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Kellen não era mau. Ele era gentil, bonito, especial e doloroso. Ele
era meu amigo. E a cada verão que passei escondida com ele naquela
floresta encantada, ele cresceu e se tornou muito mais.
— Vovô, por que todas as suas ovelhas têm manchas azuis nas
bundas? É para que combinem com a sua casa azul? Azul é sua
cor favorita? Minha cor favorita é verde. Eu gosto daqui. Tudo é
verde, verde, verde. A mamãe diz que é por isso que chamam de
globo ocular esmeralda.
Enquanto ela estava lá e fez uma careta, meu avô riu do meu
comentário de globo ocular esmeralda. Ele também estava triste
por causa da minha avó, mas isso não o impediu de sorrir quando
falou comigo. Eu não o via desde que era bebê, então não me
lembrava dele ou da minha avó, mas assim que cheguei, ele agiu
como se já fôssemos melhores amigos.
Ele riu, e pensei que ele parecia um duende. Seu cabelo laranja
outrora brilhante havia desbotado para um loiro dourado a essa
altura, e ele tinha tantas sardas que seu rosto parecia um ovo
enrugado, velho e salpicado, mas o brilho em seus olhos era tão
afiado e travesso quanto o de uma criança.
— Da1.
— Pai, ela tem oito anos. Você realmente acha que é uma boa
ideia ir brincar na floresta sozinha?
— Sim, mas...
1
Pai.
— Estou mais preocupada com ela se perdendo, — mamãe
protestou, cruzando os braços sobre o peito.
— Sim, isso é fácil. — Vovô ergueu duas mãos, uma alta e outra
baixa, em concha como cúpulas. — Você sobe a colina, — disse
ele, dando um pequeno aperto na mão de baixo, — você desce a
colina. Você vê um Lougth no fundo.
— E diz a lenda, este lago tem um espírito nele. Uma coisa mal-
humorada. Pode ser cruel como uma cobra se você contrariá-lo,
mas ouvi dizer que ele gosta de presentes.
Talvez seja para que as fadas possam subir nas árvores sem se
estilhaçar.
A única coisa que minha mãe me disse quando ele perdeu todos
os direitos de visita foi que ele precisava ‘trabalhar em si mesmo’,
mas isso não fazia o menor sentido para mim. Se alguém precisava
consertar o carro ou consertar a casa, levava apenas alguns dias.
Semanas no máximo.
Nada.
Parecia que as fadas estavam rindo. Mordi o lábio para não rir
também e coloquei meus melhores ouvidos atentos. Então, eu ouvi
de novo. Talvez não fosse risada, mas alguma coisa lá fora estava
definitivamente fazendo barulho. Fungando? Bufando? Mas não
parecia vir do círculo de cogumelos.
Como um círculo!
Um menino.
Nenhuma resposta.
Ou atacar.
— Nove?
Não.
— Dez?
Ele assentiu.
Acenei com minha bengala, mas ele apenas olhou para a dele.
Eita.
Voltamos a andar, mas desta vez não lhe ofereci minha mão.
A casa da bruxa.
Amassei uma das folhas grandes que encontrei até que não
passasse de confete. Então, joguei o mais forte que pude. Claro, as
peças apenas flutuaram no ar e pousaram graciosamente no chão
na minha frente, o que só me irritou mais.
— Humph.
Talvez uma gota de água tenha caído em seu olho, pensei. Tem
que ser isso.
Partir.
Olhei ao redor para ter certeza de que ele não estava ao alcance
da voz. Então, coloquei minhas mãos em volta da minha boca
sorridente e sussurrei, tão baixinho quanto minha vertigem
permitiu: — Acho que encontrei uma fada da vida real.
Tentei andar o mais silenciosamente possível pela floresta para
não assustar as fadas, mas isso era meio impossível com o jogo de
chá de porcelana da minha avó chacoalhando em minhas mãos
nervosas.
Depois que minha avó faleceu, minha mãe se sentiu tão mal
com o tempo que passou longe de Glenshire que prometeu a meu
avô que voltaríamos para visitá-lo todo verão. Tínhamos que cortar
coisas como comer fora e comprar roupas novas para pagar as
passagens de avião, mas eu não me importava. Eu teria comido
arroz e feijão em todas as refeições se isso significasse que eu
poderia brincar com meu novo amigo novamente.
E lá estava.
— Posso pegar um pouco de água para você. Meu avô mora logo
depois do morro, na casa azul.
O menino saiu da cabana e notei que seu jeans era pelo menos
cinco centímetros mais curto e tinha buracos nos joelhos. Concluí
que aquelas deviam ser suas roupas de brincar.
— Que droga!
Corri atrás dele, mas o menino foi bem mais rápido. Ele
alcançou Sir Timothy em segundos, curvando-se e pegando-o em
seus braços como se ele não pesasse nada. Fiquei boquiaberta
quando ele voltou para mim, carregando Sir Timothy como se ele
fosse apenas um bichinho de pelúcia gigante e descontente.
— Ele não é mau, vovô. Ele é uma fada, eu juro! Ele tem lindos
olhos prateados, vive em um anel de fadas e come doces. Assim
como você disse! E ele é legal. Ele nem pisa em flores e trouxe Sir
Timothy de volta quando eu acidentalmente o deixei sair pelo
portão.
Wham!
Três dias. Darby voltou por três dias, e ela não veio me procurar
uma vez.
— Porra!
Joguei o galho mutilado por cima do muro do chalé e ouvi algo
que não ouvia há trezentos e sessenta e oito dias. O som mais
bonito de todo o maldito mundo.
— Kellen?
Com um sorriso.
Darby Collins.
— Doido.
— Demônio.
— Bastardo de Satanás.
— Ouvi dizer que ele não pode falar porque sua língua é
bifurcada como uma cobra.
— Ouvi dizer que ele tem um rabo com uma forquilha na ponta.
