tinha me
mudado? Eu não falava com ninguém sobre ele, exceto com o psiquiatra
que eu era obrigada a ver uma vez por mês. Mas ele não expressava
nenhuma opinião, nem me dava ideias. Eu podia falar e falar o quanto eu
quisesse, mas ele não desenvolvia este assunto.
Meu pai traiu minha mãe. Mas não foi qualquer traição, dessas com a
secretária ou com a vizinha. Ele a traiu com a mãe do Júlio! É sério! Com a
mãe do Júlio! Tantas mulheres no mundo e ele escolheu logo ela! Como,
quando e onde eles se conheceram é um mistério que aguça minha
curiosidade e trava meu instinto. Como eles vinham se encontrando? De
onde saiu esse romance? Minha vida saiu do eixo, do prumo.
Como ele pôde fazer isso? E logo com ela? Com a mãe do cara que todo
mundo sabia que eu queria notícias! Por que ninguém me dava notícias do
Júlio? Por que meu pai, especificamente meu pai, não me dava notícias do
Júlio? Era um tabu louco criado pelas esquisitices da família, mas ele estava
saindo com a mãe do cara! Não é possível que não soubesse nada!
Posso dizer que meu aniversário de 15 anos foi um marco na minha vida.
Muita coisa vem acontecendo e eu sinto como se minha alma flutuasse
sobre a minha vida. Parece que estou olhando de fora. A vida está passando
e eu estou só "acompanhando", como uma idiota e inativa expectadora.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 9
Duas vezes por semana eu visitava meu pai. Passava lá depois da escola
para jantar com ele. Dormia lá e ia embora no dia seguinte de manhã. Não
encontrava a mãe do Júlio. Acho que meu pai procurava mantê-la afastada
quando eu ia lá. Não conversava sobre ela com ele, nem sobre a minha mãe.
Ele queria falar, mas eu cortava o assunto.
Eu tinha muitas dúvidas, mas não queria ouvir dele, não queria ouvir a
"versão" de ninguém. Eu só queria a verdade e nem ele nem minha mãe me
dariam a verdade. Uma raiva enorme tinha dominado meu coração. Eu não
chorava mais nem por Júlio, nem pelo papai. Então, quando ele resolvia
puxar um assunto mais sério, eu falava da escola.
Racionalizei tudo, fugi dos sentimentos. Endureci. O psiquiatra me disse
que eu criei uma espécie de casca, que me impedia de lidar
sentimentalmente com a realidade. Ele disse que, enquanto eu não
separasse choro e chorume, não teria paz. Metáfora estranha para “retirar
da sua vida o lixo”.
Hoje, quando fui visitar meu pai, acabei surpreendida e repreendida, ainda
do lado de fora. Não pude sequer entrar na casa do meu pai. Da porta
mesmo, meu pai deu um show aos gritos, acompanhado pela namorada.
Pela primeira vez, eu a encarava, escondida atrás do meu pai como a cobra
de Adão e Eva: sorrateira. Decorei as ásperas palavras de meu pai: “Você
escolheu o caminho das loucuras da sua avó. Você me apunhalou pelas costas.
Não quero mais ver você. Nunca mais. Você não é mais minha filha”.
E assim, fui expulsa da casa do meu pai por ele e pela nova namorada, que
abria um sorriso sarcástico que me lembrou Égido. Só pude sentir mais
raiva dela. O que eu fiz pra ele? Não sei. O que eu fiz naquele momento? Saí
correndo da casa dele, em plena terça-feira, às 10 horas da noite, sozinha,
em meio a uma comunidade carente, desconhecida e famosa pelos tiroteios
e invasões policiais. No meu peito, o amuleto da vovó queimava.
Estava tão atordoada que peguei o ônibus errado, indo pra Copacabana.
Depois peguei outro que fez a volta ao mundo, passando pelo centro da
cidade antes de chegar à Tijuca. Demorei a chegar em casa. Tempo bastante
para colocar a namorada do meu pai na lista dos chorumes e o meu pai na
lista das lágrimas secas.
Um copo de água foi tudo que consegui engolir. Eu olhava para o horizonte,
vendo as luzes da cidade acendendo e apagando, pessoas indo e vindo. Bebi
aos goles e cada gole queimava na garganta como álcool vagabundo. Raiva?
Acho que sim. Agora, meu coração endureceria de vez.
Passei pelo quarto da minha mãe e notei um vidro de remédios e uma taça
de vinho na mesa de cabeceira. Liguei o ar refrigerado, cobri a minha mãe,
fechei o vidro de remédios, peguei a taça para levar para a cozinha e
cochichei no ouvido dela que eu já estava em casa.
