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Peso morto

Mais uma mudança. Adelaide tinha 10 anos e não sabia dizer em quantas
casas já havia morado. Nenhuma tão perto da praia quanto aquela. Um casebre
encafuado entre árvores, meio difícil chegar lá. O mato era tão fechado que,
da casa, não se avistava o mar, embora dele se abeirasse. Em meio ao vaivém
da família a carregar trastes para dentro, Adelaide parou perto de uma
goiabeira magricela e ergueu a cabeça, como que farejando o ar. Resumiu a
boca apertada num sorriso visionário. Entendeu que não sairia mais dali. Não
tão cedo.
Os gritos de "anda, imprestável!" da mãe a fizeram voltar ao transporte
de cacarecos para o interior da casa. Silenciosa que tratava de ser, seu barulho
era o arrastar de pés ao cumprir a tarefa, o que parecia deixar a velha ainda
mais furiosa. "É por culpa tua que nós tamo se mudando de novo, coisa estranha!
Que vergonha, meu jesus, quando isso vai parar? Teus irmão nem vão pra escola
mais, todo mundo debocha. Os grande já vão pro mar, têm ofício. Mas e os
pequeno? Uma baliera não dá pra todo mundo, vão ter que trabalhar pros
patrão, morrer de fome. Tu não tem vergonha? Ficar pedindo pra ir com os
outro? Tu não tem casa? Não tem família? Tá passando fome? Quando tu
molestava só os da vila ainda dava pra aturar. Eles tavam acostumado. Mas se
oferecer prum moço de fora? Que nem china? Nunca abre essa boca pra nada,
só pra pedir essa vergonheira. Que vergonha! Anda, imprestável!"
Adelaide já nem ouvia mais a falação. Era sempre a mesma, a cada
mudança, toda vez que ela envergonhava a família e tinham que trocar de casa.
Não entendia nada das vergonhas e das chinas, apenas queria que alguém a
levasse. O moço de fora ficara alvoroçado com seu pedido "Me leva?". Ela já
estava encarapitada na carroça dele, quando os irmãos grandes apareceram
com paus e pontapés pra bater no coitado. Desalojaram-na do veículo com um
safanão na orelha, que ainda ardia. Depois botaram o moço pra correr, debaixo
das vaias e gargalhadas dos vizinhos. "Uma baita vergonha". Tiveram que sair
de lá. Mas agora ela ajudava na arrumação apaziguada. Sabia que ali
encontraria quem a levasse.
De fato, foi a última mudança. Ela desistiu de abordar estranhos com seu
pedido inusitado. Tentou deixar seu silêncio, ser mais normal, pra não
envergonhar mais a família. Mas fizera má fama. Suas investidas sociais sempre
murchavam. Toda vez que tentava dirigir-se a alguém da vila, nem conseguia
falar. Levava na cara logo um "vai pro diabo que te carregue!". Chegou a virar
um grotesco costume entre o povo. Ela nem precisava mais tentar falar com
ninguém. Era aparecer na vila e pronto: um "vai pro diabo que te carregue!"
quase uníssono a botava pra correr, ainda ouvindo distantes as gargalhadas que
se seguiam à chacota. Adelaide ria também, durante a carreira. A mãe ensaiou
envergonhar-se com isso, mas já moravam o mais longe que a geografia da vila
permitia. Era melhor renunciar a essa vergonha, ou teriam de morar no mar.
"Guria mais esquisita. Inda sai rindo". Proibiu a filha de voltar à vila.
Tempos depois aconteceu a desgraceira. O pai e os grandes sumiram com
o barco, numa tempestade que os apanhou no mar. Com duas semanas de
buscas, o que os pescadores da vila trouxeram de volta foi só uma lasca lateral
da embarcação, reconhecida pela inscrição parcial "Sereia do S". Sul. Não tinha
mais jeito. A mãe tratou de enfiar-se em panos pretos e reorganizar o que
sobrou da família. Foi nessa reorganização que sobrou pra Adelaide a tacha de
peso morto. Enquanto os pequenos foram acomodados em empregos aqui e ali
- faziam entregas para o dono da venda, cuidavam de cavalos, limpavam e
emendavam redes -, o "peso morto" ficava em casa, já que não podia pôr os pés
na vila. "Capaz que eles vão dar trabalho pruma tansa!", proclamava a mãe.
