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DRAMA,SUSPENSE GOSPEL – UM ROMANCE DE

TIRAR O FOLÊGO!
Sylvia Feitosa

SP/ 2023
Ler & Gostar
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2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


(CIP)

R144c Feitosa, Sylvia


1.ed. O segredo/ Sylvia Feitosa– 1.ed.
– São Paulo: [Org.] Sílvia R.S Feitosa (Ler & Gostar)., 2023.
Ilustradora: Lillian Ramos
144p.;

ISBN:9788591364824

1. Romance. 2. Educação. 3. Literatura.


. I. Silvia R S Feitosa. II. Título.

CDD B869.3
3

PRÓLOGO

Gil comtemplava a silhueta bem


delineada da mulher parada diante do lago à
sua frente. O lugar agora tinha placas
indicando a profundidade e um pequeno
alerta “Proibido pescar”, a advertência em si
era um convite tentador já que o lago dançava
a luz do sol com suas dezenas de peixes
coloridos na água cristalina. Aquele espaço
antes fazia apenas parte da história da vila,
parte da vida dos moradores daquele lugar,
entretanto atualmente era o “point” e o ponto
turístico para parentes e amigos, e por ter
sido citado em uma revista ecológica, agora
era singelamente “famoso”. E lá estava ela, os
cabelos curtos a altura dos ombros como de
costume, o corpo esguio projetado
displicentemente na direção do lago, a cabeça
erguida e, os olhos voltados ao Céu claro e
repleto de nuvens que pareciam formar uma
imensa mão acolhedora. “Dai-me forças pra
continuar”, foi o sussurro que saiu dos lábios
rosados de Kátia. Gil aproximou-se fazendo o
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máximo barulho que pode para chamar a


atenção. Ela virou-se nada surpresa,
ameaçou um sorriso com o canto dos lábios.
- Eu imaginei que encontraria minha
esposa aqui – Disse ele.
- Eu estava com saudade, não do lago,
mas... dela. Ela adorava vir aqui, era o seu
lugar preferido.
- Eu sei querida. – Gil aproximou-se
passando os braços em volta da esposa
confortando-a. – Sinto muito.
- Todos nós sentimos. Se ao menos eu
pudesse saber o que aconteceria com eles.
- Mesmo que soubéssemos, não podemos
intervir no destino. Podemos?
- Eu não sei. – Kátia chorava agora. – Só
sei que essa dor não passa nunca.
- Vamos pra casa. – Gil afastou-a
gentilmente e apertou suas mãos.
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Dez anos atrás...

A peculiar menina de tranças parecia


cantarolar enquanto descia o morro em
direção ao riacho onde adorava pescar e
esquecer-se quem era. A música talvez fosse
"era uma casa muito engraçada". Logo que
chegou perto da margem seus amigos
inseparáveis de pescaria gritaram saudando-
a "Por que a demora Mary? Já peguei uns
três!".
A menina disparou morro abaixo no sol
quente segurando com bravura os
apetrechos e escancarando um sorriso
perverso. "Duvido que sejam grandes!
Peixinhos, estou chegando".
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- Psiu! - Esbravejou David - Faça silêncio!


Ela sacudiu os ombros provocando e o
garoto mais velho sorriu pelo canto da boca.
Adorava a companhia da menina. Mariana
lembrava em algum lugar secreto de sua alma
a si mesmo, e desde de que a conhecera
decidiu que iria protegê-la como a uma irmã.
Apenas que ela mais parecia um garoto
travesso do que uma menininha delicada.
Os meninos gostavam de pescar no
lago, David era o mais velho de todos, já
adolescente, tranquilo e responsável. Uma
boa influência para os demais.
..................................

Enquanto isso naquela manhã...

- Magda alguma notícia?


- Não Hugo. Andei por toda a vizinhança e
nenhum sinal dela. Tenho que voltar a
organização da festa. Temos poucas horas.
- Vá. Vou verificar com Camila se alguém
telefonou e também se ela consegue dar conta
das crianças.
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- Oh querido, sinto muito! Kátia já ligou


inúmeras vezes.
- Isso é ainda pior. Ela continuará
acusando-me de ser complacente demais...
Vou enlouquecer!
- Calma. Acredito que Mariana não subiu a
montanha junto com aqueles garotos. Este
povo do vilarejo fofoca demais.
- Concordo. Mas, ela estava ciente da
solenidade de hoje. Desta vez ela me paga!
- Bem... Está na hora de uma boa
represália, nisto tenho que concordar com
Kátia e com metade do nosso círculo social.
- Até você Magda!
- Desculpe Hugo, momento errado pra dizer
isso. Também estou atônita e tenho que deixá-
lo sozinho com esse dilema. Caso contrário a
reunião será um desastre, preciso cuidar dos
preparativos.
- Não se importe. Não sei por que, mas,
tenho um pressentimento de onde posso
encontrá-la.
- Boa Sorte!
- Obrigado e "hasta la vista".
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"Que belo prêmio a mãe dela me deixou".


Hugo remoía caminhando pela vizinhança
tranquila. Atrás das montanhas havia um
lago bem servido de peixes e uma bela vista de
arvoredos ao redor. Um ponto de atração para
os turistas na pequena Vila Califórnia.
- Mariana. Mary!
Uma menininha ruiva, cabelos cacheados
amarrados frouxos num rabo de cavalo quase
desfeito. Impunha como um soldado uma
vara de pescar que pegou dentre as
ferramentas do pai, claro, sem que ele
soubesse.
David costumava acompanhá-la sempre
que ela pedia e tinha um prazer enorme em
protegê-la. Nessas ocasiões também contava
com Ralph e Caio. Eles sempre aquiesciam em
um mínimo motivo para matar aula.
David sendo mais velho que os três.
Tinha certo zelo pela moleca atrevida,
costumava mimá-la.
Geralmente comprava as encrencas dela,
mas, valia a pena ver-lhe o enorme sorriso
zombeteiro no rosto.
- Mariana puxe!
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Naquela manhã um peixe enorme


fisgara a isca. A menina transpirava exposta
ao sol quente, esquecera de apanhar o chapéu
e as faces ficaram vermelhas com o prodígio.
- David! David! Este é pesado, não
consigo!
- Ah, meninas! Por que insistem em fazer
o que não lhes cabe? Vou ajudá-la.
Mas antes de mover-se do lugar avistou
o rosto zangado de Hugo Kylle. Reitor da
pequena Universidade da cidade. Dr. Hugo
era formado em psicologia e doutor em
filosofia. Lecionara por alguns anos na
Faculdade Luterana, mudou-se há quatro
anos para Vila Califórnia onde assumiu a
reitoria da Universidade.
-Mariana Beatriz!
Ninguém a chamava pelo segundo nome
a não ser... o pai!
Gritos e sussurros fundiram-se. David e
Hugo chamavam-na.
Apenas que o susto a fez lembrar que
havia esquecido algo sobre "as bodas" e certa
comemoração. Sobressaltada e embaraçada
por não conseguir tirar o peixe da água,
10

distraiu-se deixando o peixe conduzi-la para


dentro do rio.
David pulou imediatamente no rio. Hugo
correu até a beira do lago, mas David já havia
resgatado a menina. O Uniforme escolar
branco colou-lhe ao corpo. David a segurava
pelos ombros.
- Deixe David! Eu consigo.
Tentou ainda com um pouco de dignidade
argumentar, mas só saiu algumas
incoerências de seus lábios.
A voz de Hugo, embora preocupado, mas
ainda mais irado quando percebera que ela já
estava em segurança se fez ouvir.
- Mariana, vou dizer-lhe só uma coisa,
quero você em casa em dez minutos! E não
ouse fazer-me esperar nem um segundo a
mais!
Friamente após a intimação Hugo virou as
costas e foi-se.
- Droga!
- Venha!
O garoto achou engraçado ela brigando
com a água para alcançar a margem.
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- Vai mesmo levar tudo sozinha? Você está


molhada!
David podia ter se divertido com a
situação, mas pensou que se alguém a
olhasse com maldade ele lhe quebraria o nariz
simplesmente. Pegou a camiseta de Caio que
era bem alto e sem dúvida mais encorpado.
- Vista isso e não discuta!
- Obrigada.
Ela baixou a cabeça e vestiu a camiseta
fitando o chão.
Ela subiu a estradinha rumo à montanha
quase derretendo ao sol. Estaria seca antes de
chegar. Porém era um desastre ser a filha do
reitor, pensou.
As ruas eram estreitas e calçadas de
pedregulhos. Os portões das casas eram
baixos assim como os muros. Quase toda casa
tinha um jardim e uma pequena varanda na
frente, as garagens eram espaçosas e
transformavam-se facilmente num enorme
quintal revestido com azulejos e enfeitados
com samambaias penduradas pelo corredor.
Mary abriu o portão branco, sem
nenhuma vontade atravessou o jardim e
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cheirou o perfume que as roseiras coloridas


exalavam. Próximo ao batente da porta pisou
num carrinho do irmão mais novo.
Inevitavelmente escorregou para o chão
batendo a cabeça no degrau da porta. Hugo
que já estava de olho através das persianas, à
espera da “rebeldezinha”, adiantou os passos
ao ouvir o baque surdo, e mesmo irado com
ela ergueu-a com cuidado do chão.
Olhe por onde anda Mary!
A menção do apelido já insinuava que ele
não estava mais tão disposto a ralhar com ela.
-Não vi o carrinho, pai. - Ao falar Mary
olhou para o chão em busca de marcas de
sangue ou partes quebradas do carrinho.
Hugo a observou. Ela era assim:
despreocupada, desatenta, porém não era de
propósito. Parecia que Mary queria esquecer
ou camuflar alguma coisa e Hugo
definitivamente não queria lembrar. Ele
tentava sem muita vontade, vez ou outra fazer
o papel de pai, às vezes tentava se aproximar,
mas a garota não fazia caso a e assim iam
seguindo.
13

- Sinto ter esquecido da festa. - Mary


murmurou.
- Isso foi extremamente irresponsável de
sua parte. Saiba que está de castigo o resto da
semana.
Mary concordou num movimento de
cabeça. O que poderia fazer? Em três horas
ele esqueceria qualquer coisa relacionada a
ela. Inclusive que ela existia. Nada mudaria
essa apatia e nada ajudaria que caísse nas
boas graças de sua tia e de sua madrasta.
Assim ela passou por Hugo e entrou na casa
indo ver os irmãos e preparando o espírito
para a noite entediante que teriam.