Uma vontade de cuidar daquela pessoa tão forte e, ao mesmo tempo, tão
fragilizada, tomou conta de mim. Dei um beijo suave na bochecha dela e fiz
questão de dizer que a amava. Ouvi ela sussurrar o nome do meu pai. Saí do
quarto com o peito ainda mais apertado.
Um dos livros era uma lição de italiano para iniciantes. Isso pode ser útil. O
outro, um livro que ensinava a cifrar e decifrar mensagens "para os meus
segredos". Em cima da minha mesa, sobre todos os livros, o pacote do livro
dado por Aurélio. Abri e me deparei com um diário de desenhos em branco.
Na contracapa, a dedicatória: "Seja quem você quiser ser, nunca o que te
impõem ser. Construa-se e seja feliz consigo mesma. Conte comigo. A.C."
Peguei o pijama e fui até o banheiro. Achei bem legais aquelas palavras do
Aurélio. Ele devia ser um cara bacana. Com a esperança de que a água fria
deletasse as imagens doloridas da cabeça, me enfiei em uma chuveirada
gelada, que só serviu para me dar uma considerável dor-de-cabeça.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 10
O tempo passava e eu não tinha notícias do Júlio, nem do meu pai. O buraco
no peito ficava cada vez maior. Minha vida estava triste e estranhamente
preenchida. Eu lia e estudava ainda mais. Me escondia nos livros e nos
desenhos, que passei a centralizar no caderno que o Aurélio me deu.
Fria como nunca havia sido antes, ela me disse que sabia que, cedo ou
tarde, meu pai acabaria decepcionando minha mãe e a mim. Disse que
minha mãe tinha que aprender a se controlar sozinha. Que ninguém
poderia ajuda-la. Não me conformei. Não consigo ainda ser tão racional
quando se trata de mamãe. Ela é choro, não chorume.
Nesse mesmo dia, tive uma outra consulta com o psiquiatra. Descobri que
ele é um senhor até engraçado, bem atencioso e gentil. Ouve atentamente e
dá poucas opiniões. Fala pouco, como que fazendo intervenções
elucidativas ou tentando me fazer ter os próprios insights.
Nesse dia, ele me disse que o meu "diagnóstico" era acúmulo de energia
com excesso de inteligência. Nem sei se isso é viável em termos médicos,
mas me senti até lisonjeada. A sugestão? Desenhar e fazer uma arte
marcial!
- Precisamos fazer você liberar essas energias. Canalizar. Por que você não
desenha tudo o que vem à sua cabeça e nós conversamos na próxima
sessão? Também queria que você escolhesse uma arte marcial para fazer.
Qualquer uma. Só quero que você se dedique seriamente a isso.
- E minha mãe?
Não era a resposta que eu esperava. Queria que ele tivesse um remédio pra
eu dar pra ela parar de beber. Ou me dissesse pra esvaziar as garrafas de
vinho e colocar suco de uva. Ou, sei lá, dissesse pra eu internar minha mãe
em uma clínica de recuperação. Ele é o médico, afinal de contas!
- Ora, Thea, seus estudos sobre o Egito estão te levando por caminhos
ótimos nos desenhos - disse o médico, sem tirar os olhos dos papeis.
- Obrigada, Doutor. Mas não tenho estudado Egito. Acho que são memórias
desses últimos tempos.
- Não. Sonho com ele muitas vezes. Mas a mulher esquisita me visita quase
todo dia.
- Sim, Cleópatra. Conforme seus desenhos, você sonha com Cleópatra. Você
não sabia?
Fez anotações em seu papel A4 branco preso com clips ao maço de outras
tantas coisas anotadas a meu respeito. Acho até que já era uma resma
inteira!
- Eu vejo essa criatura há anos. Foi ela quem apareceu no dia da minha festa
de 15 anos falando sobre o brilho do sol.
- Sim, lembro disso, mas achei que sua avó já tivesse iniciado você nos
estudos sobre Egito por esta época. Fale mais das pirâmides e túmulos.
E assim, nosso papo prosseguiu, quase que com uma aula de Arquitetura. O
médico entendia disso, também...
Entrei no ônibus e lembrei da última vez que fiz esse percurso. Hoje em dia,
talvez o Krav Magá não seja tão esquisito na minha rotina. Preciso mesmo
de uma atividade física. Puxei o caderno e comecei os desenhos.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 11
Chegar em casa nunca era muito fácil. Desde a separação, encarar minha
mãe e sua tristeza evidente era como furar meu peito novamente,
mantendo uma ferida eternamente aberta, impossível de cicatrizar. Via de
regra, ela estava chorando silenciosa no sofá olhando para a mata no
horizonte, perdida em pensamentos e lembranças. Cada vez ela bebia mais.