Adelaide cresceu - pouco, quase nada; na verdade, os anos só a deixaram
mais cabeçuda - e viu os pequenos virarem homens. Mal a barba lhes
completava o rosto, iam embora. A mãe chorava "ai, que vão me deixar sozinha
com esse peso morto!" e ia envelhecendo e definhando. Quando ficaram só as
duas, a velha já não andava mais. O peso morto tinha de carregá-la da cama
pra cozinha, da cozinha pra patente, da patente pra sombra da goiabeira,
sempre sob comandos esbravejados. Sobreviviam das benzeduras que Adelaide
passou a praticar. O povo da vila a temia; daí, para crê-la poderosa, foi um
pulo. Não recebia dinheiro pelas curas, mas não lhes faltavam os mantimentos
básicos. Continuava sem ir à vila, os doentes e mal-amados é que a procuravam
em casa. Quando a velha finalmente morreu, Adelaide, que já estava meio
curvada de tanto carregá-la, passou a enrolar na cabeça uma espécie de
turbante, uma faixa branca, encardida, que achou de usar pra disfarçar o
cabeção e a corcova. Passou a viver para curar os outros e cuidar de suas
dezenas de gatos.

Cheguei à vila de pescadores em março de 1983. Recém-aposentado, mas


longe de estar livre de cumprir roteiros de vida esperados - quem estuda sonha
em se formar; quem se forma sonha em trabalhar; quem trabalha sonha com a
aposentadoria; quem se aposenta aproveita pra viajar -, optei por ir à praia.
Aquela estava entrando na moda. Charmosa, pitoresca, ainda não devastada.
Questão de tempo.
Instalei-me num quarto da única pousada disponível, perto da igreja. A
seguir, deveria vestir o calção e ir ao mar. Molhar os pés, assistir à chegada de
um arrastão, trocar idéias com outro curioso qualquer que também estivesse
por ali, depois ir com ele ao barzinho tomar umas cervejas e olhar pras bundas
que passassem. Mas estava difícil levar adiante a programação. Eu me sentia
morto. Eu estava morto. Deitei-me na cama dura, fedida a mofo, e adormeci
coberto de moscas.
Quando acordei, já era noite. Merda! Isso sempre me causava uma
sensação péssima. Adormecer de dia e acordar com a noite fechada me deixava
quase em pânico. Saí do quarto, fui ao banheiro no final do corredor, jogar uma
água no rosto e tentar apagar aquela impressão aterradora. Não adiantou
muito. Desci ao refeitório. O jantar estava sendo servido. Comi não lembro o
quê. Mas foi uma bomba. Passei o resto da noite atravessando o corredor entre
o quarto e o banheiro em ambos os sentidos, vomitando as tripas. No dia
seguinte, minha cara não era das mais felizes.
– O senhor não passou bem à noite, né?
A dona da pousada me olhava emburrada, como se meu passar mal
desabonasse a qualidade da sua comida. Continuou, com ar ofendido:
– O senhor deve estar com o bucho frouxo. Ninguém mais passou mal -
fez uma pausa para enfatizar essa informação; em seguida, recomendou - Devia
procurar a dona Dela.
Embora eu não tenha entendido direito, essa indicação estranhamente
me interessou:
– Dona de quem?
– A dona Dela é uma benzedeira muito boa. Mas mora meio longe, lá
perto do morro do Pontão, no meio do mato. Ali atrás da igreja tem uma trilha
que leva até lá. Acho que o senhor devia procurar a velha. Pra desafrouxar o
bucho. Se o senhor não tiver medo...
– Medo?
– É que ela é meio bruxa...
Não foi difícil achar a trilha atrás da igreja. O povo da vila devia recorrer
com freqüência aos cuidados da dona Dela. À volta, o mato era cerrado. Parecia
que eu atravessava um túnel verde, com a largura de uma pessoa e a altura de
uma criança - precisava curvar-me para avançar sem arranhar o rosto nos galhos
de cima. Devia ser meio longe, mesmo. Já andara uns dez minutos e nada de
chegar. Apesar do desconforto de andar arqueado, à medida que seguia, sentia-
me cada vez melhor. O sol indireto, esverdeado, oferecia uma luminosidade
deliciosa. E aquele cheiro de mato salgado, que só as plantas litorâneas sabem
ter, depurava-me os pulmões. Ponderei que meu bucho já devia ter
desafrouxado, talvez nem precisasse da pajelança de dona Dela. Mas a sensação
ao prosseguir era tão reparadora, que nem diminuí o passo para refletir sobre
um retorno. Atravessei um estreitíssimo córrego, usando uma tábua podre,
deixada ali para isso. O ruído do mar era cada vez mais próximo. Dava a
impressão de que o fim daquele túnel seria a praia. Não era. Quando o teto de
galhos tornou-se mais alto e pude finalmente endireitar-me, o que vi foi uma
casinha que parecia de brinquedo, tão baixinha. Parada na porta, com as mãos
na cintura, uma mulherzinha de turbante me apresentava um sorriso
desdentado e acolhedor. Pelo telhado, pelos galhos das árvores próximas,
esparramados na reduzida varanda, uma gataria incontável, de todas as cores
e tamanhos.