O baile

Ao chegarem na porta do salão de festas a


professora Rosângela já de posse do
microfone fazia as honras da casa. Ao ver a
“família Kylle” no salão, passou a despejar
elogios e congratulações ao casal pelas bodas.
14

- Estamos felizes pela organização


impecável da Dra. Magda Kylle, parabéns ao
nosso reitor, o professor e Doutor
Hugo Kylle, e aos seus lindos e
maravilhosos filhos, André e Lucas!
Frisando bem a última parte da
frase, ela convocou os convidados a
aplaudir o casal. A família Kylle já
estava no meio do salão andando
pelo corredor central.
Mariana sentiu-se tão excluída
que olhou pra trás considerando se saia
correndo ou não. Pela primeira vez pareceu
haver um pouco de empatia no olhar de Kátia
para Mariana, ou ela estava vendo coisas?
Mariana hesitou, porém, diante do
último disparo vindo dos microfones...
- Palmas para o talentoso e esforçado
casal que trouxe muitos benefícios para nossa
comunidade com seus dons. E que os filhos
deste casamento não sejam a dor de cabeça
dessa menina do seu primeiro matrimônio Dr.
Hugo.
Então Marina saiu em disparada. As luzes
brilhavam na escadaria, os degraus
15

dançavam sob seus olhos. Milhões de coisas


passavam por sua cabeça ao mesmo tempo...
Antes de sair de casa havia se olhado no
espelho e admirado a bela moça no reflexo,
dançou rodopiando pelo quarto, orgulhosa
pensou no que David diria se a visse vestida
assim. Nos últimos dias se viu pensando nele
a cada cinco minutos, concluiu que mudara,
seu corpo mudara, sua mente mudara e seu
melhor amigo se tornando cada vez mais
importante. Sem forças para continuar
lutando na descida da longa escadaria,
sentou-se nos degraus abraçando num gesto
desesperado os joelhos.
Lá dentro Tia Kátia fulminava Hugo com
olhos inquiridores. Uma coisa era exigir que o
irmão deixasse de ser tão condescendente, tão
omisso e complacente com essa menina que
mais parecia uma moradora de rua do que
uma garota, outra coisa era ver uma estranha
disparar difamação e desprezo ao mesmo
tempo contra sua sobrinha.
Magda apertava as mãos de Hugo
prendendo-o consigo com medo de desabar
caso ele saísse do seu lado. Kátia levava André
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ao colo e segurava a mãozinha de Lucas com


a mão livre. Hugo olhava para a plateia no
dilema de responder ou não ao comprimento
desastroso. Ele sentiu-se miserável, e era
miserável. Poderia ter saído e ido procurar
pela filha. Sabia que ela deveria estar no
mínimo deprimida. Mas ele não foi. Esta era a
comemoração dos sete anos do seu segundo
casamento e também o reconhecimento de
sua liderança para o colégio e a faculdade
local. Era o auge de sua inodora carreira, o
lugar onde apagou seu passado, onde era o
respeitado reitor! Não podia estragar seu
momento pelo infortúnio de Mariana. Mais
tarde se fosse preciso ele juntaria os cacos,
porém, neste momento não iria pensar nela.
Kátia pareceu ler isso no aceno do irmão
para a locutora desprezível. Seu estômago
embrulhou.
- Lucas vá lá fora procurar por Mariana,
mas não desça as escadas. Vou levar André
para uma das amigas de Magda e já me junto
a você.
- E se ela tiver ido embora, Tia Kátia?
17

- Se isso aconteceu me espere lá fora que


iremos atrás dela. Você quer ir?
- Quero! Não gosto quando Mary chora.
- Certo, então vá lá como um bom mocinho
e procure sua irmã, ela precisa de você, e você
é um homenzinho corajoso. Deve protegê-la.
- É? Então vou protegê-la, vou lá fora
esperar a senhora.
Kátia começava compreender o
comportamento da sobrinha.
Lucas encontrou-a sentada puxando o
vestido até a ponta dos tornozelos pra cobrir
as pernas, ainda abraçando o corpo como
uma concha. O cabelo estava solto e parte
cobria agora seu rosto, o vestido, embora um
modelo princesa, que a madrasta escolhera
não conseguia esconder as longas pernas e
nem o olhar aguçado sob cílios espessos que
davam os primeiros vislumbres da linda
garota que Mariana se tornaria.
- Oh, Mary não chore, você está tão linda.
18

- Não se preocupe Lucas, vai passar, eu


nem ligo pra ele mesmo.
Um pigarro alto fez Mariana
olhar para trás.
- Olá Lucas, você está um
perfeito gentleman neste smoking.
- É? Tia Kátia disse que já
sou um homem e que posso cuidar
de Mary.
- Certamente. – respondeu David.
Ameaçando um meio-sorriso, David olhou
para Mariana. O que a mãe tinha lhe dito
mesmo? “Meu filho você vive grudado na filha
do reitor e ela em você, acho que isso dará um
excelente conto de fadas, a propósito o dragão
é o pai dela” - David havia zombado e dito que
Mary não passava de uma criança. A mãe,
porém, advertiu-o “Isso é o que você quer
enxergar, não é mesmo? Crianças crescem
David, Mary já é uma mocinha adolescente,
embora se pareça mais com um menino de
tranças”. A mãe sorria misteriosamente
dizendo isso, e David ignorou a provocação e
então ele contou: “Recebi uma carta de Ana
Carolina, sabia? Ana já tem 16 anos e quer
19

conversar comigo no baile. O que acha?”. A


mãe respondeu simplesmente: “Acho que
Mariana ficará muito decepcionada”.
David fingiu não entender a indireta e
continuou ajudando a mãe com a louça do
almoço encerrando o assunto.
Agora Mary estava ali diante dele numa
visível confusão.
- Vamos lá Mary, nem foi tão mal assim, e
você sabe que a professora Rosangela detesta
você.
- Então você viu tudo?
- Vi sim, eu estava conversando com Ana
Carolina, Bem... Na verdade ela estava
conversando comigo.
- Conversando o que?
- Coisas Mary. Coisas de... Coisas, só isso!
- Ah seu... Coisas de namorados, não é?
David ficou entre divertido e assustado.
Amou ver Mariana vermelha como um
pimentão, os punhos fechados ameaçando
um soco. Sentia-se lisonjeado pelo ciúme da
garota, sabia que não devia, mas adorava
provocá-la.
20

Porém vendo o brilho intenso de raiva e


das lágrimas que ameaçavam brotar daqueles
olhos cor de mel que já alteravam a cor para
algo próximo de violeta, sentiu-se
desconfortável. Não notara como ela parecia
mais velha maquiada e trajando vestidos,
parecia mais... Menina! Ele colocou uma
mecha do cabelo dela atrás da orelha num
gesto de conforto. Surpresa Mary ficou presa
no olhar do amigo. Apenas que para quebrar
o clima chegou Tia Kátia.
- Crianças! Eu estava procurando por
vocês. - Olá David, estive conversando com sua
mãe agora, ela continua maravilhosa como
sempre.
- Boa noite Dona Kátia. É sim, mamãe é
realmente um anjo.
- Só não entendo por que esse anjo não se
casou de novo dando um pai para você.
- Bem, ela deve querer continuar com as
asas!
- Provável!
Todos riram, até Mary, mesmo irritada e
humilhada como estava.
21

- Mariana... Eu vi e ouvi a humilhação que


você sofreu e quero que saiba que embora eu
queira torcer seu pescoço pelas suas atitudes
inconsequentes... eu não concordo com o que
fizeram. Sei que foi desumano e me desculpo
pela atitude omissa de seu pai.
- Não se desculpe por ele. Papai sempre
teve suas prioridades e nunca fui uma delas.
- Entendo. O que está feito, está feito!
Então, vamos entrar, dançar, comer doces e
curtir a festa. E não estou pedindo, é uma
ordem, e para os três. Vamos já!
Kátia piscou para David que achou
divertida a forma dela lidar com a menina. Ele
conhecia o gênio de Mary como a palma de
sua mão e sabia que para lidar com ela
precisava de uma boa dose de estratégia.
Mariana impetuosamente levantou-se,
armou uma carranca cômica e foi marchando
à frente.
Logo atrás dela vinha Lucas de mãos
dadas com a tia observando quando a mão de
Mariana se levantou num gesto obsceno
apontando para o palco bem no meio do salão.
22

Tudo foi muito rápido. David vinha atrás


caminhando lentamente quando sentiu o
vento do balançar do vestido de Mariana que
passou correndo direto para fora, os gritos de
Lucas chorando e as mãos de Kátia segurando
com força a camisa de Hugo e mandando ele
acalmar-se.
- Está bem Kátia! Você vive reclamando
que eu não a educo e agora olha só o que ela
fez!
- Aqui não Hugo, agora não! Acalme-se, eu
vou levar as crianças pra casa. Pra minha
casa.
- Não. Ela vai pagar caro por este
disparate, me envergonhou na frente de todos
meus amigos.
- Hugo, salve sua noite! Eu vou levar
Lucas, André e Mariana pra meu apartamento
e acho sinceramente que você deve mais a ela
nessa noite do que ela a você.
- Você andou bebendo?
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- Dê-me logo as chaves do


carro. Você volta de taxi. Aproveite
sua noite.
- Está bem, Kátia, mas não
vou esquecer isso, não vou
mesmo!
- Esfrie a cabeça.
Lá fora David segurava os
braços de Mary tentando
entender o que havia perdido minutos atrás.
- O que aconteceu agora?
- Você não ouviu?
- Qual parte, Mary? Explique-se.
- Assim que eu pus os pés no salão de
novo, a megera olhou pra mim, pegou o
microfone e gritou: A Maria moleque está até
parecendo uma menina para o bem do nosso
reitor.
- Mas, eu não ouvi.
O som não saiu, o microfone falhou, só
ouviu quem estava muito perto ou quem
estava prestando atenção como eu.
- E qual a razão do Prof. Hugo ficar furioso
a ponto de quase correr atrás de você?
24

- Ele não deve ter ouvido o que ela disse.


