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ASA LITERATURA
2003, Rosa Lobato
Este livro foi composto por Maria da Graça
Samagaio, Porto,
e impresso e acabado por
GRAFIASA
Rua D. Afonso Henriques, 742—4435-006 Rio
Tinto PORTUGAL
1ª edição: Maio de 2005
Depósito legal nº 223416/05
ISBN 972-41-4226-4
Reservados todos os direitos
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A Flor do Sal fala da construção de um livro sobre um
marinheiro do séc. XV e sobre o episódio de que foi protagonista.
Esse pescador de Cascais, Afonso Sanches (que efectivamente
existiu), mais tarde baleeiro e por fim piloto de uma expedição que
buscava a índia a Ocidente, chegou casualmente às costas da
América em 1480 (doze anos antes de Colombo) e disso deu notícia
ao rei D. João II. Porém, o rei pediu-lhe silêncio sobre o seu
achamento, por estar em vias de elaboração o Tratado de
Tordesilhas.
Mais de quinhentos anos depois, uma escritora aproveita este
facto histórico para elaborar a sua própria ficção—e a sua história
cruza-se com a de Afonso Sanches, num romance sobre os
mistérios da criatividade, do amor e da morte.
A Flor do Sal vem confirmar a maturidade literária de Rosa
Lobato de Faria e impô-la como um nome incontornável da nossa
mais moderna ficção.
Da minha língua vê-se o mar
Vergílio Ferreira
1. Enganei-me no restaurante.
A culpa foi minha. Parti logo do princípio que era aqui, não o
deixei dizer nem o nome, nem sequer a rua. Ao lado da livraria,
disse ele. Podia estar a referir-se a outra livraria, mas eu não. Muito
despachada, disse logo eu sei e ele desligou. Estou aqui a fazer a
minha habitual figura de idiota e ele à minha espera noutro lugar.
2. Aconteceu alguma coisa.
Ele não disse que estava algures no mundo? Tinha que
apanhar um avião. Perdeu o avião. Ainda vem no avião e não pode
usar o telemóvel. O avião foi desviado por terroristas.
3. Enganou-se nas horas.
Esta é mais fácil de suportar. Disse às sete, hora de Lisboa, e
pensa que disse às sete, hora de Paris. Esperou por mim uma hora.
Como eu cheguei quinze minutos atrasada para fazer farol, ele
esperou uma hora e dez e saiu amuado cinco minutos antes de eu
chegar. Esperou no bar e não se identificou. Não previu que eu
tivesse marcado mesa. Fartou-se de estar ali a acotovelar-se com a
plebe, pagou a bebida, mandou guardar um troco generoso e foi-se
embora. Para me castigar não telefona.
4. Nunca tencionou encontrar-se comigo.
Esta é a mais horrível de todas, a que mais dói. Ao fim de anos
de ausência, passou-lhe pela cabeça ver-me mas reconsiderou e
decidiu manter firme a sua decisão de não voltar a ver-me.
Dá como desculpa a si próprio que eu preciso de arejar e que
um passeio até Paris só pode fazer-me bem.
5. Fez uma plástica e eu não o reconheço.
Está neste momento a olhar para mim e a gozar a minha
angústia para depois vir por detrás da minha cadeira como um
ladrão e dizer-me ao ouvido surunat e fazer-me gritar e alarmar todo
o restaurante e rir-se imenso da sua perversidade. É uma das
formas que o Lourenço tem de me amar: fazer-me partidas horríveis
e agarro-me a essa hipótese para não enlouquecer aqui mesmo,
sentada à mesa à sua espera, no restaurante ao lado da livraria.
Mas não consigo ater-me a esta possibilidade. Começo a
recapitular todas as outras, lugar errado, avião atrasado, terroristas,
engano horário, ou tudo junto ou nada disto.
O criado vem perguntar-me mais uma vez se quero
encomendar uma entrada, só falta acrescentar para estar entretida,
vou dizer que sim e quando levanto os olhos para o homem vejo o
Lourenço atrás dele, deixo cair a lista pesadíssima, levanto-me,
derrubo o cálice de porto seco na toalha impoluta e caio a soluçar
nos braços do Lourenço com grandes riscos para o equilíbrio da
minha sábia maquilhagem apesar do rímel ser à prova de lágrimas.
Menos, querida, diz ele. Os autóctones estão a olhar.
Em segundos trocaram a toalha e ele faz-me sentar. Com uma
serenidade olímpica pega na lista e põe-se a encomendar com
muitas perguntas e detalhes sobre o molho, o tempero, o
acompanhamento.
Consulta-me e eu digo a tudo que sim.
Escolhe o vinho. Rejeita a primeira garrafa. Aceita a segunda. E
só então, só então, ao fim de anos de ausência, ergue os olhos
maravilhosos e pousa-os, dulcíssimos, nos meus.
Ainda não consigo falar.
Estás tão bonita. Sempre foste bonita, mas agora... Tenho lido
os teus livros. Cresceste imenso. A minha ausência fez-te bem.
Podias ao menos ter telefonado, arrisco. Fartei-me de ligar para
o teu telemóvel, mas Ah, deitei-o fora, num dia em que me deu a
tentação de te falar. Estava em Veneza, atirei-o ao canal.
Não querias mesmo ver-me.
Não queria. És uma tentação grande de mais.
Então?
Não podemos, Guiomar. Tu não tens o sentido do pecado.
Quando nascemos fui eu que arquei com o pecado original. Sou eu
quem carrega com a culpa.
Que culpa?
Guiomar, por favor.
Que culpa?
Na nossa sociedade, na nossa religião, Não me venhas falar de
religião. Eva concebeu dos próprios filhos. S. Gregório, que foi o
Papa Gregório VII, era filho de dois gémeos na nossa cultura!
Nunca te importaste com a nossa cultura para nada. Noutras
culturas, tão boas como a nossa, a egípcia, por exemplo, os faraós
casavam com as irmãs. E depois?
Queres saber por onde andei?
Faz-me o relato das suas viagens, das suas aventuras, dos
seus encontros e desencontros amorosos.
Tens alguma mulher?
És doida. Como é que eu posso? É tudo tão pequeno, tão
mesquinho, tão rasteiro. Eu passo pelas mulheres mas não as
quero. Começam logo a pensar em maridinhos, filhos, casinha,
canteiro de dálias, cão, emprego das nove às cinco, televisão,
queca aos sábados. Sabes que não sou feito para isso e tu és a
única pessoa que me percebe.
E levaste este tempo todo a descobrir isso.
