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Cheguei em casa e abracei Lu-ka. Ele havia crescido tanto em cinco anos. Tinha os
mesmos cabelos pretos da nossa mãe, mas seus olhos tinham um tom verde escuro. Ele
era gordinho e fofo demais para a idade dele.
– Cadê a mamãe, maninho?
– Tá na cama.
Nossa casa permanecia quase idêntica à de cinco anos atrás. A cortina roxa
continuava separando meu quarto do resto da casa, mas o tapete havia mudado para a de
um animal de pelo marrom.
– Mama? - Entrei no quarto de minha mãe. Era tão apertado quanto o meu, mais
ainda pela cama de casal ao invés da minha de solteiro.
Salia ainda era a mesma, exceto pelas rugas que haviam se tornado mais evidentes.
Estava deitada com os olhos fechados.
– Você está bem?
– Dor de cabeça. O que foi, menina? Tá com uma cara triste.
– É tão evidente assim?
Ela me olhou com um olhar de pena que eu já conhecia de meses atrás.
– Ele não vai para sempre.
– Eu sei. - Sentei na beirada da cama. - Mas eu não vou ter ninguém.
– Você não está realmente preocupada com isso? Está? - Salia sentou-se ao meu
lado.
– Com o que mais estaria? Eu não tenho ninguém no vilarejo, mãe.
– Você tem a mim, e o Lu-ka.
– E nenhum amigo mais.
– Você está com medo de que ele ache outra amiga. Vá lá falar com ele, ou eu vou
ter que forçá-la?
– Eu não quero que ele me odeie.
– Você vai se odiar se não disser o que sente, Íris. O Rildy só pode responder ao
que você pensa, se ele souber o que está pensando.
– Você tem razão.
•••
Ao anoitecer me juntei com os demais na entrada do vilarejo, um caminho de terra
com um arco de pedra onde lia-se "Awkra". Um grupo de pessoas com trajes de viagem e
cheias de bagagem montavam seus cavalos e se despediam de familiares e amigos.
Rildy estava montado em seu cavalo marrom. Quando me viu chegando pulou e veio
de encontro a mim.
Ele vestia trajes comuns de viajante assim como os outros. Botas nos pés para
terrenos difíceis e um manto marrom batido para se proteger do clima. Me doía ver ele
vestido assim.
Rildy foi o único amigo que eu tive nesses dezetesse anos. Agora ele era mais alto
que eu e os cabelos bem mais grisalhos, mas eu não conseguia descobrir o que o preto em
seus olhos demonstrava.
– Veio se despedir adequadamente? – Disse ele, frio.
– Você não vai ficar se eu pedir para ficar.
– Eu voltarei se pedir que eu volte.
Tomei ar e retruquei:
– Eu não quero que volte.
A marra dele foi-se embora em um instante. Ele abriu a boca mas eu logo disse:
– Eu irei até você.
– Mesmo? - Disse ele após um suspiro, com um sorriso no rosto.
– Um ano. - Eu sorri de volta. – Em um ano eu sairei daqui e me tornarei uma
aventureira também. Uma guerreira muito boa! Você vai ter medo de mim com espada em
punhos. Eu vou te encontrar e nós vamos duelar.
Ele riu.
– Você é péssima com qualquer coisa, então vai ser fácil. Presumo que eu deva
estar em uma cidade próxima daqui um ano.
– Cuidado pra não ficar perto demais. Não quero que torne as coisas fáceis.
Então ele se aproximou segurando meu rosto, enconstando sua testa na minha.
– As coisas não podem ser fáceis, Íris? Seria tão mais fácil se você só me disesse.
– Como…?
– Você sempre desvia do assunto, e não olha pra mim da mesma forma que olha
para os outros.
– Porque você é meu amigo. – Engoli em seco.
– Seu amigo? – Continuei não entendendo aquele olhar.
– É…
– Realmente – Ele fechou os olhos e se afastou de mim. Lutei contra minha vontade
de puxá-lo, eu já havia me decidido. – Não me odeie, Íris. Eu não suporto mais esse lugar.
Por algum motivo, desta vez senti que essas palavras tinham um peso diferente,
como se ele dissesse algo mais.