Tinha sido afastada do trabalho, depois que chegou trocando pernas em
uma aula.
Quando abri a porta da sala me deparei com minha mãe aos prantos e
soluços, uma mulher inteligente e forte que havia desabado. Nitidamente
esgotada, nitidamente destruída e entregue.
Ela voltou a chorar, mas acho que agora estava se lembrando da traição.
Apenas meses após a separação, mas ela disse que ele bebia "há anos"...
Como posso não ter reparado nisso?
- Mãe, fique calma... Me explique isso direito. Doente como? Como você sabe
disso? Ele ligou?
- Não, minha filha. A esposa dele, namorada sei lá, veio aqui. Ela veio aqui! E
estava tão feliz e exultante... Elegante, até. Arrumada, maquiada, pomposa.
Feliz? Como ela podia estar feliz, Thea? Ele está doente, meu Deus!
- Mãe, isso não importa. Não quero saber dela, quero saber dele. Onde ele
está? Na casa deles?
- Sim, Thea.
E desabou em lágrimas mais uma vez. Abracei minha mãe e ficamos assim
até ela adormecer, em silêncio e fragilizada. Mais uma vez atingida por um
torpedo. Não sei se ela aguenta muito mais.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 12
Olho para o lado e vejo janelas de vidro fumê reluzindo a luz do sol, mas
quando olho para o céu, é noite. Uma noite sem estrelas e sem lua. Uma
noite escura, nublada e sombria. Nuvens cinza esfumaçadas, escondendo
toda a beleza do céu. Sombria como ela. De repente, vejo uma mão
estendida para mim. Sigo o braço até o tronco e vejo uma lua tatuada, mas
não há rosto. Caio da cama e acordo.
Lembrei de algo que minha mãe disse ontem: "um homem de tantas posses".
Do que será que ela falava? Preciso me lembrar de perguntar, já que meu
pai era duro como coco verde. Olhei para o relógio e já passava de 4 da
manhã. Peguei o telefone, fiz contas rápidas de fuso horário e liguei para a
Itália.
- Vó, meu pai está com câncer. Mas estou preocupada mesmo com a minha
mãe. Não acho que ela está lidando bem com tudo isso. Está bebendo cada
vez mais e esse baque é o tiro de misericórdia... Ela não vai aguentar.
- Cansei dessa sua nuvem de ignorância, Thea. Achei que você estivesse
estudando sua história, seus antepassados, seu destino. Já é hora de você se
informar. Seus pais mantiveram você longe de tudo, mas você precisa
acordar para a vida e para suas responsabilidades. Ptolemeu Auletes foi o
pai de Cleópatra, sua madrinha de alma. Assim como o dele, o destino de
seu pai era certamente a bebida, a boemia e a doença.
- Chega, Thea. Estou indo para o Brasil e nós precisamos ter uma conversa
séria. Leia os livros que lhe enviei com urgência. Estude. Descubra quem foi
Cleópatra, entenda seu legado espiritual e suas responsabilidades. É o
mínimo que você deve fazer. Deixe sua mãe comigo. Vou enviar um médico
hoje mesmo para conversar com ela.
- Minha mãe está dormindo... Eu-eu estou indo visitar meu pai daqui a
algumas horas.
Fui até a cozinha tentando não fazer muito barulho. Não sei até que horas
os 2 comprimidos de Frontal segurariam a mamãe dormindo. Fiz um café
bem forte, mas não havia nenhum vestígio de fome em mim. Eu queria
sumir, essa era a verdade.
Ele estava sozinho, para minha sorte. Não queria lidar com aquela mulher
nesse momento. Segundo o médico, eu era a primeira pessoa a visitá-lo em
semanas. Me explicou que ele poderia me ouvir, mas estava desenganado.
Estavam apenas aguardando sua morte. Aparentemente, aquela mulher
horrorosa não tinha autorizado a cirurgia dele, mesmo com quarenta por
cento de chance de cura.
Olhando meu pai, não consegui chorar ou sentir pena. Sentia apenas a raiva
do meu coração. A raiva acumulada desde a minha festa. Raiva de Égido, do
sumiço do Júlio, dos sonhos estranhos. Raiva de tudo que ele tinha feito.
Raiva de ele ter dito que não deixaria a mim e à minha mãe e, no entanto,
ter nos trocado pelo engodo da mãe meu namorado. Bom, não era mais
namorado. Mas, enfim...
Foi tudo que eu consegui dizer, sem lágrimas, sem abraços e sem dramas.