Mas, viu quando eu levantei a mão bem alta e
mostrei o dedo do meio pra ela!
- Ah!
David sorriu, mas seus olhos não
continham humor.
- Você é impossível Mariana!
- É um elogio David?
- Não. Pela primeira vez não é.
- Não?
- Não. Está na hora de crescer Mariana.
Chega de pescarias com a turminha. Sua
madrasta e sua tia têm um pouco de razão.
- David, o que está dizendo? Você está...
Está dizendo que também acha que eu não sou
boa o bastante pra essa cidade? Pra você?
- Estou dizendo que gosto muito de você,
quero dizer, adoro a garotinha malcriada e
briguenta, mas essa garotinha cresceu e eu
nem tinha percebido e não pega bem agora
fazer as mesmas coisas, como andar por aí
cabulando aula entre os meninos...
Kátia observava alguns passos atrás,
entretanto perto o bastante para acompanhar
toda a conversa e entender que Mariana devia
25

estar nutrindo uma paixão precoce por David


e a perda do melhor amigo iria machucá-la
mais do que qualquer coisa. David estava na
idade dos namoros e Mariana entre uma fase
e outra. Sentiu pena dela pela segunda vez
naquela noite.

O sonho

As visões eram metódicas e esfumaçadas,


a noiva era deslumbrante, de uma beleza que
doía olhar. Não conseguia entender porque as
lágrimas em David. Ele ainda estava vestido
de smoking. Um smoking branco reluzente. Um
sussurro saia desconexo na forma que David
implorava para aquela moça, que mais parecia
um ser angelical desconectado do céu: "Por
favor..."
A criatura virou as costas com desdém, e
atirou um anel brilhante aos pés de David que
se lançou de joelhos ao chão.
Ela podia ver o rosto da moça, mas não
conseguia distinguir seus olhos. Gritos,
lágrimas, sussurros, indignação enchiam todo
o ambiente da Catedral. Sons confusos e
26

desconexos vinham dos convidados, até que a


moça olhou novamente para David. Agora os
olhos dela eram mais nítidos, abarrotados de
lágrimas, ela baixou olhar e quando voltou a
levantá-lo um grito quebrou o silêncio: "Não!"
Um punho minúsculo de camisa vestindo
um terno azul, parecia uma mão de criança,
mas a aliança no dedo da mão esquerda era
muito real. A moça virou-se observando. A mão
desconexa largou algo metálico fazendo um
enorme barulho atingindo o chão. O barulho
era algo como o som de um trovão rasgando o
céu, mas, o objeto caído era uma... Faca! O
sangue ainda jorrava pelo vestido daquele ser
angelical em corpo de noiva que flutuava, e
agora fitava David num adeus
mudo. Os olhos dela
repentinamente formaram uma
luz mudando de cor até que...
Os olhos! Os olhos!
Mariana gritava rolando na cama. - “Não!”
- Mary, acalme-se, foi só um sonho ruim.
- Os olhos tia Kátia! – Choramingou Mary.
27

- Calma! Calma! Foi só um pesadelo. Ouvi


seus gritos do quarto, não sei como seus
irmãos não acordaram.

Kátia levantou às oito e meia da manhã,


seus sobrinhos ainda dormiam. Ela havia
tomado uma decisão. Precisava agir antes de
perder a coragem.
Pegou o telefone e discou para o irmão.
- Bom dia mano. Acordei você?
- Na verdade não. Sem as crianças a
casa está muito vazia. Sua sobrinha predileta
(desde ontem), ainda está dormindo? Ela sabe
que está bem encrencada comigo?
- Sua filha está deitada ainda. Você sabia
que ela costuma ter pesadelos e acordar
gritando?
- Claro que não. Ela nunca disse nada. –
Mas Hugo lembrou de Lucas dizendo algumas
vezes que Mariana acordava chorando.
- Hugo, as marcas da infância podem estar
guardadas, ainda que não se lembre da mãe...
Mary precisa de ajuda, deixe Mariana morar
aqui. Ela realmente precisa de uma companhia
feminina. Veja, Magda já tem os meninos e o
28

trabalho dela toma muito tempo. Mariana está


numa fase complicada. Deixe-a comigo pelo
menos até que ela esteja seguramente
madura. Você não tem paciência, nem jeito
para lidar com uma menina.
- Está dizendo que eu não sou capaz de
lidar com minha filha?
- Não faça drama Hugo, sabe que seria
melhor pra ela e para mim também. Eu fico
muito sozinha aqui.
- Você nunca reclamou de solidão. Não se
casou ainda porque não quis!
- Hugo Mary precisa de uma referência e
você sabe bem disso.
- Está bem Kátia, fale com ela, se ela quiser
ficar eu permitirei. Devo estar maluco ou ainda
bêbado para concordar com isso!
Katia desligou e orou “Deus que eu esteja
fazendo a coisa certa. Me ajude a convencer
Mariana se essa for a tua vontade pra ela no
momento, sei que nenhum dos teus planos
pode ser impedido”.
................
Marina aceitou com resignação o arranjo,
afinal ela tinha mesmo que crescer, como
29

David dissera. E agora também sabia que ele


já escolhera outro rumo e que não teria mais
tempo para suas travessuras. Sentiria uma
falta imensa de David, isso ia doer muito!
Mas, ela não era pária para Ana Carolina e
nem tinha a idade adequada para uma
disputa justa, era inevitável. Jamais o
esqueceria, David fora a alegria de sua
infância, o motivo dela não ter se afogado no
poço da insignificância.

Kátia

Kátia beirava os trinta anos, era bem-


sucedida acionista da Empresa de
cosméticos. Nunca se casou porque amava
muito sua liberdade, gostava do seu mundo
organizado. Quando Hugo teve que mudar-se
com a esposa e a filha, para vila Califórnia ela
veio juntamente com ele. Gostou da cidade e
conheceu muito convenientemente o médico
psiquiatra Dr. Gilson Berg. O relacionamento
deles era tranquilo. Ambos não queriam
30

comprometer-se seriamente. Porém, além de


apaixonados o tempo revelou-os muito
compatíveis. Os dias de solteira de Kátia
estavam contados.

Mariana continuava estudando no mesmo


colégio que Ana Carolina, os comentários
sobre o namoro de Ana com David doíam na
alma juvenil da garota. Mary e David foram
afastando-se naturalmente. Mary era ríspida
com ele, e David cansando deixou-a de lado.
Sentia a falta dela, ou melhor, da menininha
espirituosa que ele vira crescer. Mary mudara
muito, e ele já não tinha tempo para
melindres.

Os meses voaram sem piedade.

Mariana estava parada junto a entrada do


ginásio quando Ralph aproximou-se alegre e
moleque como sempre.
- Ola Mary.
- Alô Ralph.
Ambos riram.
- Vim fazer um convite.
31

- É? Hum...
- Bem é mais uma convocação. A turma
está reunida na praça central para jogar vôlei,
ainda falta dois jogadores e... Bem, faz tempo
que você não joga com a gente. Virou riquinha
e metida a besta é?
A menina observou seu amigo, também
companheiro de travessuras. Ele estava
mudado, um vislumbre de barba começava a
aparecer no rosto alegre. Um bigode
despontava sobre os lábios carnudos e os
olhos estavam ainda mais brilhantes. Ralph
se tornara um adolescente charmoso e seu
humor acentuado dava-lhe um “quê”
misterioso.
- Deixa disso Ralph. Quem vai jogar?
Ralph comemorou a vitória intimamente,
sabia que provocá-la era a melhor tática para
estimular o desafio. Mariana sempre queria
provar algo, seja lá porque motivo fosse.
- A turma de sempre, da escola, da vila, e
nem tem gente suficiente. E então?
32

- Está bem, eu vou. Que


horas?
- Agora.
- Agora?
- Já. Neste momento!
- Oh.
- Que foi, vai desistir?
- Não. Só não posso
demorar muito, não avisei
minha tia, do contrário eu
poderia ir direto para casa do reitor.
- Hum... Sei. Tudo bem, jogue ao menos até
virar um set.
- Certo.
-Vamos lá, então!
Ralph animara-se. O jogo prometia.
Quando chegaram à praça os jogadores já
estavam posicionados esperando apenas os
dois jogadores que faltavam, um em cada time
adversário.
Mariana sentiu-se um pouco deslocada.
Mas forçou-se a ignorar seus temores.
Gradualmente parecia ser a mesma garota
tempestuosa e animada de sempre.
33

O time de Mary estava com um ponto de


vantagem e a disputa estava acirrada. David
sacava, Mary no meio e Ralph na rede. Do
outro lado Ana jogava na rede, Adriano no
meio e Débora sacava.
Faltando um ponto para virar o set,
Mariana sacou e fez ponto. A empolgação foi
geral. Mary comemorou animada. David
inesperadamente deu um abraço em Mariana
e rodopiou com ela.
O toque foi mágico para ambos,
repentinamente enquanto a erguia girando
em seus braços os olhos dele encontraram os
brilhantes olhos violetas de Mary. Ficaram
entorpecidos como se só existissem eles
naquele momento singular.
- Desculpe Mary, eu me empolguei.
- Tudo bem, acho que eu também.
Mariana ficou corada e David esqueceu-se
que a partida ia continuar. Como ela havia
mudado! Como estava linda e perfumada.
Como era feminina e... Como ele amava sua
espontaneidade! Será que ela sempre fora
linda assim, aqueles olhos sempre iam do mel
esverdeado ao violeta na luz do sol? David
34

considerou estar pirando não fosse a invejosa


insinuação de Adriano.
Era sexta-feira, provavelmente á noite, se
Tia Kátia fosse sair, Mariana iria para casa do
reitor, Hugo, ou iria no sábado de manhã.
Gostava de passar os fins de semana com os
irmãozinhos, em especial com Lucas. Depois
destes meses Magda comentava a notória
mudança em Mary e até contava com ela
quando precisa de uma babá de fim de
semana. Em relação ao pai, Mary preferia não
ter expectativas e nem cogitava voltar a morar
com Hugo...

