Você está na página 1de 421

Já não me lembro se os olhos do meu avô eram azuis ou verdes, mas

nunca me vou esquecer de como se enrugavam nos cantos quando ele


ria de uma das suas próprias piadas.

Ou a maneira como eles brilhavam de malícia quando ele me


contava histórias sobre as criaturas mágicas que viviam na floresta
atrás de sua humilde fazenda de ovelhas irlandesas - fadas tímidas
que gostavam de comer biscoitos de chá, bruxas cruéis que gostavam
de comer crianças, um espírito mal-humorado do lago com gosto por
presentes caros.

Quando criança, eu acreditava em cada palavra fantástica. Mas


quando ele me avisou sobre o menino mudo que também espreitava
naquela floresta, aquele que o padre havia declarado ser filho do
próprio Satã, recusei-me a ouvir.

Kellen não era mau. Ele era gentil, bonito, especial e doloroso. Ele
era meu amigo. E a cada verão que passei escondida com ele naquela
floresta encantada, ele cresceu e se tornou muito mais.

Mas quando voltou para Glenshire como adulto, de luto e noivo de


outra pessoa, todas essas lendas rapidamente se transformam em
pesadelos.

Meu avô estava certo sobre tudo, especialmente sobre o menino.

Se ao menos eu tivesse escutado.


Afundei meus dedos profundamente na lã, tentando não gritar
enquanto fechava meus punhos em torno de dois punhados
satisfatórios de penugem.

— Darby, — mamãe retrucou naquele tom de pare agora


mesmo. — Seja doce.

— Mas, mamãe, ele não pode nem sentir isso. — Eu sorri. —


Olha! — Apertei a lã da ovelha novamente.

O animal continuou a me ignorar, achando a grama do pasto


do meu avô muito mais interessante do que a americana chata que
veio visitar.

Eu nunca tinha estado na Irlanda antes. Eu nunca tinha


viajado de avião antes, então toda a viagem para assistir ao funeral
da minha avó foi cheia de novas imagens e sons, mas o que mais
me encantou não foi a vista das nuvens ou as lojas coloridas do
arco-íris e casas pelas quais passamos no ônibus para Glenshire.
Não foram os sotaques musicais ou as roupas antigas das pessoas
que encontramos ao longo do caminho. Eram os grandes pontos
coloridos pintados com spray em todas as ovelhas brancas e fofas
da aldeia do meu avô.

— Vovô, por que todas as suas ovelhas têm manchas azuis nas
bundas? É para que combinem com a sua casa azul? Azul é sua
cor favorita? Minha cor favorita é verde. Eu gosto daqui. Tudo é
verde, verde, verde. A mamãe diz que é por isso que chamam de
globo ocular esmeralda.

— Ilha Esmeralda, — minha mãe corrigiu. — Ilha significa ilha.

Seus olhos estavam vermelhos e inchados naquele dia, e sua


boca estava mais carrancuda do que o normal. Isso me deixava
ansiosa sempre que ela estava chateada com alguma coisa. Ou
quando ela ficou doente. Ou quando ela estava muito cansada
para brincar comigo.

Minha mãe era tudo que eu tinha.

Enquanto ela estava lá e fez uma careta, meu avô riu do meu
comentário de globo ocular esmeralda. Ele também estava triste
por causa da minha avó, mas isso não o impediu de sorrir quando
falou comigo. Eu não o via desde que era bebê, então não me
lembrava dele ou da minha avó, mas assim que cheguei, ele agiu
como se já fôssemos melhores amigos.

Vovô se curvou para a frente e afundou um joelho na grama,


ficando tão baixo quanto eu. Ele fazia muito isso. Isso me fez sentir
especial, como se ele estivesse no meu time e não no dos adultos.

— Eu pinto a lã delas para combinar com a minha casa. Você


é muito inteligente, — disse ele. — As ovelhas são criaturas
astutas. Embora pareçam gordas e nada ágeis, são magras sob
toda aquela lã e podem pular como um bode. Eu vi uma ovelha se
espremer por uma brecha na cerca do tamanho de seu braço. Mas
a tinta spray é muito mais barata do que uma boa cerca, então os
outros fazendeiros e eu pintamos nossas ovelhas para combinar
com nossas casas. Assim, quando uma sai, todo mundo sabe a
quem pertence o bichinho.

Eu ri e apertei a lã da ovelha novamente, bem naquele ponto


azul brilhante.

— Darby, seja gentil, — sibilou mamãe.

Vovô olhou para ela como se estivesse prestes a fazer algo


travesso. Então, ele me deu um pequeno sorriso.

— Moça, — seus olhos verdes brilharam, — você já esteve em


uma aventura?

Minha mãe olhou para ele em advertência.

— Não. — Eu balancei minha cabeça. — Eu já estive em um


avião.

Ele riu, e pensei que ele parecia um duende. Seu cabelo laranja
outrora brilhante havia desbotado para um loiro dourado a essa
altura, e ele tinha tantas sardas que seu rosto parecia um ovo
enrugado, velho e salpicado, mas o brilho em seus olhos era tão
afiado e travesso quanto o de uma criança.

— Da, onde você vai com isso? —O sotaque irlandês da minha


mãe ficou mais forte desde que chegamos.

Vovô ignorou seu aviso e continuou falando comigo como se


fôssemos as duas únicas pessoas na terra.

Apontando para o outro lado da rua de sua casa, ele disse: —


Descendo a colina, você tem mais fazendas, se quer ver de que
cores são as bundas das outras ovelhas.
Virei a cabeça e contemplei um vale macio e verde como um
travesseiro de veludo. E adornando as colinas - como uma
dispersão de strass e pérolas - estavam as outras casas de fazenda
em tons de joias e ovelhas brancas fofas de Glenshire.

— Mas subindo a colina… — Vovô continuou, apontando atrás


de nós para a floresta que começava logo depois de sua
propriedade.

As árvores eram mais baixas do que os pinheiros altos com os


quais eu costumava voltar para casa na Geórgia. Mais bonito. Eu
ainda podia ver a forma da paisagem. A subida e descida das
colinas atrás da casa do vovô que mudavam de verde para azul e
para cinza até se erguerem em uma alta montanha roxa ao longe.

— É lá que vivem as fadas.

— Fadas?! — Gritei. Meus olhos dispararam da floresta para o


vovô, depois para minha mãe, esperando que ela confirmasse essa
notícia milagrosa, mas sua expressão era mais aborrecida do que
animada.

— Sim. — Vovô se inclinou para mim, baixando a voz. — Mas


você tem que ficar quieta se quiser ver uma. Silenciosa como um
rato. As fadas têm uma audição excelente. Se elas sentirem um
humano por perto, usarão sua magia para desaparecer assim. —
De repente, ele estalou os dedos, me fazendo pular.

Radiante, olhei para minha mãe e dei a ela meus melhores


olhos de princesa da Disney. — Podemos ir ver as fadas, mamãe?
Por favor, por favor, por favor?
Ela ia dizer não. Eu poderia dizer por sua carranca, mas
quando abriu a boca, o vovô falou em seu lugar.

— Sua mãe vai ficar aqui e me fazer companhia. Já se passaram


seis anos desde a última vez que a vi. É melhor eu aproveitar. A
próxima vez pode ser no meu funeral.

— Da1.

— Vá agora, — vovô disse, continuando a ignorar sua filha. —


Divirta-se um pouco.

Eu não sabia o significava, mas sabia que minha mãe não


estava nem um pouco entusiasmada com isso.

— Pai, ela tem oito anos. Você realmente acha que é uma boa
ideia ir brincar na floresta sozinha?

Vovô se levantou e limpou a sujeira do joelho. — Se não me


falha a memória, acredito que você encontrou uma vila inteira de
fadas lá quando tinha a idade dela. Ou era um reino?

— Um reino! — Eu gritei, saltando para cima e para baixo.

— Sim, mas...

— Ah, você está morando nos Estados Unidos há muito tempo.


Não há nada a temer nesta floresta, exceto pelo velho cão pastor
de Tommy Lafferty que continua vagando. — Ele olhou para mim
com uma cara séria. — Se você o ver, é provável que ele te lamba
até a morte, então fique atenta.

1
Pai.
— Estou mais preocupada com ela se perdendo, — mamãe
protestou, cruzando os braços sobre o peito.

— Sim, isso é fácil. — Vovô ergueu duas mãos, uma alta e outra
baixa, em concha como cúpulas. — Você sobe a colina, — disse
ele, dando um pequeno aperto na mão de baixo, — você desce a
colina. Você vê um Lougth no fundo.

— Ooh. Preciso de uma chave?

— Lough significa lago, — minha mãe corrigiu.

— E diz a lenda, este lago tem um espírito nele. Uma coisa mal-
humorada. Pode ser cruel como uma cobra se você contrariá-lo,
mas ouvi dizer que ele gosta de presentes.

Meus olhos se arregalaram, mas o vovô continuou falando


como se fosse perfeitamente normal ter um lago assombrado atrás
de sua casa.

— Do outro lado do lago, — ele deu um aperto de mão no alto,


— você vê a montanha. Não vá para aquele lado do lago. Uma
bruxa mora ali e, se os rumores forem verdadeiros, ela gosta de
comer criancinhas. Quanto mais fofa, melhor. Portanto, fique
deste lado do lago e, quando sentir falta de meu rosto bonito, volte
para o topo da colina, procure a casa azul e você o encontrará.

Vovô gostava de se referir a si mesmo como ele mesmo. Ele até


tinha uma caneca de café com a palavra.

Fiquei surpresa com todas essas novas informações, mas


minha mãe apenas revirou os olhos. — Uma bruxa, Da?
Realmente?
— Sim, você não se lembra? — Ele disse com uma pequena
piscadela. — Ninguém vai para o lado da bruxa do lago, para não
querer ser transformado em sapo.

— Eu pensei que você disse que ela comia crianças, — eu


esclareci, tentando soar super corajosa.

— Sim. — Vovô me deu um tapinha na cabeça com um sorriso.


Como se ele soubesse que eu era inteligente.

Eu era uma criança inteligente - minha mãe era professora e


insistia que eu sempre estivesse acima do nível da série em todas
as disciplinas, - mas me fazia sentir bem saber que o vovô também
me achava inteligente.

— São os adultos que ela transforma em sapos, — acrescentou.


— Não somos tão saborosos.

— Pai, pare com isso. Você vai assustá-la. — Virando-se para


mim, minha mãe suspirou e enfiou a mão no bolso. — Acho que
você pode ir, mas, — pegando o telefone, ela tocou na tela algumas
vezes antes de enfiá-lo no bolso de trás e cobri-lo com minha
camiseta, — não se atreva a chegar perto daquele lago. Quero
dizer. E quando o alarme disparar, — ela apontou para o meu
bolso, — você vem direto para casa. Está me ouvindo?

Eu a abracei com tanta força que ela soltou um gemido antes


de eu sair correndo direto para a floresta.

— Pare e pegue um biscoito antes de ir, — vovô gritou atrás de


mim. — Se você encontrar um anel de fada, coloque-o no meio e
veja se consegue atrair uma. As pessoas boas adoram biscoitos.

— Aquiiiiii, fada, fada, fada, — sussurrei enquanto caminhava


na ponta dos pés para a floresta, segurando aquele doce açucarado
na minha frente como um dispositivo de localização. Precisei de
toda a minha força de vontade para não comê-lo eu mesma.

Biscoitos, eu descobri, eram apenas deliciosos biscoitos


recheados com creme de baunilha no meio que você podia comer
se fingisse gostar de chá.

Na sombra, o ar estava úmido e frio. Muito legal para o verão.


Estremeci quando arrepios se espalharam por meus braços e
pernas. Senti um formigamento, como se houvesse bolhas de
refrigerante estourando por toda a minha pele.

Deve ser a magia das fadas, pensei.

Não só estava mais escuro na floresta do que eu esperava, e


mais frio, mas também mais verde. Até os troncos das árvores
eram verdes e felpudos.

Talvez seja para que as fadas possam subir nas árvores sem se
estilhaçar.

O pensamento me fez sorrir, mas depois me fez pensar em meu


pai. Ele tinha sido o puxador de farpas oficial em nossa casa. Ele
tinha uma técnica incomparável com um alfinete de segurança e
um par de pinças. Ele diria algo bobo para me distrair, e antes que
eu percebesse, não havia mais farpas. Mas isso foi antes de ele
ficar mau. Antes que minha mãe o obrigasse a ir embora. Antes
que ele perdesse a custódia completamente.

Esforcei-me ao máximo para não ficar com lascas depois disso.

Aposto que papai poderia encontrar uma fada se ele estivesse


aqui.

Ele provavelmente poderia encontrar aquela bruxa também. E


bater nela por comer todas aquelas crianças.

Meu pai era o baterista de uma banda de rock de um só hit. Ele


estava coberto de tatuagens e tinha braços grandes e musculosos
que gostava de exibir usando camisetas sem manga o ano todo.
Quando eu era criança, achava que ele podia bater em qualquer
um.

A única coisa que minha mãe me disse quando ele perdeu todos
os direitos de visita foi que ele precisava ‘trabalhar em si mesmo’,
mas isso não fazia o menor sentido para mim. Se alguém precisava
consertar o carro ou consertar a casa, levava apenas alguns dias.
Semanas no máximo.

Enquanto isso, eu não via meu pai há três anos.

— Aquiiii, fada, fada, fada, — sussurrei novamente, curvando-


me para que eu pudesse olhar sob um pequeno e gordo cogumelo;
uma samambaia grande e áspera; e entre as fileiras de fungos
ondulados crescendo na lateral de um tronco em decomposição.

Nada.

Eu sabia que deveria ter perguntado ao vovô o que era um anel


de fada antes de ir embora, mas estava com tanto medo de que
minha mãe mudasse de ideia que não quis esperar pelos detalhes.
Mas agora, eu não tinha ideia do que estava procurando.

Quando finalmente cheguei ao topo da colina, tive que cobrir


minha boca com a mão para não ofegar alto e assustar todas as
fadas. Lá, do outro lado, havia um mar de flores, seus botões
apontando para baixo em vez de para cima, como minúsculos
sinos roxos de igreja.

Deve ser aqui que as fadas cultivam seus chapéus!

Prossegui com extrema cautela, tomando cuidado para não


pisar em uma única flor. Eu não queria que alguma pobre fada
tivesse que usar um chapéu amassado por minha causa.

Aposto que elas usam as hastes como escorrega. Eu faria se


fosse uma fada. Ooh! Eu deveria fazer um balanço para elas para
combinar com todos esses escorregas!

Enquanto eu procurava no chão da floresta algo para fazer um


balanço, tropecei em um cogumelo vermelho adoravelmente
gordinho com bolinhas brancas. Isso me lembrou de uma casa
Smurf. Então, eu vi outro e outro. Então, gentilmente tirei as flores
do caminho e notei que os cogumelos formavam um círculo. Ou
um…

Anel! Ai meu Deus, ai meu Deus, ai meu Deus…

Meu coração disparou enquanto estendi lentamente meu


biscoito de chá em direção ao centro da formação. Minha mão
tremeu, o que naturalmente atribuí à força da magia das fadas.

Talvez elas estejam em casa! Talvez eu consiga ver uma!


Mas antes que pudesse largar o biscoito, ouvi algo que me fez
ficar imóvel como uma estátua. Era assim que minha professora
chamava sempre que queria que calássemos a boca e
congelássemos.

Parecia que as fadas estavam rindo. Mordi o lábio para não rir
também e coloquei meus melhores ouvidos atentos. Então, eu ouvi
de novo. Talvez não fosse risada, mas alguma coisa lá fora estava
definitivamente fazendo barulho. Fungando? Bufando? Mas não
parecia vir do círculo de cogumelos.

Desci a colina na direção dos barulhos, examinando o terreno


em busca de novas aldeias de cogumelos para investigar. À medida
que o barulho aumentava e os cogumelos ficavam mais escassos,
finalmente levantei a cabeça e me vi parada bem na frente de uma
parede de pedra em ruínas. Era alguns centímetros mais alto do
que eu, mas eu poderia dizer que costumava ser muito mais alto
do que isso. As rochas eram todas irregulares no topo. E não tinha
lados. A parede era curva. Como um …

Como um círculo!

Os sons eram altos agora, e definitivamente vinham de dentro.


Decidi que andar pelo lado de fora para procurar uma porta
provavelmente faria muito barulho e assustaria o que quer que
fosse, então subi em uma pedra próxima. Foi difícil escalar com
um biscoito na mão e musgo escorregadio cobrindo os lugares
planos, mas consegui. E quando me senti estável o suficiente,
encontrei dois bons lugares para colocar meus pés e lentamente
me forcei a ficar de pé.
Daquele ponto de vista, vi que estava certa - a parede era um
grande círculo - e tinha uma abertura à direita, onde costumava
haver uma porta. Provavelmente tinha sido uma casinha bonitinha
uma vez, mas agora era apenas uma ruína. Uma ruína vazia,
pensei a princípio, mas quando examinei as partes que pude ver
novamente, notei uma mancha escura, bem no fundo da parede à
minha esquerda. Ficando na ponta dos pés, estiquei o pescoço e
ergui as sobrancelhas - como se isso fosse deixar meus olhos mais
altos - até que o ponto se transformou em uma cabeça cheia de
cabelos pretos brilhantes. Cabelo preto que pertencia a…

Um menino.

Um menino de verdade, encolhido contra a parede com os


braços em volta dos joelhos, chorando na dobra do cotovelo.

Pelo menos, pensei que fosse um menino de verdade. Ele não


tinha asas. Ou orelhas pontudas. Mas a forma como o cabelo dele
balançava e enrolava nas pontas parecia bem parecido com o de
uma fada...

— Ahh! — Eu gritei quando meu pé escorregou da rocha.

No segundo em que bati nas folhas macias abaixo, corri para a


porta em pânico, esperando bloquear a saída antes que a fada
pudesse fugir.

Consegui, apenas porque, em vez de correr, a comoção fez com


que o menino se escondesse contra a parede ao lado da porta,
provavelmente esperando escapar sem ser visto se alguém
entrasse. Teria funcionado se eu não estivesse procurando por ele.
Ele se misturou às sombras como se pertencesse lá.
— Por que você estava chorando? — Eu perguntei, usando
minha voz mais suave e doce. — Sua avó também foi para o céu?

O menino apenas rosnou em resposta, mostrando os dentes e


semicerrando os olhos como um cachorro.

Minha mãe havia me ensinado a estender a mão sempre que


encontrava um cachorro estranho. Ela disse que era como se eles
pudessem dizer pelo cheiro se você era uma boa pessoa ou não.
Então, com uma respiração profunda, estendi minha mão e
observei o rosto do menino mudar de cruel para... outra coisa.

A princípio, pensei que ele devia gostar do meu cheiro, mas


depois percebi que foi o que estava em minha mão que chamou
sua atenção. Seus olhos claros se arregalaram enquanto ele olhava
para o doce açucarado.

— Você quer isso? — Eu cutuquei o biscoito em sua direção. —


Você pode ficar com ele.

O menino fez aquela cara de rosnado de novo, mas depois


arrancou o biscoito da minha mão tão rápido que me dei um pulo.

Ele enfiou tudo na boca e mastigou freneticamente com os


olhos estreitados e fixos em mim.

Eu estava com minhas costas pressionadas contra um lado da


porta. Ele me assustou, mas a ideia de deixá-lo escapar me
assustou ainda mais.

— Por que você estava chorando? — Eu perguntei novamente.

Mastigue, mastigue, mastigue.

— Onde está sua mãe?


Outro clarão. Mais mastigação.

— Qual o seu nome? Meu nome é Darby Collins. DARBY


COLLINS.

Nenhuma resposta.

— Tenho oito anos. Acabei de terminar a segunda série e já sei


a tabuada. Quantos anos você tem?

O menino engoliu em seco e se agachou um pouco, como se


estivesse prestes a fugir.

Ou atacar.

— Você também tem oito anos?

Ele balançou a cabeça, deixando seu cabelo escuro e selvagem


cair em seu rosto.

— Nove?

Não.

— Dez?

Ele assentiu.

— Você quer brincar comigo?

O menino semicerrou os olhos para mim de novo, que eu mal


podia ver espiando através de sua cortina de cabelo, mas pelo
menos ele não estava mais rosnando.

— Uau! Eu sei! Devíamos brincar de Harry Potter! Este lugar


parece a Floresta Proibida! E esta pode ser a casa do Hagrid! Parece
com isso! Você deveria ser Harry porque tem todo o cabelo preto, e
eu poderia ser Ginny Weasley porque tenho cabelo ruivo. Eles se
casam no final, sabe? Alerta de spoiler.
O menino apenas me encarou como se eu estivesse falando
grego.

— Você sabe o que é Harry Potter, certo?

Sua cabeça girou para a esquerda e para a direita tão levemente


que quase perdi.

— Você não? Oh meu Deus, é tão bom! É uma história sobre


crianças que são bruxos e bruxas, mas não bruxas más, como
aquela que mora perto do lago - quero dizer, lough.

Ele inclinou a cabeça preta desgrenhada para o lado, apenas


um centímetro ou mais.

— Também não sabe sobre a bruxa?

Outro aceno de cabeça.

— Oh meu Deus! Vamos. — Eu sorri, estendendo minha mão.


— Vamos ver!

O menino olhou para minha palma estendida. Então, ele olhou


para o meu rosto. Eu podia ver um de seus olhos através de uma
parte de seu cabelo, e era uma cor cinza tão estranha e pálida que
por um momento - apenas um momento - eu pensei que talvez ele
fosse a bruxa disfarçada. Que era tudo um truque, como em
Hansel e Gretel. Só que, em vez de me atrair para sua cabana com
doces, essa bruxa fingiu ser uma criança assustada e chorosa. Eu
estava a um segundo de correr direto para a casa do meu avô
quando o menino finalmente colocou sua mão quente e tímida na
minha, e eu senti - a mesma sensação de formigamento e
efervescência que senti quando entrei na floresta.

Ele não poderia ser a bruxa, decidi.


Ele tinha magia de fada em cima dele.

Enquanto descíamos a colina em direção ao lago, parei para


pegar dois belos gravetos retos.

— Aqui, — eu disse, entregando uma ao menino. — Esta é a


sua varinha mágica. Talvez se a bruxa nos ver e pensar que
também somos bruxos, ela nos deixará em paz.

Acenei com minha bengala, mas ele apenas olhou para a dele.

— Ei... não se preocupe, — eu disse. — Ela não vai nos pegar.


O vovô diz que estamos seguros deste lado do... lago, e o vovô sabe
de tudo.

Eu coloquei minha mão em seu ombro para tranquilizá-lo, mas


ele se afastou de mim imediatamente.

Eita.

Voltamos a andar, mas desta vez não lhe ofereci minha mão.

Por fim, as campainhas deram lugar a arbustos de amora que


agarraram meus cadarços e arranharam minhas pernas. Mas eu
podia ver o lago brilhando do outro lado deles, então segui em
frente, contorcendo-me por cada brecha nas amoreiras que pude
encontrar.

Por um minuto, não pensei que o menino fosse me seguir, mas


quando cheguei ao meu esconderijo final - um enorme carvalho na
beira do lago - ouvi o farfalhar dos arbustos ao meu lado e vi uma
cabeça desordenada. Cabelo preto apareceu no canto do meu olho.

Eu tive que me virar para esconder meu sorriso. — Você a vê?


— Eu perguntei, fingindo que estava procurando a bruxa.
Ele não respondeu, claro.

Segurando minha varinha com mais força, examinei a borda da


água, procurando por sinais de qualquer coisa... bruxaria. Não
havia nada do meu lado da árvore, então me virei para olhar para
a margem do lado dele, o que significava que eu também tinha que
olhar para ele.

O menino estava olhando para a água, perdido em


pensamentos. Mesmo que ele fosse tão imóvel e monótono quanto
uma foto em preto e branco, algo nele me lembrava fogo – seu
cabelo escuro, rebelde, na altura do queixo que se retorcia e
ondulava como chamas, seus olhos cor de fumaça, sua pele pálida.
Ele não tinha nem uma única sarda. Isso me deixou triste. Vovô
me disse que onde quer que você tenha uma sarda é onde um anjo
te beijou. Eu devo ter sido beijada um milhão de vezes, mas esse
garoto não foi beijado nem uma vez.

Talvez seja por isso que ele estava chorando, pensei.

Ou talvez fosse por causa do corte no lábio inferior. O pequeno


corte vermelho era a única coisa colorida nele.

De repente, o menino disparou para trás da árvore. Seu ombro


se chocou contra o meu enquanto ele segurava sua varinha contra
seu peito arfante.

— Você a viu? — Eu sussurrei. Meu coração começou a bater


forte, e eu não sabia se era por causa da bruxa ou pelo fato daquele
garoto estar me tocando novamente.

Ele balançou a cabeça e apontou para o lago com sua varinha.


Respirando fundo, espiei ao redor do meu lado da árvore. Eu nem
sabia o que estava procurando. A água parecia normal, meio
marrom escuro, esverdeado, azul. Havia arbustos de amoras do
outro lado do lago e mais árvores que duravam para sempre.
Apertei os olhos enquanto olhava para eles, procurando por um
urso ou um lobo ou algo igualmente aterrorizante, e foi quando eu
vi. Pedregoso, redondo e sem teto.

A casa da bruxa.

Puxei minha cabeça para trás da árvore e fiquei ombro a ombro


com o garoto, apertando minha varinha, imóvel como uma estátua
novamente. Mas as estátuas não respiram, e tenho certeza de que
estava respirando alto o suficiente para que a bruxa me ouvisse do
outro lado do lago. Ela iria nos encontrar e nos comer com certeza.

— Vamos sair daqui, — eu sussurrei. — Corre!

O menino e eu corremos de volta pelos arbustos espinhosos e


subimos a colina o mais rápido que podíamos, sem nos importar
com quantas flores de chapéu de fada pisaríamos ao longo do
caminho. Não paramos de correr até estarmos em segurança na
casa de Hagrid, com as costas contra a parede de pedra fria.

— Precisamos fazer uma poção para nos proteger contra as


artes das trevas, — eu ofeguei. — Isso é o que o professor Snape
faria. Vou pegar os ingredientes. Você encontra um caldeirão.

Eu rastejei pela porta, que felizmente ficava do lado da cabana


que a bruxa não podia ver, e comecei a procurar objetos
encantados. Não demorei muito para encontrar dois cogumelos,
três pedras brilhantes, uma variedade de folhas bonitas e o
ingrediente mais mágico de todos, uma verdadeira casca de
caracol. Isso definitivamente manteria uma bruxa longe.
Com as mãos ocupadas, voltei na ponta dos pés para dentro do
círculo de pedra, mas, quando olhei para cima, o menino havia
sumido.

Saltando para que eu pudesse ver por cima do muro, examinei


a floresta em busca de qualquer sinal dele, mas era como se ele
tivesse apenas... desaparecido.

— … eles usarão sua magia para desaparecer assim.

O som dos dedos estalando do meu avô soou em meus ouvidos.

Sentei-me no meio do chão coberto de folhas e cruzei os braços


com um humph.

Talvez ele precise trabalhar em si mesmo também.

Amassei uma das folhas grandes que encontrei até que não
passasse de confete. Então, joguei o mais forte que pude. Claro, as
peças apenas flutuaram no ar e pousaram graciosamente no chão
na minha frente, o que só me irritou mais.

— Humph.

Eu não tinha mais vontade de fazer uma poção.

Comecei a desintegrar outra folha, mas o som de folhas


quebrando do lado de fora da casa chamou minha atenção. Sentei-
me perfeitamente imóvel.

Barulho, barulho, barulho.

Os cabelos da minha nuca se arrepiaram.

Os ruídos eram definitivamente passos. E eles estavam


definitivamente vindo da direção do lago.
À medida que a trituração ficava mais alta, jurei que, a cada
poucos passos, também ouvia um som suave de respingos.

É a bruxa! Ela atravessou o lago a nado para me apanhar, e


agora, está toda pingando e molhada, e vai me comer!

Agarrei minha varinha e fechei os olhos com força e tentei me


lembrar do feitiço que Harry havia usado para explodir todos os
dementadores quando ele estava naquele lago assustador sozinho.

Expeli alguma coisa. Não, espera. Espere alguma coisa. Expecto


o quê? Espereoooo …

O barulho-respingo-respingo ficou cada vez mais alto até que


finalmente pude ver o topo da cabeça da bruxa do outro lado da
parede.

Respirando fundo, levantei-me de um pulo, apontei minha


varinha para a porta e gritei: blasto!

Mas, em vez de um feixe de luz branca cortando uma bruxa do


lago, tudo o que vi foi um menino, olhando para mim como se eu
fosse louca, segurando a varinha em uma das mãos e um sapato
de couro preto arranhado na outra.

Eu imediatamente comecei a rir. Eu ri, sorri e abaixei minha


arma não tão mortal com um suspiro de alívio.

— Pensei que tinha ido embora.

O menino entrou bem devagar, com muito cuidado, e pousou o


sapato no chão como se fosse uma bomba que precisava ser
desativada. Mas, em vez de explodir com o contato, um pouco de
água espirrou.

Meus olhos se iluminaram.


— Espere... isso é... nosso caldeirão?

O menino assentiu, seu rosto inexpressivo.

— E ainda tem água dentro?

Ele não respondeu, mas algo na inclinação de sua boca me


disse que havia mais na história. E foi quando isso me atingiu.

— Você pegou isso do lago, não foi? Você voltou lá sozinho?!

Seus olhos prateados brilhavam de orgulho.

— Essa vai ser a melhor poção de todas! — Sentada de pernas


cruzadas no chão ao lado de nosso caldeirão improvisado, juntei
meus ingredientes e entreguei as folhas ao meu novo amigo. —
Misture-os bem pequenos. Eles vão entrar por último.

Enquanto ele fazia isso, quebrei os cogumelos em pedacinhos


e os joguei na água escura. Eles flutuaram no topo como
marshmallows. Em seguida, caí nas pedras, seguida por uma
mecha do meu cabelo.

Enquanto eu mexia a mistura com minha varinha mágica, o


menino salpicou seus pedaços de folha por cima. Então, ele
estendeu a mão e arrancou uma mecha de seu próprio cabelo
também. Eu não sabia se repelente de bruxa valia para cabelos
ruivos e pretos, mas imaginei que não faria mal. Observei a mecha
escura e ondulada afundar na poção antes de me lembrar do
ingrediente mais importante.

— E, finalmente, — eu disse, entregando o tesouro ao meu


assistente, — a concha de um místico caracol da Ilha Esmeralda.

Quando coloquei a espiral perolada em sua mão estendida,


meus dedos roçaram sua pele, fazendo com que um raio atingisse
meu braço. Ele chiou e me assustou, mas não doeu - como segurar
um estrelinha no dia 4 de julho.

Magia de fada, quase sussurrei em voz alta.

Ele deixou cair a concha giratória na água turva, mas em vez


de ouvir um plop, tudo o que ouvi foi um bipe irritantemente alto.
Eu não tinha ideia do que era até registrar um momento depois
que minha bunda estava vibrando.

— Partir. — Tirei o telefone do bolso e bati na tela até o barulho


parar. — Eu tenho que ir.

Em Harry Potter, eles bebiam as poções que faziam, mas não


havia como eu beber aquela água de sapato, então fiz o que o padre
havia feito na igreja do vovô e mergulhei meu polegar nela.

O garoto sentou-se perfeitamente imóvel enquanto eu erguia


meu polegar em sua testa e desenhava um sinal de mais bem no
meio. Ele prendeu a respiração e fechou os olhos com força quando
o toquei, mas me deixou fazer isso.

— Agora você está protegido contra as artes das trevas, — eu


sussurrei.

Quando ele abriu os olhos novamente, eles estavam todos


vermelhos e lacrimejantes, como se eu devesse tê-lo machucado,
mas não consegui entender o que tinha feito.

Talvez uma gota de água tenha caído em seu olho, pensei. Tem
que ser isso.

O menino me encarou e, embora eu soubesse que era grosseiro,


retribuí o olhar. Era como se ele tivesse algum tipo de poder sobre
mim. Eu não conseguia respirar. Não conseguia piscar. E algo em
meu peito parecia que estava queimando.

— Darrrr-byyyy! — A voz da minha mãe veio subindo e subindo


a colina.

Partir.

— Chegando! — Eu gritei de volta com minhas mãos em concha


em volta da minha boca.

O garoto franziu a testa, fazendo-me notar o corte em seu lábio


novamente. Eu queria beijá-lo e deixá-lo melhor, como minha mãe
fazia comigo, mas ele era um estranho. E um menino. Minha mãe
dizia que beijar era apenas para namorados e namoradas e não até
que eu tivesse pelo menos vinte e cinco anos.

Então, tive uma ideia.

Beijei a ponta da minha varinha mágica e a coloquei o mais


gentilmente que pude em seu lábio machucado. O menino fechou
os olhos novamente, mas desta vez não os reabriu. Em vez disso,
seu rosto se contorceu sobre si mesmo e eu fiquei ali sentada,
observando com um nó na garganta e outro na barriga.

Eu não conseguia desviar os olhos até que minha mãe


finalmente gritou: — Darrrr-byyyy! — Em sua voz de professora
mais raivosa ainda.

Levantei-me de um salto e me virei em direção ao topo da colina


no momento em que os longos cabelos ruivos de minha mãe
surgiram balançando por entre as árvores. Eu registrei os ruídos
de croc-splash-crunch-splash novamente, mas desta vez, eles
estavam se afastando de mim. E eles estavam indo muito, muito
mais rápido do que antes.

Olhei para o lugar onde o menino estava sentado, mas ele já


tinha ido embora.

E ele levou nosso caldeirão com ele.

— Darby Elaine Collins! O que eu disse? Eu disse que quando


o cronômetro disparar, você deveria... — Ela parou de marchar no
meio da colina e cobriu a boca com as duas mãos. — Oh meu Deus.

Caminhando o resto do caminho com os olhos arregalados e


brilhantes, minha mãe deu uma volta completa dentro da cabana
enquanto eu examinava a floresta em busca de qualquer sinal do
menino.

— Eu esqueci completamente deste lugar, — ela disse, correndo


um dedo ao longo da costura irregular entre duas pedras. — Eu
costumava brincar aqui o tempo todo… com sua tia Shannon e seu
tio Eamonn.

Apontando para a esquerda, ela disse: — Tínhamos uma


cozinha de mentira bem aqui, onde fazíamos tortas de barro com
as panelas e frigideiras de mamãe. Shannon desenterrava a terra,
Eamonn tirava água do lago e eu misturava…

Pela primeira vez desde que chegamos à Irlanda, minha mãe


sorriu. Então, ela olhou de volta para mim. — Você se divertiu?

Eu não pude evitar meu sorriso de resposta enquanto acenava


vigorosamente em resposta.

— Ótimo, — ela disse, seus olhos tristes brilhando. — Isso é


bom.
Pegando minha mão, ela me levou para longe do meu novo
lugar favorito e subiu a colina. — Então, você encontrou alguma
coisa mágica aqui atrás?

Olhei ao redor para ter certeza de que ele não estava ao alcance
da voz. Então, coloquei minhas mãos em volta da minha boca
sorridente e sussurrei, tão baixinho quanto minha vertigem
permitiu: — Acho que encontrei uma fada da vida real.
Tentei andar o mais silenciosamente possível pela floresta para
não assustar as fadas, mas isso era meio impossível com o jogo de
chá de porcelana da minha avó chacoalhando em minhas mãos
nervosas.

Depois que minha avó faleceu, minha mãe se sentiu tão mal
com o tempo que passou longe de Glenshire que prometeu a meu
avô que voltaríamos para visitá-lo todo verão. Tínhamos que cortar
coisas como comer fora e comprar roupas novas para pagar as
passagens de avião, mas eu não me importava. Eu teria comido
arroz e feijão em todas as refeições se isso significasse que eu
poderia brincar com meu novo amigo novamente.

Minha mala mal tinha cruzado a soleira quando dei um abraço


rápido no vovô e corri loucamente para a porta dos fundos. Minha
mãe chamou meu nome e me disse para esperar, mas em vez de
enfiar um telefone no bolso e me dar um sermão sobre segurança,
ela empurrou uma bandeja de prata contendo um bule floral azul
e branco, quatro xícaras e pires combinando, um açucareiro e um
creme em minhas mãos com um sorriso melancólico. Ela disse que
ela e sua irmã costumavam ter festas de chá na ‘casa de
espetáculos’ o tempo todo.
Eu pensei que uma festa do chá parecia divertida até que
cheguei na metade da colina e percebi que não ia ser uma festa
com todo o tilintar que eu estava fazendo.

Caminhei mais devagar para ver se isso ajudaria.

Fiquei feliz por minha mãe ter me deixado ir brincar, não só


porque estava morrendo de vontade de encontrar a fada de novo,
mas também porque o irmão e a irmã dela — tio Eamonn e tia
Shannon — também estavam na casa do meu avô. Tudo o que eles
queriam fazer era sentar e conversar sobre coisas de adultos. E
como meu tio nunca teve filhos e os filhos da minha tia já eram
adultos, eles não traziam nem primos para eu brincar.

Vovô às vezes brincava comigo, mas não quando tio Eamonn e


tia Shannon estavam lá. Ambos se mudaram para cidades maiores
assim que terminaram a escola, então ele também não os via com
muita frequência. No ano anterior, ele me ensinou a jogar pôquer.
Minha mãe disse que aquele jogo não era apropriado, mas ela
estava cansada demais para brincar comigo, então desistiu.

Ela estava sempre muito cansada para brincar comigo.

Cheguei ao topo da colina e quase desatei a rir quando vi todas


as campânulas do outro lado.

Chapéus de fada. Balancei a cabeça para o meu eu ingênuo e


jovem enquanto caminhava na ponta dos pés entre as flores,
segurando a bandeja com mais força para evitar que ela fosse
empurrada. Passei por um anel de cogumelos com bolinhas
vermelhas e brancas e árvores atapetadas com musgo verde
felpudo, mas quando vi um tronco caído com coisas parecidas com
placas onduladas crescendo ao lado, levantei meus olhos com um
suspiro esperançoso.

E lá estava.

Cerca de cinquenta passos colina abaixo.

As ruínas de uma casa de pedra cinza, e projetando-se sobre a


parede dos fundos havia uma cabeça cheia de cachos pretos
brilhantes.

Eu queria pular para cima e para baixo e gritar de alegria, mas


tinha que manter a calma para não assustá-lo. Além disso, parecia
que ele estava muito concentrado no que quer que estivesse
fazendo, e meu professor sempre dizia que era falta de educação
distrair seus amigos quando eles estavam tentando se concentrar.

Ao me aproximar, percebi que a cabeça do menino estava


inclinada para o lado, olhando para o comprimento de um pedaço
de pau que ele segurava em cima da parede como se fosse uma
arma. Então, seu corpo estremeceu rapidamente — ra -ta-ta-ta-ta
— como se estivesse disparando uma metralhadora.

O menino então se abaixou e cobriu a cabeça com as duas


mãos, desaparecendo sob a parede antes de voltar para jogar uma
pedra. Ele enfiou os dedos nos ouvidos e se virou, me encarando
com os olhos bem fechados enquanto sua granada de mão
imaginária explodia em algum lugar atrás dele.

Fiquei parada na porta, certificando-me de bloquear a saída


antes de falar, caso ele tentasse correr.

— Posso jogar? — Perguntei, as xícaras de chá tremendo contra


os pires. Eu nunca havia brincado de guerra antes, mas me lembro
de uma cena de Toy Story em que Woody disse aos soldados de
plástico verde do exército para irem em uma missão.

Colocando a bandeja no chão ao lado da porta, fiquei em


posição de sentido e coloquei minha mão na testa em uma
saudação. — Sargento, estabeleça um ponto de reconhecimento.
Código vermelho. Repito, código vermelho.

O menino tirou os dedos das orelhas e lentamente olhou para


mim. Seus olhos se arregalaram de fendas a pires quando seus
lábios se separaram. Quando eles fecharam novamente, eu juro,
ele estava quase sorrindo.

Eu definitivamente estava sorrindo. Tão grande que eu tinha


certeza de que ele podia ver cada dente que faltava na minha boca
de nove anos.

Seus olhos se moveram de mim para o jogo de chá no chão, e


ele mergulhou para pegá-lo, farejando-o como um cachorro.

— As pessoas boas adoram biscoitos.

Levantei a tampa do pequeno açucareiro azul e branco,


revelando três ou quatro biscoitos - quantos conseguisse colocar
dentro antes de sair - e ofereci um a ele. — É isso que você...

Assim como da vez anterior, o menino arrancou a guloseima de


baunilha da minha mão e enfiou na boca, mastigando e grunhindo
de olhos fechados, como se fosse a melhor coisa que já provou.
Então, ele pegou o bule e o sacudiu, mas estava vazio. Seu rosto
caiu.

— Você está com sede?


Ele enfiou a mão suja no pote de biscoitos e tirou o resto dos
biscoitos.

— Posso pegar um pouco de água para você. Meu avô mora logo
depois do morro, na casa azul.

O menino levantou a cabeça e olhou para mim com as


bochechas cheias de açúcar e os olhos cheios de esperança.

— Você quer... vir?

Ele olhou para a colina atrás de mim, mastigando mais devagar


enquanto refletia sobre isso.

— Vamos. — Eu sorri, pegando o pequeno bule de porcelana.


— Vou pegar um pouco de água, e você pode ver as ovelhas do vovô
também. Elas são muito legais e têm manchas azuis nas bundas!

Eu dei um passo para trás para fora da porta. Então, outro e


outro, nunca quebrando o contato visual com o garoto de olhos
arregalados no chalé. Eu estava começando a pensar que ele não
viria quando finalmente se levantou, segurando o agora vazio
açucareiro com as duas mãos.

— Podemos conseguir mais desses também. — Eu sorri. — Meu


avô tem um monte deles!

O menino saiu da cabana e notei que seu jeans era pelo menos
cinco centímetros mais curto e tinha buracos nos joelhos. Concluí
que aquelas deviam ser suas roupas de brincar.

Sempre que eu manchava minhas calças ou tinha buracos nos


joelhos, minha mãe dizia: — Bem, acho que agora são roupas de
brincar.
Minhas roupas escolares tinham que ser bonitas porque minha
mãe era professora na minha escola, e minha aparência era um
reflexo dela - ou algo assim.

Também notei que o menino tomava cuidado para não pisar


nas campainhas, o que achei bobo porque obviamente eram
grandes demais para ele usar como chapéu, mas depois percebi
que talvez ele simplesmente não quisesse machucá-las.

A maioria dos meninos com quem estudei adorava ferir coisas


vivas. Eles arrancaram as asas das borboletas, pisaram em
formigueiros, cortaram minhocas ao meio com gravetos e
arrancaram as folhas das árvores. Mas aqueles eram meninos
humanos.

Talvez os meninos fadas fossem diferentes.

Quando chegamos à orla da mata, apontei para a casa azul no


meio do pasto. — É isso. — Eu sorri.

Algumas das ovelhas levantaram a cabeça quando ouviram


minha voz e começaram a caminhar em direção à cerca.

— Você quer acariciar uma? — Eu perguntei, destrancando o


portão. — Elas não mordem.

Abri o portão e Sir Timothy McFluffles - era assim que eu


chamava aquele da orelha torta - enfiou o focinho na minha mão,
farejando em busca de guloseimas.

— Vê? — Eu virei minha cabeça e encontrei o garoto parado na


beira da floresta, quase escondido atrás de um grande carvalho.

Eu me perguntei se a magia das fadas o impedia de deixar a


floresta. Eu não tinha pensado nisso antes. Agora, eu me senti
mal. Ele provavelmente queria muito acariciar uma ovelha, mas
não podia.

— Aqui. — Coloquei o bule no chão e arranquei um longo


pedaço de grama do chão.

Sir Timothy McFluffles não ficou impressionado com minha


oferta, mas ele me seguiu pelo portão de qualquer maneira e até a
árvore onde o menino estava escondido.

— Faça carinho nele, rápido! — Eu disse, segurando a folha de


grama com as duas mãos enquanto Sir Timothy arrancava a ponta
com uma mordida.

Aquele quase sorriso voltou quando o menino se inclinou para


tocar sua lã, mas no momento em que deu um passo à frente, um
galho quebrou sob seu pé e Sir Timothy saiu correndo.

— Que droga!

Corri atrás dele, mas o menino foi bem mais rápido. Ele
alcançou Sir Timothy em segundos, curvando-se e pegando-o em
seus braços como se ele não pesasse nada. Fiquei boquiaberta
quando ele voltou para mim, carregando Sir Timothy como se ele
fosse apenas um bichinho de pelúcia gigante e descontente.

Eu sabia que o vovô havia dito que as fadas eram rápidas,


mas... uau. Este era rápido e forte.

Eu o segui pelo portão, trancando-o atrás de nós para garantir


que nenhuma das outras ovelhas saísse, e observei o menino
colocar Sir Timothy McFluffles de pé novamente. Quando ele se
levantou, percebi que ele era muito mais alto do que eu lembrava.
E... mais bonito.
— Obrigada, — eu disse, sentindo um rubor rastejar em
minhas bochechas. — Eu teria me metido em tantos problemas.

Seus olhos correram pelo pasto, como se ele estivesse nervoso.


Como se tivesse acabado de perceber que não estava mais na
floresta.

Cara, agora é ele quem vai ter problemas.

— Você precisa voltar? — Perguntei. — Tudo bem se você fizer


isso. Posso pegar um pouco de água e levar...

— Ei! — Uma voz berrou da direção da casa. — Cai fora, rapaz,


antes que eu solte o cão em cima de você!

Virei-me para encontrar meu avô marchando pela grama,


acenando com as mãos no ar como se estivesse tentando afugentar
um pássaro.

— Vovô! — Abri os braços e parei na frente do menino,


mortificada com o comportamento do meu avô. — Este é o meu
amigo. Ele só estava me ajudando...

— Entre em casa, mocinha. Prossiga.

— Mas... — Senti um farfalhar do vento em minhas costas e me


virei para o garoto, mas tudo que vi foi a parte de trás de sua
cabeça enquanto ele pulava a cerca e desaparecia na floresta.

Os braços do meu avô me envolveram então, me puxando com


tanta força contra seu peito que eu podia ouvir seu coração
batendo lá dentro.

— Jesus, Maria e José, — ele disse, me apertando ainda mais


forte. — Você me assustou até o túmulo, moça.
Então, ele me soltou e bateu na testa, no peito e em ambos os
ombros com dois dedos, desenhando uma cruz invisível.

— Por quê? — Perguntei. — Ele é uma fada, vovô? As fadas são


perigosas?

Eu queria dizer a ele que eu o toquei antes e senti um toque de


magia, mas não achei que o vovô ficaria muito feliz com isso.

Guiando-me pelos ombros, vovô se virou e me conduziu de volta


para casa. — Esse menino não é uma fada, — ele resmungou. —
Ele é algo completamente diferente. Há rumores de que sua mãe
era um personagem desagradável. Uma adoradora do diabo. Ela
trouxe Kellen para o padre Henry alguns anos atrás, quando ele
era apenas um garotinho. Disse que ele era o produto de um
relacionamento que ela teve com o próprio Diabo. Ela não podia
mais cuidar dele, então padre Henry o acolheu. Pensou que
poderia salvar sua alma. Mas o rapaz não fala. Não sorri. Fui
expulso da escola por morder e rosnar o tempo todo. Ele é puro
mal, aquele. É melhor ficar longe.

— Ele não é mau, vovô. Ele é uma fada, eu juro! Ele tem lindos
olhos prateados, vive em um anel de fadas e come doces. Assim
como você disse! E ele é legal. Ele nem pisa em flores e trouxe Sir
Timothy de volta quando eu acidentalmente o deixei sair pelo
portão.

Eu bati a mão sobre minha boca. O vovô não deveria saber


dessa última parte.

— Não se engane, moça. — Ele olhou para mim, levantando


uma espessa sobrancelha loira avermelhada em advertência. —
Você sabe o que dizem sobre o Diabo. Uma vez, ele era o anjo mais
lindo de Deus.

Olhei por cima do ombro para a árvore, onde o menino – Kellen


– estava escondido minutos antes. Eu esperava encontrá-lo parado
ali, me observando.

Mas ele se foi.

E o bule da vovó também.


Coloquei no chão duas varas boas e retas em forma de X e tirei
do bolso um dos pregos que havia roubado da bancada de padre
Henry. Eu não fui estúpido o suficiente para arriscar pegar o
martelo dele também, então cravei o prego com uma pedra.

Wham!

Três dias. Darby voltou por três dias, e ela não veio me procurar
uma vez.

Wham! Wham! Wham!

Eu sabia porque estava vigiando a casa do avô dela todos os


dias desde o início das férias escolares. Eu até afastei suas
malditas ovelhas uma ou duas vezes, esperando que ele me visse
sendo útil e mudasse de ideia sobre deixar Darby brincar comigo,
mas...

Eu quebrei o prego de novo - meu braço desengonçado de doze


anos reunindo a força de alguém com o dobro do meu tamanho e
tão irritado quanto - e quebrei o palito de cima bem no meio,
tornando-o inútil.

— Porra!
Joguei o galho mutilado por cima do muro do chalé e ouvi algo
que não ouvia há trezentos e sessenta e oito dias. O som mais
bonito de todo o maldito mundo.

— Kellen?

Minhas entranhas se contorceram em nós violentos quando


pulei para cima, de frente para a colina. Eu a vi instantaneamente,
uma profusão de cores em um mar de verde. Cabelo laranja
acobreado. Um moletom com listras de arco-íris. E um par de
galochas tão amarelas quanto a casa da fazenda do Sr. Lafferty.

Prendi a respiração enquanto ela quicava morro abaixo,


tomando cuidado para não pisar em uma campânula ou tropeçar
na raiz de uma árvore. Ela estava carregando um saco de papel
pardo e, quando seus olhos finalmente se ergueram, eles
pousaram bem em mim.

Com um sorriso.

Aquele sorriso desdentado me destruiu. Atravessou-me com a


brutalidade medieval. Não estava limpo. Ou rápido. Foi lento,
irregular e estilhaçado ao perfurar meu coração, torcendo na
entrada, arrastando na saída. Deixou um milhão de fragmentos
quebradiços para trás, garantindo que eu nunca esqueceria a
quem pertencia aquele órgão.

Darby Collins.

A única pessoa que sorriu quando me viu.

— Oi. — A palavra simplesmente... saiu de mim. Foi apenas


uma respiração com um som realmente. Um sussurro. Mas
quando Darby o ouviu, sua boca passou de um sorriso a uma
risada.

— Você pode falar! — Seus olhos grandes e redondos ficaram


ainda maiores e mais redondos enquanto ela descia o resto da
colina. — Eu pensei ter ouvido você dizer algo quando jogou aquele
bastão, mas então eu fiquei tipo, Nah, Kellen não pode falar, mas
então... oh meu Deus, Kellen! Você pode falar!

E assim, a porta de ferro na minha garganta se fechou


novamente. Eu praticamente podia ouvir as correntes, ferrolhos e
fechaduras deslizando no lugar, prendendo todas as palavras que
eu queria dizer dentro de mim, mantendo meus pensamentos
prisioneiros junto com a minha capacidade de pelo menos fingir
ser uma porra de uma pessoa normal.

— Doido.

— Demônio.

— Bastardo de Satanás.

— Ouvi dizer que ele não pode falar porque sua língua é
bifurcada como uma cobra.

— Ouvi dizer que ele tem um rabo com uma forquilha na ponta.

— Ouvi dizer que ele matou a própria mãe.

— Você sabe que o pai dele é o Diabo, certo?

— Ele é puro mal, aquele. Basta olhar para os olhos.

Eu não conseguia respirar. O fogo e a frustração em minha


barriga se transformaram em um inferno que queimou minha pele
e me fez suar. Eu me virei e tirei meu cabelo de trás das orelhas,
puxando-o para frente para esconder a vermelhidão em minhas
bochechas enfurecidas.

Os passos pesados de Darby ficaram mais altos enquanto ela


se dirigia para a cabana.

— Tenho tentado vir brincar desde que cheguei aqui, mas tem
chovido há dias! Mamãe não deixa eu brincar fora na chuva porque
vou sujar toda a roupa, mas eu pensei que esse era o objetivo de
ter roupas de brincar. Eu disse isso a ela, mas então ela me
criticou por falar mal e disse que eu precisava passar um tempo
com minha tia, meu tio e meu avô. Mas eles são tão chatooos. E o
vovô não tem nada de criança em casa. Eu tenho feito desenhos
no chão com suas fichas de pôquer e cartas de baralho por três
anos inteiros - oh meu Deus!

Darby parou na porta, sua sombra espalhando-se pelo meu


trabalho, e engasgou.

— Kellen! Você tem móveis!

Ela caminhou até o centro da cabana, virando-se lentamente


enquanto segurava aquele saco de papel contra o peito, e o olhar
de admiração em seu rosto parecia uma brisa fresca contra minha
pele ardente.

Enquanto ela estudava cada cadeira de madeira, mesa de toco


e cama de palha da cabana, eu a estudava. Ela estava um pouco
mais alta. Seu cabelo um pouco mais longo. Mas foi como se no
momento em que ela entrou naquela floresta, o último ano da
minha vida – cada merda de segundo dele – tivesse simplesmente
desaparecido.
— Espere. — Sua cabeça girou em minha direção. — Você fez
todas essas coisas?

Eu balancei a cabeça.

Eu estava trabalhando lá todos os dias desde que ela saiu.


Fazer coisas era a única maneira que eu conhecia de tirar minha
mente da espera. E talvez, pensei, se eu arrumasse o chalé direito,
pudesse morar lá um dia. Apenas... fugir e nunca mais volte.

— Oh meu Deus! O jogo de chá da vovó! Eu esqueci


completamente disso! — Darby pegou uma pequena xícara de chá
da bandeja que eu havia colocado em uma mesa de toco na área
designada para a cozinha. — E olha... tem até chá dentro!

Ela franziu os lábios e fingiu beber a água da chuva que


escorria por cima. Então, ela o colocou de volta em seu pires
inundado com uma risadinha.

Virando-se, o sorriso de Darby desapareceu quanto mais ela


olhou para mim.

Todo mundo estava sempre olhando para mim.

Abaixei minha cabeça, deixando meu cabelo cair para frente e


cobrir mais meu rosto. O padre Henry queria cortá-lo há anos, mas
toda vez que ele tocava no assunto, eu apenas apontava para uma
foto de Jesus na parede - havia uma em cada cômodo da casa - e
ele se calava sobre isso.

Eu não queria parecer com Jesus — Deus e seu filho estavam


tão mortos para mim quanto eu estava para eles. Eu só precisava
de um amortecedor entre mim e os olhos arregalados de cada
idiota em Glenshire.
As crianças na escola eram as piores. Elas desafiaram umas às
outras a me fazer tropeçar, me socar, cuspir em mim, cortar
pedaços do meu cabelo. Elas me chamavam de Hellboy, diziam que
eu era filho de Satã.

E eu era. Padre Henry havia me dito isso. Ele disse a toda a


porra da aldeia.

Mas ele não disse a Darby.

— Uau. — Ela sorriu. — Seu cabelo está ficando tão comprido.

Tudo o que pude ver foram as botas amarelas enlameadas


quando ela se aproximou e parou bem na minha frente.

— Eu trouxe algo para você.

Ela enfiou o saco de papel no meu estômago. Um grunhido saiu


de mim quando estendi a mão para agarrá-lo. Era mais pesado do
que eu esperava.

Olhei para ela através do meu cabelo e tive que morder o


interior da minha bochecha para não sorrir. Ela estava pulando
para cima e para baixo, sorrindo como uma idiota.

— Abra! Abra!

Coloquei a bolsa no chão ao meu lado com um baque.


Estendendo a mão, tirei um frasco de pepino de vidro. Só que em
vez de pepinos em conserva, estava cheio de...

— Água! — Darby gritou. — Vovô só tem copos e outras coisas


para beber, então eu tive que colocar em um pote velho de picles,
mas lavei muito bem primeiro!
Abri a tampa e cheirei o conteúdo. Ainda cheirava a salmoura,
mas eu não dava a mínima. Eu não tinha bebido uma gota desde
o café da manhã. Eu não queria ir para casa caso Darby
aparecesse.

Honestamente, eu não queria ir para casa nunca.

Bebi a água com vinagre até ter que parar para respirar. Então,
eu bebi um pouco mais. Senti escorrer pelos cantos da minha boca
e pelo colarinho enquanto Darby ria.

— Você estava com sede!

Quando não aguentei mais uma gota, fechei a tampa e limpei a


boca com a camisa, sentindo minhas bochechas esquentarem
novamente. Darby deve pensar que sou nojento, mas se pensou,
ela foi educada o suficiente para não demonstrar.

— Tem mais! — Ela disse, apontando para a bolsa. — Olha!


Olha!

Coloquei a jarra no chão e respirei fundo. Então, eu enfiei a


mão na bolsa novamente. Meus dedos roçaram em algo áspero e
quebradiço. Muitas coisas.

— Eles são seus favoritos! — Darby aplaudiu quando tirei um


punhado de biscoitos esmagados.

Fiquei com água na boca ao vê-los, mas minha garganta


trancou completamente quando correntes pesadas e enferrujadas
de emoção se apertaram em volta do meu pescoço. Respirar era
difícil. Engolir? Impossível.

Coloquei os biscoitos de volta na sacola e Darby franziu a testa.


Eu queria dizer a ela que sentia muito. Eu queria dizer a ela que
senti falta dela a cada maldito segundo desde que ela partiu. Eu
queria dizer a ela que não podia comer porque algo estava errado
comigo, com minha garganta, e ela não deixava passar nada. Nem
mesmo as palavras obrigado. Mas eu não podia, e isso a deixou
triste.

Darby olhou para suas botas de borracha com o lábio inferior


aparecendo, e um pânico gelado tomou conta de mim.

Ela estava indo embora.

Se eu não fizesse alguma coisa, ela iria embora.

Eu não conseguia falar. Eu não conseguia comer. Então, em


um momento de desespero, fiz algo que não fazia com outro ser
humano desde os cinco anos de idade.

Dei um passo à frente e dei-lhe um abraço.

A cabeça de Darby mal chegava ao meu ombro, mas ela passou


os braços em volta da minha cintura e me apertou com tanta força
que quase ri.

Com o rosto pressionado contra meu peito, ela disse: — Vovô


diz que eu deveria ficar longe de você porque seu pai é o Diabo,
mas não me importo com isso. Ele diz que meu pai é um filho da
puta, mas você ainda vai brincar comigo, certo?

Eu não tinha mais vontade de rir.

Ela sabia. Ela sabia, e ela voltaria de qualquer maneira.

Apertei meus olhos fechados e balancei a cabeça em meio à dor,


deixando meu queixo bater no topo de sua cabeça para que ela
sentisse minha resposta.
— Bom! — Darby piou, soltando minha cintura e dando um
passo para trás. — Vamos brincar de barbearia!

Agarrando uma das cadeiras que fiz, ela a colocou na minha


frente com a língua para fora da boca e as sobrancelhas franzidas.

— Isso vai te segurar?

Eu balancei a cabeça, quase completamente paralisada pela


onda de emoções que me inundou durante o nosso abraço.

— Ele vai? Uau. Você deveria fazer móveis quando crescer.

Darby tirou algumas coisas da bandeja de chá, despejou a água


da chuva e as colocou na parede atrás de mim. Então, ela pegou
dois palitos pequenos e fez um V com eles, abrindo e fechando com
as duas mãos, como uma tesoura. Assim que ela ficou satisfeita
com sua configuração, Darby gesticulou para que eu me sentasse.

— Olá, senhor, bem-vindo à barbearia Little Cottage. O que o


traz aqui hoje?

A cadeira rangeu quando me sentei e olhei para o chão.

Darby estava bem na minha frente, seus dedos delicados


roçando minha testa enquanto ela afastava o cabelo do meu rosto.

— Um baile no castelo? Meu Deus! Bem, não se preocupe,


senhor. Vamos limpá-lo rapidamente.

Fechei os olhos e me concentrei na minha respiração enquanto


seus dedos deslizavam pelo meu cabelo de novo e de novo.
Tocando-me. Removendo a única coisa que eu tinha para
esconder, alguns fios de cada vez.
Deixando cair sua falsa voz de barbearia, Darby disse: — Isso
é divertido. Talvez eu devesse ser cabeleireira quando crescer. Eu
costumava pensar que seria professora, como minha mãe, mas ela
está tão cansada e mal-humorada o tempo todo. Ela diz que
ensinar é o trabalho mais difícil de todos. Ela também diz que eles
não pagam o suficiente porque 'a sociedade desvaloriza as
ocupações tradicionalmente femininas.' — Darby disse essa última
parte em uma voz profunda e adulta.

Depois de puxar meu cabelo na altura dos ombros para trás


das orelhas, Darby começou a passar um pedaço de pau sobre ele,
como um pente, e eu não sabia se queria que ela parasse ou
continuasse fazendo isso para sempre. Doeu muito. Não os nós ou
os emaranhados, mas a ternura. Parecia que ela estava cortando
meu coração ao meio com aquela porra de pau.

— Eu também quero ser uma YouTuber quando crescer. Já


tenho meu próprio canal no YouTube. Chama-se Adventures in
Teddy Bear Land2 . Eu faço vídeos dos meus bichos de pelúcia.
Todos eles moram na Terra do Urso de Pelúcia, e há um rei, uma
rainha e um castelo. No meu último vídeo, era o aniversário da
rainha, então todos os bichos de pelúcia se fantasiaram, entraram
em seus carros e foram até o castelo para uma festa. Usei as caixas
de sapatos da minha mãe para fazer carros. Ela disse que eu podia.

De repente, uma lembrança brilhou em minha mente. Uma


imagem de minha própria mãe, ajoelhada ao lado de uma
banheira, lavando meu cabelo quando eu era pequeno. Parecia que

2
Aventuras na Terra do Urso Tedd.
eu nem estava mais no meu corpo. Eu estava atrás dela naquele
banheiro mal iluminado, observando por cima do ombro enquanto
ela massageava as bolhas em meu couro cabeludo.

Eu podia sentir o cheiro do xampu. O suor debaixo dos braços.


Eu podia até sentir o cheiro da taça de vinho que ela derrubou da
borda da banheira com o cotovelo. Observei quando ele caiu na
água com um esguicho, enquanto eu, de quatro anos, me
arrastava horrorizado para o canto de trás da banheira, o líquido
vermelho se espalhando em minha direção como uma poça de
sangue.

Meus olhos se abriram com um suspiro.

— Desculpe, — Darby disse, acalmando suas mãos. — Vou


tentar ser mais gentil. Você tem muitos emaranhados aqui atrás.

Darby largou o bastão e começou a puxar mechas de cabelo até


o topo da minha cabeça. As pontas de seus dedos pareciam
lâminas de barbear enquanto se arrastavam pelo meu couro
cabeludo. Foi muito intenso. Muito doloroso. Ninguém tinha me
tocado daquele jeito desde...

Desde ela.

— Então, na festa de aniversário da rainha, — Darby


continuou, — todos os bichos de pelúcia trouxeram presentes e
dançaram, e eles até tiveram uma guerra de comida! Tenho um
monte de comida de plástico da minha cozinha de brincar que os
fiz jogar uns nos outros. Foi tão engraçado. O rei e a rainha
também fizeram isso.
Fechei os olhos e imediatamente vi minha mãe de novo, mas
desta vez eu não estava na banheira. Eu estava no banco do carona
do carro dela em frente à casa do padre Henry. Seus olhos não
pareciam certos. As partes brancas eram muito vermelhas. E ela
tinha feridas nos lábios. Ela lambeu os dedos e passou-os pelo
meu cabelo, dizendo-me para ser bom para o padre Henry.
Dizendo-me que ela tinha que ir embora.

Um conjunto diferente de dedos deslizou pelo meu cabelo,


puxando e torcendo as sessões na parte de trás, e eu tive que me
lembrar que não era ela. Era Darby. Não ela.

Ela se foi. E ela nunca mais voltaria.

— Então, os dragões voaram e entregaram o bolo! — Darby


comemorou quando seus dedos deslizaram pela minha nuca,
juntando o resto do meu cabelo. — Eles também entregaram um
presente de Sir Whiskers McLongtail. Ele estava em casa doente e
não pôde vir.

Eu não conseguia respirar. Eu não conseguia respirar, porra.

— Mas o rei e a rainha da Terra dos Ursos de Pelúcia foram tão


legais que, quando a festa acabou, pediram aos dragões que os
levassem direto para a casa de Sir Bigodes para que pudessem dar
a ele um pedaço de bolo de aniversário e um pouco de canja de
galinha. Iiiii... fim!

Darby pousou as mãos em meus ombros e meus olhos ardentes


se encheram de lágrimas.

— Esse vídeo tem quase cem curtidas agora! Você acredita


nisso?
Em pânico, limpei meus olhos com as palmas das duas mãos.
Eu não poderia chorar na frente dela novamente. Eu não.

Mas eu estava. Meus punhos e bochechas estavam cobertos de


lágrimas quando Darby caminhou até a frente da cadeira.

— Sim, senhor. Você está pronto. Isso vai ser...

Levantei-me tão rápido que derrubei a cadeira enquanto corri


para a porta.

Tudo doeu. Meus olhos, minha garganta, meus pulmões,


aquela porra de músculo inútil no centro do meu peito, meus
braços enquanto os galhos e arbustos os rasgavam e rasgavam. Eu
não conseguia pensar nela. Eu nunca pensei nela. Mas a ternura
de Darby, seu toque, quebrou as fechaduras que mantinham suas
memórias afastadas. Isso me destruiu.

Eu não conseguia impedir que as lágrimas caíssem, assim


como não conseguia impedir que as imagens piscassem atrás dos
meus olhos. Um bolo de aniversário. Ela cantando. Um presente
com papel de dinossauro e um laço em cima.

Quando a casa do padre Henry apareceu por entre as árvores,


o campanário da igreja atrás dela, senti como se estivesse sendo
queimado vivo. A casa dele era pequena, cedida pela igreja para o
padre morar sozinho, e ficava nos fundos do cemitério, na orla da
mata.

Passando correndo pelo cemitério, irrompi pela porta da frente


e corri pela sala de estar, onde padre Henry estava sentado em sua
poltrona, assistindo TV.
— Ei! — Ele gritou, derramando uísque na lateral do copo. —
O que eu te disse sobre portas batendo?!

Eu não podia deixá-lo me ver chorar também.

Meus pés faziam barulho na escada de madeira que levava ao


sótão.

Os do padre Henry eram mais altos. — Volte aqui!

Eu me joguei na cama e enterrei meu rosto no travesseiro no


momento em que o interruptor iluminou o quarto com uma luz cor
de nicotina.

— O que diabos você fez com sua cabeça, garoto? — Padre


Henry rugiu. — Você parece uma porra de uma moça!

Eu nunca tinha ouvido ele dizer a palavra porra antes, mas o


que quer que ele estivesse com raiva, era ruim o suficiente para
fazê-lo dizer duas vezes.

Estendi a mão e senti a parte de trás da minha cabeça. Meu


cabelo estava preso em uma trança que ia do alto da cabeça até a
nuca. Da mesma forma que as meninas usavam o cabelo na igreja.

Merda.

Enrolei-me como uma bola e cobri a cabeça com o travesseiro,


mas padre Henry o arrancou de minhas mãos e me puxou pela
ponta da trança.

— Eu sempre soube que você era uma abominação, mas isso?


Sob meu próprio teto? — Ele cuspiu no chão enquanto me
arrastava para fora da cama.
Eu me esforcei para ficar de pé enquanto ele me puxava pela
sala e pelas escadas pelos meus cabelos.

— Levítico 18:22. Não pratique a homossexualidade, fazendo


sexo com outro homem como se fosse uma mulher. É um pecado
detestável.

Eu não sabia o que isso significava. Eu nunca soube o que


significava qualquer um dos versículos da Bíblia que ele gritou
para mim - exceto que algo ruim estava para acontecer.

— Levítico 20:13. Se um homem pratica a homossexualidade,


tendo relações sexuais com outro homem como com uma mulher,
ambos os homens cometeram um ato detestável. Ambos devem ser
condenados à morte, pois são culpados de um crime capital.

Eu não queria voltar para baixo. Era lá que ele fazia seus
rituais. Onde ele me punia. Não havia nada no sótão para ele me
bater, além de seu próprio cinto.

Agarrei-me ao corrimão no alto da escada com as duas mãos e


tentei não gritar enquanto o padre Henry puxava meu cabelo com
ainda mais força.

— Garoto! Solte neste instante!

Sua palma bateu contra o lado da minha cabeça, e todo o meu


corpo balançou para o lado. Minhas costelas estalaram contra o
corrimão quando um som de toque explodiu em meu ouvido
direito. Atordoado, perdi o controle sobre o corrimão, mas
rapidamente agarrei uma das estacas de madeira para evitar que
ele me arrastasse escada abaixo.
Padre Henry imediatamente agarrou minhas mãos e começou
a arrancar meus dedos da haste estilhaçada, um por um.

Cerrei os dentes e agarrei o pedaço de madeira com mais força,


mas padre Henry era mais forte. Com outra maldição blasfema, ele
dobrou dois dos meus dedos para trás até eu gritar de dor.

— Isto é um teste, — ele resmungou, seu hálito quente e


cheirando a bebida enquanto ele envolvia seu corpo suado ao redor
do meu. Quando senti sua excitação pressionada contra a parte
inferior das minhas costas. — O Senhor sabia que seria necessário
um homem da batina para salvar sua alma perversa.

Ele puxou outro dedo para trás e eu gritei de novo, mas não
soltei. Eu me recusei a deixar ir.

— Eu não falharei, meu Senhor! Você está me ouvindo? Eu...


não... falharei!

Com um rugido ensurdecedor, padre Henry arrancou todo o


fuso do corrimão da escada, fazendo com que nós dois caíssemos
no chão. Eu a soltei assim que comecei a cair, embalando meus
dedos mutilados no peito.