Sem chorume. Seca, fria, estranhamente distante daquela cena triste. Para
mim, aquele corpo já não trazia mais a figura carinhosa que lia pra mim
quando eu era criança, que me balançava no parque e que dançou comigo
na festa de 15 anos.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 13
Não era um livro comum. Era escrito à mão e encadernado para parecer um
livro editado. Na primeira página, em letras grandes e maiúsculas, estava
escrito o que, acredito, fosse o título do livro "1963-1986, Klaus Von Uhlav".
Fui direto para a página marcada. Peguei a pulseira e li "Klaus Von Uhlav α
24/11/1925 / Ω 17/08/1997". A data de hoje... Meu coração acelerou. Não
é possível que ele fosse Klaus Von Uhlav.
- Como?
Me assustei, mas não deu tempo nem de processar o que tinha ouvido,
quanto mais ver o rosto do homem que balbuciou no meu ouvido. Uma
confusão se instalou quando uma mulher de cabelo curto acertou um único
golpe certeiro direto na garganta do cara. Ele caiu desmaiado na cadeira da
frente e a mulher desceu do ônibus. Só consegui ver uma tatuagem em
forma de lua na nuca dela.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 14
Ela deu ré até esbarrar no sofá e eu disparei, já sem os freios na língua que
permitiam dar notícias ruins devagar.
Ela me interrompeu.
- Sim, mãe. Sinto muito. Mas ele estava em coma induzido, sofrendo, muito
magro e a esposa dele não autorizou nova cirurgia. Aliás, ela o abandonou
lá, segundo o médico. Ele faleceu logo que eu saí.
- Ah, Thea... Seu pai era um homem tão bom, tão vivaz. Gostaria de ter ido
visitá-lo, mas nem vi você sair... Podíamos ter ido de carro. Acho que dormi
demais.... E ele estava abandonado? Coitado... Eu devia ter imaginado que
aquela mulher não ficaria ao lado dele... Mas, Thea, o Hospital do Câncer é
longe. Você não pode se arriscar dessa forma.
- Meu anjo da guarda é atento. Quase fui assaltada no ônibus, mas uma
menina acertou o ladrão e apagou ele com poucos movimentos. Muito legal!
Quero aprender uma luta também... Será que era Karatê? O doutor Luiz já
tinha me dito pra eu aprender uma luta... Krav Magá eu acho... O que você
acha?
- Hummmm.... Pode ser útil, mas falamos depois. Ela tinha alguma marca? -,
minha mãe ficou séria e sombria.
- Uma guardiã. Sua avó me ligou. Deve ter mandado eles atrás de você.
Precisamos conversar...
- O Klaus... Ele... Bom, ele foi o amor da sua avó... – os olhos dela estavam
esbugalhados e assustados.
- Mãe, olhe na pulseira... Acho que deram uma data pra ele morrer... Que
coisa horrível, né?!
- Hummmmm... Acho que sim. Tive vontade de tomar hoje pela manhã.
- Nenhuma.
Respirei aliviada. É difícil demais acreditar, mas preferi não insistir para
não instigar.
- Mãe, estou perdida. Que irmandades são essas? Nós somos mesmo
descendentes de Cleópatra? Você também sonha com ela?
- Sim, todas nós há séculos. Você lembra daquela escultura dos filhos
gêmeos de Cleópatra e Marco Antonio? Somos descendentes de Alexandre
Helios. Lembra que ele aparece com o Sol sobre sua cabeça, enquanto
Cleópatra Selene aparece com a Lua? Estão abraçados... Helios, a
personificação grega do Sol. E Selene, a deusa grega da Lua. Lembra dessa
parte? Você precisa estudar! Bom, Cleópatra fazia parte de algo muito
maior do que o noticiado nos livros. Ela era a rainha do Egito, mas não só.
Foi a maior rainha da Irmandade do Sol, espalhada por diversos lugares.
Lugares onde o sol nasce, digamos assim. Com o passar do tempo, a
Irmandade cresceu e se espalhou pelo mundo, muito além do Império
Romano.
- Irmandade?
- Escute, Thea... Pergunte depois. Espere eu terminar. Bom, vai ser mais um
resumo... A história é muito maior do que isso... A Irmandade começou
muito antes de Cleópatra. Hatshepsut foi a primeira faraó mulher, durante
a XVIII Dinastia do Novo Império. Foi uma excelente faraó. Trouxe muita
prosperidade para o Egito. Ela era filha de Tutmés I, mas, na verdade, foi
gerada pelo deus Amon-Rá e Ahmés-Nebetta.