— Tenho tentado vir brincar desde que cheguei aqui, mas tem
chovido há dias! Mamãe não deixa eu brincar fora na chuva porque
vou sujar toda a roupa, mas eu pensei que esse era o objetivo de
ter roupas de brincar. Eu disse isso a ela, mas então ela me
criticou por falar mal e disse que eu precisava passar um tempo
com minha tia, meu tio e meu avô. Mas eles são tão chatooos. E o
vovô não tem nada de criança em casa. Eu tenho feito desenhos
no chão com suas fichas de pôquer e cartas de baralho por três
anos inteiros - oh meu Deus!
Eu balancei a cabeça.
— Abra! Abra!
Bebi a água com vinagre até ter que parar para respirar. Então,
eu bebi um pouco mais. Senti escorrer pelos cantos da minha boca
e pelo colarinho enquanto Darby ria.
2
Aventuras na Terra do Urso Tedd.
eu nem estava mais no meu corpo. Eu estava atrás dela naquele
banheiro mal iluminado, observando por cima do ombro enquanto
ela massageava as bolhas em meu couro cabeludo.
Desde ela.
Merda.
Eu não queria voltar para baixo. Era lá que ele fazia seus
rituais. Onde ele me punia. Não havia nada no sótão para ele me
bater, além de seu próprio cinto.
Ele puxou outro dedo para trás e eu gritei de novo, mas não
soltei. Eu me recusei a deixar ir.
E ele fez.
☘
Não.
NÃO!
Lágrimas ferventes turvaram minha visão enquanto eu olhava
em volta para o mar de ondas negras e pedaços de trança ao meu
redor. Cachos soltos rolavam do meu peito e se acumulavam no
meu colo. Pelo menos os que não estavam grudados no sangue
seco da minha camisa.
— Não.
— Não.
— Não.
— Não.
— Não!
Minhas mãos se fecharam em punhos, apertando o cabelo,
apertando o mais forte que podiam, apesar da dor que irradiava
pelos meus dedos. Então, rasguei e desfiei os fios até ficarem em
um milhão de pedacinhos, mas não foi o suficiente.
— Merda. Repita depois de mim. Pai nosso que estais nos céus,
santificado seja o vosso nome…
Ele parecia tão bonito com ele puxado para trás em uma trança
francesa. Como um daqueles soldados da Guerra Revolucionária.
O pensamento dele fez meu peito doer. Sentei-me na grama e
peguei um dente-de-leão, girando-o entre meus dedos enquanto
me lembrava de como ele estava antes de fugir de mim.
1942 ~ 2008
Ela disse que era de mau gosto, mas o vovô apenas riu, deu um
tapa no joelho e disse: — Mau gosto. Sim, essa é boa.
Mas tinha.
— Kellen?
— Kellen? Você-
— Kellen, espere!
Passo, passo.
— Kellen, eu...
— Desculpe. Me desculpe.
A última vez que fiz uma trança no cabelo da minha mãe, fiz
um nó tão ruim que ela gritou comigo, dizendo que achava que
teria que cortar a maldita coisa. Eu não tive mais permissão para
trançar o cabelo dela depois disso. E agora eu tinha feito isso com
Kellen.
— Kellen, espere!
Pare!
Estendi a mão para tocar seu novo cabelo curto - parecia tão
macio, como pelo de ursinho de pelúcia - mas ele afastou a cabeça
com um grunhido.
Foi apenas a segunda palavra que ele disse para mim, mas eu
agi como se não me importasse. Eu era orgulhosa demais para
deixá-lo ver o quanto havia ferido meus sentimentos. Muito
preocupada que ele pensasse que eu estava sendo um bebê. Eu
não era um bebê - eu era corajosa. Corajosa o suficiente para
entrar em uma casa mal-assombrada para ver se ele estava bem.
E eu fui corajosa o suficiente para atravessar aquele cemitério para
fugir dele também.
— Darby!
Eu tentei tanto não pisar nas sepulturas, mas não pude evitar.
Eu podia ouvir Kellen bem atrás de mim, e ele parecia tão zangado.
— Lembre de mim.
Ele não iria olhar para mim, embora. Em vez disso, ele virou a
cabeça, enxugando a bochecha molhada no ombro manchado de
sangue.
— Tudo bem.
Não estava tudo bem, ele não estava bem, mas Kellen assentiu
como se minhas palavras o fizessem se sentir melhor de qualquer
maneira. Então, ele se deitou na grama ao meu lado. Ele jogou um
braço sobre o rosto, escondendo-o na dobra do cotovelo, mas o
outro pousou na grama. Ao lado do meu.
Mas quando virei minha cabeça e olhei para o lado de seu rosto,
eu sabia que já era tarde demais.
Ela parecia tão magra, sentada ali, curvada sobre sua bebida,
no sofá ao lado de sua irmã. Onde Shannon era gorda, minha mãe
era côncava. Onde ela estava rosada, minha mãe estava mais
pálida do que o normal.
— Até que eles se casem com uma! — Tio Eamonn riu tossindo,
batendo no próprio joelho. Ele fez a cadeira balançar com tanta
força que Sherry teve que se levantar para não cair.
— Estou indo!
Andei na ponta dos pés pelo quintal mole ao redor da casa até
os degraus da frente, onde minha mãe me fez deixar minhas novas
botas de chuva amarelas. Claro, agora elas estavam cheias de água
- obrigada, mãe - que eu joguei em meus pés para lavar a lama
antes de puxá-las sobre meus jeans skinny. Eu nunca teria usado
aquelas botas em casa - elas eram tão infantis - mas assim que
descobri que estávamos vindo para Glenshire, comprei um par
com minha própria mesada.
Felizmente, meu cabelo era muito mais longo que o dela. Puxei-
o sobre um ombro e fiz uma trança rápida enquanto entrava na
floresta e subia a colina, mas quando fui puxar um elástico do meu
pulso, descobri que não tinha um.