Padre Henry não.

Enquanto ele se esforçava para ficar de pé, pairando sobre mim


com aquele maldito pedaço de madeira na mão, tudo que eu
conseguia pensar era: Grand. Agora há algo aqui em cima para ele
me bater.

E ele fez.

Eu não abri meus olhos. De qualquer maneira, não a princípio.


Eu não estava pronto para enfrentar a realidade de uma vez.

Primeiro, senti o chão de madeira sob minha bochecha e me


lembrei de onde estava. Então, senti a dor, subindo pelos dedos,
latejando na cabeça, e me lembrei de como cheguei lá.

Sufocando um soluço, sentei-me e afastei o cabelo do rosto. Só


que, em vez de deslizar para trás das minhas orelhas, ele caiu em
minhas mãos como uma teia de aranha.

Meus olhos se abriram, mas não consegui registrar o que


estava vendo. O que estava preso aos meus dedos. O que estava
amontoado por todo o chão.

Estendendo a mão, toquei o ponto logo acima da minha orelha,


o lugar onde minha cabeça parecia que ia explodir. E com certeza,
meus dedos encontraram um fio de sangue quente e pegajoso... e
nada mais.

Não.

Eu corri minhas mãos sobre o topo da minha cabeça. A parte


de trás. O outro lado.

Não, não, não.

De novo e de novo, esfreguei meu couro cabeludo, mas havia


sumido. Isso foi tudo. Porra. Perdido.

NÃO!
Lágrimas ferventes turvaram minha visão enquanto eu olhava
em volta para o mar de ondas negras e pedaços de trança ao meu
redor. Cachos soltos rolavam do meu peito e se acumulavam no
meu colo. Pelo menos os que não estavam grudados no sangue
seco da minha camisa.

Arrumei os fios em uma pilha no chão e os segurei em minhas


mãos mutiladas.

Era meu. Meu. E ele pegou.

— Não.

Eu ouvi a palavra daquela vez, não apenas na minha cabeça,


mas com meus ouvidos. Eu disse isso em voz alta e queria fazer de
novo.

— Não.

Imaginei um fogo ardendo em minha barriga, transformando


minhas lágrimas em vapor antes que elas pudessem cair.

— Não.

Meu sangue se tornou rios de lava derretida, derretendo minha


tristeza, minha fraqueza, minha vergonha, meu ódio por mim
mesmo. Destilando-o em raiva pura e não diluída.

— Não.

A porta de ferro que me manteve em silêncio por tantos anos


derreteu e deslizou pela minha garganta enquanto minha voz
ecoava pelas paredes inacabadas, alta, clara e forte.

— Não!
Minhas mãos se fecharam em punhos, apertando o cabelo,
apertando o mais forte que podiam, apesar da dor que irradiava
pelos meus dedos. Então, rasguei e desfiei os fios até ficarem em
um milhão de pedacinhos, mas não foi o suficiente.

Eu queria matar alguma coisa.

O fogo rugiu através de mim enquanto meus olhos disparavam


ao redor do sótão, procurando por algo mais para destruir, mas
tudo ali pertencia ao padre Henry. Ele me puniria se eu derrubasse
um copo d'água. Havia apenas uma coisa naquela casa com a qual
ele não se importava... e era eu.

Olhei para o meu braço, respirei fundo e o belisquei o mais forte


que pude. Meus olhos se fecharam enquanto eu torcia a pele o
máximo que podia, enquanto uma onda refrescante de dor passava
por cima do meu ombro, subia pelo meu pescoço e chegava ao meu
rosto.

Eu fiz isso de novo e de novo - meus braços, minhas pernas,


meu peito, meu estômago - beliscando, batendo, arranhando,
mordendo até que a dor do lado de fora me cobrisse, apagando o
fogo por dentro.

Mas quando eu finalmente extingui aquela raiva sanguinária,


a dor permaneceu. O lado da minha cabeça latejava. Meus dedos
latejavam e inchavam. Meus braços e pernas doíam em mil lugares
diferentes. E minha garganta parecia ter sido costurada com
arame farpado.

Mas também fiquei com uma percepção terrível.


Havia algo dentro de mim que não havia sido colocado ali por
Deus. Era escuro, violento, mal e cruel. Tinha um poder próprio.
E queria matar.

Eu sabia que nunca poderia soltá-lo novamente. Eu sabia que


nunca poderia deixá-los ver...

Que o tempo todo eles estavam certos sobre mim.


— Darby, continue. Vamos nos atrasar. — Minha mãe puxou
minha mão e eu me esforcei para acompanhá-la, apesar das
bolhas que se formavam sob meus sapatos de igreja brancos duros
a cada passo.

Vovô já estava quinze metros à nossa frente. A igreja ficava na


mesma rua de sua casa, e ele sempre insistia em ir a pé porque
dirigir no domingo supostamente ia contra a Bíblia. Mas isso não
fazia o menor sentido para mim. Se domingo era dia de descanso,
por que eu estava suando com meu vestido de brechó de poliéster?

Oh, certo. Por causa do padre Henry.

Ele realmente colocou o temor de Deus em sua congregação.


Antes de partirmos, meu avô nos disse que a última vez que
alguém se atrasou para um de seus sermões, o padre Henry os fez
ficar de pé na frente de todos e recitar uma oração para pedir
perdão a nosso Pai celestial. Vovô agiu como se fosse o pior destino
do mundo, mas para uma garota de dez anos que só ia à igreja
uma vez por ano, pedir perdão parecia muito melhor do que perder
toda a pele dos meus pés para aqueles cruéis sapato.

— Eu não posso ir mais rápido, mãe. Meus pés doem!

— Você tem ideia de como vou ficar mortificado se tivermos que


nos levantar e rezar o Pai Nosso na frente de toda a aldeia, e você
nem sabe a letra? Seu avô vai descobrir que não tenho levado você
à igreja.

Ela olhou para o relógio enquanto acelerava o passo.

— Merda. Repita depois de mim. Pai nosso que estais nos céus,
santificado seja o vosso nome…

Minha mãe arrastou meu corpo protestante em uma curva da


estrada, e a capela se ergueu ao longe. Pedra cinza. Vitral. Um
campanário alto e duas grandes portas vermelhas de aparência
medieval com ferragens pretas pesadas. Quando vim para
Glenshire pela primeira vez, senti como se a igreja quisesse me
comer.

O fato de minha avó ter sido enterrada no cemitério dos fundos


provavelmente não ajudou.

— Ok, agora, você diz isso.

— O que? — Pisquei para minha mãe quando ela se virou e


olhou para mim por cima do ombro.

— Você nem estava ouvindo! Darby! Em alguns minutos, padre


Henry vai nos fazer ficar de pé na frente de todo mundo e...

— Posso ficar do lado de fora?

Minha mãe parou de andar e se virou para mim, seus olhos


castanhos exaustos brilhando de repente com esperança. —
Darby, você é um gênio sangrento.

Beijando-me na cabeça, ela apontou para a área gramada ao


lado do estacionamento. — Se eu correr para dentro, posso confiar
em você para ficar aqui até o serviço terminar?
Eu nem tinha acabado de assentir quando minha mãe levantou
o vestido e saiu correndo pelo estacionamento de cascalho,
recitando o Pai Nosso baixinho o tempo todo.

Vovô segurou a pesada porta da frente aberta para ela


enquanto ela entrava, um olhar confuso em seu rosto sobre por
que eu não iria também. Ela deve ter dito a ele que estava tudo
bem, porque ele me deu um aceno no momento em que os sinos
da torre começaram a badalar. Contei cada estrondo profundo
antes que desaparecesse na névoa da manhã.

Dez deles, para ser exata.

Fiquei ali parada com meu vestido branco de ir à igreja, minhas


meias brancas de renda e meus estúpidos sapatos de ir à igreja
por nem sei quanto tempo. A música do órgão começou a tocar
dentro da capela. Parecia assustador, como a música que você
esperaria ouvir saindo de uma casa mal-assombrada.

Tudo naquele lugar era assustador, especialmente o cemitério


atrás dele, mas o pedaço de grama em que eu estava era
perfeitamente livre de fantasmas. E tinha dentes-de-leão amarelos
crescendo nele - da mesma cor das galochas que minha mãe
comprou para evitar que eu estragasse outro par de sapatos no
pasto lamacento do vovô. Gostei dessas botas. Elas eram super
confortáveis, e Kellen parecia gostar delas também. Ele olhou para
elas muito no dia anterior. Ou talvez ele estivesse apenas olhando
para o chão. Com todo aquele cabelo no rosto, era difícil dizer.

Ele parecia tão bonito com ele puxado para trás em uma trança
francesa. Como um daqueles soldados da Guerra Revolucionária.
O pensamento dele fez meu peito doer. Sentei-me na grama e
peguei um dente-de-leão, girando-o entre meus dedos enquanto
me lembrava de como ele estava antes de fugir de mim.

Ele estava sempre fugindo de mim.

Tirei meus sapatos estúpidos e meias com babados e plantei


meus pés descalços na grama. Eu sabia que minha mãe ficaria
furiosa se me visse sentada na grama com minhas roupas de
igreja, mas ela sempre ficava brava com alguma coisa. Sempre que
eu perguntava por que ela estava tão mal-humorada, ela dizia que
era porque estava exausta por ter que ser a mãe e o pai o tempo
todo. Mas isso não fazia o menor sentido para mim. Os pais não
fazem nada.

Eles nem se lembram de ligar no seu aniversário.

Coloquei a flor amarela atrás da orelha e resolvi pegar outra


para a vovó. Eu sabia como era ser esquecido. Eu não ia deixá-la
se sentir assim também, só porque ela estava presa em um velho
e assustador cemitério.

Levantando-me, tirei a grama da minha bunda, peguei meus


sapatos e caminhei até o portão de metal que levava ao cemitério.
Ele rangeu alto o suficiente para acordar os mortos quando eu o
abri, mas por dentro, não era nem um pouco assustador. O que
era assustador era a casinha assustadora atrás do cemitério. Eu
não tinha notado isso antes, mas lá estava, na beira da floresta -
um barraco de estuque branco e sujo que parecia estar sendo
lentamente engolido pela floresta. Eu senti como se estivesse
olhando para mim. Ou talvez fossem os fantasmas lá dentro que
me olhavam pelas janelas. Provavelmente era por isso que o
cemitério não parecia tão assustador, concluí. Porque todos os
fantasmas estavam lá.

Tive o cuidado de caminhar entre os túmulos, para o caso de


seus espíritos realmente estarem me observando, até chegar à casa
da vovó. Sua lápide era mais limpa e brilhante do que todas as
outras.

Mary Catherine O'Toole

1942 ~ 2008

Esposa dedicada, mãe amada, cozinheira terrível.

Ela fará muita falta.

Lembrei-me de que minha mãe ficou furiosa quando viu o que


o vovô havia colocado em sua lápide.

Ela disse que era de mau gosto, mas o vovô apenas riu, deu um
tapa no joelho e disse: — Mau gosto. Sim, essa é boa.

Eu coloquei a flor no chão, bem perto de onde pensei que sua


orelha poderia estar. — Aqui, vovó. Agora, podemos ser gêmeas.

Algo me chamou a atenção na mata, mas quando levantei a


cabeça, a única coisa que vi foi aquela casinha horrível.

Talvez a vovó esteja lá com os outros fantasmas, acenando para


mim.
Apertei os olhos para tentar enxergar melhor pelas janelas. A
janela à esquerda da porta estava com as cortinas fechadas, mas
a do outro lado da porta…

Engoli em seco e cobri minha boca quando um par de olhos


fundos e sombrios olhou para mim através do vidro. Então, com
um piscar de olhos, eles se foram. A cortina voltou ao lugar, como
se nunca tivesse acontecido.

Mas tinha.

Deixei meus sapatos ao lado do túmulo da vovó e saí correndo


em direção à casa. O portão dos fundos do cemitério estava
escancarado, mas o chão era lamacento entre ele e a casa. Tentei
ficar na grama enquanto cobria a distância, pulando como um
sapo até chegar à porta da frente.

— Kellen! — Eu gritei entre respirações ofegantes, batendo na


porta o mais forte que pude. — Kellen, sou eu! Darby!

Quando ele não respondeu, eu realmente comecei a me


preocupar.

E se ele estiver lá com os fantasmas? E se eles o agarraram


ontem quando ele fugiu, e agora, eles não vão deixá-lo sair? E se ele
estiver preso lá dentro?

— Kellen?

Toc, Toc, toc.

Encostei o ouvido na porta e não ouvi nenhum som, então corri


de volta para a grama e peguei dois gravetos curtos. Segurando
uma em cada mão, bati mais uma vez, meu coração batendo forte
no peito enquanto agarrei a maçaneta.
A porta era do mesmo tom profundo de vermelho da igreja. Ela
rangeu e gemeu quando se abriu, tossindo fumaça de cigarro velho
em meu rosto. Dei um último suspiro de ar fresco antes de entrar,
segurando minhas baquetas na minha frente em forma de cruz.

Estava absolutamente silencioso na casa e definitivamente


assombrado. Olhei ao redor procurando por Kellen, mas os únicos
olhos olhando para mim pertenciam às pinturas de Jesus nas
paredes. A mobília era antiquada. A maioria das cortinas estava
fechada. E os cinzeiros estavam transbordando, assim como os
pratos na pia da cozinha, que eu podia ver por uma porta estreita
do outro lado da sala.

— Kellen? Você-

O som de madeira rangendo sob o peso de alguém me paralisou


de medo. Eu congelei, prendendo a respiração enquanto ouvia.
Quando ouvi de novo, parecia que vinha da cozinha.

Com o coração martelando nos ouvidos e as mãos suando ao


redor daqueles dois gravetos úmidos, fui na ponta dos pés até a
porta, respirei fundo e espiei lá dentro.

O movimento explodiu à minha direita no segundo em que meu


rosto cruzou a soleira. Virando-me, tive um vislumbre fugaz de um
menino magro correndo por um lance estreito de escadas. Com
base nos gemidos dos degraus de madeira sob seus pés, parecia
que ele estava subindo dois de cada vez.

— Kellen, espere!

Larguei minhas baquetas e corri atrás dele. O ar cheirava


menos a cigarro e mais a mofo quanto mais subia a escada. Ele
virou no meio e me depositou em um sótão escuro como breu,
iluminado apenas pela luz que passava pela curva da escada.

— Kellen? — Meu coração estava acelerado. — Você pode


acender uma luz? Está tão escuro aqui em cima. — Diminuí a
velocidade enquanto subia os últimos degraus.

— É aqui que você mora?

— Por que você continua fugindo de mim?

Passo, passo.

Deslizei minha mão ao longo da parede até que meus dedos


roçaram um interruptor. Quando o liguei, o espaço foi
instantaneamente iluminado por uma única lâmpada fraca no
centro da sala. Não, não é um quarto. Um sótão. Esboçado.
Empoeirado. Sujo. Inacabado. O teto foi inclinado com vigas de
madeira expostas. As paredes estavam nuas. O chão era coberto
por tábuas de madeira ásperas e irregulares. E andando por ela,
com as duas mãos na cabeça e uma carranca no rosto, estava o
garoto em quem eu não conseguia parar de pensar.

No segundo em que a luz acendeu, Kellen pegou um travesseiro


marrom-amarelado da cama ao lado dele e o segurou na frente de
seu rosto com as duas mãos. Ele estava usando as mesmas roupas
do dia anterior, mas sua camiseta agora tinha uma mancha
marrom-avermelhada.

Da mesma cor da que está no chão perto da escada.

Por isso que ele fugiu tão repentinamente no dia anterior.


Eu sorri. — Está tudo bem, — eu disse, dando um passo mais
perto. — Você não precisa se envergonhar. Às vezes também tenho
hemorragias nasais. Eu sei que pode ser assustador, mas...

Minhas palavras sumiram quando o peito de Kellen começou a


subir e descer, cada vez mais rápido. Ele apertou o travesseiro até
os nós dos dedos ficarem brancos. Então, ele enterrou o rosto nele
e rosnou. Eu nunca tinha ouvido nada parecido. Não era humano.
Foi profundo, gutural, horrível e doloroso. Seus joelhos dobraram
e suas costas ossudas arquearam para a frente quando ele soltou
aquele som no travesseiro, mas em vez de uma cabeça cheia de
cachos pretos soltos caindo para frente, tudo o que vi foi... nada.

Engoli em seco, e todo o corpo de Kellen ficou rígido.

Levantando-se, ele abaixou as mãos lentamente - o travesseiro


achatado e sujo tremendo em suas mãos - até que eu pudesse ver
seu rosto inteiro. Eu nem o reconheci a princípio. Seus suaves
olhos cinzas se estreitaram em fendas. Seus dentes estavam
arreganhados e suas narinas dilatadas a cada respiração que ele
sugava.

Ele não parecia mais uma fada. Ele parecia um demônio.

Eu já tinha visto Kellen assim antes, quando o encontrei


chorando na cabana. Ele estava tão bravo; era como se ele tivesse
se transformado em um animal selvagem. Como se ele quisesse me
machucar.

Eu disse às minhas pernas para correr - meu coração estava


batendo como se eu já estivesse correndo - mas meus pés se
recusaram a se mover. Porque eu sabia por que Kellen estava tão
chateado. E não foi uma estúpida hemorragia nasal.
Lágrimas encheram meus olhos enquanto eu absorvia o resto
dele. O lindo cabelo de Kellen havia sumido, cortado em mechas
desiguais com algumas mechas longas e desgrenhadas de um
lado.

E foi tudo minha culpa.

— Kellen, eu...

Dei um passo mais perto, mas ele imediatamente rosnou e


mostrou os dentes novamente. Deus, ele estava tão bravo.
Lágrimas quentes e de remorso rolaram pelo meu rosto enquanto
eu olhava em seus olhos cheios de ódio.

— Desculpe. Me desculpe.

A última vez que fiz uma trança no cabelo da minha mãe, fiz
um nó tão ruim que ela gritou comigo, dizendo que achava que
teria que cortar a maldita coisa. Eu não tive mais permissão para
trançar o cabelo dela depois disso. E agora eu tinha feito isso com
Kellen.

Soltei um soluço quando percebi que ele provavelmente nunca


mais iria brincar comigo. Ele agia como se mal pudesse me tolerar
do jeito que estava - nunca sorrindo, sempre fugindo - e agora,
isso?

Dei mais um passo à frente. — Posso pelo menos consertar isso


para você?

Suas sobrancelhas se juntaram enquanto suas narinas se


dilatavam com cada respiração de dragão que ele sugava.
Eu levantei um dedo trêmulo e apontei para o lado de sua
cabeça. — Você perdeu um ponto, mas eu posso consertar. Não
vou estragar tudo dessa vez, prometo. Você tem uma tesoura?

Kellen passou a mão pelo lado da cabeça, ainda segurando o


travesseiro com a outra. Assim que ele encontrou a longa mexa
que eu apontei, todo o seu rosto ficou vermelho brilhante. Jogando
o travesseiro na cama atrás dele, Kellen passou por mim e desceu
correndo as escadas.

— Kellen, espere!

Eu corri atrás dele, mas quando cheguei na cozinha...

Pare!

Kellen estava parado na frente de uma gaveta aberta com uma


tesoura em uma mão e uma mecha de cabelo preto brilhante na
outra.

Ele estava olhando para ele como se isso o enojasse, suas


sobrancelhas franzidas e sua boca em uma carranca, mas eu
pensei que era o cabelo mais bonito do mundo inteiro.

Ou tinha sido, antes de eu arruiná-lo.

— Posso pegar? — Eu perguntei, dando mais alguns passos


para a cozinha.

A testa de Kellen enrugou e ele olhou para mim como se eu


fosse tão estúpida e feia quanto o cabelo em seu punho.

Eu sorri mesmo querendo chorar e estendi minha mão.


Quando Kellen não se mexeu, olhei para o chão e senti minhas
bochechas esquentarem. — Quero levar para casa comigo, para
me lembrar de você.

Algo sedoso e macio fez cócegas em minha palma e, por algum


motivo, isso fez meu coração doer ainda mais.

Fechando meus dedos em torno da faixa de cabelo ondulado,


engoli o nó na garganta e olhei de volta para Kellen, que estava de
pé bem na minha frente agora.

Com nossa diferença de altura, ele parecia pairar sobre mim,


mas seu rosto suavizou significativamente. Ele não estava mais
respirando com dificuldade também. Isso foi bom. Era mais fácil
olhar para ele quando não estava tão zangado. Na verdade, eu não
conseguia parar de olhar para ele. Sem o cabelo, pude ver seu rosto
inteiro. Talvez pela primeira vez. Foi de tirar o fôlego.

— Você é, tipo, muito bonito, — eu deixei escapar.

Estendi a mão para tocar seu novo cabelo curto - parecia tão
macio, como pelo de ursinho de pelúcia - mas ele afastou a cabeça
com um grunhido.

Puxando minha mão de volta, assisti com lágrimas chocadas


em meus olhos quando Kellen passou por mim, através da cozinha
e para a sala de estar. Agarrando a porta da frente, que eu tinha
deixado parcialmente aberta no caso de precisar fugir de um
fantasma, Kellen abriu o resto do caminho e se virou para me
encarar.

— Eu disse que sentia muito! — Eu gritei, sentindo aquele nó


na garganta voltar, mas Kellen apenas ficou lá, esperando que eu
fosse embora. — Certo! — Eu fiz beicinho, projetando meu queixo
no ar. — Eu não quero mais brincar com você de qualquer
maneira. Você é mau!

Então, joguei o cabelo no chão e passei correndo por ele,


fazendo todo o caminho até o portão do cemitério antes que as
lágrimas começassem a cair.

— Darby! — Kellen gritou atrás de mim.

Foi apenas a segunda palavra que ele disse para mim, mas eu
agi como se não me importasse. Eu era orgulhosa demais para
deixá-lo ver o quanto havia ferido meus sentimentos. Muito
preocupada que ele pensasse que eu estava sendo um bebê. Eu
não era um bebê - eu era corajosa. Corajosa o suficiente para
entrar em uma casa mal-assombrada para ver se ele estava bem.
E eu fui corajosa o suficiente para atravessar aquele cemitério para
fugir dele também.

— Darby!

Eu tentei tanto não pisar nas sepulturas, mas não pude evitar.
Eu podia ouvir Kellen bem atrás de mim, e ele parecia tão zangado.

Vovô estava certo, pensei, forçando minhas pernas para ir mais


rápido. Sentir a lama e a grama esmagar sob meus pés descalços.

— Ele é puro mal, aquele. É melhor ficar longe.

Corri direto para o estacionamento, prometendo a Deus que


aprenderia todas as orações da Bíblia se ele me deixasse entrar no
prédio antes que Kellen me pegasse. Mas Deus deve ter ficado
bravo comigo também, provavelmente por faltar à igreja, porque,
em vez de me ajudar, ele me fez tropeçar nos meus próprios
sapatos idiotas que deixei caídos no chão.

Tive queimaduras de grama em ambas as mãos e joelhos


quando caí no chão e deslizei até parar, mas não tive tempo de
checar e ver se estava sangrando ou me preocupar com minha mãe
me matando por causa do estado do meu vestido. Tentei me
levantar, mas não fui rápida o suficiente. No momento em que
fiquei de quatro, estava sendo empurrada de volta para a terra.

Agarrando-me pelos ombros, Kellen me rolou de costas e me


segurou no chão. Tentei afastá-lo, chutá-lo, bater nele, mas ele
estava ajoelhado ao meu lado e não consegui alcançá-lo. Não com
minhas pernas e não com meus braços, que ele prendeu ao meu
lado. A única coisa que pude fazer foi virar o rosto para longe dele
enquanto grunhia, lutava e tentava não chorar.

Então, três palavras quebradiças roubaram a luta do meu


corpo e a respiração dos meus pulmões. Três palavras que
atingiram meu coração como um ferro em brasa, marcando-me
para sempre.

— Lembre de mim.

Ele enfiou um dedo na cavidade do meu punho, empurrando


algo sedoso e macio para dentro. Então, ele apertou a mão sobre a
abertura e apertou.

— Por favor. Por favor, volte.

Soltando-me, Kellen sentou-se sobre os calcanhares e


pressionou as palmas das mãos contra os olhos. À luz do sol, pude
ver que havia uma crosta na lateral de sua cabeça, quase do
tamanho de uma moeda. Um rastro de sangue seco escorria do
ferimento, atrás de sua orelha e ao longo da lateral do pescoço, e
quando olhei novamente para sua camiseta, percebi que as
manchas de sangue estavam principalmente abaixo daquele
ponto.

Kellen não teve uma hemorragia nasal.

E ele não estava apenas chateado com o corte de cabelo.

Algo havia acontecido com ele.

Algo muito, muito ruim.

— Ei. — Estendi a mão e puxei seus antebraços até que ele


abaixou as mãos.

Ele não iria olhar para mim, embora. Em vez disso, ele virou a
cabeça, enxugando a bochecha molhada no ombro manchado de
sangue.

— Tudo bem.

Não estava tudo bem, ele não estava bem, mas Kellen assentiu
como se minhas palavras o fizessem se sentir melhor de qualquer
maneira. Então, ele se deitou na grama ao meu lado. Ele jogou um
braço sobre o rosto, escondendo-o na dobra do cotovelo, mas o
outro pousou na grama. Ao lado do meu.

Os lados de nossos dedos mindinhos mal se tocavam, mas a


magia subiu pelo meu braço como um raio de qualquer maneira.
Ele se bifurcou em minhas costelas, fazendo meus pulmões
pararem de respirar. Meu coração parar de bater. Fechei os olhos
com força e lembrei a mim mesma que não era magia de fada. Que
era a magia do Diabo. Vovô estava certo sobre ele e eu deveria ficar
longe.

Mas quando virei minha cabeça e olhei para o lado de seu rosto,
eu sabia que já era tarde demais.

Cílios longos e pretos espalhados sobre as maçãs do rosto altas


e lisas. Uma linha perfeitamente reta conectava a ponta de seu
nariz élfico a um par de sobrancelhas escuras e preocupadas. E
quando olhei para seus lábios cheios e carrancudos, tudo que eu
queria fazer era fazê-los curvar para o outro lado.

— Era uma vez, ele era o anjo mais lindo de Deus.

— Eu prometo, — sussurrei, esperando que Deus não me


ouvisse. — Eu prometo que não vou esquecer.

O dedo mindinho de Kellen travou ao redor do meu, e outro


chiar de relâmpago agarrou meu peito.

Eu assisti em um estado de paralisia ofegante quando ele virou


a cabeça e olhou para mim. Com o claro céu de verão refletido
neles, os pálidos olhos cinza de Kellen pareciam um pouquinho
azuis, e por alguma razão, isso me deixou à vontade. Isso o fazia
parecer quase... humano.

Kellen abriu a boca, como se estivesse prestes a falar, mas


então a fechou novamente e se virou para o céu sem nuvens.

O nó na garganta deslizou para cima e para baixo, como se ele


estivesse engolindo alguma coisa, mas deve ter sido apenas suas
palavras.
Eu adorava um bom dia chuvoso em casa. Ver tudo escuro e
assustador lá fora sempre me dava um pouco de emoção. Mas na
Irlanda, onde eu só tinha sete dias para ver Kellen e dois deles
eram dias de viagem, cada segundo que eu passava olhando para
fora de uma janela raiada de chuva parecia uma eternidade.

Eu tinha feito isso a noite toda no avião. Eu tinha feito isso o


dia todo no ônibus. E agora que finalmente estávamos na casa do
meu avô, eu estava fazendo isso na sala enquanto meus parentes
ficavam sentados, conversando sobre outros parentes e bebendo
uma coisa chamada limonada irlandesa que eles nem me deixavam
experimentar.

Pelo menos no ônibus, mamãe me deixou jogar Angry Birds em


seu telefone.

Ela disse que eu não poderia brincar com tecnologia enquanto


a tia Shannon e o tio Eamonn estivessem em casa, então, em vez
disso, eu estava sentada no chão, fazendo desenhos no tapete com
as fichas de pôquer do vovô.

Como se isso fosse tããão melhor que Angry Birds.


Minha mãe e tia Shannon estavam sentadas no sofá em frente
à janela. Eu não estava ouvindo a conversa delas, mas quando
suas vozes ficaram baixas, como se estivessem fofocando, meus
ouvidos se aguçaram.

— Como está Jason? — Tia Shannon sussurrou, referindo-se


ao meu pai.

Minha mãe suspirou. — A mesma velha merda. Bêbado. Alto.


Vivendo em um apartamento de solteiro no centro da cidade com
seus colegas de banda nojentos. Eu nem vou deixar ele fazer sua
visita supervisionada lá agora que... — Eu espreitei bem a tempo
de ver minha mãe inclinar a cabeça em minha direção.

Tia Shannon olhou para mim. Então, ela colocou as mãos em


concha na frente dos seios e minha mãe assentiu.

Oh meu Deus! Eu gritei internamente. Estou literalmente


sentada aqui!

— Eu só posso imaginar o que acontece dentro daquela casa.


— Minha mãe balançou a cabeça. — Como eu fui tão estúpida?

— Tatuagens. — Tia Shannon riu. — Covinhas e tatuagens.

Deus, isso é tão estranho!

— Ah, falando em fazer bebês... — Minha tia sorriu, afastando


o cabelo crespo e ruivo do rosto. Era naturalmente vermelho
quando ela era mais jovem, como o da minha mãe e o meu, mas
desde que a conheci, ela tingia da cor das portas da frente da
igreja. — Não diga a ela que eu te contei, mas... — Tia Shannon se
inclinou para mais perto de minha mãe e colocou a mão em seu
joelho. Suas unhas combinavam com seu cabelo. — Maggie e Rob
estão tentando engravidar há quase dois anos.

Maggie era minha prima. Ela se casou com um britânico e se


mudou para a Inglaterra, o que o vovô disse ser uma penitência
adequada por oitocentos anos de opressão. Eu não sabia o que isso
significava, mas tia Shannon tinha dado um tapa no braço dele
por causa disso.

— Lamento ouvir isso, — mamãe disse, tomando um gole de


sua limonada adulta.

Ela parecia tão magra, sentada ali, curvada sobre sua bebida,
no sofá ao lado de sua irmã. Onde Shannon era gorda, minha mãe
era côncava. Onde ela estava rosada, minha mãe estava mais
pálida do que o normal.

Talvez ela também não tenha dormido bem durante o voo,


pensei.

— Os médicos sabem qual é o problema? — Minha mãe


perguntou.

— Ainda não, mas estou começando a me perguntar se está


relacionado com o que mamãe teve.

— Cancro do ovário? Na idade dela?

— Não, mas talvez ela carregue o mesmo gene. — Tia Shannon


olhou para a cozinha, onde estava o vovô, e baixou ainda mais a
voz. — Pense nisso. Uma boa católica assim... casada há mais de
quarenta anos e só três filhos? Acho que ela também teve
problemas para engravidar. — Minha tia cruzou os braços com
uma carranca. — Estou começando a pensar que nunca vou ter
netos.

— Aí está. — O sotaque irlandês da minha mãe sempre ficava


mais forte quando estávamos em Glenshire. Especialmente
quando ela estava bebendo. — Eu estava esperando para ver se
você encontraria uma maneira de fazer isso sobre você.

— Então, Darby, como vai a escola? Você já tem namorado?

Virei a cabeça para a velha poltrona reclinável do vovô, onde o


tio Eamonn estava sentado em seu uniforme completo da Garda -
é assim que chamam a polícia na Irlanda. Eu me perguntei se ele
não teve a chance de trocar de roupa ou se estava apenas tentando
impressionar sua nova namorada, Sherry. A pobrezinha estava
meio sentada, meio em pé no apoio de braço com o braço de
Eamonn em volta de sua cintura. Parecia super desconfortável.

Mamãe e tia Shannon mal a reconheceram. Eu tinha ouvido tia


Shannon chamá-la de destruidora de lares antes de eles chegarem.
Mas não achei que ela parecesse uma destruidora de lares. Uma
destruidora de carros, talvez. Ela era tão jovem; provavelmente
nem tinha carteira de motorista.

— Não, senhor. — Eu tentei não sorrir.

Na Geórgia, as pessoas são tão educadas que sua maneira de


ser rude é chamá-lo de senhor ou senhora com um tom sutil e
espertinho.

Fiz questão de chamar o tio Eamonn de senhor toda vez que o


via.
— Bobagem. — Ele balançou para trás na poltrona reclinável
do vovô e a pobre Sherry quase caiu do apoio de braço. — Uma
garota bonita como você? Aposto que tem dois ou três rapazes
atrás de você.

Sherry sorriu com seus lábios grandes e brilhantes. —


Especialmente com esse cabelo, — acrescentou ela. — Os caras
adoram ruivas.

— Até que eles se casem com uma! — Tio Eamonn riu tossindo,
batendo no próprio joelho. Ele fez a cadeira balançar com tanta
força que Sherry teve que se levantar para não cair.

Revirei os olhos enquanto ele não estava olhando.

Quando finalmente parou de rir, Eamonn perguntou: —


Quantos anos você tem, treze, quatorze agora? Você cresceu como
uma erva daninha desde a última vez que te vi.

— Tenho doze anos, senhor.

— Doze! Com um conjunto de seios como esse? Bolas.

— Já chega, — disse o vovô, franzindo a testa para o tio


Eamonn enquanto ele saía da cozinha com um copo de algo
marrom demais para ser limonada. O leve tremor em sua mão fez
o gelo tilintar.

— Desculpas, moça. É melhor você sair e brincar antes de ouvir


mais palavrões do meu filho idiota. — Vovô ergueu os olhos de mim
para a janela acima da minha cabeça. — Parece que a chuva
finalmente chegou à Inglaterra, onde ela pertence.
Fichas de pôquer se espalharam pelo tapete enquanto eu
disparava pela cozinha e saía pela porta dos fundos antes que
mamãe pudesse me dizer que estava muito molhado para sair.

Infelizmente, não me lembrava que estava descalça até sentir a


lama esmagar entre os dedos dos pés.

— Estou indo!

Andei na ponta dos pés pelo quintal mole ao redor da casa até
os degraus da frente, onde minha mãe me fez deixar minhas novas
botas de chuva amarelas. Claro, agora elas estavam cheias de água
- obrigada, mãe - que eu joguei em meus pés para lavar a lama
antes de puxá-las sobre meus jeans skinny. Eu nunca teria usado
aquelas botas em casa - elas eram tão infantis - mas assim que
descobri que estávamos vindo para Glenshire, comprei um par
com minha própria mesada.

Com minhas botas calçadas e minha mãe ocupada, atravessei


o quintal em direção ao portão. Eu queria tanto correr, mas
aprendi na última vez que estive lá que quando você corre na lama,
você chuta atrás de você, e eu realmente não queria ter marcas de
respingos marrons na minha bunda quando finalmente ver Kellen.

Eu também não queria cheirar como um animal de fazenda


molhado, e foi por isso que me esquivei de Sir Timothy McFluffles
quando o vi trotando em minha direção, sua lã toda encharcada e
flácida da chuva.

— Foi mal, cara. — Fiz uma careta de desculpas quando abri o


portão dos fundos. — Eu vou te dar um tapinha quando voltar,
ok?
Eu me senti mal, rejeitando-o assim. Não só porque ele parecia
tão triste quando tranquei o portão atrás de mim, mas também
porque meu cabelo provavelmente não parecia muito melhor do
que o dele. Eu já podia vê-lo frisando na minha visão periférica.

Imaginei tia Shannon e estremeci.

Felizmente, meu cabelo era muito mais longo que o dela. Puxei-
o sobre um ombro e fiz uma trança rápida enquanto entrava na
floresta e subia a colina, mas quando fui puxar um elástico do meu
pulso, descobri que não tinha um.

Que droga!

Olhando em volta, decidi improvisar. Tentei amarrar a ponta


da minha trança com um talo de samambaia, mas quebrou no
primeiro nó. Em seguida, puxei uma videira de aparência muito
mais forte de uma árvore, mas era tão forte que nem consegui
soltá-la do chão. Eu a mordi com meus dentes e estava tentando
soltá-la com meus molares quando alguém próximo pigarreou.

Girando na direção do som, olhei para cima da colina com um


sorriso de expectativa no rosto.

E então eu congelei.

Eu me lembrava de Kellen como sendo uma coisa esbelta,


delicada e linda, como uma borboleta negra. Raro e exótico. Fácil
de assustar.

Agora, Kellen era quem estava assustando. Seu cabelo era


curto, como um homem do exército. Suas sobrancelhas escuras
estavam unidas em um V raivoso. Suas bochechas rosadas,
outrora macias, estavam magras e afiadas. E sua boca carrancuda
parecia não sorrir desde a última vez que usei botas de chuva
amarelas. E talvez nem mesmo assim. Eu não conseguia me
lembrar.

Mas eu sorri para ele do mesmo jeito.

— Kellen! — Joguei a videira no chão, esperando que ele não


tivesse me visto tentando cortá-la ao meio. — Eu estava indo te
encontrar! Oh meu Deus, você está tão alto agora!

Dois olhos estreitos de aço me encararam de dentro de um


rosto que parecia ter sido esculpido em pedra. Onde antes era
macio e arredondado nas bordas, agora era angular. Frio. Duro.

Segurei a ponta da minha trança na mão, me sentindo uma


idiota.

— Cheguei aqui há pouco tempo. Tivemos o pior voo de todos


os tempos. A turbulência era tão forte que a senhora ao meu lado
vomitou... — Eu me ouvi divagando para preencher o silêncio
enquanto caminhava o resto do caminho até a colina.

Quando éramos crianças, eu apenas inventava algo para


brincar que não exigisse que Kellen falasse, mas ele era um
adolescente agora. O que diabos os adolescentes gostam de jogar?

— Então, você está, tipo, no ensino médio, hein? — Eu mantive


meus olhos grudados no chão da floresta para evitar tropeçar em
uma raiz de árvore ou olhar irritado de Kellen. — Isso deve ser tão
legal. Mal posso esperar para estar no ensino médio. O ensino
médio é tãããããããããão...

As palavras secaram na minha boca no segundo em que as


botas de combate sujas de Kellen entraram no meu campo de
visão. Eu quase bati nele. Inclinando minha cabeça para trás, olhei
para o comprimento de seu corpo e percebi que estava errada sobre
ele. Ele não estava com frio. Ele era muito quente. Eu podia sentir
o vapor saindo dele como uma chaleira gritando.

Ele estava respirando rápido também. Isso me lembrou da


última vez que o vi. Na casa do padre Henry. Deus, ele estava tão
bravo...

— Ei... — Dei um passo instintivo para trás. — Você, uh... você


está bem?

Tentei encontrar aquele toque de azul por trás de seu olhar


gelado, para me lembrar de que ele ainda era de carne e osso. Mas
se foi junto com o resto do menino que eu lembrava.

Kellen balançou a cabeça e virou as costas para mim, subindo


a colina e se aprofundando na floresta.

— Kellen, espere! — Corri atrás dele, tomando cuidado para


não pisar nas campânulas.

Ele caminhou através delas.

— Pelo menos desacelere! — Olhei para além dele para tentar


ver para onde ele estava indo, e meu queixo caiu imediatamente.

O chalé havia se tornado uma casa completa. Tijolos,


pedregulhos e pedaços de postes de cerca velha foram cimentados
juntos para reconstruir a metade superior das paredes. Uma lona
azul esfarrapada, presa com pedras, formava um teto à prova
d'água, e uma cortina de chuveiro listrada de azul e branco
pendurada na porta, completando-a.
Kellen empurrou a folha de plástico pendurada para o lado
enquanto marchava e a fechava atrás de si. Era a cortina de
chuveiro equivalente a bater uma porta.

Destemida. eu o segui. — Por favor, diga-me...

Assim que a porta improvisada se fechou atrás de mim,


mergulhamos na escuridão. Uma faixa de luz sombria da floresta
cortava o chão onde a cortina do chuveiro não chegava ao chão,
mas era apenas o suficiente para destacar as bordas de um saco
de dormir, as pernas de uma cadeira e as solas pretas das botas
de Kellen. que andava de um lado para o outro.

— Uau. — Olhei em volta para os móveis enquanto meus olhos


lentamente se ajustavam à escuridão. — É como uma casa de
verdade agora. Como você-

Algo se chocou contra a parede à minha frente, fazendo-me


gritar e cobrir minha cabeça.

— Kellen, o que há de errado? — Eu gritei para a escuridão. —


Apenas fale comigo!

Sua resposta foi um rugido tão profundo e alto que sacudiu a


porta de plástico atrás de mim. — Você prometeu!

Não consegui ver seu rosto, mas pude ver suas botas parando
bem na minha frente. Eu podia sentir o calor irradiando de seu
corpo. E eu podia ouvir sua respiração, pesada e rápida.

Apertando meus olhos fechados, virei minha cabeça para o lado


com um gemido.

Kellen imediatamente deu um passo para trás. Quando ele


limpou a garganta, tive a sensação de que ele queria dizer mais
alguma coisa, mas em vez disso, ele se virou e começou a andar de
novo. Vai e volta. Da cadeira ao saco de dormir.

Ele estava dormindo aqui.

— Lembre de mim.

— Por favor, volte.

Era por isso que ele estava tão chateado. Eu não tinha voltado
no ano anterior.

Imaginei Kellen esperando lá por mim, dia após dia, sozinho, e


meus olhos começaram a lacrimejar. — Eu sinto muito, —
sussurrei. — Eu queria vir. Eu queria tanto vir, mas minha mãe
disse que não podia pagar no ano passado. — Minha voz tremeu
enquanto eu observava suas botas de tamanho adulto abrirem
caminho no chão de terra recém-varrido. — Meu pai não está
pagando a pensão alimentícia e ela teve muitas despesas médicas,
então ela levou um ano a mais para economizar para nossas
passagens de avião.

Os pés de Kellen pararam de se mover.

— Queria te dizer.

Estendendo minha mão, dei um passo em direção a ele. Na


escuridão.

— Tentei te encontrar online, mas não sei seu sobrenome.

— Também tentei encontrar a igreja on-line, pensei que talvez


pudesse enviar uma carta para você por lá ou encontrar um
endereço de e-mail de alguém que pudesse conhecê-lo, mas ela
não tem um site. E eu não poderia pedir ao meu avô para lhe dar
uma mensagem porque ele não quer que eu saia com você.
Com um passo final, minha mão pousou nas costas quentes de
Kellen. Sua camiseta estava úmida de suor, e suas omoplatas
subiam e desciam a cada respiração feroz que ele dava. Baixei os
olhos para o saco de dormir no chão e me perguntei quantas vezes
ele tinha dormido lá sozinho. Fiquei imaginando o que teria
acontecido com ele no dia em que nos conhecemos, quando o
encontrei chorando naquele mesmo lugar com o lábio quebrado.
Eu me perguntei o que tinha acontecido da última vez que o vi,
quando ele estava coberto de sangue com o cabelo cortado. Eu me
perguntei onde estaria sua mãe e se ela tinha alguma ideia de que
havia deixado seu filho aos cuidados de uma pessoa tão horrível.
Mas principalmente, eu me perguntei por que nunca me perguntei
essas coisas antes.

Estar perto dele quando ele estava tão chateado era


aterrorizante - ele era como um animal selvagem enjaulado, todos
os movimentos espasmódicos e olhos dardejantes, dentes à mostra
e respiração ardente - mas eu não tinha escolha. Um cordão
mágico espinhoso e formigante se enrolou em volta do meu coração
e lentamente me envolveu.

Os centímetros entre nós desapareceram um por um enquanto


me movia para ficar na frente dele. Sem tirar minha mão de suas
costas arfantes, envolvi meu outro braço em volta do corpo quente,
úmido e cuspidor de fogo de Kellen e encurtei a distância
completamente. Ficando na ponta dos pés, descansei meu queixo
em seu ombro e, assim que nossos corações palpitantes se
alinharam, senti as engrenagens invisíveis que estavam me
puxando para mais perto pararem. Eu quase podia ouvir o clique
dela, como uma chave se encaixando em uma fechadura.
— Eu não esqueci de você, — sussurrei, apertando-o com mais
força. — Nunca vou me esquecer de você.

Kellen não se mexeu no começo, e ele parou de respirar


completamente, mas eventualmente, ergueu as mãos fechadas ao
lado do corpo e passou os braços em volta da minha cintura. Ele
baixou o queixo, puxando-me com mais força e, quando finalmente
exalou, sua respiração trêmula se espalhou sobre minha pele como
um cobertor quente.

Foi a melhor sensação do mundo inteiro.

Ficamos parados assim por um longo tempo, o lado de seu


pescoço latejando contra minha bochecha com cada batida de seu
coração acelerado. Eu queria virar minha cabeça e pressionar
meus lábios naquele ponto exato.

Então eu fiz.

No momento em que minha boca encontrou sua pele quente


com cheiro de verão, a respiração de Kellen parou novamente. Seu
corpo inteiro ficou rígido em meus braços enquanto eu estava lá
na ponta dos pés, beijando seu pescoço.

Afastando-me lentamente, senti minhas bochechas queimarem


com o fogo de mil sóis mortificados.

Mas então eu senti o movimento da cabeça de Kellen, e fui eu


quem prendeu a respiração quando um par de lábios macios e
hesitantes pressionaram minha têmpora.

Aquela chama moveu-se para minha barriga enquanto um


sorriso tomava conta de meu rosto. Apertando Kellen com mais
força, plantei mais cinco beijos na lateral de seu pescoço com uma
risadinha.

Eu não estava mentindo quando disse ao tio Eamonn que não


tinha namorado.

Mas se ele me perguntasse de novo, talvez eu precisasse.

— Vamos, — eu disse, pegando sua mão e levando-o para fora


da cabana antes que eu fizesse algo realmente louco, como beijá-
lo na boca.

Antes que eu pudesse empurrar a lona da porta, o longo braço


de Kellen estendeu a mão e a puxou para o lado, segurando-a
aberta para mim. Eu sorri e corei tanto enquanto caminhava que
nem conseguia olhar para ele. Kellen estava no ensino médio! Eu
tinha que ser legal. Legal, legal, legal.

— Então, o que você faz por aqui para se divertir além de


construir coisas? — Eu perguntei, esperando soar maduro ou
entediada ou algo assim.

Quando Kellen não me respondeu, me virei para poder ler seu


rosto e imediatamente desejei não ter respondido.

Seus olhos, que tinham sido tão duros e odiosos momentos


atrás, estavam bem fechados. Suas sobrancelhas escuras
franziram em frustração enquanto seu pescoço se esticava e
engolia, forte o suficiente para eu ouvir.

Eu fiz uma pergunta a ele, e ele estava tentando me responder.

Meu coração disparado caiu de volta à terra, caindo em uma


poça de lama com um respingo.
De repente, fez todo o sentido por que ele se retirou para a
escuridão da cabana antes de falar comigo mais cedo. Ele não
queria que eu visse isso. As poucas palavras que Kellen falou
comigo no passado pareciam quase acidentais. Como se ele
estivesse relaxado ou chateado o suficiente para perder o controle,
mas vê-lo lutar para falar de propósito era de partir o coração. Por
mais que eu quisesse ouvir sua voz novamente, eu queria tirá-lo
de seu sofrimento ainda mais.

Estendendo a mão, peguei sua mão. Seus dedos não pareciam


certos. Eles eram protuberantes em alguns lugares e um deles não
dobrou corretamente. Mas ele apertou minha mão mesmo assim.

— Está tudo bem, — eu disse, deslizando meu polegar em seus


dedos ásperos. — Você pode apenas me mostrar.

Kellen assentiu com a cabeça, os ombros caídos em alívio e


derrota.

Isso me fez sentir ainda pior.

Sem soltar minha mão, Kellen me conduziu colina abaixo por


um caminho que ele deve ter percorrido mil vezes desde a última
vez que estive lá. Só era grande o suficiente para uma pessoa,
então eu andei atrás dele, bolotas esmagando sob nossas botas
como cascalho.

Embora a chuva tivesse parado, um dossel de nuvens cinzentas


ainda pairava pesado sobre as árvores. Não havia luz do sol
dançando na água quando nos aproximamos do lago dessa vez.
Apenas névoa espessa e folhas rodopiantes que devem ter sido
arrancadas de seus galhos na tempestade.
Pouco antes de chegarmos aos espinhosos arbustos de amora
que cresciam ao longo da beira do lago, Kellen parou e se virou
para mim com um olhar em seu rosto que encheu meu estômago
com borboletas pretas esvoaçantes. Seus lábios estavam
inclinados em um quase sorriso, e seus olhos brilhavam com
malícia enquanto disparavam de mim para a árvore gigante ao
nosso lado.

Segui seu olhar para onde uma velha escada de madeira estava
encostada no tronco. Acima dele, pendurado em um galho tão alto
que eu não sabia como um humano poderia amarrá-lo, havia um
pedaço longo e grosso de corda com um nó na ponta.

Kellen arqueou uma única sobrancelha, e isso foi o suficiente


para selar meu destino.

Aquele olhar teria me convencido a pular de um penhasco. Em


um vulcão ativo.

Mas não até que ele fizesse isso primeiro.

Sentindo a minha disposição, Kellen sorriu - realmente sorriu


- e isso fez com que todos os problemas que eu teria quando
chegasse em casa totalmente molhada valessem a pena.

Coloquei minhas mãos nos quadris em desafio, embora não


pudesse deixar de sorrir de volta para ele. — Eu não disse que ia
fazer isso.

Mas Kellen apenas sentou no chão com aquele sorriso no rosto


e começou a desamarrar as botas. Então, ele olhou para mim antes
de baixar intencionalmente o olhar para os meus pés.
— Ugh, tudo bem, — bufei. Encostado na árvore, arranquei
uma galocha de borracha molhada, seguida pela outra. — Mas se
eu morrer...

A camiseta preta de Kellen caiu no chão na minha frente, e de


repente fiquei muito consciente de que ele estava sem camisa,
apenas alguns metros à minha esquerda.

Não olhe. Não olhe. Não-

Ziiiiiip.

Com o canto do olho, vi o corpo de Kellen dobrar na cintura.


Então, alguns segundos depois, um par de jeans surrados e
rasgados pousou em cima de sua camisa.

Oh meu Deus.

Um lampejo de pele pálida e boxers xadrez passou na minha


frente, mas meus olhos ainda estavam completamente focados na
pilha de roupas aos meus pés.

A escada ao meu lado rangeu e gemeu quando Kellen subiu


rapidamente até o topo.

Eu estava paralisada pela indecisão. Eu precisava vê-lo fazer


isso, para que eu pudesse aprender como fazê-lo também, mas
olhar para Kellen em sua cueca parecia tão... errado.

O rangido parou e Kellen limpou a garganta.

Oh meu Deus, eu tenho que olhar.

Engolindo em seco, virei-me e olhei de soslaio para o menino


quase nu na escada, e... não foi tão ruim. Era como se ele estivesse
vestindo um sunga. Eu via garotos de sunga o tempo todo na
piscina do meu condomínio. Isso foi não. Grande. Negócio.

Kellen levantou a corda, mostrando-me que tinha um grande


nó no fundo e outro cerca de um metro e meio acima disso.
Agarrando o nó superior com as duas mãos, ele saltou da escada,
aterrissando com os dois pés no nó inferior enquanto a corda
balançava sobre o lago. Assim que ele estava tão longe quanto a
corda iria, Kellen soltou a corda, arqueando para trás e fazendo
um backflip perfeito antes de cair de pé na água.

Um buraco apareceu na névoa onde ele pousou, ficando cada


vez maior até que ele finalmente rompeu aquele ponto novamente,
desta vez por baixo. A água ondulava para longe dele enquanto ele
balançava a cabeça de um lado para o outro. Era o mesmo
movimento que os meninos da piscina do meu apartamento faziam
para tirar o cabelo molhado de seus rostos, mas Kellen não tinha
mais cabelo comprido. Tudo o que lhe restava era o hábito.

Isso me deixou triste.

Mas quando ele olhou para mim e sorriu em triunfo, esse


sentimento foi embora rapidamente.

Tentei não olhar enquanto ele saía do lago do outro lado da


árvore onde os arbustos de amoras não cresciam, mas não pude
evitar. Kellen tinha músculos abdominais agora. Músculos
abdominais!

Talvez seja só porque ele é magro. Eu provavelmente também


teria músculos abdominais se fosse tão magra.

Oh Deus, ele vai ver como não sou magra.


E aquelas feias estrias roxas nos meus quadris.

E o feio sutiã esportivo de algodão que usei no avião para não


ter que dormir com um sutiã de verdade. Oh meu Deus!

Eu deveria apenas manter minhas roupas.

Mas então elas vão se molhar, e mamãe vai saber que eu entrei
no lago, e não devo chegar perto do lago.

Dane-se.

— Fique aí, — gritei, de pé no lado oposto da árvore. — E vire-


se!

Eu poderia jurar que ouvi uma pequena risadinha quando tirei


minha própria camiseta e jeans, deixando-os cair em cima da pilha
de Kellen. Eu não queria sujá-los e dar à minha mãe mais uma
coisa para ficar brava quando eu chegasse em casa.

— Não olhe, ok?

Olhei para o meu corpo antes de colocá-lo na escada e suspirei.


Eu sentia muita falta do meu velho corpo. Meu novo sangrava,
doía, inchava e fedia se eu esquecesse de usar desodorante, mas o
que eu mais odiava era o quanto as pessoas olhavam para ele. Os
meninos na piscina. As meninas na piscina. Os professores da
minha escola, que me repreendiam por usar tops e mediam o
comprimento dos meus shorts com uma régua. Homens adultos,
como tio Eamonn. No meu antigo corpo, eu era apenas Darby. No
meu novo corpo, eu era apenas um corpo.

Pelo menos meu feio sutiã de algodão e calcinha combinavam.


Eu não sabia por que, mas isso me fez sentir melhor.
A escada balançou contra o tronco da árvore quando comecei
a subir. Cheguei ao terceiro degrau do topo antes de perceber que,
tanto quanto o pensamento de Kellen me observando subir uma
escada de calcinha me fez querer morrer, o pensamento de cair e
realmente fazê-lo parecia um pouco pior.

Então, aceitei e pedi ajuda.

Ou, pelo menos, tentei pedir ajuda, mas quando gaguejei: —


Uh, Kellen, você acha que talvez pudesse..., — ele já tinha lido
minha mente, correu e apoiou a escada contra a árvore com ambas
as mãos.

Olhei para ele, mortificada pela proximidade de seu rosto na


minha bunda, mas Kellen não estava olhando para mim. Seus
olhos estavam fixos no chão à sua frente.

— Obrigada. — Eu sorri.

Eu era mais baixa que ele, então, para alcançar o nó superior


da corda, teria que subir até o topo. Mas a escada parecia um
milhão de vezes mais estável, então, com uma respiração
profunda, envolvi meus braços em volta do tronco da árvore - não
havia escada suficiente para agarrar com as mãos - e pisei no
segundo degrau mais alto. A escada deslocou um centímetro para
a direita sob o meu peso, mas Kellen a firmou imediatamente.

Então, eu exalei e fiz de novo.

Assim que cheguei ao topo, percebi três coisas em rápida


sucessão: uma, não havia como descer de volta; dois, não havia
como alcançar a corda sem primeiro largar a árvore; e três, não
havia como eu cair daquela altura e não quebrar pelo menos um
osso.

— Kellen? — Fechei os olhos com força e agarrei a árvore com


mais força. — Eu... eu acho que estou presa.

Senti a escada se mover embaixo de mim, só um pouco, antes


de ouvir o som inconfundível dos pés de Kellen esmagando as
folhas e bolotas na base da árvore.

Abri a boca para gritar para ele voltar, mas voltei a fechá-la
quando senti a escada afundar um centímetro no chão. Ela
estremeceu e balançou a cada passo que Kellen subia, e quando
parou, senti algo úmido e áspero bater contra o lado do meu corpo.

Olhando para baixo, encontrei Kellen parado no meio da


escada, segurando uma longa vara coberta de musgo acima de sua
cabeça. Seu rosto estava a centímetros da parte de trás das minhas
coxas, mas ele não estava olhando para mim. Em vez disso, seus
olhos estavam fixos na corda que ele havia enganchado e puxado
para mim com a ponta de sua bengala.

O nó superior da corda estava agora a apenas alguns


centímetros de distância do meu ombro. Tudo o que eu tinha que
fazer era estender a mão e agarrá-lo.

Eu posso fazer isso, pensei, olhando para aquele pedaço de


barbante retorcido. Na verdade, eu tenho que fazer isso. É
literalmente a minha única maneira de descer.

Engoli em seco enquanto olhava para o mar de arbustos de


amora entre mim e o lago.
Soltando o tronco da árvore com a mão esquerda, estendi a mão
e agarrei a corda, logo acima do nó superior.

Até agora tudo bem.

Então, soltei um suspiro e agarrei a corda com a outra mão.

E tudo depois disso aconteceu em câmera lenta.

Assim que soltei a árvore, a corda começou a me puxar para


longe dela. Em pânico, pulei da escada e consegui colocar os dois
pés no nó inferior, mas só tive meio segundo para comemorar essa
conquista antes de perceber que não havia empurrado com força
suficiente. Eu mal tinha passado pelos arbustos de amoras antes
de voltar na outra direção.

Só que agora, eu estava girando.

Pouco antes de bater na árvore, tive um vislumbre de Kellen,


parado no topo da escada com o braço esticado. Fiquei tão aliviada
ao vê-lo, tão confiante de que ele iria me salvar - e tão desorientada
e tonta em geral - que esqueci completamente de me preparar para
o impacto.

Eu bati no carvalho inflexível com força suficiente para tirar o


ar dos meus pulmões.

E o nó das minhas mãos.

Quando percebi que estava caindo, já estava a meio caminho


do chão.

A última coisa que vi antes de um milhão de minúsculos


espinhos rasgarem minha carne foi o rosto horrorizado de Kellen
quando ele olhou para mim do topo da escada.
Segurando uma corda vazia.
Um segundo. Isso foi o suficiente para Darby deixar de estar ao
meu alcance para ser completamente arrancado dele.

Observá-la escorregar por entre meus dedos foi um pesadelo,


mas não foi nada comparado aos sons de sua queda. Um grito
chocado, galhos quebrando, cabelos arrancando, pele rasgando.
Mas o pior foi o que ouvi após o baque final.

Silêncio.

O nome dela explodiu pela porta de ferro em minha garganta


enquanto eu pulava da escada e me arrastava até o lugar onde seu
corpo jazia imóvel entre dois arbustos de amora. Sua cabeça havia
batido no chão, mas seus longos cabelos ruivos pendiam
suspensos em torno de seu rosto como a juba de um leão,
emaranhados nos galhos espinhosos que haviam amortecido sua
queda. Seus braços também estavam presos nos arbustos,
chorando de mil cortes carmesins. E seus olhos, sempre tão
brilhantes e cheios de vida, agora eram estremecidos por duas
pálidas pálpebras tingidas de roxo.

— Darby! — Eu gritei de novo, alcançando as amoreiras para


extrair seus membros dos espinhos que agora estavam rasgando
minhas próprias mãos e braços em pedaços.
Com um grunhido, levantei seu corpo flácido do chão,
embalando a parte de trás de sua cabeça em minha mão. Seu rosto
emergiu através da teia emaranhada de cabelos presos nos
arbustos de cada lado dela, mas os arbustos não queriam soltá-la.
Era como se estivessem tentando mantê-la para si.

Eu senti o fogo dentro de mim rugir para a vida. Senti-o


queimar através do ferro, senti-o transformar minhas lágrimas em
vapor e inundar minhas veias com poder, raiva e vontade de matar.

— Deixe… soltaaa! — Eu rosnei, puxando com toda a minha


força até que os galhos se curvassem à minha maldita vontade. Até
que me devolveram minha garota.

Mesmo depois que tropecei para trás, segurando seu corpo


flácido contra meu peito, o fogo dentro de mim cresceu. Queria
destruir alguma coisa. Queria queimar a porra da floresta até o
chão. Queria queimar a terra para fazê-la pagar pelo que havia
feito a ela. Pelo que eu tinha feito com ela.

Eu estava respirando muito rápido. O chão mudou sob meus


pés e as árvores começaram a girar. Eu precisava me acalmar. Eu
não seria de nenhuma ajuda para ela se desmaiasse. Eu precisava
pensar.

Pense, filho da puta! Pense!

A resposta veio a mim como um conhecimento sem palavras.


Um convite azul profundo que mobilizou meu corpo com um único
destino em mente.

O lago.

O lago apagava o fogo.


Embalando Darby em meus braços, tropecei para o outro lado
da árvore onde os arbustos não cresciam e entrei na água. Eu mal
conseguia ver a superfície através da névoa, que estava mais densa
do que nunca. A névoa me convocou com dedos lentos e curvos, e
eu a segui, deixando que ela me puxasse mais fundo.

No momento em que a água estava na minha cintura, eu não


conseguia mais ver a costa em nenhuma direção. Foi como se uma
nuvem tivesse caído do céu e nos engolido, deixando para trás
minha raiva e meu pânico.

— Darby, — sussurrei, chocado ao descobrir que até minha


garganta relaxou. A palavra soprou pela porta de ferro aberta tão
facilmente quanto uma brisa de verão. Então, tentei de novo. —
Darby, olhe.

Quando ela não acordou, eu me aprofundei, afundando abaixo


da superfície até que a água passou por seus ombros. Quando
roçou seu queixo, os lábios de Darby se abriram em um suspiro
assustado. Seus olhos se fixaram nos meus - grandes, verdes e
cercados por sardas - e o alívio que vi neles acendeu um novo fogo
dentro de mim. Um brilho bruxuleante, como a chama de uma
vela, no fundo da minha alma esquecida por Deus.

A cabeça de Darby virou da esquerda para a direita, enviando


ondulações em todas as direções enquanto seu longo e
emaranhado cabelo varria a superfície da água.

— Onde estamos? — Ela ficou maravilhada, estendendo a mão


para tocar a névoa como se fosse chantilly em que pudesse
mergulhar um dedo.
— O lago, — eu disse, gostando do som da minha própria voz.
Mas gostei ainda mais da expressão no rosto de Darby quando ela
ouviu.

Embalando seu corpo quase sem peso com um braço, estendi


a mão para afastar uma mecha de cabelo molhado de seu rosto,
mas Darby agarrou meu pulso antes que eu pudesse tocá-la.

— Kellen, seu braço.

Olhei para baixo e observei como cada corte e arranhão em


ambos os nossos braços se revelaram, enchendo-se de sangue que,
apenas um momento atrás, a água estava lavando.

— Isso dói? — Eu perguntei, esperando que ela respondesse


por nós dois. Eu estava muito ocupado olhando para seus dedos
delicados em volta do meu pulso para sentir qualquer coisa perto
da dor.

Darby balançou a cabeça e virou minha mão, olhando para um


arranhão de espinho particularmente profundo em minha palma.

Levantando a própria mão, ela encontrou um corte no mesmo


local. O dela era mais curto, mas igualmente profundo.

Seus olhos se ergueram para os meus, redondos e doces, e sem


uma palavra, sem um plano, sem uma pista de por que faríamos
tal coisa, Darby e eu apertamos nossas malditas palmas juntas.

E nos beijamos.

No momento em que seus lábios tocaram os meus, a mesma


presença azul que me chamou para a água voltou. Ele envolveu
minha mente como o rabo de um gato, quente, macio e
cautelosamente curioso.
Então, falou.

— É fíor bhur ngrá, — ele ronronou. — Tugaim mobheannacht


daoibh.

Eu não sabia o que significava, mas me encheu de alegria. Eu


nunca senti tanta euforia em toda a minha miserável vida. Isso me
dominou, trazendo lágrimas aos meus olhos enquanto segurava
Darby mais perto, enfiando meus dedos sangrentos nos dela.
Prendi a respiração enquanto nos beijávamos, esperando poder
prolongar aquele momento para sempre. Eu teria morrido assim
muito feliz se não fosse pelo suspiro assustado de Darby.

— Kellen, olhe.

Relutantemente, abri os olhos. Então, eu pisquei e os abri mais.

A névoa se foi. As nuvens se separaram. E tudo, desde o céu


até a água e a superfície dos olhos de Darby, estava manchado de
laranja, rosa, amarelo e roxo. Ela sorriu, e aquele mesmo rosado
inundou suas bochechas também.

Então algo brilhou em seu rosto, uma percepção, e aquele


sorriso desapareceu com a mesma rapidez. — Eu tenho que estar
em casa antes de escurecer, — disse ela, deixando cair o queixo.
— Eu gostaria de não ter que ir.

Pressionando meus lábios em sua testa, absorvi os últimos


segundos do melhor momento da minha vida. Então, com o
coração cheio e pesado, coloquei Darby de pé.

Eu odiava a sensação dos meus braços quando ela não estava


neles.
Sem soltar sua mão, conduzi Darby através da água manchada
pelo pôr-do-sol em direção à beira do lago. E quando olhei de volta
para ela, ela ainda estava corando.

Eu queria tanto dizer alguma coisa, dizer a ela o quanto


significava para mim, mas não conseguia encontrar as palavras.
Só que, pela primeira vez, não era porque elas estavam presos
dentro de mim. Era porque elas simplesmente não existiam.

Pelo menos, não nesta língua.


— Obrigado por terem vindo. Como todos sabem, estamos
reunidos aqui hoje para celebrar a vida e lamentar a perda de um
amado membro de nossa congregação, o Sr. Patrick O'Toole.

O padre atrás do pódio era um estranho para mim. Eu sabia


que ele seria. Eu tinha lido o artigo sobre o padre Henry vezes
suficientes para recitá-lo de memória. Mas ver outra pessoa em
seu lugar, falando sobre meu avô como se o conhecesse, parecia
errado.

Glenshire parecia errado.

Mas, novamente, o mesmo aconteceu com o resto da minha


vida.

Tentei não olhar para o caixão fechado em frente ao pódio -


polido e brilhante, mesmo sob aquele céu cinzento de fevereiro -
enquanto baixava o olhar para a erupção vermelha e escamosa que
se espalhava pelo dedo anelar da minha mão esquerda. A causa
daquela erupção também estava polida e brilhante, quando John
a colocou em meu dedo e me pediu em casamento alguns dias
antes. Mas quando chegamos a Glenshire, o ouro já havia
começado a escurecer. Minha pele parecia estar comendo, ou
estava comendo minha pele. Eu não poderia dizer qual. Tudo o que
eu sabia era que a coceira havia piorado dez vezes desde que
desembarcamos na Irlanda, e fiquei grata por isso. A dor serviu
como uma distração. Uma que eu precisava desesperadamente.

No segundo em que girei aquele diamante embaraçosamente


grande para trás e comecei a esfregar a pele inflamada com o
polegar, John percebeu e deu um tapa na minha mão.

— Você está piorando as coisas, — ele sussurrou sem tirar os


olhos do padre Doherty.

Olhei para ele, e me ocorreu o quão deslocado ele parecia lá.


Normalmente, John era dono de qualquer cômodo em que entrasse
- isso fazia parte de seu fascínio, mas ali na grama, cercado por
criadores de ovelhas com suéteres de lã e chapéus de jornaleiro, o
terno BOSS de corte perfeito de John e a gravata de seda de
trezentos dólares pareciam quase estranhos.

Se ele podia sentir meu olhar, ele não demonstrou. Ele não
mostrou muita coisa. Nunca. Eles provavelmente lhe ensinaram
isso na faculdade de direito.

— Foi uma humilde honra estar lá, ao lado de Pat, quando ele
faleceu, — continuou o padre Doherty, recuperando minha
atenção. — As enfermeiras do hospital me ligaram para avisar que
a hora dele estava próxima, então fui até o leito dele. Lá, eu o
abençoei e li algumas passagens do bom livro. Ele estava dentro e
fora da consciência, mas conseguiu dizer algumas palavras lá no
final. Com os olhos fechados e a respiração curta, Pat sussurrou
para mim: 'Pai, diga ao pessoal lá de casa... que eu mijei em todos
os poços deles, para que não fiquem muito chateados com a minha
morte. '
Todos riram, menos John.

— Sim. — O padre Doherty sorriu, enxugando uma lágrima


agridoce dos olhos. — Esse era o nosso Pat. Perspicaz e sempre
pensando nos outros, até seu último suspiro. Imagino que sua
esposa, Mary Catherine, e sua filha, Elizabeth, que o precedeu na
morte, estejam reunidas em torno dele, rindo de uma de suas
piadas neste momento.

O padre Doherty olhou para mim com olhos suaves e


simpáticos enquanto eu segurava a caixa de papelão em meus
braços com um pouco mais de força. Eu tinha esquecido que
estava segurando. Eu estava agarrada às cinzas da minha mãe há
tanto tempo que nem percebi mais o peso dela.

Ela faleceu menos de um ano depois da minha última visita.


Câncer de ovário, igual à minha avó. Lembrei-me de que ela estava
cansada o tempo todo e parecia estar ficando mais magra a cada
dia, mas ela simplesmente descartou isso como estresse. Quando
finalmente a convenci a ir ao médico, já era tarde demais. Seis
meses depois, ela se foi e eu estava sendo deixada no apartamento
do meu pai caloteiro por uma assistente social, carregando um
saco de lixo cheio de meus pertences.

Em vez de pedir a sua filha de treze anos que organizasse um


funeral, minha mãe havia deixado instruções para que eu
guardasse suas cinzas até que tivesse idade suficiente para trazê-
las de volta aqui, para Glenshire.

Eu tinha vinte anos agora, mas ainda não me sentia velha o


suficiente.
Inclinei-me contra o lado de John, precisando de seu conforto
mais do que nunca, e pisquei para conter as lágrimas de alívio
quando seu braço forte envolveu meus ombros.

Por muito tempo depois que mamãe morreu, eu me senti


sozinha, à deriva... com medo da minha própria sombra. Mas
então John apareceu e mudou tudo.