Naquele fim de tarde...


Magda chegou comentado as novidades
da vila:
- Olá querido.
- Olá Magda. Tudo bem?
- Sim. Acho que Mary vem hoje à noite pra
cá. Lucas está doido para mostrar a ela o novo
jogo que você comprou pra ele.
- Que bom. Hoje ele está especialmente
perguntando dela a cada cinco minutos desde
35

que cheguei da universidade. Mas, como sabe


disso?
- Passei no armarinho e Dona Regina disse
que tinha visto "a filha do reitor" jogando vôlei
com as garotas do colégio. E até fez um elogio.
Disse que Mariana é uma moça tão bonita e
refinada que nem parece a menina que estava
sendo motivo de boatos há meses. Ela disse
também que todos os que frequentam o
armarinho fazem esta mesma observação e
dizem que ela se tornará a moça mais bonita
da cidade.
- Ora! Ora! Que virada! Você também me
parece meio orgulhosa.
- Claro que... Sim! É bom não ser o centro
das atenções maldizentes. Não acha?
- Tem razão. Bom, vou então fazer algo que
quero fazer a algum tempo. Vou buscar Mary
na praça.
- Hugo, ela pode não gostar. Pode achar
que você está vigiando.
- Talvez. Vou apenas observar o jogo de
longe então, e quando acabar dou uma carona
pra ela.
- Tem certeza?
36

Magda perguntou um tanto incrédula.


- Papai eu posso ir com o senhor?
- Hoje não Lucas, mas prometo que vou
trazer Mariana para jogar com você ainda hoje.
O que acha?
- Está bem.
Lucas conformou-se meio hesitante. Era
melhor ter a companhia de Mary um dia antes
do que nada.
Hugo pegou as chaves, entrou no 4X4
num sexto sentido de ansiedade que
surpreendeu até a ele mesmo. Seus cabelos
desalinhados davam a ele um ar juvenil. Não
era um homem belo, entretanto, também não
era insignificante. Tinha postura, certa
segurança ao falar. Olhos castanhos claros e
grossas sobrancelhas que lembravam as de
Mary. Não era magro, nem gordo. Tinha um
porte médio e estatura mediana. O que o
diferenciava era a maneira de olhar
intimidadora, os gestos ponderados e as
palavras escolhidas. Era uma pessoa
agradável de conversar e parecia sempre estar
interessado no que ouvia. Pena que somente
37

com a filha, ele não tinha essa proeza da


escuta.
...............................................................
........

- Bom já vou pessoal, foi legal.


- Já Mariana. Desde que o reitor colocou
você pra fora de casa, você não aparece muito
por aqui.
- Do que está falando Adriano? Meu pai
não me colocou pra fora!
- Ah sim, foi mesmo. Ele te deu uma surra
que você perdeu o rumo de casa.
Mariana olhou para David com os olhos
suplicantes por ajuda, mas ele não reagiu, foi
como se não tivesse ouvido, os olhos presos
no rosto cínico de Ana Carolina. Sem
alternativa virou-se até o canto onde estavam
as mochilas e armou-se para ir embora.
- Ah, já vai bonequinha, a titia não deixa
ficar é? Ah! E o David agora tem mais o que
fazer e não quer ficar de babá? Que pena! –
Adriano provocou.
Mary virou-se de supetão.
38

- Cale a boca seu idiota, antes que eu


arrebente seus dentes.
- Ai que medo, você deve ser mesmo
sapatão. Nem a saia te deixa com cara de
menina. – Zombou ele.
Ana Carolina reprimiu uma risadinha de
deboche.
Perplexa como se o tempo tivesse parado
e uma bolha estourado em seu peito, Mary
largou a mochila no chão, pronta para
esbofetear o imbecil que a insultava. David
numa percepção muda, continuava fitando a
esquina, e num reflexo rápido prendeu Mary
pelo ombro com uma mão. Um 4X4 estava
estacionado ali parecia haver algum tempo.
Indagou quem mais teria um carro desses
nesta cidadezinha e de longe também parecia
que o motorista não estava no carro.
- Calma Mary, agora não. - David
conseguiu dizer.
Ele olhava para Adriano cogitando esfolá-
lo ali mesmo. Só que sua reação não foi
captada por Mary que estava um passo à sua
frente.
39

Um homem vestido elegantemente com


calça social, uma camisa verde clara e jaqueta
aberta, com as mãos no bolso, óculos escuros
escondendo o ardor em seu olhar. Os cabelos
espessos e curtos penteados para trás dando
um ar jovial e sofisticado à figura
intimidadora que caminhava lentamente até
os distintos jogadores. O reitor!
Subitamente na lateral da quadra
improvisada, Hugo se fez perceber parando a
poucos metros de braços cruzados fitando a
cena. Há quanto tempo, não faziam ideia. Ele
chamou a filha.
- Mary. Tudo bem, querida? Vim buscá-la
para um passeio. Lucas está eufórico por sua
chegada.
Mariana fitou o pai, desconfiada, mas as
lágrimas já ameaçavam jorrar de humilhação.
Apanhou a mochila do chão.
Hugo estendeu a mão num gesto que
indicava para que ela desse a mão a ele.
Virada de costas para David e olhando
para o carro para não encarar mais ninguém,
Mary manteve a distância de seu braço entre
40

ela e o pai, mas mantinha sua mão trêmula


segura pela dele.
Hugo voltou-se para David.
- David?
- Sim Dr. Hugo?
- Leve sua namorada para casa, acho que
o sol não faz bem para pessoas de pele muito
clara, vou aguardar aqui até que vá. E Ana dê
lembranças a sua mãe.
A voz de Hugo era calma e impassível, a
ameaça implícita lentamente em cada palavra
pronunciada.
Ana Carolina baixou a cabeça passando
para o outro lado da rede pegando a mão de
David e puxando-o para longe da quadra.
Quando David saiu Hugo fez um sinal
apontando o carro para Mary e com o controle
destravou a porta deixando que ela se
refugiasse no carro. Mary entendeu a dica,
estava desesperada para sumir dali, disparou
saltando no banco do carro e encolhendo-se
instintivamente. Agora suas lágrimas corriam
ao som dos soluços de traição. David nem se
quer a considerava mais, nem a defendera.
41

Solidão era uma palavra insignificante perto


do buraco que ia se expandido em seu âmago.
Hugo moveu-se alguns
centímetros chegando bem perto
dos alunos que estavam
paralisados e quietos na quadra.
- Adriano. Quero sua mãe
no meu gabinete às oito da manhã
da segunda-feira! Oito em ponto e
nenhum segundo a mais!
Agora os olhos de Hugo fuzilavam o
menino enquanto se distanciava em direção
ao carro.
Abriu a porta ruidosamente, mas ao ver
Mary encolhida condoeu-se e pensou alguns
instantes.
A garota já aguardava a enxurrada de
insultos e ameaças. Mas ele apenas falou
numa voz branda, novamente
surpreendendo-a.
- Ponha o cinto Mary.
Ela estendeu a mão tateando entre os
bancos para encaixar o cinto, as lágrimas
ainda a cegavam. Duas esquinas depois Hugo
estacionou, sem prévio aviso em frente a uma
42

confeitaria. Pegou o celular e discou para


casa.
- Mag.
- Hugo? Você vai demorar?
- Não. É só que Mary ainda estava jogando
e eu quero saber se vão nos esperar para o café
da tarde? Vou comprar uma torta. O que acha?
- Acho ótimo! Vou arrumar a mesa e
preparar suco e café. - Emendou Magda
animada.
- Até já então.
Hugo desligou meio distraído.
Só agora que ele desligou o celular é que a
menina se deu conta que o carro estava
parado. Ainda estava encolhida, cobrindo o
rosto com as mãos.
Hugo desatou os cintos de segurança e
puxou as mãos do rosto de Mary. Ela
encolheu-se ainda mais esperando por uma
represália e tremeu.
Porém com a voz mais doce possível Hugo
ordenou.
- Venha cá.
43