Que disparate, Guiomar. Sei isso desde que nasci. Desde que
te deitaram no meu berço e, segundo a lenda, a nossa mãe
exclamou, tenho um filho lindo dividido em dois!
Que frase, Lourenço. Parece uma maldição.
Ou uma benção, não sei, Guiomar.
E porque é que agora te lembraste, quiseste, enfim, pensaste
em ver-me?
Tínhamos acabado de jantar há um bom momento e os nossos
uísques estavam já aguados.
Vamos pagar, disse o meu irmão, e tomar outra bebida no teu
hotel.
Pagou e calculo que tenha deixado uma gorjeta à Lourenço
porque nos acompanharam com mesuras até à porta.
Instalámo-nos confortavelmente no quarto enorme, ambos já de
roupão, e o Lourenço mandou vir champanhe porque não lhe
agradou a marca que encontrou no mini-bar. E não havia taças, só
flâtes. O Lourenço não bebe por flutes. Não depois de terem, no
século dezoito, inventado as taças à medida do peito da rainha
Maria Antonieta.
Estou tão feliz por teres querido voltar. Eu já pensava que
tinhas morrido e que não te ia ver nunca mais.
Isso nunca podia acontecer, Guiomar. Sabes perfeitamente que,
se eu morrer, tu morres no mesmo instante. Somos uma só pessoa.
É o meu sangue que flui no teu coração.
Ainda bem que voltaste.
Não voltei. Se quisesse voltar tinha ido para casa, não te fazia
vir a Paris.
Mas então...
Acho que não vamos viver muito tempo e queria ver-te.
Se vamos morrer, como tu dizes, no mesmo minuto, ao menos
que morramos juntos.
Sim, seguramente. Vai ter que ser assim.
Queres morrer esta noite?
Não, ainda é cedo. Tens um trabalho para acabar, conforme me
disseste. Pareces-me entusiasmada com o teu novo romance e é
importante que o termines.
O mais certo é que morramos velhinhos, solteiros, malucos.
É o mais certo.
Os olhos do Lourenço enevoaram-se de lágrimas. E como se
tudo, na nossa vida, fosse uma fatalidade, começou a beijar-me
devagarinho, a envolver-me no seu perfume, a fazer o roupão
descair desnudando-me os ombros.
Mar, disse ele
Surunat, disse eu.
Mais que natural, pensei.
Em vão esperou Inês Garcia na Rua da Fonte pelos passos
firmes de Afonso Sanches enquanto o cântaro enchia, e o
despejava, e o tornava a encher. Ele costumava virar as costas ao
sol nascente e a sua sombra chegava antes da sua figura, pondo no
coração de Inês um alvoroço que lhe fazia bem e se via nas rosas
da sua face.
Mas desde aquela manhã em que fora falar com seu pai, nunca
mais Inês pusera os olhos nele.
Queria dizer-lhe que, concordando ele, ela própria falaria com
seu pai, lhe pediria que esquecesse a conversa tida com Pêro Paes,
que não fora bem uma promessa, mais uma boa intenção de
compadres, quando ela era ainda criança. Quem sabe, talvez Pêro
Paes tivesse entretanto lançado olhos a outra donzela e lhe
conviesse desfazer o compromisso.
Tudo era possível, desde que ela soubesse que Afonso
Sanches continuava a querer-lhe bem, apesar da recusa de
Salvador Garcia.
Mas a fonte era lugar de encontro de comadres e não tardou
que a própria Maria Gregória, que tinha por amiga, começasse a
notar a tristeza nos seus olhos pretos e um muxoxo de enfado na
sua boca infantil.
— Esquece-o, Inês. Ele tem outra.
Inês não acreditou. Pensou que Maria lhe dizia aquilo para lhe
dar razões de queixa e fazê-la esquecer o homem a quem seu pai a
negara.
— Não tem, não. É de mim que ele gosta. Mas ficou ofendido
com a recusa de meu pai e não quer que se diga que anda a
cortejar uma mulher a outro prometida.
— Não te iludas, Inês. É já sabido que se amigou com Brites
Colaça, sua vizinha, coisa que muito brada aos céus por serem eles
irmãos-de-leite.
Então Inês lembrou-se de que tinha visto Brites Colaça na
cozinha de sua casa e tendo perguntado a sua mãe o que fazia ali
aquela mulher, a mãe lhe explicara que viera vender um pote de
bom azeite e que lho comprara, e já todos o tinham provado no
caldo da véspera.
— Que disse ela a meu pai que o fez recusar-me a Afonso
Sanches? Que disse ela?
— Brites Colaça não falou com teu pai. Apenas comigo sobre a
boa qualidade do seu azeite, que o manda vir dos olivais de
Santarém a dorso de burro, e recebeu a sua paga e se foi.
Mas não era verdade. Brites pedira para falar com Salvador
Garcia à puridade para lhe dizer que sabia que Afonso Sanches
pusera os olhos na sua filha Inês. E que lhe cumpria avisá-lo, por ter
em tão boa conta a bondosa donzela, que Afonso não era homem
para nela fazer geração.
— Aqui te digo em alta confidencialidade, Salvador Garcia, que
por tudo o que há de mais sagrado te posso asseverar que, desde
que Melchior Ventura se foi, tenho sido sua amiga e notei que,
depois de um susto que apanhou no mar, perdeu a força do seu
membro e não mais houve comércio amoroso comigo. Permito-me
dizer-te isto porque os homens fizeram de mim dona de pouco
respeito, mas o meu coração é puro e não quero ver prejudicada a
moça mais linda de Cascais. Pensa certamente Afonso Sanches
que a juventude e a donzelice de Inês lhe possam devolver a sua
antiga força, que muita era, mas é um risco que terás de correr e o
mais certo é ficar a tua casa vazia de descendência.
Deixou o seu veneno e saiu. E quando no dia seguinte Afonso a
descadeirou de pancada e a possuiu como nenhum homem jamais
a possuíra, tão animal, tão bruto, tão viril, Brites não soube se havia
de agradecer aquela inspiração ao céu ou ao inferno.
— Não é verdade, disse Inês. Diz-me o coração que essa
mulher entrou aqui por mal. E vede se o azeite não terá peçonha
que nos amoleça as entranhas e nos desfaça o entendimento e ao
final nos mate.
Estranharam os pais reacção tão descomposta em donzela que
era de seu natural mui doce e avisada. Tomaram-na à conta de coita
de amor passageira e calores da donzelice, e pensaram apressar o
casamento com Pêro Paes.