Quando nos conhecemos, eu era uma garçonete esforçada de


dezoito anos em uma churrascaria da moda no centro da cidade,
e ele era o belo advogado corporativo de trinta anos que vinha para
um happy hour toda sexta-feira com os caras de seu escritório de
advocacia. Não tínhamos nada em comum. Ele veio de dinheiro
antigo. Eu vim de um colchão velho no chão do apartamento de
solteiro do meu pai. Ele se formou em Direito Emory. Peguei o
metrô para o estado da Geórgia e só pude ir para lá porque ganhei
uma bolsa de estudos. Seu vocabulário incluía palavras como
fusões e aquisições. O meu incluía termos sofisticados, como
bejankety e sede trap. Mas, por algum motivo, John decidiu me
acolher. Meus amigos disseram, alguns mais educadamente do
que outros, que ele estava apenas procurando por uma ‘esposinha
troféu bonita’, alguém que iria beijar sua bunda e fazer o que ele
disser e ficar bem em seu braço em eventos corporativos, até que
ele decida me trocar por uma versão mais jovem, é claro - e eu não
poderia dizer que eles estavam errados. John não era exatamente
o Sr. Romance. Mas comparada com a vida que eu levava antes,
era uma oferta que eu não podia recusar.

— Pat era um homem de muitas palavras, a maioria delas sobre


si mesmo.
A multidão riu novamente, profunda e calorosamente, trazendo
meus pensamentos de volta ao vovô.

— Então, para honrar seu dom de falar, quem gostaria de subir


e dizer algumas palavras?

Um bufo choroso de tosse irrompeu de algum lugar na frente.


Tio Eamonn deu um passo à frente, passando pesadamente pelo
caixão do pai como se fosse um sofá ou uma mesa de centro.
Queixo para cima. Barriga para fora. Ele ainda estava na polícia
de Dublin, mas agora era detetive, o que fazia sentido. Seus dias
de perseguidor de criminosos definitivamente ficaram para trás.

Bolotas estalaram sob os pés do padre Doherty enquanto ele se


movia para ficar sob o carvalho atrás do palanque, dando a
Eamonn bastante espaço. Eu não poderia dizer se ele estava
apenas sendo educado ou se ele não gostava do homem tanto
quanto eu. Eamonn nunca foi minha pessoa favorita, mas desde
que descobriu sobre o testamento do vovô, ele tem sido
extremamente desagradável.

Meu tio limpou o que parecia ser uma década de alcatrão de


charuto de sua garganta antes de passar a mão manchada pelo
pouco cabelo que lhe restava. — Senhoras. Senhores. Agradeço por
terem vindo. Só quero que vocês, gente fina, saibam que, se alguém
aqui está querendo adquirir algumas ovelhas adicionais, estou
vendendo o rebanho do cara por um preço justo. A fazenda do
papai não vai funcionar sozinha, e a nova zeladora, — seus olhos
astutos pousaram em mim, — não poderia dizer a diferença entre
um nada.
A multidão riu, mas rapidamente ficou em silêncio quando
perceberam que a pessoa de quem ele estava falando estava a
alguns metros de distância, segurando sua mãe morta em uma
caixa de papelão.

Ao meu lado, John pigarreou. Minhas bochechas esquentaram


quando todos os presentes se viraram para olhar para o ianque de
terno.

— Com todo o respeito... — John disse, deixando cair o braço


em volta dos meus ombros e ficando de pé em toda a sua altura.
Ele tinha apenas cerca de um metro e oitenta, mas com sua
postura agressivamente perfeita, você pensaria que ele tinha dois
metros e meio de altura. — O testamento afirma claramente que
Darby Collins é a única herdeira da propriedade do Sr. O'Toole,
incluindo o rebanho nela. Se alguém desejar obter alguma coisa,
precisará entrar em contato diretamente com ela ou comigo
mesmo.

— E quem diabos você é? A babá dela? — Eamonn zombou. —


Você parece velho o suficiente para ser o pai dela.

— Sou o advogado da Sra. Collins, John David Oglethorpe,


Esquire.

Oh meu Deus.

— O advogado dela, você diz? Bem, a garota não tem nem dois
centavos para juntar, então acho que todos nós sabemos com o
que ela está pagando para você. — Os olhos de Eamonn
percorreram a multidão, mas desta vez, eles foram educados o
suficiente para conter o riso em um riso abafado.
— Ele é meu noivo, — deixei escapar, tentando sair em defesa
de John ou possivelmente minha, mas ninguém pareceu me ouvir.

— Bem, Sr. Esquire, não há alguma lei em seus livros de direito


sofisticados sobre crianças que não podem possuir propriedade?

— Existe, mas essa lei não se aplica aqui porque a Sra. Collins
é adulta.

— Se ela for adulta, eu sou a sangrenta Rainha da Inglaterra.


— Eamonn agarrou o cinto segurando sua impressionante barriga
de cerveja enquanto soltava uma risada sem humor.

Então, seu olhar viscoso deslizou de volta para mim.

— Diga-me uma coisa, — disse ele, acenando na direção de


John. — Esse babaca perguntou se você quer se casar com ele
antes ou depois que ele descobriu sobre sua pequena herança?

— Pare com isso, Eamonn! Honestamente! — Minha tia


Shannon disparou da primeira fila. Seu cabelo ruivo crespo
balançava com cada sílaba enquanto seu marido, meu tio Fred,
passava um braço protetor em volta de seus ombros.

Meus dois primos, agora na casa dos trinta, ficaram um de


cada lado deles, segurando seus próprios filhos.

— Pa deu aquela casa para Darby por uma razão. — Ela baixou
a voz nessa última parte. — A pobre criança ficou sem nada.

— Eu sou seu único filho! — Eamonn empurrou a mão na


direção da fazenda do vovô. — Essa propriedade é meu direito de
primogenitura, droga.

O padre Doherty subiu ao pódio e colocou a mão sobre o


microfone, mas isso pouco ajudou a abafar seu severo aviso. —
Eamonn, se você não consegue se comportar, vou pedir para você
sair.

— Bobagem! — Eamonn jogou os braços para cima e saiu


pisando duro em direção ao estacionamento, lançando a John e a
mim um olhar assassino durante todo o caminho.

John ergueu o queixo desafiadoramente.

Com um suspiro pesado, o padre Doherty balançou a cabeça


em um pedido de desculpas silencioso. — Alguém mais gostaria de
dizer algumas palavras? — Ele deu a minha tia um sorriso gentil.
— Shannon?

Seu cabelo ruivo balançava de um lado para o outro.

— Muito bem. — Ele assentiu. — Acho que todos nós


poderíamos tomar uma bebida forte depois disso, então, sem mais
delongas, vamos dar as mãos e inclinar nossas cabeças em oração.

Lançando um sorriso triste por cima do ombro, Shannon


estendeu a mão para mim. Eu a peguei e apertei gentilmente,
observando devastada enquanto seus olhos cor-de-rosa inchados
deslizavam do meu rosto para a caixa de papelão que eu segurava
como um ursinho de pelúcia.

— Em tuas mãos, ó Senhor, humildemente confiamos Patrick


Murphy O'Toole. Por favor, receba-o em seu reino como todos nós
o recebemos em nossos corações. Por favor, ajude-nos a encontrar
conforto em nossa tristeza, certeza em nossa dúvida e coragem
para continuar…

Com um último aperto, Shannon largou minha mão e se virou


para o padre Doherty. Ela então passou um braço em volta de sua
filha, Maggie, que se curvou ao seu lado e soltou um soluço
baixinho.

Era como se houvesse um holofote iluminando as duas,


destacando tudo o que eu estava perdendo. Amor incondicional.
Conforto. Gentileza. Fazia anos desde que alguém me segurou
assim. Eu teria matado para que alguém fizesse isso de novo.

Mesmo que eles não quisessem isso.

Com a cabeça baixa em oração, olhei para John. Ele parecia


tão bonito e intenso como sempre, com as mãos cruzadas à sua
frente e as sobrancelhas castanho-escuras franzidas em
concentração. Parecia que ele estava atento a cada palavra do
padre Doherty - até que notei a tela brilhante discretamente
escondida entre as palmas das mãos em concha. A carranca de
John se aprofundou quando seus polegares começaram a digitar o
que provavelmente era uma resposta forte a um e-mail de trabalho.

O padre Doherty disse mais algumas coisas bonitas, mas não


ouvi. Na verdade, todo o funeral pareceu desaparecer quando meu
olhar se desviou para o canto direito do cemitério.

Eu estava tentando não olhar. Eu tinha lido sobre o incêndio.


Eu sabia o que iria encontrar. Mas naquele momento, minha
necessidade de alguém me abraçar era mais forte do que minha
necessidade de permanecer em negação.

Na orla da floresta, onde outrora uma casinha atarracada


parecera um velho toco de madeira, erguia-se um chalé novo e
moderno, todo de linhas limpas e ângulos retos. O estuque era
branco brilhante. A porta era vermelha. E as janelas imaculadas
brilhavam como olhos num rosto sorridente.
Não era a mesma casa, mas eu procurei pelas janelas de
qualquer maneira, desesperada, esperando além de qualquer
razão que eu encontrasse o rosto de um garoto de cabelos pretos
espiando por entre um par de cortinas manchadas de nicotina.
Mas todos os vestígios dele - e os horrores que aconteceram lá -
simplesmente... desapareceram.

Havia apenas três pessoas que realmente se importaram


comigo. Cujos toques me fizeram sentir melhor em vez de pior.

E eu senti como se estivesse enterrando os três no mesmo


maldito dia.

Olhei para o local ao lado do túmulo da minha avó, onde Kellen


tinha me perseguido todos aqueles anos atrás e me implorou para
não esquecê-lo. Mas até aquele pedaço de grama se foi, arrancado
da terra para dar lugar ao resto dos meus entes queridos. E ao pé
dela, zombando da minha dor, havia uma lápide nova e brilhante.

Patrick Murphy O'Toole

1940 ~ 2021

Marido dedicado, pai amado, fanfarrão terrível.

— Deitar-se cedo e levantar-se cedo torna o homem saudável, rico e


sábio.

—Darby?
— Hum? — Pisquei para o padre Doherty, que havia descido do
palanque e agora estava ao lado do caixão de meu avô.

O resto da multidão havia diminuído significativamente, e os


que restaram formaram grupos soltos nas margens do cemitério.
Encontrei John parado com minha tia e sua família. Ele apertou a
mão de meu primo David com o entusiasmo de um político. David
era um corretor de imóveis em Killarney, então provavelmente
estava apenas tentando fazer um acordo. Afinal, eu tinha uma
fazenda de ovelhas para vender.

— As cinzas, amor.

— Oh. — Olhei para a caixa em meus braços. Nos pequenos


adesivos de coração que coloquei quando estava na nona série. Nos
cantos, reforcei grosseiramente com fita adesiva quando começou
a mostrar sinais de desgaste. Tentei engolir o nó na garganta
enquanto lançava outro olhar para John. Eu não poderia fazer isso
sozinha. Eu não queria.

Enviei-lhe um pedido telepático de ajuda, mas não foi recebido.


Em vez disso, John riu e deu um tapinha no ombro de meu primo
enquanto eu me preparava para me despedir das pessoas mais
importantes da minha vida.

Com as mãos trêmulas, comecei a arranhar e arrancar a tira


quebradiça e amarelada de fita adesiva de sete anos atrás que
mantinha a tampa da caixa fechada, mas o padre Doherty me
impediu antes que eu pudesse ir muito longe.

— Vamos fazer isso, querida.


Ele estendeu a mão para a caixa e eu congelei quando ele
gentilmente arrancou a última conexão que eu tinha com minha
mãe dos meus braços. A dor que senti foi tão aguda e tão profunda
que foi como se ele tivesse enfiado a mão em meu corpo e
arrancado um de meus órgãos. Algo vital. Algo que eu não sabia
viver sem. Ele sorriu tristemente enquanto carregava meu baço,
meu fígado, meu coração ainda batendo para o caixão de madeira
polida.

Eu assisti em agonia silenciosa enquanto ele levantava a


tampa. O padre Doherty se posicionou de forma que eu não
pudesse ver o rosto do vovô, mas pude ver perfeitamente seu braço
e sua mão azulada e sardenta quando o padre o ergueu e enrolou
na caixa que continha minha mãe.

— Pronto, — disse ele, fechando a tampa e voltando-se para


mim. — Ela voltou para casa.

A bondade em seu rosto era insuportável. Apertei meus olhos


fechados, fazendo com que as lágrimas que estavam crescendo
caíssem pelo meu rosto enquanto um soluço brutal sacudia meu
corpo. Envolvi meus braços recém-vazios em torno de mim,
precisando de algo para segurar agora que minha mãe se foi.

Precisando de alguém para me segurar.

— Ei, Darb? — Uma voz americana polida e sem sotaque gritou


atrás de mim.

Oh Deus.
Eu freneticamente tentei enxugar minhas lágrimas enquanto
os passos de John se aproximando ficavam mais altos. Eu não
podia deixá-lo me ver assim.

Ou talvez eu não suportasse ver a indiferença em seu rosto


quando ele o fez.

— Vamos. Todo mundo está indo para o pub para a recepção.

Eu tentei desesperadamente recuperar minha compostura,


mas eu estava longe demais. As lágrimas estavam caindo mais
rápido agora, e quanto mais eu tentava respirar normalmente, pior
eu hiperventilava.

— Estou no processo de convencer seu primo a listar a casa


para nós sem comissão, como um favor de família, então
precisamos pelo menos aparecer. — Seu tom era direto. Factual.
Frio.

E estava cada vez mais perto.

Meus olhos se fixaram em uma pequena lacuna nas árvores ao


lado da casa.

— Você está me ouvindo?

O tom agudo em sua voz foi meu único aviso. Eu sabia o que
aconteceria se eu o desafiasse depois disso, mas não consegui me
virar.

Em vez disso, dei um passo à frente, longe do meu futuro e


direto para o meu passado.

Então, peguei outro.

— Darby. Estou falando com você.


Continuei andando, cada vez mais rápido, cada passo me
fazendo desejar mais quinze.

— Onde diabos você pensa que está indo? Ei!

Ouvi os passos pesados de John acelerarem na grama atrás de


mim, então agarrei a bainha do meu vestido preto com as duas
mãos e levantei-o sobre minhas coxas...

E eu corri.
— Onde você supõe que ela está indo?

— Eu não tenho a menor noção.

— Darby! Volte aqui!

— Louca como uma caixa de sapos, aquela.

— Você pode culpá-la? Pobre criança.

— Darrrr-byyyy!

As vozes murmuradas dos aldeões, misturadas com os gritos


americanos raivosos de John, apenas forçaram minhas pernas a
bombear com mais força. Tirando meus sapatos, comecei a correr,
saboreando a grama fresca sob meus pés descalços. Era a única
coisa em Glenshire que parecia igual.

Até mesmo a trilha que levava da casa de Kellen para a cabana


havia desaparecido - uma percepção que fiz assim que corri para
a floresta e me vi confrontada com uma dúzia de caminhos
possíveis e nenhum deles dele. Mas continuei correndo de
qualquer maneira, de cabeça baixa, olhos no chão imediatamente
à minha frente, até que meus dedos dos pés prenderam em uma
raiz de árvore escondida sob um leito de folhas.

Tropecei e quase caí, aterrissando com o ombro contra a árvore


cuja raiz acabara de me machucar. Ofegante, rolei para que
minhas costas ficassem contra o tronco e levantei meu pé para me
certificar de que não estava machucado. Não foi. Meus pulmões,
por outro lado, estavam gritando.

Fechei os olhos e inclinei a cabeça para trás, esperando minha


respiração voltar ao normal. O ar fresco e úmido esfriou a parte de
trás da minha garganta no caminho para baixo.

Eu nunca tinha estado em Glenshire no inverno antes. Eu não


gostei. Em vez de ser verde e exuberante e zumbir com os sons da
natureza, a floresta estava silenciosa. Frágil. Cinza.

Era como se toda a Irlanda estivesse de luto comigo.

O pensamento era estranhamente reconfortante.

Quando finalmente estava pronta para continuar, desci da


árvore, apenas para descobrir que não tinha ideia de qual caminho
seguir. Nada parecia o mesmo que eu me lembrava. Tudo que eu
sabia era de onde eu tinha vindo, e eu definitivamente não voltaria
para lá.

Com cuidado para não pisar em mais raízes, pedras ou pinhas,


caminhei lentamente no que presumi ser a direção de nosso antigo
casebre. Eu só precisava vê-lo novamente. Eu precisava de provas
de que não estava louca. Evidência de que Kellen, e tudo o que
tínhamos compartilhado, tinha sido real.

Eu queria ir vê-lo no segundo em que pousamos ontem, mas


depois de alugar um carro, dirigir até o escritório do advogado,
assinar a papelada da casa e pegar o jantar, já era bem depois do
anoitecer quando finalmente chegamos na casa do vovô.
Eu não aguentava ficar em casa sem o vovô. Parecia
assombrado. Além do que quer que Eamonn tivesse levado antes
de chegarmos, suas coisas estavam bem onde ele as havia deixado.
Seus óculos de leitura na mesa da cozinha. Sua escova de dentes
na pia do banheiro. Seu estoque secreto de biscoitos em uma lata
de metal ao lado da cama. Suas ovelhas, das quais eu não fazia
ideia de como cuidar. Felizmente, seus vizinhos de bom coração
vinham cuidar delas desde que ele faleceu.

Vê-las novamente me fez sorrir. Elas ainda eram tão fofas com
aquelas manchas azuis brilhantes.

Então, levantei os olhos e vi algo que me fez sorrir ainda mais.

A casa de campo.

Meu passo acelerou enquanto eu corria em direção à pequena


casa de pedra, maravilhada com o quão completa ela era.

Kellen deve ter encontrado a pedra correspondente. E descobriu


como fazer um telhado de palha adequado! Oh meu Deus, é tão
adorável! Eu poderia simplesmente viver aqui para sempre -

Ao som dos meus passos atravessando a floresta silenciosa, um


rosto emergiu da porta, mas não era o que eu esperava ver.

Uma velha com olhos de leite estragado olhou para mim através
de uma cortina entreaberta de longos cabelos grisalhos
desgrenhados.

Eu a reconheci imediatamente. Não que eu já a tivesse visto


antes, mas meu avô me contava histórias. Olhando além da casa,
percebi agora o quão perto eu estava do lago.

O lado errado do lago.


Oh Deus.

Eu estava olhando. Eu tinha parado de correr, e agora, eu


estava apenas olhando para aquela pobre velha, e bruxas não
existiam, e ela não ia me comer ou me transformar em um sapo ou
qualquer outra coisa horrível que Vovô havia me dito. Ele só estava
tentando me impedir de me aventurar muito fundo na floresta, e
agora eu estava sendo rude com uma pessoa muito real,
provavelmente muito doce por causa disso.

— Olá, — eu disse, minha voz rouca de tanto chorar e correr e


o frio. — Desculpe-me se te incomodei. Eu apenas me perdi por
um minuto e pensei que estava em outro lugar.

— Sim, — ela disse, seus olhos azulados nublados me


avaliando. — Você está perdida há muito mais tempo do que isso
agora, não é? Entre, criança. Vamos tirá-la do frio.

Ela saiu completamente da porta e fez um gesto para que eu


entrasse, apoiando seu peso em um velho galho de árvore nodoso
que ela reaproveitou como uma bengala. Seu corpo frágil estava
envolto em metros de linho esfarrapado e cor de poeira, e um xale
de retalhos - que parecia ser feito de uma dúzia ou mais de peles
de pequenos animais - descansava em seus ombros curvados e
arredondados.

Meu medo inicial foi rapidamente ofuscado por um profundo


sentimento de admiração.

Há quanto tempo ela estava morando aqui?

Como ela estava morando aqui?


Eu registrei o som de folhas esmagadas sob meus pés
novamente enquanto a curiosidade tomava conta de mim.

— Eu sou Darby, — eu disse, parando para fazer contato visual


pouco antes de cruzar a soleira.

— Eu sei quem você é, criança, — ela disse quando passei, sua


voz ainda mais áspera que a minha.

Por dentro, a cabana parecia semelhante àquela em que Kellen


e eu costumávamos brincar. Uma sala escura e redonda cheia de
móveis feitos de tocos e madeira recuperada, cobertores no chão
de terra dura e apenas os objetos domésticos mais essenciais. Mas
uma coisa que nossa casa definitivamente não tinha era metros e
metros de barbante entrecruzado no alto com as peles de
minúsculas criaturas da floresta penduradas como uma espécie
de varal macabro. Eu me abaixei para evitar dar de cara com um
esquilo esfolado, percebendo um momento tarde demais que
entrar poderia ter sido um erro terrível.

A única luz na sala vinha de algumas janelas quadradas, da


fresta sob a porta - que acabara de se fechar atrás de mim com um
rangido sinistro - e de um pequeno fogo brilhando no canto,
aquecendo uma panela preta parecida com um caldeirão.

Puta merda. Ela realmente vai me transformar em um sapo.

Apontando para um toco de árvore próximo ao fogo, a velha


simplesmente disse: — Sente-se.

Eu fiz e decidi que ser um sapo não seria tão ruim, desde que
eu continuasse sentada perto daquele fogo. Eu não tinha
percebido o quão dolorosamente frio meus pés e mãos tinham
ficado.

— Obrigada por me convidar para entrar. — Eu sorri


fracamente, segurando um pé e ambas as mãos para as chamas.
— Obviamente, não planejei me perder na floresta hoje.

Quando ela não disse nada, eu olhei e a encontrei balançando


a cabeça para mim em desaprovação, uma carranca de desdém
puxando ainda mais sua boca já virada para baixo. Ela não estava
olhando para o meu rosto, no entanto. Seu olhar crítico estava
direcionado diretamente para minhas mãos.

Olhei para baixo e notei imediatamente o que deve ter chamado


sua atenção.

Merda.

Cruzando minhas mãos no meu colo, eu discretamente deslizei


o diamante para dentro do meu dedo, mas o movimento me fez
estremecer com a erupção quente sob a banda.

A mulher deu dois passos seguros em minha direção e apontou


a bengala diretamente para o meu colo. — Tire isso, — ela exigiu,
seus lábios finos e enrugados ficando brancos enquanto formavam
uma linha dura.

— Eu... eu deveria ir. — Fui me levantar, mas minha anfitriã


só me apertou mais, impedindo minha saída.

— Você tem coragem, sabia disso?

— Sinto... desculpe se te ofendi de alguma forma, — eu


balbuciei, tentando descobrir o caminho de menor resistência até
a porta. — Eu vou sair.
— Não é a mim que você deve se preocupar em ofender, querida.
É ela.

Isso me deu uma pausa.

Olhei ao redor apenas para verificar se estávamos de fato


sozinhos. — Ela quem?

A velha apontou a bengala para a janela mais próxima e bateu


com ela no vidro chumbado. — Saoirse .

— Saoirse?

— Sim. A dama no lago. — A velha sorriu. — Ela também não


está feliz com você. — Havia um tom divertido em sua voz, como
se fosse uma fofoca da floresta.

Parte de mim pensou que ela era louca, mas a outra parte de
mim - a parte irlandesa, a parte que foi ensinada a acreditar em
fadas, bruxas e espíritos do lago - me forçou a ficar e ouvi-la.

— Você pode me contar mais sobre essa mulher, Saoirse? Acho


que nunca a conheci, mas...

— Ah, mas você fez. — Seus olhos se arregalaram de emoção


quando ela estendeu a mão e agarrou meu pulso.

Engoli em seco quando seus dedos frios e ossudos me


agarraram, segurando minha mão esquerda contra a luz. — Ela te
deu isso. — Empurrando meu anel até a próxima junta, a mulher
bateu nas três sardas logo abaixo com seu dedo indicador nodoso.
— Esta é a sua aliança de casamento, criança. Não essa coisa
atroz.

Ela soltou minha mão, mas eu a mantive levantada, olhando


para as sardas perfeitamente redondas e uniformemente
espaçadas que cortavam meu dedo anelar em uma linha
pontilhada.

— Você realmente não sabe, não é?

Minhas sobrancelhas se juntaram enquanto eu balançava a


cabeça de um lado para o outro.

Com um bufo e muito esforço, a mulher se abaixou em um toco


de árvore no centro da cabana. Seus longos cabelos grisalhos
caíam sobre seus ombros curvados e, à luz do fogo, pude ver
vislumbres da beleza que ela deve ter sido. Maçãs do rosto
salientes, aumentadas com a magreza da idade. Um maxilar
quadrado irlandês, como minha mãe e minha tia. Cílios longos e
brancos como penas. E um brilho travesso no olho nublado, como
meu avô.

— Há mil anos, Glenshire era um vilarejo agrícola, muito


parecido com o que é hoje. Naquela época, o homem mais rico da
aldeia era um vigarista terrível e repugnante. Ele comprou a mão
da mais bela donzela em casamento cancelando as dívidas de seus
pais para com ele, mas Saoirse nunca passou a amá-lo. Sua
incapacidade de comprar o afeto dela o enfureceu e, com o tempo,
ele ficou louco de ciúmes. Ele estava convencido de que todos os
homens da aldeia estavam apaixonados por ela e que ela devia ter
um amante secreto. Então, depois de se encontrar no fundo de
uma garrafa de uísque uma noite, ele a arrastou para este mesmo
lago e a afogou. Disse que se ele não pudesse ter o amor dela,
ninguém mais teria.

Engoli em seco e cobri minha boca, mas a velha simplesmente


encolheu os ombros com a minha reação.
— Ela era propriedade dele. Ele poderia fazer com ela o que
quisesse. Mas a notícia de sua morte aterrorizou as outras
mulheres da aldeia. Elas sabiam que destinos semelhantes
poderiam acontecer com elas com a mesma facilidade. Um
precedente havia sido estabelecido. Então, elas começaram a
trazer presentes para a senhora no lago, bugigangas, flores, na
esperança de ganhar seu favor... e proteção. Logo, elas começaram
a trazer seus pretendentes para visitá-la também. Elas fingiriam
que era apenas um pequeno passeio ao redor do lago, mas
realmente esperavam que Saoirse julgasse seus corações e lhes
desse um sinal de que os homens eram bons ou maus.

— Ao longo dos anos, a tradição de trazer pretendentes para o


lago tornou-se tão comum que os aldeões começaram a se casar
aqui também. Depois de recitar seus votos, o casal espetava os
dedos com um espinho de amora e derramava seu sangue na água
para provar sua devoção à senhora do lago. Diz a lenda que se
Saoirse considerasse seu amor verdadeiro, ela abençoaria sua
união com um vínculo eterno, amarrando suas almas uma à outra
por toda a eternidade.

Espinhos de amora.

Sangue.

Água.

A sala ficou repentinamente sufocante. Empurrei as mangas


justas do meu vestido para cima dos meus braços. Braços que
ainda carregavam as cicatrizes do dia em que Kellen e eu
derramamos nosso próprio sangue naquela água.
— E, como, hum, elas saberiam se... sua união foi...
abençoada?

Um sorriso levantou os cantos pesados da boca flácida da


mulher enquanto seu olhar mais uma vez caiu para aquelas três
sardas idênticas em meu dedo anelar.

Eu balancei minha cabeça em descrença. — Eu era apenas


uma criança burra que caiu de uma árvore. Isso dificilmente é um
casamento.

— Tente dizer isso a ela. — Ela sorriu, apontando sua bengala


em direção ao lago. — Saoirse não concedeu essa bênção a
ninguém em séculos, e agora você volta aqui com o anel de outro
homem em seu dedo? — As risadas suaves da mulher evoluíram
para um ataque de riso e tosse. — Sua ira será grande!

Fiquei de pé. Precisando de ar. Precisando de espaço.


Precisando ficar bem longe daquela mulher e de suas ameaças
sobrenaturais assustadoras.

Virando-me para a porta, bati de cara em uma pele de coelho


pendurada e gritei. A mulher apenas riu ainda mais.

— Você sabe o que? — Eu me virei e olhei para seu rosto


enrugado e cacarejante. — Isto é ridículo. Posso casar com quem
eu quiser. Porque mesmo que essa dama do espírito do lago seja
real, o garoto a quem ela supostamente me uniu por toda a
eternidade, Kellen, bem... ele está morto. — Minha voz quebrou
nessa última palavra junto com meu coração quando percebi do
que eu realmente estava fugindo. A verdadeira razão pela qual não
voltei para Glenshire antes. A verdade que eu vinha evitando desde
que encontrei aquele artigo quando tinha quinze anos.
Os olhos divertidos da mulher brilharam como duas chamas
azuis atrás de um par de vidros congelados.

— Se você realmente acreditasse nisso, — ela sorriu, revelando


uma boca cheia de dentes que pareciam ter sido esculpidos em
madeira podre, — você não estaria aqui procurando por ele,
estaria?

Tropeçando para trás, eu me virei e corri para a saída, abrindo


caminho através de sua coleção de carcaças penduradas enquanto
sua tosse recomeçava atrás de mim.

Assim que empurrei a porta, sua risada evaporou no ar do final


da tarde tão rapidamente quanto o calor escapou de meus ossos.
Puxei minhas mangas para baixo com um arrepio de corpo inteiro
que não tinha nada a ver com o frio e tudo a ver com o que eu
sabia que encontraria se olhasse por cima do ombro.

A única cabana deste lado do lago era uma ruína. Eu tinha


visto isso uma dúzia de vezes.

E minha mente também, eu suponho.

Enquanto eu olhava para a água enevoada, os ingredientes de


um ataque de pânico começaram a apertar meus pulmões.

Eu estava ficando louca. Essa era a única explicação lógica.

Era como se eu estivesse olhando para o meu passado através


do filtro sujo e distópico de um futuro que eu nunca quis. O
contorno era o mesmo, sua forma básica, mas o que antes era
verde agora era cinza. O que era certo agora foi deixado.

O que estava vivo, agora estava morto.


O céu escureceu e trovões retumbaram, sacudindo a terra e
colocando meus pés descalços em movimento. Observei meus
passos, mas me movi rapidamente enquanto fugia da cabana sobre
a qual o vovô havia me avisado.

Vovô.

Aquele pavor serpentino enrolou-se ainda mais em meu peito


enquanto eu imaginava sua mão enrugada e azulada envolvendo
delicadamente as cinzas de minha mãe.

Mãe.

Meus braços pareciam tão vazios sem ela neles. Enrolei-os em


volta de mim, desejando que pertencessem a outra pessoa. Ele.
Olhei para o local onde havíamos nos beijado tantos anos atrás -
no centro do lago, onde a névoa flutuava espessa e pesada, como
uma nuvem caída.

Kellen.

Era como se ele nunca tivesse existido. A mulher estava certa.


Eu estava procurando por ele. Eu estava procurando por ele desde
o momento em que cheguei, mas tudo que ele tocou
simplesmente... sumiu. Sua casa havia queimado e foi
reconstruída. Nosso lugar no cemitério havia sido arrancado da
terra. As trilhas que ele passou anos marcando no chão da floresta
desapareceram no ar. Mas quando meus olhos viajaram para o
carvalho gigante à beira do lago, aquele próximo ao matagal de
arbustos de amora, meus pés fugitivos e minha mente
cambaleante pararam completamente.
Enquanto eu olhava para um pedaço de corda desgastada e
cheia de nós balançando no vento cortante.

Eu poderia dizer a mim mesma que as bruxas não eram reais.


Aqueles vingativos espíritos do lago de mil anos não eram reais.
Que meu avô havia inventado tudo e eu estava apenas sofrendo de
algum colapso mental induzido pela dor. Mas havia uma coisa
sobre a qual ele me alertou que era real - e aquela escada velha e
enferrujada caída de lado nas folhas era minha prova.

Agarrando a bainha do meu vestido, levantei-o sobre minhas


coxas novamente e saí correndo.

Pulando a escada caída, parei para dar um abraço rápido no


tronco largo do carvalho antes de me virar e correr morro acima.

Como quase tudo o que Kellen havia tocado, a trilha para a


cabana havia sumido também, mas eu não precisava vê-la para
saber que ela estava lá. Eu podia senti-la vibrando sob meus pés
frios e molhados.
Dirija até Cork Harbor, dê uma passada rápida, volte para
Dublin à meia-noite com o dinheiro. Essa era minha única tarefa do
dia, a mais fácil que a Irmandade havia me dado em anos. Não
fazia o menor sentido, eles tinham um exército de novos recrutas
para merdas como essa, mas não fiz perguntas. Achei que, se eles
estavam me enviando, não seria tão fácil quanto deixaram
transparecer.

Meu plano era chegar cedo às docas, examinar o local,


certificar-me de que não havia uma entrada ou saída que eu não
conhecesse e, em geral, me preparar para o pior.

Mas esses planos haviam mudado.

Como executor da Irmandade Irlandesa Unida, tive que prestar


muita atenção às notícias. Relatórios de pessoas desaparecidas,
incêndios misteriosos em armazéns, avisos de morte - eu tinha que
garantir que meus esforços de limpeza tivessem sido convincentes.

Foi assim que descobri que Patrick Murphy O'Toole, do


condado de Kerry, seria sepultado ao lado de sua amada esposa
na Igreja Católica de Glenshire às quatro horas naquele mesmo
dia.

Então, em vez de pegar a rodovia direto para Cork, eu estava


em uma estrada de duas pistas em ruínas a mais de cem
quilômetros de lá, indo direto para um lugar que só existia em
meus pesadelos nos últimos cinco anos.

Destruí aquela casa dos horrores quando tinha apenas


dezessete anos. Queimei-a da terra - e o que aconteceu lá da minha
mente - com uma lata de gasolina e um fósforo. Eu a vi queimar
até o sol nascer. Então, fui até a rodoviária, comprei uma
passagem só de ida para Dublin e prometi a mim mesmo que
nunca mais voltaria.

Ao dobrar a curva e ficar cara a cara com uma pequena capela


de pedra e duas portas vermelhas gigantes, desejei ter cumprido
aquela promessa. Meu coração batia forte contra minhas costelas
enquanto eu passava sem diminuir a velocidade. Eu não podia
arriscar ser visto lá. Não depois do que eu tinha feito.

Continuei na curva e estacionei na beira da estrada. O carro


era um queimador, um dos muitos na coleção da Irmandade -
números de série falsos, disquetes de impostos falsos, registros
falsos. Se um trabalho deu errado, você o abandona, sem fazer
perguntas.

Mas meus trabalhos nunca deram errado.

Respirando fundo, coloquei um gorro preto, fechei o zíper da


minha jaqueta de voo preta e corri pela rua. Mantive-me nas
árvores ao lado do estacionamento da igreja, tomando cuidado
para não pisar muito alto.

Ela provavelmente nem está aqui, eu disse a mim mesmo.

Eu apenas daria uma olhada rápida na multidão, satisfaria


minha própria curiosidade doentia e masoquista, e então colocaria
Glenshire - e Darby Collins - em meu espelho retrovisor para
sempre.

Enquanto eu rastejava ao longo da cerca que cercava o


cemitério, percebi que poderia ter chegado tarde demais. O serviço
acabou. Todo mundo estava se movendo, e era difícil acompanhar
quem eu tinha visto e quem não tinha.

Um fluxo de idiotas entrou no estacionamento pelo portão do


cemitério - alguns eu reconheci vagamente do meu tempo em
Glenshire, outros não. Foi incrível o quanto consegui apagar da
minha memória em cinco anos. Os nomes e rostos das pessoas que
zombavam e cuspiam em mim agora dançavam nas bordas da
minha mente, fora de alcance. Eles eram tão insignificantes para
mim agora quanto as ovelhas que pontilhavam as colinas.

Todos, menos uma.

Eu rastejei ao longo da cerca, ficando escondido atrás das


árvores, examinando cada corpo presente até encontrá-la. Não
consegui ver o rosto dela, mas reconheceria aquele cabelo em
qualquer lugar. Eu vi isso em meus sonhos. Longo e ondulado,
vermelho acobreado. Torcendo em cachos macios na parte inferior.
Mas sua postura não era nada parecida com a de Darby. Darby
tinha marchado pelo bosque com aquelas galochas amarelas como
se fosse a rainha do maldito bosque. Esta mulher parecia oca,
côncava, como se estivesse prestes a desabar sobre si mesma. Ela
parecia uma…

Como um prédio em chamas.

Olhei além dela, para o lado oposto do cemitério, enquanto uma


onda ácida de bile subia pela minha garganta.
O lugar onde eu finalmente tomei uma posição, recuperei
minha vida, estava de pé novamente. Brilhante e novo. Um
monumento branco brilhante para a minha miséria. Uma paródia
provocadora da minha dor.

Tudo o que eu podia ouvir era o sangue correndo em meus


ouvidos.

Tudo o que eu podia ver eram as chamas.

Minha respiração saiu em rajadas quentes de vapor enquanto


minha mente destrancava uma porta que eu tinha jurado que
nunca mais abriria. À medida que as imagens, os sons e os cheiros
daquele dia romperam minhas barricadas cuidadosamente
construídas de uma só vez.

Fechei os olhos com força e agarrei minha cabeça com as duas


mãos, como se pudesse forçar fisicamente as memórias de volta
para suas gaiolas. Recusei-me a perder o controle da minha
própria mente. Eu me recusei a dar a ele esse tipo de poder sobre
mim novamente.

Enquanto minha respiração desacelerava e voltava ao normal,


foi o som de gritos que finalmente me trouxe de volta ao momento
presente. Quando abri os olhos, não era mais a casa que me atraía
a atenção. Era a mulher que passava correndo por ela.

O cabelo de Darby chicoteou atrás dela como uma capa


acobreada enquanto ela chutava um pé na frente dela, seguido
pelo outro. Dois saltos altos pretos voaram no ar, girando em
direções diferentes quando Darby agarrou a barra de seu vestido
preto apertado, puxou-o até a parte mais larga de seus quadris e
saiu correndo para o bosque.
Segui como uma bala de canhão batendo nas árvores até
chegar à trilha que levava ao chalé. Estava enterrado em folhas,
mas poderia tê-lo encontrado com os olhos vendados. Eu passei
mais tempo naquela floresta crescendo do que em minha própria
casa.

Sua casa.

Fiquei completamente imóvel e escutei por ela, mas tudo o que


ouvi foram vozes chamando seu nome do cemitério.

O céu escureceu e o vento aumentou. Havia uma carga elétrica


no ar e uma emoção que eu não sentia desde os quatorze anos de
idade bombeava em minhas veias enquanto eu corria em direção
ao velho chalé.

Assim que cheguei lá, notei que a porta da cortina do chuveiro


havia sumido há muito tempo, mas o telhado de lona ainda estava
um tanto intacto. Ele se curvou no meio, pesado com a água da
chuva, e uma parte foi virada onde uma das pedras que o
seguravam havia caído. Minha garganta apertou ao vê-lo.

Meu velho amigo.

Aproximei-me e coloquei a mão na pedra, desculpando-me


silenciosamente pela minha negligência enquanto me preparava
para enfrentar o que quer que estivesse lá dentro.

Eu estava familiarizado com o medo. O medo me manteve vivo.


Manteve-me afiado. Mas esse sentimento era diferente. Era
perigoso. Não porque poderia me matar, mas porque tinha o poder
de me fazer desejar ter sido morto.
Com uma respiração profunda, entrei pela porta e a encontrei
quase exatamente do jeito que a havia deixado cinco anos atrás. O
saco de dormir tinha mais mofo. A mobília que eu fiz – e quebrei
contra a parede quando finalmente desisti de que ela voltasse –
estava em pedaços no chão. O jogo de chá que eu nunca consegui
destruir, mesmo durante meus piores acessos de raiva, ainda
estava em seu lugar de destaque. E, como sempre, Darby não
estava lá.

Tirei o gorro da cabeça e o enfiei no bolso da jaqueta enquanto


saía, precisando sentir o ar fresco na pele. Precisando encontrá-la.
Contornei o chalé, espiando por entre as árvores em todas as
direções, ouvindo o estalar de um galho ou de uma folha, mas não
havia sinal dela em parte alguma.

Nunca houve qualquer maldito sinal dela.

Em seguida, tirei minha jaqueta e joguei-a no chão, mas o vento


de inverno não fez nada para refrescar minha pele. As chamas da
vergonha que eu estava reprimindo desde o dia em que deixei esta
cidade esquecida por Deus rasgaram através de mim como um
incêndio florestal. Eu tinha esquecido como era difícil controlar a
raiva, como exigia violência, ansiava por dor. Mas estar de volta -
vendo aquela casa, vendo ela - parecia que eu nunca tinha ido
embora.

Eu tinha treze, quinze, dezesseis anos de novo. Esperando. E


queimando vivo.

Foda-se isso.

Eu estava prestes a pegar minha jaqueta do chão e ir encontrar


um tronco de árvore para colocar meu punho quando o som de
passos se aproximando suavemente me enraizou no local. Minha
cabeça virou para o lado, e lá - marchando colina acima, descalça
com a barra do vestido em ambas as mãos - estava uma aparição
sangrando. Uma visão em preto.

Darby, porra, Collins.

A respiração que eu estava segurando saiu dos meus lábios


enquanto eu a bebia. Ela era perfeita. Absolutamente perfeita.
Embora seu corpo tivesse preenchido todos os lugares certos, suas
bochechas e nariz estavam tão corados e sardentos quanto eu me
lembrava. Seu cabelo era laranja dourado. E seus lábios rosados e
carnudos estavam franzidos em concentração, do jeito que sempre
ficavam quando ela estava pensando em alguma coisa.

Ser invisível foi como sobrevivi. Mantive minha cabeça baixa,


me movi em silêncio e não deixei rastros para trás. Era por isso
que eu era tão bom no que fazia. Mas pela primeira vez em muito
tempo, não queria ser invisível. Eu me senti como uma criança
novamente, observando-a andar em minha direção, esperando que
ela me notasse, esperando que ela erguesse aqueles grandes olhos
verdes e dissesse meu nome com um sorriso.

O meu nome. Foda-se.

Eu não ouvia isso há anos. Nem uma vez desde que deixei
Glenshire. Kellen Donovan - o rejeitado mudo, sem mãe e
impotente - estava tão morto para mim quanto o padre Henry.
Então, quando a Irmandade me acolheu, não lhes dei um nome.
Eu disse a eles que podiam me chamar do que quisessem. No
início, eles escolheram Boy - eu tinha apenas dezessete anos na
época - mas depois que fiz minhas primeiras mortes, os anciãos
começaram a me chamar de Diabhal.

Diabo.

Foi quando percebi que não importava a distância que eu corria


de Glenshire. Eu nunca seria capaz de superar o que eu realmente
era.

Então, parei de tentar. Encontrei um lugar que celebrava o mal


que espreitava dentro de mim, me pagava generosamente para
libertá-lo, e isso era bom o suficiente. Não era uma vida muito boa,
mas era melhor do que a que eu estava vivendo aqui.

Exceto pelo fato de que Darby não estava nela.

Eu queria pigarrear, colocar as mãos nos bolsos, fazer algo para


chamar a atenção dela, mas não consegui. Eu fui um fantasma por
tanto tempo. Eu não conhecia outra maneira de ser.

— Ai! Deus. — Darby parou de andar e se inclinou para frente,


o cabelo acobreado caindo sobre o ombro enquanto ela tirava algo
pequeno e pontiagudo da sola do pé.

Nesse momento, outra rajada de vento soprou colina acima do


lago, pegando seu cabelo e fazendo-o voar em seu rosto. Enquanto
Darby cuspia e esfregava os fios, cada grama de euforia, de
esperança, eu me permiti sentir que fui instantaneamente
engolfado pelo fogo que queimava dentro de mim.

Porque ali, no dedo dela, estava um diamante do tamanho do


meu ódio pela humanidade.

Tudo o que eu queria desde os quatorze anos era ter Darby


Collins em meus braços novamente. Sentir sua cabeça em meu
ombro, seus lábios sorridentes em meu pescoço. Ela tinha sido
meu tudo. Meu mundo inteiro. Ela era a única pessoa no planeta
que não me tratou como merda. A única que eu poderia relaxar o
suficiente para falar. A única que eu confiei o suficiente para tocar.

O dia em que deixei Glenshire foi o dia em que desisti de vê-la


novamente - de ser visto novamente. Eu não tinha pensado que
nada poderia doer mais do que isso.

Eu estava errado.

Trançando o cabelo varrido pelo vento sobre um ombro e


segurando a ponta com a mão esquerda, a mão com aquela maldita
pedra presa a ela, Darby finalmente ergueu os olhos.

Mas eu não estava lá para ser visto.


Levantei minha cabeça ao som das folhas farfalhando na
floresta, um sorriso em meus lábios e o nome de Kellen em minha
língua, mas era apenas o vento. Ele uivou por entre as árvores
esqueléticas, espalhando folhas marrons quebradiças em meu
caminho...

E ao longo do lado da casa.

Nossa casinha.

Eu encontrei.

Ela se ergueu em um desafio orgulhoso à floresta que vinha


tentando recuperá-la por séculos. Como a corda e a escada,
parecia uma pedra de toque. Um portal de volta para outro tempo.
Outra vida. Parecia exatamente do jeito que eu lembrava, mas
menos divertida de alguma forma. Mais... deprimida.

Como um brinquedo que se tornou uma lápide.

Jogando o pedaço de pinha que acabei de tirar do meu pé no


chão, manquei mais perto do último lugar onde me senti
verdadeiramente feliz. Mas a cada passo que eu dava, ficava cada
vez mais claro que minha felicidade não tinha nada a ver com um
círculo de pedras em ruínas e tudo a ver com o garoto que eu
encontrei lá dentro.
— Kellen? — Eu gritei, minha voz trêmula e rouca, mas a única
resposta que recebi foi meu próprio eco ricocheteando nas árvores
nuas.

Eu sabia que ele não estaria lá, mas não foi até que enfiei a
cabeça pela porta que minha última brasa de esperança finalmente
explodiu.

O lugar estava tão abandonado quanto a cavidade dolorida em


meu peito. Lascas de luz invernal infiltravam-se onde a lona havia
rasgado ou dobrado. A mobília de galho de árvore de Kellen estava
esmagada em uma pilha perto da parede, macia pela podridão da
madeira e meio enterrada sob vários anos de folhas em
decomposição. E no fundo, empoleirado no toco de uma árvore
como se fosse um pedestal, estava o jogo de chá da minha avó, a
única coisa que ficou intacta. A água estagnada que transbordava
da borda de cada minúsculo copo de porcelana crepitava e estalava
com a chuva que começara a cair por uma abertura na lona acima.

A visão foi como um soco na minha alma já esgotada. Eu


tropecei para trás pela porta como se tivesse sido fisicamente
atingida, o choque da realidade forçando o ar de meus pulmões.

Ele realmente se foi.

A magia, a alegria, a cor - tudo isso simplesmente... se foi.

Dei outro passo para trás, soltando um grito assustado quando


meu pé quase escorregou debaixo de mim. Olhando para baixo, me
vi pisando em algo surpreendentemente sedoso e macio - uma
jaqueta de voo preta, percebi após uma inspeção mais detalhada -
e quando a peguei, ainda estava quente.
Meu coração disparou quando agarrei o material contra o peito,
minha cabeça girando loucamente da esquerda para a direita,
examinando a floresta em busca de qualquer sinal de vida.

Outra rajada de vento me salpicou com gotas de chuva gelada


e transformou minha trança em uma clava. Parecia agressivo,
aquele vento. Intencional. Olhei de volta para o lago, meio que
esperando vê-lo girando como uma espécie de redemoinho maléfico
em um portal para o inferno, mas o que encontrei me assustou
ainda mais. A superfície parecia estar fervendo.

— Ela não está muito feliz com você. — O aviso divertido da


mulher ecoou em meus ouvidos.

Não existe espírito do lago, disse a mim mesma. Provavelmente


está chovendo lá embaixo, mais forte do que aqui.

Levei um minuto para perceber que não só eu estava certa, mas


a parede de chuva também estava vindo direto para mim.

— Merda.

Joguei a jaqueta descartada sobre o ombro e subi a colina


mancando o mais rápido que meu pé recém-esfaqueado permitia,
mas a chuva caiu mais rápido. Em segundos, lençóis gelados de
água começaram a cair sobre mim sem piedade. Engoli em choque,
mas me forcei a continuar me movendo, o chão se tornando
escorregadio e instável sob meus pés. O trovão sacudiu a terra
enquanto eu me agarrava às raízes das árvores para me ajudar a
subir a parte mais íngreme da colina e, quando cheguei ao topo,
um galho caindo ricocheteou em uma árvore próxima, errando por
pouco minha cabeça. Eu mergulhei no chão na minha tentativa de
sair do caminho, caí em uma pequena saliência e deslizei até a
metade da colina, arranhando minhas duas pernas e quebrando
uma unha enquanto cravava minhas mãos na terra rochosa para
diminuir minha velocidade. O céu estava tão escuro quando
cheguei à beira da cerca do vovô que mal conseguia ver a casa em
meio ao aguaceiro. Mas eu sabia que estava lá. Tudo o que eu tinha
que fazer era me arrastar pelo pasto…

Assim que abri o portão enferrujado, pedaços de gelo do


tamanho de bolas de golfe começaram a cair do céu como se
estivessem sendo arremessados. Levantei a jaqueta sobre a cabeça
como um guarda-chuva encharcado enquanto mancava pelo
campo minado lamacento, com cuidado para evitar pisar nos
milhares de pedaços de gelo cintilantes que já haviam se espalhado
pelo pasto entre mim e meu destino final.

Pedras congeladas atingiram meus antebraços através do


tecido e bateram em minhas canelas quando ricochetearam na
grama. Quando levantei a cabeça e finalmente vi a porta dos
fundos, percebi horrorizada que as chaves da casa ainda estavam
na minha bolsa.

Que estava enfiada sob o assento do nosso carro alugado.

Que havíamos levado para a igreja.

Por favor, esteja aberta, por favor, esteja aberta, por favor, esteja
aberta …

A chuva de granizo bateu em meus tornozelos enquanto eu


mancava pelo pátio dos fundos, mas só tive que ficar ali por um
segundo antes que a maçaneta girasse misericordiosamente em
minha mão, me dando as boas-vindas à cozinha seca, escura e
silenciosa.
Bati a porta atrás de mim e deslizei para o chão, ofegante no
capacho de décadas. Tudo doía. Meus pés perfurados, minhas
coxas arranhadas, meus braços e pernas machucados, meus
dentes batendo. Mas todas essas dores empalideciam em
comparação com o buraco negro que me corroía de dentro para
fora.

Deslizando meus braços machucados nas mangas molhadas e


sedosas da jaqueta, fechei os olhos e inalei. Cheirava como um
homem. Não um homem que usava perfume caro e lavava as
roupas a seco, como John. Não um homem que fumava dois maços
de Marlboro Lights por dia e suava vodca pelos poros, como meu
pai. Mas um homem de verdade. Limpo. Masculino. Terroso.
Inebriante.

Eu sabia no fundo que não pertencia a Kellen, mas naquele


momento, precisava de um amigo mais do que precisava da
verdade.

Fechando o zíper da jaqueta até o queixo, puxei meus joelhos


para dentro e enterrei meu rosto na abertura do pescoço. E por
apenas alguns minutos, o mundo exterior desapareceu. Era só eu
e aquele cheiro e a fantasia de quem ele pertencia. Eu me permiti
imaginar que eram seus braços fortes em volta de mim, e não os
meus. Que ele estava me segurando. Confortando-me novamente.

Que eu não estava completamente sozinha.

Mas então uma porta de carro bateu do lado de fora, e a


realidade de como eu não estava sozinha desabou ao meu redor.

Meu coração começou a bater forte em meu peito momentos


antes de um punho começar a bater na porta lateral.
— Apresse-se, porra! — John gritou. — Está chovendo!

Eu pulei para os meus pés e acendi a luz do teto, quase


escorregando no chão de madeira que eu tinha pingado enquanto
disparava pela cozinha.

No segundo em que destranquei a maçaneta, a porta se abriu


e John passou por mim. — Porra, porque demorou tanto?

John estudou na Ivy League e se orgulhava de seu vocabulário


impressionante, cheio de palavras de dez dólares e obscuro jargão
jurídico. Ele raramente xingava, e sempre que eu escorregava e
xingava perto dele, ele nunca deixava de me lembrar que meu ‘lixo
branco’ estava aparecendo. Mas quando ele bebia, todas aquelas
palavras de classe baixa que ele tanto tentava reprimir saíam
voando como balas.

E elas geralmente eram direcionados a mim.

Deixando cair as chaves sobre a mesa, John ergueu os braços


pesados e fez uma careta para seu terno de grife encharcado. Sua
gravata estava completamente desfeita junto com o primeiro botão
de sua camisa encharcada. Seu cabelo, perfeitamente penteado
naquela manhã, agora estava grudado na testa, e eu tinha certeza
de que a água que pingava dele teria gosto de pomada cara se ele
pudesse sentir o gosto de alguma coisa depois de consumir tanto
álcool.

— Eu não posso acreditar que você fugiu de mim. — John


cambaleou enquanto lutava para tirar o paletó encharcado,
murmurando baixinho: — Vadia louca.
Estendi a mão para ajudá-lo, mas ele afastou minha mão como
uma criança petulante querendo fazer alguma coisa.

— Fui ao bar – junto com todo mundo nesta cidade atrasada,


menos você – e o barman me cortou. Você pode acreditar nessa
merda? Eu só tinha bebido, tipo, três copos. Quatro no máximo.
Então, quando tive a audácia de desafiá-lo sobre isso, o maldito
Mick me expulsou!

Finalmente se libertando de sua jaqueta, John a deixou cair na


mesa ao lado de suas chaves com um splat.

Atravessando a cozinha, ele pegou um pano de prato do balcão


e passou-o para frente e para trás sobre a cabeça molhada. —
Então, eu bati em uma porra de ovelha a caminho de casa. A idiota
estava parada bem no meio da estrada.

— Oh meu Deus, — eu engasguei. — Está tudo bem?

— Está tudo bem? — Ele repetiu em um tom zombeteiro,


agarrando o balcão para não cair enquanto tirava as pontas das
asas arruinadas. — Eu tenho um Amex Black Card, idiota. Eu
poderia jogar aquele pedaço de merda de um penhasco e estaria
coberto.

— Não o carro. As ovelhas.

Pela primeira vez desde que chegou em casa, John olhou para
mim. Realmente olhou para mim. E enquanto observava a
expressão em seu rosto se transformar de irritada em furiosa, eu
sabia que a pior noite da minha vida ainda não tinha acabado.

Estava apenas começando.

— Que porra você está vestindo?


Olhei para o comprimento do meu corpo e engoli.

— Ah, isso? — Dei de ombros, dando um passo para longe dele.


— Não sei. Encontrei-o na floresta. Ei, você quer que eu faça um
jantar para você? Você provavelmente está morrendo de fome.

— Sua pequena... porra... puta. — Ele fervia, firmando-se no


balcão enquanto recuperava a distância que eu havia colocado
entre nós.

— Sério, — forcei um sorriso, dando mais um passo para trás,


— estava só... no chão.

— Não minta para mim. É por isso que você fugiu esta noite,
não é? Para foder uma velha paixão?

As narinas de John se dilataram e seus olhos vidrados se


arregalaram de excitação. Eu conhecia aquele olhar muito bem.
Adorava lutar, dominar, vencer. Era o que o tornava um advogado
tão bem-sucedido, mas aprendi desde cedo a não reagir à sua
agressividade em casa. Eu balancei a cabeça e sorri, mudei de
assunto, rolei, fiquei mole. Ele se comportava como um gato com
um rato morto por um tempo - me repreendendo, tentando me
irritar - mas quando não funcionava, ele ficava entediado e me
deixava em paz.

Mas depois de tudo que passei naquele dia, estava tendo


dificuldade para lembrar como fazer isso. Como anular meus
instintos e fingir de morta. Como pensar quando eu estava tão
cheia de sentimentos. Como ficar dormente enquanto eu estava
com a pior dor da minha vida.
— Foi um longo dia, — eu disse, caminhando em direção à
porta que levava da cozinha para a sala de estar. — Então, se você
não está com fome, eu só vou...

John me agarrou pelo cotovelo e me puxou de volta para ele. —


Quem é ele? — Ele rugiu, seu hálito quente e cheirando a uísque
quando ele me empurrou novamente. Eu odiava aquele cheiro.
Cheirava como meu pai.

— Ninguém, — eu resmunguei, tentando soltar meu braço.

— Ninguém? — Ele rosnou, agarrando o material preto


brilhante e sacudindo meu corpo com força. — Você está usando
a porra da jaqueta dele!

— John, pare com isso, — eu gritei, novamente com muito


sentimento, e empurrei contra seu peito com toda a minha força.
— Apenas me deixe ir para a cama.

Ele me soltou sem avisar, e eu me debati enquanto meu corpo


era arremessado para trás. O chão ao nosso redor estava tão
molhado que eu não conseguia me equilibrar. Acertei a bancada
atrás de mim bem nas costas antes de cair no chão com força
suficiente para embaçar minha visão.

— Você disse, deixe-me ir. — A risada sem humor de John


trouxe meu juízo de volta em um instante.

Não tive tempo de analisar meus ferimentos porque de repente


ele estava na minha cara, envolvendo sua mão em volta do meu
queixo e batendo minha cabeça contra o armário contra o qual eu
estava caída.
— Tirei você da porra da sarjeta. — Sua saliva com cheiro de
uísque salpicou meu rosto. — E é assim que você me paga?
Abrindo as pernas para a porra de algum lavrador assim que teve
a chance?

Minha mente estava em branco. Frenética e vazia. Toda a


minha lógica, minhas duras lições de vida - elas simplesmente se
foram. Eu não conseguia lembrar o que fazer. O que dizer.

Eu apenas balancei a cabeça e dei desculpas irracionais, como:


— Nada aconteceu, eu juro. Eu me perdi - isso é tudo. Vamos
conversar sobre isso pela manhã, ok? Você acabou de beber
demais...

Wham! John bateu minha cabeça contra a porta do armário


novamente.

— Muito o que, Darby? Demais o que?

Fechei os olhos com força e prendi a respiração.

— Isso foi o que eu pensei. Você nem tem idade para beber.
Que porra você sabe? Nada. Além de como abrir a porra das
pernas.

Quando John não disse mais nada, abri um olho e observei seu
olhar varrer meu corpo, como o arrasto de garras invisíveis. Então,
ainda segurando meu queixo com uma das mãos, ele enfiou a mão
livre por baixo do meu vestido apertado e molhado. Eu
imediatamente pressionei minhas pernas juntas, causando uma
emoção predatória em seu rosto.
Soltando meu rosto, ele agarrou meus dois joelhos e, apesar da
minha resistência, meus apelos e minha cabeça balançando, ele
os separou com uma rápida explosão de força.

Um segundo. Foi o que bastou para meu corpo reagir – para o


grito sair de meus pulmões, para meu pé descalço chutá-lo no
peito – mas eu senti como se estivesse vendo isso acontecer em
câmera lenta, como se fosse um copo de leite sendo derrubado,
fora de alcance. Eu teria parado se pudesse. Mas quando percebi
o que estava acontecendo, já era tarde demais.

Eu já tinha cometido o maior erro da minha vida.

John pegou meu tornozelo, e seus olhos avermelhados


brilharam com uma fome selvagem e frenética.

O rato ainda estava vivo, e agora ele sabia disso.

Enganchando seus cotovelos em volta das minhas coxas, John


puxou meu corpo inteiro para frente. Minhas costas deslizaram
pelo armário e caíram no chão enquanto ele arrastava minha
bunda para seu colo. Inclinando-se para a frente, John prendeu
minhas coxas no meu peito com a parte superior do corpo
enquanto se atrapalhava para desafivelar o cinto com os braços
em volta das minhas pernas.

— O que você está fazendo? — Eu gritei, tentando me


desvencilhar, para empurrá-lo, mas não tive força de minha
posição no chão. — John, pare com isso!

— Você gosta de abrir as pernas, vadia? — Ele grunhiu, o som


de um zíper fazendo com que a bile subisse em minha garganta.
— Saia! — Eu o empurrei novamente. Quando ele não se
mexeu, estendi a mão e agarrei seu rosto, afundando minhas
unhas em suas bochechas barbeadas e arrastando-as para frente.

John recuou sobre os calcanhares enquanto suas mãos


voavam para o rosto com um grunhido. — Sua puta de merda!

Eu agarrei a oportunidade. Virando, eu me arrastei em direção


à porta dos fundos, mas antes que eu pudesse chegar lá, duas
mãos envolveram meus quadris e me deslizaram para trás no chão.
Em um instante, o braço de John estava em volta da minha
cintura, apertando-me com tanta força que mal conseguia
respirar, e seu pau totalmente ereto estava pressionado contra a
parte inferior das minhas costas.

Eu gritei e empurrei meus cotovelos para trás em suas costelas,


mas John soltou minha cintura e agarrou os dois, torcendo meus
braços atrás das costas até minha coluna arquear e eu gritar de
dor.

— Foda-se, eu adoro quando você luta comigo, — ele ofegou


contra a minha orelha enquanto segurava meus braços
emaranhados com uma mão e empurrava meu vestido sobre
minha bunda com a outra. — Deixa-me tão duro.

John empurrou minha calcinha para o lado e pressionou seu


pau contra mim novamente, desta vez sondando, buscando
entrada. Um rosnado estrangulado e em pânico escapou dos meus
pulmões. Eu lutei e me debati, joguei minha cabeça para trás, mas
não consegui me conectar com nada vital. John riu da minha
tentativa frustrada de dar uma cabeçada nele, mas quando
consegui plantar um pé no chão embaixo de mim e empurrei para
trás com força suficiente para derrubá-lo, o riso parou.

A próxima coisa que eu sei, uma mão estava na parte de trás


da minha cabeça, empurrando-a para baixo em direção ao piso de
madeira. Uma dor branca ofuscante explodiu atrás do meu olho
direito e, por um momento, o mundo simplesmente... desapareceu.
As mãos em mim, os gritos, o medo, o cheiro de álcool, o gosto de
ácido estomacal. A única coisa que restava era a minha dor - um
latejar agudo e forte que irradiava pela minha bochecha; uma
pontada de dor no meio das minhas costas; e a dor surda e
profunda da vergonha. Lembro-me de pensar como era injusto eu
ainda ter que sentir tanto enquanto estava inconsciente, e foi aí
que me dei conta. Eu estava acordada.

O mundo não havia desaparecido.

John tinha.

Meus instintos me diziam para não me mexer.

Rato morto, pensei. Você é um rato morto assim. Talvez ele tenha
ficado entediado e ido embora.

Ou talvez ele esteja apenas esperando você acordar.

Minha jugular batia contra a madeira enquanto eu tentava


manter meus olhos fechados e respirar uniformemente. Usando
meus outros sentidos, procurei por qualquer sinal de que ele ainda
pudesse estar na sala. Eu não podia senti-lo pressionado contra
minhas costas. Ou sentir o hálito dele perto do meu rosto. E, por
um momento, também não pensei que pudesse ouvi-lo.

Até que eu fiz.


Era um som suave, gutural e borbulhante. Como nada que eu
já tinha ouvido antes. Eu nem tinha certeza se estava vindo dele
até que senti seu joelho mexer contra o interior da minha
panturrilha. Engolindo meu medo, abri meus olhos, apenas um
pouco, e espiei por cima do meu ombro para o homem ajoelhado
atrás de mim. A primeira coisa que notei foi que seu rosto estava
com a cor errada. Era de um roxo avermelhado profundo, e seus
olhos estavam quase saltando das órbitas. Suas mãos agarraram
e rasgaram algo ao redor de seu pescoço, e quando virei minha
cabeça um centímetro a mais para dar uma olhada melhor,
descobri o que era.

A gravata encharcada de chuva de John estava enrolada em


seu pescoço pelo menos duas vezes, e as pontas estavam enroladas
nos punhos de um homem parado atrás dele.

Com um suspiro assustado, meu olhar disparou para o rosto


do agressor de John e, pela segunda vez em menos de um minuto,
senti como se o tempo tivesse parado.

Não, parecia que tinha ido para trás. Porque olhando para mim
havia duas poças prateadas de luar que eu não olhava desde os
doze anos de idade. Eu vi uma vida inteira girando naquelas
profundezas - risos e chás, amoras e feitiços, camisetas
manchadas de sangue e bochechas manchadas de lágrimas,
olhares roubados e beijos doces e suaves. Mas foi aí que a saudade
acabou porque o resto dele estava irreconhecível. Suas feições
eram esculpidas, poderosas e cobertas por uma sombra de barba
por fazer escura que desaparecia em uma cabeça cheia de cabelo
preto repicado. Seu maxilar duro estava cerrado, suas narinas
dilatadas a cada respiração silenciosa, e as veias em seu pescoço,
têmpora e bíceps inchavam devido ao esforço.

Esforço porque ele estava estrangulando meu noivo.

Mil palavras passaram pela minha mente e engasgaram na


minha garganta enquanto o tempo galopava de volta à velocidade
máxima, mas a única que consegui dizer foi: — Kellen. — Ela saiu
de meus lábios como um suspiro de alívio ao invés de um pedido
de misericórdia, e no momento em que ele ouviu, os olhos de Kellen
se fecharam, como se ele estivesse com dor.

Com um som baixo e gutural, ele se levantou em toda a sua


altura, bíceps protuberantes enquanto levantava John do chão por
sua própria gravata até que seus joelhos não tocassem mais o
chão.

Eu gritei e tentei me sentar, mais palavras como Não! Para!


Não! Você está matando ele! na ponta da minha língua, mas
quando o corpo agitado e agitado de John se ergueu acima de mim,
todos aqueles protestos não ditos se transformaram em ácido na
minha garganta. Porque o pau de John estava agora diretamente
na minha linha de visão.

E ainda era difícil.

Ele se projetava sobre mim como a lâmina de uma guilhotina,


e toda a impotência e o pânico que senti momentos antes voltaram
com força total. Eu não conseguia falar. Não conseguia respirar.
Não podia fazer nada além de olhar para Kellen e implorar
silenciosamente para que ele não o soltasse. E ele não o fez. Ele
sustentou meu olhar enquanto seus músculos tremiam e o suor
escorria em sua testa, enquanto ele arrancava a vida do homem
com quem prometi passar o resto da minha.

Enquanto eu assistia todo o meu futuro ficar mole em seus


braços.
Que aqueles que nos amam, nos amem,

E aqueles que não nos amam, que Deus transforme seus corações,

E se ele não virar seus corações, que ele vire seus tornozelos, para que
possamos reconhecê-los por seu mancar.

Não sei quanto tempo fiquei sentada no chão da cozinha,


olhando vagamente para o provérbio emoldurado na parede à
minha frente antes que os símbolos e as letras finalmente
começassem a fazer sentido.

Vovô me disse uma vez que era uma bênção tradicional


irlandesa, mas ele mentiu.

Não foi uma benção.

Foi uma maldição.

E eu manquei para provar isso.

Kellen esteve em constante movimento desde... o que


aconteceu... enquanto eu apenas sentei e olhei fixamente para a
parede. Eu nem sabia o que ele estava fazendo, mas naquele
momento em particular, Kellen estava do outro lado da cozinha,
de costas para mim, tirando algo do freezer.
Vivo e bem.

Ele era um adolescente alto e desengonçado da última vez que


o vi, mas não havia nada de desengonçado no pilar de músculos
que se erguia diante de mim agora. Ele me lembrou um soldado
com a cabeça raspada, corpo esculpido, camiseta preta justa e
jeans e botas de combate bem gastas. Isso e a maneira como ele
parecia saber exatamente como... fazer o que acabara de fazer.

Ele deve ter entrado para o exército depois que o padre Henry
morreu.

Fazia todo o sentido. Kellen precisaria de um lugar para ir, algo


a ver com toda aquela raiva reprimida. E eles não esperariam que
ele falasse a menos que alguém falasse diretamente com ele.

Meu coração se encheu de admiração pelo homem que Kellen


se tornou apesar de suas circunstâncias. Então, despencou em um
tanque de ácido estomacal quando percebi o que isso poderia
significar para o futuro dele. Kellen passou toda a sua infância em
um inferno. Se alguém descobrisse o que ele tinha acabado de
fazer, ele também passaria o resto de sua vida adulta lá.

— Kellen, você tem que ir, — eu deixei escapar. — Você tem que
sair daqui. Agora mesmo. Vou chamar a polícia assim que você
sair. Direi a eles que fiz isso, que foi em legítima defesa.

Kellen fechou a porta do freezer e se virou. Prendi a respiração,


esperando que ele olhasse para mim novamente, precisando sentir
o peso de seu olhar. Mas, em vez disso, seus olhos estavam baixos
enquanto ele dobrava um punhado de gelo em um pano de prato.
Passando por cima do corpo de John - que ele graciosamente
cobriu com seu paletó - Kellen se ajoelhou ao meu lado e colocou
a bolsa de gelo caseira na minha bochecha. Eu esperava que
sentisse frio, mas tudo que pude registrar foi um calor formigante
florescendo em minhas bochechas por causa de seu gesto
inesperadamente gentil. Eu não conseguia ver seu rosto através da
bolsa de gelo, então virei minha cabeça enquanto estendi a mão
para pegá-la dele. Minha mão cobriu a dele e, por um momento,
senti algo que pensei ter morrido junto com ele.

Magia de fada.

Deslizando a mão debaixo da minha, Kellen descansou o


antebraço no joelho e me prendeu com um olhar que não gostei.
Esse visual não estava fundamentado. Esse visual estava nivelado.

— Você não acha que eles acreditariam em mim.

Kellen balançou a cabeça de um lado para o outro. Devagar.


Desculpa.

Claro que não. Ninguém acreditaria que eu mesma estrangulei


um homem adulto.

— Porra. — O palavrão foi quase inaudível, mas no momento


em que o disse, me irritei de medo. Meus olhos dispararam ao
redor da sala antes que eu percebesse, com uma mistura
nauseante de pavor e euforia, que eu não precisava mais sussurrar
aquela palavra baixinho.

Ou qualquer outra palavra, nunca mais.


— Eu tenho de fazer alguma coisa. — Meu olhar pousou, sem
foco, em uma pegada lamacenta no chão do outro lado da sala. —
Eu não posso deixar você levar a culpa por isso.