- Mas o que aconteceu depois que Cleópatra morreu? Não houve mais
nenhuma mulher na mesma posição, não é?
- Bom, quando ela procurou Júlio Cesar, a Irmandade do Sol não apoiou sua
decisão de unir-se a um romano. Seria uma união espúria, basicamente,
ainda que Cleópatra não pensasse em casar com ele. Tentaram matá-la
algumas vezes, mas Cleópatra conseguiu expurgar seus opositores mais
ferozes, além de ser uma mulher forte, de carisma e sedução inegáveis. Não
sedução no sentido sexual, você entende, né? Ela seduzia seus
interlocutores com uma clareza de pensamento e uma retórica impecáveis.
Ela nunca amou Júlio Cesar, nem sequer cogitou se unir a ele em
matrimônio. Mas com Marco Antonio foi diferente. Ela queria casar com
Marco Antonio e a pressão da Irmandade não permitiu. Então, ela tentou
manter sua alma no poder, mesmo que casada com quem escolhesse.
Alguns membros mais antigos da Irmandade acreditam que foi a poção que
ela ingeriu que a matou, mas também passou parte de Cleópatra para seus
descendentes, nós. O fato é que Cleópatra manteve Alexandria no mapa e
fez seu nome, especialmente dentro da Irmandade. Não se sabe ao certo,
mas nossa família sempre sonhou com Cleópatra e isso manteve nossa
legitimidade no trono. Muito foi dito sobre ela. Muitas mentiras. E pouco é
conhecido pela humanidade. Alexandria se espalhou e virou uma cidade do
tamanho do mundo. Estamos em todos os lugares. Sua avó é a rainha atual,
mas precisa passar o reinado para você o quanto antes. Ela quer prepará-la
para isso...
- Quando casei com seu pai, fui deserdada do trono pelas regras da
Irmandade. Ninguém nunca achou o Papiro do Sol, escrito pela própria
Cleópatra. Eu mesma acho que esse Papiro é uma lenda... Enfim, quando
casei com seu pai, é como se eu tivesse me unido a um espúrio também, por
assim dizer. Pela ordem, eu deveria casar com um membro da Irmandade.
Cleópatra casou com dois irmãos. Não faça essa cara de nojo, Thea. Era
costume da época. Uma forma de manter o reinado na família. Com os
avanços da medicina, as descobertas sobre possíveis deformidades e as
adaptações culturais do mundo, o casamento entre irmãos de sangue foi
abolido da prática da Irmandade. Sua avó mesmo casou com um primo
distante.
- Cale-se, Thea. Tudo isso é muito maior que você e os costumes ocidentais
modernos. Acreditamos que uma parte da alma de Cleópatra mora nas
mulheres de nossa família, através do tal ritual mágico.
- Mãe, por favor, isso é demais. Somos uma espécie de reencarnação? Fala
sério...
- Thea, você não anda estudando nada! Estou muito aborrecida com você!
Acreditamos na imortalidade. A alma imortal vive após a morte do corpo
físico. Cleópatra conseguiu essa imortalidade da forma mais real que se
pode conseguir. Não existe apenas a forma física, e sim, oito partes
imortais, que sobrevivem à morte. Ka, nosso centro de energia; Ba, uma
espécie de espírito físico; Akh, resultado da união do Ba e do Ka, que é o
nosso intelecto, nossos desejos, intenções; Sahu, nosso corpo espiritual;
Sekhem, a força vital do homem; Ib, nosso coração, nossa fonte de bem e
mal, nosso caráter; Ren, nosso nome verdadeiro atribuído por Ptah, vivo
conforme seu nome for falado; e Shwt, nossa proteção. Cleópatra passou
parte da alma para nós. Passou seu Ba.
- Ora, Thea, você ainda não entendeu? Cleópatra era uma bruxa!
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 15
- E por que ela parou de falar contigo quando você casou com meu pai?
- Não sei. Simplesmente, parou. Acho que ela não fala mais com a sua avó,
também.
- Por que?
- Não sei, Thea. Parou quando sua avó casou com seu avô. Ela seguiu as
regras da Irmandade, mas não seguiu as regras da própria Cleópatra, eu
acho. Sei lá... É confuso para mim. Se o tal Papiro do Sol existe, isso
supostamente está escrito nele.
- São classes. Quatro classes. Nossa família está no cume. Há ainda a classe
média, formada pelos comerciantes; uma classe baixa e uma de escravos.
- Escravos?
- Bom, na nossa Irmandade, os escravos não são assim como no Brasil. Eles
têm alguns direitos e podem ser libertados. Mas, sim, em suma, são
escravos. Serventes. Subalternos. Os guardiões, por exemplo.