– Eu não pretendo voltar. Meu pai não está mais aqui, e já que é essa sua decisão,
eu acatarei sua vontade.
Rildy apertou com força minha mão e montou seu cavalo. Eu mal processei o que
havia acontecido quando ele começou a cavalgar junto do resto do grupo.
– Ei! Espera! Rildy!
Ele olhou para trás mas eu nunca entendi o que estava por trás daqueles olhos.
VERMELHO
Abri meus olhos e a claridade os invadiu. Mas não era dia.
O reflexo das chamas bluxureava pela pequena janela circular do meu quarto.
Passei alguns instantes tentando entender o que acontecia, quando notei que ouvia vozes.
Gritos.
Pessoas gritavam de todos os lados. Algumas gritavam umas com as outras.
Distingui algo como "corre" e "fuja".
Levantei-me de um pulo, meu corpo vibrava como eu nunca havia sentido antes. O
cheiro abafado do meu quarto se misturava com o de fumaça. Tossi acendendo as velas e
passando para a sala.
Salia carregava Lu-ka no colo e o cobria com diversos panos, visivelmente abalada
e tão desorientada quanto eu.
– Ele está com febre. – Os olhos de minha mãe demonstravam um desespero que
eu nunca havia visto antes.
Haviam escamas aparentes nos braços de meu irmão. Quando nosso povo se
encontra em situação de risco, é normal nos transformarmos em algo mais animalesco.
Ganhamos aspectos crocodilianos. Minha mãe avisara que era por este motivo que
vivíamos escondidos do resto das cidades, éramos tratados como monstros em outros
lugares.
Por isso eu fiquei tão receosa quanto ao Rildy.
– O que tá acontecendo? – perguntei.
– Eu não sei! A gente precisa levar ele pro curandeiro!
A luz se intensificou do lado de fora e então voltou ao que estava antes.
Me cobri com um manto e passei pela porta.
A vila estava em chamas. Pessoas corriam fugindo de algo. Olhei para o lado
contrário para ver o que estava causando aquilo.
Eram magos, feiticeiros, não importa. Pessoas em trajes escuros usando máscaras
de animais manipulavam fogo na ponta de seus dedos, espalhando as chamas pelas casas
do povoado.
– Mãe! Corre!
Eu não pensei duas vezes. Minhas pernas se moveram sozinhas. Eu não olhei para
trás e nem pensei para onde ir. Eu só sabia que devia correr. Quando me dei por mim
mesma, estava na floresta.
Estava escuro, os gritos haviam ficado para trás há muito tempo. Eu não enxergava
um palmo na minha frente.
O que chamou minha atenção foi a luz bruxuleante que surgiu repentinamente.
Quando me aproximei reconheci onde estava.
A luz vinha por trás das portas de madeira da estrutura de pedra que eu tanto
conhecia. Me aproximei tentando não fazer barulho, ao chegar na porta, encostei-me para
ver o que tinha lá dentro.
Haviam velas acesas em volta da estátua. Lentamente eu empurrei a porta e me
rastejei para dentro do pequeno templo.
Não tinha nada de diferente, mas a presença daquelas velas me dava arrepios.
Encarei aquele rosto sem olhos mais uma vez, como fiz cinco anos antes. Eu podia jurar
que ela me olhava de volta.
Não sei quanto tempo se passou, mas quando eu olhei para a saída, a porta estava
fechada. Ela estava lá.
Na frente da porta, a mesma mulher que estava esculpida no centro do templo. Ela
vestia um vestido preto de manga longa elegante com um capuz que cobria seus olhos. Sua
pele lembrava bronze e seus lábios tinham um estranho tom de vermelho vivo. As pontas de
seu cabelo visíveis eram claras como a neve. Um sorriso fino se formou em sua boca, e ela
vocalizou com uma voz grave, mas suave que parecia se repetir como um eco, não parecia
estar no mesmo ambiente.
– Bem vinda, Íris. Eu estive aguardando por muito tempo.
Minha visão turvou, tentei forçar meus olhos a ficarem abertos. A estranha estendeu
uma de suas mãos como se fosse me cumprimentar.
Então apaguei.
FUTURO