Puxou-a para junto de


seu peito limpou as
lágrimas com as costas
das mãos, afagando os
cabelos ruivos da menina,
desmanchando com o
gesto seu rabo de cavalo.
A reação de Mary foi a mais inesperada
possível. Parece que uma torrente de emoções
emergiu de uma só vez, os soluços altos
balançavam-na como se uma dor enorme a
tivesse possuído.
- Mary. Mariana acalme-se. Nenhum
abusado vai falar assim com minha filha.
Ela só assentia com a cabeça ainda
encostada no peito do pai tentando controlar-
se. Levantou a cabeça para encontrar os olhos
de Hugo e tentar entender sua atitude
paternalista e condescendente.
Como se ele previsse o que ela pensava ele
segurou seu rosto com as mãos e declarou
com toda coragem que conseguiu juntar.
- Perdoe-me Mariana. Fui egoísta e fútil.
Amo você minha filha e sinto demais sua falta.
44

Eu realmente sinto. Sinto muito pelo hipócrita


que fui.
Parecia que Hugo ia dizer mais alguma
coisa, mas arrependeu-se e desviou o olhar
amargo fitando um ponto no painel do carro.
- Pai?
A voz saiu meio estrangulada pelas
emoções, mas, mesmo sabendo que estava
longe de perdoá-lo ou amá-lo ela sentiu a
necessidade de compensar o esforço de Hugo.
- Sim?
- Não precisa sentir minha falta, estou
sempre na sua casa aos fins de semana.
- Não quero você apenas como visita Mary.
Agora havia amargura na voz de Hugo, e
um frio percorreu o corpo de Mary com um
tremor.
Mary pensou naquilo, mas era assustador
demais pensar em voltar definitivamente. Não
queria pensar na possibilidade,
principalmente agora. Agora que perdera
David! Agora não.
Hugo ainda afagou por uns minutos os
cabelos de Mary enquanto ela lutava pra
45

recompor-se. Ele segurou um dos cachos


ruivos e brilhantes nas mãos e sorriu.
- Você parece uma ovelhinha tingida e
rebelde. Mary riu e Hugo beijou o alto de sua
testa.
- Vamos comprar uma torta? Sua
madrasta e seus irmãos devem estar
pensando que fugimos com as guloseimas da
cidade.
Mary forçou um sorriso complacente e
destrancou a porta do carro para descer.
- Certo pai. Não quero o FBI procurando por
nós.

............................................................

“O que é a ingratidão a não ser uma


porção de incompreensão cercada de
egoísmo por todos os lados?"

Aquele semestre passou muito rápido.


Mariana evitava estar nos lugares onde
poderia encontrar David. E toda vez que vinha
visitar Hugo ela preferia não sair nos horários
que achava ser passível de encontrar seu ex
46

melhor amigo. Passou as festas de fim de ano


na casa do pai e a contragosto de Hugo ainda
continuava morando com Kátia.
No próximo semestre David estaria
acabando o curso preparatório para o
vestibular. O Campus onde ele ia fazer
graduação ficava na cidade circunvizinha há
uns 60 km de distância. Depois da admissão
ele só viria pra casa de quinze em quinze dias.
O pensamento de não o ver era mais
reconfortante do que o de vê-lo nos braços de
Ana Carolina.
Num desses finais de semana ensolarados
David passeava com o cachorro, Brenon.
Caminhava pelo calçadão quando ouviu um
conhecido assovio. Caio que agora havia
esticado mais alguns centímetros ficando
mais alto que David, estava parado na
esquina, batendo uma bola de basquete no
chão com um sorriso zombador e olhar
desafiante para o cachorro.
- Você devia me contratar para jogar
basquete com seu cachorro.
47

- Sério? Acho que


ainda posso fazer isso. O
que você quer de verdade?
Caio desfez o sorriso e
encarou David, desta vez
sem nenhum humor na
voz.
- Sabe David, eu estive observando...
Mariana cresceu não acha?
- O que eu tenho a ver com isso? – David
respondeu subitamente mal-humorado e com
um péssimo presságio.
- Talvez nada... Já que você está
namorando a esnobe Ana Carolina. Apenas
que... bem, como crescemos juntos, embora eu
não devesse, vim avisar que...
- Que...
- Que estou muito, mas muito mesmo afim
de ficar com Mariana!
- Ficar? Quem disse que ela vai querer ficar
com você?
- Talvez, eu tenha um pouco de trabalho.
Mas é um desafio delicioso. – Caio atirou as
palavras provocantes com o sorriso
48

zombeteiro voltando a dar-lhe um ar


desafiador e competitivo.
- Isso é entre você e ela Caio!
- Que bom que pensa assim! Sei que Mary
sempre foi apaixonada por você e que você
sempre a olhou com amizade. Mas sabe,
observei-os muito naquele dia na praça. Achei
que você andaria reconsiderando. Dei até um
tempo. Mas, refleti melhor. Por que você teria a
preferência? Mary cresceu. Está linda,
disponível e desejável.
- Você está dizendo um monte de asneiras!
– David ameaçou instigar o cão contra o
colega.
- Melhor ficar aí mesmo David, eu odiaria
ter que brigar de fato com você.
- Não brinque com ela Caio. Ela não merece
ser brinquedo de ninguém! Ela não é um troféu.
- Sério David? E o que foi que você fez
naquele dia do jogo?
E dizendo isso virou as costas e saiu
batendo a bola no chão, dobrando a esquina
deixando David confuso, enciumado e irado.
Mas ele não iria se importar, pensou. Mariana
49

não era problema dele. Ele estava com Ana


Carolina e tiraria Mariana de vez da cabeça!

...........................................

Kátia dobrava algumas roupas enquanto


falava com a sobrinha:
- Mary. Vamos neste final de semana
para a casa da enseada. Você quer vir conosco
ou prefere ir com seu pai na quarta-feira?
- Oh! Se não houver problema com o Dr. Gil,
eu vou com vocês!
- Problema nenhum! - Acrescentou Gil
distraidamente.
Mary já se sentia parte da vida de Kátia,
mas também já esperava de antemão que a
qualquer hora teria que voltar a morar com
seu pai. Kátia iria casar-se qualquer dia
desses e embora Gil parecesse não se
importar ele deixava sua opinião subliminar
nos mais inofensivos comentários.
“Você devia ficar mais tempo com seus
irmãos, é época de férias. Seus pais devem
precisar de você”. “Não deve guardar rancor, o
50

pai é a melhor pessoa para criar um filho". E


outros comentários nada sutis como esse.

Na casa da enseda, da sacada observavam


os banhistas passearem pela calçada.
Mariana fitava o céu inebriado, o contraste
entre o crepúsculo e o mar era algo imperdível
e apaixonante.
- Tia, posso dar uma volta pela praia?
- Claro, mas mantenha-se na areia. Já é
tarde pra um banho salgado não acha?
- Pode deixar. Não sou muito dada a água
fria.
Mariana desceu as escadas deixando Gil e
Kátia a sós para desfrutarem da casa.
- Quer um drink querido?
- Hum... Aceito.
Abraçados por um tempo ficaram na
sacada observando a praia e Mariana
caminhando na areia.

Os cabelos longos voavam contra o vento,


os braços abertos davam a impressão de que
Mary flutuava, a saia leve enroscava em suas
pernas, mas não a impedia de andar. A
51

intensidade da figura da garota indo em


direção ao mar foi simplesmente fantástica.
Linda como uma princesa saída de um conto
de fadas. O tom avermelhado do cabelo em
contraste com a roupa cor-de-céu, era como
vislumbrar um anjo caminhando.
Mary seguiu em linha reta até a beira da
praia. Tirou as sandálias e deixou os pés
tocarem a areia mágica. Ela começou a
caminhar na direção leste, observando o mar,
fascinada e captando as emoções estampadas
de encanto no rosto dos turistas que andavam
na areia como ela.
Uma cena tocou-a profundamente como
um filme muito familiar.
Uma criança soltou as mãos da mãe e
entrou correndo na água. A mãe gritou, mas
a criança não ligou para os protestos. Numa
atitude protetora a mãe entrou na água e
tanto ela como a criança caíram sentadas na
água rasa da praia.
Agora mãe e filha riam e jogavam água
salgada uma na outra. As roupas
completamente molhadas.
52

Mary observava... Então a cena tornou-se


surreal em sua mente, ela virou o rosto
observando o mar.
A linda mulher de cabelos cor-de-mel
agora a chamava. “Venha Raiozinho”, ela
sorria com os olhos.
Mary foi passo a passo entrando no mar.
A voz aveludada não fazia jus à visão. “Vamos
querida, estou aqui." Mary quis responder,
mas sua voz não saía, ela acenava com a
cabeça positivamente, agora os olhos fixos na
figura diante de si com a mão estendida. Era
um sonho maravilhoso, Mary não sentia
medo. Olhou mais atentamente pra o rosto da
linda mulher e então reconheceu os olhos. Os
olhos! Os olhos diamantados de um azul
profundo lançavam um arco-íris de si. Várias
cores cintilavam dele, a mulher parecia
dançar graciosamente, mas foi a maneira, a
expressão e não a cor que Mary reconheceu e
então quis gritar: "Os olhos!". Mas a garganta
ardia como fogo, os pulmões pareciam inflar,
o mar tornou-se escuro a sua volta e a mulher
sumira. Agora uma dor percorria seu corpo.
53

Uma voz tinindo longe. Algo muito


familiar.
- Eu disse pra ela não entrar na água! -
Kátia explicava irritada e perplexa.
E virando-se para o rapaz que a tirou do
mar inquiriu: - Como ela está?
A voz do Dr. Gil cortava o fim de tarde
cheia de indignação, ele agitava as mãos
conversando com o jovem salva-vidas.
- Ela engoliu muita água senhor, mas
parece estar voltando a consciência.
- Ah!
- Mary...
Uma voz feminina coberta de angustia
cantava em seu ouvido
- Mãe?
A voz saiu estrangulada e tremida.
- Mary, sou eu, Kátia.
Mariana abriu os olhos em choque, levou
algum tempo para perceber vários rostos em
cima dela e muitas vozes ao seu redor.
- Ohhhh
Foi só que conseguiu dizer.
- Você está bem? - a voz de Gil ainda era
ácida.
54