- Por isso você bebe? Por isso minha avó e meu pai discutiam tanto?
- Digamos que sim e sim. Sua avó queria iniciar você desde cedo nos
estudos da Irmandade, mas eu e seu pai sempre mantivemos você afastada
disso. Queríamos que você seguisse seu próprio caminho, independente
das corrupções e responsabilidades da Irmandade. Lembra do livro que te
demos nos seus 15 anos? Eu ganhei do seu pai quando nos conhecemos.
Leia, assim que puder e eu te explico essa parte. Seus sonhos com Cleópatra
foram se tornando cada vez mais constantes. Até que ela falou com você
também. No seu aniversário, quando você acordou assustada, eu sabia que
ela tinha falado. Quando sua avó chegou, me perguntou se ela já tinha se
manifestado plenamente, por isso estávamos discutindo... E trouxe o
amuleto de Ísis, que tem o objetivo de manter o mal afastado de você. Ele
"atrai" os guardiões, de certa forma.
- Mas como a tal guardiã me achou, se é que era mesmo uma dessas?
- Eles são muitos, Thea. Pessoas que você nem imagina. Os melhores são
direcionados para a guarda real. Bom, os guardiões que acompanham sua
avó. São treinados para defender a rainha onde quer que ela se encontre.
Treinam Krav Magá desde cedo. Na maioria das dinastias, o faraó era
apenas o rosto. Cleópatra foi o cume e o fim, já que Roma assumiu depois.
Nesse momento, quando Roma entrou no cenário egípcio, criou-se a
Irmandade da Lua, os filhos de Roma, filhos de Cleópatra Selene.
- Se você tivesse lido e estudado, não estaria assim. O reino de um faraó era
passado através das princesas, por isso a preocupação com elas e, assim,
com você. Você carrega o amuleto no peito. Eles sabem que você é. Todos
os seus súditos. As mulheres egípcias sempre foram mais independentes
que as de outras civilizações. Estudamos, nos informamos, lideramos.
Somos figuras fortes. Criadas para dominar.
- Uma das exigências do seu pai para que sua avó viesse para o seu
aniversário foi manter os guardiões afastados.
- Quando seu pai casou comigo, passou a ser da realeza, querendo sua avó
ou não. Se não tivéssemos você e algo acontecesse à sua avó, eu sou a
próxima na linha de sucessão, independente de com quem me casei. A
linhagem da nossa família deve prosseguir.
- Bom, querida, não sei se era guardião ou apenas alguém na festa, mas
precisamos conversar sério sobre o Júlio.
- Sim, Thea, agora. Agora você está conhecendo a verdade. Quero explicar
logo tudo. Estou com a sensação de que, se você soubesse desde sempre,
tudo teria sido diferente. Mas fico feliz que eu esteja conseguindo conversar
com você antes de qualquer outra pessoa. Mas, enfim, o Júlio... Júlio faz
parte da Irmandade da Lua, descendentes de Cleópatra Selene. O objetivo
da Irmandade da Lua é unir Sol e Lua, como na escultura. Uma união que
dominará o mundo de uma forma imprevisível no eclipse da lua azul.
- Não?
- Sim, sua avó não gostou quando viu Otávio, mas gostou menos ainda
quando viu você com o Júlio.
- Mãe, é muito para mim... O Júlio ainda é muito importante para mim...
Tudo isso está me deixando tonta. Estou perdida, minha cabeça está
doendo. Não quero café. Vou para o meu quarto...
- Mãe, já estou afastada dele. Vocês conseguiram. Não sei nem onde está o
Júlio... E, de mais a mais, tem os espiões-guardiões espalhados pela rua!
- Thea! Tudo isso é muito maior do que você. São milhões de pessoas
subordinadas à mesma rainha, no mundo todo. Como uma única nação,
harmônica e auto preservativa. Você consegue entender?
- E você, mãe? Por que você não assumiu se tudo é tão maior assim?
- Eu era muito jovem, Thea... Eu... eu me apaixonei pelo seu pai. Ah, Thea...
seu pai foi um homem muito compreensivo comigo.
- Tão compreensivo que casou com a mãe do Júlio! Mãe, ele casou com a
mãe do Júlio! Ele te traiu muito mais profundamente do que eu imaginava.
- A mãe do Júlio... Bom, como vou explicar... Eu acredito que tenha sido
armado para tirar seu pai do seu caminho. E eles conseguiram. Tenho
quase certeza que o Otavio ordenou à esposa que seduzisse seu pai para
que ele se afastasse de você. E ela o envenenou contra você e contra mim.