Que droga!
E então eu congelei.
Não consegui ver seu rosto, mas pude ver suas botas parando
bem na minha frente. Eu podia sentir o calor irradiando de seu
corpo. E eu podia ouvir sua respiração, pesada e rápida.
— Lembre de mim.
Era por isso que ele estava tão chateado. Eu não tinha voltado
no ano anterior.
— Queria te dizer.
Então eu fiz.
Segui seu olhar para onde uma velha escada de madeira estava
encostada no tronco. Acima dele, pendurado em um galho tão alto
que eu não sabia como um humano poderia amarrá-lo, havia um
pedaço longo e grosso de corda com um nó na ponta.
Ziiiiiip.
Oh meu Deus.
Mas então elas vão se molhar, e mamãe vai saber que eu entrei
no lago, e não devo chegar perto do lago.
Dane-se.
— Obrigada. — Eu sorri.
Abri a boca para gritar para ele voltar, mas voltei a fechá-la
quando senti a escada afundar um centímetro no chão. Ela
estremeceu e balançou a cada passo que Kellen subia, e quando
parou, senti algo úmido e áspero bater contra o lado do meu corpo.
Silêncio.
O lago.
E nos beijamos.
— Kellen, olhe.
Se ele podia sentir meu olhar, ele não demonstrou. Ele não
mostrou muita coisa. Nunca. Eles provavelmente lhe ensinaram
isso na faculdade de direito.
— Foi uma humilde honra estar lá, ao lado de Pat, quando ele
faleceu, — continuou o padre Doherty, recuperando minha
atenção. — As enfermeiras do hospital me ligaram para avisar que
a hora dele estava próxima, então fui até o leito dele. Lá, eu o
abençoei e li algumas passagens do bom livro. Ele estava dentro e
fora da consciência, mas conseguiu dizer algumas palavras lá no
final. Com os olhos fechados e a respiração curta, Pat sussurrou
para mim: 'Pai, diga ao pessoal lá de casa... que eu mijei em todos
os poços deles, para que não fiquem muito chateados com a minha
morte. '
Todos riram, menos John.
Oh meu Deus.
— O advogado dela, você diz? Bem, a garota não tem nem dois
centavos para juntar, então acho que todos nós sabemos com o
que ela está pagando para você. — Os olhos de Eamonn
percorreram a multidão, mas desta vez, eles foram educados o
suficiente para conter o riso em um riso abafado.
— Ele é meu noivo, — deixei escapar, tentando sair em defesa
de John ou possivelmente minha, mas ninguém pareceu me ouvir.
— Existe, mas essa lei não se aplica aqui porque a Sra. Collins
é adulta.
— Pa deu aquela casa para Darby por uma razão. — Ela baixou
a voz nessa última parte. — A pobre criança ficou sem nada.
1940 ~ 2021
—Darby?
— Hum? — Pisquei para o padre Doherty, que havia descido do
palanque e agora estava ao lado do caixão de meu avô.
— As cinzas, amor.
Oh Deus.
Eu freneticamente tentei enxugar minhas lágrimas enquanto
os passos de John se aproximando ficavam mais altos. Eu não
podia deixá-lo me ver assim.
O tom agudo em sua voz foi meu único aviso. Eu sabia o que
aconteceria se eu o desafiasse depois disso, mas não consegui me
virar.
E eu corri.
— Onde você supõe que ela está indo?
— Darrrr-byyyy!
Vê-las novamente me fez sorrir. Elas ainda eram tão fofas com
aquelas manchas azuis brilhantes.
A casa de campo.
Uma velha com olhos de leite estragado olhou para mim através
de uma cortina entreaberta de longos cabelos grisalhos
desgrenhados.
Eu fiz e decidi que ser um sapo não seria tão ruim, desde que
eu continuasse sentada perto daquele fogo. Eu não tinha
percebido o quão dolorosamente frio meus pés e mãos tinham
ficado.
Merda.
— Saoirse?
Parte de mim pensou que ela era louca, mas a outra parte de
mim - a parte irlandesa, a parte que foi ensinada a acreditar em
fadas, bruxas e espíritos do lago - me forçou a ficar e ouvi-la.
Espinhos de amora.
Sangue.
Água.
Vovô.
Mãe.
Kellen.
Sua casa.
Foda-se isso.
Eu não ouvia isso há anos. Nem uma vez desde que deixei
Glenshire. Kellen Donovan - o rejeitado mudo, sem mãe e
impotente - estava tão morto para mim quanto o padre Henry.
Então, quando a Irmandade me acolheu, não lhes dei um nome.
Eu disse a eles que podiam me chamar do que quisessem. No
início, eles escolheram Boy - eu tinha apenas dezessete anos na
época - mas depois que fiz minhas primeiras mortes, os anciãos
começaram a me chamar de Diabhal.
Diabo.
Eu estava errado.
Nossa casinha.
Eu encontrei.
Eu sabia que ele não estaria lá, mas não foi até que enfiei a
cabeça pela porta que minha última brasa de esperança finalmente
explodiu.
— Merda.
Por favor, esteja aberta, por favor, esteja aberta, por favor, esteja
aberta …
Pela primeira vez desde que chegou em casa, John olhou para
mim. Realmente olhou para mim. E enquanto observava a
expressão em seu rosto se transformar de irritada em furiosa, eu
sabia que a pior noite da minha vida ainda não tinha acabado.
— Não minta para mim. É por isso que você fugiu esta noite,
não é? Para foder uma velha paixão?
— Isso foi o que eu pensei. Você nem tem idade para beber.
Que porra você sabe? Nada. Além de como abrir a porra das
pernas.