Mas não tardou que se constasse em toda a vila de Cascais
que Afonso Sanches zarpara para os Açores e Inês Garcia fechou-
se em sua câmara, não querendo sair nem comer, assentada no
poial da janela a ver o mar.
Salvador mandou pelo almocreve que seguia para as bandas
da serra um recado a Pêro Paes, que concertassem um encontro na
casa de um ou de outro porque chegara a hora de aprazarem as
bodas.
Pêro Paes há muito que não via Inês, era ela criança quando
ficara no ar esse arranjo entre amigos, surgido entre dois picheis de
vinho e ligeiro de mais para poder chamar-se compromisso. Mas
ouvira dizer que Inês era casta e formosa e deu-lhe a curiosidade de
a ver e talvez, quem sabe, tornar firme a promessa de uma noitada
alegre.
Era agora um homem rico e queria ter a certeza de que
Salvador, o qual, embora tivesse de seu, não se lhe comparava em
abastança, não lhe estava entregando gato por lebre.
Mandou pois dizer pelo almocreve que no domingo lá passaria
para cear com o amigo e ver a moça. Pensava libertar 1 Salvador
Garcia da sua palavra se a donzela não fosse de molde aagradar-
lhe em beleza, modos e palavras. Poderia sempre dizer que o vinho
falara por ele e que o tempo apagara da sua memória aquele ténue
comprometimento.
Mas quando chegou a casa de Inês e a moça, arrancada à
força de sua alcova, se apresentou na sua frente, foi como se um
raio lhe caísse na cabeça, no ventre e no coração e ficou em estado
de alumbramento por aquela mulher, como se tivesse acabado de
beber o filtro mágico da paixão.
Inês não se comportou bem. Não conseguiram arrancar-lhe
uma única palavra nem adregaram a que comesse uma migalha de
pão.
De manhã tinha pedido um peixe pescado por Afonso Sanches
e como lhe disse a mãe que Afonso partira por mares e ventos,
jurou que não comeria nada, nem que o rei em pessoa se sentasse
à sua mesa.
Ouviu em silêncio o pedido solene que Pêro Paes fez a
Salvador, dizendo que pretendia casar com a maior brevidade, não
só por causa do compromisso anteriormente assumido, mas porque
a beleza de Inês lhe enchia o coração de felicidade e não conseguia
imaginar sequer um dia da sua vida sem contemplar aquele rosto,
aqueles cabelos de ouro, aqueles olhos de água transparente.
Como os cabelos de Inês eram negros e os olhos da mesma
cor, ficaram os pais dela preocupados com a saúde mental do futuro
genro, mas ele mais adiante aliviou-os dizendo que os seus cabelos
pretos lhe pareciam louros porque a via nimbada de luz e os olhos,
de tão negros, se tornavam azuis ao simples bater das pálpebras.
Inês atravessou toda esta barafunda de declarações, distante e
serena, como se nada daquilo lhe dissesse respeito e logo que pôde
recolheu-se. Ficou no poial da janela, conforme era seu hábito
ultimamente, e apesar de já ser noite, esperava que o luar fizesse
surgir no horizonte o navio fantasma do seu desejo.
Pêro Paes começou a ir de visita todos os dias com presentes e
palavras doces, fruta da sua quinta, flores do seu jardim, primores
da horta.
Mas nem sempre conseguiam que viesse Inês. Deitava-se na
cama sem forças, porque não comia a não ser uma colher de sopa,
um gole de leite, uma uva. Toda a sua vida era aquela janela sobre
o mar, aquele horizonte vazio, aquele cheiro a maresia e a sal que
lhe chegava às narinas e era para ela o perfume do homem que
amava.
Quando conseguiam trazê-la nunca falava com o noivo e
mantinha-se imóvel, de pestanas baixas, como se nada entendesse
da sua conversação.
Todos concordaram em adiar as bodas até que melhorasse,
pois era como se a alma andasse perdida do corpo e o esteio da
vida se tivesse quebrado dentro dela. Emagrecera tanto que a pele,
de tão branca, se tornara transparente e as veias azuis se viam
claramente a olho nu. Tinha olheiras de um lilás suave e os lábios,
tão vermelhos outrora, tinham perdido a cor. Pêro Paes, louco de
paixão, não entendia a ausência da noiva, sempre tão distante, mas
amava aquela mulher etérea que de dia para dia se transformava
em sombra.
À beira da fonte, enquanto enchiam os cântaros, as mulheres
contavam, que lhe dissera aquela, que lhe contara a outra, que Pêro
Paes morria de ciúmes de Inês e não a deixava sair de casa até que
se casassem e ele a enfurnasse na sua moradia da serra onde
nunca mais ninguém lhe poria a vista em cima. Murmurava-se que
ele temia que Afonso Sanches voltasse e lhe roubasse a sua
prometida.
Tinha razão. Porque um dia, na imaginação de Inês, Afonso
voltou. Surgiu num lindo veleiro ao luar de Agosto e veio desde o
mar, sentado no vento, até à sua janela. E por ela entrou e a tomou
nos braços e se deitou com ela e lhe fez um filho e desde essa noite
Inês recuperou a alegria. Erguia-se pela manhã, comia, falava, foi
ganhando forças e cores e, embora olhasse para Pêro Paes como
se o não conhecesse, concordou em se casar pelo Natal.
Estava Salvador Garcia desnorteado com estes sucessos e,
longe de acreditar nas melhoras da filha, parecia-lhe, e a sua
esposa também, que ela estava cada vez mais fora de si. Embora
se alegrassem por vê-la finalmente comer com apetite voraz,
achavam de mau agoiro tão estranha mudança que passara da total
quietude, como de morta, a uma incansável agitação. Arrumava e
desarrumava a casa para arrumá-la de novo. Lavava a roupa e
sujava-a e voltava a lavá-la, amassava grandes pães que voltava a
amassar depois de lêvedos, deitava-os fora antes de os cozer e
recomeçava.
Temia Salvador que, uma vez casada, o marido se enfadasse
de tanta loucura e viesse devolvê-la para sua confusão e vergonha.
Mas Pêro Paes parecia encantado. Ria como um tolo das doidices
da noiva, ficava feliz por vê-la comer a toda a hora como se tivesse
escapado da guerra e da famina, e, muito embora o que ela dizia
não fizesse sentido, ouvia-a com deleite e dizia que sim para não a
contrariar.
Entretanto preparava a casa da serra para receber a sua
rainha, como lhe chamava, e jurava-lhe que a faria feliz.
Mas para Inês se sentir feliz não carecia nem de casa, nem de
quinta, nem de bens materiais. Estava a viver um sonho
maravilhoso, grávida do seu segredo e não do filho que supunha
trazer na barriga.