- Ah, o senhor veio!
Devolvi o sorriso e diverti-me internamente com aquele truque dos vates,
de sempre evitar mostrarem-se surpresos. Querer que eu acreditasse estar
sendo esperado era de uma ingenuidade encantadora.
- Aceita uma goiaba?
Aceitei, agradecendo e me acomodando num tronco cortado que me foi
apontado como banco.
- Ah, pois então o senhor veio mesmo... - ela me olhava com ternura.
Sua voz parecia um miado, uma vozinha contraída, com jeito de pouco usada.
Resolvi entrar no jogo:
- A senhora me esperava? - dei a deixa para que ela mostrasse seus
poderes premonitórios. Em vez disso, ela começou a me apresentar gato por
gato. Nome, filiação, principais travessuras e manias. Eu devorava outras
goiabas que ela ia me entregando, enquanto ouvia atentamente as histórias dos
felinos. Quando o último gato tinha sido apresentado, ela suspirou e disse:
- Chega de goiaba. Seu bucho já desafrouxou.
Sorri incrédulo. Ela devia ter uma rede de espionagem da qual fazia parte
a dona da pensão, que, de alguma forma, a informara da minha frouxura. Ou
então, minha comida devia ter sido intencionalmente envenenada... eu caíra
numa armadilha? Não, que bobagem. Espantei a paranoia com uma mudança de
assunto:
- A senhora vive há muito tempo aqui?
A resposta foi outra pergunta:
- O senhor quer ouvir a história toda?
Nem pensei em dizer não. Aquele serzinho fantástico e improvável
deveria ter uma vida e tanto. Foi assim que anoiteceu e eu ainda estava ali,
ouvindo as vozes dos gatos e os miados de dona Dela. A história foi interrompida
na última "vergonheira", a do moço de fora, que provocara a ida da família para
aquela toca esverdeada.
- O senhor fica, né? Sua cama está prontinha. Amanhã eu conto mais.
Fiquei. Outro dia, outra noite e outros tantos que, de fato, não sei dizer.
Meu quarto era uma cama cheirosa, separada da cozinha por uma cortina
estampada com flores miúdas. Dormia cedo, acordava cedo, ia pro mato com
dona Dela procurar ervas - cada uma tinha uma lenda associada a seus poderes
curativos, que a velha fazia questão de contar com pormenores. Eu assistia às
benzeduras que ela fazia com os aflitos que a procuravam. Entre uma tarefa e
outra - e mesmo durante elas - Adelaide continuava a contar-me sua vida. Tudo
que eu fazia era respirar e comer, ouvindo miados e o ronco do mar invisível,
tão próximo.
Numa manhã, acordei e vi Adelaide com uma trouxa nas costas. Séria,
informou: "Estou indo". Tive vontade de chorar. Não consegui dizer nada, mas
minha expressão fez a pergunta "para onde?", a que ela respondeu: "pro diabo
que me carregue". E completou: "o senhor cuida dos meus gatos". Virou as costas
e saiu firme, porta afora. Corri atrás dela e ainda pude vê-la desaparecer numa
trilha nos fundos da casa, que devia levar ao morro do Pontão. Não tive coragem
de segui-la. Voltei à casa, entrei no quarto de Adelaide, sentei-me numa
cadeira de balanço que havia ao lado da cama e chorei um pranto gritado. Abri
um berreiro que fez os gatos calarem. Não sei de onde saíam tantas lágrimas e
tantos berros. E não sei quanto isso durou. Depois, adormeci de cansaço.
Impossível dizer por quanto tempo também. Dormi um sono de morto, sem
sonhos.
Ao abrir os olhos, vi o sorriso desdentado de Adelaide na minha frente.
Ela miou:
- Ele não me quis - continuou sorrindo, envergonhada -, nem o diabo me
quis carregar.
Levantei-me, peguei a pequena Adelaide no colo e voltei com ela à
cadeira. Aninhou-se no meu peito e adormeceu com minha cantoria de ninar.
Não sei o momento exato em que parou de respirar. Nem quanto tempo eu
fiquei ali, embalando aquele peso morto.

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