- Acho que estou. Eu... não percebi até


que já estava no fundo, eu achei que estva só
na margem...
Mary fechou os olhos desejando não os
abrir. Desejando não entender. Desejando
que não fosse... Que ela não tivesse feito a
estupidez de entrar no mar. Ela não fez isso!
E lembrou-se. Gritou apavorada:
- Os olhos! Sei de quem são os olhos!
- Calma! Agora fique quieta.
Gil anunciou que assim que tivessem
certeza que ela estava bem e não precisava ser
hospitalizada, ele iria contatar Hugo. Não
poderia esconder uma coisa assim.
- Por favor, não precisa dizer nada, eu...
Estou bem.
- Não é uma coisa que eu possa esconder
dele. Sinto muito. E até ele vir na quarta-feira,
os banhistas comentarão ainda o caso da
menina...
Gil parou cautelosamente.
- O caso da menina que pensou que era um
peixe!
55

Minutos mais tarde podia ouvir Kátia


soluçando ao telefone, Só podia estar falando
com uma pessoa, Hugo kylle!
“Um acidente horrível". "Sim, ela está bem,
o salva-vidas chegou a tempo". Fez-se um
breve silêncio e depois as lágrimas jorravam
travando a voz de Kátia. “Eu sinto tanto,
Hugo".
Mariana fechou os olhos. Quase um ano
inteiro sem o filme de terror e inércia que era
sua vida antes; e agora... Céus! Não queria
lidar com aquilo, cogitou seriamente em fugir.
Fugir pra longe de tudo que já conheceu. Não
queria pensar em sua mãe. Nunca se permitiu
pensar nela. Era proibido. Ela estaria morta
agora? Onde estaria se estivesse viva? Quem
era ela? Por que era um tabu? Mais do que
isso: Quem era Mariana, quais suas raízes,
que destino a esperava? Devia estar
enlouquecendo mesmo ou lendo Shakespeare
demais. “Há mais mistérios entre o céu e a
terra...” (Shakespeare – Hamlet).
Ela dormiu profundamente, na verdade
não tinha vontade alguma de acordar. A noite
caiu depressa e mesmo sentindo a brisa
56

anunciando a manhã, junto com as vozes que


iam e vinham em torno dela, continuou de
olhos fechados, até reunir coragem para
escorregar da inércia pra o presente.
Um par de olhos tristes e faiscantes
observavam-na. Mary deparou-se com eles,
chocaram-se mesmo!
- Desculpem. Não tive a menor intenção de
causar transtornos. - Como se fosse possível –
Racionalizou.
E disparou a falar como se abre a tramela
de um curral de animais selvagens. As
palavras saiam em jorradas densas de
melancolia, encenação e expectativa.
- Não sei como fui entrando no mar, mas
deve ser a fascinação da água e eu nem
percebi. Foi só uma distração tola. Eu não tive
a intenção. Sinto muito pelo incidente e... Eu
não sou louca! Só porque tive alguns sonhos
estranhos ou incomuns não foi...
- Oi? – Inquiriu Dr. Berg. - Ninguém está
dizendo que está maluca. Só precisamos
analisar melhor o ocorrido. Que tal ir à um
psicólogo.
57

- Não tenho nada que queira dividir com


um psicólogo! - Gritou aturdida.
- Que tal dividir esses sonhos constantes?
Que tal falar sobre seus pesadelos?
- Não acho necessário.

Alguns dias depois...

Mesmo tendo sido tirado da pauta o


assunto sobre o acidente e um psicólogo,
Mariana voltou para casa do pai, achando a
vida sem graça e injusta.
Tirando o entusiasmo de Lucas, tudo
parecia frio e desgastado. Magda sempre
bancando a boa samaritana e abusando um
pouco do dom de baby-sitters de Mary para
cuidar dos irmãos menores. Hugo estava
diferente tentando muito manter um clima
ameno.
No primeiro semestre Mariana manteve
distância de tudo que estava ligado a David,
inclusive Ana Carolina.
...............................................................
..
58

Ralph

David estava distraído


cortando a grama quando
Ralph parou abruptamente
no portão derrapando com a
bicicleta e fazendo um
enorme ruído. David largou o cortador e olhou
diretamente para ele.
- Onde é o incêndio?
Ralph largou a bicicleta no chão e
levantou os ombros num gesto zombeteiro.
- Incêndio? Não sei não. Não estou vendo
nenhum bombeiro. Mas tenho uma notícia
quente. – Ralph coçou o queixo. – Pelo menos
acho que é.
- Não diga! Você sempre está metido em
notícias quentes.
- Talvez desta vez eu queira estar. – Ralph
falou sério fitando David diretamente nos
olhos.
David sentiu o incômodo na maneira em
que Ralph olhava pra ele. Algo em seu instinto
59

dizia que ele não ia gostar da conversa com o


amigo. Mesmo temendo a resposta perguntou:
- Quais são as notícias?
- Mary está de volta à vila. Sabia?
- Isso? Eu soube.
- Sabia que ela tentou se afogar? – Ralph
despejou abruptamente.
- Quem disse esse absurdo Ralph?
- O irmão dela. O Lucas. Disse que ouviu o
namorado da tia conversando com o pai dele.
- Ele deve ter confundido.
- Também acho que Mary não faria isso.
Mas... Sabe David, ela mudou muito. Isto é,
não é mais a mesma garota da pescaria. Está
diferente...
- Ela cresceu Ralph.
- Verdade, e falando nisso... Ela está muito
bonita, você a viu? Eu estive pensando que vou
namorar com ela.
- Como é? Você já disse isso a ela? Por que
todo mundo acha que tem que me consultar?
- Não. Mas vou dizer. E quem mais o
consultou?
- Talvez Caio. Isso não vem ao caso -
atalhou David.
60

- Sabe David, pode dar certo eu e Mary nos


conhecemos desde criança. Gostamos das
mesmas coisas e ... Você não se importa, não
é?
David pegou o cortador do chão e ligou.
Um aperto no peito, uma raiva, um
sentimento de perda. Ah ele se importava!
Mas não ia dizer isso ao Ralph. Com que
direito diria? Dizer que ele não confiava em
Ralph e que Caio também já estava na
disputa, que o amigo estava se achando o dom
Juan da cidade e que não tinha o direito de
magoar Mary só porque agora ela estava bela
e feminina.
- E então David? – Ralph desafiou.
David desligou o motor. Decidiu ser
sincero.
- Ralph, você está me contando porque
sabe que não tenho o direito de intervir, não é?
Você não quer minha opinião. Você só está me
comunicando.
- Parece que você está meio enciumado.
- Para com isso Ralph! Você cresceu, Mary
cresceu. Nós crescemos! A vida mudou. O lago
está lá abandonado. Não somos os mesmos.
61

Você sabe que tem um quê com as garotas,


mas não vai funcionar com a Mary. Você só
quer testar, brincar com ela. E pra quê? Pra
magoá-la depois? Vale a pena Ralph? - David
gritou com o amigo.
- Agora vale!
- O quê? – David estava pronto a pular a
pequena cerca e acertar um soco no rapaz.
Mas Ralph continuou:
- Eu queria saber se você vai sentar e
esperar que a Mariana conheça alguém e siga
caminho. Eu estava só testando você, embora
eu confesse que ela realmente me atraiu. E que
Caio anda falando aos quatro ventos que a
conquistará. Mas eu não farei nada que possa
magoá-la. Eu gosto muito dela pra isso. Mas as
coisas podem rolar David. Eu sai com ela
ontem à tarde. Nada demais, apenas tomamos
um sorvete e conversamos um pouco. Sabe ela
não perguntou nada sobre você e eu entendi
que era porque ainda deve doer pra ela. Então
se você não a quer, deixe o caminho livre!
62

- Mas eu já deixei faz tempo, ou


melhor faz anos!
- Ótimo! Então eu estou na pista! –
E pegando a bicicleta, montou e
pedalou irreverentemente para longe
da casa.
David ficou ali parado. Sentindo
um torpor. Não conseguiria deixar Ana. Ele
achava que ia casar-se com ela. Não dava pra
tentar conhecer a Mary moça, a Mary
interessante, a Mary disputada, a Mary que
não era a garotinha do lago! Tinha medo. Não
admitia. Mas tinha medo de arriscar e perder
Ana Carolina. Assim preferiu ficar com a dor
do ciúme e perder Mary pra outro rapaz, quem
sabe até mesmo para o próprio Ralph. O
amigo era assim, totalmente honesto,
espontâneo, sem noção, sem medidas,
irreverente e alegre. Contudo era bom caráter.
Talvez Mariana se apaixonasse por ele. Não
queria pensar! Largou o cortador de grama.
Precisava se refugiar em Ana Carolina e foi
pra ela que ligou quando entrou em casa.
63

Um lago entre dois

A aula parecia nunca terminar, Mariana


coçava o rosto com a ponta das unhas pela
quarta vez quando a colega de
grupo interviu.
- Assim você vai esfolar seu
rosto!
- Ta visível assim minha
agonia é?
- Está? O que você tem hoje? Sono ou tédio?
Mariana sorriu para amiga. Cibele havia
mudado para a escola há alguns meses,
porém a amizade florira naturalmente. Cibele
era alegre, espontânea, criativa. Não tinha
dificuldade alguma em “se meter” entre os
grupinhos e ficar “antenada” em tudo que
acontecia. Era uma moça inteligente e
perspicaz. Um “Ralph de saias”! Cibele se
tornara para Mary uma amiga leal, assim
como Ralph e aliás Mary achava que os dois
amigos, Ralph e Cibele, formariam um bom
par.
64