Quando John não disse mais nada, abri um olho e observei seu
olhar varrer meu corpo, como o arrasto de garras invisíveis. Então,
ainda segurando meu queixo com uma das mãos, ele enfiou a mão
livre por baixo do meu vestido apertado e molhado. Eu
imediatamente pressionei minhas pernas juntas, causando uma
emoção predatória em seu rosto.
Soltando meu rosto, ele agarrou meus dois joelhos e, apesar da
minha resistência, meus apelos e minha cabeça balançando, ele
os separou com uma rápida explosão de força.
John tinha.
Rato morto, pensei. Você é um rato morto assim. Talvez ele tenha
ficado entediado e ido embora.
Não, parecia que tinha ido para trás. Porque olhando para mim
havia duas poças prateadas de luar que eu não olhava desde os
doze anos de idade. Eu vi uma vida inteira girando naquelas
profundezas - risos e chás, amoras e feitiços, camisetas
manchadas de sangue e bochechas manchadas de lágrimas,
olhares roubados e beijos doces e suaves. Mas foi aí que a saudade
acabou porque o resto dele estava irreconhecível. Suas feições
eram esculpidas, poderosas e cobertas por uma sombra de barba
por fazer escura que desaparecia em uma cabeça cheia de cabelo
preto repicado. Seu maxilar duro estava cerrado, suas narinas
dilatadas a cada respiração silenciosa, e as veias em seu pescoço,
têmpora e bíceps inchavam devido ao esforço.
E aqueles que não nos amam, que Deus transforme seus corações,
E se ele não virar seus corações, que ele vire seus tornozelos, para que
possamos reconhecê-los por seu mancar.
Ele deve ter entrado para o exército depois que o padre Henry
morreu.
— Kellen, você tem que ir, — eu deixei escapar. — Você tem que
sair daqui. Agora mesmo. Vou chamar a polícia assim que você
sair. Direi a eles que fiz isso, que foi em legítima defesa.
Magia de fada.
— Eu não vou.
Todas elas.
Não!
— Diz a lenda, este lago tem um espírito nele. … Pode ser cruel
como uma cobra se você contrariá-la, mas ouvi dizer que ela gosta
de presentes.
Presentes!
Foda-se.
Até agora.
Deixando Darby no chão ao lado de sua pilha de roupas, senti
uma pontada de perda quando virei as costas para lhe dar um
pouco de privacidade.
— Sim-sim.
Suas mãos tremiam tanto que ela não conseguia abrir o zíper.
Parei bem na frente dela e senti seus olhos em meu rosto enquanto
pegava a aba de metal de seus dedos congelados e a deslizava até
seu queixo.
— KKK-Kellen?
E foi incrível. Meu peito inchou. Meu sangue fervia. Não houve
inundação de medo, nenhum pavor avassalador, apenas pura
euforia.
Foda-se.
Eu já estava atrasado para a entrega. Não teria tempo de
esconder o carro alugado e roubar algo novo. Nem pensei que
Darby ficaria muito animada em se tornar um cúmplice de
assassinato e roubo de carro na mesma noite.
— Você não tem que me dizer. Eu só... quero que saiba que
estou muito orgulhosa de você. E realmente... grata. Se você não
tivesse vindo... — Ela balançou a cabeça, não se permitindo seguir
essa linha de pensamento. — Não tenho ideia do que você está
arriscando para me ajudar. — Sua voz falhou na palavra ajudar, e
estilhaçou algo em meu peito junto com ela.
Ajudar.
Sua voz era tão suave e tão tímida que eu queria gritar. Eu
queria agarrar seu rosto virado para baixo e forçá-la a me olhar
nos olhos. Faça-a me dizer o que diabos aconteceu para fazer com
que a garota feliz e teimosa que eu conhecia se encolhesse ao meu
lado como uma garotinha assustada - joelhos enfiados dentro da
minha jaqueta, mão agarrada à minha, perguntando
hesitantemente para onde eu a estava levando, como se ela não
tivesse o direito de saber. Como se ela agora fosse minha
propriedade e eu pudesse fazer com ela o que quisesse.
Eu balancei a cabeça.
— Não é tipo uma base militar nem nada, é? Não quero que
você se meta em encrenca...
Foda-se.
Lar.
Eu tinha sido tão estúpido em pensar que desta vez poderia ser
diferente.
Eu tinha um pé no inferno.
— Deixa-me e vá.
Merda.
— Isso é besteira! Você diz vai, eu vou. Mais de uma hora. Não
mais!
3
O Diabo de Dublin.
tornou-se o UIB muito ousado. Por causa dele, você afunda, você
pode fazer o que quiser. Mate quem você quiser. Você está errado.
Você matou o russo errado. Agora, eu pego seu brinquedo. Devil é
nosso brinquedo agora, e vê, vou quebrá-lo pedaço por pedaço.
Entregue-o antes que eu volte para Moscou, ou eu volto e trago
todo o exército de Bratva.
Novo plano.
BAM!
Ela gritou quando o carro decolou, mas não estava indo rápido
o suficiente para ultrapassar o Série 5 de Séamus.
E os russos.
Procurei um lugar para virar, mas a estrada era uma longa reta,
flanqueada de ambos os lados por bosques densos. Então, contei
o número de voltas que Darby tinha dado e o meio segundo de
alívio que me permiti sentir transformado em arsênico em minhas
entranhas.
— Abaixe-se.
— O que?
— Mantenha o pé no pedal, — eu disse, sem tirar os olhos dos
faróis voando em nossa direção como a ira de Satanás, — e desça.
Agora!
Eu esperei.
Eu vacilei, mas não foi tão alto quanto eu pensei que seria.
Kellen desapareceu lá dentro e, por alguns segundos, observei a
luz de seu celular disparar pela casa. Então, ele reapareceu na
porta, gesticulando para que eu entrasse.
E encharcado de sangue.
Nenhuma resposta.
— Kellen.