- Mãe, me poupe! É muita informação... Que homem enviaria a própria
esposa nessa "missão"?
- Um homem frio que confia na esposa e que faz qualquer coisa pelos seus
objetivos. Ele é um homem frio, Thea. Quem melhor do que a esposa, que
ele escolheu para ser sua mais fiel companheira, para um trabalho de tal
importância?
- E por que o Júlio não apareceu esse tempo todo? Eles conseguiram tirar
meu pai do caminho...
- Mas eles precisavam que você estudasse para se tornar rainha. Você ainda
estava crua demais e não serviria aos propósitos da Irmandade da Lua.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 16
Pela primeira vez, os livros não me ajudaram em nada. Eu olhava para eles,
eles olhavam para mim e nenhum deles chamou a minha atenção. Não
conseguia ler nada. Nada, exceto o tal caderno do falecido Klaus – será que
era a tal criatura da cadeira de rodas do hospital? Isso é tão fantasioso! – e
comecei a ler os poemas. Mais do que poemas, eram mensagens. Era uma
história contada com poemas e desenhos, mapas e rotas, instruções. No
fundo, era uma história de amor. Dele e da vovó.
"Éramos jovens demais, mas feitos um para o outro como a lua e o sol que,
apaixonados, se encontram às escondidas no mar azul de casas brancas. Lá
naquela encosta, está marcado o nosso amor." Profundo... Brega, mas
profundo.
"Nosso segredo foi guardado, enterrado com a Rainha, não importa sua
origem. Não importa a minha origem. Nunca acharão nossa verdade, nem
saberão que sou sua metade."
- Mãe, o Júlio... eu preciso ver o Júlio, descobrir o que aconteceu com ele,
como ele está. Ele mentiu para mim? Ele tinha alguma coisa pra me dar no
jardim! Eu continuo sonhando com ele. Você me disse que ele era apenas
um pau-mandado do pai, mas eu não acredito. O que a gente tinha parecia
tão... tão real...
- Ah, minha filha... não sofra assim. Você ainda é muito jovem...
- Mãe, ela falou. Falou alguma coisa sobre amigos leais e família...
Imaginar que o menino que bateu no Júlio na minha festa era um guardião
era surreal demais para mim. Ainda assim, faz todo sentido. Eu nunca o
havia visto. E o esquisitão do Égido, que sempre me deu arrepios. E ela,
Cleópatra, me dizendo para usar o Égido. Mas como? Lembro bem do que
ele me disse: ele me chamou de "rainha do Sol", me disse para ficar longe
do Júlio.
- Claro, enterro... Nem me lembrava mais que haveria um enterro. Mãe, ela
me disse umas coisas: "escute sua alma"...
- Cleópatra?
- Não, minha vó. Ela me disse pra eu escutar minha alma e me disse algo
sobre luz própria. "Apenas o sol tem luz própria", eu acho. Foi a mesma frase
que a Cleópatra disse na primeira vez que falou comigo.
- O amuleto de Ísis?
- Hummmm.... como vou te explicar... Ele queima para lhe dar um "alerta",
não necessariamente negativo. Algo como "preste atenção no que vai
acontecer".
- Pode ser....
- Vamos, tome seu chá... Ainda está escuro e acho que você ainda pode
descansar um pouco antes de sua avó chegar.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 17
Preciso confessar que fui ao enterro para procurar a mãe do Júlio, ainda
que eu saiba que não seria o momento oportuno para o embate inevitável.
Ela não foi.
Minha mãe foi. Parecia dopada, em estado de alfa. Não falou com ninguém.
Limitou-se a sentar ao lado do caixão e olhar. Sei que ela não tomou nada.
Bom, pelo menos eu não a vi tomar nenhum remédio. Ou vinho. Acho que
ela só estava absorta em seus próprios pensamentos. Posso jurar que a vi
colocar algo entre as tulipas, como uma pequena imagem de Nossa Senhora
de Lourdes que meu pai tinha na gaveta da cabeceira. Mas não sei se era
isso mesmo...
Fiquei com isso na cabeça e voltei para casa contando piadas no carro
sobre carpideiras, mas não pareceu ter agradado minha mãe. Meu talento
para humor negro não estava sendo bem aceito. Até que ela resolveu me
contar que, na verdade, meu pai era um homem rico. Dei uma gargalhada
alta.
- Thea, seu pai construiu um império. Ele não tinha apenas o caminhão.
Aquele caminhão ele usava para manter-se perto dos empregados. "A
empresa só funciona sob os olhos do patrão", era o que ele dizia. Tinha muito
medo de ser enganado pelos administradores. Então, mantinha-se perto,
fazia algumas entregas, conversava com clientes. Apenas o vice-presidente
sabia quem ele era. Para todo mundo, ele era apenas mais um motorista.