O seu amante imaginário vinha todas as noites, dizia-lhe
palavras de amor, contava-lhe histórias de ventos e marés, de naus
aventureiras, de terras nunca vistas.
Beijava-a como ela sempre pensara que um dia seria beijada,
quando ao pé da fonte olhava aquela boca de dentes brancos e
sentia não sei que quebranto, que arrepio, que vertigem e jurava,
sem nada dizer, que aquele homem havia de ser seu.
Mostrou-se muito alegre na festa da boda mas a sua noite de
núpcias, em que o noivo se revelou muito discreto e delicado,
deixou-a completamente indiferente e um pouco infeliz porque
compreendeu que Afonso Sanches não viria.
Não veio durante muitos meses. Mas encantava-a sentir
crescer a barriga com aquele filho tão desejado, que no devido
tempo fremia como um coelho ou um pássaro que ensaiasse o voo.
Quando a criança nasceu rogou ao marido, que lhe fazia todas
as vontades, que na pia baptismal lhe pusesse o nome de Pedro
Afonso e lhe desse por madrinha Nossa Senhora da Assunção.
Ficou muito calma com a vinda do filho numa madrugada de
Setembro. Trazia-o ao peito dia e noite, para que mamasse e se
fizesse um homem.
E quando Afonso Sanches voltou a voar e lhe entrou pela janela
da sua câmara de casada, numa noite em que Pêro Paes viajara
para comprar duas vacas leiteiras com que pensava prevenir o
desmame do filho, Inês Garcia pegou na criança ergueu-a ao alto e
disse:—Pedro Afonso, nasceste de doze meses porque és filhe de
um deus. Eis aqui o teu verdadeiro pai.
Tantas coisas interessantes para fazer em Paris e eu metida na
cama, com febre, sem a menor vontade de me levantar. Suponho
que não se trate de doença nenhuma, apenas uma reacção
psicossomática às emoções da véspera.
O Lourenço, claro, também deve estar doente. Mas não está
aqui. Quando acordei, já o dia ia alto, tinha desaparecido. Talvez
tenha ido comprar aspirina. Que ilusão. Ele não vai à farmácia.
Manda ir.
Preocupo-me porque nós ficamos sempre doentes ao mesmo
tempo. Seja de que doença for. Até me lembro que um dia
escorreguei na cozinha e parti um braço, ao mesmo tempo que ele,
no jardim, caía da bicicleta e partia o outro braço. Eu, o direito. Ele,
que é canhoto, o esquerdo. Enquanto os ossos colavam ríamo-nos
imenso por termos ambos de comer com a mão errada.
Mais pequenos ainda, costumavam sentar-nos lado a lado, na
hora da refeição, numa cadeirinha alta de palhinha que o meu pai
mandara fazer dupla e, sentando-me eu à direita, comíamos muito
encostados sem que os nossos cotovelos interferissem.
Quando partimos os braços trocaram-nos os lugares na
mesinha da copa, onde tomávamos o pequeno almoço e o lanche.
Nas outras refeições, o meu pai assumia a cabeceira, comigo à
direita e o Lourenço à esquerda.
Quando o pai morreu passámos a ocupar as duas cabeceiras
da mesa, que era enorme, e achávamos o máximo mandar
bilhetinhos um ao outro pela Carminda, ou falar altíssimo,
codificando as nossas frases para ela não perceber o que dizíamos.
Éramos uns monstros. Não sei como a pobre mulher § resistiu.
Mas agora preocupa-me a doença do Lourenço. Sei o que ele
sente, que é o mesmo que eu sinto: dores de cabeça, dores de
garganta, dores no corpo, febre, prostração e muita, muita sede.
Espero que não tenha apanhado já um avião, sabe-se lá para que
misteriosas paragens, mas que reconsidere e volte atrás, quanto
mais não seja para saber como estou.
Começo a dormitar e a sonhar repetidamente o mesmo
pesadelo: um pássaro enorme, cujo nome é metido na minha
cabeça com as batidas de um martelo, albatroz, albatroz, albatroz, a
que eu contraponho açor, açor, açor, não, não, não, albatroz,
albatroz, e o pássaro segurame com as garras pelo pescoço, pela
garganta e atira-me ao mar, não adianta esconder-me na arrumação
dos cabos no convés do Afonso Sanches e chamar por ele porque
não está, o pássaro vem, albatroz, albatroz e lançame num oceano
negro e revolto e eu fico gelada, encharcada e agora estou na cama
desconhecida do hotel gelada e encharcada, se ao menos alguém
me desse outro cobertor, ou eu tivesse coragem de ir buscá-lo, ou
sequer de estender a mão e tocar a campainha ou levantar o
telefone, mas é esforço de mais, não consigo mover-me e ainda ia
ter que falar, não posso falar, e de novo albatroz, albatroz e grito
quando duas mãos me seguram os ombros, é Afonso Sanches que
se lançou à água para me salvar, também ele gelado e encharcado,
Lourenço, estás doente, vai deitar-te, eu sei como te sentes e ele, a
bater os dentes, trouxe uma enfermeira, antibióticos, antipiréticos,
pijamas, vamos ficar bem, é só deixar que nos tratem.
Consigo deitar-me de lado para vê-lo entrar na casa de banho
com passos incertos e um pijama no ombro, enquanto a enfermeira
me faz sair da cama e, com a ajuda de duas empregadas, me muda
os lençóis e a seguir desenrola-me do cobertor onde tirito e
passame no corpo uma toalha molhada em água quente, lava-me,
enxuga-me bem com outra toalha aquecida e veste-me um pijama
de algodão e sinto-me muito melhor ainda antes de tomar os
medicamentos de que o médico (surge agora um médico que estava
na casa de banho a ajudar o Lourenço e vem ver-me a garganta)
determina a posologia.
Agora sim, estamos deitados em duas enormes camas gémeas
e o Lourenço começa a dizer que temos de mudar para uma suíte
para a enfermeira poder ficar de noite, mas ela diz que não é
preciso, não veio para dormir mas para nos vigiar e dar o antibiótico
à hora certa e o sofá serve perfeitamente se quiser encostar-se um
bocadinho.
A voz da enfermeira irrita-me. A língua francesa ajuda a que
muitas vezes as vozes agudas pareçam mimadas. Chamame
mam'selle e quando diz sim inspira o ar em vez de o expirar, parece
um último suspiro, ouais ou ué a meter o ar para dentro, tento não
lhe perguntar nada cuja resposta possa ser sim, mas é um jogo
mental que me cansa, e volta e meia lá está ela á beira de morrer
sufocada, fouais, fouais, tento não adormecer com medo do albatroz
albatroz e viro-me para o Lourenço e o Lourenço vira-se para mim e
conseguimos sorrir e perguntam-nos o que queremos comer e em
coro respondemos—nada.