— Você não fez nada de errado, — ele rosnou, sua voz rouca
vibrando através da minha pele. — Nada. Entendeu? Mas você não
está mais segura aqui. Não comigo. Vá para casa, Darby. Por favor.
Algo na maneira como ele disse, por favor, parecia que ele tinha
acabado de enfiar a mão dentro do meu peito e retornar meu
coração.
Eu queria tanto dizer a ele que estava em casa - que ele era a
única coisa na minha vida que parecia segura, familiar, quente e
reconfortante, não uma casa, não um lugar - mas como eu
poderia? Nós só nos reunimos por algumas horas, e durante essas
horas, Kellen provou que ele era tudo menos seguro. Não fazia
sentido, mas o fato permanecia - eu não conseguiria dizer adeus a
ele nem se minha vida dependesse disso.
E provavelmente aconteceu.
Magia de fada.
Jesus Cristo.
— O que você quer dizer com quando pensa que nasceu? Você
não sabe?
Oh meu Deus.
Bom Deus.
— Você realmente não pode falar sobre isso, pode?
Ele estava dizendo que nunca teve uma festa do pijama ou que
nunca...
— Acampamento. — Eu sorri.
Enquanto Darby se ocupava em fazer um ‘acampamento’, eu
andava pela cozinha, planejando possíveis rotas de fuga.
Eu queria fugir com cada fibra do meu ser. Eu queria correr até
meus pulmões queimarem e minhas pernas cederem. Eu queria
ficar o mais longe possível de Darby e do acidente de trem que
estava prestes a acontecer.
— Ambos.
Darby não olhava para mim. Ela manteve os olhos fixos na lua,
como se a história estivesse escrita ao lado dela. Como se não
tivesse realmente acontecido com ela.
Cristo.
Foda-me.
— Kellen.
Eu exalei em alívio.
Comigo.
— Ah, é ótimo.
Eu nunca tinha sido tão ousada com ninguém. Sexo sempre foi
algo que eu suportei, não gostei. Mas Kellen era diferente. Ele não
queria tirar nada de mim. E saber disso me fez querer dar o mundo
a ele.
Enquanto descia por seu estômago, acrescentei minha língua,
sugando o fluxo de água que descia pela dobra entre seu abdômen
esculpido.
Hum.
— É por isso que você fugiu esta noite, não é? Para foder uma
velha paixão?
Estendi a mão para ela, mas puxei minhas mãos para trás no
último segundo. Eu não sabia se eu poderia tocá-la assim. Eu não
sabia se poderia tocá-la. Mas quando Darby envolveu seus
próprios braços ao redor de seu belo corpo e apertou, eu queria
que esses braços fossem meus mais do que eu já quis qualquer
coisa.
— Entendeu?
Eu sabia o que estava por vir. Ou, pelo menos, pensei que sim.
— O que? — Perguntei.
Kellen olhou para mim com o canto do olho. — Como você sabe
tudo isso?
— Claro que sim, — disse Kellen, sua voz grossa com pesar
quando ele balançou a cabeça lentamente.
— Então, eles não estão procurando por mim, e você não estava
em alta velocidade nem nada, talvez eles apenas lhe deem uma
multa por não ter sua identidade, e nós podemos...
Alívio.
Raiva.
Choque.
Temor.
Confusão.
Preocupação.
Gratidão.
Culpa.
Eu já estava estourando.
Enquanto eu cochilava no trem - embalada para dormir pelo
calor de Kellen, o campo Irlandês sem fim rolando pela minha
janela, e o fato de que ninguém estaria nos perseguindo ou
atirando nas próximas horas - Kellen estava ocupado. Ele
procurou em todos os locais de aluguel de curto prazo lugares
perto da estação de trem Dublin Heuston com disponibilidade
naquela noite e se estabeleceu em uma casa de campo isolada,
com proprietários de fora da cidade e parecia – desonesto - o
suficiente para não possuir sistema de segurança.
Kellen disse que seu apartamento não era mais seguro, e como
ele não tinha identidade nem cartão de crédito e eu não podia usar
o meu, ficar em um hotel ou albergue estava fora de questão. Eu
me senti mal por me esconder, mas Kellen havia deixado dinheiro
suficiente na mesa da cozinha do último lugar em que ficamos para
cobrir o aluguel por uma semana, então suponho que funcionou
para todos.
Era perfeito.
Nós andamos na ponta dos pés até a porta dos fundos, mas
Kellen nem precisou chutá-la.
— Oh meu Deus, você tem que ver! — Acenei para que ele se
levantasse e fiquei de um lado da escada enquanto seu corpo
grande e quente preenchia o espaço ao meu lado.
Kellen deu ao recanto um olhar obrigatório fugaz antes de
voltar sua atenção para mim. Seu olhar cinza de aço suavizou
quando ele afastou uma mecha de cabelo - ainda emaranhado e
varrido pelo vento de nossa perseguição anterior - longe do meu
rosto e sussurrou: — Linda.
Uma vez que nosso carro apareceu, não foi difícil fingir que não
estava animada para entrar. Era um grande caminhão baú branco.
Do tipo que sua mãe te avisou para ficar longe quando criança.
Sem marcações.
Sem janelas.
Ele não estava com medo, então decidi que também não estaria.
A viagem foi curta, talvez vinte minutos ou mais, mas foi longa
o suficiente para que a luz do lado de fora me cegasse assim que a
porta se abrisse novamente. Eu protegi meus olhos enquanto
Kellen me arrastava para fora. Quando eles finalmente se
ajustaram, eu me vi parada na frente do cais de carga de um
armazém branco indefinido. Isso me lembrou das docas da noite
anterior. Industrial. Situado longe de quaisquer outros edifícios.
Cercado por cercas altas de arame e veículos de trabalho
igualmente indefinidos. Estranhamente quieto.
— Cale a boca!
4
O Açogueiro.