- Acho que agonia de estudar! - Mariana


respondeu melancólica.
- Hum... acho que precisa dar uma voltinha
no lago!
- Fala sério!
- Ei! Faltam só duas aulas pra acabar o
dia. A turma B vai sair em 03 minutos e
podemos, meio que fugir com eles. – Dizendo
isso Cibele piscou e acresceu – Eu tenho
mesmo muita curiosidade para conhecer o tal
lago onde vocês iam quando matavam aulas.
Ralph me contou.
- Contou é? Fica há uns vinte minutos
andando. Quer mesmo ir?
Antes que a amiga respondesse o sinal
soou. Sem pensar Cibele e Mariana juntaram
o material e ao invés de trocar de sala para a
próxima aula, seguiram a turma “B” rumo à
saída. Foi tão fácil saírem com a turma alheia
que nem acreditaram na proeza.
65

Tomaram o caminho da montanha


subindo ladeira acima no sol
escaldante.
- Que calor! Tem certeza que
costumavam pescar no sol
escaldante?
- Isso já tem algum tempo. Aliás
quase dois anos. Na verdade...
Agora não vejo muito sentido nisso.
- Nisso?
- É... cabular aula, ir até o lago. Não tem
mais a mesma graça.
Cibele pensou um instante.
- Imagino que é porque não são as mesmas
companhias, não é?
- Não é isso. Acho que... Bem, eu adorava
pescar. Era meu refúgio. Ali eu era só a Mary,
tinha amigos, não era invisível.
- Você não me parece invisível agora
também – Cibele levou a mão ao queixo num
gesto cômico.
- Ah! Vá! É verdade, não me sinto invisível
agora, acho que só estou madura demais!
66

- Falou “vovó”! Vai chegar por último – e


dizendo isso a garota loira e engraçada deu
uma carreira em direção ao lago.
Mary saiu correndo atrás rindo e ofegante
até que chegaram à beira do magnifico lago e
a visitante ficou olhando sem fala a paisagem.
- Você está bem, Cibele?
- Sim, é só que não esperava por algo tão...
bonito! Essa vista é incrível! Quase mágica.
- Imagino que não tenha lagoas assim em
sua cidade.
- Não havia. Não que eu tivesse conhecido.
Lá é um amontoado de “arranha-céus” e
shoppings. Vamos nadar?
- Está maluca? Vamos ficar ensopadas.
Sem chance!
- Ora- ora! Você não costumava nadar
aqui?
- Nadar não. Pescar. E eu nem sei nadar se
quer saber.
- Que pena!
As garotas sentaram em umas pedras e
ficaram ali conversando sobre as diferenças
do interior e da cidade grande.
67

Enquanto isso...

David passeava pela calçada levando seu


cão boxer em uma coleira improvisada. Tinha
que ir ao mercado buscar alguns produtos
para a mãe e na volta compraria um material
que precisa usar num trabalho do curso. No
pequeno percurso deparou com alguns
alunos que saiam do seu antigo colégio.
Quando cruzava a pequena avenida, duas
meninas se aproximaram falando um tanto
alto:
“Viu a filha do reitor? Ela cabulou aula com
aquela menina da cidade”. A outra colega
respondeu “Como você sabe que ela cabulou?
Pode ter saído mais cedo”. “Não saiu não, eu a
vi subindo o morro para o lago, dizem que ela
tentou se matar afogada. Será que vai tentar
de novo?”. “Credo! Não fala uma coisa
dessas”.
David não esperou para ouvir mais nada.
Um frio lhe percorreu a espinha. Sem
pestanejar levou o cachorro e colou dentro do
quintal e subiu em disparada rumo ao lago se
amaldiçoando por se importar desse jeito. Ele
68

não era responsável por Mariana, nem amigos


eram mais. Ele não devia se preocupar! Então
por que o coração dele estava disparado e ele
sentia um desespero crescente esmagar seu
raciocino? “Oh Deus não deixe que essa
maluca faça uma besteira com a própria vida”.

As meninas distraidamente jogavam


pedrinhas no lago apostando quem atirava
mais longe. Uma pedra tinha que superar a
distância da outra. Ficaram assim em silêncio
um tempo.
- O que tem depois daquelas árvores? –
Cibele perguntou.
- Não sei. Acho que só mato mesmo. Nunca
fui lá.
- Será que tem alguma fonte de
água ou alguma macieira?
- É provável.
Cibele ficou de pé e bateu as
mãos na calça limpando a poeira.
– Vou até lá. – E saiu sem esperar
que por uma resposta e nem que
Mary a seguisse.
69

Mariana ficou ainda jogando pedrinhas no


lago, meio inerte, ansiava por ficar um pouco
sozinha. Queria pensar. Queria lembrar a
infância não tão distante. Olhava o lago
recordando o dia que David a puxou da água
e mandou-a vestir a blusa de Caio. Caio, o
rapaz que agora mostrava-se todo paquerador
e cheio de atenções com ela. O rapaz que ela
não tinha a mínima vontade de namorar e ele
não parecia aceitar um singelo “não”.
Balançando a cabeça como se quisesse jogar
fora os pensamentos ela se levantou. Apenas
que o movimento a fez desequilibrar-se, mas
conseguiu firmar as pernas e não cair.
Aproximando-se rapidamente e vendo-a
como se tivesse hesitando em se lançar ao
lago, David gritou e alcançando-a sacudiu
pelos ombros.
- Não faça isso! Não faça uma coisa
abominável dessas!
Assustada Mariana mal conseguia
articular uma pergunta. Olhava David sem
entender e ao mesmo tempo tão fascinada,
com tanta saudade daqueles braços, dos
70

olhos apertados quando ele brigava com ela


que quase sorriu.
David parou de sacudi-la e
instintivamente a abraçou junto ao peito
apertando-a com força e murmurou “Nunca
mais faça isso comigo Mary!”. Ela ergueu a
cabeça para encarar seu
melhor amigo que havia
crescido e se tornado um
rapaz ainda mais belo do
que ela se lembrava. E esse
foi seu erro! David fitou pela
primeira vez aqueles olhos
violeta como se não fossem
da irmãzinha postiça e sem
poder mais se conter beijou-
a nos lábios. O mundo podia parar agora. O
lago podia secar. Hugo podia mandar a
S.W.A.T atrás dela. Nada mais importava
porque David a estava beijando e ela amava
David!
Surpresa e de boca aberta Cibele parou ao
ver a cena a sua frente. Cogitava se fazia
barulho ou se ia embora. Já estava decidindo
ir embora quando David abriu os olhos e a
71

viu. Instintivamente ele afastou Mary e então


lembrou-se do que Mary intentava fazer. E
virando-se para Cibele acusou:
- Você concordou em vir até aqui pra ela
fazer uma besteira dessas?!
- Eu perdi alguma coisa? – Zombou Cibele-
Jogar pedrinhas no lago é crime?
- Pedrinhas no lago? – vociferou David
percebendo que tinha se precipitado. Virando
pra Mariana ele esbravejou.
- Você nunca vai crescer? Cabulou aula pra
jogar pedrinhas? Pensei que tivesse
amadurecido Mary! – A bronca tinha um tanto
de desprezo e amargura, mas a menção do
apelido revelou o quanto ele também estava
confuso.
- O que você pensou que eu fosse fazer
David? – Mary perguntou gaguejando e já
deduzindo a resposta.
- Me diga você! – E virando as costas David
subiu o morro em disparada como se quisesse
manter a maior distância possível entre ele e
Mariana.
Enquanto Mariana permanecia imóvel as
lágrimas começavam a rolar, Cibele pegou em
72

seu braço “O que está esperando para ir atrás


dele?”. Entretanto Mariana não saiu do lugar.
Ainda tinha um pouco de orgulho: “Eu não
vou suplicar pelo amor dele! Se ele me procurar
novamente então esse beijo e tudo mais
significou alguma coisa. Se não procurar...”
A frase ficou inacabada, pois a leva de
lágrimas e soluços veio com toda força.

Tudo pode piorar?


Quando Mariana chegou no portão viu
que o carro de Hugo não estava na garagem.
Sentiu um mal presságio.
Foi direto para o quarto e trocou de roupa
prendendo os longos cabelos num rabo de
cavalo, foi apenas ao abrir a porta do quarto
para ir beliscar alguma coisa na cozinha que
deu de cara com o pai que tinha acabara de
chegar perguntando por ela.
- Onde você estava Mariana!
- Eu... eu estava com a Cibele terminando
um trabalho.
- Ah! É mesmo! – Hugo disse avançando na
direção da filha que instintivamente saiu de
73

sua frente indo se abrigar atrás da madrasta


que em pé tentava entender a fúria do marido.
- Calma Hugo. O que está acontecendo?
- Isso Mariana vai nos dizer! Por que aquele
descarado e senvergonha teve a ousadia de ir
até a reitoria pedir permissão para namorar
com ela! O moleque mal saiu das fraldas!
Mariana soltou assombrada: - David!
- David? – Hugo e Magda indagaram
surpresos.
- Não foi David? Então quem foi?
- Claro que não foi David! Ele não está
praticamente noivo? Por que pediria?
Mariana não respondeu à
pergunta de Hugo. Apenas que
seu coração ia explodir com
tantas emoções naquele dia.
Apenas conseguiu balbuciar:
- Quem foi então pai?
-Sim Hugo, quem pediu para
namorá-la?
- Como se ela não soubesse!
Aquele descarado do Caio, filho da Dora!
- Caio!!! – Mariana quase engasgou – Eu
não quero namorar o Caio!
74