O Lourenço é formidável. Enquanto eu estava colada à cama,
morta de febre, ele conseguiu sair, arranjar um médico, receitas,
uma enfermeira que mandou à farmácia. Foi comprar pijamas
porque não confiou no critério de escolha da enfermeira, conseguiu,
cheio de febre, distinguir o que queria, acertar nas medidas,
revolucionar o hotel e vir aterrar na cama ao lado da minha. E ainda
dizem que os homens são piegas.
Obrigada, meu querido, obrigada, mas ele já não me ouve.
Adormeceu, exausto de tanto esforço.
O médico despede-se, promete voltar amanhã, à mesma hora,
não sei que hora é essa mas alguém saberá, dá ordens em voz
baixa à enfermeira, ela responde, fouais, ele parte e ficamos num
delicioso silêncio, quase me atrevo a adormecer com a esperança
de que o albatroz não volte, mas volta, claro, só que agora sei que
estou a sonhar, custa menos, posso acordar quando quiser e o
Lourenço está aqui.
Este sonho é uma espécie de vício, acontece-me, quando estou
doente, carimbar determinada imagem na memória e, mal fecho os
olhos, lá vem aquilo repetir as mesmas palavras, às vezes a mesma
música, que parece estarem ali escondidas à espera para nos
martelar a cabeça, é uma coisa maldosa, obsessiva, que me cansa
mais do que a própria doença.
Ponho-me a pensar na coincidência de termos falado em
morrer e logo a seguir termos ficado os dois doentes. O Lourenço
deve ficar horrorizado só de imaginar que eu podia acreditar que ele
escolhesse para nós uma morte tão ridícula, tão pobrezinha, uma
gripezita, uma amigdalite, nem pensar.
Para ele, para nós, a morte tem que ser grandiosa, um
naufrágio, um incêndio, um ritual, um pacto, uma áspide.
Como nunca, ou raramente, tomamos remédios, o antibiótico
teve um efeito fulminante e ao terceiro dia já conseguíamos passear
pelo quarto, conversar, comer.
Ainda trocámos umas frases em gemines até nos lembrarmos
de que não era preciso. Mademoiselle Fouais não percebia mesmo
nada do nosso luso idioma.
Quando o médico nos deu alta andámos a flanar por Paris,
livrarias, museus, algumas lojas de roupa, Campos Elíseos para
cima e para baixo, compras, restaurantes, para nos desforrarmos
daqueles dias perdidos, miseráveis, derrotados e ainda por cima
guardados à vista por uma enfermeira que engolia ar para um
simples sim.
Esperávamos maldosamente vê-la sufocar, coitada da mulher
que nos tratou tão bem, e, quando por fim o Lourenço lhe pagou
acrescentando uma generosa gorgeta, ela disse merci a meter o ar
para dentro, que ainda é muito mais difícil que ouais, mas as
francesas especializam-se desde pequenas nesta inversão da
respiração para deixarem os estrangeiros perplexos.
Eu queria ficar eternamente em Paris, parecia-me que
estávamos a conseguir recuperar a nossa felicidade de outrora,
perdida com todos os anos de ausência do Lourenço, mas
começava a ver nos seus olhos aquela inquietação que prenunciava
a partida. Aquela luz diferente. Aquele adeus.
Estávamos a tomar uma bebida no bar do hotel depois de um
dia cansativo de museus, quando o Lourenço começou a contar-me
que tinha sido convidado para colaborar no restauro de uma
igrejinha preciosa perdida na Toscânia. O restauro de frescos é uma
das especialidades do meu irmão, que ganha fortunas a fazer esse
trabalho.
Percebi que estava decidido a partir e perguntei-lhe porque é
que não me levava com ele. Podíamos ser tão felizes num país
diferente, cada um entregue ao seu trabalho, cada um...
Mas o Lourenço só queria mudar de assunto.
De que é que trata o teu livro? Ainda não me disseste.
Sabes que não posso falar dos livros que tenho em mãos. Já te
expliquei isso. Se verbalizo o que me parece que o livro é, ele fica
sem alma, passa a ser uma historieta que eu escrevo e não o livro
que me escolheu para escrevê-lo. É o livro que deve mandar em
mim e não eu nele. E desta vez então...
Desta vez o quê? É uma entidade que vem do outro lado da luz
e te conta a história?
Como é que sabes?
O Lourenço ficou em silêncio a trincar uma amêndoa torrada e
a olhar-me com olhos sorridentes.
Não pensavas esconder-me uma coisa dessas, pensavas?
Queria contar-te lá em casa. Mostrar-te como tudo se passa.
Porquê lá em casa? O mundo é um lugar pequeno para quem
partiu. Aqui ou ali não deve ter grande significado. É a tua energia
que conta. Só assim se explica que eu tenha sonhado, ou julgado
sonhar, com um marinheiro que está perdido de amores por ti e te
conta a sua história. Ia a dizer-te dita as suas memórias mas não é
verdade. Ele conta, para que a recontes, a sua vida, ou episódios
dela, e tu compões o resto. Foi também por isso que te quis ver.
Receei que estivesses um pouco assustada ou possuída por alguma
loucura sobrenatural, mas afinal, tirando a amigdalite, acho-te
maravilhosa.
E riu-se.
Afinal sabes tudo, não há nada para contar. Só não sei porque
é que dizes que ele está perdido de amores por mim. Sou eu que
estou a ficar apaixonada por ele, já que não consigo gostar de
nenhum comum mortal deste mundo, a não ser...
Fazes amor com ele?
Não, até agora não. Mas previno-te que tem as mãos quentes.
Sabes isso.
Sei. Ele toca-me na cara, no ombro, nas mãos.
Fantástico. Gótico. Barroco.
Segurou nas minhas mãos e ficamos assim muito tempo, de
mãos dadas e olhos nos olhos como dois apaixonados, alheios a
tudo o que se passava à nossa volta. Leva-me contigo para a
Toscânia. Não posso.
Fomos interrompidos pela entrada ruidosa de duas mulheres,
tão bonitas, tão vistosas e tão altas que só podiam ser modelos
internacionais. Achei que lhes conhecia as caras das capas das
revistas de moda. Vinham a rir com aquela segurança de quem
pertence a uma raça à parte, descendente de extraterrestres que
algum dia se dignaram pousar no terceiro calhau a contar do Sol.