The Butcher enxugou uma lágrima errante do canto do olho
quando sua risada finalmente morreu. — Jesus Cristo. Sabe, eu
quase me irritei quando ouvi...
Querer.
E isso me aterrorizou.
— Um carpinteiro.
Foda-se.
Contida.
Desculpe.
Eu tive que apertar minha mandíbula para não gritar com ela.
— Vá.
Depois que ele saiu, andei de um lado para o outro por mais ou
menos uma hora, repassando tudo o que tinha acontecido em
minha mente. Minha reação ao seu toque. Minha rejeição. O jeito
que eu recuei dele. O olhar horrorizado e eviscerado em seu rosto.
Eu sabia o quão sensível ele era. Quão difícil pode ser para ele
tocar ou mesmo falar com outra pessoa. Mas apesar de tudo que
ele passou, Kellen confiava em mim. Ele falou comigo. Ele fez amor
comigo. Ele abriu seu peito e me entregou seu coração sensível e
sangrando, e o que eu fiz com ele?
— Foda-se. Darby.
— Kellen!
Ele encolheu os ombros. — Tive que deixá-los tomar algumas
doses. Só para ser educado.
— Quem?
─ Não quero seu corpo vazio, Darby. Eu quero o que está aqui.
— Você tem que falar comigo, anjo. Diga-me o que você quer.
Diga-me o que você gosta.
— Eu sei de uma coisa que você gosta, — ele disse, seus olhos
caindo para os meus lábios enquanto ele lentamente se inclinava.
Meu coração inchou ao perceber que Kellen tinha feito isso por
mim. E quando tiramos a última roupa e ele rastejou de volta para
o meu lado - olhos focados, músculos flexionados - percebi que ele
estava apenas começando.
— Como quiser.
Deus, eu o amava.
Por mais difícil que fosse para mim dizer as palavras em voz
alta, fiquei impressionada com a gratidão por Kellen estar me
obrigando a fazer isso. Por me mostrar que ele era diferente. Por
tirar qualquer possibilidade de medo. E percebi que, ao dizer a ele
o que fazer, eu estava dando a ele o mesmo presente.
Esse foi todo o aviso que recebi antes que a boca de Kellen
estivesse em mim novamente.
Eu fiz como ele disse, dando voz a cada som rouco e necessitado
no fundo da minha garganta enquanto os lábios de Kellen
puxavam e puxavam minha carne sensível.
— Kellen, — eu murmurei.
Ele olhou para mim enquanto seus lábios deslizavam para fora
do meu mamilo com um estalo molhado.
— Mais baixo …
— Dedo em mim!
Oh meu Deus.
Kellen estava tentando tanto provar que não era nada parecido
com ele.
Agora, era a minha vez de mostrar a ele que eu sabia.
Eu quase disse onde você mora, mas Darby não morava mais
lá, e ela nunca mais moraria.
Porra, eu a amo.
Até dois dias atrás, não teria sido uma atuação. Eu mantive
minha boca fechada, fui aonde a Irmandade me disse para ir,
matei quem eles me disseram para matar, e eu nunca dei a mínima
para isso. Todos eles eram corruptos. Eram todos mentirosos,
ladrões, traidores e espancadores de mulheres. Não havia emoção
envolvida, além do fluxo de lava de ódio que bombeava em minhas
veias, exigindo uma liberação periódica. E meu trabalho me deu
isso. Eu tenho que matar filhos da puta que se parecem com ele
uma e outra vez.
Como diabos aquele cara acabou sendo eu, eu ainda não sabia.
— Não acredito que tive que vir para a porra de Dublin para
isso. — O britânico ajustou a gravata e olhou ao redor da sala com
uma carranca, como se eu tivesse pedido a ele para me encontrar
no banheiro.
Eu não respondi.
Você pode dizer muito sobre uma pessoa pela maneira como
ela se comporta quando você fica quieto.
Senti uma risada ressoar em meu peito, mas forcei meu rosto
a permanecer neutro. Como ele disse, eu era Devil of Dublin. Aquele
que eles chamavam de Diabhal. E Diabhal não ria. Ele não sorria.
Ele não transava, bebia ou fumava. Ele falava apenas quando
necessário. E ninguém fora da UIB sabia como ele era porque todos
que viram seu rosto estavam mortos.
Assim que ele saiu da sala, deixei meu olhar vagar até o bar.
Meu corpo caindo girou o filho da puta no lugar assim que seu
amigo puxou o gatilho. De repente, ouvi o silvo de uma bala sendo
disparada através de um silenciador, o rangido úmido dela
cortando carne e osso, e a explosão de gesso pela sala, onde abriu
um buraco na parede.
Depois disso, tudo o que pude ouvir foi o som da água correndo
pelos canos e sangue correndo pelos meus ouvidos enquanto me
dobrava na cintura e tentava não vomitar.
As balas.
Os gritos.
As sirenes.
O jeito que ele estava agindo, o jeito que ele não me deixou ver
nada além de suas costas desde que saímos, o jeito que ele estava
me evitando...
Merda.
Ele ergueu as mãos para tocar meu pescoço, meu rosto, meu
peito, mas se conteve a cada vez, balançando a cabeça cada vez
mais rápido.
Oh Deus.
Algo que eu disse deve ter chegado até ele. Kellen decidiu ficar
comigo em nosso pequeno ninho de amor até que ele se acalmasse
e, pela manhã, descobriríamos algo.
Kellen se foi.
E a escada também.
— Você é tão estúpida.
— Ninguém se importa.
— Prostituta.
— Garimpeira.
— Lixo branco.
— Cadela estúpida.
— Inútil.
— Inútil.
— Desamparada.
— Fraca.
E sem valor.
E desamparada.
E fraca.
Como eu.
— Patética.
— Inútil.
— Fraca.