— Eu não vou.

Três palavras. Suave, profundo e claro. Eu as deixei vibrar por


todo o meu corpo antes de olhar de volta para o homem que as
havia falado. Eu provavelmente poderia contar nos dedos das
mãos e pés o número de palavras que Kellen disse para mim desde
que nos conhecemos. Elas pareciam coisas tangíveis e finitas -
símbolos suaves e redondas de sua confiança que eu poderia
colocar no bolso e levar para casa para adicionar à minha coleção
mais querida.

O olhar de Kellen era firme. Sua respiração profunda e regular.


Mas uma raiva quente e fervente rodou em torno de seu corpo
maciço como vapor.

— O que posso fazer? — Eu sussurrei.

Sem hesitar, Kellen respondeu: — Encontre corda.

Dez minutos depois, eu estava usando a lanterna do meu


celular para iluminar o caminho de Kellen enquanto ele carregava
um advogado corporativo de setenta e dois quilos sobre o ombro
para a floresta.

Eu nunca tinha experimentado a escuridão como esta. Não


havia iluminação pública em Glenshire. Não há shoppings ou
iluminação ambiente de qualquer tipo, então à noite,
especialmente na floresta, você não pode ver um centímetro à
frente de seu próprio rosto.
Mas você praticamente podia ouvir seu próprio coração
batendo. A chuva havia parado completamente e todos os insetos,
pássaros, sapos que costumavam encher o ar de verão com suas
amabilidades ficaram em silêncio durante o inverno. Isso fez com
que cada quebra de folha e estalo de galho soasse como um canhão
explodindo no silêncio.

Eu estava prestes a perguntar se tínhamos ido longe demais -


parecia que estávamos caminhando há uma eternidade - quando
algo pontiagudo se cravou em meu joelho. Eu assobiei e apontei a
luz para minha perna, que agora estava parcialmente submersa
em um arbusto de amora particularmente espinhoso. Pelo menos
eu tive a presença de espírito de colocar um par de galochas antes
de sairmos.

Ao extrair minha perna do arbusto, percebi que podia ver os


outros arbustos além dele, mesmo sem a lanterna. Suas bordas
pontiagudas e retorcidas foram contornadas com a prata mais
sutil e, quando levantei a cabeça para olhar ainda mais longe, vi
um mar delas. O lago parecia cromo líquido, parado como a morte
e iluminado por uma lua cheia branca tão pesada e baixa que eu
senti como se pudesse estender a mão e traçar suas crateras com
o dedo.

Quanto tempo se passou desde que eu vi aquele mesmo corpo


de água sendo atingido pela chuva, toda a sua superfície agitada e
furiosa? Uma hora? Duas? E agora, era tão sereno quanto uma
pintura de natureza morta.

Kellen caminhou ao redor da nossa árvore - o grande carvalho


com o balanço de corda - passou por cima da escada caída como
se soubesse que estava lá, e largou John na margem lamacenta do
lago com um grunhido. Então, tirando o próprio telefone do bolso,
acendeu a lanterna e iluminou a floresta até encontrar o que
procurava. Eu podia ouvir seus passos enquanto ele desaparecia
no mato. Ele não estava longe, mas estava longe o suficiente para
que eu sentisse a necessidade de me esconder atrás de nossa
árvore até que ele voltasse. Como se John pudesse pular de
repente e tentar terminar o que havia começado na casa.

Kellen tinha tirado sua cueca boxer antes de sairmos, e sua


pele de alabastro parecia brilhar no escuro. Olhando para John
deitado ali, os membros flácidos, o corpo sem vida, senti meu medo
começar a diminuir. Mas os sentimentos que pensei que surgiriam
para substituí-lo - tristeza, pânico, culpa, remorso - nunca vieram.
Em vez disso, tudo o que senti foi o alívio quando Kellen finalmente
voltou, rolando uma pedra do tamanho de um Buick colina abaixo.

Depois de tirar as botas e meias e levantar as pernas da calça,


Kellen arrastou o corpo de John para o lago até que ele
submergisse de costas na parte rasa. Então, ele abriu as pernas
de John, rolou a enorme rocha entre eles, agarrou-o pelos braços
e ergueu sua metade superior até que ela caísse sobre a pedra. Era
como se ele tivesse feito isso mil vezes. Kellen usou a corda que
encontrei no celeiro do vovô para amarrar seus braços e pernas ao
redor da pedra. Então, ele voltou para a praia e começou a tirar o
resto de suas roupas.

Todas elas.

O luar beijou cada músculo inchado que ondulava por seu


torso enquanto ele tirava a camisa pela cabeça. Sombras se
acumularam no vale entre suas omoplatas largas enquanto ele se
inclinava para tirar a calça jeans. E quando sua cueca boxer
seguiu, quando ele ficou nu e perfeito ao luar, não com a intenção
de me foder, mas de me libertar, uma represa dentro de mim
quebrou. Um maremoto de emoção tomou conta de mim,
preenchendo cada canto entorpecido, cada compartimento
cuidadosamente construído para abrigar minha vergonha,
inundando o abismo do nada que eu acreditava merecer.

Enquanto eu o observava carregar o peso do meu passado na


água gelada, um desejo mais poderoso do que qualquer coisa que
eu já experimentei me obrigou a seguir. Exigiu. Abri o zíper da
jaqueta que havia colocado tudo em movimento e a joguei no chão,
seguida pelo resto das minhas roupas. Eu podia ver minha
respiração quando tirei minhas botas de chuva - as que eu comprei
anos antes porque me lembravam dele - mas o ar úmido do inverno
não conseguia me tocar. Caminhei sem mancar até a beira da
água, a dor de meus ferimentos reduzida a sussurros pelo canto
da sereia do lago. E quando pisei em seus braços...

Ela me agarrou e me puxou para baixo.

Demorou menos de um segundo para a escuridão gelada me


engolir inteira. O frio era insuportável. Parecia ser queimada viva.
Minha pele gritou e meus músculos se contraíram, mas forcei
meus membros a continuarem em movimento. Eles se debatiam
em jorros espasmódicos e trêmulos, mas não fizeram nada para
retardar minha descida no lago.

Eu não conseguia sentir o que estava me puxando para baixo,


mas eu sabia em meus ossos doloridos que este era o meu castigo.
Eu tinha sido tão estúpida em pensar que algum dia poderia ser
livre. Eu havia dito a John que passaria a eternidade com ele, e
agora o faria - no fundo de Glenshire Lough.

Mas eu não estava pronta. Eu queria mais tempo. Eu queria


ele. Eu queria sentir sua magia de fada na minha pele novamente.
Eu queria ser olhada em vez de vista. Eu queria ser segurada em
vez de pressionada. Eu sabia que não merecia essas coisas, mas
pela primeira vez na minha vida, eu estava disposta a lutar por
elas de qualquer maneira.

Quando meus pulmões começaram a queimar, a parte de trás


das minhas pálpebras fechadas se iluminaram.

Não!

Meus olhos se abriram, esperando ver um túnel de luz no qual


eu não estava pronta para entrar, mas ao invés disso, me vi
cercada por um brilho azul ambiente. Ergueu-se debaixo de mim,
surgindo e recuando, pulsando como um batimento cardíaco.
Parecia antigo, poderoso, vivo.

Quando meus pés pousaram no fundo liso e rochoso do lago, o


brilho azul se iluminou, iluminando um tesouro de moedas, joias,
arte e talheres espalhados em todas as direções.

— Saoirse não concedeu essa bênção a ninguém em séculos, e


agora você volta aqui com o anel de outro homem em seu dedo? —
A ameaça cacarejante da velha ecoou e gorjeou ao meu redor como
se estivesse sendo tocada por um alto-falante subaquático.
Algumas palavras eram mais altas que outras. Algumas eram
abafadas e quase inaudíveis.
Mas a mensagem que recebi foi alta e clara.

— Sua ira será grande!

Eu estava sendo punida, mas não por matar John.

Meu crime foi concordar em me casar com ele em primeiro


lugar.

Tremores violentos e incontroláveis atormentavam minhas


extremidades enquanto eu lutava em vão para empurrar do fundo,
mas era como se meus pés tivessem virado para liderar.

Eu não estava ficando louca. Os colapsos mentais não tinham


o poder de arrastá-la para o fundo de um lago e afogá-la contra
sua vontade. Isso estava realmente acontecendo.

Eu estava realmente prestes a morrer.

Meus pulmões gritavam por ar enquanto o pânico tomava conta


de minha mente, mentindo para mim, me implorando para
respirar. Mas pouco antes de sucumbir ao desejo agonizante, o
brilho azul zumbiu novamente, desta vez com o som da voz do meu
avô. Vibrou em cada sílaba doce, penetrou em meu pânico.

— Diz a lenda, este lago tem um espírito nele. … Pode ser cruel
como uma cobra se você contrariá-la, mas ouvi dizer que ela gosta
de presentes.

Presentes!

Olhei de novo para a brilhante coleção de presentes de Saoirse.


Bugigangas. Ouro e prata.

Vovô tinha razão. Sobre tudo.


Eu só esperava que não fosse tarde demais para começar a
ouvir.

Eu apertei minha mandíbula fechada, lutando com meu corpo


para anular suas funções mais básicas enquanto eu arrancava o
enorme diamante do meu dedo e o segurava na minha frente com
as mãos trêmulas.

A morte permanecia nas sombras - eu podia senti-la pairando


logo além da luz azul - enquanto um cardume de bolhas rodopiava
do meu ombro até o meu pulso. Elas me fizeram cócegas e me
provocaram, circulando minha mão até que a necessidade
desesperada de inalar tornou-se quase insuportável, mas eu cerrei
os dentes e segurei. Tudo que eu sempre quis estava do outro lado
daquela respiração.

E quando o anel sumiu de meus dedos e o lago escureceu, eu


sabia que ela ia me deixar ficar com ele.
Eu conhecia muitas maneiras de me livrar de um corpo, mas
depois do que diabos eu tinha acabado de ver e ouvir, eu precisava
do frio do lago para me acalmar. Eu estava tão enfurecido, tão
consumido pelas chamas dentro de mim que não sabia quanto
tempo mais conseguiria manter o controle. Eu queria destruir
muito mais. Eu queria matá-lo uma e outra vez. Eu queria quebrar
cada dedo que ousasse tocá-la, pulverizar cada junta com um
martelo enquanto ele gritava. Eu queria arrancar os braços de seu
corpo por segurá-la. E o olhar em seu rosto quando ela viu seu
pênis – o terror – foda-se. Ele teve sorte de ela estar lá, ou eu teria
feito alguma merda realmente doentia para acabar com ele.

Eu só matei de raiva duas vezes na minha vida, e ambas as


vezes, foi na porra de Glenshire.

A cada passo que eu dava no lago gelado, mais calmo eu me


sentia. O melhor que eu poderia pensar. Mais fácil era convencer
meu corpo de que estava acabado. Que Darby estava segura.

E que o porco estuprador inchado que eu estava carregando


nunca iria tocá-la novamente.

Quando cheguei ao ponto no centro do lago onde o solo rochoso


desaparecia sob meus pés, respirei fundo e soltei o Capitão
América no vazio. Ele desapareceu sob a superfície sem nem um
respingo.

Mas eu ouvi um de qualquer maneira, vindo de algum lugar


atrás de mim.

Girando, encontrei a fonte. Ondulações irradiavam de um


ponto na superfície da água a apenas alguns metros da costa.
Achei que talvez Darby tivesse jogado uma pedra, mas ela não
estava em lugar nenhum.

Eu queria chamar o nome dela, mas já podia sentir minha


garganta começando a fechar de medo. A floresta estava silenciosa.
Meus olhos dispararam por toda parte. O balanço da corda não
estava balançando. Não havia feixe de lanterna à vista…

Mas havia algo brilhante e amarelo no chão perto da árvore.

Suas malditas botas.

— Darby! — Eu gritei, forçando a palavra através das correntes


apertando minha garganta. — Darrrbyyyy!

Quando ela não respondeu, imediatamente mergulhei abaixo


da superfície, roçando o fundo do lago com minhas mãos,
alcançando, sentindo, frenético, louco pra caralho.

Explodi acima da superfície com um grito estrangulado e


irregular, meus olhos disparando em todas as direções, tentando
lembrar onde já havia procurado.

E foi então que as vi.

Bolhas. Bem no centro do lago.


Mergulhando de volta, bombeei meus braços e pernas o mais
forte que pude, empurrando-me direto para o escuro. Três, quatro,
seis metros de profundidade. Meus ouvidos estalaram e minha
cabeça parecia que ia implodir, mas eu a senti. Essa era a única
maneira de descrevê-la. Era como se eu pudesse vê-la no escuro.
Eu a senti chegar para mim. Senti seu alívio. E quando estendi
meus braços e a alcancei também, ela estava lá.

Ela estava realmente lá.

Empurrando o fundo, atirei-nos à superfície em segundos. No


momento em que nossas cabeças surgiram na água, o suspiro
desesperado de Darby por ar foi o som mais doce que eu já ouvi.
Agarrei-a ao meu corpo enquanto nadava de lado em direção à
costa, provavelmente apertando-a com força o suficiente para
quebrar uma costela, mas não me importei. Eu não estava
deixando nada levá-la de mim novamente. Nem o próprio Deus.

Uma vez que estávamos em um lugar onde ela podia tocar o


fundo, eu a coloquei de pé para deixá-la recuperar o fôlego, mas
eu não estava deixando ir. Eu segurei seu corpo nu trêmulo,
tossindo contra o meu, e por um segundo, eu tinha quatorze anos
novamente, segurando minha garota no meio de Glenshire Lough.
Era como se os últimos oito anos - inferno, os últimos oito minutos
- nunca tivessem acontecido, e eu estava começando de novo do
que tinha sido o melhor dia da minha vida. De volta antes que eu
explodisse. Antes de me tornar o monstro sobre o qual o padre
Henry havia alertado a todos. Antes de vender minha alma para a
Irmandade por um teto sobre minha cabeça e algo para comer.
Tomado pela necessidade de reviver aquele momento, baixei
meu olhar para a bela boca de Darby. Mas os lábios rosa pálido
que eu esperava encontrar agora eram de um roxo profundo e
escuro. Seus dentes batiam baixinho atrás deles, apesar de sua
mandíbula cerrada, e seus calafrios eram agora tremores corporais
completos.

Foda-se.

Levantando-a do chão, eu embalei seu corpo trêmulo contra


meu peito enquanto ia o resto do caminho até a areia.

Eu queria perguntar a ela o que diabos ela estava pensando,


pulando no lago no meio do inverno, mas eu tinha meus próprios
motivos para fazer a mesma coisa, não tinha? Nenhum dos quais
eu senti vontade de falar.

Encontrei minha voz no dia em que deixei o fogo dentro de mim


assumir. O dia em que queimei a casa do padre Henry com seu
cadáver mutilado dentro. A partir daquele momento, jurei que
nunca mais temeria outra pessoa enquanto vivesse. Falei quando
necessário. Mantive as chamas do ódio atiçadas em minha barriga,
quentes o suficiente para queimar os bloqueios que sofri quando
criança. Mas aprendi muito rapidamente que as palavras eram um
risco em meu novo mundo. Elas só serviram para enfraquecê-lo.
Humanizar você. Ficar quieto fazia os filhos da puta me temerem.
Isso me tornou intocável. E depois do tempo que passei com o
padre Henry, ser intocável era a porra do meu único objetivo na
vida.

Até agora.
Deixando Darby no chão ao lado de sua pilha de roupas, senti
uma pontada de perda quando virei as costas para lhe dar um
pouco de privacidade.

— Vista-se, — eu disse, caminhando até minha própria pilha


de roupas. — Precisamos aquecê-la.

— O - qu- por que você não está congelando também? — Darby


perguntou sobre o som de zíperes e farfalhar de tecido atrás de
mim. — Tem literalmente ss-vapor saindo de você.

Porque estou com um pé no inferno, pensei, fechando o zíper da


minha calça jeans. Mantém-me bem e quente.

Coloquei minha camisa de volta e calcei minhas botas


desamarradas. — Você está decente?

— Sim-sim.

Eu me virei e não pude deixar de sorrir ao ver Darby tentando


fechar o zíper da minha maldita jaqueta. Quando eu a vi na
cozinha, isso só alimentou minha raiva possessiva. Ver isso nela
depois do fato teve um efeito muito diferente.

— Venha cá, — eu disse, caminhando para ajudar.

Suas mãos tremiam tanto que ela não conseguia abrir o zíper.
Parei bem na frente dela e senti seus olhos em meu rosto enquanto
pegava a aba de metal de seus dedos congelados e a deslizava até
seu queixo.

— KKK-Kellen?

Pela maneira como os dentes de Darby batiam, aquela única


palavra soou como tiros de metralhadora, o que foi apropriado
porque me rasgou como uma bala.
— E-você tem as três sardas no seu dedo anelar esquerdo?

Juntando as sobrancelhas, olhei para a minha mão esquerda.


Então, eu o levantei, revelando a resposta para sua pergunta – três
sardas, cortadas em meu dedo, logo acima da junta final. Eu
nunca pensei duas vezes sobre elas - quando seu corpo tinha
tantas cicatrizes quanto o meu, algumas sardas não causavam
muita impressão - mas Darby olhou para elas como se fossem a
coisa mais magnífica que ela já tinha visto.

Seus olhos se encheram de lágrimas e seus trêmulos lábios


roxos se abriram em um sorriso ofuscante.

Pouco antes de colidirem com o meu.

Eu tinha beijado outras garotas, mulheres, desde aquele dia no


lago, mas nunca terminava bem. Eu não podia tolerar o toque
delas por mais do que alguns segundos antes que os flashbacks
começassem. O coração palpitante. A sensação de sufocamento.
As chamas me devorando vivo. Eu acabaria empurrando a pobre
moça para longe e saindo furioso, frustrado e malditamente bravo
por não poder foder como as pessoas normais. Que ele tinha tirado
isso de mim também.

Então, quando a boca de Darby selou sobre a minha, prendi a


respiração, esperando que o pânico surgisse, mas isso não
aconteceu.

Quando ela ficou na ponta dos pés e colocou as mãos geladas


em meu rosto, não recuei com seu toque.
E quando ela abriu os lábios, minha língua deslizou para
dentro como se pertencesse ali. Como se sentisse falta de sua
língua tanto quanto eu dela.

Levantando minha mão - aquela com as sardas que, por algum


motivo desconhecido, ela parecia amar - eu a envolvi em volta de
sua cabeça e aprofundei o beijo.

E foi incrível. Meu peito inchou. Meu sangue fervia. Não houve
inundação de medo, nenhum pavor avassalador, apenas pura
euforia.

Até que todo o corpo de Darby estremeceu violentamente em


meus braços.

Quebrando nosso beijo, eu olhei em seus olhos semicerrados e


tentei guardar aquele olhar na memória. Porque se eu não a
colocasse em um banho quente logo, poderia ser a última vez que
a veria.
Que você esteja no céu meia hora antes que o Diabo saiba que você está
morto.

Era o que dizia a placa na parede do quarto de hóspedes do avô


de Darby, e não consegui tirar a frase da cabeça. Enquanto Darby
estava de molho na banheira - eu disse a ela para não sair até que
ela pudesse sentir todos os dedos das mãos e dos pés novamente
- eu dei a volta e empacotei tudo o que pertencia a ela e aquele
estuprador pedaço de merda. Demorou apenas cerca de dez
minutos. Cinco para fazer as malas e cinco para olhar aquela
maldita placa.

Darby foi minha meia hora no céu.

Eu nunca tive mais do que alguns momentos felizes com ela


antes que ela desaparecesse novamente, deixando-me preso nas
entranhas do inferno por meses, anos. Ela estava em Glenshire há
apenas algumas horas, e eu quase a perdi. Desta vez para sempre.

Porque eu não pertencia ao céu e certamente não pertencia a


ela. Darby era um anjo em carne e osso, e se os rumores fossem
verdadeiros, eu era a cria do próprio Satã.

Mas eu não dei uma única merda solitária.


Se o Diabo quisesse me arrastar de volta para o inferno agora,
ele precisaria de uma porra de um saco para cadáveres.

Enquanto eu limpava as pegadas enlameadas do chão,


colocava a cozinha em ordem e apagava qualquer vestígio de minha
presença, elaborei um plano.

Eu ainda tinha um trabalho a fazer para a Irmandade naquela


noite - um simples lançamento de arma em Cork. Nós
abandonaríamos o carro alugado de Darby ao sair da cidade,
levaríamos o queimador para Cork Harbor, venderíamos as armas
e usaríamos o dinheiro para desaparecer. Comprar novas
identidades. Deixar o país. Talvez pudéssemos sair antes que
Darby fosse dada como desaparecido.

Um último trabalho - o mais fácil que tive em anos - e estaria


livre.

Não sabia o que diria a Darby sobre meu passado ou do que


estava fugindo, mas descobriria algo. Eu preciso. Perdê-la
novamente não era uma opção.

Infelizmente, não teria como contar nenhuma das duas opções.

Depois de carregar Darby em seu Ford Fiesta prata - junto com


tudo que ela e aquele filho da puta trouxeram - dirigi pela estrada
até o local onde estacionei o queimador. Só que, em vez de ver um
sedã preto com placas falsas esperando por mim na beira da
estrada, vi uma árvore caída no meio da rua, esmagando o capô
do meu carro.

Foda-se.
Eu já estava atrasado para a entrega. Não teria tempo de
esconder o carro alugado e roubar algo novo. Nem pensei que
Darby ficaria muito animada em se tornar um cúmplice de
assassinato e roubo de carro na mesma noite.

Íamos ter que pegar a porra do Fiesta.

Galhos e escombros da tempestade estalaram sob os pneus


quando parei na frente da árvore caída.

— Oh meu Deus, — Darby engasgou. — Esse é... o seu carro?

Saltando do banco do motorista, corri até o pedaço de aço e


plástico que a Irmandade me forneceu especificamente para este
trabalho.

O para-brisa foi arrebentado, assim como o teto, mas consegui


entrar por uma das portas traseiras. O carro estava limpo, sem
digitais, sem itens pessoais, além do que eu deixei escondido no
porta-luvas. Usando os nós dos dedos para destravar o
compartimento, alcancei e peguei uma Beretta M9 totalmente
carregada.

Enfiei-a atrás da cintura e fui pegar a única outra coisa que


havia sobrado naquela lata amassada que parecia um carro.

Levantando o porta-malas, dei um suspiro de alívio enquanto


olhava para o meu bilhete para a liberdade.

Uma grande bolsa preta sem identificação contendo uma dúzia


de AR-15s totalmente automáticos de fabricação americana. Elas
tinham um valor de rua de vinte e cinco mil euros, o que dava para
comprar duas identidades falsas e alguns voos para qualquer lugar
que Darby quisesse ir.
A Irmandade Irlandesa Unida tinha sido chamada de muitas
coisas ao longo dos anos - um partido político, uma milícia, uma
organização terrorista, uma revolução - e talvez essas coisas
fossem verdade antes de The Troubles. Mas agora eles eram como
qualquer outra família do crime organizado. Corrompido.
Obcecado pelo poder. Envenenado pela sede de sangue. Eles
alegaram que seu objetivo era libertar a Irlanda do Norte da tirania
do domínio britânico e reunir o povo irlandês sob uma bandeira
soberana. Os anciãos nos escalões superiores até se recusaram a
falar inglês. Eles insistiram que nunca estaríamos
verdadeiramente livres da praga da colonização até que nossa
língua e cultura gaélicas fossem restauradas. Era uma causa
nobre - em teoria. Uma que soava bem no papel ou para um garoto
sem-teto de dezessete anos que acabara de ser pego furtando
carteiras na estação de trem de Dublin.

Foi o próprio Séamus, intendente da UIB, quem me pegou


naquele dia. Em vez de me entregar, ele me levou ao quartel-
general da Irmandade e me apresentou a seus soldados. Uma
equipe de párias, como eu, que fazia seu trabalho sujo -
hackeavam computadores, grampeavam telefones, faziam bombas,
quebravam rótulas, qualquer coisa para ajudar a financiar e
proteger a Irmandade. Especialmente tráfico de arma. Esse era o
pão com manteiga deles, e os negócios iam bem. Mas Séamus não
me iniciou como soldado. Ele disse que me queria por segurança.

Eu não era o maior rapaz lá. Eu ainda estava crescendo e


gravemente desnutrido, mas Séamus viu algo em mim. O que eu
fiz. O que eu tinha potencial para fazer de novo.
Ele sabia que eu era um assassino.

E foi exatamente isso que ele me treinou para ser.

Passei meus dias comendo, levantando peso, lutando e


atirando. E passei minhas noites aprendendo a língua irlandesa.
Eu não saía com os outros soldados. Eu não falava a menos que
me mandassem. E quando fiz minha primeira morte, protegendo
Séamus durante uma queda de arma de rotina que deu errado, eu
nem vacilei. Em um ano, passei de segurança a executor e, no meu
vigésimo aniversário, tornei-me o assassino mais notório da UIB.

Eu havia trocado uma prisão por outra. Só que esta me


alimentou melhor e não me tocou, porra.

Mas tudo isso estava prestes a mudar.

Corri de volta para o carro alugado de Darby, deixei a bolsa no


porta-malas e voltei para o banco do motorista. Meu coração
estava batendo forte.

— Mudança de planos, — eu disse o mais calmamente possível,


voltando para a estrada que nos levaria para longe de Glenshire,
para sempre desta vez. — Teremos que dirigir um pouco mais.

Sentada no banco do passageiro, Darby já parecia uma


criminosa. Ela estava vestindo minha jaqueta de voo preta e o
gorro preto que eu a fiz colocar antes de sairmos - seu cabelo ainda
estava molhado, e eu seria amaldiçoado se ela tivesse hipotermia
no meu turno. Um par de óculos escuros e ela estaria pronta para
roubar um banco.

Esperançosamente, não chegaria a isso.


Ela se virou para mim, puxando as pernas para cima como uma
criança. — Se deixarmos seu carro aqui, você não se tornará um
suspeito?

Eu balancei minha cabeça.

— Você não acha? Um carro misterioso aparece em Glenshire


na mesma noite em que dois americanos desaparecem? Eles
provavelmente verificarão o número da placa e virão atrás de você.

— O carro não é meu. Nada é. No que diz respeito ao governo,


eu nem existo. — Eu lancei um olhar de soslaio para Darby e vi
sua boca abrir um pouquinho.

— O que você faz? — Ela sussurrou.

Essa pergunta fez minhas malditas entranhas revirarem. Eu


me concentrei no asfalto desaparecendo a oitenta quilômetros por
hora na frente dos meus faróis enquanto tentava encontrar uma
resposta que não fosse a verdade.

Precisando tranquilizá-la, mas sem saber o que dizer, estendi a


mão e apertei a mão de Darby. No momento em que seus dedos se
fecharam ao redor dos meus, minha mente gritou para eu me
afastar. Meu coração já acelerado começou a correr mais rápido,
mas me forcei a ignorar as sirenes tocando dentro da minha cabeça
e respirar através dele. Olhei para ela para me lembrar de quem
eram os dedos que estavam me segurando. Que eu estava bem.
Que eu estava melhor do que bem.

Darby passou o polegar levemente sobre meus dedos. A ternura


me fez desviar o olhar e engolir em seco. Minha garganta, meus
olhos, meus malditos pulmões - tudo queimava.
— Tudo bem se você não tem permissão para me contar. — Sua
voz era abafada, como se ela estivesse falando com um animal
enjaulado. — Eu acho que descobri de qualquer maneira. Seu
cabelo. Sua roupas. A maneira como você... sabia o que fazer lá
atrás. Alegando que você não existe. Você é algum tipo de... forças
especiais, não é? Como um agente secreto ou um espião ou algo
assim. Não sei.

Ela acha que estou no exército. Jesus Cristo.

— Você não tem que me dizer. Eu só... quero que saiba que
estou muito orgulhosa de você. E realmente... grata. Se você não
tivesse vindo... — Ela balançou a cabeça, não se permitindo seguir
essa linha de pensamento. — Não tenho ideia do que você está
arriscando para me ajudar. — Sua voz falhou na palavra ajudar, e
estilhaçou algo em meu peito junto com ela.

Ajudar.

Eu não a estava ajudando. Eu estava sequestrando ela.

Darby tinha visto lascas da escuridão dentro de mim, mas em


vez de se permitir reconhecer o que realmente era, ela contou a si
mesma um conto de fadas sobre isso. Inventou uma história na
cabeça dela, assim como ela fazia quando éramos crianças. Ela
costumava falar horas sobre ursinhos de pelúcia que viviam em
castelos, bruxas que comiam crianças e poções mágicas que nos
protegiam do mal. E agora, ela estava fazendo isso de novo - só que
neste conto de fadas, eu não era o demônio sem alma e sem
coração de Dublin, como a Irmandade passou a me chamar. Eu
era um herói. Um soldado condecorado que teve que colocar uma
missão ultrassecreta em espera para resgatá-la. Era uma mentira,
mas se isso a impedia de me ver do jeito que o resto do mundo via,
se isso a impedia de ver a verdade sobre o monstro que eu me
tornei, era uma mentira que eu morreria para proteger.

— Você pode... pelo menos me dizer para onde estamos indo?

Sua voz era tão suave e tão tímida que eu queria gritar. Eu
queria agarrar seu rosto virado para baixo e forçá-la a me olhar
nos olhos. Faça-a me dizer o que diabos aconteceu para fazer com
que a garota feliz e teimosa que eu conhecia se encolhesse ao meu
lado como uma garotinha assustada - joelhos enfiados dentro da
minha jaqueta, mão agarrada à minha, perguntando
hesitantemente para onde eu a estava levando, como se ela não
tivesse o direito de saber. Como se ela agora fosse minha
propriedade e eu pudesse fazer com ela o que quisesse.

— As docas, — eu mordi entre os dentes cerrados. — Porto de


Cork.

— Ah, — ela disse surpresa. — Nós estamos... entrando em um


barco?

Eu balancei minha cabeça. — Tenho que deixar uma coisa. Vai


ser rápido. Depois, iremos para Dublin.

— Dublin. É... onde você mora?

Eu balancei a cabeça.

— Não é tipo uma base militar nem nada, é? Não quero que
você se meta em encrenca...

— Não, — eu a interrompi, incapaz de ouvir a mentira que eu


estava permitindo que ela acreditasse por mais um segundo.
Darby ficou quieta. Eu estava com medo de ter sido muito
babaca com ela, mas quando olhei em sua direção, o canto de sua
boca perfeita estava inclinado de uma forma que era tudo menos
ofendida.

— O que? — Eu perguntei, suavizando meu tom, ciente do fato


de que ela havia começado a acariciar as costas da minha mão
com o polegar novamente.

Mesmo no escuro, pude ver as bochechas de Darby corar. Ela


baixou os olhos e sorriu para os meus dedos com cicatrizes.

— Nada. É que... quando éramos crianças, sempre odiei ter que


ir para casa quando escurecia. Eu queria ficar fora... com você. E
agora, eu posso.

Olhei para a frente enquanto tentava engolir o caroço enorme e


irregular na minha garganta.

— Eu não posso acreditar que você está realmente aqui. —


Darby apertou minha mão com mais força enquanto seu sorriso
desaparecia. — Eu pensei que você estava morto.

Minha cabeça virou em sua direção.

— Pesquisei você no Google, — disse ela, me encarando. — O


tempo todo. Diariamente. Mas nunca surgiu nada... até eu ter
quinze anos.

Puxando meu olhar para longe, eu engoli novamente.

Foda-se.

— 'Amado padre de Glenshire morre em trágico incêndio em


casa', — Darby recitou a manchete de memória. — Eu não sei o
que me chateou mais - o fato de que eles fizeram aquele monstro
parecer uma espécie de santo ou a parte em que eles disseram que
os restos mortais do 'menino problemático' que ele acolheu 'ainda
não foram encontrados'... Por cinco anos, procurei uma
atualização, mas eles nunca se preocuparam em acompanhar.
Só... ainda não foi encontrado.

Meu coração parecia que poderia me sufocar, inchando contra


meus pulmões, subindo em minha garganta. Eu pensei que ela
tinha esquecido de mim. Achei que ela tivesse seguido em frente.
Depois de três anos de espera, eu desisti dela completamente, mas
Darby nunca desistiu de mim.

Eu mal coloquei o carro no acostamento antes de agarrá-la pela


nuca e beijá-la pra caralho. Ela engasgou quando meus lábios se
chocaram contra os dela, sorriu quando sua língua se enroscou na
minha, e quando inclinei minha cabeça e mergulhei nela mais
fundo, seu gemido suave em resposta me percorreu como uma
droga, me deixando de joelhos, fazendo-me seu escravo.

Darby pressionou ambas as mãos - uma quente por estar na


minha e outra gelada - contra minhas bochechas e me beijou de
volta com alívio e preocupação e necessidade... por mim. A alegria
de Darby bombeava em minhas veias como o sol puro e sem cortes
depois de oito anos de noites intermináveis.

Mas no fundo da minha mente, eu sabia que não era real. Eu


sabia que Darby só se sentia assim sobre a versão de cavaleiro
branco de mim que existia em sua cabeça, não sobre o meu
verdadeiro eu. O verdadeiro eu a mandaria correndo para as
colinas. Mas a parte de mim que estava morrendo desde que ela
partiu não dava a mínima.
Meu pau se esticou contra meu jeans enquanto os lábios de
Darby envolveram minha língua. Enquanto minha mão se fechava
em torno de um punhado de cabelo ruivo úmido. Enquanto os sons
que ela fazia mudavam de delicados para desesperados.

— Kellen, — ela ofegou contra a minha boca, o som do meu


nome em seus lábios molhados quase me fazendo gozar em meu
jeans. — Vamos para casa.

E com essas três palavras, a realidade voltou a cair ao meu


redor.

Lar.

Eu não poderia levá-la para casa.

Não só porque eu ia ter um prêmio pela minha cabeça em


algumas horas quando não apareceria para dar o dinheiro a
Séamus, mas também porque, pelo som de sua voz e pelo olhar em
seus olhos semicerrados, Darby estava esperando que eu
terminasse o que começamos assim que chegarmos lá.

O que ela faria quando descobrisse que eu não poderia?

Quando ela descobrir o quão fodido eu realmente sou?

Eu tinha sido tão estúpido em pensar que desta vez poderia ser
diferente.

Eu tinha um pé no inferno.

E minha meia hora no céu estava quase acabando.


O relógio no painel anunciava que eram 10:11 em números
verdes doentios quando me aproximei da entrada lateral não
marcada das docas. Eu estava atrasado por mais de uma hora, e
me senti absolutamente enjoado com isso. Em cinco anos com a
Irmandade, nunca me atrasei para um trabalho.

Mas eu estava me sentindo cauteloso por outro motivo também.


Eu simplesmente não conseguia descobrir o que era. Disse a mim
mesmo que era porque Darby estava comigo. Eu não a queria perto
dos negócios da Irmandade. Então, em vez de dar a volta como
Séamus havia me dito, estacionei em frente ao prédio principal em
um local totalmente visível da estrada e próximo à entrada
principal.

Deixando a chave na ignição, virei-me para Darby e marquei o


relógio no painel. — Se eu não voltar em quinze minutos, vá
embora.

Seus olhos se arregalaram. — O que?

— Deixa-me e vá.

Sem esperar por mais perguntas, saí, ajustei a arma na


cintura, peguei a bolsa no porta-malas e me dirigi para os fundos
do prédio. As docas estavam fechadas à noite e as luzes apagadas,
mas o portão lateral estava aberto, então eu sabia que o homem
que precisava ver ainda estava lá.

Pelo menos, eu esperava que ele estivesse.

Se não, todo o meu plano de saída estava fodido.

Puxando meu telefone do bolso, toquei na tela para verificar a


hora novamente e encontrei quatro mensagens de texto e duas
chamadas perdidas de Séamus.

Merda.

Eu andei mais rápido enquanto rolava pelas mensagens -


principalmente ele apenas perguntando onde diabos eu estava
repetidamente - quando um par de vozes cortou o ar da noite.
Disseram-me que só encontraria um cara - um alemão - então
guardei meu telefone no bolso e peguei minha arma quando me
aproximei da esquina do prédio.

— Isso é besteira! Você diz vai, eu vou. Mais de uma hora. Não
mais!

Aquele sotaque não era alemão. Era russo, porra.

— Alex, espera! Ele vai estar aqui. O homem nunca se atrasou


um dia em sua vida.

E aquela voz era uma que eu reconheceria em meu sono, só


porque ele amava tanto o som dela que nunca calava a boca.

Rastejando mais perto da borda do prédio, prendi a respiração


e dei uma olhada rápida nos fundos. Eu os localizei em meio
segundo, parados entre dois contêineres em uma nuvem de
fumaça de charuto.
Eu não reconheci o russo, mas o bastardo barrigudo que estava
na frente dele deveria estar de volta a Dublin, esperando que eu
deixasse um saco cheio de dinheiro à meia-noite.

De repente, tudo começou a fazer sentido.

— Fizemos um acordo! — O russo gritou. — Você nos dá o


homem que matou meu tio, Devil of Dublin3, — ele cuspiu no chão
aos pés de Séamus, — e não declaramos guerra na UIB.

Meu sangue geralmente superaquecido gelou.

Um dos anciãos da UIB havia ordenado um ataque a um dos


anciãos russos, Dmitry Abramov, apenas alguns dias antes. Ele
apareceu na Irlanda, sem avisar, e a Irmandade disse que tinha
informações de que ele estava lá para interceptar um carregamento
de armas que tínhamos vindo da França. Não me agradou - matar
um Bratva de alto escalão, sem provocação - mas os anciãos
queriam enviar uma mensagem.

E todos nós sabemos o que acontece com o mensageiro.

— Que tal cuidarmos dele para você? — Séamus ofereceu -


aquele traidor de merda. — Assim que ele aparecer, enviaremos
sua cabeça para seu pai, junto com alguns AR-15s como uma
oferta de paz.

Os AR-15 que estavam presos às minhas costas naquele exato


momento, presumi.

— Nós não acenamos com a cabeça dele. — O russo soltou uma


risada rouca e sem humor. — Vou buscá-lo vivo. Você vê, zis Devil

3
O Diabo de Dublin.
tornou-se o UIB muito ousado. Por causa dele, você afunda, você
pode fazer o que quiser. Mate quem você quiser. Você está errado.
Você matou o russo errado. Agora, eu pego seu brinquedo. Devil é
nosso brinquedo agora, e vê, vou quebrá-lo pedaço por pedaço.
Entregue-o antes que eu volte para Moscou, ou eu volto e trago
todo o exército de Bratva.

Eu comecei a caminhar de volta para o carro muito antes de ele


terminar seu monólogo de vilão malvado, mas eu tinha que
escolher entre ser rápido ou ficar quieto. Optei por lento e
silencioso, segurando a bolsa contra o peito para impedir que as
armas disparassem enquanto pisava com cuidado sobre o mar de
asfalto em ruínas sob minhas botas. Mas quando ouvi a porta de
um carro bater, seguida pelo xingamento lívido de Séamus e outra
porta batendo, eu sabia que tinha escolhido errado.

Eu estava do lado do prédio com o portão aberto, e eles viriam


na minha direção a qualquer momento.

Saindo em disparada, esperava chegar ao final do prédio antes


de ser localizado, mas não cheguei nem na metade do caminho
antes que o chão à minha frente se iluminasse, revelando a longa
sombra negra de um irlandês correndo por sua vida.

O carro atrás de mim ligou o motor, e eu sabia que tinha que


ser Alexi. Ou melhor, seu motorista. Não havia como ele lidar com
a Irmandade sozinho depois do que eu fiz com Dmitry. O que eles
me obrigaram a fazer. Séamus também estava atrás de mim, mas
não ligava o motor por causa disso. Afinal, ele estava perdendo seu
melhor executor.
Minhas pernas empurraram com mais força, bombeando mais
rápido, quando o primeiro tiro de espingarda soou. A parede atrás
de mim explodiu, salpicando a parte de trás do meu pescoço e
braço com cacos irregulares de tijolo e argamassa.

Novo plano.

Correr de volta para o carro alugado estava fora de questão.


Não podia deixá-los chegar perto de Darby. A Bratva lidava com
tráfico de pessoas - escravidão sexual, trabalho forçado, extração
de órgãos, mulas de drogas. Se envolvia corpos humanos, estava
à venda. E com um corpo como o de Darby, ela seria a porra da
joia da coroa.

Puxando a arma da minha cintura, de repente corri para a


esquerda, correndo diretamente na frente do carro que se
aproximava. Disparei alguns tiros no para-brisa e, no segundo em
que o vi quebrar, corri direto para a entrada lateral sem olhar para
trás. O som do metal batendo contra o tijolo me disse tudo o que
eu precisava saber.

Um carro já foi, agora um para abater.

Dois homens gritaram um com o outro em russo pouco antes


de outro tiro de espingarda soar. Um pedaço do portão explodiu ao
meu lado enquanto a dor rasgava meu lado esquerdo e minha
omoplata.

Mas continuei correndo. Mais alguns metros e eu estaria na


entrada. Eu correria ao longo da cerca, afastando-os de Darby, até
encontrar uma maneira de voltar. Então, eu me esconderia em
cima de um contêiner e pegaria os filhos da puta um por um antes
que eles chegassem perto o suficiente para me tocar.
Ou Darby.

Mas quando olhei por cima do ombro enquanto desaparecia


pelo portão, descobri que ela já tinha ido embora. O
estacionamento estava vazio.

Parei de correr e olhei para o local onde a havia deixado.

Eu não podia acreditar que ela realmente me ouviu. Isso


mudou tudo.

Eu não precisava mais atraí-los para longe. Eu poderia eliminá-


los exatamente onde eles estavam, porra. Eu me protegia da
parede de tijolos que cercava o pátio de embarque e, com Alexi e
seu capanga ocupados puxando a cabeça de Séamus corpulento
bunda fora de seu próprio carro, eu poderia atirar em todos os três
antes mesmo de eles terem uma visão minha.

Agachando-me atrás dos tijolos perto do portão aberto, larguei


a bolsa, apontei minha Beretta, mirei no crânio grosso e careca de
Alexi Abramov e exalei quando meu dedo apertou o gatilho. Mas
antes que eu pudesse puxá-lo, o som de um motor tão fraco que
não acionaria um cortador de grama sibilou e crepitou atrás de
mim.

A cabeça de Alexi se ergueu com o som, e a última coisa que vi


antes de mergulhar atrás da parede foi ele erguendo sua
espingarda.

BAM!

Uma pilha de tijolos atingiu o asfalto, mas eu não estava lá para


aguentar o impacto dessa vez. Eu estava subindo no banco do
passageiro de um Ford Fiesta prata.
— Dê a volta! — Eu gritei, espalmando o topo da cabeça de
Darby e empurrando-o para baixo de sua janela aberta.

— Não consigo ver! — Ela gritou de volta, mas sua mão


encontrou a alavanca de câmbio e seu pé o acelerador.

O carro fez um zumbido como um helicóptero de brinquedo com


bateria fraca enquanto se afastava para trás. Agarrando o volante,
puxei-o para a esquerda assim que chegamos à estrada principal.
Darby gritou e tirou o pé do pedal.

— Dirija! — Eu gritei, colocando o shifter na posição.

— Não posso! — O terror em sua voz era a única coisa que me


impedia de gritar com ela por ter voltado para mim.

Eu poderia ter matado todos os três filhos da puta e acabado


com isso, mas em vez disso, teria que tirá-la de lá enquanto dirigia
um patins glorificado com ainda menos potência.

Olhando para trás, vi o BMW preto de Séamus passar pelo


portão. Porque o carro era tão pequeno, eu mal tive que me inclinar
para bater minha palma no joelho direito de Darby, forçando seu
pé a pisar fundo no acelerador.

Ela gritou quando o carro decolou, mas não estava indo rápido
o suficiente para ultrapassar o Série 5 de Séamus.

— Kellen! — Ela engasgou, apertando o volante enquanto eu


me virava para observar o Beemer. — Não sei dirigir neste lado da
estrada!

— Eu não dou a mínima para qual lado você dirige, — eu disse,


olhando para a rua vazia atrás de nós. — Apenas faça isso tão
rápido quanto você pode, e vire... agora!
Agarrei-me ao encosto de cabeça, observando atrás de nós,
enquanto Darby girava o volante para a direita. Achei que
poderíamos desaparecer em uma rua lateral antes de sermos
vistos, mas não tivemos essa sorte. O carro de Séamus veio voando
para a estrada, derrapando ao fazer a curva a toda velocidade, e
definitivamente não era Séamus no banco do motorista.

— O que agora? — Darby perguntou, pisando no acelerador


sozinha desta vez.

— Agora, faça de novo. Continue girando até que os percamos.

Ela girou o volante novamente quase imediatamente. Os


ferimentos no meu lado esquerdo gritavam enquanto eu me
agarrava ao assento, mas não era nada comparado à dor que eu
sentiria se eles nos pegassem. A Bratva não gostava de distribuir
mortes rápidas. Especialmente quando a vingança estava em jogo.

Mantive meus olhos fixos no trecho de estrada preta atrás de


nós. As docas ficavam em uma parte industrial da cidade. Havia
algumas pousadas e restaurantes que atendiam às tripulações
exaustas dos cargueiros que entravam e saíam do porto, mas suas
luzes estavam apagadas há horas. Essas pessoas dormiam cedo,
trabalhavam duro, acordavam ainda mais cedo, então não havia
uma alma nas estradas além de nós.

E os russos.

Darby cortou o volante novamente, desta vez lembrando-se de


ficar do lado esquerdo da estrada.
— Nós os perdemos? — Ela perguntou, um tom de excitação
desafiando o medo em sua voz enquanto ela pisava fundo no
acelerador.

Eu não via ninguém atrás de nós há três voltas, então


finalmente me permiti relaxar e encará-la. Darby parecia uma
adolescente rebelde que roubou o carro de seus pais, sentada na
ponta do banco do motorista para alcançar os pedais, uma jaqueta
preta enorme e um gorro engolindo suas feições suaves e uma
mistura de alegria e terror em seu rosto bonito e sardento.

Tive um vislumbre ainda melhor daquela expressão quando de


repente ela foi iluminada pelo distante brilho amarelo dos faróis
que se aproximavam.

Procurei um lugar para virar, mas a estrada era uma longa reta,
flanqueada de ambos os lados por bosques densos. Então, contei
o número de voltas que Darby tinha dado e o meio segundo de
alívio que me permiti sentir transformado em arsênico em minhas
entranhas.

Uma direita e três esquerdas.

Não estávamos mais sendo perseguidos por Alexi. Estávamos


correndo direto para ele.

— Kellen? — Darby perguntou, a emoção em sua voz


completamente perdida.

— Abaixe-se.

— O que?
— Mantenha o pé no pedal, — eu disse, sem tirar os olhos dos
faróis voando em nossa direção como a ira de Satanás, — e desça.
Agora!

Darby fez o que eu disse e agarrei o volante com a mão esquerda


no momento em que ela me soltou. Inclinando meu corpo sobre o
dela, apoiei meu pulso em sua janela aberta e mirei no pesadelo
preto e cromado gritando em nossa direção.

Travei os olhos com Alexi, que estava debruçado para fora da


janela do passageiro, olhando para mim por cima do cano de uma
espingarda. Seu rosto carnudo se contorceu em um sorriso de
escárnio, mas quando eu exalei e apertei o gatilho, não foi em seu
crânio que afundei uma bala.

Era do motorista dele. O guarda de segurança do tamanho de


um urso que eu escapuli na noite em que matei Dmitry.

Assim que o para-brisa se estilhaçou, eu sabia que havia


atingido meu alvo. O BMW começou a girar, mas não antes de Alexi
disparar um último tiro.

Cobrindo o corpo choramingando de Darby com o meu, ouvi os


pings metálicos de chumbo grosso salpicando a porta ao lado de
nossas cabeças e rasgando o encosto de seu assento. Eu me
preparei para o impacto, mas ele nunca veio. Tudo o que senti foi
o tremor violento das pedras sob nossos pneus enquanto eles
saíam da estrada.

Endireitei o volante e levantei a cabeça, apenas o suficiente


para ver pelo espelho lateral o orgulho e a alegria de Séamus dar
um mergulho na floresta. As árvores pareciam se abrir e engolir
todo o veículo. Prendi a respiração e olhei para a estrada agora
vazia atrás de nós quando me vi fazendo algo que jurei nunca mais
fazer.

Algo que eu não conseguia parar de fazer desde que encontrei


o obituário de Patrick O'Toole naquela manhã.

Eu esperei.

Eu esperava que Alexi estivesse morto.

Esperava que Darby estivesse bem.

Eu esperava que ela não fugisse gritando de mim no segundo


que tivesse a chance.

Eu esperava poder nos tirar da Irlanda antes que fosse tarde


demais.

Mas quando a silhueta de uma grande criatura de quatro patas


rastejou para fora da floresta - quando ela escalou o barranco,
ficou em pé sobre duas pernas, inclinou a cabeça calva para trás
e rugiu noite adentro - lembrei-me por que havia jurado emoção
inútil em primeiro lugar.

A esperança era uma assassina.

Apenas como eu.


Eu não sabia o quanto Kellen tinha dirigido com seu corpo
sobre o meu, mas sabia que quando ele finalmente parou, eu perdi
o peso dele.

Em questão de segundos, passamos de um furacão


descontrolado através de um furacão de balas para um estado de
imobilidade estranha e silenciosa. Foi tão desorientador que
comecei a me perguntar se eu estava morta. Mas então as pontas
dos dedos de Kellen estavam afastando o cabelo do meu rosto e
sua voz estava perguntando se eu estava machucada, e eu me
agarrei a ambos como prova de vida.

Tentei me concentrar no meu corpo. Não senti nenhuma dor


além de um leve latejar na maçã do rosto, mas então me lembrei
de onde tinha feito aquele ferimento - lembrei de tudo - e senti
como se fosse vomitar.

Abrindo meus olhos, eu meio que esperava me encontrar na


cama, acordando de algum pesadelo retorcido, mas em vez disso,
eu estava enrolada no banco do motorista de um carro minúsculo
com o volante no lugar errado.

Enquanto eu piscava para afastar a névoa do cérebro, virei-me


para encontrar a silhueta de Kellen pairando sobre mim. Suas
feições estavam envoltas na escuridão - iluminadas por trás pelo
brilho suave e quente das luzes do lado de fora. Lágrimas arderam
em meus olhos ao vê-lo, e eu não sabia se era porque estava
aliviada por ele estar bem ou porque estava percebendo como as
coisas realmente não estavam bem.

Pegando meu braço, Kellen me ajudou a sentar. Seus olhos


selvagens e mãos ásperas roçaram meu corpo, minha cabeça,
procurando por sinais de ferimentos, enquanto meu olhar passava
por ele para o prédio ao lado do qual estávamos estacionados. Era
uma fileira de pequenas casas geminadas de estuque, talvez seis,
cada uma pintada da cor de um ovo de Páscoa. Pastel azul, roxo,
pêssego, amarelo. As da ponta não tinham luzes acesas, então não
dava para saber de que cor eram. Era como se a noite tentasse
engolir todo o prédio e começasse por aquele lado.

— Onde estamos? — Eu perguntei, minha voz soando como se


eu não a usasse há dias.

— Um B&B fora das estradas principais, — disse ele,


inclinando a cabeça em direção ao prédio. — Fique aqui.

— Não. — Meus olhos dispararam de volta para seu rosto


sombrio. — Por favor, não me deixe no carro novamente. Eu quero
ir com você.

Kellen suspirou e passou a mão sobre a cabeça. Ao fazer isso,


alguns cacos de vidro quebrado caíram de seu cabelo bagunçado,
brilhando como gotas de chuva de cristal ao cair no assento. —
Ok. — Ele assentiu. — Mas você tem que ficar quieta.

Descendo para o lado escuro do prédio - Kellen carregando uma


pesada mochila preta, bem como minha mala - notei que a rua em
que estávamos parecia mais um beco. Era pouco mais larga do que
uma pista, pontilhada de lixeiras e poças d'água, e os cabos de
energia pendiam acima, antigos e deprimidos. Mas do outro lado
das casas, em um vão entre os fundos de dois outros prédios
dilapidados, pude ver o porto.

Eu esperava que Kellen batesse em uma das portas ou


chamasse alguém para nos deixar entrar, mas em vez disso, ele se
dirigiu para a parte de trás do último sobrado. Depois de escutar
através da porta e tentar a maçaneta, ele agarrou os corrimãos de
ferro forjado de cada lado da escada, recostou-se e abriu a porta
com um chute.

Eu vacilei, mas não foi tão alto quanto eu pensei que seria.
Kellen desapareceu lá dentro e, por alguns segundos, observei a
luz de seu celular disparar pela casa. Então, ele reapareceu na
porta, gesticulando para que eu entrasse.

No momento em que a porta se fechou atrás de mim, Kellen


pegou uma cadeira de madeira da mesa da cozinha e a colocou sob
a maçaneta. Então, ele me pegou pelo braço e, usando novamente
o celular, iluminou o chão com uma luz para me guiar escada
acima.

Eu tinha tantas perguntas, mas estava com medo de falar.


Kellen me disse para ficar quieta, e depois de tudo o que aconteceu
naquele dia, eu estava começando a perceber que quando Kellen
me dissesse para fazer algo, não ouvir poderia matar um de nós.

Levando-me para um quarto no andar de cima, ele fechou a


porta atrás de nós e acendeu uma lâmpada. O quarto era
minúsculo - grande o suficiente para uma cama grande e uma
cômoda - e tinha uma única cortina blecaute cobrindo sua única
janela. Não tive tempo de absorver muito mais do que isso porque
no segundo em que o espaço foi iluminado, notei que a parte de
trás da camiseta preta de Kellen estava rasgada de um lado.

E encharcado de sangue.

Engoli em seco, imediatamente cobrindo minha boca para


abafar o som.

Kellen apenas ficou lá de costas para mim, músculos


contraídos, cabeça baixa, uma mão segurando a borda da cômoda,
a outra segurando a parte de trás do pescoço. De repente, ele bateu
com o punho na superfície de madeira, mais e mais e mais.

Eu me pressionei contra a parte de trás da porta quando ele


passou por mim, mas ele não tinha para onde ir. Assim que chegou
ao final da sala, Kellen se virou e voltou, esfregando a cabeça com
as duas mãos enquanto caminhava pelo comprimento da sala
estreita.

— Kellen? — Sussurrei, imaginando que se ele podia fazer tanto


barulho, eu também poderia fazer um pouco.

Nenhuma resposta.

— Kellen.

Ele passou por mim novamente, o cheiro de sangue me


lembrando a cada passagem o quão gravemente ferido ele estava.

— Fale comigo. Por favor.

Era como se fisicamente lhe doesse parar de andar. No lado


oposto da sala, Kellen respirou fundo antes de se virar para mim,
a agonia estragando suas feições normalmente estoicas. Ele
entrelaçou os dedos no topo da cabeça, e isso me lembrou de como
os criminosos ficavam quando se entregavam à polícia. Ele estava
desistindo. Eu só não sabia o que ele achava que estava perdendo.

Finalmente, com um profundo suspiro, ele disse: — Há um


posto da Guarda no caminho. Pegue o carro, diga a eles que você
se perdeu perto das docas e acidentalmente testemunhou algum
tipo de... transação. Os criminosos atiraram em seu carro e,
quando você saiu da estrada, tentaram sequestrar você e seu
noivo. Você escapou, mas eles colocaram John em um BMW preto
e foram embora.

— O que? — Eu gaguejei, sentindo como se o próprio chão


tivesse caído debaixo de mim.

— Eles vão cuidar de você. — A voz de Kellen falhou quando


suas mãos caíram para os lados. — Volte para casa.

Ele queria que eu fosse embora.

Ele estava me dizendo para sair.

Pânico, quente e frenético, deslizou sob minha pele.

— Kellen, eu... me desculpe. Eu sinto muito.

— Pelo que? — Ele rebateu, sua raiva fazendo com que as


lágrimas que estavam brotando finalmente caíssem pelo meu
rosto.

— Eu... eu dei muitas voltas, — eu disse, balançando a cabeça.


Fechei os olhos e os cobri com as mãos, procurando palavras para
explicar algo que não compreendia totalmente. — Não sei. Não sei
o que está acontecendo, mas você precisava de mim para tirá-lo de
lá, e eu não o fiz. Eu virei muitas vezes para a esquerda ou algo
assim, e agora você está ferido, e você está com raiva de mim, e...
Meus olhos se abriram quando a mão de Kellen envolveu meu
rosto. Eu nem tinha ouvido ele se mover. Seus olhos cinza metálico
estavam cheios de loucura quando eles se moveram entre os meus.
Mas eu não estava com medo.

Eu conhecia o medo. Convivo com isso desde os treze anos de


idade. Na verdade, a única vez que não senti isso foi a cada
segundo desde que Kellen voltou à minha vida. Mesmo que o perigo
o perseguisse como uma sombra, mesmo que eu nunca soubesse
no que ele estava envolvido ou quando a próxima ameaça
apareceria, não podia negar que me senti mais segura com ele em
uma saraivada de tiros do que em minha própria casa.

— Você não fez nada de errado, — ele rosnou, sua voz rouca
vibrando através da minha pele. — Nada. Entendeu? Mas você não
está mais segura aqui. Não comigo. Vá para casa, Darby. Por favor.

Algo na maneira como ele disse, por favor, parecia que ele tinha
acabado de enfiar a mão dentro do meu peito e retornar meu
coração.

Pressionando a mão em sua bochecha, observei com os olhos


lacrimejantes enquanto o rosto de Kellen se contorcia sob meu
toque. Enquanto suas sobrancelhas fortes se juntavam de dor e
sua garganta trabalhava para engolir a emoção que eu podia sentir
irradiando dele.

Eu queria tanto dizer a ele que estava em casa - que ele era a
única coisa na minha vida que parecia segura, familiar, quente e
reconfortante, não uma casa, não um lugar - mas como eu
poderia? Nós só nos reunimos por algumas horas, e durante essas
horas, Kellen provou que ele era tudo menos seguro. Não fazia
sentido, mas o fato permanecia - eu não conseguiria dizer adeus a
ele nem se minha vida dependesse disso.

E provavelmente aconteceu.

Talvez fosse porque, quando acariciei sua bochecha áspera e


esculpida, imaginei-a como costumava parecer - macia, como a de
um querubim, e escondida atrás de uma cortina de cachos pretos
e brilhantes. Talvez fosse porque eu me lembrava de como ficava
rosa sempre que ele falava comigo. Só eu. Ou talvez fosse porque
eu sabia que aquela bochecha provavelmente havia levado mais
socos do que beijos.

Ficando na ponta dos pés, fechei os olhos e pressionei meus


lábios contra a dura barba por fazer da bochecha de Kellen. E,
como sempre, uma avalanche de formigamento tomou conta de
mim no segundo em que nos tocamos, deixando meu corpo inteiro
coberto de arrepios.

Magia de fada.

— Eu quero ficar aqui. Com você, — eu sussurrei, deslizando


de volta para meus pés.

— Você não sabe o que está dizendo, — Kellen murmurou sem


abrir os olhos. Seu aperto na minha mandíbula suavizando. —
Você não sabe o que eu sou.

Inclinando o rosto para baixo com as duas mãos, esperei que


ele abrisse aqueles olhos cristalinos para que pudesse ver a
sinceridade brilhando nos meus antes de finalmente dizer: — Sim,
eu sei.
Kellen prendeu a respiração quando estendi a mão para a
bainha de sua camiseta.

— Agora, deixe-me ver o quão ruim é.

Eu não sei o que eu estava esperando, mas meia dúzia de


buracos abertos no lado de Kellen e na omoplata, cada um com
cerca de um terço de polegada de largura e pingando sangue, não
era isso.

Jesus Cristo.

Kellen insistiu que eu não poderia levá-lo a um hospital, então


vasculhei minha mala até encontrar uma pinça e um desinfetante
para as mãos para esterilizar.

Eu o fiz deitar de bruços na cama e me ajoelhei ao lado dele


com alguns panos molhados dispostos sobre uma toalha, como
uma espécie de médico da era da Guerra Civil. Eu deveria estar
assustada, e estava, mas estaria mentindo se dissesse que não
estava nem um pouco animada também. Foi a primeira vez que
não me senti completamente inútil em muito, muito tempo.

— Sinto que devo lhe dar um pouco de uísque ou algo assim


primeiro, — eu disse, limpando o primeiro ferimento com um pano.

Kellen estremeceu. — Eu não bebo.

— Realmente? E eles ainda não expulsaram você da ilha?

Um pequeno sorriso surgiu em seus lábios, mas foi


rapidamente substituído por um grunhido e uma careta quando
tirei uma pequena bolinha de prata manchada de sangue do
ferimento com um par de pinças de sobrancelha.
Ele suspirou de alívio assim que acabou. — Se o fizessem, eu
não seria capaz de ir além da Grã-Bretanha.

— Por que não? — Deixei cair o chumbo na toalha.

— Sem passaporte. — Kellen estremeceu novamente.

— Desculpe. — Eu limpei sua próxima ferida um pouco mais


suavemente.

— Como eu disse antes, eu não existo. Não no papel de


qualquer maneira. Eu tentei encontrar minha certidão de
nascimento anos atrás, para que pudesse obter uma carteira de
motorista, mas não há registro de Kellen Donovan ter nascido em
qualquer lugar do país dentro de um ano de quando eu acho que
nasci.

— O que você quer dizer com quando pensa que nasceu? Você
não sabe?

Kellen cerrou os dentes enquanto eu procurava outra bala.


Então, ele balançou a sua cabeça.

— Lembro-me de ter comido um bolo de aniversário uma vez,


quando ainda morava com minha mãe. Estava tão escuro e frio em
nosso apartamento que não quis apagar as velas, então sei que era
inverno, talvez janeiro ou fevereiro? E eu devia estar fazendo cinco
anos porque ela me deixou na casa do padre Henry pouco depois
disso, e eu comecei a estudar.

Oh meu Deus.

Forcei um sorriso para mascarar meu desgosto quando me


inclinei para olhá-lo nos olhos. — Eu acho que é o máximo que
você já me disse.
Um sorriso tímido iluminou suas feições escuras... e selou meu
destino junto com ele. Eu não pude ir embora depois de ver isso.
Eu estava condenada a passar o resto da minha vida tentando
fazê-lo fazer isso de novo. O mais frequente possível.

— Sabe, hoje pode ser seu aniversário, — eu meditei,


guardando na memória a imagem de seu rosto sorridente e
barbudo. — Mas, novamente, espero que não seja. Esta seria uma
maneira muito ruim de passar o seu aniversário. — Uma risada
nervosa se infiltrou no fundo da minha garganta quando percebi
que, mais uma vez, ninguém iria gritar comigo por xingar.

— Discordo. — O olhar de Kellen me manteve cativo enquanto


aquele doce e tímido sorriso se transformava em algo um pouco
mais... caloroso.

Meu rosto corou imediatamente e eu me sentei, tentando


desesperadamente lembrar o que diabos eu estava fazendo antes
do sorriso de Kellen acontecer comigo.

— Então... — Eu limpei minha garganta, enxugando outra


ferida. — Se você não tem certidão de nascimento, acho que não
conseguiria tirar a carteira.

— Sem licença. Sem passaporte. Sem cartões de crédito. Nada.

— Então, como você se juntou ao exército se não há registro de


você?

Os músculos das costas de Kellen ficaram tensos com a


pergunta, fazendo com que sangue fresco vazasse de algumas de
suas feridas.

Bom Deus.
— Você realmente não pode falar sobre isso, pode?

Ele balançou sua cabeça. Todos os vestígios daquele sorriso de


menino de momentos atrás haviam desaparecido há muito tempo.

— Você pode pelo menos me dizer se os caras que atiraram em


nós estão — mortos — ainda estão por aí?

Kellen fechou os olhos com um grunhido enquanto eu


arrancava outra bolinha de suas costas. Então, ele ficou quieto por
um longo tempo.

Meu estômago embrulhou quando percebi que ele também não


responderia a essa pergunta.

— Isso é apenas... normal para você?

É assim que minha vida vai ser se eu ficar com você?

Kellen balançou a cabeça. — Às vezes fico semanas sem uma


tarefa.

— Realmente? — A esperança em minha voz era quase


embaraçosa. — O que você faz?

Ele encolheu os ombros. — Exercícios, ler, praticar tiro ao alvo


- ah!

— Desculpe! — Deixei cair outra bolinha na toalha. — Acho que


foi a último. Vou te limpar, ok?

Kellen pareceu relaxar enquanto eu usava a toalha molhada


para limpar o sangue de suas costas. Toda a superfície era uma
colcha de retalhos de cicatrizes, antigas e novas. Fez meu
estômago revirar ao pensar em quanto ele já tinha suportado em
tão pouco tempo. Ele tinha apenas vinte e dois anos.
Talvez vinte e três.

Sequei sua pele com um tapinha e coloquei seis pequenas


ataduras redondas em seus ferimentos. Eu as joguei na minha
mala apenas no caso de meus saltos altos me causarem bolhas do
funeral. Eu não tinha ideia de que usaria quase toda a caixa para
consertar os buracos de chumbo grosso de Kellen Donovan.

Quando terminei, Kellen rolou para o lado bom para que


pudesse olhar para mim.

Tentei não ficar boquiaberta com seu peito nu ou com a forma


como seus músculos abdominais flexionavam enquanto ele
apoiava a cabeça na mão.

— Obrigado, — ele disse, aquela única palavra estrangulada


com emoção.

Baixei os olhos e me ocupei com os itens na cama, a


intensidade de seu olhar me deixando inquieta. — Não me
agradeça ainda. Pode infeccionar.

— Com a quantidade de emplastros que você colocou aí? Não é


provável.

Olhei para cima bem a tempo de ver outro pequeno sorriso


iluminar o rosto exausto de Kellen. Ele deve ter sentido muita dor,
mas não deixou transparecer.

— É depois do anoitecer, — disse ele, seu sorriso


desaparecendo.

Eu balancei a cabeça, meu coração de repente batendo


enquanto eu tentava manter meus olhos em seu rosto em vez do
profundo e musculoso cinto de Adonis desaparecendo em seu
jeans preto. — Mmmm.

— Então o que acontece agora?

— O que... — Engoli a baba na minha boca enquanto tentava


dar de ombros com indiferença. — O que você quer dizer?

— Mais cedo, — ele fez uma pausa para molhar os lábios, —


você disse que quando éramos crianças, você queria ficar comigo...
depois de escurecer.

Eu balancei a cabeça, sentindo minhas bochechas


esquentarem.

— Eu nunca, — a voz de Kellen sumiu junto com seu olhar, —


fiz isso.

Ele estava dizendo que nunca teve uma festa do pijama ou que
nunca...

Não. Kellen era um templo vivo de masculinidade. Eu só estive


em sua presença sem camisa por cinco segundos, e a maioria das
minhas células cerebrais já havia morrido e desviado todos os seus
recursos para meus ovários. Obviamente, ele fez sexo.

— Você nunca foi a uma festa do pijama? — Eu perguntei, só


para esclarecer.

Kellen balançou a cabeça, apenas uma fração de centímetro, e


naquele momento, seus olhos cinzentos eram exatamente os
mesmos que eu tinha roubado olhares na floresta todos aqueles
anos atrás. Aquele rosto doce e honesto, rejeitado por toda uma
aldeia. Meu sangue fervia enquanto eu pensava em como a vida
deve ter sido para ele. Como teria sido se ele tivesse sido criado
literalmente por qualquer outra pessoa.

— Vamos, — eu disse, estendendo a mão para ajudá-lo.

— Para onde estamos indo?

— Acampamento. — Eu sorri.
Enquanto Darby se ocupava em fazer um ‘acampamento’, eu
andava pela cozinha, planejando possíveis rotas de fuga.

Não dos russos ou da UIB, mas do pássaro americano na sala


ao lado, que tagarelava sobre insígnias de escoteiros e técnicas de
fazer fogo.

Eu queria fugir com cada fibra do meu ser. Eu queria correr até
meus pulmões queimarem e minhas pernas cederem. Eu queria
ficar o mais longe possível de Darby e do acidente de trem que
estava prestes a acontecer.

Mas outra parte de mim, a parte que me manteve lá, andando


como um idiota, queria Darby ainda mais.

Flexionei minhas costas até que as feridas salpicadas em meu


lado esquerdo cantassem de dor. Foi a única coisa que ajudou a
liberar a pressão que crescia dentro de mim. Eu estava prestes a
ser humilhado na frente da única garota com quem eu já me
importei - e eu era impotente para impedir.

— Você encontrou alguma comida?

Eu me virei para encontrar Darby de pé com os olhos


arregalados na porta, iluminado pelas luzes do porto brilhando
através da janela da cozinha. Ela estava vestindo um suéter da
Georgia State University e um par de leggings pretas.
Provavelmente era o que ela vestia antes de sairmos de Glenshire,
mas ela estava usando minha jaqueta o tempo todo. Uma onda
irracional de raiva tomou conta de mim ao vê-la sem ela.

Deus, eu estava fodido.

Eu balancei minha cabeça.

— Tudo bem. — Ela sorriu, estendendo a mão para pegar


minha mão úmida. — Teremos um café da manhã gigante de
aniversário pela manhã.

Ela praticamente teve que me arrastar para a sala de estar,


onde o som de um fogo crepitante e o cheiro de toras de cedro
pairavam no ar. Ela colocou o edredom da cama do andar de cima
no chão em frente ao fogão a lenha e abriu as cortinas para que o
céu noturno ficasse à mostra.

Aqui vamos nós, porra.

Puxando-me para o cobertor junto com ela, Darby deitou-se


sobre seu lado esquerdo, e com meu coração disparado e meu
estômago em nós, eu a espelhei. Meus ferimentos de bala
protestaram com o movimento, mas a onda de dor ajudou a me
acalmar. Fechei os olhos e segurei-o o máximo possível.