Uma delas viu o Lourenço e parou a dizer alguma coisa à outra
que se dirigiu ao balcão a encomendar bebidas.
Prepara-te, disse o Lourenço. Vais ter que levar com a rainha
das passerelles e o seu neurónio amestrado. Ela avançou e
encarou-me: Ah, então foi por isto que me deixaste. Entre outras
coisas, disse o Lourenço. Ela falava francês com sotaque inglês. Se
ça sou eu, não se preocupe. Je nesuis quesa sceur. O Lourenço
virou-se para mim e falou português. O que é isso de seres só a
minha irmã? Ser irmã não é pouca coisa. Ser irmã é muito, é
imenso. É alguma coisa que este pinheiro com olhos jamais poderá
compreender.
Não, Gin. Ela não é só minha irmã. É a minha irmã gémea
nascida do mesmo ventre, no mesmo dia e na mesma hora. Uma
coisa transcendente, mas tu não sabes o que quer dizer
transcendente.
Tudo o que a outra apreendeu desta exaltação foi que ele a
tratara pelo nome de guerra.
Ah, ao menos não te esqueceste do meu nome.
Para dizer a verdade hesitei entre martini e vodka.
Estúpido. Não sabes os estragos que fizeste na minha vida.
Além de eu me ter apaixonado por ti, ainda fiquei grávida com todos
os inconvenientes que isso acarretou para a minha carreira.
És tão mentirosa. Bonita. Condescendo. Magnífica, silicone à
parte, quando estás nua. Mas uma mentirosa profissional. Achas
que eu caio nessas trapaças de bairro da lata?
De quê? Bidonville? És doido, tu. Toda a gente me diz que tu és
doido.
Eu ria-me. E o Lourenço estava visivelmente divertido. Ela
tinha-se sentado à nossa mesa e embora as pernas parecessem
não caber em parte nenhuma, a cabeça não ultrapassava a do
Lourenço. Tinha o cabelo rapado de forma criativa, uma espécie de
relva encarnada que fazia um bordado na cabeça perfeita. Não
consegui apreciar a beleza do desenho porque, eu sim, estava num
plano um pouco mais baixo. Pensei que não era boa ideia uma
mulher com um metro e noventa usar um penteado que só podia ser
admirado de cima.
Exactamente. Sou doido. Por isso é que fiz uma vasectomia
aos dezasseis anos. Menti na idade e o médico operou-me. Por
isso, ma chérie, o pai da criança deve ser o teu vibrador.
Precisas de ser tão mau, Lourenço? Coitada da mulher, a
rábula até lhe estava a sair bem.
Qu 'est-ce qu 'elle dit?
Que lamenta não poder ter sobrinhos.
Champanhe, pediu Lourenço Tem preferência de marca?
Não.
Como? estranhei eu.
Veio a garrafa e o Lourenço entregou-a à Gin.
Tiens, Ginette. Vai festejar com a tua amiga.
A outra desenrolou-se, fitou-nos um momento com a garrafa na
mão e disse uma coisa estranha, que não soubemos se devíamos
atribuir à sua burrice, ao seu mau francês ou a alguma intuição
herdada dos seus antepassados de outra galáxia:—Vocês são tão
parecidos que até dá para desconfiar.
Tellement semblables que l'on pourrait se méfier...
Leva-me contigo para a Toscânia.
Não posso. E tu tens que ir para casa. O teu marinheiro espera-
te.
És tu que dizes que ele pode ir ter comigo aonde quiser.
Não ia ser a mesma coisa. Era outro livro. E tu tens a
incumbência de escrever esse livro e não outro. Por agora.
São desculpas. O que tu tens é medo de ser feliz.
Não é medo, Guiomar. Vê se percebes. É que não tenho esse
direito.
Insistes nisso.
Não insisto, sei.
Acho um crime desprezar a felicidade que nos é oferecida.
Temos saúde, dinheiro, amor, liberdade, beleza, o mundo inteiro
aqui à mão e temo-nos um ao outro. Mas para ti tudo tem que ser
uma fatalidade. Se não temos desgraças, inventamo-las.
A seu tempo elas viriam, mesmo que as não inventássemos.
A vida não é uma tragédia grega.
A nossa é.
Estava tão sério, com os olhos claros de repente sombrios, a
boca perfeita entreaberta, como se nela se formasse uma palavra
terrível que não chegou a pronunciar. A nossa é, Guiomar. A nossa
é.
No dia seguinte, foi levar-me ao aeroporto. Desta vez eu tinha
malas e malas e demorei-me no check-in.
Depois viemos de mãos dadas tomar o café da despedida. Em
silêncio.
Na hora da partida, beijámo-nos como dois amantes
desesperados pela dor da separação.
Ele apanhava outro voo, nessa mesma tarde, para Itália, eu tive
a certeza de que não voltaria a vê-lo neste mundo.
No avião, a minha tristeza devia ser visível, porque mimaram
ainda mais do que o costume.
E o Lourenço? O que faria ele com a sua tristeza? Tal como eu,
tentaria, transformá-la em arte.
Tellement semblables que Von poutrait se méfier...
Entre a lembrança dos mamilos negros de Brites Colaça e o
sorriso claro de Inês Garcia, viveu Afonso Sanches sem mulher, ano
após ano, em terras dos Açores. Na verdade conhecera uma ou
outra rameira cujo rosto logo esquecia e cujo nome nem chegava a
perceber, posto que só as buscava para ir desenfadar.
Tudo o mais era o seu mester de baleeiro onde desenvolveu,
dia após dia, as suas já inatas qualidades de tenacidade,
resistência, ânimo e disciplina. O seu sonho de ir mais longe nos
mistérios do mundo por achar guardou-o bem guardado no fundo da
alma, que lhe não tolhesse disposição ou apoucasse os seus dias
de pescador.
Pensava às vezes no muito que se falava entre marinheiros, do
tal navegador Diogo de Teive que, de regresso da primeira viagem
por mares desconhecidos, fizera achamento das Ilhas Flores e
Corvo. Era sabido que, mais tarde, seu filho, João de Teive,
contratara aprazamento e doação das mesmas a Fernão Teles de
Menezes, fiel companheiro do Infante D. Pedro, tio de El-Rei D.
Afonso V. Sabido é que D. Pedro, o das sete partidas do mundo,
peregrinou pela Europa e Oriente próximo e sempre com ele seguiu
Fernão Teles, até à batalha de Alfarrobeira, o que o fez cair em
desgraça junto do rei. Porém, mais tarde, tudo lhe perdoou por tê-lo
visto combater arduamente, ombro-a-ombro, com o príncipe D.