— Cale-se! — Eu gritei, apertando meus olhos fechados e
cobrindo meus ouvidos com as duas mãos. — Cale-se! Cale-se!
Cale-se!
Mas foi a voz de Kellen que me fez girar e correr de volta para
fora do portão.
A brasa brilhou mais forte quando ele deu outra tragada. Seus
olhos me observavam com interesse, mas ao contrário do resto de
sua aparência desalinhada e volumosa, eles pareciam suaves.
Gentis.
Acho que essa foi a maneira dele de abordar meu sotaque, mas
o sentimento me atingiu de forma inesperada. Baixei o olhar para
o meu Converse encharcado e balancei a cabeça lentamente.
— Eu sou Conor.
De perto, pude ver que ele era mais jovem do que eu pensava
inicialmente. E mais bonito. Escondido atrás daquela barba
desalinhada estava um rosto de menino com maçãs do rosto
salientes, olhos azuis brilhantes e lábios permanentemente
sorridentes.
Conor riu de novo, e eu percebi que algo sobre isso fez o cabelo
da minha nuca se arrepiar. Talvez porque soasse como a risada de
um fumante. Todos os canalhas que frequentavam a casa do meu
pai eram fumantes. E todos eles tinham a mesma risada cruel e
rouca.
— Ah, a porra da notícia! — Alguém do bar gritou enquanto o
resto dos clientes resmungava em uníssono. — Agora que o jogo
estava ficando bom também.
Então nada.
Não.
Um alçapão se fechando.
Era isso. Era por isso que eu estava do lado de fora do meu
apartamento, embora tudo dentro de mim gritasse para voltar,
para ter certeza de que Darby estava bem, para cair de joelhos e
pedir desculpas por tudo o que eu tinha feito. Não que eu
merecesse seu perdão. Eu esperava que ela me odiasse pelo resto
de sua vida, mas até que eu tivesse dinheiro suficiente para tirá-
la do país, o resto de sua vida poderia ser muito, muito curta.
Mas o resto teria que ficar escondido. Por mais perto que
estivesse no quartel-general, eu tinha questão de segundos para
entrar e sair, se tanto.
Sem executores.
Até agora.
Ela fugiu.
De mim.
O que eu fiz?
Sua expressão era ilegível, mas a maneira como seu peito subia
e descia, a curva de suas costas enquanto ela se afastava de mim
e o brilho de terror em seus grandes olhos verdes me diziam tudo
o que eu precisava saber.
Mas não foi até Kellen aparecer dois minutos depois - tão cedo
que ele já devia estar lá - e eu ouvi a maneira como eles interagiam
que eu finalmente percebi o que estava bem na minha frente o
tempo todo.
Eu queria que ele visse isso. Que eu acreditei nele. Que eu sabia
que ele nos tiraria disso, como sempre fazia. Mas quando Kellen
desviou os olhos de mim e soltou a rigidez de sua mandíbula o
suficiente para falar, algo em sua postura - na inclinação
resignada de seus ombros largos ou no vinco profundo entre suas
sobrancelhas escuras - me disse que ele não tinha conseguido ler
a mensagem.
Render?
Render!
— É fíor bhur ngrá, — Kellen recitou, sua voz tão suave e triste
quanto seu olhar assombrado. — Nós temos a eternidade, lembra?
Talvez eu já mereça você até então.
Mas eu sabia que não seria assim desde que eles me colocaram
no banco de trás.
Eu nunca escaparia.
NÃO.
Foi um decreto. Uma demanda. Uma linha desenhada na areia.
NÃO.
NÃO.
NÃO.
E o saber sorriu.
As paredes pareciam estar se fechando sobre mim.
Seu cinto.
Seus punhos.
Minha vergonha.
Meu auto-ódio.
A mão parou.
— Estrangulado?
— Isso foi o que ele disse.
— Ronan?
— Sim.
— Eu... eu não sei, mas... quem quer que fosse, eles pegaram
sua garota.
Foda-se.
E, uma ideia.
Esse foi o erro que nos levou a ir para o norte nesta estrada
com um par de maníacos homicidas em nosso encalço para ir para
o sul nesta estrada e atacá-los de frente.
Obrigada.
Oh meu Deus.
☘
Respirando fundo e com o cinto de segurança firmemente
preso, agarrei o volante do Fiesta com as duas mãos e pisei no
acelerador. Um grito saiu de mim quando o carro desceu a colina
e passou pelo buraco na linha das árvores, seguindo o caminho do
BMW. Pouco antes de bater na traseira dele, virei o volante para a
esquerda, passando pelos destroços e batendo em uma árvore um
pouco mais fundo na floresta. Eu não estava indo rápido, mas a
força do airbag batendo em meu rosto fez parecer que sim. Meu
coração estava disparado, meus ouvidos zuniam e meu nariz
parecia ter levado um soco de um pugilista enquanto eu
cambaleava para fora do carro, mas me forcei a me livrar disso. Eu
tinha que manter o foco. Eu tinha muito o que fazer.
Eu ainda tinha muito o que fazer, mas o que eu não tinha era
a voz de John na minha cabeça me dizendo que eu era um pedaço
de merda estúpido e inútil. Na verdade, a única voz que pude ouvir
enquanto caminhava de volta para a estação de trem era o suave
sotaque britânico do GPS de Ronan.
— Bem, talvez ele esteja dizendo isso para você agora. — Ela
sorriu, colocando sua mão sardenta em meu ombro. — Os espíritos
trabalham de maneiras misteriosas.
Darby.
Levou tudo o que tinha para não olhar por cima de sua cabeça
para o sedã preto estacionado atrás dele. Eu não podia deixar ele
ou Séamus saberem que eu suspeitava de alguma coisa, mas era
quase impossível quando sentia como se meu próprio coração
estivesse naquele banco de trás, sangrando fora do meu corpo. Eu
precisava vê-la. Precisava ter certeza de que ela estava bem. Eu
sabia que ela olharia para mim com o mesmo medo e desdém que
todos os outros tinham quando me olham agora. E eu fiz as pazes
com isso. O que ela sentia por mim era baseado em uma mentira,
mas o que eu sinto por ela iria me perseguir pelo resto da minha
vida.