Com os olhos bem fechados, os sons e cheiros do fogo ajudaram


a me acalmar também. O fogo costumava me assustar quando eu
era mais jovem. Isso me lembrou muito do inferno, do mal que
todos diziam que queimava dentro de mim. Mas depois que
finalmente deixei isso me consumir, deixei que liberasse sua fúria
sobre o padre Henry, deixei que as chamas queimassem seu corpo
e tudo o que ele já amou até o chão, não tive mais medo.
As chamas me libertaram.

Abrindo os olhos, encontrei Darby olhando para mim, seu


cabelo laranja brilhando como fios de cobre forjado à luz do fogo.

— No que você estava pensando? — Ela perguntou.

— O fogo, — respondi com sinceridade.

— Este ou... o de Glenshire? — Seu rosto caiu.

— Ambos.

— Oh Deus. Kellen, sinto muito. — Darby se sentou, como se


fosse molhar a coisa com um balde de água. — Eu não estava
pensando. Posso apagá-lo se...

Agarrei seu antebraço e sorri quando ela olhou por cima do


ombro para mim mortificada. — Está bem. — Eu balancei minha
cabeça, mais do que um pouco divertida com sua preocupação. —
É legal.

Darby sorriu com orgulho, seus ombros relaxando enquanto


ela se sentava com as pernas cruzadas, de frente para mim. — É,
não é? Eu não moro em nenhum lugar com uma lareira desde que
minha mãe… — Seu sorriso desapareceu quando seu olhar se
desviou para o chão.

— Sinto muito... sobre sua mãe.

Os olhos de Darby dispararam em surpresa.

— Você não é a única que tem acesso à internet, sabe. — Eu


sorri. — Eu posso ter te procurado uma ou duas vezes.
O sorriso que aquele comentário me rendeu me deu vontade de
bater no peito de orgulho. Em vez disso, fiz algo ainda mais
estúpido.

Ergui o braço e disse: — Vem cá.

Darby baixou os olhos e mordeu o lábio enquanto se arrastava


para mim, e imediatamente soube que minha relação com o fogo
estava prestes a mudar. Porque eu estava brincando com isso, e
eu, de todas as pessoas, sabia como poderia acabar mal.

No momento em que a cabeça de Darby descansou em meu


bíceps, eu já estava duro como a porra de uma rocha. Eu queria
puxar seu corpo contra o meu. Inferno, eu queria rolá-la de costas
e fodê-la até o sol nascer, até que ela gritasse meu nome e
arranhasse meus braços e chorasse de exaustão. Estive
fantasiando sobre fazer coisas indescritíveis com Darby Collins
durante metade da minha vida. Mas fantasia e realidade eram
duas coisas muito diferentes.

Na verdade, fiquei paralisado no momento em que sua


respiração atingiu meu pescoço. Meu pulso disparou. Meu peito
subia e descia como um pistão, e meus músculos ficavam tensos,
preparando-me para lutar ou fugir.

— Kellen? — A voz de Darby era leve como uma pluma. Gentil.


Preocupada.

Não é ele, eu disse a mim mesmo, tentando recuperar o controle


da única coisa que ele nunca abriu mão do poder. Nem na morte.
Acabou. Está feito.
Mas meu corpo não quis ouvir. Minha respiração ficou mais
difícil, mais rápida, enquanto eu lutava para me segurar. Para
lutar contra minha vontade de fugir.

— Posso... contar uma história de fantasmas? — Darby


perguntou, sua voz intencionalmente calmante enquanto ela me
olhava com os olhos arregalados. — É uma parte muito importante
da experiência da festa do pijama. — Ela sorriu fracamente.

Eu sabia o que ela estava fazendo e estava eternamente grato


por isso.

Assim que assenti, Darby rolou de costas e olhou pela janela.


A cabeça dela ainda estava apoiada no meu braço, mas ter um
espaço extra para respirar ajudou.

— Era uma vez, — disse ela, tamborilando com os dedos finos


na barriga, — uma garotinha que conheceu um príncipe encantado
em uma floresta encantada. Só que ela não sabia que ele era uma
fada porque as fadas são excelentes metamorfos, como você
provavelmente sabe.

Eu não ouvia uma das histórias de Darby desde que era


criança. Embora sua voz estivesse mais rouca agora, mais
madura, o ritmo dela não havia mudado nem um pouco. Relaxei
quando a cadência de seu sotaque americano me levou de volta a
uma época em que não sentia pressão para falar ou... atuar.
Quando eu poderia ser apenas Kellen. Quando ouvir era o
suficiente.

— Aconteceu, — ela continuou, — que o príncipe das fadas


havia sido roubado de seu reino e estava sendo mantido prisioneiro
na floresta por um feiticeiro maligno. Ele não tinha outras fadas
com quem brincar, então a garota rapidamente se tornou sua
única amiga secreta. Eles brincavam todo verão até que, um ano,
a garota parou de ir. A fada pensou que não queria mais brincar
com ele quando, na verdade, ela havia sido capturada por um
feiticeiro diferente – seu próprio pai – e estava sendo mantida
prisioneira do outro lado do mar.

Darby não olhava para mim. Ela manteve os olhos fixos na lua,
como se a história estivesse escrita ao lado dela. Como se não
tivesse realmente acontecido com ela.

— Havia outros feiticeiros no reino de seu pai. — Darby


entrelaçou os dedos, precisando de algo em que se agarrar. — Os
maus. Eles se infiltravam em seu calabouço à noite enquanto seu
pai estava desmaiado por causa de todas as... poções que eles
gostavam de compartilhar, e eles iriam... tocá-la.

Eu não podia acreditar no que eu estava ouvindo. Meu coração


batia tão forte que todo o meu corpo tremia com cada onda de
sangue. Eu sabia que Darby tinha que sentir isso, pulsando em
meu bíceps sob sua cabeça, mas ela não reagiu a isso. Ela apenas
olhou pela janela. Sem vida. Vaga.

— Ela lutou no começo, — Darby disse, sua voz quase mais


alta que um sussurro, — mas... eles gostaram disso. Eles
gostavam quando tinham que segurá-la, abafar seus gritos. E ela
odiava ser pressionada. Ela odiava tanto que, eventualmente... ela
aprendeu a morrer.

Os olhos de Darby fixaram-se nos meus, apenas por um


segundo, mas a emoção que vi em seu olhar torturado foi uma que
eu senti mais vezes do que poderia admitir para mim mesmo.
Desespero. Temor. Vergonha.

Ódio puro e não diluído inundou meu corpo, exigindo vingança.


Buscando uma libertação. Mas eu me forcei a respirar através dele.
Para estender a mão e apertar suas mãos nodosas e ouvir, mesmo
que fosse uma tortura.

— Sempre que um feiticeiro entrava, cheirando a poções, o


fantasma da garota deixava seu corpo e voava até a lua. Lá, ela
olhava para a floresta encantada sobre o mar e sonhava com o
príncipe encantado até que fosse seguro para ela voltar à vida.

Darby apertou minha mão de volta, e isso quase me matou.


Durante todos esses anos, pensei que ela havia se esquecido de
mim, trocado por um cara menos complicado, alguém que pudesse
realmente falar, dar a ela uma vida normal, e durante todo o tempo
ela estava...

Cristo.

— Então, um dia, — ela continuou, — um belo príncipe veio e


a levou para longe da masmorra. Ele prometeu cuidar dela, fazer
dela uma princesa, mas... ele era apenas mais um feiticeiro
disfarçado.

Capitão América. Aquele pedaço de merda estuprador.

— Ela teve que se tornar um fantasma tantas vezes que quase


esqueceu como era estar viva. Mas, quando o avô da menina
morreu, ela e o príncipe malvado fizeram uma viagem pelo mar, de
volta à floresta encantada. E quando ela chegou lá, percebeu que
não podia mais morrer. Seu fantasma estava preso dentro de seu
corpo. Então, naquela noite, quando o príncipe malvado veio atrás
dela, tentou machucá-la, ela lutou, como costumava fazer. Ela
chutou, gritou e lutou tanto que o príncipe das fadas ouviu seus
gritos e veio em seu socorro.

Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos e um sorriso


agradecido em seu rosto perfeito e sardento. — Ele a salvou, assim
como já havia se salvado.

Sem pensar, sem um pingo de medo, puxei seu corpo contra o


meu.

Darby soltou um suspiro trêmulo quando seu rosto se aninhou


no espaço entre meu ombro e pescoço. Seu corpo moldado ao meu
como se tivesse sido esculpido a partir dele. Mas no momento em
que seu quadril descansou contra a protuberância em meu jeans,
eu fiquei tenso e apertei meu aperto. A veia em meu pescoço
começou a pulsar contra sua bochecha, mas Darby não se afastou
desta vez.

E eu não queria que ela o fizesse.

Pressionando um beijo no lado do meu pescoço, assim como


ela tinha feito quando eu tinha quatorze anos, Darby murmurou,
— Está tudo bem. Podemos ficar assim. Não vou tocar em você,
prometo.

E com aquele punhado de palavras sussurradas, senti como se


um peso de dez toneladas tivesse sido tirado do meu peito. Eu
poderia respirar novamente, pensar novamente. Meus músculos
relaxaram quando enterrei meu rosto em seu cabelo, enquanto um
soluço silencioso se alojou em minha garganta.
Beijos suaves e demorados salpicavam minha clavícula, meu
pescoço, a linha dura da minha mandíbula, mas de alguma forma,
eles não desencadearam meu pânico. Na verdade, eles tiveram o
efeito oposto.

Inclinando minha cabeça para baixo, encontrei o profundo


olhar verde de Darby e não senti nada além de desejo. A
necessidade de protegê-la, a necessidade de agradá-la, a
necessidade de possuí-la, corpo e alma. Saudade - uma vida
inteira em construção - surgiu em minhas veias, quente o
suficiente para queimar todo o ódio que veio antes dela.

Baixei meu olhar para seus lábios e observei sua língua


brilhante deslizar ao longo da costura, molhando-os em resposta
à minha pergunta silenciosa. A próxima coisa que eu sabia, minha
língua estava deslizando ao longo da mesma fenda, saboreando-a,
buscando entrada. E Darby concedeu. Inclinando a cabeça, ela se
abriu para mim, me acolheu. E eu senti algo dentro do meu peito
fazer o mesmo por ela.

Era diferente de tudo que eu já havia experimentado. Até aquele


momento, beijar Darby tinha sido o ponto alto da minha curta e
patética vida, mas mesmo nesses momentos, eu não tinha sido
capaz de aproveitá-lo completamente. Eu tive tanto medo de
enlouquecer, como sempre. Aquele movimento errado me faria
afastá-la - ou pior, machucá-la. Mas com a promessa de Darby de
que não me tocaria, me senti livre. O pânico desapareceu,
deixando apenas o prazer.

Achei que Darby também se sentia mais livre. Sua coxa


deslizou entre minhas pernas enquanto sua mão deslizou pela
parte de trás da minha cabeça, me segurando com força. Era como
se ela não pudesse chegar perto o suficiente. Ela gemeu baixinho
contra minha boca enquanto eu tomava meu tempo, saboreando-
a, traçando a curva de seus lábios com minha língua, encontrando
um ritmo, e assim que o fiz, Darby combinou com seus quadris.
Nosso ritmo era lento e tortuoso, a agonia mais intensa que eu já
havia sentido.

E através dela, Darby manteve sua palavra. Com uma mão


enfiada entre nossos peitos e a outra arranhando meu couro
cabeludo com as unhas, eu me senti completamente seguro. Não
dela, mas de mim mesmo.

Logo, nossas línguas, nossas respirações e nossos corpos


começaram a colidir cada vez mais rápido. Eu praticamente podia
ver faíscas atrás de minhas pálpebras quando Darby finalmente
afastou sua boca da minha.

— Estou pegando fogo, — ela ofegou, tirando o suéter pela


cabeça.

Olhei para baixo ao longo de nós e observei, hipnotizado, como


um par de seios firmes e redondos ameaçava transbordar por cima
de um sutiã de renda preta. Enquanto os quadris de Darby
rolavam contra meu pau rígido, cuja ponta agora estava visível
acima do cós da minha calça jeans, inchado e brilhante. Enquanto
ela arqueava as costas e choramingava baixinho.

Foda-me.

Eu tinha as habilidades necessárias para tirar uma vida com


minhas próprias mãos ou a trinta metros de distância, mas nada
jamais me fez sentir mais poderoso do que descobrir que eu tinha
a capacidade de fazer Darby Collins fazer essa porra de som.

Quando sua boca colidiu com a minha novamente, eu mexi


meu corpo para que ela não estivesse mais se esfregando contra
meu quadril. Ela estava se esfregando contra mim. O tecido fino de
suas leggings era liso e quente contra minha carne sensível e
exposta, sua necessidade óbvia e enlouquecedora. Eu envolvi
minha mão em volta de sua cabeça, segurando-a para mim
enquanto seus gemidos evoluíram para um apelo cantado. E
quando ela finalmente gozou, com as pontas dos dedos se
enrolando em meu couro cabeludo, devorei seus gritos, engoli-os,
bebi-os como um homem desesperado e faminto. Darby se agarrou
a mim enquanto ela se contorcia de prazer, meu pau esticando
dolorosamente contra meu jeans até que uma palavra sussurrada
e carente me enviou ao limite.

— Kellen.

Apertando-a ainda mais forte, enterrei meu rosto em seu cabelo


enquanto uma onda de êxtase e emoção caiu sobre mim,
torturando meu corpo, destruindo tudo o que eu era ou já tinha
sido antes daquele momento.

Eu não era mais humano ou demônio ou mesmo estava


respirando. Eu era simplesmente dela - mente, corpo e alma negra
amaldiçoada.
Eu sabia que ele tinha ido embora antes de abrir os olhos. Eu
não sabia em que cidade eu estava, em que quarto eu estava, ou
mesmo que dia era, mas sabia que onde quer que eu estivesse,
Kellen não estava. Eu podia sentir isso em meus ossos.

Rolei e olhei em volta, esperando meu cérebro grogue acordar


e começar a trabalhar novamente. A última coisa que eu lembrava
era de adormecer nos braços de Kellen no chão da sala, e depois
disso... doce nada. Eu nunca tinha dormido tão profundamente na
minha vida. Meus músculos formigavam enquanto eu me
espreguiçava e gemia, os resquícios de algum sonho delicioso fora
do meu alcance.

Eu poderia dizer que estava em uma cama, e as lascas de luz


entrando pelas laterais das cortinas opacas iluminavam o quarto
apenas o suficiente para que eu reconhecesse onde eu estava. Em
algum momento durante a noite, Kellen deve ter me carregado para
cima e me colocado na cama.

Sentando-me, sacudi meu estupor sonolento e escutei. Passei


a mão pelo lado do colchão onde ele teria dormido. Estava frio.

O pavor me agarrou como um punho, me puxando para fora da


cama e me arrastando até a janela.
Deslizando a borda da cortina para trás apenas um centímetro
ou dois, espiei para fora. O céu cinza invernal encobriu o sol
nascente e embotou as cores já desbotadas dos contêineres
enferrujados empilhados no porto abaixo. Mas a água do porto
brilhava apesar disso. Assim como a pintura prateada metálica do
Ford Fiesta estacionado na rua.

Eu exalei em alívio.

Deixando a cortina entreaberta para a luz, peguei um moletom


limpo e um par de jeans da minha mala, mas definitivamente
precisaria tomar um banho antes de vesti-los. Memórias da noite
anterior voltaram correndo - de nossos corpos suados e
escorregadios esmagados um contra o outro; do apego
desesperado, necessidade contorcida; do calor que espirrou em
meu estômago e peito quando Kellen finalmente gozou.

O mesmo calor formigante que senti na noite anterior se


espalhou pela minha pele novamente, até que outra memória o
afugentou: o olhar aterrorizado no rosto de Kellen quando ele veio
se deitar perto do fogo. A paralisia. A hiperventilação. Parecia que
eu estava olhando para um espelho. Eu sabia que Kellen tinha sido
abusado pelo padre Henry, eu tinha visto com meus próprios
olhos, mas até aquele momento, eu não tinha ideia de quão ruim
tinha sido.

A imagem dos cachos pretos brilhantes de Kellen espalhados


por todo o chão do sótão sangrento passou por trás dos meus
olhos, e meu estômago revirou. Que outros horrores aconteceram
naquela sala sem janelas? O que mais Kellen suportou em
silêncio?
Eu tinha treze anos na primeira vez que um dos companheiros
de drogas do meu pai invadiu meu quarto no meio da noite. A tinta
do atestado de óbito de minha mãe ainda não havia secado quando
tive minha inocência arrancada de mim. Eu sabia como era
ameaçador quando alguém olhava para o seu corpo depois disso,
quanto mais o alcançava. Eu tinha pelo menos treze anos de
memórias para me lembrar como era o verdadeiro afeto. Eu sabia,
em algum nível, que nem todos os toques doíam.

Eu duvidava que Kellen o fizesse.

Desci o corredor, tão perdida em meus próprios pensamentos


que não ouvi a água correndo até abrir a porta do banheiro e dar
de cara com uma parede de vapor.

— Oh! Deus! Desculpe! — Meus olhos dispararam para o


chuveiro no canto do quarto, e não posso negar que fiquei um
pouco desapontada ao descobrir que a porta de vidro já estava
embaçada.

Eu deveria ter deixado ele ter sua privacidade, mas depois de


acordar sozinha, minha necessidade de estar perto dele não me
deixou sair.

— Na verdade, você se importa se eu escovar os dentes bem


rápido? — Eu não esperei por uma resposta.

Atravessando o pequeno banheiro, peguei minha escova de


dentes, que já estava molhada.

— Você usou minha escova de dentes? — Eu sorri, observando


a silhueta embaçada de Kellen se virar para mim atrás do vidro.

— Depois de ontem à noite, não achei que você se importaria.


Olhei no espelho para ver se eu estava corando tanto quanto
pensei, mas o espelho também estava embaçado. Foi o melhor. Eu
não queria ver o hematoma que eu podia sentir florescendo na
minha bochecha. Queria fingir que tudo o que tinha acontecido
desde a última vez que vi Kellen nunca realmente aconteceu. Como
se eu tivesse entrado em uma máquina do tempo e viajado de um
de seus beijos para outro, contornando toda a escuridão entre eles.

Tomei minhas vitaminas e controle de natalidade e escovei os


dentes no piloto automático enquanto observava Kellen girar
lentamente no spray, com as mãos deslizando sobre o peito. Os
braços dele. Suas coxas.

— Como estão suas costas? — Murmurei em torno da alça de


plástico na minha boca, esperando que ele me dissesse que estava
tudo bem. Que ele poderia ficar no chuveiro o dia todo.

Comigo.

— Ah, é ótimo.

Cuspi e enxaguei a boca. — Eu duvido disso.

O silêncio se estendeu entre nós quando senti o mesmo puxão,


baixo e profundo em minha barriga, que senti na noite anterior,
observando Kellen entrar no lago. Aquele que me mandou seguir.
Aquele que assumiu o controle do meu corpo, me despiu e me
enviou para águas desconhecidas, geladas e sozinhas.

Eu não poderia ter parado se tivesse tentado. Tudo o que pude


fazer foi prender a respiração e contar as batidas do meu coração
enquanto tirava minhas roupas, atravessava o banheiro, abria a
porta de vidro e entrava.
Kellen ficou de pé, de frente para mim, seus ombros largos
bloqueando o spray, e a visão dele me tirou o fôlego. Ele era uma
montanha, coberto de duras extensões de músculos com vales
profundos e extensos no meio. As veias subiam por seus braços
esculpidos como vinhas, e duas grossas saliências levavam do topo
de seus quadris até um longo e grosso pênis que me deu água na
boca.

Eu nunca tinha entendido o desejo antes. Eu não queria


homens. Eu queria evitar os homens. Eu queria me tornar invisível
para os homens. Mas Kellen não era um homem. Ele era um deus.
Poderoso e divino e incrivelmente perfeito. Desde o momento em
que pus os olhos nele, fui cativada por sua beleza sobrenatural.
Sua atenção singular. Sua inteligência silenciosa e calculista. Mas
ver sua virilidade em carne e osso me fez querer cair de joelhos e
adorá-lo.

O peito de Kellen começou a subir e descer mais rápido, suas


narinas queimando com cada inalação, enquanto eu tentava
descobrir o que fazer a seguir.

Fechando a porta atrás de mim, dei um passo em direção a ele,


parando pouco antes de seu pau roçar minha barriga. O olhar
aquecido de Kellen percorreu meu corpo, como o arrastar de um
fósforo pouco antes de pegar fogo.

Prendi a respiração quando ele baixou os olhos e levou a mão


ao meu peito, mas não o tocou. Sua palma pairou ao lado, tão
perto que eu podia sentir o calor irradiando de sua pele pouco
antes de ele erguer a mão mais alto e apertar meu queixo.
Quando ele ergueu o olhar para o meu novamente, as pupilas
de Kellen estavam totalmente dilatadas. Era como se eu pudesse
ver o buraco negro da escuridão girando dentro dele, crescendo a
cada segundo.

— Como você pode suportar isso? — Ele perguntou, sua voz


como uma lixa. — Como você suporta ser tocada depois do que
eles fizeram?

A respiração que eu estava segurando queimou em meus


pulmões antes de finalmente sussurrar: — Nem todos os toques
machucam.

Deslizando a mão do meu queixo para a parte de trás do meu


pescoço, Kellen pressionou sua testa contra a minha. Ele estava
respirando como um dragão, e eu praticamente podia ver a guerra
acontecendo por trás de suas pálpebras fechadas. Inclinando meu
queixo para cima, dei um beijo suave em sua boca carrancuda e
fui recompensado com outro em troca.

Eu estava aprendendo que Kellen podia me beijar sem hesitar,


mesmo quando o resto de seu corpo estava enrolado como uma
cobra, pronto para atacar. E, infelizmente, eu sabia o porquê.
Beijar era mais fácil para mim também, porque eles nunca me
beijaram. Padre Henry provavelmente tinha agido da mesma
forma.

O que me deu uma ideia.

— Kellen? — Eu sussurrei. — Posso te beijar... em outro lugar?

Seu corpo inteiro ficou mortalmente imóvel quando olhei para


cima em seu olhar estremecido.
— Eu não vou tocar em você, — eu disse, virando-me e olhando
para ele por cima do meu ombro para que ele pudesse me ver
entrelaçar meus dedos nas minhas costas.

A garganta de Kellen balançou enquanto seu olhar duro


deslizou para minha bunda nua e as mãos que agora estavam
entrelaçadas lá.

Voltando-me, procurei em seu rosto cauteloso por


consentimento. Kellen usava uma máscara de granito, mas pouco
ajudava a esconder o calor em seus olhos. A saudade. O desejo
cativo e o medo que tudo consome lutando dentro dele.

— Você pode me dizer para parar a qualquer momento. — Dei-


lhe um pequeno sorriso, esperando deixá-lo à vontade. Então, com
uma oração silenciosa, inclinei-me para a frente e pressionei meus
lábios no centro de seu peito.

A água escorria em cascata pelos planos duros do músculo.


Eles subiram abruptamente com sua inspiração repentina e
caíram trêmulos quando ele exalou pela boca.

Quando Kellen parecia pronto, eu fiz isso de novo, alguns


centímetros abaixo, e sorri para mim mesma quando sua
respiração em resposta estava um pouco mais controlada.

Eu nunca tinha sido tão ousada com ninguém. Sexo sempre foi
algo que eu suportei, não gostei. Mas Kellen era diferente. Ele não
queria tirar nada de mim. E saber disso me fez querer dar o mundo
a ele.
Enquanto descia por seu estômago, acrescentei minha língua,
sugando o fluxo de água que descia pela dobra entre seu abdômen
esculpido.

E ele ficou perfeitamente imóvel. Ele mal estava respirando.


Não houve pressão. Nenhuma mão impaciente na minha cabeça.
Nada de conversa suja humilhante. Apenas confiança, medo e
vulnerabilidade crua. Ele estava me dando controle total, e a
liberdade que eu sentia era inebriante.

Eu segurei o olhar de Kellen enquanto caí de joelhos, dando-


lhe tempo para se preparar antes de lentamente estender minha
língua e lambê-lo da raiz à ponta.

O súbito gemido de prazer que deixou seu corpo me fez sentir


mais triunfante do que qualquer coisa que eu já fiz em toda a
minha vida inútil. Eu não sabia exatamente o que tinha acontecido
com Kellen, quanto Padre Henry tinha tirado dele, mas eu esperava
que com cada passagem dos meus lábios sobre sua carne tenra,
eu pudesse ajudá-lo a recuperar um pouco.

Olhei para cima enquanto arrastava minha língua ao longo de


seu comprimento rígido novamente. A cabeça de Kellen estava
inclinada para cima, então eu tive que avaliar sua reação pelo
aperto em sua mandíbula, a forma como seu pomo de Adão
balançava em sua garganta, a rapidez com que seu peito subia e
descia. Seus músculos estavam tensos, as mãos fechadas ao lado
do corpo, mas sua respiração estava diminuindo. E quando
cheguei na ponta...

Hum.

Aquele som de novo. Deus, isso me excitou.


Kellen era tão alto e longo que eu tive que ficar de pé e dobrar
a cintura para levá-lo em minha boca. Mas eu levei meu tempo,
circulando sua coroa inchada com minha língua, aproveitando a
liberdade que ele me deu para explorar, antes de finalmente fechar
meus lábios em torno dele e chupar.

Os joelhos de Kellen dobraram ligeiramente, e eu sorri em torno


de seu comprimento.

Desta vez, quando olhei para ele, encontrei duas piscinas


infinitas de platina derretida olhando para mim, profundas,
quentes e hipnotizantes. Eu segurei seu olhar enquanto
encontrava meu ritmo, girando minha língua sobre sua cabeça
sensível a cada passagem, mas não demorou muito para Kellen
desviar o olhar, seus olhos rolando para o céu enquanto suas mãos
encontravam seu caminho em meu cabelo.

Eu torci meus dedos atrás das minhas costas enquanto o


chupava mais rápido, e Kellen torceu os dedos no meu cabelo com
a mesma força, agarrando-se a mim enquanto lutava pelo controle.
Uma luta que ele estava perdendo rapidamente.

— Foda-se, — Kellen sibilou, mas quando seus quadris


começaram a se mexer, quando seu aperto no meu cabelo ficou
mais forte, uma voz diferente me amaldiçoou dos recessos da
minha mente.

— É por isso que você fugiu esta noite, não é? Para foder uma
velha paixão?

A culpa deslizou em meu estômago, fazendo-o se agitar com


nojo repentino.
— Tirei você da porra da sarjeta, e é assim que você me retribui?
Abrindo as pernas para a porra de um lavrador assim que teve a
chance?

O comprimento de Kellen roçou a parte de trás da minha


garganta, e eu engasguei violentamente. Eu senti como se fosse
vomitar. Eu não conseguia respirar. Eu não conseguia respirar.

— Sua pequena... porra... puta.

Então, assim que comecei a entrar em pânico, o mundo ao meu


redor desabou. Eu não conseguia mais sentir o jato do chuveiro,
ou a carne na minha língua. Eu não conseguia mais ouvir a voz de
John, ou a terrível verdade em suas palavras. Tudo que eu podia
sentir, enquanto flutuava até a lua, era tristeza porque eu queria
fazer algo bom para Kellen e falhei.

Assim como eu sempre fiz.


A escuridão espreitava nas bordas da minha visão enquanto eu
lutava para manter meus demônios afastados. Mas não eram os
monstros comuns que eu estava lutando – aqueles que ameaçavam
me agarrar e me arrastar de volta para aquele sótão úmido e
escuro, aqueles que me diziam para lutar ou fugir. Em vez disso,
era o poço negro e sem fundo da vergonha que apodrecia dentro
de mim que não me deixava sair da minha própria cabeça.

Tentei ignorá-lo, concentrar-me apenas em Darby. Eu enfiei


minhas mãos em seu cabelo grosso e molhado. Eu assisti seus
dedos se torcerem e se enrolarem um no outro onde eles
descansavam em sua bunda arredondada e arqueada. E me
concentrei na fodida felicidade de ter sua doce boca rosa em volta
do meu pau. Mas nem isso poderia me distrair do fato de que eu
era um pedaço de merda por deixá-la fazer isso.

Eu merecia apodrecer no inferno pelas coisas que fiz, não ter o


anjo mais perfeito de Deus de joelhos diante de mim. Era errado
deixá-la me chupar como se eu fosse um príncipe encantado,
quando a verdade sobre mim a faria correr na direção oposta.
Darby estava apenas trocando um demônio por outro, e ela nem
sabia.
Meus punhos se apertaram em seu cabelo enquanto eu
considerava puxá-la para longe de mim. Dizendo a ela para sair
novamente. Forçando-a a fazer isso desta vez. Mas meu corpo não
estava ouvindo. Enquanto Darby me chupava cada vez mais
rápido, meus quadris encontraram seu ritmo, empurrando com
cada puxão suave de sua boca enquanto o prazer imaculado me
apoderava de suas garras.

— Foda-se, — sibilei, me odiando por perder a batalha entre


minha consciência e meu pau.

Minhas bolas apertaram. Meu eixo endureceu e estremeceu em


sua boca. Mas pouco antes de me render à escuridão e à auto-
aversão que eu sabia que viria, ouvi algo que me trouxe de volta à
terra.

Um som que eu tinha ouvido dezenas de vezes antes.

Um som que eu tinha causado dezenas de vezes antes.

A mordaça úmida e abafada de alguém sendo engasgado.

Eu me afastei imediatamente, e com minhas mãos ainda em


seu cabelo, inclinei a cabeça de Darby para trás para poder ver seu
rosto. Mas ela se foi. Um fio de saliva pendia de seus lábios
ofegantes e entreabertos enquanto ela olhava, sem foco, para o
lado do chuveiro. Suas mãos estavam soltas onde descansavam
em sua bunda, e quando eu a guiei para ficar de pé, lágrimas
gêmeas rolaram por seu rosto vazio e sardento.

— Foda-se. Darby, olhe para mim.


Mas ela não iria. Em vez disso, ela fechou os olhos distantes
completamente enquanto seu rosto se contorcia em um soluço
silencioso.

Um rugido saiu de meus pulmões quando bati com o lado do


meu punho na parede de azulejos.

Darby recuou de mim com todo o seu corpo, fazendo-me sentir


ainda mais como um monstro do que já me sentia.

Estendi a mão para ela, mas puxei minhas mãos para trás no
último segundo. Eu não sabia se eu poderia tocá-la assim. Eu não
sabia se poderia tocá-la. Mas quando Darby envolveu seus
próprios braços ao redor de seu belo corpo e apertou, eu queria
que esses braços fossem meus mais do que eu já quis qualquer
coisa.

Eu esperava que ela lutasse comigo. Eu esperava que ela


gritasse. Mas quando a peguei e a levei para o quarto, Darby se
agarrou a mim. Ela colocou os braços em volta dos meus ombros
e as pernas em volta da minha cintura, e quando ela enterrou o
rosto no meu pescoço, eu queria morrer.

Sentado na beirada da cama, agarrei seu corpo molhado e


trêmulo contra meu peito, beijei seu rosto e sussurrei mil
desculpas inaudíveis enquanto ela soluçava. Cada lágrima era
como uma adaga na porra do meu coração. Eu sabia que isso ia
acontecer. No momento em que Darby me beijou no lago, eu sabia
que tinha deixado isso ir longe demais. Eu sabia que acabaria
machucando ela. E eu fiz isso de qualquer maneira.

Darby começou a esfregar o rosto para frente e para trás onde


estava pressionado contra a curva do meu pescoço, como se
estivesse respondendo não a uma pergunta que eu ainda não havia
feito. Senti suas palavras sussurradas zunindo contra minha
clavícula antes que eu pudesse entender o que ela estava dizendo.

— Eu o ouvi, Kellen. Eu ouvi sua voz. É como se ele estivesse


ali.

Meu coração batia contra o dela quando percebi o que estava


acontecendo.

Darby não estava chateada com o banho.

Ela estava finalmente processando o que tinha acontecido na


noite anterior. Talvez incontáveis noites antes.

— Shh... — eu disse, segurando-a mais perto, envolvendo seu


longo cabelo molhado em volta do meu punho. — Você está
ouvindo minha voz agora, e eu juro, enquanto eu estiver
respirando, ninguém nunca vai te machucar assim de novo.
Entendeu?

Darby inspirou profundamente, mas não disse nada.

Puxei sua cabeça pelos cabelos em meu punho, delicadamente,


mas com firmeza, até ficarmos cara a cara. Os tristes olhos de
esmeralda de Darby brilharam enquanto contemplavam a ira que
vivia logo abaixo da superfície dos meus.

— Entendeu?

Engolindo em seco, ela acenou com a cabeça, apenas


quebrando nosso olhar o tempo suficiente para pressionar um
beijo suave e demorado em meus lábios. Ficamos assim por vários
segundos e, no silêncio, percebi que sua carne lisa e quente estava
pressionada contra meu pau também.
— Sinto muito, — ela finalmente sussurrou antes de voltar seu
rosto para a curva do meu pescoço. — Me desculpe, eu estou tão
fodida.

Puxando sua cabeça para trás novamente, soltei uma risada


sem humor enquanto olhava em seus olhos arregalados e
preocupados. — Confie em mim, — eu disse, dando-lhe um sorriso
malicioso, — você é a pessoa menos fodida nesta sala.

Os lábios inchados de Darby se abriram em um sorriso de tirar


o fôlego e, naquele exato momento, fiz uma promessa a mim
mesmo. Eu não merecia respirar o mesmo ar que ela, mas iria.
Daquele momento em diante, eu seria o cavaleiro branco que ela
via quando olhava para mim. Darby merecia um herói, e eu seria
amaldiçoado se fosse qualquer outro.

Seu sorriso desapareceu e seus olhos caíram quando um rubor


inundou suas bochechas. Então, os quadris de Darby começaram
a se mover.

Deslizando as pontas dos dedos pela parte de trás da minha


cabeça, ela repetiu a promessa da noite anterior. — Podemos ficar
assim.

E eu balancei a cabeça antes de reivindicar sua boca como um


maldito pagão.

Darby choramingou contra meus lábios enquanto deslizava


para cima e para baixo em meu eixo, sempre mantendo as mãos
acima da minha cintura, sempre tão cuidadosa para não tocar, e
a magnitude desse presente quase me quebrou. Eu não tinha
pensado que era possível estar tão perto de outra pessoa sem
pânico, culpa ou flashbacks. Mas Darby tinha encontrado uma
maneira. E quando seu corpo se moveu até minha coroa inchada,
quando ela mordeu o lábio e prendeu a respiração e olhou para
mim com uma pergunta silenciosa em seus olhos, respondi com
uma única flexão de meus quadris.

Uma felicidade quente e sedosa me envolveu, espalhando-se


sobre minha pele como a luz do sol, enquanto Darby se acalmava,
permitindo que o significado do momento se estabelecesse. Eu
nunca tinha experimentado nada tão puro. Tão perfeito. Selei
meus lábios sobre os dela quando ela começou a subir e descer,
ajustando-se ao meu tamanho antes de estarmos totalmente
unidos. E uma vez que eu estava tão dentro dela quanto pude,
envolto em um sonho que eu nunca pensei que se tornaria
realidade, algo dentro de mim se despedaçou.

Darby ofegou em minha boca enquanto eu revirava meus


quadris sob ela, empurrando ainda mais fundo, precisando enchê-
la, reivindicá-la, ser consumido por ela.

Com seu cabelo molhado ainda enrolado em meu punho, puxei


sua cabeça para trás com cuidado para poder olhar para ela.

Os olhos de Darby estavam semicerrados, mas focados.

— Fique comigo, — eu implorei. — Por favor.

Novas lágrimas brotaram de seus olhos quando ela assentiu, e


seu doce sorriso de resposta roubou o fôlego de meus pulmões...
pouco antes de eu beijá-la.

Com sua língua na minha boca e seu corpo quente em volta do


meu, eu estava perdido. Darby apertou contra mim, fazendo
círculos lentos com seus quadris enquanto eu balançava nela, e
com cada estocada, eu sentia a pressão aumentar. Eu segurei o
máximo que pude, nunca querendo que o momento acabasse, mas
quando senti seus músculos começarem a se contrair, senti seus
dentes capturarem meu lábio inferior e suas unhas arranharem
minha nuca enquanto ela choramingava em seu orgasmo, eu gozei.

Uma inundação de prazer quente derretido e mais de duas


décadas de dor surgiram através de mim enquanto agarrei o corpo
de Darby ao meu e deixei tudo ir. E ela bebeu avidamente, seu
corpo sugando de mim como se ela não pudesse ter o suficiente.
Como se minha escuridão a alimentasse, a preenchesse. Como se
ela estivesse morrendo de fome por mim e só por mim.

A necessidade de preenchê-la me dominou. E não parou com o


meu corpo. Eu queria dar a ela tudo o que eu tinha. Minha maldita
vida. Meu coração partido. Minha alma odiosa e condenada ao
inferno. Ela poderia fazer com ela o que quisesse. Eu não me
importava. Nada disso me pertencia mais, e não pertencia desde
que eu tinha dez anos.

— Estou apaixonado por você, Darby, — eu disse, pressionando


meus lábios em seu ombro. — Sempre estive. E se eu tivesse a
porra da certidão de nascimento, pediria que você se casasse
comigo agora mesmo.

Meu coração trovejou em meu peito quando Darby se sentou e


olhou para mim. Seus olhos verdes brilharam de admiração
enquanto um largo sorriso transformava seu rosto coberto de
lágrimas em algo que eu não via desde que éramos crianças. Algo
alegre. Algo leve. O peso de nossas vidas se dissipou e, por um
momento, Darby era Darby novamente - a garota sardenta de
galochas amarelas que podia encontrar magia em uma pedra ou
um pedaço de pau quebrado... ou um mudo órfão de mãe de
Glenshire.

Então, ela levantou a mão esquerda e mexeu o dedo anelar. —


Você já fez.

Olhei para o local onde costumava estar um diamante do


tamanho de um punho e encontrei três pequenas sardas idênticas
às minhas.

Minhas sobrancelhas franziram em confusão quando seu


sorriso se alargou.

— Isso vai parecer loucura, mas... ontem, eu conheci uma


mulher na floresta que disse que você e eu fomos ligados por toda
a vida por um... por um espírito do lago. — Ela riu. — Naquele dia
em que caí nas amoreiras e nos beijamos na água. Ela viu as
sardas no meu dedo e disse que eram a marca da bênção do
espírito. — Darby entrelaçou seus dedos nos meus para que
nossas faixas de sardas se alinhassem. — Eu não acreditei nela no
começo, mas você também as tem.

Eu balancei minha cabeça em descrença enquanto olhava para


nossas mãos unidas. Enquanto os eventos daquele dia se repetiam
em minha mente. Eu memorizei cada segundo do nosso tempo
juntos, mas aquele momento no lago estava tatuado em minha
alma.

— É fíor bhur ngrá. tugaim mobheannacht daoibh, — Eu recitei,


balançando a cabeça novamente enquanto olhava para ela. — Eu
ouvi essas palavras, em voz de mulher, logo depois que nos
beijamos no lago. Eu nem falava irlandês na época, mas nunca as
esqueci.

— O que isso significa?

Eu sorri. — Seu amor é verdadeiro. Você tem minha bênção.

— Cale-se. — Darby riu, uma lágrima escorrendo por uma


bochecha rosada. — Você está falando sério?

Eu balancei a cabeça. — Eu pensei que estava ficando louco.

O calor nos olhos de Darby era de tirar o fôlego quando ela se


inclinou para frente e deu um beijo sorridente em meus lábios.

— Eu também estou apaixonada por você, Kellen Donovan, —


ela sussurrou, rolando os quadris enquanto eu crescia dentro dela.
— Sempre serei.
Ainda era cedo quando saímos. Kellen tinha dito que todas as
casas naquele quarteirão eram B&B alugadas, incluindo aquela
em que tínhamos dormido, e precisávamos ir antes que eles
começassem a entregar café da manhã e limpar as unidades
vazias.

Era surreal caminhar com Kellen em plena luz do dia. O porto


já estava cheio de barcos, o sol abria caminho por entre as nuvens
e cada casa pela qual passávamos era pintada de uma cor diferente
e alegre. Depois do tornado de escuridão e violência ao qual
sobrevivemos por pouco na noite anterior, foi como acordar em Oz.

Até que vi o carro.

Ou o que restou dele.

Três das janelas estavam quebradas e a porta do motorista


estava salpicada de buracos de chumbo grosso, mas de alguma
forma o para-brisa ainda estava intacto.

Depois de deixar nossas malas no porta-malas, Kellen deu a


volta e derrubou o vidro restante das janelas quebradas usando a
lateral de seu telefone celular. O som trouxe de volta memórias da
noite anterior, mas em vez de terror, tudo o que senti foi um calor
formigante subindo pelo meu pescoço quando me lembrei do peso
deliciosamente quente e à prova de balas do corpo de Kellen
cobrindo o meu.

Abri a porta do passageiro e limpei o vidro quebrado de ambos


os bancos antes de me sentar, como se fosse a coisa mais normal
do mundo, mas quando Kellen abriu a porta do motorista, foi
quando meu coração começou a disparar.

Foi a primeira vez que realmente o vi, o adulto dele, à luz do


dia. Ele era de tirar o fôlego. Fascinante. Um tumulto de
contradições. Ele tinha traços elegantes, corpo esculpido e pele lisa
de um anjo esculpido em mármore, mas seu corte de cabelo preto,
barba por fazer e roupas totalmente pretas subvertiam sua beleza.
Encobriu-o na escuridão. Muito parecido com a jaqueta de voo que
ele usava para cobrir os buracos de tiro e manchas de sangue em
sua camiseta.

A amargura que senti ao vê-lo em seu corpo em vez do meu foi


rápida e aguda.

Kellen deslizou o banco do motorista para trás alguns


centímetros antes de entrar, e quando o fez, parecia que a
temperatura no carro despencou pelo menos dez graus. Ele olhou
para a frente, segurando o volante com as duas mãos pelo que
pareceram minutos antes de finalmente se virar para mim.

Eu sabia o que estava por vir. Ou, pelo menos, pensei que sim.

— Kellen, — eu disse, levantando minhas mãos, — eu sei que


você quer que eu vá à polícia, mas eu te disse ontem à noite...

— Quero que você saia do país comigo.


Sentei-me em silêncio atordoado, cativado pela intensidade de
seu olhar.

— Eu conheço um jeito, — continuou ele, — mas se fizermos


isso, nunca mais poderemos voltar. Teremos que cortar relações
com todos, obter novas identidades. Não é justo o que estou
pedindo, mas...

— Você está desistido de tudo. — Minha boca se abriu.

Eu sabia que Kellen tinha um trabalho perigoso, algum tipo de


coisa secreta das forças especiais, mas não tinha ideia de que ele
estava pensando em desertar do exército por causa disso.

Ou... por minha causa.

Quando Kellen não respondeu, eu me inclinei no pequeno


espaço e dei um beijo em sua bochecha de homem abrasivo e na
macia e infantil escondida embaixo. Então, inclinei-me para trás
apenas o suficiente para olhá-lo nos olhos e perguntei com um
sorriso: — Então, para onde estamos indo?

A tensão rolou pelos ombros de Kellen quando ele me agarrou


pela parte de trás da cabeça e selou sua boca sobre a minha. No
momento em que nossos lábios se encontraram, uma onda de
formigamento tomou conta de mim, cobrindo minha pele com
arrepios e inundando cada lugar vazio com necessidade. Eu sabia
que Kellen sentia isso também. Quando ele finalmente quebrou o
nosso beijo, foi com olhos semicerrados e ofegantes, lábios
entreabertos.

— Tem certeza? — Ele perguntou, suas pupilas negras


cravadas nas minhas quando ligou a ignição.
— Depende de onde estamos indo. — Dei de ombros, esperando
parecer sensual e legal, mas o sorriso de orelha a orelha em meu
rosto me entregou.

Eu teria seguido Kellen pelos portões do inferno.

— Nova York, — disse ele, passando o polegar sobre meu lábio


inferior antes de mudar para dirigir e dar atenção à calçada à
frente.

Senti falta de suas mãos e olhos imediatamente.

Ele saiu do beco e entrou em uma estrada. — É o lugar perfeito


para recomeçar. Toneladas de pessoas, que falam inglês, voos
baratos saindo de Dublin e, o mais importante, a um oceano de
distância daqui.

Kellen olhou para mim bem a tempo de me ver torcer o nariz.


— O que?

— Nada, — puxei meu cabelo sobre meu ombro e comecei a


tecê-lo em uma trança rápida. O vento no carro estava fora de
controle, graças à falta de três vidros. — Está bem. Nova York está
bem.

— Onde você quer ir? — Ele perguntou, levantando a voz


ligeiramente para competir com o ar agitado.

— Não sei. — Dei de ombros, um sorriso melancólico puxando


meus lábios. — Em algum lugar mágico. Romântico. Em algum
lugar como... a Transilvânia.

Kellen bufou. Foi o som mais fofo que eu já ouvi. —


Transilvânia?

— Ouvi dizer que lá é lindo. Castelos, montanhas, florestas…


— Você sabe que o Conde Drácula foi baseado em Vlad, o
Empalador, certo? Um homem que decorou seu quintal com os
corpos empalados de seus inimigos.

— Bem, talvez eles merecessem. — Dei de ombros.

Kellen parou, seus olhos nunca deixando a estrada.

— O que? — Perguntei.

Seu pomo de Adão deslizou para cima e para baixo em sua


garganta. — Você poderia... amar um homem assim?

— Como Vlad, o Empalador? — Eu ri. — Não sei. Talvez? Se ele


fez isso pelos motivos certos.

O aperto de Kellen aumentou em torno do volante. Observei os


nós dos dedos ficarem brancos enquanto ele olhava para a frente.

— E se ele fez isso sem motivo algum? — Ele finalmente


perguntou. — E se fosse apenas o trabalho dele e ele fosse o único
odioso o suficiente para fazê-lo?

Algo em seu tom, na flexão de sua mandíbula, me disse que


Kellen não estava mais falando sobre Vlad. Depois que eu vi o que
ele fez com John, a experiência estranha e calma que ele
demonstrou, não havia dúvida em minha mente de que Kellen
tinha feito isso antes. Fora treinado para isso. Seja qual for a
agência para a qual ele trabalhava, eles pegaram um adolescente
perdido sem ter para onde ir e o transformaram em um assassino.
E agora, ele não tinha saída.

Meu coração se partiu por ele.

— Vlad tinha duas esposas, — eu disse, querendo


desesperadamente tocá-lo. — Sua primeira esposa se matou para
evitar ser capturada por seu irmão, e isso o destruiu. Foi seu amor
por ela que inspirou o romance de Bram Stoker. Drácula. E sua
segunda esposa se apaixonou por ele enquanto ele estava na
prisão. Ela se casou com ele para libertá-lo. Eles tiveram dois filhos
juntos antes de ele ser morto em batalha.

Kellen olhou para mim com o canto do olho. — Como você sabe
tudo isso?

— Eu escrevi um artigo sobre isso no semestre passado. — Eu


sorri. — Sou formada em literatura inglesa.

— Claro que sim, — disse Kellen, sua voz grossa com pesar
quando ele balançou a cabeça lentamente.

— Quero dizer, eu era uma estudante de literatura inglesa, —


corrigi, recusando-me a deixar meu sorriso desaparecer. — E eu
serei novamente. Tenho certeza de que eles têm excelentes
universidades na Transilvânia.

Kellen soltou uma risada silenciosa, e eu tirei uma foto mental


dele assim. Olhos enrugados nos cantos, lábios carnudos, cílios
longos, um arco-íris de lojas e pubs coloridos borrando-se atrás
dele enquanto passávamos. Mas assim que capturei a imagem, ela
desapareceu. Afugentado pelo lamento súbito e estridente de uma
sirene da polícia.

Eu me virei para olhar pelo para-brisa traseiro, mas antes que


eu pudesse, Kellen estendeu a mão, prendendo-me no assento. —
Não deixe que eles vejam seu rosto.
Afundando em meu assento, olhei para o espelho lateral e vi
um carro branco com luzes azuis piscando e a palavra GARDA
estampada no capô se aproximando de nós em um ritmo rápido.

— Talvez eles não estejam atrás de nós, — eu disse, virando


minha cabeça para Kellen. — Você não fez nada de errado. Talvez,
se você encostar, eles passem direto por nós.

— Oh não. Eles estavam esperando por nós. Filhos da puta.

Meu coração começou a bater forte. — Você acha que já fui


dada como desaparecida?

— Não, — disse Kellen categoricamente, seus olhos correndo


entre o espelho retrovisor e a estrada. — Uma vez que seu pessoal
em casa perceba que você e seu amigo não estão respondendo
mensagens de texto ou e-mails, eles ainda terão que esperar vinte
e quatro horas antes de registrar um relatório.

— Então, eles não estão procurando por mim, e você não estava
em alta velocidade nem nada, talvez eles apenas lhe deem uma
multa por não ter sua identidade, e nós podemos...

Meu corpo de repente se lançou para a frente, o cinto de


segurança me prendendo no pescoço.

— Eles acabaram de nos atropelar? — Eu tossi, olhando para


o espelho lateral bem a tempo de vê-los avançar novamente.

— Kellen! — Eu gritei, meu corpo deslizando para o lado na


porta enquanto ele puxava o volante para a direita.

Mas não foi rápido o suficiente. O carro da polícia bateu no


canto do nosso para-choque traseiro quando entramos em uma
rua lateral, fazendo-nos girar até ficarmos de frente para a rua que
havíamos acabado de sair.

Batendo em marcha à ré, Kellen pisou no acelerador e minha


cabeça foi jogada para frente novamente. Ele cortou o volante e nos
girou de volta, decolando no momento em que a sirene voltou e as
luzes azuis se espalharam pelo interior do carro.

— A organização para a qual trabalho tem os guardas em seus


bolsos, — Kellen gritou sobre o vento uivando pelas janelas
abertas. — Eu deveria saber que eles estariam procurando por um
Fiesta prata hoje. Foda-se! — Ele bateu a mão contra o volante.

— Hã, Kellen? — Levantei um dedo, apontando para as fábricas


e prédios de pedra que passavam à nossa direita.

Atrás deles, ao longe, pude ver um trem verde e amarelo


atravessando um campo, indo exatamente para o mesmo ponto
que nós.

— Assuma o volante, — Kellen ordenou, me soltando antes


mesmo de processar seu pedido.

Disparando para o volante, agarrei-o assim que Kellen chegou


atrás dele e puxou a mesma arma preta de sua cintura que ele
brandiu na noite anterior.

Merda, merda, merda.

— Agora, deslize até aqui e ponha o pé no pedal.

Eu tentei manter meus olhos na estrada e não no trem gritando


em nossa direção enquanto eu deslizava para o banco do motorista
com ele. O carro era tão pequeno e Kellen era tão grande que tive
que sentar em sua coxa para caber. Segurei o volante com as duas
mãos enquanto tirava o pé do acelerador e o substituí pelo meu.

— Bom. Agora, faça o que fizer, não diminua a velocidade. Nem


por um segundo.

A viatura nos atingiu novamente, só que desta vez eu não


estava usando cinto de segurança. Meu corpo voou para frente sem
restrições, batendo no volante. O ar deixou meus pulmões em uma
explosão repentina e violenta quando Kellen agarrou o volante para
nos impedir de desviar para o tráfego que se aproximava.

— Respire, — disse ele, pressionando um beijo na minha


têmpora. — Respire e olhe para a frente. Em nenhum outro lugar.

Então, soltando a trava de segurança de sua arma, ele se virou


e atirou.

A explosão soou como um canhão em meu ouvido e foi seguida


por um estrondo de ranger de dentes segundos depois. Eu
estremeci e pressionei o pedal do acelerador o mais forte que pude,
pavor gelado se infiltrando em minhas veias enquanto eu
considerava o que Kellen poderia ter acabado de fazer.

Ele me disse para não olhar, mas eu precisava, eu tinha que


saber. Olhando pelo espelho retrovisor, quase ri de alívio quando
vi os dois policiais vivos e bem, o carro deles esmagado contra um
poste telefônico e o pneu dianteiro mutilado além de qualquer
reconhecimento. Mas meu alívio rapidamente se transformou em
horror quando o que estava no banco do carona levantou sua
própria arma, se inclinou para fora da janela e apontou
diretamente para nós.
— Abaixe-se! — Kellen gritou, curvando-se sobre mim quando
o para-brisa traseiro explodiu atrás de nós.

Seu pé pisou no meu quando a explosão ensurdecedora de uma


buzina de trem encheu o vagão. Então, por uma fração de segundo,
ficamos sem peso. O peso de Kellen saiu de cima de mim quando
pousamos do outro lado dos trilhos, um trem de passageiros
sibilando atrás de nós e um rio de sangue correndo pelos meus
ouvidos.

Eu lentamente soltei o volante enquanto Kellen nos conduzia


para o estacionamento da Estação Kent. Ele encontrou um lugar
o mais longe possível da estrada e, quando desligou o motor,
percebi que estava tremendo.

Puxando-me para seu peito, Kellen beijou o topo da minha


cabeça. Eu podia sentir seu coração batendo, quase tão rápido
quanto o meu. Abrindo sua jaqueta, ele envolveu ambos os lados
ao meu redor, e o calor de seu corpo instantaneamente acalmou
meus músculos trêmulos.

Um milhão de sentimentos não ditos passaram entre nós


enquanto nos agarrávamos e recuperávamos o fôlego.

Alívio.

Raiva.

Choque.

Temor.

Confusão.

Preocupação.
Gratidão.

Culpa.

Mas quando Kellen respirou fundo e trêmulo e finalmente falou,


suas palavras foram claras e determinadas, desprovidas de
qualquer emoção. — Precisamos seguir em frente.

Ele saiu do carro, puxando-me com ele, antes mesmo de eu


terminar de assentir.

Eu o segui em transe, meu coração ainda disparado, minha


mente totalmente em branco, enquanto ele abria o porta-malas e
abria o zíper da mala de grife de John.

— Deixe seu telefone e cartões de crédito aqui, — disse ele,


despejando todos os pertences do meu ex no porta-malas. — Eles
vão rastreá-los assim que seu desaparecimento for relatado.

Milhares de dólares em roupas, sapatos, relógios e produtos de


higiene caíram em uma pilha - com meu telefone e bolsa sendo a
cereja no topo - antes de Kellen levantar sua enorme mochila preta
e enfiar tudo na mala agora vazia de John. Parecia que estava cheio
de canos de chumbo e parecia tão pesado quanto, mas não
perguntei o que havia dentro. Ele não teria me contado e,
honestamente, eu realmente não me importava. Só havia uma
coisa que eu queria naquele momento - uma coisa simples,
estúpida e preta brilhante.

Puxando uma das camisas de John para fora da pilha, eu a


segurei com as duas mãos, meus polegares deslizando pelo
algodão enquanto eu a levava ao meu nariz. Não tinha o cheiro
dele.
Bom.

Desdobrei-o e segurei-o bem na altura que estaria se John o


estivesse usando. Então, virei-me para Kellen e o segurei alguns
centímetros mais alto.

Kellen enfiou sua camiseta ensanguentada e rasgada por balas


em uma lata de lixo do lado de fora da Estação Kent enquanto
caminhávamos de braços dados - ele vestindo uma camisa branca
Armani e eu vestindo uma jaqueta de voo deliciosamente quente
com cheiro de Kellen. A camisa de John era um pouco pequena
demais, então Kellen arregaçou as mangas até os cotovelos e
deixou o primeiro botão aberto. A visão era absolutamente
indecente.

Ao contrário das estações de trem em Atlanta, não havia


detectores de metal, nem bilheterias, nem policiais com cães
farejadores de drogas ou bombas. Kellen simplesmente comprou
duas passagens só de ida em uma máquina e, cinco minutos
depois, estávamos embarcando em um trem verde e amarelo para
Dublin com uma de todas as opções do café ao lado da plataforma.
Nossa mesa no trem era um buffet de café quente, chá com
biscoitos, bolos, frutas e sanduíches - um café da manhã digno de
um aniversário falso - mas quando nos afastamos da estação e
Kellen colocou o braço em volta de mim, eu não podia trazer-me
para comer uma coisa.

Eu já estava estourando.
Enquanto eu cochilava no trem - embalada para dormir pelo
calor de Kellen, o campo Irlandês sem fim rolando pela minha
janela, e o fato de que ninguém estaria nos perseguindo ou
atirando nas próximas horas - Kellen estava ocupado. Ele
procurou em todos os locais de aluguel de curto prazo lugares
perto da estação de trem Dublin Heuston com disponibilidade
naquela noite e se estabeleceu em uma casa de campo isolada,
com proprietários de fora da cidade e parecia – desonesto - o
suficiente para não possuir sistema de segurança.

O que era importante porque teríamos que invadir novamente.

Kellen disse que seu apartamento não era mais seguro, e como
ele não tinha identidade nem cartão de crédito e eu não podia usar
o meu, ficar em um hotel ou albergue estava fora de questão. Eu
me senti mal por me esconder, mas Kellen havia deixado dinheiro
suficiente na mesa da cozinha do último lugar em que ficamos para
cobrir o aluguel por uma semana, então suponho que funcionou
para todos.

O chalé que ele havia encontrado ficava do outro lado do


Phoenix Park da estação de trem, então passeamos pelo espaço
verde de mãos dadas, apontando para veados selvagens e rolando
nossas malas atrás de nós como um casal de turistas. Mas Kellen
estava tenso. Eu pensei que era todo o espaço aberto. Ele estava
constantemente examinando, apenas meio ouvindo o que eu
estava dizendo. Ele não pareceu relaxar de novo até que deixamos
o parque e seguimos por uma rua lateral sombreada, depois outra
e depois outra.

A casa é a última em um beco sem saída, isolada e afastada da


rua. Parecia ter sido desenhada por uma criança - um pequeno
quadrado branco com um telhado triangular, uma porta azul
brilhante e uma única janela debruada de azul. A grama do quintal
era quase toda marrom, e a jardineira da janela transbordava de
flores mortas, mas a hera estava florescendo - crescera até a
metade da parte inferior da casa.

Era perfeito.

Nós andamos na ponta dos pés até a porta dos fundos, mas
Kellen nem precisou chutá-la.

O interior parecia uma cápsula do tempo do século XIX.


Paredes de gesso, uma lareira de tijolos caiados, móveis de
madeira rangentes e pisos de madeira ainda mais rangentes. Havia
tomadas elétricas e lâmpadas, mas algo não parecia certo em
acendê-las. A tecnologia moderna e aquele chalé simplesmente não
combinavam.

Kellen me observou com diversão silenciosa enquanto eu


vagava pelo espaço. O banheiro tinha uma banheira com pés que
havia sido convertida em chuveiro, e o quarto antiquado tinha uma
escada de madeira que levava a um recorte quadrado no teto.

Kellen encostou-se no batente da porta, sorrindo enquanto eu


olhava para frente e para trás entre ele e o buraco acima de mim.
— Vá em frente, — disse ele, erguendo o queixo. — Alguém tem
que garantir que não haja fantasmas lá em cima.

Algo em seus olhos me dizia que ele sabia exatamente o que


havia lá em cima e, de repente, eu não conseguia subir rápido o
suficiente.

No momento em que minha cabeça emergiu pelo alçapão no


chão, um suspiro explodiu em meus pulmões. A luz do sol entrava
por uma grande janela de mansarda, revelando um recanto de
leitura digno de um sultão. Onde o resto da casa era simples e
pitoresco, este pequeno espaço estava cheio de cor e textura.
Camadas de tapetes exóticos, almofadas de veludo e almofadas
com borlas cobriam o chão. Fileiras de livros encadernados em
couro cor de terra cobriam as paredes. E cruzando acima de tudo,
como os laços soltos de um espartilho, havia metros e metros de
delicadas luzes de fadas. Seguindo a ponta do fio até uma saída na
parede, estendi a mão e liguei o interruptor acima dele,
maravilhada com o fato de todo o espaço brilhar e piscar como a
luz do fogo.

— Não é a Transilvânia, mas é o lugar mais mágico que pude


encontrar a uma curta distância da estação Heuston.

Olhei para baixo para encontrar Kellen de pé na parte inferior


da escada, as mãos nos bolsos, as sobrancelhas juntas em uma
chama devastadora.

— Oh meu Deus, você tem que ver! — Acenei para que ele se
levantasse e fiquei de um lado da escada enquanto seu corpo
grande e quente preenchia o espaço ao meu lado.
Kellen deu ao recanto um olhar obrigatório fugaz antes de
voltar sua atenção para mim. Seu olhar cinza de aço suavizou
quando ele afastou uma mecha de cabelo - ainda emaranhado e
varrido pelo vento de nossa perseguição anterior - longe do meu
rosto e sussurrou: — Linda.

Minha pele formigou com aquela única palavra, aquele simples


toque. Isso e a percepção de que estávamos sozinhos. De novo.

— Devo confessar, — seus olhos caíram sobre meus lábios


enquanto seu polegar traçava sua forma, — quando vi esta sala,
as atividades que me vieram à mente não eram exatamente
literárias, mas terão que esperar. Temos um lugar para estar.

— Só um beijo? — Eu respirei, olhando para ele através de


meus cílios baixos.

O polegar de Kellen rolou meu lábio inferior para baixo para


exagerar meu beicinho. Ele olhou para minha boca pelo que
pareceram anos, então pressionou seus lábios na minha testa.

— Quando voltarmos, — ele sussurrou, — eu vou te beijar em


qualquer lugar que você quiser.

Evidentemente, onde quer que estivéssemos indo, a


pontualidade era importante.

Enquanto caminhávamos de volta para o Phoenix Park, Kellen


explicou que seríamos apanhados e levados para um local não
revelado para nos encontrarmos com alguém chamado The
Butcher, que poderia nos ajudar a obter novas identidades. Ele
disse que eu deveria fingir estar lá contra a minha vontade porque
esse cara pensava que Kellen era um cara mau e ele tinha que
manter as aparências.

Uma vez que nosso carro apareceu, não foi difícil fingir que não
estava animada para entrar. Era um grande caminhão baú branco.
Do tipo que sua mãe te avisou para ficar longe quando criança.

Sem marcações.

Sem janelas.

Um homem baixo e atarracado com uma espessa barba preta


saiu do banco do motorista. Ele acenou para Kellen em saudação
e me deu um olhar curioso e superficial antes de abrir as portas
traseiras. Uma explosão ártica me deu um tapa no rosto junto com
o cheiro sutil de carne crua e refrigerada.

Quando olhei para dentro, descobri as carcaças de mármore


vermelho e branco de pelo menos uma dúzia de animais não
identificáveis pendurados em ganchos no teto. Meu estômago
revirou quando Kellen me puxou para dentro do veículo pelo meu
braço. Sentamos em um banco de madeira preso ao lado da van e,
assim que as portas se fecharam, mergulhamos na escuridão.

Eu queria me aconchegar ao lado de Kellen, perguntar a ele


para onde estávamos indo, quem diabos era esse açougueiro, mas
sua linguagem corporal era ainda mais fria do que as fatias de
carne balançando na nossa frente. Não que eu pudesse vê-los. A
única coisa que pude ver foi uma pequena luz vermelha no canto
do teto. Apontou diretamente para nós.

— Isso é uma câmara? — Eu sussurrei, esfregando meu nariz


para esconder minha boca enquanto falava.
— Mmmm. — O tom da voz de Kellen era leve, quase
brincalhão.

Ele não estava com medo, então decidi que também não estaria.

A viagem foi curta, talvez vinte minutos ou mais, mas foi longa
o suficiente para que a luz do lado de fora me cegasse assim que a
porta se abrisse novamente. Eu protegi meus olhos enquanto
Kellen me arrastava para fora. Quando eles finalmente se
ajustaram, eu me vi parada na frente do cais de carga de um
armazém branco indefinido. Isso me lembrou das docas da noite
anterior. Industrial. Situado longe de quaisquer outros edifícios.
Cercado por cercas altas de arame e veículos de trabalho
igualmente indefinidos. Estranhamente quieto.

— Desculpe pela carona, — disse o motorista com sotaque do


leste europeu enquanto se apressava à nossa frente para abrir a
porta. Sua cabeça girava para trás para olhar para Kellen a cada
meio segundo, como se minha escolta fosse realmente um tigre
solto. Com raiva.

— É apenas uma precaução de segurança. — Ele colocou o


polegar em um scanner para destrancar a porta e a manteve aberta
enquanto Kellen me guiava pela nuca.

Eu sorri para o motorista quando passei. — Você não seria da


Romênia, seria.

Kellen estalou os dedos no mesmo momento em que deu um


puxão repentino no meu pescoço.

Um grito chocado se alojou em minha garganta quando meus


olhos se fecharam.
— Cale-se!

— Cale a boca!

— Cale a porra da sua boca!

Lágrimas queimaram atrás de minhas pálpebras bem fechadas


enquanto a voz de John me provocava dos recessos da minha
mente. Meus músculos ficaram tensos e minha respiração parou
enquanto eu me preparava para o tapa, o empurrão, a escalada
física que às vezes seguia aquele aviso específico.

Mas tudo que eu senti foram as pontas dos dedos de Kellen


quando deslizaram em meu cabelo e massagearam minha nuca.
Foi um pedido de desculpas silencioso. Uma garantia secreta. A
bofetada não vinha.

E nunca mais aconteceria.

Quando abri os olhos, estávamos de volta ao caminhão de


carne, só que maior. Muito, muito maior. Kellen e eu seguimos o
motorista - que, apesar de ser um fisiculturista de 100 quilos,
parecia que poderia chorar se Kellen o atacasse também - por um
corredor de horrores. Mais ganchos. Mais carne. Muito mais carne,
ossos e entranhas do que eu poderia suportar. Tentei olhar para o
chão, mas ele estava coberto de estrias cor-de-rosa deslizando em
direção aos buracos de drenagem, então respirei fundo e olhei para
frente.

Nas portas prateadas brilhantes de um elevador.

Uma vez que estávamos bem na frente deles, o motorista pegou


uma bandeja de metal industrial de uma mesa próxima e a
estendeu para Kellen, com os olhos baixos. — Se não se importa,
senhor.

Com um bufo irritado, Kellen alcançou suas costas e puxou


sua arma. Ele colocou na bandeja, e antes que o motorista se
virasse para guardá-lo, ele olhou para mim com pena em seus
olhos castanhos escuros.

A descida do elevador levou apenas alguns segundos, mas


quando as portas se abriram, parecia que tínhamos nos
teletransportado de dentro de uma geladeira para dentro de um
túnel de vento.

A sala em que entramos era do mesmo tamanho cavernoso que


a que estava acima de nós - só que, em vez de estar cheia de
pedaços de carne, esta estava cheia de fileiras e mais fileiras de
servidores de computador piscando, zumbindo e zunindo. Meia
dúzia de ventiladores de teto de tamanho industrial giravam acima
deles como lâminas de serra, forçando o ar mais frio do piso
principal refrigerado para dentro da gigantesca panela de pressão
eletrônica em que estávamos agora.

Quanto mais fomos levados para dentro da sala, mais quente


ficava. Eu fui abrir minha jaqueta - a jaqueta de Kellen - mas um
aperto rápido na minha nuca me deixou saber que Kellen queria
que eu ficasse coberta.

Depois de uma série de voltas e reviravoltas, fomos depositados


na porta de um escritório com paredes de vidro. Lá dentro, um
homem esquelético com uma barba ruiva e crespa era iluminado
pelo brilho de três monitores de computador do tamanho de uma
televisão.
Ele se levantou com um sorriso assim que nos viu aproximar.
Sua camiseta vintage de Star Wars tinha o que parecia ser uma
mancha de ketchup, e seu cabelo ralo estava preso em um rabo de
cavalo baixo.

— Entre! Entre! — O homem, que eu presumo ser aquele a


quem Kellen se referiu como The Buther 4 , disse calorosamente
enquanto gesticulava para os assentos em frente à sua mesa
desordenada. Ele virou o monitor central de lado e virou-o para
que, quando se sentasse, pudéssemos vê-lo.

Acho que ele não recebia muitos visitantes.

— A que devo eu, em, o prazer? — Ele perguntou, arrumando


nervosamente sua mesa e olhando para o motorista, que estava de
guarda na porta.

— Preciso de documentos. — A postura de Kellen era aberta e


casual, mas sua voz era afiada. Comandante.

— Documentos? — The Butcher relaxou instantaneamente,


caindo para trás em seu assento com uma risada calorosa. —
Documentos, ele diz!

Com isso, o motorista começou a rir também. Eu não sei o que


eles achavam que Kellen estava lá para fazer, mas ficou claro pela
mudança repentina de humor de todos que uma visita surpresa
dele não era uma coisa boa.

4
O Açogueiro.
The Butcher enxugou uma lágrima errante do canto do olho
quando sua risada finalmente morreu. — Jesus Cristo. Sabe, eu
quase me irritei quando ouvi...

— Suficiente. — Kellen não gritou, mas os homens se


comportaram como se ele tivesse gritado, suas bocas se fechando
e seus olhos se arregalando. — Precisamos de certidões de
nascimento, passaportes, carteiras de habilitação, a porra de uma
certidão de casamento, o que quer que você tenha.

Eu tive que morder o interior da minha bochecha para não


sorrir nessa última parte.

The Butcher soltou um assobio baixo, seu humor muito menos


jovial do que antes.

— Algum problema? — Kellen perguntou.

— Não, a menos que você tenha quebrado. Dois conjuntos


completos de documentos... identidades limpas... novos
números... que vão custar cerca de vinte mil. Dinheiro.

Kellen assentiu lentamente. — Não acho que você levaria uma


dúzia de AR-15 convertidos para totalmente automático, certo?

Meus olhos se arregalaram.

Então, é isso que está na bolsa dele. Jesus Cristo.