- Sim, queríamos que você desse valor ao dinheiro. Saber que éramos ricos
poderia te causar alguns problemas de personalidade.
- Seu pai abriu uma fundação, a Fundação Ensino Vivo, que mantém escolas
em comunidades do Rio de Janeiro e uma grande biblioteca. O advogado da
sua avó já está cuidando de tudo. Ele só aguarda o processamento dos
documentos do óbito no cartório, mas isso deve sair logo.
Por Rá, minha vida tinha virado de cabeça para baixo. Tudo que eu
conhecia como verdade, já não era mais. Muitas novidades surgiram. Muita
coisa para assimilar, todos os dias. Seguimos o caminho até a nossa casa em
silêncio.
--------------- ☼ ---------------
Capítulo 18
Comecei a praticar Krav Magá 3 vezes por semana. Era uma maneira de
ficar longe da minha avó, a princípio. Depois, fui tomando gosto.
Nunca mais vi minha mãe beber. Vovó voltou para casa duas semanas
depois do enterro. Quando percebeu que minha mãe tinha estabilizado e o
advogado já estava quase resolvendo tudo, resolveu voltar.
Pouco mais de um mês após o enterro, saí pela rua e ainda estava escuro.
Eu, minha mochila jeans com desenhos aleatórios, o diário do Klaus, um
caderno, um lápis, um pouco de dinheiro, um tênis confortável e um forte
instinto que me levou direto para a Rodoviária.
Deixei o cordão com o amuleto de Ísis, que tirei pela primeira vez desde
que ganhei, e o anel que a mamãe me deu para trás. Eu precisava retomar
as rédeas da minha vida. Me refazer e me recompor. Eu só tinha 17 anos,
mas carregava mágoas de uma longa vida. Eu queria ter 17 anos.
Mas nada era simples assim, muito menos para alguém com menos de 18
anos. Não dá pra fugir, simplesmente, no primeiro ônibus que conseguimos
achar. Não consegui comprar a passagem.
Sentei em frente a uma cafeteria pensando que não era hora de começar a
gastar o dinheiro que eu tinha – não sei quando ia voltar pra casa e
precisava economizar. Além disso, certamente iam bloquear minha conta
no banco. Estava com fome, porque, idiota, não havia comido em casa antes
de sair e nem coloquei um pacote de biscoitos na mochila. Enfim, fiquei um
tempo pensando no que fazer.
Uma música suave tocava nos alto-falantes, mas o falatório não permitia
que eu ouvisse nada. Percebi que a pessoa do caixa não cobrava identidade
de todo mundo. Então, talvez fosse mais fácil do que pensei. Questão de
estratégia.
Estava feliz, todavia. Nenhum guardião tinha me achado. Ou, pelo menos,
que eu saiba. Era hora de organizar o roteiro. Primeiro, o colégio. Como
estava quase na hora da saída, imaginei que encontraria alguém para me
dar uma informação, quem sabe até o Júlio mesmo. Na mesma hora,
lembrei da Sra. Filomena. Tantos meses como monitora de música e eu
jamais desconfiei de alguma coisa. Então, para onde eu iria? Casa do Júlio,
foi pra lá que eu fui.
Quando estava saindo da casa, decidi olhar dentro da caixa de correio. Com
certeza tem alguma coisa, já que ninguém vem aqui há muito tempo. Mas
não eram contas. Havia apenas uma carta já amarelada e com marcas de
umidade. Puxei o envelope.
Não sou bom com palavras, mas preciso dizer o quanto lamento tudo que
aconteceu. Preciso dizer muita coisa, mas pessoalmente. Preciso sentir seu
cheiro e respirar perto do seu rosto. Sentir a nossa conexão se refazendo.
Minha família está se mudando para São Paulo e eu não sei quando você vai
ler essa carta, mas vou resgatar você como prometi na sua festa. Te garanto
que em breve estaremos juntos. Eu vou te encontrar. Vou varrer o mundo
atrás de você. E, quando eu te encontrar, não vou deixar mais ninguém te
levar para longe.
Ri. E falei para mim mesma, em voz alta, "Bom, você não me encontrou, né,
JC?!".
FIM
"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez
que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao
calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num
banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que
entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora
tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se
cobria de um luxo radioso de sensações!
Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os
transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de
agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz,
uma certa tranquilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa
de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com
uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que
passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria:
sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as
agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado
naquele repouso. Foi-se ver ao espelho."