Nada.
Ou então eu pensei.
5
Pare.
milímetro do meu corpo que não tivesse sido engolfado. Minha
mente lutou, não para encontrar uma solução, mas para encontrar
um canto onde pudesse se esconder da agonia de morrer.
E consegui.
Pare de lutar.
E aprenda a morrer.
Era isso.
Eu parei de lutar. Puxei minhas pernas até meu peito para que
eu não pudesse usá-las para me manter de pé por mais tempo. E
deixei meu corpo virar um peso morto.
Foram sirenes.
Darby.
Darby.
Darby.
Ela estava segura.
— Sim, senhora.
— Está correto.
— Kellen!
Filho da puta.
Para sempre.
Kellen não conseguia sair da pista rápido o suficiente. Lutei
para acompanhá-lo, agarrando-me a dois de seus dedos sem
bandagem enquanto ele corria pela lateral do aeroporto, subia um
punhado de escadas de cimento e entrava em uma doca de carga
vazia, onde beijou minha boca ofegante até eu perder a capacidade
de ficar de pé. Kellen comandava cada grama da minha energia e
atenção, não deixando nada para coisas triviais, como resistir à
gravidade. Então, eu me rendi a isso, afundando no chão, onde
nós dois nos tornamos uma massa emaranhada de membros
retorcidos, lágrimas salgadas e mãos apertadas e desculpas
sussurradas.
Eu balancei a cabeça.
— Você não deveria ter feito isso. — Sua risada morreu quando
ele descansou sua bochecha no topo da minha cabeça. —Sinto
muito, Darby. Para tudo.
— Mais no envelope.
Deixando cair a testa no meu ombro, Kellen prendeu a
respiração antes de abrir o envelope branco novamente.
Manuseando o documento final, ele o puxou e o desdobrou.
Oh meu Deus.
Sim.
— Não serei assim que as pessoas virem que estou vivo e bem
e casado com a neta de Patrick O'Toole.
— Bem, mande-o para casa sempre que ela ficar enjoada dele.
Foi um milagre eu ter feito alguma coisa com ele assim o dia
todo.
— É incrível, querido.
— Ah, Kellen.
Darby + Kellen
14 de junho de 2012
Há tanto que quero dizer a você. Tenho certeza de que vou deixar
algo de fora, mas espero que haja muito tempo para nos
conhecermos daqui para frente. Se é isso que você quer, claro. Se
não, eu entendo perfeitamente.
Seu abuso, como agora sei, continuou até minha mãe perceber
que eu estava grávida. Ela me bateu e me xingou de nomes horríveis
que eu não entendia e colocou todas as minhas coisas em uma
sacola. Eu nem tive a chance de dizer adeus aos meus irmãos e
irmãs. Ela então me levou a um lar para mães e bebês administrado
por freiras, onde dezenas de outras mulheres grávidas solteiras e
novas mães eram tratadas como gado. Você não poderia sair. Se
você fugisse, os guardas a trariam de volta. Fiquei lá até começar a
sentir uma dor horrível no estômago. Fui levada para uma sala com
nada além de uma mesa de metal no centro e deixada para dar à
luz sozinha.
Eu não poderia deixar isso acontecer com você. A razão pela qual
você não tem uma certidão de nascimento é porque eu fugi com você
antes que eles tivessem a chance de preencher a papelada. Eu me
escondi em um caminhão de pão que estava fazendo uma entrega
e, quando o motorista nos descobriu, teve pena de mim. Ele e a
esposa nos acolheram, mas não pude ficar lá muito tempo. Se
tivessem sido descobertos, teriam sido punidos.
Fui para um lugar muito sombrio depois disso, mas minha irmã,
que espero que você conheça um dia, nunca desistiu de mim. Sua
tia Cara me colocou em terapia e reuniões de grupo, onde aprendi a
lidar com a dor, mas nunca passou completamente.
Quero que saiba que, mesmo que decida nunca mais me ver, sou
a mulher mais feliz do mundo agora, e tudo por sua causa. Porque
você foi forte o suficiente para fazer o que eu não pude. Você
sobreviveu ao que eu deveria estar lá para protegê-lo. Você superou
pesadelos que eu só posso imaginar. Você encontrou o amor mesmo
quando ninguém estava lá para lhe mostrar o que isso significava.
Você é uma inspiração para mim, Kellen. Eu não poderia estar mais
orgulhosa do homem que você se tornou.
Sua mãe,
Kate.
O papel amassou ligeiramente nos punhos de Kellen enquanto
prendi a respiração e esperei por sua resposta. Eu já sabia o que
estava escrito dentro. Kate o havia endereçado a mim para que eu
pudesse entregá-lo a ele quando chegasse a hora certa.
— Ela parecia tão feliz no telefone, Kellen. Ela pensou que você
estava morto, assim como eu. E ela está indo muito bem agora.
Ela faz os bolos mais incríveis. Vi fotos no site da padaria. Deve
ser aí que você conseguiu seu talento...
— Ele disse que meu pai era o Diabo, — Kellen rebateu, sua
voz áspera por ter sido forçado a passar pelo fragmento irregular
de emoção alojado em sua garganta.
— Uma ovelha negra! — Scarlet olhou para a tia, mas Kate não
estava ouvindo.
O melhor que pude fazer foi dar a Kate um olhar que dizia:
Machuque-o de novo e eu mato você, e tentar descobrir o que fazer
com a garota.
— Fadas?!
— Mas ele está muito mais feliz agora. — Eu sorri, meu coração
mais cheio do que nunca.