João, na batalha de Toro.
Este Fernão Teles ganhara fama por ser uma das poucas
pessoas interessadas na rota da índia pelo Ocidente. Outra delas
era Afonso Sanches, que apenas tinha o sonho onde o outro tinha
as posses e os meios.
Sempre que este assunto vinha a lume, ficava Afonso Sanches
muito pensativo com desejos de fazer-se ao mar, mormente depois
que se constou que Fernão Teles cuidava agora de organizar uma
expedição com destino às Sete Cidades, lugar de que sempre se
falava com um respeito que denotava algum arreceio.
Contava a lenda que, ao tempo da invasão dos mouros
comandados por Tarique, sete bispos teriam fugido de Lisboa à
procura de uma ilha afastada onde fundaram sete cidades que cada
um governava. Os habitantes eram, ao princípio, a tripulação e
alguns familiares que levaram e, para cortar a veleidade de fuga a
quem quer que fosse, destruíram os navios. Quando novas naus ali
aportavam, deixavam desembarcar os navegantes, que recebiam
com muita cópia de gentilezas e entretinham com banquetes
regados com o bom vinho que faziam na ilha enquanto as
embarcações eram queimadas para obrigá-los a permanecer, e
assim iam povoando a sua ilha de muitas e desvairadas gentes.
Que estratagema teria Fernão Teles na ideia para desembarcar
na ilha sem que suas naus fossem destruídas, era razão de muita
prática entre marinheiros e pescadores e todos davam suas
inventadas manhas que mor das vezes faziam rir e outras faziam
pensar.
Aos bispos e habitantes das Sete Cidades eram atribuídos
tendências e hábitos de índole lusitana e era ponto assente que
falavam português. Assim lhes parecia fácil trocar com eles bons
propósitos, comerciar, pois teriam certamente falta de muita coisa e
quem sabe pô-los sob a protecção da coroa, podendo hastear ali a
bandeira d'El-Rei nosso senhor.
Mas tudo isto eram miragens e charlas até ao dia em que
chegou à Terceira Álvaro Coelho a mando de Fernão Telles, para
recrutar e preparar tripulação entre os habitantes da ilha. Procurava
homens que tivessem consciência de mar e do mar largo vivessem.
Afonso Sanches, primeiro pescador de costa e mais tarde
baleeiro, participara, neste mester, em diversas companhas em
mares distantes, para lá das ilhas açoreanas, onde a baleia era mais
rendosa e o cachalote mais combativo, e ascendera já, por mérito
de coragem e conhecenças, a mestre da embarcação. Sabia, por
experiência, com procela ou calmaria, as manobras essenciais do
navio. Conhecia a derrota conveniente consoante a feição de ventos
e marés. Aprendera e praticava o regimento do astrolábio e do
quadrante.
Assim sendo, concordou Fernão Teles com a escolha de Álvaro
Coelho, que indicou Afonso Sanches para piloto responsável da
expedição.
Sem saber se era verdade se era sonho, teve Afonso Sanches
uma forte emoção que o fez desaparecido durante vários dias, tendo
mandado recado a Álvaro Coelho que teria de se ausentar uma
semana para pôr em ordem seus afazeres mas que prestes se
apresentaria, ao que lhe volveu aquele palavras de muita paz, pois
tinham ainda pela frente dois meses de preparativos e de espera
pelos melhores ventos.
A verdade é que a Afonso sobrevieram umas febres que o
deixaram prostrado e muito afobaram a viúva que lhe alugava
quarto em sua casa, e era uma velha de muito respeito que lhe
lavava a roupa e lhe fazia a ceia.
Vendo que o seu hóspede se encontrava tão mal, mandou
chamar uma sua sobrinha para que o cuidasse, pois já não tinha ela
saúde nem idade para noitadas e cabeceiras de doentes. Ofereceu-
se contudo para fazer um chá de certa planta que tinha muita virtude
em males do bofe e mordida de carraça.
Toda a febre de Afonso Sanches era uma comoção da cabeça e
da alma por ver assim tão inesperadamente realizado o anseio por
que tanto esperara e de que já não via cabimento.
Ficou a delirar com mares e tempestades e entre ondas ali lhe
aparecia Josefa Vicente toda de branco como alma do outro mundo,
e por outra parte, quando o mar acalmava, se via em seu quarto de
Cascais com Inês Garcia mui silenciosa, cuidando dele com o maior
carinho e desvelo de esposa.
Às vezes era Brites Colaça que se apresentava toda nua, com
as mamas grandes, querendo estrafegá-lo, e logo um vagalhão do
mar rebentava sobre a sua enxerga e ficava todo molhado e lá vinha
Inês Garcia mudar-lhe os vestidos, depois de o enxugar
carinhosamente com panos de estopa bem secos, E um dia
melhorou um pouco e pôde comprovar que não era Inês Garcia
quem lhe trocava os lençóis do leito mas a sobrinha da viúva, que
por um momento julgou reconhecer. Depois pensou que estava
mesmo fora do seu espírito pois certamente estaria ali há dias a
cuidá-lo e só agora tomava consciência de suas feições.
Mas à medida que melhorava descobriu que a sobrinha cuidosa
e diligente, de nome Libânia, outra não era senão uma das putas
com quem costumava desenfadar.
Pareceu-lhe isto impossível, por ser Libânia tão casta e
modesta, sempre de olhos baixos e voz mansa, mas por outro lado,
a desenvoltura com que o lavava e vestia revelava que lhe não era
estranha a nudez de um homem de barba na cara.
Era isto para Afonso coisa de muito espanto até que, um dia, a
formosa Libânia, com muitos risos da sua linda boca, lhe disse que
o tivera três dias desacordado e temera pela sua vida, pois nem os
chás virtuosos de sua tia lhe foram de nenhum proveito, mas a
quem Deus quer dar vida até água da fonte lhe é mezinha, como diz
o povo, e decerto Nosso Senhor o guardava para grandes feitos e
glórias pois o curara a poder de caldo de ganso, que as mais das
vezes entornava pelas barbas abaixo.
Perguntou-lhe então, trocando a modéstia por um olhar aceso e
uma camisa aberta até onde não devia, se não se lembrava dela da
casa das putas e dos desenfados que com ela houvera.
Volveu-lhe Afonso Sanches que sim, que se lembrava, mas não
adregava a concertar na sua cabeça como podia viúva tão honesta
ter sobrinha rameira de porta aberta.