The Butcher apontou atrás de nós para sua coleção de


servidores. — Infelizmente, eu só negocio com dados – e se alguém
perguntar, delicioso presunto de fazenda, — ele me deu uma
piscadela, — mas eu posso conhecer um cara que estaria disposto
a tirá-los de suas mãos se você precisar de ajude para conseguir o
dinheiro. Ele é um britânico, embora. Eu sei que a Irmandade não
é muito gentil...

— Suficiente, — Kellen rebateu. — Faça com que ele me


encontre no The Brazen Head amanhã. Oito da noite. E prepare
nossos papéis. Estarei de volta na manhã seguinte com o seu
dinheiro.

The Butcher sentou-se ereto. — Para o que você está


precisando, vai demorar pelo menos cinco dias, senhor. A fonte de
dados, a tecnologia envolvida... estamos falando de hologramas,
microchips...

— Três dias. — Kellen se levantou, me levantando pelo meu


braço. — E se você disser uma palavra sobre isso a alguém...

— Entendido, — o hacker interrompeu com um aceno rápido e


olhos arregalados.

O que quer que estivesse no final da ameaça de Kellen pairava


no ar entre eles, não dito ou possivelmente indescritível.

Kellen se virou e me conduziu até a porta, mas antes que


pudéssemos sair, nosso anfitrião se levantou e gritou: — Espere!

Prendi a respiração quando Kellen se virou com a graça lenta e


silenciosa de uma víbora.

O ruivo esquelético sorriu fortemente, segurando uma webcam


com dedos trêmulos. — Eu só, em... preciso tirar algumas fotos,
senhor. Para suas novas identidades.
Levou toda a porra da paciência que eu possuía para esperar
até que o caminhão de carne se afastasse antes de puxar Darby
em meus braços. Não era seguro para nós estar ao ar livre,
especialmente em Dublin, onde a Irmandade tinha tantos olhos,
mas eu precisava que ela soubesse que a farsa estava acabada.

Eu odiava ser um idiota com ela, mas The Butcher me conhecia


como o principal executor da UIB, o Devil of Dublin, então eu tinha
que manter as aparências. Era o medo que tinha de mim que o
impedia de falar. Isso e o fato de que ele odiava a Irmandade tanto
quanto eu. Eles tentaram recrutá-lo por anos, mas seus convites
educados rapidamente se transformaram em ameaças violentas e
sabotagem de negócios - daí toda a paranoia. A Irmandade não
gostou de ouvir um não. Mas eu respeitei o cara por não ceder,
então fiz um acordo com ele. Eu o avisaria sempre que o UIB
estivesse vindo em sua direção se ele me fornecesse um telefone
não rastreável e hackeasse tudo o que eu precisasse que ele
hackeasse.

— Você está bem? — Perguntei, acariciando com a mão os


ondulados cabelos acobreados de Darby.

O sol já havia se posto, mas o frio da noite ainda era mais


quente do que dentro daquele maldito caminhão.
— Sim, mas você poderia ter me preparado. — Seu tom não era
zangado, mas ela me deu um tapa no peito de qualquer maneira.

Sorri aliviado e a coloquei debaixo do braço enquanto


atravessávamos a rua. — Eu prometo, você estava segura o tempo
todo. The Butcher é inofensivo. A única razão pela qual eu não te
contei mais é porque...

— Você precisava que eu agisse com medo.

Eu balancei a cabeça, a culpa corroendo minhas entranhas,


tornando difícil falar. Eu odiava tê-la feito se sentir assim. Darby
nunca deveria ter medo de mim. Nunca.

— Acho que não estava tão assustada quanto eles. — Darby


riu. — Você viu seus rostos? Eles devem pensar que você é um
traficante de armas ou um assassino da máfia ou algo assim, hein?

Fiquei tenso, a avaliação exata de Darby congelando meus


pensamentos, meus músculos, o próprio ar em meus pulmões.

Quando eu não respondi, ela começou a recuar. — Você


realmente não tem que responder a isso. Desculpe.

Eu exalei e dei um aperto reconfortante em seu braço enquanto


descíamos a próxima rua lateral. — Não importa o que eles pensam
que eu sou. Em três dias, nós dois podemos ser o que quisermos.

Darby olhou para mim, seus grandes olhos verdes brilhando ao


luar. — O que você quer ser?

A pergunta me atingiu como um soco. Ninguém nunca tinha


me perguntado isso antes. Nem mesmo eu.
Eu só tinha feito o que tinha que fazer, não o que queria fazer.
Querer era insuportável. Querer era suicídio emocional. Mas desde
que Darby voltou para minha vida, foi tudo que eu fiz, porra.

Querer.

E isso me aterrorizou.

— Você sabe o que eu sempre pensei que você seria quando


crescesse? — Darby perguntou, entrelaçando seus dedos nos
meus quando a casa apareceu no final da rua. Ela olhou para a
frente enquanto falava, e eu fiquei grato.

— Um carpinteiro.

Um carpinteiro. As palavras ecoaram em meus ouvidos,


parecendo estranhas, mas de alguma forma familiares, como se
tivessem significado algo para mim em uma vida passada.

— Você estava sempre fazendo coisas para a casinha de, tipo,


galhos e tocos. Lembra? E tudo isso foi incrível. Alguns desses
móveis duraram anos. Sempre imaginei que, um dia, você teria sua
própria oficina e faria as coisas mais incríveis.

Uma enxurrada de imagens, sons e cheiros encheu minha


mente de uma só vez - o barulho das folhas sob meus pés enquanto
eu rolava a tora perfeita pela floresta; meu primeiro banquinho
com suas pernas bambas de pinho e assento coberto de seiva; a
doce e entorpecente exaustão que só vinha depois de algumas
horas cortando, serrando ou lixando; e o olhar de admiração no
rosto de Darby todo verão, quando ela finalmente conseguia ver no
que eu estava trabalhando.

Ela foi a única que viu meu trabalho.


Ela foi a única que me viu.

Enquanto atravessávamos o jardim da frente da casa, a emoção


apertou minha garganta a ponto de eu não conseguir falar. Eu não
poderia dizer a ela o que ela significava para mim naquela época.
Que a promessa de vê-la novamente, de mostrar-lhe as coisas que
fiz, de tentar dizer-lhe algumas palavras a mais do que no ano
anterior era a única coisa que me impedia de me matar na maioria
dos dias. Que perdi minha humanidade quando a perdi. Que ela
me fez querer recuperá-la.

Enquanto contornávamos o outro lado da casa, Darby começou


a mordiscar o lábio inferior. Seus ombros subiam e desciam cada
vez mais rápido sob meu braço, e seus olhos pareciam estar
olhando para todos os lugares menos para mim. A princípio,
pensei que talvez ela tivesse ouvido algo na floresta que a havia
assustado, mas quando ela abriu a boca e começou a se desculpar,
percebi que era eu. Darby interpretou meu silêncio como raiva, e
agora ela estava com medo. De mim.

— Desculpe, — ela disse suavemente. — Eu não deveria ter


tocado no assunto. Não precisamos falar sobre...

Eu me movi como um relâmpago, empurrando-a contra a


lateral da casa e selando minha boca sobre seus lábios
entreabertos e atordoados. O suspiro assustado de Darby foi
silenciado junto com o resto daquele maldito pedido de desculpas
enquanto agarrei os lados de seu rosto e derramei cada palavra
que não consegui dizer direto em sua maldita garganta.

Eu não conhecia outra maneira de expressar a ela que não


estava bravo com o que ela disse. Eu estava... eu estava me
afogando nisso. Meu coração parecia ter sido perfurado por uma
adaga e eu não conseguia parar o sangramento.

Foi um tipo de beijo brutal e implorante. Eu estava implorando


para ela me entender. Implorando para ela sentir o que eu sentia.
Implorando a ela para me deixar preenchê-la com tudo que eu não
conseguia mais segurar. As mãos de Darby agarraram minha
camisa enquanto eu chupava e provava, lambia e raspava. Eu
pressionei meus lábios nos dela pela necessidade de dar a ela uma
parte de mim, mas assim que eu provei dela novamente, tudo que
eu pude fazer foi pegar. O desejo que ela despertou em mim era
voraz, insaciável... antigo. Parecia que tinha um poder próprio.

Um poder que era maior que o meu.

Agarrando seus pulsos, prendi as mãos de Darby contra a


parede em cada lado de sua cabeça. Havia tanto dentro de mim
que precisava ser liberado - eu não podia arriscar deixá-la me tocar
em algum lugar que pudesse desencadear meu pânico.

Minha língua girou em torno da dela ainda mais


profundamente até que Darby quebrou nosso beijo, virando a
cabeça para o lado com um súbito suspiro.

Enquanto eu chupava a pele macia logo abaixo de sua


mandíbula, meu pau latejava no mesmo ritmo do pulso acelerado
que eu sentia batendo contra meus lábios. Eu precisava estar
dentro dela novamente. Eu queria sentir seu corpo inteiro
pulsando ao meu redor assim, me implorando para deixá-la ir,
para enchê-la com esse transbordamento de emoção.

Eu estava prestes a soltar seus pulsos para poder desabotoar


sua calça jeans e encontrar a felicidade novamente quando percebi
que Darby estava completamente rígida. Seus quadris não
estavam rolando contra os meus. Sua cabeça ainda estava virada.
E a respiração irregular que ela estava tomando não parecia
luxuriosa. Ela soava…

Foda-se.

Erguendo a cabeça, olhei para Darby, e o que vi foi a definição


de partir o coração.

Seu rosto estava pressionado contra o estuque e contorcido em


um estremecimento apertado. Seus olhos estavam bem fechados.
E cada respiração que ela dava era espasmódica e trêmula, como
se ela estivesse tentando não chorar, mas o raio prateado do luar
deslizando por sua bochecha me disse que seus esforços foram em
vão.

Soltei seus pulsos imediatamente e dei um passo para trás,


observando no que parecia ser em câmera lenta enquanto Darby
passava os braços ao redor de sua cintura e se encolhia contra a
parede.

— Não, não, não. Darby. O que aconteceu? Diga-me.

Mas ela apenas balançou a cabeça, deixando o cabelo cair para


frente até cobrir completamente o rosto.

Eu queria gritar. Eu queria dar um soco na casa, mas isso só


iria assustá-la novamente. Eu queria tocá-la, mas não tinha o
direito. Então, eu apenas fiquei lá, como um maldito idiota,
olhando para o lado de sua cabeça.

— O que eu fiz? Diga-me. Por favor.


— Nada. — Ela fungou. — Não é sua culpa. Eu só... — Ela
parou por um longo tempo, balançando a cabeça e esfregando o
braço antes que as palavras finalmente saíssem em um soluço
abafado. — Não gosto de ser contida.

Dei um passo para trás quando minha boca se abriu de horror.

Contida.

Como eu a encontrei na noite anterior? Como eu a encontrei,


porra? Presa no chão da cozinha, o rosto contorcido assim mesmo,
lágrimas nos olhos, enquanto algum babaca tentava transar com
ela.

Eu matei um homem por fazer o que estava prestes a fazer.

Eu dei outro passo para trás. E outro.

Eu senti como se fosse passar mal.

— Kellen? — A voz trêmula de Darby mal conseguia me


alcançar enquanto eu caminhava pelo gramado.

Passei minhas mãos sobre minha cabeça, tentando reconciliar


o que diabos tinha acabado de acontecer. O que deu em mim.

— Tudo bem. Eu posso passar por isso. Você só... me pegou


desprevenida. Isso é tudo.

— Passar por isso? Você está falando sério? Eu agarrei você.

Darby ficou tensa como se pensasse que eu ia bater nela, e um


grunhido saiu das entranhas negras e purulentas da minha alma.

Darby Collins costumava ser destemida pra caralho. Ela era


pequena e coberta de sardas e sempre faltando pelo menos um
dente, e ela não tinha medo de merda nenhuma. Nem mesmo o
mudo esquisito que espreitava na floresta. Ela era a única pessoa
que não tinha medo de mim. A única pessoa com quem eu sentia
que poderia me expressar. Mesmo que saísse errado ou eu ficasse
chateado ou perdesse o controle, Darby nunca me tratou de
maneira diferente.

Agora, se eu ficasse em silêncio ou levantasse a voz ou olhasse


para ela de maneira errada, ela se encolhia como um cachorro
chutado.

As chamas dentro de mim rugiram para a vida, amargas e


sedentas de sangue sobre o que aqueles filhos da puta tiraram
dela.

Mas também, o que eles tiraram de mim.

— Desculpe. Eu não queria.

Desculpe.

Meu corpo respondeu a essa única palavra como uma lata de


gasolina responde a um fósforo aceso.

Enrolei minhas mãos em punhos e exalei pelo nariz como um


maldito demônio, tentando controlar minha raiva. Eu podia sentir
o fogo tomando conta. Exigindo ser alimentado. Só é satisfeito pela
dor - minha ou de outra pessoa - e me recusei a deixar Darby ver
esse lado de mim novamente.

Dando um passo para longe dela, apontei para os fundos da


casa. — Vá para dentro.

— O que? — Ela piscou.


Continuei andando para trás para ter certeza de que ela não
tentaria me seguir, minhas mãos passando sobre minha cabeça
enquanto tentava controlar minha respiração.

Eu tive que apertar minha mandíbula para não gritar com ela.
— Vá.

Assim que meus pés pousaram no asfalto em vez da grama, eu


me virei e saí correndo pela rua.

Eu não bebi. Eu não fumei. Eu mal conseguia falar com alguém


além de Darby. E até aquela manhã, eu não - não podia - nem
foder. Isso me deixou com poucas opções quando as chamas
ameaçaram me queimar viva.

Por sorte, eu estava perto do Phoenix Park... assim como


metade dos bêbados de Dublin.
Um golpe repentino: as grandes asas ainda batendo

Acima da garota cambaleante, suas coxas acariciadas

Pelas teias escuras, sua nuca presa em sua conta,

Ele segura o seio indefeso dela sobre seu peito.

Eu não conseguia nem ler sem pensar em Kellen.

Depois que ele saiu, andei de um lado para o outro por mais ou
menos uma hora, repassando tudo o que tinha acontecido em
minha mente. Minha reação ao seu toque. Minha rejeição. O jeito
que eu recuei dele. O olhar horrorizado e eviscerado em seu rosto.

Eu nunca tinha machucado alguém tão mal na minha vida. E


o fato de ter sido Kellen me deixou doente.

Eu sabia o quão sensível ele era. Quão difícil pode ser para ele
tocar ou mesmo falar com outra pessoa. Mas apesar de tudo que
ele passou, Kellen confiava em mim. Ele falou comigo. Ele fez amor
comigo. Ele abriu seu peito e me entregou seu coração sensível e
sangrando, e o que eu fiz com ele?

Eu joguei de volta na cara dele em questão de horas.


Meu próprio coração latejava com a dor de um hematoma azul
profundo, cada batida empurrando a dor em minhas veias até que
todo o meu corpo se sentisse maltratado e exausto.

Quando não fui capaz de dar outro passo, arrastei-me escada


acima até o recanto de leitura, esperando encontrar uma distração
entre os livros que cobriam as paredes. Mas nada prendeu minha
atenção por muito tempo, nem mesmo Yeats. Meus olhos
contornaram as letras desbotadas, mas tudo o que pude ver foram
todos os piores cenários possíveis se desenrolando em alta
definição enquanto meus pensamentos saíam do controle.

Minha cabeça gritava que algo terrível iria acontecer.

Meu coração gritava que algo terrível já havia acontecido.

Mas em algum lugar além de todo o barulho - no lugar quieto


e vazio para onde fui quando precisei escapar do meu corpo por
um tempo - havia um conhecimento. Um brilho azul suave, como
o que eu tinha visto no fundo do lago. Não se comunicava com
palavras ou pensamentos, visões ou sons, mas com energia. Uma
serenidade graciosa e eterna penetrou em meus ossos e cantarolou
através de mim como uma canção de ninar, prometendo-me que
tudo ficaria bem.

Não sabia se era Saoirse ou minha mãe ou meu avô ou minha


própria imaginação, mas pela primeira vez em oito anos, senti
como se estivesse nos braços de um pai amoroso. Lágrimas
silenciosas escorriam pelo meu rosto enquanto eu me deliciava
com aquele brilho. No conforto que veio para mim quando eu mais
precisava. O conhecimento permaneceu comigo, calmo, quieto e
docemente sussurrando, até que ouvi a porta dos fundos abrir e
fechar.

— Darby? — A voz preocupada de Kellen foi o prego final no caixão da


minha compostura.

Entre a presença avassaladora que acabei de experimentar e a


explosão de alívio que senti ao saber que ele finalmente estava em
casa são e salvo, minhas lágrimas silenciosas se transformaram
em um soluço não tão silencioso.

— Aqui em cima, — eu resmunguei, limpando meus olhos e


nariz com as mangas do meu moletom.

Segundos depois, o rosto de Kellen apareceu no topo da escada,


e nós dois ficamos boquiabertos.

— Foda-se. Darby.

— Oh meu Deus! Kellen!

Em um instante, ele estava de joelhos, enxugando minhas


lágrimas enquanto eu cuidadosamente acariciava a pele inchada
ao lado de sua sobrancelha cortada.

— Eu sinto muito. — Ele beijou minhas pálpebras, meu nariz


vermelho, minhas bochechas molhadas, meus lábios inchados,
enquanto eu tentava avaliar o quanto ele estava ferido. — Eu sinto
muito, porra.

— O que aconteceu?! — Virei seu rosto com dedos gentis até


poder ver o outro lado.

— O que? Esse? — Ele apontou para a sobrancelha e notei que


os nós dos dedos de sua mão direita também sangravam.

— Kellen!
Ele encolheu os ombros. — Tive que deixá-los tomar algumas
doses. Só para ser educado.

— Quem?

— Os bêbados no parque. Eles geralmente são expulsos dos


pubs mais cedo por causa de brigas e vão atrás de encrenca. — O
canto de sua boca se curvou. — Eles encontraram esta noite.

— Você está falando sério agora? Você poderia ter se


machucado. Ou preso. Deveríamos estar escondidos.

— Eu sei. — Seu sorriso desapareceu quando ele levou meus


dedos aos lábios. — Eu só... precisava clarear minha cabeça. Você
estava com tanto medo, e eu só estava piorando as coisas.

— Eu não estava com medo. Eu só estava-

— Sim... você estava. — Kellen abaixou minha mão, mas não


seus olhos. — Confie em mim, eu reconheço o medo quando o vejo.
— Seu tom era assustador.

Abaixei meus olhos quando o remorso torceu como uma faca


no meu estômago, mas Kellen ergueu meu queixo com um único
nó sangrento, me forçando a olhar para ele novamente.

— É por isso que vamos recomeçar …

Respirei fundo enquanto Kellen me mantinha cativa em seu


olhar.

— E nós vamos devagar... — Seus olhos caíram para os meus


lábios. — E desta vez, você vai me dizer exatamente, — ele
pressionou um beijo suave no canto da minha boca, — o que você
quer que eu faça.
Prendi a respiração quando seu lábio inferior arrastou o meu.
Então, ele beijou o canto oposto.

— Eu quero ouvir você, — sua boca vagou mais abaixo,


beijando minha mandíbula, o lado do meu pescoço, — o tempo
todo.

Meus olhos se fecharam quando seus lábios abriram uma trilha


na frente da minha garganta.

— Então eu sei que você ainda está comigo.

Eu balancei a cabeça enquanto meus dedos encontravam o


caminho para sua cabeça quente e felpuda.

─ Não quero seu corpo vazio, Darby. Eu quero o que está aqui.

Esticando a gola do meu moletom para baixo, Kellen


pressionou os lábios no centro do meu peito, e o coração abaixo
dele pulou uma batida.

— Eu quero a porra do seu fantasma.

Novas lágrimas brotaram dos meus olhos quando Kellen


agarrou a barra do meu moletom e olhou para mim, esperando por
permissão.

Eu balancei a cabeça com um sorriso agradecido, mas ele


apenas franziu a testa em resposta.

— Você tem que falar comigo, anjo. Diga-me o que você quer.
Diga-me o que você gosta.

Eu balancei minha cabeça quando a máquina de humilhação


dentro do meu cérebro zumbiu para a vida, lembrando-me que,
antes de Kellen, o único sexo que eu já tive foi vergonhoso na
melhor das hipóteses e violento na pior das hipóteses. Que eu
nunca me importei com isso porque ninguém nunca se importou
comigo.

— Eu não sei, — sussurrei, sorrindo para mascarar minha dor.


— Não sei do que gosto.

Um vislumbre de tristeza passou pelos olhos cinzentos de aço


de Kellen, mas foi rapidamente afugentado pelo sorriso mais
derretido que eu já vi.

— Eu sei de uma coisa que você gosta, — ele disse, seus olhos
caindo para os meus lábios enquanto ele lentamente se inclinava.

Uma explosão de excitação, seguida por uma doce onda de


alívio, percorreu minhas veias quando coloquei minhas mãos em
volta de seu pescoço e o beijei primeiro.

Kellen enfiou a mão no meu cabelo enquanto sorria em torno


da intrusão da minha língua.

Não foi nada como qualquer um dos nossos beijos anteriores.


Não havia incerteza, desespero ou medo. Era brincalhão e
provocante. Kellen recuou e me fez persegui-lo. Eu capturei sua
língua com meus dentes. Mas logo, aquelas lambidas e beliscões
se transformaram em golpes profundos e necessários. A maneira
como Kellen chupava e girava sua língua em torno da minha me
fez querer senti-la em todos os lugares.

Alcancei o primeiro botão de sua camisa e senti seu corpo


enrijecer imediatamente. Eu ainda não sabia quais eram todos os
seus gatilhos e, honestamente, também não achava que ele
soubesse. Mas Kellen estava certo; se fôssemos devagar e
prestássemos atenção, poderíamos descobrir.

Com uma respiração profunda pelo nariz, os ombros de Kellen


relaxaram. Então, pegando minhas mãos nas dele, ele as trouxe
de volta para seu peito, onde, juntos, desembrulhamos a única
coisa que eu sempre quis. Uma extensão de carne cicatrizada e
músculos duros ondularam diante de mim enquanto Kellen tirava
a confortável camisa branca e a jogava no canto. O desejo fervia
em minha barriga, frenético, escaldante e ameaçando transbordar
enquanto eu o observava continuar a se despir.

As minúsculas lâmpadas pingando do teto pintavam sua pele


de um âmbar quente, como se tivesse sido iluminada pelo brilho
de cem velas, e o cheiro de livros antigos dava a sensação de que
estávamos invadindo algum lugar sagrado. Em algum lugar
mágico. Em algum lugar ainda mais romântico que a Transilvânia.

Meu coração inchou ao perceber que Kellen tinha feito isso por
mim. E quando tiramos a última roupa e ele rastejou de volta para
o meu lado - olhos focados, músculos flexionados - percebi que ele
estava apenas começando.

Nossas bocas colidiram quando Kellen colocou a mão em volta


da minha nuca e me guiou para deitar de costas entre os
travesseiros. Então, ele me nivelou com um sorriso malicioso. A
barba por fazer de um dia e aquele corte abaixo da sobrancelha
transformaram suas feições já intimidadoras em algo ainda mais
perverso.

Se o Diabo fosse o anjo mais lindo de Deus, então Kellen não


era apenas seu filho.
Ele era o próprio Príncipe das Trevas.

— O que você quer, amor? — Sua voz acariciou meu corpo nu


como um veludo preto quente.

— Eu quero que você me coma viva.— As palavras me deixaram


em uma única respiração. Sem filtro e sem vergonha.

O sorriso de Kellen se alargou em um sorriso de lobo antes de


sua boca mergulhar na minha garganta.

— Diga mais. — Sua língua rodou ao redor do vale na base do


meu pescoço. — Diga-me exatamente. — Seus dentes roçaram
minha clavícula antes de afundar em meu ombro. — Você fica
quieta, eu paro. — Kellen levantou a cabeça e olhou para mim,
lambendo o lábio inferior enquanto esperava por mais instruções.

A visão de sua língua brilhante fez meus mamilos endurecerem


em antecipação.

— Abaixe, por favor, — eu consegui sussurrar antes que uma


onda de calor inundasse meu rosto.

— Como quiser.

Kellen abaixou a cabeça novamente, chupando um caminho de


beijos molhados no centro do meu peito, mas quando ele chegou
ao oco entre meus seios, ele fez uma pausa com os lábios ainda
pressionados na minha pele e esperou.

Deus, eu o amava.

Por mais difícil que fosse para mim dizer as palavras em voz
alta, fiquei impressionada com a gratidão por Kellen estar me
obrigando a fazer isso. Por me mostrar que ele era diferente. Por
tirar qualquer possibilidade de medo. E percebi que, ao dizer a ele
o que fazer, eu estava dando a ele o mesmo presente.

Então, com uma respiração profunda, corri meus dedos sobre


sua cabeça e disse: — Você vai... chupar meus mamilos. Por favor?
E me tocar? Toque-me onde quiser.

— Foda-se, — ele sibilou.

A respiração quente de Kellen dançou em minha pele gelada


enquanto ele apalpava meus seios e os apertava suavemente.
Fechei os olhos e arqueei as costas, soltando um gemido baixo
quando seus polegares rolaram sobre os picos escuros.

— Continue fazendo esse som, meu anjo, e eu nunca vou te dar


um motivo para parar.

Esse foi todo o aviso que recebi antes que a boca de Kellen
estivesse em mim novamente.

Eu fiz como ele disse, dando voz a cada som rouco e necessitado
no fundo da minha garganta enquanto os lábios de Kellen
puxavam e puxavam minha carne sensível.

— Lamba-os também. Por favor, — eu exalei com um gemido,


minhas costas arqueando ainda mais enquanto Kellen esbanjava
ambos os mamilos com redemoinhos e estalos e arrastos
tortuosamente lentos de sua língua.

Suas mãos grandes e calejadas deslizaram sobre meu corpo,


massageando meus seios, aquecendo meu tronco, e quanto mais
desciam, mais carente eu ficava.

— Kellen, — eu murmurei.
Ele olhou para mim enquanto seus lábios deslizavam para fora
do meu mamilo com um estalo molhado.

— Você vai... me beijar mais baixo? Por favor?

Seus olhos eram sombreados por sobrancelhas escuras e


contornados por mil cílios afiados, mas em suas profundezas, eu
vi o flash de incerteza.

Kellen nunca tinha feito o que eu estava pedindo a ele.

Mas a apreensão em seu rosto rapidamente desapareceu


quando um meio sorriso lascivo apareceu em seus lábios.
Pressionando-os na minha barriga, Kellen segurou meu olhar
enquanto esperava. Provocava-me.

— Mais baixo …

Ele deslizou pelo meu corpo com a graça de um gato selvagem,


me observando com olhos semicerrados enquanto se ajoelhava
entre minhas pernas abertas. Prendi a respiração quando ele
baixou a cabeça novamente e, desta vez, seus lábios pousaram
muito mais baixo, sugando a pele delicada da parte interna da
minha coxa.

Eu gemi quando um pequeno raio subiu pela minha espinha.

Senti a barba por fazer de Kellen arranhar minha carne quando


ele se moveu para a outra coxa, e o contraste de áspero e macio
me deixou louca.

— Kellen, por favor...

Ele riu, profundo e baixo, o zumbido quente de sua respiração


entre minhas pernas fazendo meu corpo inteiro apertar.
— Por favor, chupe-

Antes que eu pudesse terminar de falar, meu pedido sem


vergonha foi atendido. A língua de Kellen deslizou ao longo da
costura do meu corpo, e minhas costas arquearam em um gemido
abafado.

Sua mão espalmada sobre meu estômago, o peso dela me


prendendo enquanto ele explorava cada linha, cada pico e vale. Eu
entrelacei meus dedos nos dele e segurei, a sensação avassaladora,
mas não o suficiente, tudo ao mesmo tempo.

— De quem é o sangue nos nós dos dedos? — Eu murmurei,


olhando para nossas mãos entrelaçadas.

Sua barba por fazer roçou minhas coxas novamente, e eu sabia


que ele estava sorrindo. — Principalmente meu.

Bom o suficiente para mim.

— Por favor... ah!

Meus quadris levantaram do chão quando Kellen voltou a me


trabalhar com sua língua. Seu ritmo era mais rápido do que antes.
Sua pressão mais forte.

— Dedo em mim!

Kellen me pressionou contra o chão com a mão na minha


barriga enquanto ele cumpria meu pedido. No momento em que
seu dedo grosso empurrou para dentro, meu corpo se apertou em
torno dele, buscando alívio.

— Mmm, — eu choraminguei, jogando minha cabeça para trás,


e esse som deve ter sido a ruína de Kellen.
Um rosnado feroz retumbou em seu peito enquanto ele me
devorava como uma fera faminta, sugando a medula dos meus
ossos e me enchendo até a última junta sangrenta, de novo e de
novo.

Meus quadris pressionaram contra sua boca faminta enquanto


eu gemia, me contorcia e me agarrava a sua mão aberta como se
fosse a única coisa que me prendia à realidade. O prazer era
transcendente. Era como se a sensação fosse tão grande que não
caberia dentro do meu corpo. Mais e mais alto Kellen me levou.
Mais e mais apertado meus músculos ficaram.

E quando finalmente flutuei muito perto do sol, Kellen estava


lá para me pegar quando caí de volta à terra.

A queda foi mais intensa do que qualquer coisa que eu já


experimentei. Eu agarrei sua mão e envolvi minhas coxas ao redor
de sua cabeça e chamei seu nome enquanto caía para trás através
dos quilômetros de êxtase que me separavam do chão. Mas ele me
derrubou suavemente e, quando finalmente aterrissei, havia
lágrimas em meus olhos.

— Kellen, — eu sussurrei, aquela única palavra transmitindo


tanto meu espanto quanto minha necessidade insuportável por
ele. Depois de estar tão alto, eu precisava sentir seu corpo no meu.
Precisava ser esmagada no chão pelo peso dele.

Com minhas mãos em suas bochechas ásperas, eu o guiei pelo


meu corpo até que seu peito estivesse no meu peito e sua boca
encharcada de sexo estivesse na minha boca.
Entre minhas pernas, o comprimento de Kellen deslizou pela
bagunça que ele fez, e eu levantei meus quadris com um gemido
suave.

— Por favor, — foi tudo o que eu disse.

Kellen parou na minha entrada, seu corpo inteiro ficando rígido


antes de sua cabeça cair entre os ombros.

— Podemos parar, — eu sussurrei imediatamente, segurando


seu rosto.

A cabeça de Kellen balançou. Devagar. Era como se seus


músculos estivessem tão tensos que ele mal conseguia se mover.

— Ei... — Eu corri meu polegar em sua bochecha, logo abaixo


de uma cortina de cílios pretos. — Fale comigo.

Kellen pressionou sua testa na minha, e eu podia sentir seu


corpo tremendo com contenção. Restrição e... raiva.

A cabeça de Kellen balançou novamente, e meu rosto se moveu


de um lado para o outro junto com ela. — Eu o vi, Darby...
pairando sobre você. Ele te fodeu assim, não foi?

Oh meu Deus.

Kellen estava tentando tanto me fazer esquecer o que tinha


acontecido no dia anterior que eu não tinha parado para pensar
sobre como deve ter sido para ele.

O que ele tinha visto.

Como eu reagi a ele segurando meus pulsos.

Kellen estava tentando tanto provar que não era nada parecido
com ele.
Agora, era a minha vez de mostrar a ele que eu sabia.

— Olhe para mim, — eu disse, correndo meus dedos sobre sua


cabeça. — Por favor?

Olhos tão duros quanto a arma que ele carregava se ergueram


e se fixaram nos meus. Mas mesmo a agonia no olhar de Kellen
não poderia me impedir de sorrir para seu rosto lindo de tirar o
fôlego. Ele era uma obra-prima em preto e branco. Forte e macio.
Familiar e misterioso. Um amante e um lutador. Focado e ainda
de alguma forma completamente perdido.

— Eu não tenho medo de você. — Não havia dúvida em minha


voz. Foi uma declaração. Uma declaração.

Mas a maneira como Kellen arqueou sua sobrancelha inchada


e cortada me disse que ele não estava exatamente convencido.

— Parece que estou com medo de você? — O sorriso que havia


sequestrado meu rosto estava além do meu controle.

Kellen balançou a cabeça novamente quando o canto de sua


boca miserável se curvou.

— Ou pareço estar tão apaixonada por você que não consigo


parar de sorrir, mesmo quando estou tentando ser séria?

Ele baixou os olhos quando o canto oposto de sua boca se


curvou, e eu juro, uma pitada de rosa floresceu em suas
bochechas.

— O que você quiser, querido... eu também quero. Eu prometo.

Levantando os olhos, Kellen respirou fundo pelo nariz e me


prendeu com um olhar desnudado. — Tudo que eu quero, tudo
que eu sempre quis, é que você olhe para mim do jeito que está
olhando para mim agora.

Parecia que todo o ar havia sido arrancado do meu peito.

— Não vou arriscar perder isso de novo. Não posso. — Então,


Kellen baixou sua boca talentosa ao meu ouvido e rosnou: — Mas
eu também quero estar dentro de você mais do que quero minha
próxima respiração.

Um grito assustado explodiu de meus lábios entreabertos


quando ele deslizou os braços nas minhas costas e me puxou para
seu colo. Caí na mesma posição que estávamos naquela manhã,
com minhas pernas escarranchadas nas dele, meus braços ao
redor de seus ombros e seu pau impossivelmente duro preso entre
nossos corpos.

Agarrando minha bunda com as duas mãos, Kellen levantou


meus quadris e deslizou ao longo da minha carne escorregadia até
que ele estivesse posicionado na minha entrada. Agora era sua vez
de dizer: — Olhe para mim.

Eu fiz como ele ordenou, e no momento em que nossos olhos


se encontraram, senti minhas bochechas corarem e aquele sorriso
incontrolável retornar enquanto amor, luxúria e pó de fada
dançavam em minha pele.

— Bem desse jeito. — Os lábios carnudos de Kellen se


alargaram e se curvaram em retorno. Então, eles se separaram em
um suspiro quando eu me abaixei sobre ele, centímetro por
centímetro perfeito.
Obriguei-me a sustentar seu olhar até que meu corpo, coração
e alma estivessem tão cheios dele que pensei que fosse chorar.

Enterrando meu rosto em seu pescoço, agarrei-me a seus


ombros enquanto Kellen passou um braço em volta das minhas
costas e outro sob minha bunda. Ele me agarrou contra o peito
enquanto empurrava para dentro de mim por baixo, cada golpe
delicioso e tortuoso provocando um som suave de algum lugar no
fundo da minha barriga.

— Sim, — Kellen sibilou, empurrando mais forte. Mais rápido.


— Deixe-me ouvi-la, anjo.

Suas palavras foram meu desencadeamento. Meu peito


retumbou com as profundezas do meu gemido enquanto meus
dedos se enrolavam em sua carne. Meus quadris se contorciam em
círculos enquanto eu me rendi ao seu ritmo punitivo. E quando eu
o senti inchar dentro de mim, senti seus braços apertarem em
volta do meu corpo e seus dentes afundarem em meu pescoço, o
orgasmo que rasgou através de mim arrancou um grito de meus
pulmões junto com ele.

Desta vez, quando caí de volta à terra, tive o corpo forte e


quente de Kellen para amortecer minha queda. Eu coloquei meus
membros desossados e saciados sobre seus ombros enquanto
recuperava o fôlego e sorri quando senti sua mão torcer ao redor
do cabelo na minha nuca.

Puxando-me gentilmente para cima, Kellen percebeu meu


estupor radiante e eufórico e respondeu com um sorriso próprio.

— Quando chegarmos a Nova York, vou construir uma porra


de biblioteca para você.
Darby e eu passamos a maior parte da noite e do dia seguinte
na cama. Conversando. Rindo. Tocando. Porra. Levamos tudo
devagar, aprendendo à medida que avançávamos. Eu descobri que
ela não gostava de ter um homem atrás dela, mas adorava estar
por cima. E enquanto eu ainda não conseguia imaginar ser tocado
abaixo da cintura sem querer matar alguma coisa, eu ansiava pelo
toque de Darby em qualquer outro lugar. Nós nunca não
estávamos nos tocando.

Até no supermercado sangrento.

Estar em público com a Bratva e a Irmandade ainda


procurando por mim me deixou paranoico pra caralho, mas se eu
ficasse enfurnado na cabana com Darby como eu queria, nós dois
morreríamos de fome, então...

Arriscar era necessário.

Eu a mantive debaixo do braço enquanto caminhávamos pelo


corredor de cuidados pessoais, meus olhos examinando os outros
compradores mais do que os itens nas prateleiras. Peguei uma
escova de dentes ao acaso e joguei na cesta que Darby estava
carregando.

— Roxo? — Ela perguntou, arqueando uma sobrancelha com a


minha escolha.
— Era o armário que eles tinham que enegrecer.

Darby abriu um sorriso, e meu pau inchou. Eu mal conseguia


olhar para ela sem ficar duro. Sem maquiagem; lábios cor-de-rosa
gordos; bochechas coradas e sardentas; e uma juba de cabelo
sexual acobreado, apenas implorando para ter minhas mãos de
volta nele.

— Nunca estive em um Tesco antes.

Peguei uma lata de creme de barbear e uma navalha. — Eles


não têm de onde... você é?

Eu quase disse onde você mora, mas Darby não morava mais
lá, e ela nunca mais moraria.

— Temos o Walmart, que é a versão americana. Então, é o


dobro do tamanho, vende armas e tem um McDonald's dentro.

Eu ri. — Achei que você ia dizer Starbucks.

— Não, a Target tem o Starbucks. — Ela sorriu.

Porra, eu a amo.

Eu a beijei na cabeça quando entramos no corredor de


cuidados com o cabelo e, quando olhei para cima, a primeira coisa
que vi foi uma prateleira com tesouras elétricas. Observei-os
enquanto passávamos. Por alguma razão, eu não conseguia parar.

Eu estava raspando minha cabeça para o padre Henry desde o


dia em que acordei escalpelado e sangrando no chão do sótão. Eu
nunca o deixaria saber o quanto isso me destruiu. O quanto eu
queria aquela parte de mim de volta. Então, continuei raspando
minha cabeça para provar a ele que não me importava, mesmo
depois que ele estava morto e enterrado. Cada vez que o fazia,
sentia que me tornava mais forte. Mais corajoso. Isso me forçou a
enfrentar o mundo em vez de me esconder dele.

Mas estar com Darby me fez sentir corajoso de uma maneira


completamente diferente.

Deu-me coragem para imaginar uma vida diferente. Uma onde


eu pudesse ter a aparência que quisesse, ser o que quisesse, ter o
que quisesse... porque, pela primeira vez, esses desejos pareciam
possibilidades em vez de responsabilidades.

No corredor seguinte, Darby colocou algumas caixas de


emplastros pequenos e redondos e um pouco de pomada
antibiótica na cesta. — Como estão seus ferimentos?

— Considerando o número de horas que passei deitado de


costas sob uma certa ruiva hoje, eu diria que eles estão indo muito
bem.

— Oh meu Deus. — A boca de Darby se abriu enquanto suas


bochechas coravam ainda mais. — Kellen, eu estou tão...

A adrenalina explodiu em minha corrente sanguínea no


segundo em que percebi o que ela estava prestes a dizer. Apertei
minha mão livre sobre sua boca e puxei-a contra meu peito,
forçando-a a olhar para mim.

— Não, — eu rebati. Tive que respirar fundo algumas vezes pelo


nariz antes de poder falar novamente com calma. — Você faz
coisas... e diz coisas, — eu forcei as palavras a saírem com os
dentes cerrados, — com as quais eu apenas sonhei, e então se vira
e pede desculpas por elas. Isso me faz... — Eu tive que tomar outra
respiração profunda para me impedir de dizer todas as coisas
excruciantes que eu queria fazer para os homens que a
machucaram em voz alta. — Eu não quero nunca mais ouvir a
palavra desculpe sair de sua boca novamente. Entende? Você não
tem nada pelo que se desculpar comigo, e nunca terá.

Minha mão na boca de Darby subia e descia enquanto ela


assentia, seus grandes olhos verdes brilhando com lágrimas
repentinas não derramadas. E quando finalmente levantei a palma
da mão, fiquei mais do que aliviado ao encontrar um sorriso suave
e triste por baixo.

— Desculpe, — Desta vez, foi Darby quem apertou uma mão


sobre sua boca. Risadas nervosas borbulharam por trás dele. —
Oh meu Deus, eu quase disse isso de novo!

Belisquei a ponta do meu nariz e balancei a cabeça em derrota.


— Vamos ter que trabalhar nisso.

No final do corredor, Darby apontou para uma exibição de


caixas brilhantes, cada uma embrulhada com a foto de uma
mulher sorridente diferente. — Você acha que eu deveria pintar
meu cabelo? Tipo, como um disfarce?

— Nem pense nisso. — Coloquei minhas mãos em cada lado de


seus olhos enquanto a conduzia para longe das tintas.

Depois de uma viagem pela parte de roupas masculinas para


meias, calças e qualquer coisa preta, pegamos comida suficiente
para os próximos dias e fizemos o check-out.

Darby mordeu o lábio enquanto me observava despejar quase


todo o meu dinheiro na máquina de autoatendimento. — Gostaria
de ter conseguido mais euros no aeroporto. Eu pensei que estaria
usando meu cartão de crédito o tempo todo. Des-

Meus olhos cortaram para os dela, e ela apertou os lábios com


um sorriso envergonhado.

Eu dei a ela um olhar aguçado antes de pegar nossas malas. —


Está bem. Em algumas horas, teremos dinheiro suficiente para
comprar nossa liberdade e todos os — tirei o lixo que ela escolheu
da sacola e li o rótulo — cremes de leite que você poderia querer.

Darby arrancou o pacote de minha mão e o abriu enquanto


voltávamos para a cabana. — Eu não como um desses há oito
anos.

Ela deu uma mordida, e o suave som orgástico no fundo de sua


garganta fez meu pau inchar novamente.

— Oh meu Deus, — ela murmurou, olhos revirados, boca cheia.


— Você tem que provar isso.

Ela estendeu a outra metade do biscoito para mim, mas fui


direto para as migalhas em seus lábios. No segundo em que o
sabor açucarado de baunilha atingiu minha língua, um
caleidoscópio de memórias explodiu atrás de meus olhos. Darby
com aquelas galochas amarelas. A mãozinha de Darby estendendo
um biscoito para mim como se eu fosse um cão raivoso. O sorriso
destemido e banguela de Darby enquanto ela me observava
devorá-los.

Elas foram as melhores coisas que eu já provei na época porque


tinham o gosto dela.

Elas ainda têm.


Largando as sacolas no meio da calçada, agarrei a nuca de
Darby e deslizei minha língua em sua boca açucarada,
perseguindo o alto dessas memórias. Lambendo a doce inocência
de seus lábios. Provando minha primeira paixão novamente.

Se o amor tivesse sabor, seria creme de baunilha.

— Kellen, — Darby respirou, lambendo seus próprios lábios


com um zumbido apreciativo. — Vamos para casa.
Duas horas, três orgasmos e um pacote inteiro de biscoitos
depois, nós caminhamos até o pub The Brazen Head, praticamente
vibrando de tanto sexo e açúcar.

Eu nunca me senti melhor em toda a porra da minha vida, o


que era um problema porque eu estava prestes a fazer o papel de
um homem que era incapaz de sentir qualquer coisa.

Até dois dias atrás, não teria sido uma atuação. Eu mantive
minha boca fechada, fui aonde a Irmandade me disse para ir,
matei quem eles me disseram para matar, e eu nunca dei a mínima
para isso. Todos eles eram corruptos. Eram todos mentirosos,
ladrões, traidores e espancadores de mulheres. Não havia emoção
envolvida, além do fluxo de lava de ódio que bombeava em minhas
veias, exigindo uma liberação periódica. E meu trabalho me deu
isso. Eu tenho que matar filhos da puta que se parecem com ele
uma e outra vez.

Mas no momento em que peguei minha garota de volta, aquela


vida e minhas memórias desapareceram tão rapidamente que
parecia que tudo tinha sido um sonho. Um pesadelo nebuloso e
sangrento de cinco anos do qual Darby me acordou com um único
olhar.
Agora, eu tinha que tentar ser aquele homem novamente, um
homem que eu mal conseguia lembrar, um homem que eu estava
desesperado para esquecer, e eu teria que fazer isso com Darby na
mesma sala.

Ela se recusou a ficar na casa de campo. Sem telefone,


dinheiro, identidade ou meio de autodefesa, ela estava com medo
de se separar de mim, e eu não podia culpá-la. Por mais que
odiasse a ideia de deixá-la chegar tão perto da minha antiga vida,
eu odiava ainda mais a ideia de não estar lá para protegê-la. Além
disso, era uma transação simples em um local público. Darby não
ouviria nada da nossa conversa e, quando terminasse, estaríamos
um passo gigantesco para uma vida totalmente nova.

Assim que ela percebeu onde estávamos, Darby agarrou meu


braço com um suspiro. Minha jaqueta era tão grande nela que
suas mãos estavam completamente cobertas pelas mangas. — Oh
meu Deus, este lugar é tão fofo!

Olhei para a construção medieval de tijolos e sorri. Tinha a


forma de um pequeno castelo, coberto de flores e iluminado por
lanternas. — Eu pensei que você gostaria. É o pub mais antigo da
Irlanda.

Darby se virou para mim enquanto um sorriso irônico se abria


em seu rosto. — Kellen Donovan, você vai me levar para um
encontro?

— Depende. — Mudei a bolsa para o ombro. — Você gostou?

— Eu amo isso! — O sorriso de Darby se alargou pouco antes


de ela ficar na ponta dos pés e esmagá-lo contra minha boca.
Ela ainda tinha gosto de baunilha.

Foda-se. Isso ia ser mais difícil do que eu pensava.

Forçando-me a me afastar, eu a segurei no comprimento do


braço e a prendi com um olhar sério. — Você se lembra do que eu
te disse?

— Fique no bar. Não fale com ninguém. Não olhe diretamente


para você.

— E se eu te der um sinal, um olhar, porra de qualquer coisa...


— Eu dei a ela uma carranca que faria a maioria dos homens
adultos se mijarem de medo, mas Darby apenas revirou os olhos.

— Vá direto para o banheiro e fique lá até você vir me buscar.

— Boa menina. — Eu bati no nariz dela. Então, enfiei o resto


do meu dinheiro no bolso da jaqueta dela. — Tente não ficar muito
bêbada.

Eu sabia exatamente qual mesa eu queria e liguei antes para


ter certeza de que conseguiria. Era uma cabine de canto em forma
de L na sala dos fundos que dava para a porta e também para o
bar. Lamentei essa decisão no segundo em que me sentei e percebi
o quão difícil seria manter meus olhos longe de Darby. Em vez de
se sentar, ela vagou pelo pub, observando todos os recortes de
jornal e fotos que foram coladas nas paredes nos quase novecentos
anos desde que o lugar foi construído. Ela prendeu o cabelo em
um nó antes de sairmos, vestiu minha jaqueta - que a engoliu
inteira - e um par de jeans rasgados e Converse. Se eu não a
conhecesse, teria presumido que ela era a garota mais bonita do
Trinity College, e teria ficado com ciúmes insanos do cara cuja
jaqueta ela estava usando.

Como diabos aquele cara acabou sendo eu, eu ainda não sabia.

Uma recepcionista passou por ela, escoltando um homem


negro elegante em um terno azul impecável em direção à minha
mesa, e eu sabia que tinha que ser o britânico. Ninguém em Dublin
se vestia assim. O filho da puta estava usando um lenço de bolso,
pelo amor de Deus.

Eu tinha que reconhecer os bastardos - eles sabiam como se


vestir.

Não me levantei e não me ofereci para apertar sua mão. Eu


simplesmente gesticulei para o assento na diagonal de mim na
mesa do canto, e com uma exibição arrogante de desabotoar o
paletó, o britânico sentou-se.

— Liam, — ele afirmou, olhando para a sacola ao meu lado, e


com essa única palavra, minhas esperanças de uma venda fácil
murcharam e morreram.

Liam Cole era um membro de alto escalão da Townley Firm.


Aqueles filhos da puta eram verdadeiros gângsteres no estilo Peaky
Blinders. Ao contrário da UIB, que pelo menos fingia ter alguma
causa social/política justa, a Townley Firm fodia com as pessoas
simplesmente porque podiam. Eles aterrorizaram o sul de Londres,
executando raquetes de proteção nas pequenas empresas,
cometendo fraude e extorsão nas empresas maiores, roubando os
cidadãos sob a mira de armas e espancando-os nas ruas. Mesmo
que a Irmandade estivesse disposta a trabalhar com os ingleses,
eles teriam ficado bem longe da Firm Townley. Todo mundo sabia
que aqueles idiotas não eram confiáveis.

Eu dei ao homem um aceno rígido. Não adiantava me


apresentar. Ele sabia quem eu era.

Não que eu tivesse um nome para dar a ele de qualquer


maneira.

Por cima do ombro de Liam, notei Darby sentar-se no bar,


lembrando-me o quão rápido eu queria deixar aquela vida para
trás para que eu pudesse começar uma nova - uma vida real - o
mais longe possível do meu passado.

— Não acredito que tive que vir para a porra de Dublin para
isso. — O britânico ajustou a gravata e olhou ao redor da sala com
uma carranca, como se eu tivesse pedido a ele para me encontrar
no banheiro.

Eu não respondi.

Você pode dizer muito sobre uma pessoa pela maneira como
ela se comporta quando você fica quieto.

Quando criança, Darby preenchia meu silêncio com sua


imaginação. Agora, ela o enchia de desculpas temerosas.

A maioria das pessoas normais o enchiam com uma gagueira


estranha, mas os rapazes do ramo ficavam com raiva rapidamente.
Todos queriam parecer durões. Qualquer demonstração de
desrespeito seria recebida com indignação rápida e irracional. Ao
qual eu sempre respondia... não respondendo. Foi muito fácil. Eu
poderia estabelecer domínio dentro de sessenta segundos depois
de conhecer alguém, provando que tinha o poder de fazê-lo perder
o controle sobre suas emoções sem dizer uma única palavra.

Mas Liam não estava mordendo a isca. Ele revirou os olhos,


parecendo levemente irritado, mas permaneceu frio como gelo.
Porra Townleys. Esses bastardos não estavam nisso pelo orgulho.
Eles estavam nisso pelo poder.

Notei, no entanto, que ele estava constantemente ajustando


alguma coisa - o relógio, o anel do dedo mindinho, a gravata, o
colete.

Afinal, ele estava nervoso.

— Meu Deus, você não cala a boca? — Olhando para o corte


acima da minha sobrancelha, ele acrescentou com um sorriso
malicioso : — Mudo, hein?

Eu simplesmente arqueei a sobrancelha em um aviso


silencioso.

Liam sorriu. — Relaxe, companheiro. São apenas piadas. Todo


mundo sabe que o Devil of Dublin não é muito falador. Mas vou
dizer, — ele inclinou a cabeça para o lado enquanto me dava uma
olhada, — eu perdi, achei que seria feio.

Eu tinha que admitir, o filho da puta estava crescendo em mim.


Além disso, ele veio de Londres para me ajudar, então talvez não
me matasse ser um pouco menos idiota. — Eu sou feio onde conta,
— meditei, deixando de lado o tratamento de silêncio enquanto
colocava a mochila entre nós no canto do banco em forma de L.
Liam estalou os dedos e os apontou para mim. — Seus pedaços
imperfeitos, sim? Os meus são feios pra caralho, mas dão conta do
recado.

Senti uma risada ressoar em meu peito, mas forcei meu rosto
a permanecer neutro. Como ele disse, eu era Devil of Dublin. Aquele
que eles chamavam de Diabhal. E Diabhal não ria. Ele não sorria.
Ele não transava, bebia ou fumava. Ele falava apenas quando
necessário. E ninguém fora da UIB sabia como ele era porque todos
que viram seu rosto estavam mortos.

Quando finalmente senti minha máscara voltar ao lugar, abri o


zíper da bolsa. — Doze AR-15s, convertidos para totalmente
automático. Sem números de série. Vinte e cinco, em dinheiro.

Liam olhou para as armas apenas o tempo suficiente para


confirmar o que eu disse. Em seguida, ajustou as abotoaduras e
alisou o colete. — Vou te dar vinte para compensar o pé no saco
que foi vir até Dublin.

— Vinte mil libras... — Esfreguei o queixo como se estivesse


refletindo sobre isso, mas, na verdade, estava esperando para ver
se ele discordaria da minha escolha de moeda.

Quando ele não o fez, eu dei a ele um aceno solene e fechei o


zíper da bolsa.

— Tudo bem então. — Ele acenou de volta. — Eu vou fazer a


ligação. — Enquanto se levantava e abotoava o paletó, Liam
acrescentou: — E antes de eu lutar, o UIB era apenas um bando
de idiotas terroristas irracionais. Quem sabia?

Vagabundos irracionais e terroristas que sabem matemática.


Vinte mil libras valiam quase o mesmo que vinte e cinco mil
euros. Ainda teríamos dinheiro mais do que suficiente para obter
nossos papéis e dar o fora da cidade.

Assim que ele saiu da sala, deixei meu olhar vagar até o bar.

E imediatamente desejei não ter feito isso.

Darby estava empoleirada em uma banqueta, sendo fodida com


os olhos por um barman excessivamente amigável e pelo menos
três caras que deslizaram ao lado dela. Dois deles estavam tão
próximos que seus fodidos braços estavam roçando os dela. Estalei
os nós dos dedos da mão direita enquanto observava Darby se
encolher e olhar para sua cerveja meio vazia.

Como se ela pudesse sentir o calor da minha raiva, ela ergueu


os olhos e olhou por cima do ombro para mim. Erguendo uma
sobrancelha, Darby silenciosamente perguntou se meu olhar
significava que era hora de ela ir para os banheiros. Isso é
exatamente o que eu queria que ela fizesse, mas apenas para levá-
la para longe daqueles idiotas bêbados.

Balancei a cabeça, tão sutilmente que duvidei que alguém além


dela tivesse notado, e voltei meu olhar gelado para o britânico de
terno de três peças, que estava voltando com um sorriso no rosto
perfeitamente arrumado.

Apontando para mim, ele sorriu. — Ow precisamos de uma


cerveja, cara? Por minha conta.

Ele não esperou pela minha resposta - ou a falta dela - antes


de virar para a esquerda e bater com a mão no tampo do bar várias
vezes para desviar a atenção do barman da jovem ruiva gostosa
por quem ele estava babando. Tanto quanto eu apreciei ele
extraindo aquela besteira da presença da minha garota, algo não
caiu bem comigo sobre seu súbito interesse em socializar.

Talvez ele estivesse apenas satisfeito consigo mesmo porque


achava que estava fazendo um bom negócio, mas se estava tão
aborrecido por vir a Dublin, por que comprar uma rodada como
quem planejava ficar um pouco?

E foi aí que me dei conta.

Ele não estava comprando uma rodada.

Ele estava ganhando tempo.

Ao lado do bar, no lado mais próximo a mim, dois caras


pegaram um violino e um banjo e começaram a cantar ‘Whiskey in
the Jar’ a plenos pulmões.

Eu mal conseguia me ouvir pensando sobre o som de seu


gorjeio, mas não precisava pensar. Eu sabia que algo estava
errado.

Ensaiei todas as rotas de fuga possíveis e cenários de pior caso


em minha mente antes que o bastardo no terno sob medida
voltasse com duas canecas de Guinness.

— Saúde, companheiro. — Ele sorriu quando deslizou para o


seu lado da cabine em forma de L.

Quando não reconheci a cerveja que ele estava tentando me


entregar, Liam a colocou na minha frente, destemido.

Whack fol de daddy-o!

There’s whiskey in the jar.


— Você não tem ideia de quanto tempo estamos tentando
comprar do Bruvvahood, — ele gritou sobre a música antes de
tomar um gole de seu copo. — Mas os velhos babacas no topo estão
tão fodidos com alguma merda que aconteceu há cem anos que
eles nem vão se encontrar conosco. Então, não temos escolha a
não ser comprar da porra da Bratva.

Cada músculo do meu corpo ficou tenso no momento em que


ele pronunciou a última palavra.

— Eles nos cobram uma porra de um braço e uma perna


também, porque sabem que nos pegaram pelas bolas.

Meus punhos começaram a relaxar enquanto as coisas


lentamente começaram a fazer sentido. A paralisação. A simpatia.
Liam gostou tanto do preço que eu dei a ele que estava tentando
fazer um acordo por mais.

Uma multidão começou a se formar em torno dos músicos, e


agora metade da sala cantava junto.

Whack fol de daddy-o!

There’s whiskey in the jar.

Resolvi deixá-lo falar por cima do barulho por mais alguns


minutos. Então, eu diria a ele que falaria bem dele com os anciãos,
pegaria meu dinheiro, minha garota e daria o fora de lá.

O britânico se aproximou e gritou: — Mas eles estão dispostos


a negociar agora. — O britânico tomou outro gole de sua cerveja
enquanto seus olhos, tão duros e cheios de ódio quanto os meus,
se voltaram para a porta da frente.
Olhei para cima quando dois capangas, construídos como
paredes de tijolos e provavelmente duas vezes mais grossos,
entraram no bar. Eles acenaram na direção de Liam, mas não
estavam vestidos como ele. Esses filhos da puta usavam agasalhos
e correntes de ouro - o uniforme não oficial da infantaria da Bratva.

— Porque, agora, temos algo que eles querem.

O mundo inteiro mudou para câmera lenta quando percebi o


que estava acontecendo.

Liam não estava tentando fazer um acordo com a Irmandade.


Ele já tinha feito um acordo - com os russos. E eu era a porra da
moeda de troca dele.

Whack fol de daddy-o!

There’s whiskey in the jar.

Meus olhos dispararam da porta para o bar. Eu mal conseguia


ver Darby através da onda de palmas e cantoria de corpos que
enchiam o espaço aberto, mas assim que nossos olhos se
encontraram, ela se levantou e se dirigiu para os banheiros.

— De jeito nenhum. — O britânico riu, atacando um dos idiotas


e depois apontando para Darby enquanto ela desaparecia no
corredor ao lado do bar. — Você trouxe um encontro. Ai que legal.

Com um único aceno de cabeça grossa, o russo a seguiu.

Um inferno de raiva me envolveu. Eu senti como se estivesse


sendo queimado vivo e, de certa forma, estava. Enquanto o
presunçoso filho da puta ao meu lado sorria por trás de seu copo
de Guinness, a humanidade que eu havia recentemente
redescoberto ardeu em chamas. Kellen foi reduzido a nada mais do
que uma pilha de cinzas purulentas, e no local onde ele se sentou,
The Devil tomou seu lugar.

— E antes de eu lutar, você ia lutar, — o britânico refletiu,


balançando a cabeça antes de terminar sua cerveja.

Ele colocou a caneca vazia na mesa em triunfo e se virou para


mim. Colocando o cotovelo na parte de trás da cabine, a boceta
arrogante sorriu para os olhos sem alma da prole de Satanás. —
Agora, você joga bem, e eu vou deixar o passarinho ir. Mas faça
uma cena e...

O resto dessa ameaça escorria de sua boca escancarada


enquanto toda a cerveja Guinness que acabara de beber se
derramava de seu estômago estripado, escorrendo por suas calças
perfeitamente ajustadas.

Whack fol de daddy-o!

There’s whiskey in the jar.

A multidão cantando, batendo palmas e bebendo cerveja agora


enchia o pub, bloqueando a visão do russo enquanto eu colocava
a mão no ombro de Liam, girava-o em minha direção, arrancava
minha lâmina de sua barriga e a cravava em seu coração.

Bem na porra do seu lenço de bolso estampado.

Deitei a cabeça dele na mesa para parecer que ele havia


acabado de desmaiar, joguei a sacola no ombro e deslizei para fora
da cabine. Apalpei minha faca enquanto contornava a multidão e,
quando passei pelo russo na porta, esperei que ele me notasse
antes de sair correndo em direção aos valetes.
O primeiro capanga estava do lado de fora do banheiro
feminino. Ele não teve chance de reagir antes de eu agarrar um
punhado de sua jaqueta estúpida e brilhante com uma mão e
enfiar minha lâmina em seu estômago com a outra. Ele soltou um
rugido quando eu o empurrei pela porta para o banheiro
masculino, agarrando meu pescoço com suas malditas patas
carnudas. A adrenalina explodiu em minhas veias quando ele
encontrou seu alvo e apertou, mas tive que lutar contra o pânico.
Eu tive que ficar consciente enquanto ele esmagava minha
traqueia. Eu tinha que ficar alerta, mesmo quando minha visão
escureceu.

Eu o cortei de novo e de novo, cada golpe encontrando a carne,


mas seria preciso uma bala para derrubar aquele filho da puta. Eu
estava prestes a enfiar a mão na cintura para pegar minha arma
quando a porta se abriu e alguém gritou algo em russo. Mesmo
com o barulho de aplausos e canecas de cerveja tilintando, ouvi o
clique inconfundível de uma arma sendo engatilhada e, com o que
restava de minha consciência desaparecendo, joguei todo o meu
peso para baixo e para a direita.

Meu corpo caindo girou o filho da puta no lugar assim que seu
amigo puxou o gatilho. De repente, ouvi o silvo de uma bala sendo
disparada através de um silenciador, o rangido úmido dela
cortando carne e osso, e a explosão de gesso pela sala, onde abriu
um buraco na parede.

As mãos em volta da minha garganta imediatamente se


afrouxaram quando mais de cem quilos de peso morto desabaram
sobre meu corpo instável. Minha faca caiu no chão quando me
segurei na beirada da pia, ofegante. No momento em que o oxigênio
atingiu minha corrente sanguínea, todo o meu corpo parecia ter
sido injetado com vida pura e sem cortes.

Mais palavras russas foram gritadas. Outro clique ecoou pela


sala. Mas desta vez, meus pulmões estavam cheios e minha mente
estava clara.

Com uma súbita explosão de força, eu me afastei da pia o mais


forte que pude, lançando o enorme cadáver que havia caído nas
minhas costas na direção oposta. Eu me virei bem a tempo de ver
os olhos do atirador se arregalando enquanto o corpo de seu
companheiro se chocava contra o dele. Ele tropeçou para trás na
parede, e no momento em que sua pistola caiu no chão de
ladrilhos, nossos olhos se encontraram e mergulhamos para ela ao
mesmo tempo.

Eu estava mais longe.

Mas ele tinha um russo morto em seus braços.

O Bratva caído despencou no chão enquanto meus dedos se


curvavam ao redor da maçaneta, mas seu camarada estava bem
em cima de mim. Ele agarrou a arma pelo cano antes que eu
pudesse apontá-la para ele e tentou arrancá-la de minhas mãos.
Ele me deu uma joelhada nas costelas enquanto torcia o cano para
frente e para trás, mas quando ele agarrou meus dedos e começou
a forçá-los, um por um, eu quebrei.

Plantando uma bota no peito do filho da puta, lancei-o para


longe de mim, rolei de costas e atirei nele até que o pente estivesse
vazio. Rodada após rodada rasgou seu peito, seu estômago, seu
rosto nojento. Estremeci e apertei o gatilho de novo e de novo até
que a câmara apenas clicou. Até que a memória dele foi lavada em
um mar de sangue e vingança. Até que a única coisa que eu podia
ouvir era meu próprio coração acelerado e um coro bêbado de
‘Finnegan's Wake’ entrando pela porta.

Minhas mãos não paravam de tremer enquanto eu as esfregava


na pia. Tudo o que eu podia ver era vermelho. Tudo que eu podia
sentir era vermelho. Havia sangue escorrendo pelo ralo enquanto
eu lavava minha faca e a enfiava de volta na bota. O vermelho
salpicou meu rosto como as sardas de Darby. Havia vermelho
jorrando dos corpos no chão de ladrilhos, cruzando as linhas de
argamassa enquanto deslizava em padrões geométricos em direção
aos meus pés. Mas o único vermelho que minha mente conseguiu
processar foi a poça em que acordei depois que o padre Henry
arrancou meus dedos daquela porra de fuso e me espancou até
ficar inconsciente com ele.

Eu poderia ter pegado minha bolsa e saído daquele quarto com


meu corpo intacto, mas minha mente estava trancada dentro de
um sótão sem janelas em Glenshire.
Não sei quanto tempo fiquei sentada no chão com as costas
contra a porta, mas pareceu uma eternidade.

Eu estava andando pelo chão do banheiro, esperando Kellen vir


me buscar, preocupada demais com o que poderia estar
acontecendo lá fora, quando uma bala atravessou a parede acima
da pia e se alojou no teto. Mergulhei no chão e cobri minha cabeça,
e foi aí que fiquei. Esperando. Em pânico. Observando o pó de
gesso dos buracos de bala cair no chão como neve.

Os segundos passavam como horas. Uma música de bebida se


transformou em outra. E quanto mais eu esperava, mais doente
eu me sentia. Na verdade, eu rezei para que mais balas
atravessassem a parede porque as balas significariam que alguém
ainda estava vivo para atirar nelas.

Meu coração disparou quando a porta bateu contra minhas


costas.

Bam! Bam! Bam!

— Darby! Hora de ir!

Soltei um suspiro que se transformou em uma risada maníaca,


desesperada e aliviada quando me levantei.

Ele estava bem. Kellen estava bem.


No instante em que destranquei a porta, uma mão forte com
três sardas em um dedo estendeu a mão e me puxou para fora.

Kellen nem sequer olhou para mim enquanto me arrastava pelo


mar de corpos cantando, batendo palmas e pisando forte.

Uma manhã, Tim estava bastante cheio

Sua cabeça estava pesada, o que o fez tremer

Ele caiu da escada e quebrou o crânio

E eles o levaram para casa, seu cadáver para acordar

Passamos pela porta de saída, e o ar da noite estava tão fresco


quanto o bar estava quente e abafado. O refrão desapareceu
rapidamente no fundo quando Kellen começou a correr. Ele me
puxou pela mão pela calçada e por cima da ponte para o outro lado
do rio Liffey. Ele usou a mão livre para prender a alça da mochila
em seu peito enquanto corria, e meu coração disparou quando
percebi que ela ainda estava cheia e pesada como sempre.

Afundou ainda mais quando a música distante atrás de nós


parou abruptamente.

E foi substituído pelo som de gritos.

Assim que atravessamos o rio, Kellen disparou entre dois


prédios, me arrastando por um labirinto de vielas escuras e
úmidas enquanto sirenes soando e luzes piscando ricocheteavam
nas paredes ao nosso redor.

Meus pulmões queimavam e minhas pernas tremiam enquanto


eu lutava para manter o ritmo punitivo de Kellen, mas ele não
diminuiu a velocidade até que a porta dos fundos da casa estivesse
firmemente fechada e barricada atrás de nós.
Então, antes que eu pudesse perguntar o que tinha acabado de
acontecer, a mochila caiu no chão da cozinha, e Kellen atravessou
a casa até o banheiro, onde ele desapareceu com a batida de uma
porta.

Depois disso, tudo o que pude ouvir foi o som da água correndo
pelos canos e sangue correndo pelos meus ouvidos enquanto me
dobrava na cintura e tentava não vomitar.

As balas.

Os gritos.

As sirenes.

Alguém estava morto.

Alguém estava morto ou muito, muito ferido.

Oh Deus, era Kellen?

O jeito que ele estava agindo, o jeito que ele não me deixou ver
nada além de suas costas desde que saímos, o jeito que ele estava
me evitando...

Imaginei seu corpo nu deitado na banheira, sangrando de um


ferimento à bala enquanto o chuveiro caía sobre ele, e minhas
dores e exaustão foram repentinamente esquecidas. Corri pela
cozinha, fui direto para a porta que me separava do meu passado,
presente e, se a lenda fosse verdadeira, da eternidade e, sem bater,
corri para dentro.

Eu esperava mergulhar de cara em uma parede de vapor, mas


o ar dentro do pequeno banheiro parecia ainda mais frio do que o
resto da casa velha e fria. Eu não vi nenhuma roupa no chão -
apenas uma arma e uma faca jogadas na pia - então, quando virei
minha cabeça em direção à cortina fechada do chuveiro que
cercava a banheira com pés, eu sabia que Kellen devia ter entrado
completamente vestido.

— Kellen? — Abri o zíper de sua jaqueta e tirei meus sapatos.


— Você está bem?

Ele não respondeu. Eu não conseguia ver através da cortina


azul escura, mas pelo ritmo constante da água, não parecia que
ele estava se movendo.

Merda.

Aproximei-me do chuveiro. — Estou entrando, ok? Eu não vou


tocar em você. Eu só quero ver se você está ferido.

Puxei a cortina apenas o suficiente para entrar na banheira,


meus pés com meias gritando de dor quando aterrissaram em uma
poça de água gelada. Mas essa dor empalideceu em comparação
com o que senti quando olhei para a figura torturada diante de
mim.

Kellen estava curvado com um braço apoiado contra a parede


enquanto o spray gelado batia contra suas costas arfantes. Roupas
molhadas grudavam em cada protuberância e plano de seu corpo
musculoso, mas era o que ele estava fazendo com aquele corpo que
tinha um grito estrangulado subindo por dentro da minha
garganta.

Os olhos de Kellen estavam fechados com força, seu rosto


inteiro torcido em agonia, enquanto seu punho empurrava
furiosamente - violentamente - em seu pênis totalmente ereto.

Ele nem tinha me ouvido entrar.


Kellen se foi.

Eu entendia melhor do que ninguém como era deixar o corpo,


dissociar-se quando algo horrível estava acontecendo, mas tentei
ir para algum lugar melhor.

Kellen tinha ido a algum lugar muito, muito pior.

Eu não sabia o que fazer. Era como se ele estivesse trancado


dentro de uma jaula de dor da qual eu não tinha a chave. Eu não
podia tocá-lo. Eu estava com medo de desligar a água. Eu senti
que ele precisava disso de alguma forma. Precisava para se
refrescar. E talvez ele precisasse da libertação de se tocar também,
mas não desse jeito. Não era ele. Era como se isso estivesse sendo
feito com ele.