Então Libânia contou-lhe à puridade, entre muitos frouxos de
riso, que sua tia fora puta em Lisboa na sua mocidade, mas que
rumara aos Açores por casamento acertado por uma alcoviteira que
a vendeu a um tabelião, dizendo-a viúva para que o marido não
estranhasse seus tampos metidos dentro.
Praticando deste e de outros causos, foi Afonso ganhando
amizade a esta Libânia que, estando ele melhor, já podia ir de noite
a seu mester e voltava de manhã trazendo-lhe fruta e não poucas
vezes o dito ananás de que ele tanto gostava e, querendo Afonso
Sanches pagar-lhe, ela ria muito e dizia que o roubara de um
mercador que fazia vista grossa sob a promessa de um conchego
na hora do lobo.
Aos poucos foi voltando à memória de Afonso a razão daquela
febre e que fora a grande comoção que o tomara ao saber que era o
escolhido para piloto responsável de uma expedição que ia
descobrir a índia por mares a Ocidente e era esta tão formidável
notícia que o deixou fora de si, ardendo em febres.
Não queria ele que o julgassem fraco ou cobarde e tomassem
sua doença à conta de tibiez, e temessem que se pusesse doente
em alto-mar, por isso teve ainda ânimo para mandar o dito recado e
tinha agora a certeza de que Libânia se saíra brilhantemente de sua
incumbência, pois, segundo lhe contou, com cópia de pormenores,
descrevera seus afazeres e fechos de negócios que, por ser Afonso
Sanches homem de muita palavra e honradez, não podia deixar ao
Deus-dará.
A alegria de Libânia que de tudo ria um riso que lhe vinha de
dentro, ajudou à cura do baleeiro, agora navegador, que se afeiçoou
a esta nova amiga e lhe vaticinou um bom futuro.
A alegria, disselhe ele, é um dom que Deus dá e que muito
aprecia que seja posto a render, pois se entorna sobre os outros
como água benta e faz bem às almas que dela bebem. Se os chás
da tua tia ou os caldos de ganso não tiveram o condão de me curar,
a tua alegria salvou a minha vida.
Ficou Libânia tão contente com estas palavras que perguntou a
Afonso Sanches se já sentia forças para um desenfado simplesinho,
que não carecia canseira nenhuma da parte dele pois ela cuidaria
de tudo. E tão bem o consolou que Afonso se sentiu como novo,
curado de sua maleita e com vigor bastante para o que desse e
viesse, fosse mulher mundanal ou tempestade em alto mar.
Assim sendo, foi apresentar-se a Álvaro Coelho dizendo-se
pronto para zarpar, mas ainda muitos dias tinham pela frente para
preparar a viagem em todos os seus particulares.
Em primeiro lugar havia que conferir todo o pessoal que iria a
bordo, a saber o muito principal capitão e logo abaixo dele o piloto, e
logo sota-piloto, e mestre, e contramestre, o guardião responsável
pelos grumetes, dois trinqueiros que tinham por função cuidar e
consertar cordoalha e velas, sessenta marinheiros e setenta
grumetes, um clérigo, um escrivão, quatro pagens, um meirinho ou
alcaide, um ou dois despenseiros e um ou dois artífices de cada
ofício dos necessários a bordo, a saber: cirurgiões, carpinteiros,
calafates, tanoeiros e outros.
Embarcariam ainda soldados por arreceio de algum encontro
em terras estranhas e o capitão, ao invés do que era hábito, não
levaria ninguém de seu séquito por entender que era esta uma
expedição aventurosa e não viagem de rotina a terras já achadas.
Cabia ao mestre a governação dos marinheiros e ao piloto
tomar todas as decisões da derrota, cartear, fazer roteiros, conferi-
los e demarcar a agulha. Tais eram as funções mui principais de
Afonso Sanches.
Outra tarefa árdua era a da escolha e armazenagem dos
mantimentos. O capitão mandou que todo o navio se conservasse
mui limpo de ratos, formigas e sujidades para logo começarem a
embarcar azeite, marmeladas e mel; passas e figos; presuntos e
queijos; água em vasilhas limpas e que outros víveres como leite,
legumes e frutas embarcariam à ultima hora, para que mais
tardasse a sua danação. E por fim as vacas vivas, os porcos, os
borregos, as galinhas.
Assim foram embarcando todos os apercebimentos
necessários, esperando com muita ilusão o dia da partida.
Rezava todas as noites Afonso Sanches a Deus Nosso Senhor
para que lhe não escasseasse a saúde, a fortaleza de ânimo, a
caridade, a fé e a esperança.
E dedicava uma gloria pater às mulheres da sua vida que o
tinham trazido em boa hora até ali: Inês, por ter seu pai Salvador
recusado sua pretensão; Brites, por tê-lo obrigado a fugir do pecado
de incesto; Josefa, por ter, com seu cacarejar, evitado que caísse
em tentação da boa vida de criador de vacas; e Libânia, que o
curara com sua alegria e devoção a tempo de poder embarcar como
piloto da nau de Álvaro Coelho.
O que Afonso Sanches não sabia é que lá longe, próximo da
vila de Cascais, numa casa nas faldas da serra com vista para o
mar, Inês Garcia, a visionária, paria, a cada ano, um filho seu.
A alma humana é um lugar estranho. Dentro da minha
acontecem, como diria Afonso Sanches, as mais desvairadas coisas
e isso inclui as visitas dele. Porque ainda não percebi se ele é uma
entidade separada ou se é em mim que tudo acontece e ele é
apenas a projecção do meu pensamento. Sinto os seus dedos
quentes no meu rosto, vejo quando se zanga, caio de amores por
ele quando sorri, mas já quis levá-lo para a minha cama e logo se
desfez nas brumas do escritório.
Às vezes digo-lhe que não entendo a sua linguagem, que não
conheço o significado de certas palavras, o que me obriga a toda a
espécie de consultas e, quando me queixei de que tenho dificuldade
em imaginar os Açores sem hortênsias, visto que elas foram
trazidas da China e do Japão pelos portugueses, muitos anos mais
tarde, enfadou-se comigo e desapareceu.
Detesta que lhe fale daquilo que não conhece por se tratar de
um mundo posterior à sua passagem pela terra, e esta falta de
curiosidade desespera-me. Apetece-me largar tudo e escrever um
romance normal. Mas ele pede-me que não faça isso porque falta
contar-me os sucessos mui principais que o levaram a fazer o
enorme esforço de atravessar a densidade que nos separa, que eu
chamo energética, mas ele desdenha das minhas palavras e declara
que não quer argumentar.
III