De repente, tudo ficou claro. Por que Kellen não me deixou


colocar minhas mãos em qualquer lugar abaixo de sua cintura. Por
que mesmo alcançá-lo rápido demais poderia fazê-lo entrar em
pânico. Por que ele podia tolerar sexo e beijos, mas não
preliminares simples.

Enquanto sua mão apertava e torcia e rasgava seu pênis,


lágrimas brotaram em meus olhos. Visualizei seu rosto bonito,
inocente e querubim, meio escondido atrás de uma cascata de
cachos negros, e soltei um soluço silencioso pelo menino preso
dentro do homem. Preso dentro daquela casa. Preso em seu
próprio silêncio.

Mas ele tinha saído. Ao contrário de mim, Kellen encontrou


forças para deixar seu agressor. Ele havia recuperado sua voz.
Recuperou sua vida. E eu sabia que ele tinha força para lutar
contra o que quer que o tivesse em suas garras agora.
Eu só tinha que descobrir como alcançá-lo.

— Kellen? — Eu sussurrei, levantando uma mão hesitante. —


Está tudo bem, querido. Tudo bem. Estou aqui. Sou só eu.

Eu queria tanto detê-lo, estender a mão e segurar seu braço,


mas ele não era mais Kellen.

Ele era uma cascavel enrolada.

Em vez disso, coloquei minha boca perto de sua orelha,


ofegando com o spray gelado ricocheteando em suas costas
enquanto sussurrei seu nome novamente. A água gelada parecia
lâminas de barbear enquanto encharcava minhas roupas em
cortes molhados, mas cerrei os dentes e respirei através dela.

— Kellen... — eu sussurrei novamente, forçando-me a


testemunhar sua dor. — Ele se foi. Ele se foi para sempre, querido.
Sou só eu.

Seus olhos se abriram, mas eles olharam diretamente para


baixo enquanto a água corria sobre seu rosto e pingava de seus
cílios negros.

Meu coração saltou em meu peito trêmulo.

— Vou ficar bem aqui, ok? Você n-não está sozinho.

Cerrei os dentes para impedi-los de bater, mas Kellen ouviu.


Sua mão parou de se mover quando aqueles horríveis olhos cinzas
dispararam para os meus. Então, eles deslizaram pelo
comprimento do meu corpo trêmulo, cada curva agora envolta em
roupas frias e molhadas. Meus mamilos gelados apertaram ao
ponto de doer sob seu olhar predatório, e meu súbito suspiro de
antecipação fez meu peito subir ansiosamente.
— Está tudo bem, — sussurrei, o calor correndo para a
superfície da minha pele gelada enquanto estendi a mão para seu
rosto. — Você pode me tocar. Em vez disso, toque-me.

Eu pensei ter visto um vislumbre de consciência por trás de


suas pupilas estouradas, mas no segundo em que meus dedos
roçaram sua bochecha, descobri o quão errada eu estava. A mão
de Kellen disparou para frente, apertando minha garganta e me
prendendo na parede. Um grito assustado explodiu de meus
pulmões quando meus olhos se fecharam, mas no instante em que
Kellen ouviu, ele me soltou com um suspiro repentino.

Uma sombra caiu sobre mim quando ele se levantou,


bloqueando o spray com seu corpo.

Eu respirei fundo e me forcei a olhar para ele, mas o rosto que


eu vi olhando de volta era ainda mais comovente do que o que eu
tinha acabado de ver. Os olhos de Kellen estavam claros,
arregalados e horrorizados.

Ele ergueu as mãos para tocar meu pescoço, meu rosto, meu
peito, mas se conteve a cada vez, balançando a cabeça cada vez
mais rápido.

Lágrimas arderam em meus olhos - não por causa dele, mas


por ele. Ele não tinha me machucado. Tudo aconteceu tão rápido
que ele nem me assustou. Mas eu sabia que isso não importaria
para ele.

— Ei. — Forcei um sorriso. — Tudo bem. Olhe para mim. Estou


bem.
Kellen se afastou de mim, a cabeça ainda balançando, e quando
ele não conseguiu mais recuar, ele abriu a cortina e saiu da
banheira.

Ele se comportou como um animal enjaulado em pânico - olhos


correndo para a esquerda e para a direita, pés plantados, joelhos
dobrados - pronto para correr.

Fechei a torneira e peguei uma toalha enquanto ele fechava o


zíper da calça encharcada e enfiava a arma de volta no cós. Em
seguida, ele deslizou a faca no coldre dentro de sua bota. Ele
deveria estar tirando a roupa, não se vestindo como se estivesse
prestes a...

Oh Deus.

Disparando pelo pequeno espaço, tentei bloquear a porta com


meu corpo, mas Kellen foi mais rápido.

— Não, não, não, não, não. — Eu o persegui. — Onde você está


indo?

Kellen saiu do banheiro, passando os dedos sobre a cabeça


molhada enquanto se dirigia direto para a porta dos fundos, mas
desta vez, eu fui mais rápida.

Corri à frente dele e bloqueei a saída, falando o mais rápido que


pude antes que ele chegasse à porta. — Não faça isso, Kellen. Não
saia assim de novo. Por favor. Há policiais em todos os lugares -
você pode ser preso lá fora. Você pode machucar alguém.

A agonia que emanava dele enquanto ele pisava forte em minha


direção era tão poderosa que me empurrou para trás contra a
porta.
Os olhos de Kellen eram selvagens, coléricos e vermelhos. Mas
desafiando sua raiva estavam suas lágrimas. Eles se espalharam
por suas bochechas pálidas, lábios entreabertos que se repuxaram
em um rosnado quando ele gritou: — Eu machuquei você!

Com um passo final, Kellen parou bem na minha frente,


inclinou-se para frente e me pegou por cima do ombro.

Eu soltei um grunhido gutural da boca do meu estômago vazio


quando ele se virou e voltou para o quarto.

E então ele estava subindo.

Graças a Deus, pensei, observando os degraus da escada


passarem ao contrário da minha posição de cabeça para baixo. Oh,
graças a Deus ele vai ficar.

Algo que eu disse deve ter chegado até ele. Kellen decidiu ficar
comigo em nosso pequeno ninho de amor até que ele se acalmasse
e, pela manhã, descobriríamos algo.

Quando Kellen chegou ao topo da escada, ele me colocou no


chão coberto de tapete. Minhas roupas frias e molhadas se
agarraram a mim, restringindo minha amplitude de movimento
enquanto eu rastejava rigidamente até os travesseiros, mas
quando me virei para olhar para Kellen, ele não estava me
seguindo.

Ele estava me fechando.

A porta articulada se abriu com um estrondo, mergulhando-me


na escuridão.

— Não! — Eu gritei, lutando de volta para o alçapão em minhas


mãos e joelhos. Eu agarrei e tateei as bordas brilhantes da porta,
procurando por uma maçaneta no escuro, mas quando a
encontrei, já era tarde demais.

Kellen se foi.

E a escada também.
— Você é tão estúpida.

— Isto é tudo culpa sua.

— Por que você tem que estragar tudo?

— Cale a porra da sua boca.

— Ninguém se importa.

— Prostituta.

— Garimpeira.

— Lixo branco.

— Cadela estúpida.

— Deus, você é tão sensível.

— Você é patética, sabia disso?

— Inútil.

— Inútil.

— Desamparada.

— Fraca.

John estava certo.


Eu era inútil.

E sem valor.

E desamparada.

E fraca.

Eu não conseguia fazer nada direito. Eu queria confortar


Kellen, acalmá-lo, e ao invés disso, eu fiz a situação muito pior.

Agora, ele estava por aí em algum lugar, enlouquecendo,


armado com duas armas mortais e procurado pela polícia.

E foi tudo minha culpa.

Se eu não estivesse tão impotente naquela noite com John,


nada disso teria acontecido.

Por minha causa, Kellen matou alguém. Um civil. Por minha


causa, ele estava fugindo com uma pessoa desaparecida. Por
minha causa, ele estava indo para me contrabandear para fora do
país. E por minha causa, ele pode ter matado outra pessoa
tentando conseguir o dinheiro para pagar por isso.

Abracei meus joelhos e descansei meu queixo no jeans


molhado, balançando para frente e para trás. Encontrei o
interruptor para as luzes de fada, mas elas não pareciam mais
mágicas. Agora, elas apenas se pareciam estúpidas.

Como eu.

— Patética.

— Inútil.

— Fraca.
— Cale-se! — Eu gritei, apertando meus olhos fechados e
cobrindo meus ouvidos com as duas mãos. — Cale-se! Cale-se!
Cale-se!

Eu não poderia passar mais um segundo presa naquele sótão.


Eu tinha que sair de lá. Eu tinha que fazer algo antes de ficar
completamente louca.

Abrindo a escotilha, olhei para o andar de baixo. Era uma


queda de pelo menos três metros até uma floresta de aparência
implacável, mas eu teria arriscado um salto duas vezes maior para
fugir da voz dentro da minha cabeça.

Para fugir dele.

Agarrando as bordas da abertura, abaixei-me em direção ao


chão até ficar pendurada apenas por minhas mãos. Então, eu
deixei ir. Meus pés bateram no chão com força suficiente para
chacoalhar minha coluna, mas quando me levantei, parecia estar
bem. Nada parecia dolorido ou ferido.

Rasguei minhas roupas encharcadas e vesti uma calça jeans


seca e um suéter. Eu não tinha me preocupado em me enxugar
primeiro, então a roupa grudou desconfortavelmente na minha
pele úmida, mas eu mal notei. Eu estava muito ocupada
repassando tudo o que tinha acabado de acontecer em um loop em
minha mente.

Eu nunca esqueceria o olhar no rosto de Kellen quando ele


percebeu o que tinha feito. Foi ainda pior do que a devastação que
eu tinha visto na noite anterior, quando ele pensou que eu estava
com medo dele. Ele saiu furioso então também.
E foi aí que me dei conta.

Eu sabia onde procurar.

Quinze minutos depois, parei na frente da entrada mais


próxima do Phoenix Park, me perguntando o que diabos eu estava
pensando.

Eu nunca iria encontrá-lo. Não só porque o parque era tão


grande quanto toda a vila de Glenshire, mas também porque
estava completamente escuro.

A parede de pedra que cercava o enorme espaço verde


arborizado pairava sobre mim enquanto eu espiava pelo portão
aberto, mas não conseguia ver mais do que alguns metros à frente
do meu rosto. A lua que estava tão brilhante e cheia apenas duas
noites atrás agora estava completamente coberta por nuvens, e eu
nem tinha um celular para iluminar meu caminho.

Ouvi passos, sons de luta, qualquer coisa que pudesse indicar


que Kellen ou alguém estava dentro daquelas paredes, mas tudo o
que ouvi foi o ocasional carro passando e o pio distante e
desanimado de uma coruja.

Dando alguns passos hesitantes pelo portão, parei e esperei


para ver se meus olhos se ajustariam, mas era inútil. A escuridão
engoliu o caminho, e eu junto com ela, enquanto a voz de John me
lembrava que idiota eu era.

Mas foi a voz de Kellen que me fez girar e correr de volta para
fora do portão.

— Tive que deixá-los tomar algumas doses. Só para ser educado.


— Quem?

— Os bêbados no parque. Eles geralmente são expulsos dos


pubs mais cedo por brigar e vão procurar encrenca. Eles
encontraram esta noite.

Minhas extremidades começaram a doer uma a uma enquanto


eu caminhava para o norte ao longo da parede de pedra,
procurando por outra entrada que ficava perto de um pub. Não
estava tão frio quando saí, mas quanto mais tempo eu ficava do
lado de fora com o cabelo molhado e a pele úmida, mais o frio
penetrava em meus ossos. Meus dedos das mãos e dos pés
pareciam ter sido esmagados por marretas congeladas, e meus
ouvidos latejavam até o cérebro.

Mas eu me arrastei. Parando em cada portão do parque para


ouvir sinais de vida, procurando por pubs que possam ter uma
clientela difícil. Eu disse a mim mesma que fazer algo era melhor
do que não fazer nada. Que eu não era estúpida ou inútil. Que eu
poderia encontrar Kellen e trazê-lo para casa. Mas quanto mais eu
andava, menos verdadeiras essas afirmações começavam a
parecer.

E isso foi antes de começar a chover.

Enquanto eu estava parada, tremendo na entrada da sexta,


sétima ou décima primeira entrada semelhante a um cemitério,
tornou-se impossível negar que John estava certo o tempo todo.

Eu não tinha encontrado Kellen.

Eu nem tinha escapado da voz dentro da minha cabeça.


Tudo o que consegui ao sair de casa foi ficar presa na chuva
gelada, a quilômetros de distância de casa, sem dinheiro, telefone
ou identidade.

Lágrimas quentes e chuva fria deslizaram pelo meu rosto


enquanto eu me encolhia em mim mesma, encolhida na entrada
coberta do parque para me abrigar. Assim que a chuva parasse,
eu me arrastaria de volta para casa e voltaria a não fazer nada. A
única coisa que eu não poderia estragar.

Minha festa de pena foi interrompida pelo som de uma porta


batendo nas proximidades.

Espiando pela lateral da parede, vi um lindo chalé branco em


estilo Tudor - pouco maior do que aquele em que eu estava
agachada - encaixado no espaço estreito entre o muro de pedra
que cercava o parque e a rua. Tinha algumas mesas de piquenique
na frente e uma placa de néon acima da porta que dizia Hole in the
Wall em uma peculiar fonte inglesa antiga. Mas, por mais estreita
e pitoresca que fosse a frente do prédio, a parte de trás parecia
durar para sempre. Era como se alguém o tivesse esticado ao longo
da parede como um chiclete até que finalmente desaparecia em
uma curva.

Uma pequena luz laranja apareceu na porta, iluminando a


ponta de um cigarro e um rosto barbudo e áspero atrás dele. Como
se pudesse sentir que eu o observava, o homem ergueu os olhos e
tossiu uma nuvem de fumaça.

— Jesus Cristo. — Ele tossiu novamente, desta vez seguido por


uma risada rouca. — Você assustou a merda fora de mim. Pensei
que você fosse o fantasma de Jonathan Swift.
— Jonathan Swift, tipo, o famoso escritor?

— Sim. Ele assombra o parque. Entre outras coisas. — O


homem fez um gesto em minha direção com a ponta brilhante de
seu cigarro e ergueu uma sobrancelha. — Você não vai entrar aí,
vai?

Balancei a cabeça, esfregando os braços com as mãos cobertas


pelas mangas. — Só... tentando ficar longe da chuva.

A brasa brilhou mais forte quando ele deu outra tragada. Seus
olhos me observavam com interesse, mas ao contrário do resto de
sua aparência desalinhada e volumosa, eles pareciam suaves.
Gentis.

— Você está muito longe de casa.

Acho que essa foi a maneira dele de abordar meu sotaque, mas
o sentimento me atingiu de forma inesperada. Baixei o olhar para
o meu Converse encharcado e balancei a cabeça lentamente.

— Eu sou Conor.

Olhei para cima a tempo de vê-lo colocar a mão no peito e me


fazer uma pequena reverência.

— O melhor barman de Dublin… de acordo com minha mãe.

Forcei um pequeno sorriso. — Darby.

Ele exalou uma corrente de fumaça com um pequeno sorriso


antes de inclinar a cabeça em direção às portas duplas logo atrás
dele. Um brilho quente se infiltrava por todas as vidraças junto
com os sons fracos de copos batendo e risadas.
— Você quer entrar, Darby? Você pode dizer a todos os seus
amigos em casa que tomou uma cerveja no maior pub da Europa.
Tenho certeza de que ficarão verdes de inveja.

— Oh, uh... eu não... tenho nenhum dinheiro.

— Você não ouviu? — Ele jogou a guimba de cigarro na rua e


abriu a porta. A luz dourada se espalhou, caindo aos meus pés
como um tapete de boas-vindas. — Cerveja é de graça na Irlanda...
a menos que você seja feio.

Lá dentro, a atmosfera era ainda mais aconchegante do que eu


esperava. E Conor não estava brincando quando disse que era o
pub mais longo da Europa. Parecia o pub mais longo do mundo.
Mas por ser tão estreito, cada cômodo parecia íntimo. Convidativo.
As paredes, o chão e o teto eram cobertos com uma rica madeira
marrom, fazendo parecer que eu estava andando pelo tronco oco
de uma árvore de mogno caída. As cadeiras e bancos eram forrados
de couro cor de sangue de boi, as mesas eram feitas de madeira
recuperada e barris de uísque, e nos fundos, ao lado do bar que
Conor deveria administrar, havia uma lareira de pedra acesa.

Eu corri e me ajoelhei no chão em frente a ela, segurando


minhas palmas para as chamas enquanto um pouco do frio
deixava meu corpo com um arrepio violento.

Uma cerveja, eu disse a mim mesma. Só vou me secar, esperar


parar de chover e voltar.

Conor encheu os copos de todos no bar, desculpando-se pela


espera enquanto eles esticavam o pescoço para gritar o jogo de
futebol na TV acima deles. Então, ele me trouxe um copo de algo
que definitivamente não era cerveja.
— Isso vai esquentar sua barriga, — ele disse, me entregando
um copo pequeno cheio de um líquido da mesma cor da lenha no
fogo.

Aceitei com um sorriso agradecido. — Obrigada. Seriamente.

De perto, pude ver que ele era mais jovem do que eu pensava
inicialmente. E mais bonito. Escondido atrás daquela barba
desalinhada estava um rosto de menino com maçãs do rosto
salientes, olhos azuis brilhantes e lábios permanentemente
sorridentes.

— Você não vai me agradecer depois de experimentar. — Ele


piscou.

Tomei um gole e imediatamente sibilei de dor quando todo o


meu esôfago pegou fogo.

— O que é isso? — Eu tossi.

— McCaffrey Irish Whiskey. — Conor riu, agachando-se para


ficar no mesmo nível que eu. — Nossa marca própria. Dizem que é
tão forte que dá até pelos no peito.

— Bem, nesse caso... — Tomei outro gole maior e apertei meus


olhos fechados através da queimadura.

Conor riu de novo, e eu percebi que algo sobre isso fez o cabelo
da minha nuca se arrepiar. Talvez porque soasse como a risada de
um fumante. Todos os canalhas que frequentavam a casa do meu
pai eram fumantes. E todos eles tinham a mesma risada cruel e
rouca.
— Ah, a porra da notícia! — Alguém do bar gritou enquanto o
resto dos clientes resmungava em uníssono. — Agora que o jogo
estava ficando bom também.

— Um casal americano – visto pela última vez em Glenshire,


County Kerry – foi dado como desaparecido.

As palavras casal americano e Glenshire fizeram minha cabeça


saltar para a tela acima do bar. Lá, olhando para mim de dentro
de uma caixa ao lado de uma apresentadora de notícias, havia uma
foto de alguém que se parecia muito comigo e alguém que se
parecia muito com o homem que agora era apenas uma voz
desencarnada em os recessos mais escuros da minha mente.

— Eles foram identificados como John David Oglethorpe e


Darby Collins. A família do Sr. Oglethorpe está oferecendo uma
recompensa por seu retorno seguro. Se alguém tiver alguma
informação sobre o paradeiro deles, por favor, ligue para-

Meus olhos vagarosamente retornaram aos de Conor, que agora


estavam arregalados com a compreensão.

— Você não disse que seu nome era...

— É ela! — Um homem grande de meia-idade empurrou seu


dedo carnudo em minha direção de seu poleiro no bar. — A menina
das notícias! Olha, sim?!

Cada cabeça na sala ficou em silêncio e se virou em minha


direção.

Coloquei meu copo no chão e me afastei de Conor lentamente,


balançando a cabeça em um apelo silencioso.
Suas sobrancelhas se juntaram em confusão enquanto ele me
observava ir, mas ele não disse mais uma palavra.

O resto do pub, no entanto, não me ofereceu a mesma cortesia.

— Tem que ser ela.

— Olha esse cabelo.

— Ela não disse que havia uma recompensa?

— Nah, a recompensa é para o cara.

— A recompensa é para os dois, idiota!

— Se alguém está recebendo a recompensa, sou eu! — O


homem do bar anunciou, afastando aquele dedo de mim e
apontando-o para si mesmo. — Eu a vi primeiro!

Girando, comecei a correr. Mas eu só andei cerca de três metros


antes que um homem alto em um uniforme da polícia se levantasse
de seu assento e bloqueasse meu caminho.

Eu bati em seu peito inflexível com tanta força que teria


tropeçado para trás se ele também não tivesse me agarrado pelos
braços. Mesmo através da jaqueta fofa de Kellen, eu podia sentir
seus dedos cavando em mim.

Eu congelei quando o pânico disparou pela minha corrente


sanguínea, agarrando meus músculos e roubando minha voz.

— Não se preocupem, rapazes, — o oficial rosnou, apertando


ainda mais. — Vou cuidar bem dela.
Fiquei nas sombras de um armazém abandonado, apenas
parcialmente protegido da chuva, enquanto olhava para o meu
apartamento do outro lado da rua. Eu não tinha nenhuma porra
de ideia de como eu tinha chegado lá. Eu senti como se estivesse
perdendo a cabeça. Pedaços inteiros de tempo estavam faltando no
meu dia, e as partes que eu conseguia lembrar pareciam memórias
distantes. Darby e eu rindo de Tesco. O gosto de açúcar em seus
lábios e suor salgado em sua pele. O sangue. Os corpos. Tantos
corpos.

Então nada.

O pavor penetrou na medula dos meus ossos.

As únicas vezes em que desmaiei antes foram em Glenshire,


durante os piores rituais e punições do padre Henry. Quando
acordava, horas depois, estava coberto de fluidos corporais secos
e sangrando de algum novo ferimento sofrido durante minha luta.
Eu não estava sangrando, isso eu poderia dizer, mas estava
encharcado.

E eu não tinha ideia de onde Darby estava.

No segundo que o nome dela passou pela minha mente, uma


imagem rompeu a névoa negra que me separava das últimas duas
horas da minha vida. Era Darby, no chuveiro, totalmente vestida,
com uma mão em volta da porra de sua garganta.

As chamas dentro de mim queimaram imediatamente,


reduzindo a imagem a cinzas, mas era tarde demais. A maneira
como meu estômago revirou, a maneira como a bile queimou o
fundo da minha garganta, a maneira como minha mão direita se
abriu, como se a soltasse, eu sabia.

Eu tinha feito exatamente o que tinha medo de fazer desde o


momento em que ela voltou para minha vida. O que acontecia toda
vez que alguém chegava muito perto. Eu fui acionado. Eu tinha
perdido o controle. E eu a machuquei.

Não.

Meu coração batia contra minhas costelas quase tão forte


quanto meu punho batia contra a porra do meu crânio grosso
enquanto eu rasgava o deserto sombrio e pútrido da minha mente,
procurando por respostas.

Eu vi sangue escorrendo por um lenço de bolso de seda.

Sangue atravessando as rachaduras no piso de ladrilhos.

Uma arma com silenciador.

Minha Beretta na pia.

Um alçapão se fechando.

Uma sacola no chão da cozinha.

Uma sacola que deveria estar vazia, mas não estava.

Era isso. Era por isso que eu estava do lado de fora do meu
apartamento, embora tudo dentro de mim gritasse para voltar,
para ter certeza de que Darby estava bem, para cair de joelhos e
pedir desculpas por tudo o que eu tinha feito. Não que eu
merecesse seu perdão. Eu esperava que ela me odiasse pelo resto
de sua vida, mas até que eu tivesse dinheiro suficiente para tirá-
la do país, o resto de sua vida poderia ser muito, muito curta.

Quando a névoa começou a se dissipar de minha mente, olhei


para a fileira de prédios de tijolos em ruínas à minha frente com
determinação renovada.

A UIB era dona de todos eles. Doze casas geminadas juntas no


lado sul do parque - o lado duvidoso, perto da estação de trem.
Metade das unidades teve seus andares inferiores convertidos em
lojas em algum momento durante os últimos cinquenta anos, mas
eram apenas uma fachada. Reparação de máquinas de cortar
relva, aluguel de bicicletas, lavandaria, barbearia. A sorveteria
estava completamente fechada. Ninguém entrou, ninguém saiu,
mas a Irmandade provavelmente relatou que eles faturavam sete
dígitos por ano.

Os andares superiores haviam sido convertidos em


apartamentos para abrigar os soldados que eles acolhiam. Garotos
como eu, sem lugar para ir, sem opções, sem futuro e com algum
talento que valia a pena explorar. A maioria deles se mudou assim
que economizou dinheiro suficiente, mas eu não tinha esse luxo.
Mesmo tendo dinheiro suficiente para comprar o prédio inteiro,
sem nenhuma identificação, não consegui abrir a porra de uma
conta no banco, muito menos comprar um imóvel.

A outra metade dos sobrados compunha a sede da UIB. Eles


foram combinados para formar um grande palácio por dentro,
totalmente equipado com escritórios, salas de reunião, áreas
comuns, mesas de bilhar, bares, uma pista de boliche e muitos
quartos de hóspedes para amantes. Era tão decadente por dentro
quanto em ruínas por fora.

Mas não o meu lugar. Eu recebi o apartamento acima da


lavanderia, e era tão ruim quanto parecia.

Tinha que ser depois da meia-noite. Não havia uma alma na


rua, mas eu sabia que a Irmandade estava de olho na minha casa
o tempo todo. Tudo o que eu tinha que fazer era atravessar a rua
e destrancar a porta, e quando chegasse ao andar de cima,
provavelmente teria cinco soldados de infantaria da UIB atrás de
mim com armas em punho.

Ainda bem que eu tinha pelo menos dez balas na minha.

Tirei a Beretta da cintura e respirei fundo. Fechando os olhos,


visualizei as chamas recuando para os cantos sombrios da minha
mente. Senti o beijo gelado da morte percorrer minha corrente
sanguínea, entorpecendo tudo o que tocava. Eu estava no controle.
Eu era o homem mais temido de Dublin. Eu era aquele a quem
chamavam de Diabhal.

E eu vim pelo que era meu.

Assim que pisei na calçada rachada, a chuva parou. Era como


se as nuvens quisessem uma visão melhor do que diabos estava
prestes a acontecer.

Examinei cada janela, cada carro estacionado, mas sabia que


não encontraria ninguém. Por que vigiar quando você pode colocar
uma câmera e receber uma pequena notificação conveniente em
seu telefone assim que seu alvo chegar?

Enquanto atravessava a rua com a arma em uma das mãos e a


chave na outra, procurei por qualquer coisa que pudesse abrigar
uma câmera escondida. E eu encontrei. Uma pequena caixa preta
retangular. Era do tamanho de um maço de cigarros, mas em vez
de estar preso à parede, como uma campainha, fora aparafusado
na parte superior do batente da porta, apontando para baixo.

Caminhei até a porta azul desbotada e, com um único golpe da


coronha da minha arma, o dispositivo voou. A câmera ricocheteou
na porta e caiu aos meus pés, onde a última coisa que gravou foi
a sola da minha bota quando a quebrei em pedaços ao entrar.

Subi as escadas o mais rápido possível, tentando ouvir sinais


de vida, mas tudo o que encontrei quando cheguei ao topo foi uma
merda de apartamento saqueado.

Eles não teriam encontrado muito. Morar na propriedade da


UIB nunca me pareceu seguro, então não guardei nada pessoal lá.
Roupas, equipamentos de ginástica, os móveis que eles forneceram
- era isso. Eu nem tinha computador. Fiz tudo do meu telefone -
que estava completamente limpo, graças ao The Butcher.

Eu só esperava que eles não tivessem encontrado meu


dinheiro.

Correndo pela apertada área de estar e cozinha até o banheiro,


puxei a tampa do tanque do banheiro e exalei de alívio. Dentro,
submerso na água, estava um saco plástico contendo trinta mil
euros, amarrado em quantias de dez mil. A Irmandade me dava
uma nova pilha toda vez que eu pegava alguém para eles, e nos
últimos cinco anos, ganhei o suficiente para começar a ficar sem
lugar para guardar.

Mas o resto teria que ficar escondido. Por mais perto que
estivesse no quartel-general, eu tinha questão de segundos para
entrar e sair, se tanto.

Enfiei o saco molhado pingando debaixo da minha camisa já


encharcada e dentro do meu jeans.

Então, girei e encarei a escada com minha arma em punho.

Eu já tinha demorado muito, mas ninguém veio.

Não havia soldados de infantaria marchando pelas minhas


escadas.

Sem executores.

Nada de capangas russos em agasalhos e correntes de ouro.

Achei que seria necessário um exército para me deixar de


joelhos.

Acontece que bastou um único texto.


— Ele veio desarmado, — Sean, o garoto que amarrou minhas
mãos atrás das costas, anunciou quando saímos do elevador e
entramos na garagem sob os prédios da UIB.

O fato de terem colocado um novo recruta na porta só podia


significar uma de duas coisas. Ou eles tinham tanta certeza de que
eu mataria alguém que ofereceram seu mais novo soldado como
sacrifício ou tinham tanta certeza de que eu iria cooperar que nem
se deram ao trabalho de desperdiçar seus músculos comigo. Eu
esperava que fosse o motivo número um, mas assim que vi a porra
da cara presunçosa de Séamus, soube que era o motivo número
dois.

Eles realmente tinham Darby.

— Vejo que você recebeu minha mensagem. Por favor, — ele


estendeu a mão à minha esquerda, — entre no meu escritório.

A garagem ocupava toda a largura das moradias com uma


entrada de um lado e uma saída do outro. Podia acomodar pelo
menos sessenta carros, mas geralmente estava cheia apenas pela
metade. Uma dúzia de carros, como o que eu havia deixado em
Glenshire, estava agrupada de um lado; uma frota de luxuosos
sedãs pretos reluzentes estava estacionada no meio; e do outro
lado estavam os próprios pedaços de merda dos soldados.
Meu sangue estava bombeando com tanta força quanto o
grunhido e segui Séamus pelo corredor central que pude ouvi-lo
mais alto do que meus próprios pensamentos. Eu podia senti-lo
pulsando em minhas têmporas e subindo contra as braçadeiras
que prendiam meus pulsos atrás das costas. Eu praticamente
podia vê-lo tornando minha visão vermelha.

E então, tudo o que pude ver foi Darby.

Ela estava sentada em uma cadeira de escritório com rodinhas


em uma vaga de estacionamento vazia entre dois Audis pretos.
Seus olhos, arregalados de medo e arredondados de remorso,
encheram-se de lágrimas no segundo em que encontraram os
meus, mas quando ela foi enxugá-los, suas mãos se sacudiram
impotentes contra as braçadeiras que os prendiam no lugar.

Ela foi contida.

Ela odiava ser contida.

— Encontramos sua pequena motorista de fuga. — Séamus


disse, colocando uma mão nas costas da cadeira de Darby. —
Sabe, não precisava chegar a esse ponto.

O cara que havia me substituído como segurança de Séamus,


Ronan, estava do outro lado dela. Ele era tão burro quanto grande,
mas eu nunca tive problemas com o filho da puta.

Até agora.

Séamus observou a reação de Darby enquanto Sean me guiava


para ficar na frente deles, mas o rosto dela não revelava nada. Nem
mesmo para mim.
— Depois do nosso... incidente nas docas, todos os guardas da
nossa folha de pagamento ficaram de olho em um Ford Fiesta
prateado. Então, adivinhe o que foi relatado como desaparecido no
dia seguinte? Uma linda ruiva e seu namoradinho americano... e
eles dirigiam um Ford Fiesta prata.

O vapor subiu do meu corpo cheio de ódio enquanto eu olhava,


sem piscar, nos olhos de Séamus. Eu ia arrancá-los de suas
órbitas e enfiá-los goela abaixo antes que isso acabasse. Ele era
um homem morto e sabia disso.

O fodido gordo e com cara de porco desviou o olhar da morte


em meus olhos, sacudindo a cabeça antes de desviar sua atenção
para Darby. — Um de nossos guardas a encontrou no Hole in the
Wall cerca de uma hora atrás, encharcada, sem sinal de seu
companheiro, e muito apavorada para falar.

O mundo inteiro começou a girar debaixo de mim enquanto


suas palavras abriam caminho através do som da adrenalina
bombeando em minhas veias.

Ela fugiu.

De mim.

A imagem de minha mão ao redor de sua garganta voltou a


bater em minha consciência quando olhei para o rosto sem vida de
Darby. Ela estava olhando para o chão entre nós, incapaz de me
olhar nos olhos.

O que eu fiz?

Que porra eu tinha feito?


— Pobre garota. — Séamus virou a cabeça, agora falando com
Ronan. — Você pode imaginar a merda indescritível que esse filho
da puta fez com ela?

Minha cabeça virou de volta para a dele quando a raiva


começou a nublar minha visão.

— Uma vez eu o vi estripar um homem, — ele continuou com


uma pitada de diversão. — Foi como um zíper. — Séamus fez um
barulho enquanto arrastava o punho para cima e sobre a
protuberância de sua barriga. — Tudo apenas … caiu. Nojento.
Bastardo ainda estava vivo também.

— Jesus. — Ronan riu. — Nenhum homem deveria ter que ver


suas próprias entranhas.

Os olhos de Darby se arregalaram e dispararam para os meus.

Séamus respondeu ao choque dela com uma risada. — Ah, você


não sabia? Querida, você foi sequestrada pelo próprio Devil of
Dublin. Ele é um fodido doente, este aqui. Você tem sorte de estar
viva. A maioria das pessoas que vislumbra essa cara bonita não
vive para contar a história.

— Quantas mortes ele já fez? — Ronan perguntou, como se eu


não estivesse ali. Como se meu mundo inteiro não estivesse
desabando ao meu redor enquanto eu observava o rosto de Darby
se transformar de chocado a horrorizado a... estremecido. Essa foi
a melhor maneira que eu poderia descrever.

Era assim que todos me olhavam na aldeia. A maneira como as


pessoas olham para uma aberração quando estão tentando não
encarar. Ou o filho de Satanás.
Ou o assassino mais mortal da história irlandesa.

— Sinceramente, perdi a conta. — Séamus deu de ombros. —


Nós mantemos o rapaz ocupado.

Ronan e Séamus continuaram com suas brincadeiras de merda


sobre eu foder os corpos de minhas vítimas e beber seu sangue,
mas eu não estava mais ouvindo. Meu foco se estreitou para um
ponto não maior do que o pequeno anjo sentado na minha frente.

Sua expressão era ilegível, mas a maneira como seu peito subia
e descia, a curva de suas costas enquanto ela se afastava de mim
e o brilho de terror em seus grandes olhos verdes me diziam tudo
o que eu precisava saber.

As chamas que ameaçavam queimar minhas restrições se


apagaram completamente quando a certeza gelada e entorpecente
da morte deslizou por minhas veias. Só que desta vez, não estava
me preparando para tirar uma vida. Estava me preparando para
perder a minha.

Eu sempre soube que terminaria assim.

Que Darby descobriria a verdade sobre o que eu realmente era.

Que Deus nunca me deixaria ficar com ela.

Que eu teria que pagar pelos crimes que cometi.

E saber que eu estava certo me deu uma sensação doentia de


satisfação. Uma sensação de que talvez houvesse justiça no
mundo, afinal. Eu não merecia viver. Eu não merecia um anjo
como ela. Talvez Deus simplesmente tenha me usado como uma
ferramenta para libertá-la de seu noivo, e agora ela poderia
encontrar todas as coisas boas e maravilhosas que estavam
esperando por ela.

Eu poderia viver com isso.

Ou melhor, eu poderia morrer com isso.

Eu tinha conseguido minha meia hora no céu.

E agora, o Diabo sabia que eu estava morto.


— Ah, você não sabia?

— … o próprio Diabo de Dublin.

— Ele é um fodido doente, este aqui.

— Você tem sorte de estar viva.

Olhei para o rosto inexpressivo de Kellen enquanto as palavras


dos homens entravam e saíam da minha mente confusa.

O policial que me arrastou para fora do bar me algemou e me


vendou antes de me enfiar no porta-malas de seu carro. Ele me fez
algumas perguntas, mas eu me recusei a falar. Lembrei-me do que
Kellen disse sobre alguns dos policiais serem sujos, e nenhum
policial normal vendaria uma pessoa desaparecida.

Minhas suspeitas foram confirmadas quando ele me puxou


para fora do carro e tirou a venda. Não estávamos em uma
delegacia de polícia. Estávamos em um estacionamento
subterrâneo, iluminado por um punhado de lâmpadas
fluorescentes duras.

Os dois homens parados ao meu lado agora - um baixo e


atarracado com uma tatuagem de trevo nas costas da mão, o outro
enorme e maldoso com uma cabeça careca como uma bola de
boliche - cumprimentaram o policial com um grosso envelope
pardo e um caloroso palmadinha nas costas. Eles me receberam
com uma cadeira com rodinhas e um par de braçadeiras.
Enquanto o grande me amarrava, o pequeno ria para si mesmo,
seus polegares grossos digitando uma mensagem em seu telefone.

Eu sabia que havia alguns bandidos atrás de Kellen.

Eu sabia que aqueles caras estavam trabalhando com a polícia.

Mas não foi até Kellen aparecer dois minutos depois - tão cedo
que ele já devia estar lá - e eu ouvi a maneira como eles interagiam
que eu finalmente percebi o que estava bem na minha frente o
tempo todo.

Kellen não era apenas um deles.

Ele era o pior deles.

— Quantas mortes ele já fez?

— Sinceramente, perdi a conta.

Eu estava olhando para alguém que eles chamavam de Devil of


Dublin mas tudo que vi quando olhei para ele foi um lábio
quebrado aparecendo por trás de uma cortina de cachos pretos
soltos.

Um caldeirão feito de um sapato de couro desgastado.

Um corpo magro e com cicatrizes caindo de costas em um lago


encantado.

Meu pobre e doce Kellen.

O que eles fizeram com você?

O que eles fizeram você fazer?


Eu tentei ao máximo manter minha expressão neutra. Eu não
queria que ele visse meu medo e pensasse que era por causa dele.
Eu estava com medo por ele. Eu estava com medo de perdê-lo. Mas
eu nunca, nem uma vez, tive medo de Kellen Donovan.

Eu queria que ele visse isso. Que eu acreditei nele. Que eu sabia
que ele nos tiraria disso, como sempre fazia. Mas quando Kellen
desviou os olhos de mim e soltou a rigidez de sua mandíbula o
suficiente para falar, algo em sua postura - na inclinação
resignada de seus ombros largos ou no vinco profundo entre suas
sobrancelhas escuras - me disse que ele não tinha conseguido ler
a mensagem.

— Leve-a de volta para os guardas, — disse ele, seu súbito


comando cortando suas risadas. — Diga a eles para limpar o nome
dela no desaparecimento de seu noivo e mandá-la de volta para os
Estados Unidos… e eu me renderei aos russos.

Render?

— Feito. — O homem mais baixo à minha esquerda bateu


palmas antes de abrir a porta traseira do SUV estacionado ao
nosso lado. — Desculpe por isso, rapaz. Você sabe que nós
amamos você, mas temos que fazer o que é melhor para a
Irmandade.

Render!

Kellen se recusou a olhar para mim. Não havia mais raiva


saindo dele. Não há mais ira ardente ou hipervigilância de gatilho.
O ar ao seu redor era suave, frio e pacífico como um saco de
cadáveres.
— Não! — Eu gritei, me debatendo contra minhas restrições
enquanto ele caminhava em direção à porta aberta ao meu lado,
olhos vazios fixos na calçada rachada na frente dele. — O que você
está fazendo? Para! Por favor!

— Parece que Diabhal conseguiu um admirador. — O cara


maior bufou, zombando da minha dor enquanto eu girei e me
esforcei em direção a ele em vão.

Alcançando com as pontas dos dedos desesperadas, senti o


cabo de plástico cortando a parte de trás do meu pulso esquerdo
quando ganhei meio centímetro que precisava para agarrar o jeans
de Kellen quando ele passou.

Ele congelou imediatamente, seu olhar gelado viajando do chão


para minha mão esquerda agora sangrando.

— Não, — eu sussurrei, minha voz tremendo enquanto meus


dedos se enroscavam mais fundo no tecido. — Não faça isso. Por
favor. Tem que haver outra maneira.

Segui seu olhar até as três sardas pontilhadas em meu dedo


anelar, e o pequeno e vazio sorriso que ele deu a elas rasgou minha
alma.

— É fíor bhur ngrá, — Kellen recitou, sua voz tão suave e triste
quanto seu olhar assombrado. — Nós temos a eternidade, lembra?
Talvez eu já mereça você até então.

Meus olhos se encheram de lágrimas, borrando a última


lembrança que eu poderia ter de Kellen Donovan enquanto ele
desaparecia na traseira de um SUV preto.
Não havia palavras para descrever minha dor. Ela me engoliu
inteira. Ela me carregou para o fundo de sua barriga cavernosa,
onde meus pensamentos não podiam me alcançar. Onde meus
ouvidos não podiam ouvir. Onde um exército de dores individuais
- desespero, culpa, frustração, raiva, inutilidade, fraqueza,
impotência - me invadiu como um, devorando-me viva mordida
após mordida sem fim.

Olhei pela janela do carro, mas o mundo que passava lá fora


era tão negro quanto o da minha cabeça. Não havia iluminação
pública. Nenhum tráfego próximo. Onde quer que estivéssemos,
era remoto. Desolado. E definitivamente não era a estrada para
Glenshire.

Mas eu sabia que não seria assim desde que eles me colocaram
no banco de trás.

Eles amarraram minhas mãos atrás das costas e amarraram


meus pés juntos nos tornozelos.

Você não se preocupa com alguém fugindo se planeja libertá-


lo.

Kellen havia se sacrificado por nada.

Não, por algo pior do que nada - por mim.


— Eu tenho que admitir, garota. Você deve ter uma boceta de
primeira linha para deixar um bastardo como esse de joelhos.

Quando a risada profunda e áspera do motorista penetrou em


minha tristeza, era pouco mais que um estrondo abafado.

Arrastei meus olhos para o espelho retrovisor, onde o branco


dele brilhava em azul no painel de instrumentos digital. O homem
era um gigante, do tipo com mãos grandes e carnudas e rolos na
parte de trás da cabeça careca. E ao contrário de Kellen, ele parecia
realmente gostar de seu trabalho.

Seu sorriso torto fez meu estômago revirar.

— Eu nem pensei que ele tinha um pau. — O motorista riu. —


Achei que era por isso que ele está tão chateado o tempo todo.

Então, ele cavou um pequeno frasco do bolso. Eu não sabia o


que havia dentro, mas depois de bater nas costas da mão algumas
vezes, ele abaixou a cabeça e bufou o que quer que fosse pelo nariz.

Observei seus olhos azuis rolarem para trás em sua cabeça


enquanto ele esfregava o lado do nariz com um gemido gutural.

Eu puxei meus joelhos para o meu peito e voltei minha atenção


para a desolação do lado de fora, mas eu ainda podia ver seu
reflexo no vidro enquanto ele inalava outra protuberância de sua
mão.

— Agora, ele é uma putinha mal-humorada. — Ele embolsou a


coca sem tirar os olhos de mim. — Mas não posso dizer que o
culpo. Estou ficando duro só de olhar para você.

Ouvi o tilintar de um cinto, o arrastar de um zíper e, de alguma


forma, meu coração dizimado encontrou uma maneira de bater
novamente. Parar de bater. A mão do motorista começou a subir e
descer em seu colo, e percebi que levar um tiro em um campo não
era a pior coisa que me aconteceria naquela noite.

Nem mesmo perto.

— Foda-se, essa boceta vai ser tão apertada.

A adrenalina disparou em minha corrente sanguínea enquanto


meus olhos disparavam pelo interior do carro, mas não havia nada
que eu pudesse fazer. Sem armas. Nenhuma escapatória. Mesmo
que eu conseguisse pular do veículo em movimento, minhas mãos
e pés estavam amarrados. Eu nunca escaparia.

Eu nunca escaparia.

Com essa percepção, as luzes azuis no painel pareciam brilhar


cada vez mais, até que eu estava completamente cercada por um
brilho aquoso de cerúleo. Subia e descia com o ritmo lento e
hipnotizante de uma canção de ninar. Uma sensação de paz tomou
conta de mim e, como eu havia experimentado na noite anterior,
um conhecimento ainda certo se instalou em meus ossos.

Só que desta vez, o conhecimento não me disse que tudo ficaria


bem.

Não estava lá para me confortar.

Não segurou minha mão nem acariciou meu cabelo.

Ele ergueu meu queixo, endireitou meus ombros e disse: NÃO.

Não com palavras, mas com energia. Um zumbido azul que


parou abruptamente, como um ponto no final de uma frase.

NÃO.
Foi um decreto. Uma demanda. Uma linha desenhada na areia.

NÃO.

Eu não deixaria outro homem me tocar sem minha permissão.

NÃO.

Eu não abandonaria meu corpo e o deixaria ser atacado.

NÃO.

Eu não era impotente. Desamparada. Ou fraca.

Na verdade, eu era a força mais perigosa da Terra.

Eu era alguém sem nada a perder.

Com meus joelhos ainda puxados para o meu peito, levantei


minha bunda do assento e lentamente deslizei minhas mãos
amarradas por baixo de mim, trazendo-as para a minha frente.

— Você deve estar em alguma merda doentia para foder aquele


psicopata. — Seus olhos selvagens encontraram os meus no
espelho. — Você gosta de bruto, não é, vadia?

O som smack-smack-smack de pele contra pele foi


repentinamente abafado pelo barulho do cascalho sob os pneus
quando ele virou em uma estrada de terra de pista única.

Era agora ou nunca.

— Sim, — respondi com uma voz ofegante enquanto deslizava


para o assento atrás dele. Inclinando-me para frente, olhei por
cima do ombro dele, fingindo que não estava enojada com o pedaço
de carne em sua mão enquanto estendi a mão para o cinto de
segurança ao meu lado. Sem fazer barulho, puxei a folga o máximo
possível, formando um laço no ponto mais distante. Então, eu
lambi meus lábios, virei minha boca em direção a sua orelha...

E deixou cair o laço sobre sua cabeça.

Eu imediatamente soltei a pouca folga que restava e puxei o


mais forte que pude, pressionando meus pés amarrados na parte
de trás de seu assento enquanto eu puxava. Eu sabia que não seria
capaz de segurá-lo por muito tempo, mas não precisava.

Quando ele pisou no freio, o cinto de segurança travou no


lugar.

Eu segurei firme de qualquer maneira, apenas no caso de ele


soltar os freios, cavando meus calcanhares no estofamento de
couro enquanto ele arranhava e arranhava o tecido indestrutível.
Fechei minha mente ao som de sua luta. Aos gorgolejos e
grunhidos estrangulados e gritos histéricos de pânico. E, em vez
disso, pensei em Kellen. Imaginei seu rosto concentrado e
determinado enquanto ele fazia a mesma coisa com John.
Canalizei sua raiva silenciosa e latente. Ele me emprestou sua
força quando eu mais precisei. Ele tinha matado por mim.
Enfrentou seus medos por mim. Arriscou a vida por mim. E
enquanto meus antebraços ardiam e meus bíceps tremiam e meus
dedos se abriam - quando a vítima se tornava o carrasco - a parte
de trás de minhas pálpebras bem fechadas foi banhada por uma
ofuscante luz azul.

E o saber sorriu.
As paredes pareciam estar se fechando sobre mim.

Não me saio bem em espaços confinados e sem janelas.

Como o sótão em Glenshire.

Uma maneira de entrar. Uma maneira de sair. E quando as


luzes estavam apagadas, você não conseguia ver sua mão na frente
do rosto.

Ou o doente vindo para te ensinar uma lição.

Uma das vitrines fechadas com tábuas no quarteirão da UIB


costumava ser uma sorveteria. Agora, a única parte que eles
usaram foi o freezer. Era a cela/câmara de tortura perfeita. Sem
janelas. À prova de som. À prova de fuga. Já tinha ouvido falar,
mas nunca tinha visto.

Até que eu era o único trancado lá dentro.

Eu não tinha ideia de quanto tempo eu estava lá. O freezer


estava completamente vazio, o que era inteligente. Qualquer coisa
pode ser usada como arma nas mãos certas. Eu me encostei no
canto, de frente para a porta, e esperei que minha exaustão
finalmente me puxasse para baixo, mas a única coisa que me
encontrou lá no escuro foi tudo de que eu estava fugindo.

O cheiro de uísque no hálito rançoso do padre Henry.


Suas mãos tateando e quadris moendo.

Seu cinto.

Seus punhos.

O peso de sua cabeça em minhas mãos enquanto eu batia seu


crânio contra o chão.

O som disso triturando. De novo e de novo.

O calor do fogo enquanto eu assistia toda a minha vida arder


em chamas.

Os rostos de todos os homens que matei desde então.

Minha vergonha.

Meu auto-ódio.

Mas principalmente, minha completa e absoluta estupidez.

Porque quando repassei meus últimos momentos com Darby -


em cada detalhe angustiante, de partir a alma e eviscerar o coração
- notei algo que não havia notado antes.

Darby não tinha os olhos vendados.

Séamus a deixou ver seu rosto e de Ronan. O novo recruta. Ele


a deixou ver o prédio da UIB. Ele falou sobre os negócios da
Irmandade na frente dela.

Séamus nunca teve a intenção de deixá-la ir.

Eu disse a mim mesmo que estava sacrificando minha vida pela


dela, mas a verdade sempre me encontrava no escuro.

Eu fugiria. Assim como eu sempre fiz. Eu corri e a deixei lá para


morrer.
Meu corpo se contraiu, curvando-se sobre si mesmo enquanto
a sala encolheu até o tamanho de um caixão.

Rasguei meus braços, agarrei meu couro cabeludo, gritei das


profundezas de minha alma negra purulenta enquanto as chamas
me queimavam vivo, me dando as boas-vindas de volta ao meu
próprio inferno pessoal.

Lágrimas quentes queimaram meu rosto enquanto eu


pressionava minha boca careta nas sardas da minha mão
esquerda.

— Por favor, — eu implorei, meu sussurro sem voz irregular.


Estilhaçado. — Por favor, ajude-me a encontrá-la novamente. Serei
tudo o que ela merece na próxima vez. Eu serei o que você quiser.
Apenas, quando eles finalmente me matarem, me ajude a
encontrá-la novamente. Por favor.

Nunca me considerei um homem de fé. Mas eu tinha nesse


momento. Eu acreditava em um Deus que havia me abandonado.
Eu acreditava em um demônio cujo sangue corria em minhas
veias. E acreditei na única bênção que já recebi.

Eu precisei. Era tudo que me restava.

Uma lasca de luz azul apareceu à distância, como uma fissura


no tecido da paisagem infernal em que eu estava preso. Então, ela
se alargou, me chamando para me aproximar. Inclinei-me para a
frente, agachando-me de quatro, enquanto a realidade voltava ao
meu pesadelo.

Uma mão se estendeu através da fresta de luz e colocou duas


garrafas de água no chão - uma vazia e outra cheia.
— Você pode mijar no vazio, se precisar fazer xixi.

Não era Saoirse.

Não era um sinal.

Era só o fodido Sean, o novo recruta.

— Ela está morta? — Eu perguntei, minha voz crua e


quebradiça enquanto as dimensões da minha cela lentamente
voltavam ao foco.

A mão parou.

— Darby! — Eu rugi. — Ela está fodidamente morta?

— Eu, em... não sei se posso...

Eu avancei e corri para a porta, abrindo-a e derrubando Sean


em sua bunda. Ele pegou sua arma, mas eu agarrei seu braço
antes que ele pudesse puxá-lo para fora do coldre, torcendo-o nas
costas até que ele gritou de dor.

— Você tem três segundos...

— Alguém a levou! — Sean gritou. — Ela se foi!

Arranquei a arma de sua mão e pressionei o cano no centro de


sua testa. — Fala.

Sean fechou os olhos enquanto levantava as mãos trêmulas em


sinal de rendição. — Ronan a levou para as velhas minas de
Wicklow para... você sabe... cuidar dela... mas ele nunca mais
voltou. Também não atendia o telefone. Então, Séamus mandou
Mikey procurá-lo e encontrou o bastardo morto na beira da
estrada. Queimadura de corda em volta do pescoço.

— Estrangulado?
— Isso foi o que ele disse.

— Ronan?

— Sim.

— Quem diabos é forte o suficiente para estrangular Ronan?

— Eu... eu não sei, mas... quem quer que fosse, eles pegaram
sua garota.

Foda-se.

Baixei a arma e olhei, estupefato, para o rosto aterrorizado de


Sean.

— Alexi, — eu disse. — Ele a viu comigo nas docas. Tem que


ser ele. Ninguém mais sabe que ela existe.

Aquele filho da puta ia usá-la para me quebrar.

— Por favor, não fuja. — A voz de Sean tremeu quando ele me


nivelou com um olhar suplicante e aquoso. — Por favor. Séamus
vai me matar se eu deixar você escapar.

— Oh, eu não vou a lugar nenhum. — Eu me levantei e estendi


minha mão para o homem chorão no chão. — Alexi está com a
minha garota, e Séamus vai me levar direto para ele.

Sean exalou um suspiro trêmulo quando o coloquei de pé.

— Mas, — acrescentei, enfiando a pistola na parte de trás da


minha calça jeans, — se você não quer que ele descubra que peguei
sua arma, vou precisar de um favor.
— Em cem metros, vire à direita.

Depois de passar mais de duas horas atrás do volante do Audi


do cara morto, descobri onde ficava a seta... e foi isso. Com as
mãos ainda amarradas, liguei o pisca-pisca sem acionar os
limpadores de para-brisa - foi a primeira vez - mas quando tentei
diminuir a velocidade, acidentalmente parei o carro no meio da
rua. De novo. Frear, eu descobri, é uma espécie de tudo ou nada
quando seus pés estão amarrados.

Felizmente, eram quase quatro horas da manhã e ninguém


estava por perto para testemunhar minha luta.

Ou minha incapacidade de lembrar de que lado da estrada eu


deveria dirigir.

— Em cinquenta metros, seu destino estará à direita.

Outra coisa pela qual fiquei grata: o fato de Ronan - eu tinha


visto o nome dele na carteira de motorista - ter usado uma
impressão digital para desbloquear o telefone em vez de um código
de segurança. Eu não tinha ideia de onde estávamos, então tive
que usar seu polegar frio e azulado para acessar o GPS em seu
dispositivo.

Eu nunca havia tocado em um cadáver antes, mas fiquei


surpresa com o quão pouco isso me incomodava. Talvez fosse
porque ele parecia estar inconsciente. Ou talvez fosse por causa do
que ele havia planejado para mim. Talvez eu estivesse em choque
e simplesmente não conseguisse processar a situação. Mas seja
qual for o motivo, quando abri a porta e o empurrei para fora, o
baque de seu corpo gigante batendo na terra não me perturbou.

Honestamente, isso me deu uma sensação doentia de


realização.

E, uma ideia.

Desativei o requisito de impressão digital para não ficar sem


acesso ao telefone dele novamente e, em vez de ir para casa, dirigi
por duas horas e meia com as mãos e os pés amarrados - todo o
caminho até a estação Kent.

Meu coração estava na garganta quando entrei no


estacionamento. Havia dezenas de carros espalhados pelo asfalto,
mas no momento em que meu olhar pousou em um pequeno Ford
Fiesta na última fila, apertei minhas palmas das mãos e agradeci
silenciosamente a qualquer entidade, anjo ou espírito do lago que
parece estar ouvindo.

— Você chegou ao seu destino.

Eu havia trancado as chaves do Fiesta no porta-malas - junto


com meu telefone, bolsa e o conteúdo da mala de John - mas com
as janelas quebradas consegui entrar no carro sem problemas. E
não só encontrei as chaves bem em cima da pilha de coisas no
porta-malas, mas também encontrei o cortador de unhas com
monograma de John, que deu um jeito nas braçadeiras.
Deixei o carro de Ronan estacionado na estação de trem e, vinte
minutos depois, estacionei o Fiesta no acostamento de uma
estrada longa e escura, ladeada por árvores altas e frondosas.

Usei o GPS para encontrar o caminho de volta às docas e refiz


minhas curvas a partir daí.

Uma direita e três esquerdas.

Esse foi o erro que nos levou a ir para o norte nesta estrada
com um par de maníacos homicidas em nosso encalço para ir para
o sul nesta estrada e atacá-los de frente.

Estacionei exatamente onde me lembrava do tiroteio, mas além


de um novo conjunto de marcas de pneus saindo da estrada, não
havia sinal do BMW.

— Você é tão estúpida. — Uma voz profunda e familiar riu em


meu ouvido.

— Claro que se foi, idiota.

— Aquele carro bateu há mais de quarenta e oito horas. Você


realmente achou que os destroços ainda estariam aqui?

— Você viu a mensagem de texto no telefone daquele idiota. Seu


namorado vai embarcar em um avião particular com destino à
Rússia ao meio-dia. Então o que você fez? Você desperdiçou três
horas do pouco tempo que resta a ele...

— Cale-se! — Eu gritei, cobrindo meus ouvidos com as duas


mãos. — Cale a boca!
A voz de John ficou em silêncio quando saí do carro e bati a
porta. Eu andava de um lado para o outro entre os faróis, minha
silhueta cortando sombras negras raivosas na cena de um crime
que agora só existia em minha memória.

Não era mais a voz de John me dizendo que eu era estúpida.


Era a minha.

O que diabos eu estava pensando?

Um grunhido frustrado escapou do meu peito enquanto eu


agarrava uma pedra e a jogava o mais forte que podia na floresta.

Obrigada.

O som de pedra caindo em metal me parou no meio do


caminho. Girando minha cabeça de volta para a fonte do som,
notei uma lacuna na linha das árvores que eu não tinha visto
antes. Um buraco negro escancarado onde a vegetação rasteira
havia sido pisoteada.

Um buraco do tamanho de um carro.

Meus pés quase escorregaram debaixo de mim enquanto eu


derrapava pelo barranco lamacento e mergulhava de cabeça
naquela abertura. Eu não me importava com o tipo de criatura que
poderia encontrar à espreita lá. Na verdade, o que eu esperava
encontrar era o pior pesadelo da maioria das pessoas.

Puxando o celular de Ronan do bolso, acendi a lanterna e a


movi da esquerda para...

Oh meu Deus.

A placa branca brilhava como a lua cheia em uma noite clara


no segundo em que minha luz a atingiu. As superfícies ao redor
eram brilhantes e pretas. E logo acima dele, acendendo uma
centelha de esperança em meu peito oco, estava um pequeno
emblema redondo da BMW.

Prendi a respiração enquanto corri para a porta do motorista -


galhos e galhos açoitando meu rosto no escuro - e exalei em choque
e alívio quando minha luz revelou o que havia dentro.

O corpo de um homem caído sobre o volante.

E, felizmente, ele não era tão grande quanto Ronan.

Quando perguntei a Kellen se os caras que atiraram em nós


ainda estavam por aí, ele se recusou a me responder. Na época,
pensei que era porque ele não queria que eu me preocupasse por
eles ainda estarem vivos. Mas depois de ver sua reação quando
descobri o que ele fazia para viver, eu sabia.

Kellen não me respondeu porque não queria admitir que matou


alguém.

Pelo menos, esse foi o meu palpite. Foi um palpite forte o


suficiente para me trazer de volta a Cork e, pela primeira vez, meus
instintos estavam certos.

Parte de mim queria chorar de alegria. A outra parte - a parte


que sabia o que eu tinha que fazer a seguir - já queria vomitar.


Respirando fundo e com o cinto de segurança firmemente
preso, agarrei o volante do Fiesta com as duas mãos e pisei no
acelerador. Um grito saiu de mim quando o carro desceu a colina
e passou pelo buraco na linha das árvores, seguindo o caminho do
BMW. Pouco antes de bater na traseira dele, virei o volante para a
esquerda, passando pelos destroços e batendo em uma árvore um
pouco mais fundo na floresta. Eu não estava indo rápido, mas a
força do airbag batendo em meu rosto fez parecer que sim. Meu
coração estava disparado, meus ouvidos zuniam e meu nariz
parecia ter levado um soco de um pugilista enquanto eu
cambaleava para fora do carro, mas me forcei a me livrar disso. Eu
tinha que manter o foco. Eu tinha muito o que fazer.

Caminhando de volta para o BMW, abri a porta do carro sem


pensar... e imediatamente vomitei no chão.

O cheiro. Bom Deus.

Eu não tinha considerado o cheiro. O corpo de Ronan não


cheirava mal, mas ele estava morto há dois segundos. Esse cara
estava morto há dois dias inteiros. Meu estômago revirou
novamente enquanto eu me arrastava de volta para o Fiesta.

Quando voltei, estava pronta para a batalha. Eu tinha


amarrado um dos laços de seda Tom Ford de John em volta da
minha cabeça para que a parte mais larga do tecido cobrisse meu
nariz arrebentado. Então, apertei a ponto de não conseguir nem
respirar. Cheirar estava fora de questão.

Agarrando o cara pelas axilas, finquei os calcanhares no chão


e puxei o mais forte que pude. Galhos e folhas molhadas
esmagaram sob meus pés quando suas costas começaram a
escorregar pelo meu peito, mas eu o apertei com mais força e
continuei andando para trás. Não parei quando seus pés saíram
do carro e bateram no chão. Não parei quando meus braços
começaram a tremer e minhas coxas começaram a queimar. Não
parei até que o arrastei até o Fiesta e o sentei desajeitadamente no
banco do motorista.

E então eu queria vomitar tudo de novo.

Sua cabeça rolou em minha direção enquanto seu corpo caía e,


desse ângulo, pude ver que o lado de seu pescoço que não estava
visível para mim antes era uma bagunça sangrenta, com crostas e
mutilada.

Kellen tinha atirado nele. Bem na maldita jugular.

— Eca. — Afastei minha repulsa e dei a volta até o porta-malas.


Levantando a tampa, apoiei a luz do celular de Ronan no canto e
comecei a trabalhar.

Deixei as calças, a camisa, as meias e a cueca do cara - eram


bem básicas, mas troquei os sapatos e o cinto pelos de John.
Troquei o conteúdo de seus bolsos pela carteira e celular de John.
E, como cereja no topo, deslizei o anel da Escola de Direito da
Universidade Emory de John no dedo mindinho de sua mão
direita.

Nada disso era um ajuste perfeito, mas não precisava ser.


Porque depois que tirei minha carteira e meu celular do porta-
malas, encharquei o Sr. Stanislav Lipovsky, de acordo com a
identificação russa em sua carteira, e o resto do Fiesta com um
frasco inteiro de colônia Ralph Lauren. Então, encontrei o isqueiro
que encontrei em seu bolso e o acendi.
A floresta estava encharcada com a chuva recente, então eu
sabia que as árvores não iriam queimar, mas ‘John’ sim, e isso era
tudo o que importava. Quando o sol nascesse, os policiais
precisariam de registros dentários para identificar seu corpo.

Ou... uma identidade positiva de sua noiva.

Eu ainda tinha muito o que fazer, mas o que eu não tinha era
a voz de John na minha cabeça me dizendo que eu era um pedaço
de merda estúpido e inútil. Na verdade, a única voz que pude ouvir
enquanto caminhava de volta para a estação de trem era o suave
sotaque britânico do GPS de Ronan.

— Você chegou ao seu destino.

Caminhando até a entrada principal, joguei os itens pessoais


de Stanislav na mesma lata de lixo em que Kellen enfiou sua
camiseta encharcada de sangue dois dias antes, e meu coração se
apertou como um punho. Parecia errado estar lá sem ele. Parecia
errado estar em qualquer lugar sem Kellen. Mas, ao seguir seus
passos pela entrada e pelas máquinas de bilhetes, percebi que, de
certa forma, ele estava lá, guiando cada passo meu. A presença de
Kellen estava ao meu lado enquanto eu comprava uma passagem
só de ida para Dublin, assim como ele me mostrou como fazer. Sua
memória segurou minha mão enquanto me levava à mesma
plataforma que havíamos esperado dois dias antes. E quando o
café finalmente abriu, foi a voz de Kellen que ouvi, sussurrando
que deveríamos comprar um de tudo.

Mas Stanislav não tinha muito dinheiro com ele, então me


conformei com o maior café que eles tinham para oferecer e um
sanduíche de café da manhã.

A mulher mais velha atrás do balcão me olhou de cima a baixo


enquanto servia uma salvação fumegante em um copo de papel. —
Você está bem, amor?

Eu sabia que parecia que tinha acabado de sair de debaixo de


uma ponte com meu cabelo emaranhado, jaqueta enorme,
Converse enlameado e pálpebras caídas e sem dormir, então me
permiti ser honesta. Não só com ela, mas também comigo.

Balancei a cabeça com uma risada amarga, mas o que começou


como uma risadinha rapidamente se transformou em uma
gargalhada delirante, encorpada e maníaca. Eu passei meus
braços ao redor do meu corpo enquanto as lágrimas escorriam pelo
meu rosto imundo. Cada inalação era um suspiro trêmulo. Cada
exalação um soluço quebrado.

Sem dizer uma palavra, a barista deu a volta no balcão e me


envolveu em um abraço macio, quente e com cheiro de café
expresso. Seu corpo era muito gordo para ser o de minha mãe, mas
seu abraço era tão forte e sincero quanto. Forte o suficiente para
me segurar enquanto eu desmoronava.

— Shh, criança, — a mulher murmurou, alisando a mão sobre


o material brilhante da jaqueta de Kellen. — Vai ficar tudo bem.
Você sabe como eu sei?
Eu balancei minha cabeça com uma fungada.

— Porque você está coberta de sardas. Onde quer que você


tenha uma sarda é onde um anjo te beijou, sabe? Então, posso
dizer que você está totalmente protegida.

Eu ri novamente e a soltei, enxugando os olhos com um


guardanapo do balcão. — Meu avô costumava dizer isso.

— Bem, talvez ele esteja dizendo isso para você agora. — Ela
sorriu, colocando sua mão sardenta em meu ombro. — Os espíritos
trabalham de maneiras misteriosas.

Abracei-a novamente e dei-lhe todo o dinheiro que tinha no


bolso antes de me sentar no primeiro trem para Dublin.

Eu me senti um pouco mais leve, observando o sol nascer sobre


os campos verdejantes. Mais quente com um café quente entre as
palmas das mãos. E embora minha mesa para quatro tivesse três
lugares vazios, não me sentia sozinha.

Porque vovô, minha mãe e Kellen estavam todos lá em espírito,


torcendo por mim.
A viagem até o aeroporto levou apenas meia hora, mas parecia
cinco malditas com a quantidade de tensão no carro.

Séamus estava de péssimo humor. Sean estava tão nervoso que


pensei que ele estragaria todo o plano. E Ronan estava
visivelmente ausente.

Porque o filho da puta estava morto.

Séamus parecia estar levando muito a sério. Eu não tinha


pensado que o filho da puta tinha um coração, mas seus óculos
escuros, carranca profunda e completa falta de conversa fiada me
disse que perder seu braço direito e seu principal executor para a
Bratva dentro de vinte e quatro horas não estava caindo muito bem
com ele.

Bom. Foda-se ele.

— Os guardas já mandaram Darby de volta para casa? — Eu


perguntei, observando sua reação no espelho retrovisor.

Sua mandíbula já cerrada flexionou.

— Bem, eles fizeram?

— Sim, claro, — ele brincou quando Sean pegou a saída do


Aeroporto de Dublin.
Na Irlanda todos sabem que sim, com certeza, significa
absolutamente não.

Meu sangue ferveu enquanto pensava em tudo o que poderia


ter acontecido com Darby nas doze horas desde que a vi pela
última vez. O que teria acontecido se a Bratva não tivesse
interferido. O que poderia estar acontecendo com ela agora que
eles a tinham.

Eu sabia o que eles faziam com garotinhas bonitas. O que


outros bastardos ricos pagariam para fazer com ela se eu falhasse.
É um destino pior que a morte.

Um que eu morreria para poupá-la.

— Onde está Ronan? — Eu perguntei, torcendo a faca.

Sean olhou para mim pelo espelho retrovisor enquanto dirigia


para a parte de trás do aeroporto, onde os aviões particulares
decolam.

Séamus encolheu os ombros fracamente. — Provavelmente as


bolas afundaram naquela boceta americana.

Eu levantei uma sobrancelha, mas não disse nada. Séamus


queria que eu o atacasse, e eu não estava disposto a lhe dar essa
satisfação. A princípio, não consegui entender por que ele foi tão
rápido em se virar contra mim depois que a Bratva decidiu que
queria minha cabeça. Eu tinha sido como um filho para ele. Eu fiz
tudo o que ele já pediu. Eu tinha sido a porra do soldado perfeito.
Mas finalmente entendi. Séamus não queria me entregar. Ele
estava fazendo isso para evitar uma guerra. Ele estava fazendo isso
porque ele e os anciãos eram covardes. Então, a única maneira de
ele se sentir melhor sobre isso era se comportar como se eu
merecesse. Ao me tratar como um pedaço de merda, ele poderia
fingir que não era um.

Mas não há honra entre ladrões. Nós éramos todos pedaços de


merda.

E eu estava prestes a provar isso.

Sean parou em frente a um pequeno jato particular sem


identificação. A porta já havia sido abaixada, revelando escadas
que prometi a mim mesmo que os pés de Darby nunca tocariam.

Meus olhos percorreram a pista, mas parecia que fomos os


primeiros a chegar. O relógio no painel marcava 11h59. Séamus
deve ter ficado com medo da Bratva. Ele nunca chegava a tempo
para merda nenhuma.

No segundo em que o relógio marcou meio-dia, um Mercedes


preto com vidros fumê apareceu, e precisei de todo o pouco de
autocontrole que me restava para evitar mastigar minhas
restrições e correr direto para ele.

Alexi geralmente viajava com uma comitiva mais profunda do


que apenas um carro cheio, mas eu havia matado três de seus
homens nos últimos três dias, então seus reforços provavelmente
estavam acabando.

Eu esperava que Séamus fizesse alguma piada sobre minha


carona estar lá, mas ele não disse uma palavra quando saiu do
Volkswagen de Sean e abriu a porta para mim.

Minhas mãos estavam amarradas nas costas, mas deixaram


meus pés soltos. Provavelmente porque subir as escadas até o jato
seria um pouco difícil com os tornozelos amarrados e também
porque a última coisa que eles queriam era chamar a atenção.
Essa parte da pista pode ser isolada, mas ainda era um local
público.

Com a mão em volta do meu bíceps e o cano da arma carregada


no bolso do paletó enfiado no meu lado, Séamus me acompanhou
até o Mercedes. As duas portas da frente se abriram e Alexi saiu
com seu motorista de agasalho e corrente de ouro. Ninguém saiu
do assento traseiro, mas isso não significava que Darby não
estivesse lá. A Bratva era dramática pra caralho. Conhecendo-os,
provavelmente quiseram guardar a surpresinha para mais tarde.

Alexi estalou os dedos na direção do motorista, e o grunhido


imediatamente correu para a parte de trás do carro e começou a
descarregar a bagagem. Então, ele empurrou a mão em minha
direção, formando uma arma com o dedo.

— Você. — Sua voz cresceu enquanto ele marchava em nossa


direção. — Primeiro, você mata meu tio. Depois, você mata meus
homens!

A saliva voou de seus lábios finos quando ele parou bem na


frente do meu rosto, agarrando minha camisa com o punho. Eu
era alguns centímetros mais alto que ele, então ele teve que olhar
para cima para gritar comigo. Ele não gostou dessa porra.

— Eu vou levar você para o meu pai, — ele rosnou, sua


sobrancelha já pesada se franzindo no meio. — Deixá-lo matar
você. Vingar seu irmão. Mas agora? — Sua boca virada para baixo
se alargou em um torto sorriso de escárnio amarelo. — Você vai
sofrer. Muito.
Eu sabia exatamente o que isso significava.

Darby.

Levou tudo o que tinha para não olhar por cima de sua cabeça
para o sedã preto estacionado atrás dele. Eu não podia deixar ele
ou Séamus saberem que eu suspeitava de alguma coisa, mas era
quase impossível quando sentia como se meu próprio coração
estivesse naquele banco de trás, sangrando fora do meu corpo. Eu
precisava vê-la. Precisava ter certeza de que ela estava bem. Eu
sabia que ela olharia para mim com o mesmo medo e desdém que
todos os outros tinham quando me olham agora. E eu fiz as pazes
com isso. O que ela sentia por mim era baseado em uma mentira,
mas o que eu sinto por ela iria me perseguir pelo resto da minha
vida.

Todos os três minutos disso.

Nesse momento, dois carros brancos da Garda passaram


voando pela lateral do prédio do aeroporto, sirenes tocando e luzes
azuis piscando. A cabeça de Alexi virou na direção deles. Então,
seus olhos redondos se estreitaram e pousaram em Séamus, que
parecia mais surpreso do que ninguém.

— Seu estúpido de merda! — Ele gritou para Séamus. — Você


morrerá por isso!

— Não fui eu! — Séamus choramingou, lançando um olhar


assassino por cima do ombro para Sean.

Sean deu de ombros e balançou a cabeça em choque genuíno


quando os guardas pararam bem na nossa frente, estacionando no
espaço entre os carros de Alexi e Sean.
Quando abriram as portas e apontaram as armas para nós,
suspirei de alívio. Estes não eram apenas guardas de segurança
do aeroporto desarmados. Estes eram os grandes caras. A Unidade
de Resposta a Emergências. Peguei emprestado o telefone de Sean
em troca de sua arma e fiz uma denúncia anônima, informando
que o russo da Bratva estava com a garota americana desaparecida
e tentaria levá-la para fora do país ao meio-dia.

Se os russos não me matassem por isso, o UIB definitivamente


o faria. Havia um código não falado no submundo. A aplicação da
lei estava fora dos limites. Sempre. Mesmo contra seus inimigos.
Os ratos eram considerados a forma de vida mais inferior, e a
punição geralmente era lenta e sádica.

— Mãos na cabeça! — Gritou o motorista do carro da direita.

— Qual é o problema, pessoal? — O cano de metal preso ao


meu lado desapareceu quando Séamus ergueu as duas mãos e deu
um passo à minha frente.

Alexi fez o mesmo.

— Temos motivos para acreditar que uma pessoa de interesse


pode estar a bordo desta aeronave.

— Você aí, no meio, — outro gritou, e eu sabia que a situação


estava prestes a ir para o inferno. Rápido. — Mãos na cabeça!

Séamus e Alexi olharam para trás para mim enquanto o tempo


passava em câmera lenta. Eu devolvi seus olhares furiosos com
um vislumbre de foda-se no meu rosto, então virei as costas para
os guardas, revelando minhas mãos amarradas.
— Foda-se, — Séamus sibilou, e antes mesmo que a palavra
saísse de sua boca, as balas começaram a voar.

Alexi e Séamus abriram fogo enquanto corriam de volta para


seus carros, e o pânico tomou conta de mim quando percebi que
eles tentariam escapar. Que Alexi ia tentar escapar.

Com a minha garota.

Corri em meio ao caos até a Mercedes, onde tentei


freneticamente abrir a porta de trás com as mãos amarradas nas
costas.

Alexi estava do lado do passageiro, usando a porta aberta como


escudo enquanto atacava os guardas e esperava pelo motorista.

O motorista fechou a porta de carga do avião e correu de volta


para o carro no momento em que mais dois soldados da Bratva
apareceram na porta do avião com fuzis AK-47 totalmente
automáticos amarrados ao peito.

Quando finalmente abri a porta e me virei para olhar para


dentro, os sons ensurdecedores de seiscentas balas voando por
minuto, vidros se estilhaçando e guardas gritando de dor se
transformaram em um rugido abafado quando meus olhos
captaram algo que eu não esperava ver na parte de trás da
Mercedes.

Nada.

Os assentos de couro preto estavam completamente vazios.

Ela não estava lá.

Ela não estava lá, porra.


Alexi gritou algo em russo do banco do passageiro e, antes que
eu pudesse reagir, seu motorista estava me empurrando para
dentro.

Eu não conseguia me segurar ou empurrar para trás com


minhas mãos ainda amarradas nas costas, então no segundo em
que meu tronco atingiu o estofamento de couro, eu me virei e
plantei minha bota no peito do idiota, empurrando-o para trás pelo
menos dois metros.

Alexi tentou segurar meus ombros enquanto gritava algo que


presumi significar, vá, vá, vá! porque o soldado de agasalho
mergulhou atrás do volante e partiu, deixando minha porta
escancarada e minhas pernas saindo na altura dos joelhos.

— Onde ela está? — Eu gritei, plantando meus calcanhares no


assento abaixo da minha bunda e empurrando-me mais fundo no
carro.

O punho de Alexi atingiu meu rosto.

— Onde diabos ela está?

— Você nunca mais vai vê-la. Ou qualquer um de nós de novo!


— Alexi pontuou cada poucas palavras com golpes no meu olho,
nariz, mandíbula e bochecha, mas mal senti seus punhos quando
entendi que onde quer que estivéssemos indo, não era onde Darby
estava.

E essa não era a porra de uma opção.

Eu não podia deixar que eles me levassem até que eu soubesse


onde ela estava. Até que eu soubesse que ela estava segura.
Puxando meus joelhos até meu peito, chutei e firmei os dois
pés no lado da cabeça do motorista, quebrando-a na janela ao lado
dele. O vidro rachou com o impacto e seu corpo caiu para a frente,
batendo no volante e puxando-o para a direita.

O carro começou a girar em um círculo fechado quando Alexi


xingou em russo e pegou o volante, tentando puxá-lo de volta para
a esquerda. A distração me deu tempo suficiente para sentar e
mergulhar para a porta aberta.

Ou então eu pensei.

— Nyet!5 — Alexi gritou quando me joguei para fora do carro,


agarrando a parte de trás do meu colarinho uma fração de segundo
antes de meus pés atingirem o chão.

Eu esperava dobrar e rolar no momento em que chegasse ao


solo, mas em vez disso senti minha camisa prender em volta da
minha garganta. Enquanto a parte superior do meu corpo estava
suspensa acima do solo pela força do aperto de Alexi e pela força
absoluta de seu ódio, a parte inferior do meu corpo estava sendo
arrastada pela pista. Meus pés e pernas estavam cobertos de couro
grosso e jeans, mas os lados de minhas mãos, pulsos e antebraços
– que estavam amarrados nas costas e presos sob o peso do meu
corpo pendurado – estavam sendo esfolados vivos. Eu me debati e
chutei e tentei rolar para o lado, mas o laço em volta do meu
pescoço só apertava mais enquanto eu lutava.

Enquanto meus pulmões queimavam e minha visão turva, a


dor cresceu como uma pira funerária até que não houvesse um

5
Pare.
milímetro do meu corpo que não tivesse sido engolfado. Minha
mente lutou, não para encontrar uma solução, mas para encontrar
um canto onde pudesse se esconder da agonia de morrer.

E consegui.

A chama que me consumia encolheu para o tamanho de um


crepitar em um fogão a lenha. O asfalto raspando a pele dos meus
ossos amoleceu até se tornar um edredom no chão da sala. O
cheiro de carne queimada e borracha fundiu-se com a doçura
terrosa e esfumaçada do cedro. E quando a visão do túnel
finalmente me puxou para baixo, tudo que eu podia ver era uma
garota sardenta com lábios carnudos e olhos verdes, olhando para
a lua ao meu lado.

— Ela lutou no início, — disse Darby, sua história daquela noite


tatuada em minha alma. — Mas... eventualmente, ela aprendeu a
morrer.

Seus olhos se voltaram para os meus então, e onde eu tinha


visto originalmente medo, desespero e vergonha girando em suas
profundezas esmeraldas, agora eu via o poder feroz e inabalável da
convicção. A boca rosada de Darby estava definida em uma linha
dura e determinada, mas eu ainda ouvia sua voz, comandando-me
além da dor.

Pare de lutar.

E aprenda a morrer.

Era isso.
Eu parei de lutar. Puxei minhas pernas até meu peito para que
eu não pudesse usá-las para me manter de pé por mais tempo. E
deixei meu corpo virar um peso morto.

A coleira em volta do meu pescoço apertou tanto que pensei


que poderia arrancar minha cabeça, mas então eu estava caindo,
rolando, respirando. Parecia que eu tinha caído em um oceano de
martelos, mas não havia tempo para processar quaisquer
ferimentos adicionais. Porque quando parei e finalmente abri os
olhos, percebi uma coisa.

O Mercedes também parou.

Com minha bochecha pressionada contra o asfalto e o que


restava de minhas mãos amarradas atrás das costas, consegui me
colocar de joelhos. Eu estava prestes a me levantar, para tentar
correr em direção ao aeroporto, quando senti o beijo frio do aço na
nuca.

— Seu filho da puta. — As palavras ofegantes de Alexi se


transformaram em um rosnado quando ele pressionou o cano
contra minha cabeça ainda mais forte. — Isso acaba agora.

E ele estava certo. Eu não podia correr. Eu não estava em


posição de lutar. Tinha acabado.

Fechei os olhos, abaixei a cabeça e usei meus últimos segundos


na terra para enviar uma súplica silenciosa a Deus, a Saoirse, ao
maldito Satã para fazer o que eu não pude. Para encontrá-la. Para
salvá-la. Para dar a ela uma vida muito, muito longe do inferno
para o qual eu a arrastei e aceitar minha alma manchada e
espancada como pagamento.
Eu não sabia qual deles havia aceitado minha oferta -
provavelmente Satanás - mas não me importava. Porque o som
seguinte que ouvi não foi o de uma bala atravessando meu crânio.

Foram sirenes.

Muitas sirenes, caralho.


Uma arma soviética preta caiu no chão ao meu lado enquanto
pelo menos cinco veículos da Garda nos cercavam.

— Esse é ele! Esse é o homem para quem eles estavam tentando


me vender!

Talvez Deus tenha aceito minha barganha afinal porque a voz


que ouvi definitivamente pertencia a um anjo.

Virando a cabeça, olhei para o carro mais próximo de nós e vi


um halo de cobre emergindo do banco do passageiro.

Lutei para me concentrar no rosto do anjo enquanto me


agarrava à consciência. Luzes azuis piscando a envolveram - nos
envolveram - enquanto ela corria em minha direção, mas um
guarda redondo e careca a agarrou pelo braço antes que ela
pudesse me alcançar.

— Darby, fique para trás. É muito perigoso.

Darby.

Uma risada silenciosa e trêmula rasgou através de mim.

Darby.

Ela estava viva.

Darby.
Ela estava segura.

— Darby, — eu sussurrei enquanto finalmente me rendi à


escuridão.

— Então deixe-me ver se entendi …

Vozes entravam e saíam do meu sono sem sonhos, desconexas


e desconhecidas.

— Você e seu noivo estavam procurando um B&B perto de Cork


Harbor quando se perderam e testemunharam acidentalmente
algum tipo de transação acontecendo perto das docas.

— Sim, senhora.

Lutei para abrir os olhos, mas o peso da minha exaustão era


simplesmente demais.

— E quando esses homens perceberam que tinham sido vistos,


eles perseguiram seu carro, atiraram em vocês e um deles tirou
vocês da estrada?

— Está correto.

— Seu noivo, Sr. John David Oglethorpe, morreu no acidente,


e você foi levada por aquele homem ali, Sr. Séamus Rooney...

Eu finalmente venci a batalha contra minhas pálpebras,


forçando uma a se abrir, apenas uma fresta. O mundo estava de
lado. Darby estava a poucos metros de distância, entre o guarda
redondo e cheio de cerveja com quem ela havia chegado e uma
guarda feminina segurando uma prancheta.

Ela não estava usando minha jaqueta. A onda de amargura


irracional que surgiu através de mim ao perceber isso me deu força
suficiente para abrir minha outra pálpebra.

— Então, seu amigo aqui, Sr., — ela folheou suas anotações, —


Kellen Donovan, rastreou seu telefone até Dublin, onde você estava
detida pela Irmandade Irlandesa Unida com a intenção de vendê-
la à Bratva para fins de tráfico humano. O Sr. Donovan tentou te
ajudar a escapar...

— Ele teve sucesso, — o guarda à sua esquerda interrompeu.


— Se não fosse por ele, minha sobrinha já estaria na metade do
caminho para a maldita Rússia.

— Sim, obrigada, detetive O'Toole. Então, Sra. Collins, durante


esta tentativa de resgate, você escapou, mas o Sr. Donovan foi
ferido por um tiro de espingarda e capturado?

O mundo girou quando me empurrei para uma posição


sentada. O chão parecia errado sob minhas mãos. Quando olhei
para baixo, descobri que não era o chão, era na verdade uma maca,
mas minhas mãos estavam cobertas por bandagens. Fitas de gaze
espiralavam dos nós dos meus dedos até os cotovelos. Os últimos
dois dedos de ambas as mãos estavam enrolados em fita adesiva.
Minha camisa havia sumido. E eu podia sentir bandagens
adicionais na parte inferior das costas, ombros e sobrancelha.

Mas o que chamou minha atenção não foram meus ferimentos


ou o fato de que eu estava tão frio que realmente permiti que
alguém que não fosse Darby me tocasse. Foi o que notei enrolado
na ponta da maca, onde minha cabeça acabara de ficar.

Peguei o pacote de tecido preto brilhante, o que não era fácil


com minhas malditas mãos de múmia, e enterrei meu nariz nele.

Cheirava a chuva, madeira e creme de baunilha.

— Kellen!

Ergui a cabeça enquanto uma visão da perfeição divina vinha


em minha direção. A luz se ligava ao seu cabelo acobreado como
se fosse tão magnetizada para ela quanto eu. Mas eu sabia que
esse sentimento não seria correspondido. Não agora que Darby
sabia a verdade sobre o que eu era. O que eu fiz. Que meus pecados
quase lhe custaram a vida. Prendi a respiração e me preparei para
o impacto de sua rejeição. Eu poderia aguentar, agora que sabia
que ela estava bem. Eu arrancaria meu próprio coração e
entregaria a ela em uma bandeja de prata se soubesse que ela
fugiria com ele para um lugar seguro.

Mas o único impacto que senti foi o corpo de Darby colidindo


com o meu.

Ela jogou os braços em volta dos meus ombros enfaixados e


enterrou o rosto no meu pescoço com um soluço. — Nunca mais
me deixe assim! Achei que era tarde demais, Kellen. Quase cheguei
tarde demais.

Essa não era a reação que eu esperava.

Colocando minhas mãos em seus ombros, gentilmente a


empurrei para longe de mim até que eu pudesse ver o brilho verde
da honestidade em seus olhos. Eu precisava ver seus lábios
rosados formando as palavras, ver a sinceridade em seu rosto
enquanto ela as dizia antes que eu pudesse me permitir acreditar
no que estava ouvindo.

— O que você acabou de dizer?

Darby engoliu em seco e colocou as mãos nos lados do meu


rosto. Uma lágrima derramou sobre sua bochecha sardenta, e eu
não tive a chance de entregar meu coração a ela porque o sorriso
torturado, aliviado e arrebatado que ela me deu em seguida
alcançou entre minhas costelas e o roubou de mim.

— Eu disse, chega de fugir. — Seu queixo dobrou quando mais


lágrimas inundaram seus olhos. — Nunca mais. Promete-me.

Puxando-a de volta contra o meu peito, segurei seu corpo


trêmulo enquanto fazia uma promessa de que passaria o resto da
minha vida ganhando o direito de manter. — Nunca. Eu prometo.

— Obrigado por sua ajuda, rapaz, mas da próxima vez, talvez


apenas deixe-nos lidar com isso.

Eu olhei para o cara uniformizado pairando sobre nós quando


Darby me soltou e virou-se para enfrentar o velho com um sorriso.

— Tio Eamonn, este é meu amigo, Kellen.

Tio Eamonn. Darby tinha me contado tudo sobre aquele filho


da puta. Ele não morava em Glenshire desde antes de eu nascer,
mas pelo que ouvi, ele era um verdadeiro pedaço de merda.

— Outro homem de Glenshire, pelo que ouvi. — Eamonn


estendeu a mão, mas puxou-a para trás quando viu o estado da
mina. — Merda. Desculpe, rapaz. Provavelmente não vai apertar
as mãos por um tempo agora, vai?
Eu me levantei e olhei o bastardo em seus olhinhos redondos.
Eu queria ter certeza que o idiota presunçoso sabia exatamente a
quem diabos ele estaria respondendo se ele falasse com Darby do
jeito que ele tinha feito em Glenshire.

— Sra. Collins, temos o seu depoimento. Você e o senhor


Donovan estão livres para ir, — anunciou a guarda feminina,
colocando-se ao lado do tio de Darby. — Entrarei em contato com
você se tivermos mais perguntas. E detetive O'Toole, ótimo
trabalho hoje. Sua unidade derrubou com sucesso um dos
criminosos mais procurados da Irlanda e levou à captura de Alexi
Abramov. Você deveria estar muito orgulhoso.

Ela deu um tapinha no ombro dele, e o homem corou tanto que


parecia que tinha acabado de beber um copo de uísque.

— Sabe, poderíamos usar alguém como você na Unidade de


Resposta a Emergências. Você já considerou …

Enrolei minha jaqueta nos ombros de Darby e a conduzi para


longe enquanto Eamonn estava ali, recebendo elogios pelo que eu
suspeitava ter sido seu trabalho duro. Não é de admirar que ele
estivesse fingindo ser o tio do ano de repente.

Filho da puta.

O lugar estava cheio de atividade policial. Cada veículo Garda


tinha pelo menos um guarda em um agasalho sentado na parte de
trás dele. Fotógrafos tiraram fotos dos guardas mortos no chão.
Ambulâncias chegaram para retirar os corpos assim que
terminaram. Cães farejadores de drogas vasculharam o avião e a
pilha de bagagens do lado de fora. As metralhadoras foram
carregadas para fora do jato, duas de cada vez. E ao lado do
Volkswagen, Séamus e Sean estavam parados com as mãos
algemadas nas costas, observando um detetive revistar o carro
deles.

Fiquei surpreso por eles não terem fugido durante o tiroteio,


mas então percebi que o carro de Sean estava agora a vários
metros do avião e tinha pelo menos três pneus furados.

— Bem, bem, bem, o que temos aqui? — O guarda que estava


vasculhando o porta-malas tirou uma enorme sacola preta e a
colocou no chão. No momento em que abriu o zíper, soltou um
assobio baixo. — Ei, Brian. Eu tenho pelo menos uma dúzia de
AR-15s aqui, e... puta merda... — Tirando um pano do bolso, ele
ergueu cuidadosamente uma pistola de fabricação russa com um
longo silenciador prateado preso na ponta. — Você não disse que
a arma do crime usada naqueles filhos da puta da Bratva no The
Brazen Head ontem à noite era uma calibre 45 com silenciador?

Séamus chutou Sean na canela. — Idiota de merda!

— O que? Diabhal me disse que você os queria de volta. Nós


fomos buscá-los esta manhã antes de pegarmos você.

Séamus soltou um grito enquanto eu conduzia Darby para


longe daquele mundo.

Longe de tudo isso.

Para sempre.
Kellen não conseguia sair da pista rápido o suficiente. Lutei
para acompanhá-lo, agarrando-me a dois de seus dedos sem
bandagem enquanto ele corria pela lateral do aeroporto, subia um
punhado de escadas de cimento e entrava em uma doca de carga
vazia, onde beijou minha boca ofegante até eu perder a capacidade
de ficar de pé. Kellen comandava cada grama da minha energia e
atenção, não deixando nada para coisas triviais, como resistir à
gravidade. Então, eu me rendi a isso, afundando no chão, onde
nós dois nos tornamos uma massa emaranhada de membros
retorcidos, lágrimas salgadas e mãos apertadas e desculpas
sussurradas.

Quebrando nosso beijo, Kellen finalmente falou, colocando


uma mecha de cabelo atrás da minha orelha. — Como você
escapou de Ronan? — Ele ofegou, sua voz geralmente suave e
aveludada soando rouca e áspera. — Eu pensei que a Bratva
deveria ter levado você, mas eles não levaram, não é?

— Não. — Deslizei minha mão ao longo de sua barba por fazer


e desci por seu pescoço, como se pudesse curar o ferimento que
ouvi em suas cordas vocais.
Só de pensar no que Ronan tinha planejado fazer comigo me
fez estremecer, mas o calor do corpo sem camisa de Kellen derreteu
meu medo.

— Eu o estrangulei com um cinto de segurança.

Kellen sentou-se ereto, seus olhos arregalados exatamente da


mesma cor do céu invernal. O corte acima de sua sobrancelha foi
fechado com uma série de pequenas bandagens de borboleta. O
outro olho tinha uma pálpebra inchada e roxa. Seu nariz estava
inchado, sua bochecha estava arranhada e sua mandíbula angular
estava coberta por três dias de barba por fazer. Mas quando Kellen
sorriu para mim, a visão era de tirar o fôlego.

— Você está falando sério.

Eu balancei a cabeça.

Ele jogou a cabeça para trás e riu enquanto me puxava contra


seu peito novamente. — Como diabos você fez isso?

Eu me aconcheguei em seu abraço, cheia de gratidão por mais


uma vez termos encontrado nosso caminho de volta um para o
outro. — Eu não sei, — admiti. — Eu só... fiz o que pensei que você
faria. Cada passo do caminho, Kellen. Você me manteve viva. Você
me mostrou o que fazer.

— Você não deveria ter feito isso. — Sua risada morreu quando
ele descansou sua bochecha no topo da minha cabeça. —Sinto
muito, Darby. Para tudo.

— Eu não sinto. — As palavras foram um choque para nós dois,


mas eu quis dizer isso. — Antes de te conhecer, eu estava
convencida de que era fraca. Inútil. Indigna. Nunca lutei por mim.
Nunca pensei que merecia coisa melhor.

Pressionei meus lábios ao lado do pescoço de Kellen e senti


seus braços apertarem em volta de mim em resposta.

— Você abriu meus olhos. Você me mostrou que o poder é algo


que você pega de volta, não algo que espera receber. Você me
mostrou uma vida com a qual eu nunca sonhei.

— Sim, — Kellen bufou amargamente. — A vida de um


assassino da UIB. — Ele balançou a cabeça, fazendo com que a
minha girasse para frente e para trás junto com ela.

— Não. — Deslizei para fora de seu queixo e encontrei seu olhar


autodepreciativo. — Uma vida pela qual finalmente valeu a pena
lutar.

Aqueles olhos tempestuosos caíram para os meus lábios um


momento antes que ele os reivindicasse com os seus.

— Espere, — eu respirei, forçando-me a me afastar o suficiente


para tirar um envelope do bolso de trás. — Eu tenho algo para
você.

Kellen afastou minha mão e pegou meu rosto, mergulhando de


volta para continuar de onde paramos.

Eu ri contra seus lábios entreabertos. — Abra.

Com um suspiro, ele deslizou o envelope branco simples da


minha mão, olhando-me com ceticismo enquanto quebrava o lacre.
Então, ele olhou para baixo e folheou o conteúdo.

Eu sorri quando o rosto de Kellen se transformou de divertido


para confuso para totalmente oprimido.
Ele balançou a cabeça enquanto seus dedos traçavam as letras
de sua nova carteira de motorista, seu passaporte, sua certidão de
nascimento. — Darb…

Os olhos de Kellen se ergueram para os meus, e a gratidão que


vi ali fez meu peito doer. Eu sabia o que aqueles documentos
significavam para ele. Eles eram sua passagem para a liberdade.
Seu passe de acesso total para uma vida real. Mas foi a descrença
que vi sob aquela apreciação que partiu meu coração.

Era como se nunca tivesse recebido um presente na vida.

Não, a menos que você contasse biscoitos e água com sabor de


picles.

— Como... — Ele balançou a cabeça, as palavras falhando


enquanto a emoção brotava em seus olhos exaustos.

— Bem, depois que eu... me livrei de Ronan...

— Estrangulou, — corrigiu Kellen, radiante de orgulho. — Você


estrangulou ele, porra.

Balancei minha cabeça com um sorriso. — Bem, depois disso,


voltei para Cork, peguei minha carteira e telefone no Fiesta, bati
na floresta ao lado do BMW, vesti um cara morto como John,
coloquei-o no banco do motorista, criei um incêndio, peguei o trem
de volta para Dublin, penhorei o Rolex antigo de John por quatorze
mil euros, usei o telefone de Ronan para ligar para The Butcher,
pedi ao motorista dele que me encontrasse na loja de penhores
com seus papéis e depois liguei para Eamonn e disse a ele que você
tinha acabado de me ajudar a escapar da UIB e se ele corresse
poderia pegar um bando de bandidos no aeroporto.
— Puta merda. — Uma risada atordoada ficou presa em sua
garganta quando Kellen olhou para mim, com admiração.

— Com todas as mensagens de texto no telefone de Ronan e a


história que contei a ele sobre John, Eamonn conseguiu convencer
seu departamento a fazer a apreensão. E aqui estou eu.

— Aqui está você, porra. — Calor lambeu meu pescoço e


inundou minhas bochechas quando os olhos de Kellen brilharam
com o reconhecimento. — Esta é a garota por quem me apaixonei
em Glenshire.

Ele se inclinou para frente, pressionando sua testa contra a


minha enquanto seu olhar caiu para os meus lábios.

— Destemida. — Ele disse, selando meus lábios entreabertos


com um beijo reverente. — Esperta. — Outro beijo. — Durona. —
Mais um. — Linda.

Um sorriso se espalhou pelo meu rosto com esse último elogio,


e Kellen aproveitou ao máximo. Inclinando a cabeça para o lado,
ele reivindicou minha boca, girando sua língua em torno da minha
enquanto suas mãos maltratadas me agarravam com mais força.
Enquanto seus braços fortes me guiavam para montá-lo.
Enquanto a protuberância rígida que eu sentia lá pulsava no
mesmo ritmo da minha própria necessidade desesperada.

— Há mais, — sussurrei, agarrando-me aos lados de sua


cabeça enquanto o mundo girava ao meu redor.

— Mais o que? — Ele rosnou, mordendo meu lábio inferior.

— Mais no envelope.
Deixando cair a testa no meu ombro, Kellen prendeu a
respiração antes de abrir o envelope branco novamente.
Manuseando o documento final, ele o puxou e o desdobrou.

Então, ele ficou quieto por um longo, longo tempo.

— Tem a data de hoje. — Forcei um sorriso, mas por dentro eu


estava à beira de uma parada cardíaca.

Finalmente, Kellen ergueu dois olhos cinzentos cautelosos,


velados pela sombra de sua sobrancelha pesada e preocupada. —
Você ainda quer isso? — Seu olhar caiu de volta para a certidão de
casamento em suas mãos. — Você ainda me quer... agora que sabe
a verdade?

Oh meu Deus.

Levantando a mandíbula forte e cerrada de Kellen, eu o forcei


a olhar para mim novamente.

— Claro que sim. Kellen, eu quero você porque eu sei a verdade.


A verdade é que você é bom, corajoso, forte, inteligente, humilde e
doce e, — eu o deixei observar meus olhos deslizarem por seu torso
exposto, esculpido e ensanguentado, — honestamente, apenas
ridiculamente quente. Eu quero dizer, olhe para você. Seriamente.

Kellen sorriu, e eu quase podia sentir seu auto-ódio rachar


como uma geleira e começar a derreter em minhas mãos.

— A verdade é que sou sua desde o momento em que nos


conhecemos. Eu pensei que você fosse mágico na época, e ainda
acho. Você é meu passado, você é meu presente e, de acordo com
um espírito do lago de mil anos, você é minha eternidade. Então,
sim, eu ainda quero-
A boca de Kellen bateu contra a minha no mesmo momento em
que ele se levantou, levantando-me do chão com as mãos
enfaixadas sob minha bunda. Ele estremeceu contra meus lábios,
e eu imediatamente me esforcei para descer, mas Kellen só
segurou com mais força.

— O que você está fazendo? Suas mãos!

— Ah, elas estão bem. Elas só estão fodidas na parte de trás...


e nas laterais. — Ele sorriu contra meus lábios enquanto me
carregava pelas escadas de concreto. — Mas nós temos que ir.

Cada passo fez com que nossos corpos se esfregassem de uma


forma que me fez desejar que Kellen pressionasse minhas costas
contra a parede e me mostrasse quais outras partes dele estavam
ilesas. — Por quê? — Eu consegui perguntar, a palavra ofegante e
desesperada.

— Porque se ficarmos aqui mais um segundo, vou te foder em


uma doca de embarque do aeroporto.

Eu ri. — E isso é um problema porque…

— Porque é o dia do nosso casamento, anjo. — Kellen beijou


meu nariz, e uma enxurrada de familiar formigamento brilhante
tomou conta da minha pele e desceu em cascata pela minha
espinha.

— Eu estou levando você em uma lua de mel adequada. Agora.


Kellen adicionou outro tronco ao fogo enquanto eu adicionava
a camada final à montanha de sacos de dormir, cobertores e
edredons que empilhei no meio da casa. A camada central era um
bolso que fiz fechando dois sacos de dormir individuais, e assim
que tirei minhas roupas e deslizei para dentro, meus músculos
viraram massa de vidraceiro. Estava deliciosamente quente - as
paredes redondas de pedra irradiando o calor do fogo - enquanto
o telhado ausente e os galhos sem folhas acima me davam uma
visão desobstruída do céu claro e estrelado de inverno além.

— Eu ainda não posso acreditar que você escolheu este lugar


ao invés da Transilvânia, — Kellen refletiu, seu rosto angelical
parecendo positivamente sinistro à luz do fogo.

Fechei os olhos quando uma dor incômoda se instalou em meu


peito. — Eu só... queria passar uma última noite aqui, com você,
antes de partirmos.

Agachado ao meu lado, Kellen afastou o cabelo do meu rosto,


arrastando seu polegar áspero e quente sobre minha têmpora e
maçã do rosto até que finalmente abri meus olhos. Quando o fiz,
um suspiro assustado ficou preso na minha garganta. Parecia o
mesmo suspiro que engoli doze anos antes, exatamente no mesmo
lugar, quando um garoto de olhos prateados reivindicou meu
coração com um único olhar.

— Você não quer ir para Nova York? — Ele perguntou, suas


sobrancelhas escuras franzindo no centro.

Eu balancei minha cabeça, algo torcendo dentro de mim com a


admissão. — Eu amo isso aqui, mas entendo porque não podemos
ficar. Quero dizer, você denunciou a UIB. Eles vão te matar se te
encontrarem.

— Se eles me encontrarem. Mas eles não vão. Eles nem sabem


meu nome. — Kellen puxou a camiseta preta que estava vestindo
sobre a cabeça.

Paramos na casa que pegamos emprestada em Dublin para


tomar banho e pegar nossas coisas antes de voltar para Glenshire.
Bem, eu tomei banho. Kellen ficou lá com os braços enfaixados no
ar enquanto eu o esfregava. Completamente. Depois de vestir
algumas roupas limpas, nos despedimos da casa e, enquanto
saíamos pela porta dos fundos, Kellen colocou uma pilha de
dinheiro na mesa da cozinha.

Apenas quando eu não achava que poderia amá-lo mais.

— Mas a UIB sabe meu nome, — eu disse, tentando manter o


foco na conversa enquanto o observava se despir. — Meu
desaparecimento estava em todos os noticiários. Foi assim que eles
me encontraram.

— Nós podemos cuidar disso. — Kellen me lançou um olhar


tranquilizador antes de se inclinar para desamarrar as botas.
Felizmente, os polegares, indicadores e dedos médios de Kellen
ficaram ilesos, mas eu sabia que a erupção cutânea nas costas e
nas laterais de suas mãos e braços provavelmente doía. Não que
ele fosse admitir isso.

— The Butcher provavelmente pode apagar qualquer registro


público do seu nome associado a este endereço. Nós vamos
descobrir alguma coisa.

— Você realmente gostaria de ficar aqui? Em Glenshire? Todas


aquelas lembranças ruins... — O resto desse pensamento
evaporou na minha boca enquanto eu observava Kellen tirar a
calça jeans e a cueca e entrar no saco de dormir comigo.

Assim como nossa primeira noite juntos, no chão em frente a


uma lareira diferente, Kellen estava deitado do lado bom – aquele
sem os buracos de bala – de frente para mim. Mas ao contrário
daquela noite, ele não estava cauteloso, em pânico ou pronto para
me afastar. Ele era simplesmente Kellen. Calmo. Intenso.
Cativante. Eu queria me aconchegar contra seu corpo e aproveitar
o milagre do momento, mas estava muito enredada por seu olhar
para me mover.

— Todas as boas lembranças que tenho aconteceram aqui


também. Bem aqui, Darby. Com você.

Kellen passou a mão envolta em gaze pelo meu cabelo, e eu tive


que fechar os olhos para conter as lágrimas.

— Hey... — Ele sussurrou, sua voz suave e reconfortante. —


Posso contar uma história de fantasmas?
Eu balancei a cabeça, tocada por ele se lembrar das minhas
palavras de nossa primeira noite juntos, e Kellen me puxou contra
seu peito. A segurança de seus braços fortes em volta do meu
corpo, o ritmo constante de seu coração sob minha orelha, o calor
de sua pele pressionada contra a minha - isso só me lembrou o
quão perto eu estive de perdê-lo. Eu o imaginei do jeito que eu o
encontrei antes, de joelhos, sangue pingando de suas mãos
amarradas, arma pressionada na parte de trás de sua cabeça
curvada, e soltei o soluço trêmulo que eu estava tentando tanto
segurar..

Kellen alisou a mão sobre o meu cabelo enquanto pressionou


os lábios no topo da minha cabeça. — Diz a lenda que esses
bosques são assombrados.

Eu sorri, forçando o que estava me assombrando a sumir


enquanto eu dava a Kellen toda a minha atenção. Eu teria o resto
da minha vida para processar o trauma de quase perdê-lo. Eu não
deixaria isso roubar mais um segundo da minha alegria agora que
finalmente o tinha de volta.

— Realmente? — Eu perguntei, enxugando os olhos.

— Mmmm. — Kellen beijou o topo da minha cabeça novamente


enquanto sua mão percorria meu cabelo, meu ombro e meu braço,
deixando um rastro de formigamento em seu rastro. — Havia um
menino que morava com um padre, ali perto. Rapaz estranho.
Nunca sorriu. Nunca falou.

A palma da mão de Kellen deslizou pelo meu lado e sobre a


curva da minha bunda enquanto seu pau inchava e se alongava
contra o meu quadril.
— As pessoas diziam que ele era filho de Satanás. Eles
cuspiram nele e o trataram como um monstro, então ele se
escondeu na floresta perto de um lago amaldiçoado, onde ninguém
mais ousava ir. Então, um dia, uma garota americana que não
conhecia nada melhor tropeçou em seu esconderijo.

Os dedos de Kellen viajaram para baixo, traçando minha


boceta, abrindo minhas pernas como mágica enquanto deslizavam
ao longo do meu centro liso.

— Ela era gentil com ele, — continuou ele, — e bonita,


brincalhona e corajosa. Ela o fazia se sentir humano. Deu vontade
de sorrir. E falar. E... tocar.

Algo naquela única palavra vibrou com um significado mais


profundo. Ele pairou no ar como o golpe de um diapasão, causando
arrepios na minha espinha. Olhei para Kellen com uma pergunta
em meus olhos, e ele respondeu com um único mergulho de
queixo.

Sim.

Meu estômago ficou tenso e deu um nó quando deslizei minha


mão pelas cristas e vales de seu torso. Eu segurei seu olhar
enquanto deixei meus dedos passarem ao lado de seu pau rígido.
E Kellen não vacilou. Seus lábios se separaram em uma expiração
silenciosa, mas foi de admiração ao invés de pânico. Mais uma vez,
acariciei o comprimento dele, meu toque leve e cheio de amor, e
novamente, Kellen exalou, desta vez com o mais suave dos
gemidos.

Meu coração se encheu de orgulho, honra e descrença ao vê-lo


me entregar o último de seus medos. Eu fui devagar, esperando
para envolver totalmente minha mão em torno dele até que ele
estivesse empurrando contra a palma da minha mão, e quando eu
finalmente fiz, Kellen se lançou para minha boca, beijando-me
profundamente, com reverência, enquanto nos livrávamos cada
toque que veio antes do nosso.

— O que aconteceu depois? — Eu perguntei, minha voz um


apelo ofegante.

Kellen sorriu contra meus lábios. — Ele se apaixonou


perdidamente por ela.

Lágrimas arderam em meus olhos quando a necessidade


esmagadora de me juntar a ele começou a crescer.

— O menino passou cada momento acordado na floresta depois


disso, esperando que ela voltasse. — A voz rouca de Kellen vibrou
contra meu pescoço, meu ombro, enquanto trabalhávamos um no
outro. — Meses se passavam entre suas visitas, às vezes anos, até
que a garota parasse de vir completamente. Enquanto ela estava
fora, o menino cresceu. Mais forte. Mesquinho. Eventualmente, ele
se tornou tão mal quanto todos diziam que ele era.

Um gemido suave retumbou em meu peito quando um dedo


calejado me encheu até a última junta cicatrizada.

— O menino matou o padre com as próprias mãos e queimou


sua casa até o chão, para nunca mais ser visto.

Minha respiração engatou com a menção do que ele tinha feito.


Eu já sabia a verdade, mas ouvi-lo reivindicá-lo de uma vez por
todas, ouvi-lo possuir seu poder sem ter medo de deixá-lo por isso,
só me fez desejá-lo mais. Kellen era a pessoa mais corajosa,
resistente e formidável que já conheci. Ele encontrou a força para
destruir os homens que nos machucaram, e se isso o tornasse o
Diabo, eu ficaria feliz em queimar no inferno ao seu lado.

— Os aldeões acham que o menino morreu naquele incêndio


também, e agora, seu espírito assombra esta floresta, ainda
esperando que seu amor retorne.

Levantando minha coxa sobre o quadril de Kellen, mantive


minha mão em seu eixo enquanto ele empurrava contra minha
carne escorregadia.

— Isso é realmente o que eles dizem sobre você? — Eu


perguntei, minhas palavras um apelo ofegante enquanto eu
capturava seu lábio inferior entre meus dentes.

— Mmhmm, — Kellen gemeu, o ritmo de seus quadris


acelerando.

Eu sorri, liberando seu lábio com um estalo. — Kellen, você é


uma lenda.

— Não serei assim que as pessoas virem que estou vivo e bem
e casado com a neta de Patrick O'Toole.

Eu ri. Eu ri, e ri até lágrimas de alegria rolarem pelo meu rosto.

Vivo e bem casado com a neta de Patrick O'Toole.

Era tudo que eu sempre quis e nunca pensei que teria.

— Então, nós estamos fazendo isso? — Perguntei. — Nós vamos


ficar aqui?
— Darby — Kellen segurou minha bunda enquanto se
posicionava no meu centro dolorido — Eu adoraria nada mais do
que assombrar esta floresta com você por toda a eternidade.

O luar era prateado e a luz do fogo era laranja, mas quando


Kellen e eu fizemos amor no mesmo lugar onde nossa história
começou, a única cor que vi por trás das minhas pálpebras bem
fechadas foi o azul do espírito do lago.
— Bom dia, Darby!

— Bom dia, Sra. Nora. — Caminhei pela grama crescida até a


cerca frágil que separava nossos quintais e apoiei os cotovelos em
cima de um poste. — Como estão as ovelhas?

— Oh, ótimas. — Nora estava em seus quarenta e tantos anos


com uma cabeça cheia de cabelo castanho claro que ela usava em
uma trança nas costas. Ela caminhou pelo mar de ovelhas
pastando em seu pasto e parou ao lado de uma particularmente
pesada perto da cerca. — Estamos apresentando-as ao resto do
rebanho hoje.

Nora deu um tapinha na cabeça da ovelha ao lado dela. — Acho


que essa vai estourar a qualquer momento.

A ovelha grávida olhou para mim com olhos tristes e cansados


que se chocavam com a alegre mancha amarela pintada com spray
em seu quadril.

— Espero que sim. A pobrezinha parece miserável.

Nora sorriu. — Ela era uma das de Pat. Se você tivesse


guardado o rebanho dele, estaria lidando com todas essas ovelhas
agora.
Eu ri. — Uma é o suficiente para nós. Falando nisso, você viu
Vlad esta manhã?

— Sim. — Nora olhou ao redor de seu pasto. — Ele é, em... oh,


lá está ele. — Ela apontou na direção da única ovelha negra do
rebanho. — Ele tem uma queda pela senhorita Petúnia, eu
acredito.

— Bem, mande-o para casa sempre que ela ficar enjoada dele.

— Vou fazer. — Nora sorriu. — E feliz aniversário, a propósito.


— Havia um brilho em seus olhos que me fez pensar se ela sabia
algo que eu não sabia.

Eu pulei em direção à oficina de Kellen, o que não era fácil de


fazer com o comprimento da nossa grama. A desvantagem de ter
apenas uma ovelha para cuidar era que agora tínhamos um pasto
inteiro para ceifar - ou, evidentemente, não ceifar.

Com o dinheiro que ganhamos com as ovelhas, Kellen


conseguiu converter o antigo celeiro do vovô em um paraíso de
carpintaria. Ele tinha bancadas, serras de mesa, tornos, martelos,
cinzéis, lixadeiras e serragem até onde a vista alcançava. Eu
amava o jeito que cheirava lá dentro. Madeira. Terroso. Masculino.
Como ele.

Alguns dias - tudo bem, todos os dias - eu levava meu laptop


para lá e fazia minhas tarefas escolares em uma mesa que ele
construíra para mim no canto. O ruído branco das ferramentas
elétricas me ajudou a me concentrar, e estarmos juntos nos
ajudou a relaxar.
Eu estava vendo um terapeuta em Killarney uma vez por
semana. Kellen não estava pronto para falar sobre o que ele
experimentou com ninguém além de mim, mas muito do que eu
estava aprendendo o ajudou também. Nós dois tínhamos
transtorno de estresse pós-traumático complexo devido aos
traumas repetidos que sofremos, começando na infância e
terminando com os eventos ocorridos no ano anterior. E parecia se
manifestar em um apego extremo um ao outro. Vivíamos com
medo constante de que o outro fosse ferido ou morto – o que não
era completamente irracional, considerando que a Irmandade
ainda nos queria mortos – mas nossos ataques de pânico pelo
menos estavam se tornando cada vez mais raros. Fazer meus
trabalhos escolares em sua oficina ajudou, mas me desafiar a ir a
lugares sem ele por curtos períodos de tempo também. Kellen não
estava feliz com essa parte, mas ele não brigou comigo. E fiz alguns
amigos muito bons no estúdio de ioga que entrei perto do
consultório do meu terapeuta.

Assim que decidimos ficar em Glenshire, fui transferida para


um programa online de literatura inglesa no Trinity College. Com
o incentivo de Kellen, também acrescentei especialização em
redação criativa e comecei a escrever uma série de livros infantis
assustadores sobre lendas irlandesas e contos de fadas. Até agora,
eu havia escrito The Ghost of Glenshire, The Lady in the Lough, The
Witch in the Woods e estava trabalhando em The Fairies in the
Forest. Eu ainda não havia encontrado uma editora para eles, mas
consegui um agente literário, o que parecia um sonho tornado
realidade por si só.
Eu bati meus dedos na porta aberta do celeiro, mas Kellen não
percebeu sobre o tilintar de seu cinzel e martelo. Ele estava
debruçado sobre uma de suas bancadas, dando os retoques finais
em uma peça na qual vinha trabalhando a semana toda, e eu o
encarei sem vergonha. Os óculos de segurança no topo de sua
cabeça mantinham a maior parte de seu cabelo ondulado na altura
do rosto, mas um cacho preto errante havia caído para frente e
estava apenas implorando para ser enrolado em meu dedo. Suas
sobrancelhas escuras estavam franzidas em concentração, seu
lábio inferior desaparecia entre os dentes, e as veias e músculos
inchavam em seus braços enquanto ele exercia controle total sobre
as ferramentas em suas mãos cheias de cicatrizes e calos.

Foi um milagre eu ter feito alguma coisa com ele assim o dia
todo.

Eu sempre presumi que Kellen cresceria para fazer móveis


porque era isso que ele fazia quando criança, mas descobri que ele
também era incrível em escultura em madeira, especialmente em
intrincados desenhos de nós celtas. Uma cervejaria local
encontrou seu trabalho on-line e o contratou para fazer uma
enorme placa com seu logotipo - uma harpa irlandesa cercada por
nós celtas - e agora todos os pubs de Dublin queriam uma.

— Feliz Aniversário. — Eu sorri, minhas bochechas corando no


momento em que os olhos de Kellen levantaram e se fixaram nos
meus.

A intensidade de seu olhar ainda fazia meu estômago revirar,


especialmente agora que eu sabia exatamente que tipos de
pensamentos estavam acontecendo por trás daquele misterioso
olhar cinza.

Kellen largou suas ferramentas e me encontrou no meio do


caminho em três passadas, puxando-me para um beijo que fez
minha cabeça girar e meu coração disparar. — Feliz Aniversário.

Deus, essa voz.

— Acordei cedo para terminar esta peça para que pudéssemos


passar o dia juntos. Não queria te acordar.

— Obrigada. — Eu sorri, colocando a mecha solta de cabelo


atrás de sua orelha. — Posso ver?

Kellen deu um passo para o lado. — É igual às outras. Nada de


especial.

— Ei, o que eu te disse sobre dizer isso? — Deixei meus dedos


deslizarem sobre o padrão de tecido tridimensional enquanto meus
lábios se separaram em admiração.

Kellen estava ao meu lado. — Eu acredito que suas palavras


exatas foram, 'Kellen, da próxima vez que você disser isso, eu vou
te dar um tapa na cara.'

Sem olhar para ele, levantei minha mão e bati em sua


bochecha. Senti seu sorriso, mas não o vi. Eu não conseguia tirar
os olhos da obra-prima sobre a mesa.

— É incrível, querido.

Escovando meu cabelo sobre meu ombro, ele deixou cair os


lábios para o lado do meu pescoço. — Eu fiz algo para você
também.

— Já posso abrir os olhos?

— Ainda não. Cuidado com a raiz dessa árvore.

— Eu não posso cuidar disso. Meus olhos estão fechados.

— Bem, olhe para baixo então, só não olhe para cima.

— Por que você simplesmente não disse isso?

As mãos de Kellen em meus ombros me fizeram parar. — Ok,


estamos aqui.

Quando abri os olhos, levei um minuto para reconhecer onde


estávamos. Estávamos a alguns metros da margem do lago, ao lado
do carvalho gigante com os restos esfarrapados do velho balanço
de corda de Kellen pendurado nele, mas os arbustos de amora-
preta haviam sido aparados tão longe que o caminho agora
alcançava toda a trilha para a água.

A princípio, pensei que fosse meu presente - o belo caminho


coberto de lascas de madeira até o lago - mas então notei o que
estava na beira da água cintilante, no meio daquela nova clareira,
e fiquei boquiaberta.

— Ah, Kellen.

Um banco de madeira polida cor de caramelo brilhava ao sol do


fim da manhã. Em vez de ripas, toda a parte de trás foi esculpida
em uma única peça de madeira para parecer um nó celta
retangular. Eu nunca tinha visto nada parecido. Lágrimas
turvaram minha visão enquanto eu andava em círculos ao redor
do assento esculpido, olhava para os intrincados desenhos nos
apoios de braços, maravilhava-me com as pernas torneadas à mão.
Mas foi o que Kellen esculpiu no centro sólido do nó que fez com
que a represa da emoção finalmente se rompesse.

Darby + Kellen

14 de junho de 2012

— Nossas sardas. — Eu ri, as lágrimas escorrendo pelo meu


rosto enquanto eu traçava os três pontos perfeitos com meu dedo.
— Oh meu Deus, Kellen, eu... eu nem sei o que dizer. Está perfeito.
Somos... somos nós.

Kellen levantou minha mão esquerda e beijou a marca que


compartilhamos desde que éramos crianças. — Sei que hoje é
nosso primeiro aniversário de casamento, mas no que diz respeito
a Saoirse e a mim, — ele inclinou a cabeça em direção ao banco,
— você e eu estamos casados há dez anos.

Jogando-me no corpo quente e sólido de Kellen, eu o apertei


com força, fechei os olhos ainda mais e fiz uma oração silenciosa
de agradecimento a qualquer divindade, espírito, fantasma ou
bruxa que teve uma mão para nos trazer de volta. Nós passamos
pelo inferno separados, mas juntos, nossa vida era nada menos
que o céu.

E esperançosamente, tão eterna quanto.


— Eu tenho algo para você também, — eu disse, meu tom
ficando sério enquanto meu coração disparava afundando sob o
peso do que eu estava prestes a dizer. Fiz um gesto em direção ao
banco. — Você pode querer se sentar para isso.
Meu querido Kellen,

Há tanto que quero dizer a você. Tenho certeza de que vou deixar
algo de fora, mas espero que haja muito tempo para nos
conhecermos daqui para frente. Se é isso que você quer, claro. Se
não, eu entendo perfeitamente.

Simplesmente escrever esta carta é um sonho tornado realidade.


Estou profundamente grata à sua adorável esposa por me dar a
oportunidade de falar com você novamente. Minhas mãos estão
tremendo, então, por favor, perdoe minha caligrafia horrível.

A primeira coisa que gostaria de dizer é que te amo e sinto sua


falta mais do que você jamais saberá. Não passa um dia sem que
eu imagine seu rosto doce e sorridente e deseje ter sido mais forte
por você. É um arrependimento que irá comigo para o túmulo.

A segunda coisa que gostaria de dizer é, feliz aniversário. Você


tem vinte e quatro anos hoje. Sinto muito por você não ter sabido
disso até agora. Verdadeiramente. Não consigo imaginar como deve
ter sido para você.

Você nasceu em 28 de fevereiro de 1998. Eu tinha quinze anos


na época. Quatorze anos quando engravidei. Durante meses, não
sabia o que havia de errado comigo. Só que eu estava passando mal
e ganhando peso sem motivo. Não aprendemos como os bebês são
feitos na escola, e isso era algo que minha família nunca discutia.

Outra coisa que nunca discutimos foi meu relacionamento com o


padre Henry.
Eu tinha doze anos quando ele disse a meus pais que viu algo
maligno em mim. Ele disse que eu precisava começar a trabalhar
como voluntária na igreja depois da escola para que ele pudesse
cuidar pessoalmente do meu desenvolvimento espiritual. A
princípio, ele tinha um trabalho real para eu fazer - limpar
prateleiras, orações para recitar - mas, em poucos meses, ele disse
que o mal dentro de mim estava crescendo. Eu estava apavorada.
Eu senti como se tivesse sido diagnosticada com algum tipo de
câncer. Eu teria feito qualquer coisa para tirá-lo. O padre Henry
disse que a única maneira de impedir que ele reivindicasse minha
alma era ele começar a realizar uma série de rituais sagrados e
secretos.

Rituais que eu era proibida de falar.

Seu abuso, como agora sei, continuou até minha mãe perceber
que eu estava grávida. Ela me bateu e me xingou de nomes horríveis
que eu não entendia e colocou todas as minhas coisas em uma
sacola. Eu nem tive a chance de dizer adeus aos meus irmãos e
irmãs. Ela então me levou a um lar para mães e bebês administrado
por freiras, onde dezenas de outras mulheres grávidas solteiras e
novas mães eram tratadas como gado. Você não poderia sair. Se
você fugisse, os guardas a trariam de volta. Fiquei lá até começar a
sentir uma dor horrível no estômago. Fui levada para uma sala com
nada além de uma mesa de metal no centro e deixada para dar à
luz sozinha.

Eu fiz amigas lá que deram à luz antes de mim. Depois de alguns


dias, às vezes semanas, elas perguntavam onde estava o bebê e as
freiras simplesmente diziam: — Ele se foi. — Era isso. Desde então,
elas encontraram valas comuns nesses lugares, cheias de centenas
de corpos infantis. Alguns foram mandados embora ou adotados,
mas outros morreram de doenças e negligência.

Eu não poderia deixar isso acontecer com você. A razão pela qual
você não tem uma certidão de nascimento é porque eu fugi com você
antes que eles tivessem a chance de preencher a papelada. Eu me
escondi em um caminhão de pão que estava fazendo uma entrega
e, quando o motorista nos descobriu, teve pena de mim. Ele e a
esposa nos acolheram, mas não pude ficar lá muito tempo. Se
tivessem sido descobertos, teriam sido punidos.

Eu fiz o melhor que pude sozinha. Nem sempre tivemos um lugar


para morar, mas tínhamos um ao outro. Você foi uma bênção para
mim, Kellen. Sempre fomos felizes, mesmo quando nossas barrigas
estavam vazias ou tremendo de frio. Mas minha culpa por não ser
capaz de cuidar de você adequadamente, os pecados que tive que
cometer por comida e dinheiro, eles me consumiram. Fiquei tão
deprimida, tão dependente de drogas e álcool, que não conseguia
mais cuidar de você.

Em meu último ato de amor por você, levei-o ao padre Henry,


disse-lhe para colocá-lo para adoção e tentei tirar minha própria
vida assim que saí.

Não me lembro muito dessa época. Meus pais me deserdaram.


Passei anos indo e vindo entre as instituições mentais e a prisão.
Mas quando eu estava finalmente pronta para ficar sóbria e colocar
minha vida em ordem, minha irmãzinha me acolheu. Ela tinha visto
as investigações sobre o Mother and Baby Homes no noticiário, bem
como os relatórios sobre abuso dentro da igreja, e queria me ajudar
a consertar as coisas. Começamos a procurá-lo, mas não havia
registros em lugar nenhum. Quando contei a ela que havia pedido
ao padre Henry que colocasse você para adoção, ela disse que, por
volta dessa época, um menino começou a morar com ele. Um menino
que ele disse ser tão mau que era inadotável, então o padre Henry
foi encarregado de seu - desenvolvimento espiritual.

Meus pais se mudaram para uma cidade diferente logo depois


disso, então minha irmã não sabia o que havia acontecido com o
menino, mas quando voltamos a Glenshire para investigar, eles nos
disseram que o padre Henry havia morrido em um incêndio e o
menino tinha provavelmente morrido também.

A agonia dessa descoberta, Kellen, não há palavras para


descrever a dor. Foi pior do que quando eu desisti de você. Pelo
menos então, eu acreditava que estava fazendo a coisa certa. Nunca
me ocorreu que o padre Henry tentaria ficar com você. Os padres
não podem nem ter filhos. Só queria que ele assumisse a
responsabilidade pelo que fez e encontrasse um bom lar para você.
Mas saber que você não apenas foi criado por aquele monstro, mas
também morreu junto com ele, isso me destruiu.

Fui para um lugar muito sombrio depois disso, mas minha irmã,
que espero que você conheça um dia, nunca desistiu de mim. Sua
tia Cara me colocou em terapia e reuniões de grupo, onde aprendi a
lidar com a dor, mas nunca passou completamente.

Não até que Darby me ligou e perguntou se eu era sua mãe.

Quero que saiba que, mesmo que decida nunca mais me ver, sou
a mulher mais feliz do mundo agora, e tudo por sua causa. Porque
você foi forte o suficiente para fazer o que eu não pude. Você
sobreviveu ao que eu deveria estar lá para protegê-lo. Você superou
pesadelos que eu só posso imaginar. Você encontrou o amor mesmo
quando ninguém estava lá para lhe mostrar o que isso significava.
Você é uma inspiração para mim, Kellen. Eu não poderia estar mais
orgulhosa do homem que você se tornou.

Feliz Aniversário, filho. Eu vou te amar sempre e para sempre.

Sua mãe,

Kate.
O papel amassou ligeiramente nos punhos de Kellen enquanto
prendi a respiração e esperei por sua resposta. Eu já sabia o que
estava escrito dentro. Kate o havia endereçado a mim para que eu
pudesse entregá-lo a ele quando chegasse a hora certa.

Como se houvesse tempo certo para isso.

Sentei-me ao lado dele, deixando pelo menos alguns


centímetros entre nós no banco, mas ainda podia sentir o calor
irradiando de seu corpo enquanto ele olhava para o lago com olhos
que eram tão profundos e lacrimejantes.

Senti como se tivesse cometido um erro terrível. Kellen me deu


este presente incrível, e tudo que eu dei a ele em troca foi dor de
cabeça.

Eu queria tocá-lo, confortá-lo, mas tudo nele parecia afiado e


eriçado. Então, coloquei a mão no meu próprio joelho e apertei.

— É muito para processar, eu sei.

— Como você a encontrou? — Kellen perguntou abruptamente,


ainda olhando para frente.

— Padre Doherty, — respondi, chocada por ele ter falado. — Ele


foi tão legal quando meu avô morreu que pensei que talvez ele
pudesse me ajudar a descobrir mais sobre sua mãe. A igreja
mantém todos os tipos de registros e, com certeza, havia uma
família Donovan que morava aqui. Eles tiveram duas filhas e três
filhos. Achei que nenhuma das filhas deles tinha idade para ser
sua mãe, mas mesmo assim as procurei. Acontece que elas são
donas de uma padaria juntas em Limerick, e quando eu liguei para
o número... Kate atendeu no primeiro toque. Era como se ela
estivesse esperando minha ligação.

Kellen engoliu em seco, mas não disse nada, então continuei


falando para preencher o silêncio. Esperando que não tivéssemos
que abordar a outra parte da carta de Kate. O elefante na floresta.

— Ela parecia tão feliz no telefone, Kellen. Ela pensou que você
estava morto, assim como eu. E ela está indo muito bem agora.
Ela faz os bolos mais incríveis. Vi fotos no site da padaria. Deve
ser aí que você conseguiu seu talento...

— Ele disse que meu pai era o Diabo, — Kellen rebateu, sua
voz áspera por ter sido forçado a passar pelo fragmento irregular
de emoção alojado em sua garganta.

Afundei no banco como se o tamanho daquela declaração


ocupasse todo o espaço no meu colo. Então, pensei sobre o que ele
disse e acenei com a cabeça em concordância sombria. — Ele
estava certo.

Kellen e eu ficamos assim por muito, muito tempo. Até que


suas feições se suavizaram e sua postura se desfez. Até que sua
mão encontrou a minha, ainda segurando meu próprio joelho, e
apertou.

— Você está bem? — Eu me virei e estudei seu belo perfil.

Kellen hesitou por um momento. Então, com um profundo


suspiro, ele assentiu. — Acho que sempre soube, no fundo. Eu
simplesmente não queria acreditar.
Apertei sua mão de volta e ficamos sentados em silêncio por
uma eternidade. Tempo suficiente para eu reunir coragem para
jogar uma última bomba no meu pobre e desavisado marido.

— Sabe o que pode fazer você se sentir melhor? — Eu sorri.

Kellen se virou para mim, arqueando uma sobrancelha cheia


de cicatrizes e desconfiada.

— É seu aniversário, e acabei de encontrar esta padaria incrível


em Limerick, então... — Engoli em seco quando o rosto de Kellen
empalideceu. — Eu meio que... meio que... perguntei a uma das
proprietárias se ela gostaria de trazer um bolo para você.

Eu me preparei para a raiva de Kellen, que teria sido


completamente justificada, mas ao invés disso eu vi vinte e quatro
anos de tensão e dor desaparecerem de suas feições. Seus olhos
tempestuosos se arregalaram, seus lábios carnudos se separaram
e uma risada repentina explodiu dele que eu nunca tinha ouvido
antes. Não era plano ou cansado. Sarcástico ou cínico. Era
animado e nervoso, e o som mais doce e adorável que eu já ouvi.

— Então... você não está bravo? — Minhas sobrancelhas se


ergueram em esperança. — Ainda dá tempo de cancelar se você
não estiver pronto, mas depois que li aquela carta, pensei...

Os olhos incolores de Kellen brilharam com lágrimas não


derramadas enquanto ele sorria para mim em descrença.

— Bravo? — Ele soltou um suspiro trêmulo que terminou com


outra risada incrédula. — Jesus Cristo, Darby. Há apenas duas
coisas que eu sempre quis nesta vida. Você... e ela.

Depois que batizamos o novo banco - e jogamos algumas rosas


no lago como um pedido de desculpas a Saoirse pelo que ela
acabou de testemunhar - passei as próximas horas me preparando
para nossa festinha de aniversário, enquanto Kellen andava de um
lado para o outro, resmungava e mastigava seu unhas até o talo.
Na verdade, eu o mandei de volta para sua oficina porque ele
estava me deixando muito ansiosa.

Quando finalmente ouvi a porta de um carro fechar, quase


tropecei nos meus próprios pés enquanto corria para a entrada da
garagem.

— Kate! Oi! — Acenei embora ela não pudesse me ver com


metade de seu corpo se inclinando para pegar algo no banco de
trás. — Eu sou Darby. Estou tão feliz que você conseguiu. Você
não tem ideia do quanto isso significa...

O resto da minha saudação completamente ensaiada caiu da


minha boca aberta enquanto Kate fechava a porta traseira de seu
sedã azul, revelando uma garotinha em seus braços com menos de
quatro anos.

Ela era uma boneca, loira, com um polegar na boca e grandes


olhos azuis sonolentos.

Ao contrário de Kate, que tinha cabelos negros e era cativante


como o filho.
Kate sorriu para mim calorosamente, mas a maneira como ela
segurou a criança, quase usando-a como um escudo humano, me
fez perceber que Kellen não era o único que estava nervoso com
esse pequeno reencontro.

— É um prazer conhecê-la, Darby. Tenho mais alguém aqui que


também está ansiosa para conhecê-la. Esta é minha sobrinha,
Scarlet. Scarlet, você pode dizer oi?

A garotinha acenou para mim com o polegar na boca, quatro


dedos abertos balançando acima do nariz.

— Quando ela soube que sua mãe e eu estávamos fazendo um


bolo para o aniversário de seu primo, ela insistiu que eu a
trouxesse. Coisinha obstinada.

Os olhos da garota se arregalaram enquanto ela examinava os


arredores. Então, ela puxou o polegar da boca com um estalo. —
Você tem ovelhas?

Ela se contorceu para se livrar do aperto de Kate.

— Nós moramos na cidade, — Kate explicou, colocando a garota


de pé. — Não há muitas ovelhas em Limerick.

— Eu tenho uma ovelha. — Eu ri, ajoelhado na frente da


criança enquanto sua cabeça girava em todas as direções. — O
nome dele é Vlad. Mas ele está visitando seus amigos agora. Ele é
muito sociável, então gosta de sair escondido e brincar com as
outras ovelhas quando fica entediado.

— Como você o encontra? — Ela franziu a testa.


— Bem, se ele fosse branco, pintaríamos uma mancha azul nele
para combinar com nossa casa, mas sua lã é preta, então é fácil
diferenciá-lo.

— Uma ovelha negra! — Scarlet olhou para a tia, mas Kate não
estava ouvindo.

Seus olhos estavam fixos em algo atrás de mim.

E eles estavam brilhando.

Eu não precisava me virar para saber o que - ou quem - ela


estava olhando, mas eu fiz de qualquer maneira.

Kellen estava a cerca de três metros de distância, sua expressão


ilegível, olhos cautelosos enquanto olhava para a metade que
faltava de si mesmo. Ele estava tão animado para vê-la, mas agora
que ela estava lá... a angústia que eu sentia irradiando dele era
insuportável. Ele estava tentando desligar suas emoções - eu podia
ver isso. Da mesma forma que ele fez quando se rendeu ao UIB.
Quando ele me disse adeus. Eu queria tanto levar aquela dor
embora. Essa frieza. Mas eu não podia.

O melhor que pude fazer foi dar a Kate um olhar que dizia:
Machuque-o de novo e eu mato você, e tentar descobrir o que fazer
com a garota.

— Scarlet, — eu disse, quebrando o silêncio, — eu quero que


você conheça Kellen. Hoje é o aniversário dele.

As sobrancelhas loiras da criança franziram em confusão antes


que ela voltasse sua atenção para Kate. — Você disse que era o
aniversário do meu primo.
— É, amor, — Kate murmurou, sua voz a ponto de falhar. —
Esse é ele.

Scarlet franziu a testa e se virou para Kellen. — Mas ele é tão


velho.

Kellen e Kate riram exatamente ao mesmo tempo, o staccato de


suas risadas uma combinação perfeita, e naquele momento, eu
soube.

Tudo ia ficar bem.

Subindo ao meu lado, Kellen se inclinou e estendeu a mão para


sua prima de um metro de altura, como se nunca tivesse
conhecido uma criança antes em toda a sua vida adulta. — Prazer
em conhecê-la, Scarlet.

Ela olhou de volta para Kate, que acenou com a cabeça em


aprovação, antes de se virar e dar um tapa entusiasmado na palma
da mão. — Toca aqui!

— Scarlet, — eu sorri, tentando não rir, — você gostaria de vir


procurar fadas comigo?

— Fadas?!

— Isso mesmo. — Travei os olhos com Kate, certificando-me de


que estava tudo bem antes de estender minha mão. Scarlet
agarrou-a sem hesitar. — Elas moram bem ali naquela mata, mas
são muito difíceis de encontrar.

Quando nós viramos para a casa, os olhos de Kellen se


suavizaram quando eles varreram nós duas, e algo dentro de mim
floresceu.
— Certifique-se de parar lá dentro e pegar alguns biscoitos
antes de ir. — As palavras de Kellen eram para Scarlet, mas o ardor
completamente inapropriado em seu olhar era para mim. — Ouvi
dizer que os biscoitos são os favoritos delas.

Eu dei a Kellen um olhar de advertência antes de conduzir a


criança para longe do confuso e doloroso mundo da idade adulta e
para os braços reconfortantes da magia, assim como meu avô
tinha feito por mim.

— Você sabe ser super quieta? — Eu perguntei, saboreando o


aperto quente de sua mãozinha gordinha na minha. — As fadas
têm uma audição excelente e, se sentirem um humano por perto,
desaparecerão assim.

Eu estalei meus dedos, e Scarlet pulou com uma risadinha.

— Posso ficar quieta, — disse ela, demonstrando seu melhor


andar na ponta dos pés. — Vê?

— Oh, uau. Isso é silencioso. — Abri a porta da cozinha e fiz


um gesto para que ela entrasse.

Quando Scarlet passou por baixo do meu braço estendido, ela


perguntou: — Você já viu uma fada, Sra. Darby?

Meus olhos vagaram sobre sua cabeça para o homem parado


na minha entrada. A postura de Kellen era alta e forte enquanto
ele se levantava, encarando sua ferida mais antiga e profunda,
seus braços cruzados sobre o peito, seu rosto duro como pedra
polida. Era um exterior à prova de balas, mas eu sabia que
espreitando por trás estavam os olhos lacrimejantes e os lábios
rachados do menino mudo e órfão de mãe que conheci na floresta
tantos anos atrás.

— Eu fiz, — murmurei, incapaz de desviar o olhar.

— Realmente? — Scarlet engasgou. — Como se parece?

— Bem, ele tinha cabelo selvagem, como chamas negras, e


olhos como fumaça. E ele estava triste e assustado…

E ele queria correr.

Eu podia ver na forma como os ombros de Kellen estavam


contraídos e seus pés firmes - ele queria correr agora também.
Esconder-se. Para se manter seguro. Mas quando Kate puxou uma
caixa de bolo branca do banco do passageiro e se virou para
encará-lo, com o rosto despedaçado e a mão abafando um soluço
entrecortado, observei aquele garotinho corajosamente dar um
passo à frente.

E dando um abraço na mãe dele.

Fechei a porta silenciosamente para não perturbá-los enquanto


seguia Scarlet para dentro de casa.

— Mas ele está muito mais feliz agora. — Eu sorri, meu coração
mais cheio do que nunca.

— Por causa dos biscoitos? — Ela perguntou, apenas meio


ouvindo enquanto olhava pela janela da cozinha para o pasto, a
floresta e a montanha roxa além.

— Isso mesmo. — Eu ri. — As pessoas boas adoram biscoitos.

Você também pode gostar