- E não vai mesmo! – Hugo vociferou


sacudindo-a pelos ombros – Você não se será
como sua mãe!
- Pare com isso Hugo! Mariana nem sabia
das intenções do rapaz.
Ele largou os braços da filha como se
tivesse queimado as mãos; Mariana ficou
parada chocada e profundamente magoada.
Então era isso! A mãe o traíra?
Hugo se arrependeu assim que terminou
de pronunciar a lamentável comparação e
Mary saiu correndo para o quarto deixando o
corpo sacolejar pelos soluços e por todo
desprezo que o pai deixara transparecer.
- Hugo! O que você disse? Ela não merece
isso.
Olhando pra Magda ele baixou a guarda e
soletrou num misto de arrependimento, raiva
e pena:
- Eu sei. Não pensei... não premeditei falar
algo assim até que saiu da boca. - E batendo
a porta foi para rua.
75

No outro dia sentindo a falta da amiga na


escola Cibele tocou a campainha da casa do
reitor.
Foi Mariana quem atendeu a porta. Ainda
com os olhos inchados de ter passado boa
parte da noite chorando e dos efeitos de uma
anunciada enxaqueca.
- Oi! – conseguiu dizer.
- Olá amiga! Posso entrar? E
dizendo isso já foi abrindo
passagem pela sala.
- O que aconteceu? – Perguntou
sem rodeios.
- Se você imaginasse...
- Bem. Não imagino e fiquei preocupada.
- Venha. Vamos conversar na varanda.
Mariana puxou a amiga até a varanda e
contou com detalhes todas as tribulações do
dia anterior.
Cibele ficou séria por alguns instantes e
depois disse em tom de confidência:
- Não leve tão a sério o que seu pai disse.
Ele devia estar muito bravo. Isto é. Vejo como
as pessoas gostam dele por aqui. Ele não pode
ser uma pessoa sem coração. Talvez...
76

- Talvez? – incentivou Mary


- Talvez ele ainda esteja sofrendo por sua
mãe, seja lá qual for o mistério e ele não sarou
da dor, ainda não a perdoou. É tão óbvio que
ela não morreu Mary!
- Não... morreu?
- Claro que não! Se ela tivesse morrido não
haveria porque não contar. Mesmo que ele não
gostasse dela. Mas se ela foi embora, se o
deixou... faz sentido ele nem querer ouvir falar
nela.
- Eu já havia pensado nisso, mas achei que
eram coisas da minha cabeça.
- Acho que tem boas chances de a coisa ser
assim. Perdoe-o Mary, ele deve estar sofrendo
após tantos anos. Lembre-se “Ninguém pode
dar o que não tem”.
- Mas..., mas... Não é justo! Você não vê?
Eu não tenho culpa de tudo isso!
- Eu sei. Com certeza seu pai também sabe.
Você precisa é arrumar de fato um namorado.
Que tal Ralph?
- Esqueça! Não quero meu pai abduzindo o
único amigo que sobrou daquela turma!
77

- Ótimo! Consegui tirar um sorriso de você.


Era tudo o que eu queria! Mas estou falando
sério sobre Ralph. Ele é tão... tão...
- Tão???
- Bonito, educado, charmoso, já tem
emprego, é bem-humorado e...
- Já chega Cibele! Esse Ralph Eduardo é
pra você! E não adianta negar. Eu sei que você
gosta dele.
- Gostar é muito forte. Admirar talvez.
- Sei! – Mary comentou sarcasticamente e
piscando um olho disse:
- Já sei o que vai me ocupar. Serei o cupido
de vocês!
...............................................................
.

Dois dias após ter ofendido a filha, Hugo


finalmente desculpou-se e tentou conversar.
- Eu estou errado em ofender você, mas
realmente fiquei muito preocupado de você
estar de namorico às escondidas e de não
poder confiar mais em você depois de ter te
dado liberdade.
78

- Pai, eu não traí sua confiança. Eu não


sabia se quer das intenções do Caio!
- É. Eu averiguei. Por isso peço que me
perdoe. E quanto ao que eu disse... Quanto à
sua mãe, eu não quero falar dela. Me perdoe,
mas não consigo falar sobre isso.
- Ela foi embora? – Mariana perguntou
antes que perdesse a coragem.
- É uma longa e dolorosa história que você
um dia saberá, mas não hoje! E de fato, não
sei se te fará algum bem.
- Eu... eu quero muito saber,
pai. – Mary choramingou.
- Um dia Mary... um dia. – e
dizendo isso Hugo abraçou-a e
pela primeira vez chorou na frente de Mary.
A partir dessa misteriosa conversa, o
relacionamento entre pai e filha melhorou
consideravelmente a ponto de Mary testá-lo
dizendo estar interessada no irmão de Cibele.
Hugo não deu muita trela ao fato, pois,
conjecturou que se ela estivesse mesmo
interessada não contaria ao pai. Kátia
finalmente ficou noiva de Berg e a data do
casamento foi marcada. Mary passava as
79

férias e alguns fins de semana ainda na


companhia da Tia que tanto gostava e assim
os dias voaram!
Mariana teve muito êxito como cupido. O
namoro entre Cibele e Ralph aconteceu sem
muito esforço. Parecia que só precisavam de
um pequeno incentivo. Mary ficara muito feliz
pelos dois amigos, apenas que agora ficou um
pouco de lado, pois, não tinha graça sair com
os namorados. Ficava sem jeito e sobrando e
em uma das vezes que foram ao cinema ela
deu de cara com David e Ana Carolina. Então
decidiu que não mais sairia com casais de
namorados, e dedicou-se a estudar, ler e
sonhar!

E o tempo passou...

O Noivado

No decorrer daquele ano David já havia se


instalado na cidade vizinha para frequentar a
faculdade. Dois longos anos estenderam-se e
devido ao súbito adoecimento da mãe, David
voltou para Vila Califórnia. Trancou a
80

matrícula. A meiga senhora fora seriamente


acometida de uma insuficiência renal.
David Logo empregou-se no banco
“Estrelinhas”.
Ana Carolina não parecia a jovem, mais
apaixonada do mundo e David também não
demostrava morrer de amores pela futura
noiva.
Mariana cursava o técnico em
Informática, e Lucas chegando ao ensino
fundamental.
David ia dar a maior festa de noivado que
já houvera em Vila Califórnia. A querida
madrasta junto com Dona Rosângela estava
organizando tudo, o Buffet, decoração,
convites, etc.
E Mary já estava dois meses sem ver
Ralph e Cibele, porque estava servindo de
babá enquanto Magda ajudava a acabar com
seu único sonho: David.
Em noites como aquela que antecederam
o evento Mariana procurava ocupar-se em
ouvir as histórias de Lucas e suas peripécias
na escola. Ele narrava tal qual um locutor de
rádio e ela prestava atenção por dois motivos:
81

primeiro para não o ofender e segundo porque


precisava preencher a mente. Lucas fazia um
tamanho esforço para contar seu orgulhoso
avanço com o “jogo de xadrez” e “adivinha
qual é a palavra”, vez ou outra sua face
corava.
- Vamos Mary você não está prestando
atenção.
- Estou sim, a palavra era melancia.
- Não era não.
Resmungou insatisfeito.
- Você fica aí distraída, aposto que
pensando naquele bobalhão. Eu escuto você
chorar de noite.
Como ele podia escutar se ela chorava
baixinho? E como sabia que o motivo era o
David? Talvez ela estivesse sendo mais
transparente do que gostaria. Mary
continuava indo as sessões com a psicóloga, e
as conversas estavam ajudando bastante,
mas não podiam aliviar o sentimento de perda
que afundava sua alma num mar revolto e
impetuoso.
Foi deitar-se cedo. Disse ao pai que estava
com dor de cabeça, o que em parte era
82

verdade. Hugo ficou penalizado. Todos


sabiam que David tinha um grande valor na
vida de Mary. Mas ele não comentou nada,
apenas pôs as mãos sobre a filha e a abençoou
dando um beijo de boa noite. Assim a noite
passou muito rapidamente.
Ela se recusou a acordar naquela manhã
de sábado. Manteve os olhos fechados, o sol
brilhava alto, mas ela desejava uma densa
tempestade.
Do outro lado uma mistura de festa de
aniversário com debutante. Não parecia em
nada um noivado. Não que gente simples
fosse brega, não mesmo.
Antes estes fossem simples! A situação já
era cômica o suficiente.
......................
David ficou um quarto de hora vigiando o
lago. O lago onde pescava quando menino, o
mesmo que convivia com as travessuras de
Mary, o mesmo onde a beijou! E por que
exatamente hoje deu-lhe vontade de ficar ali
velando? No fundo ele sabia. Era uma decisão
e tanto. Não que fosse afetar mais sua vida;
há tempos um abismo se pusera entre ele e
83

Mariana. No entanto, especialmente hoje


sentia falta de conversar com ela,
compartilhar esse momento especial de sua
vida.
Atirou uma pedra no lago querendo que
afundasse com ela as lembranças e o
passado. Era hora de crescer! À moda antiga,
ficaria noivo de Ana neste dia. Só não estava
certo de estar certo.
Ana Carolina escutava a mãe desfilar
intermináveis elogios ao futuro genro e
que a filha devia ser grata por fisgar o
melhor partido da cidade. Enquanto a mãe
tagarelava, Ana Carolina ficou duvidosa.
Será que a vida era simples assim? Seu
primeiro namorado ser um
comprometimento tão sério? Do jeito que as
coisas avançavam casariam logo. Mas... E
seus ideais? E a liberdade que não conheceu?
E se esse prazer de ter David ao lado não fosse
amor? E se este era o tal "final feliz", porque
cargas d'água não se sentia feliz?!
Com amargura a princesa do momento
não queria um príncipe. Queria asas! “Deus não
é um Deus de desordem, mas de paz. (Cor. 14,33)”. – Pensou.
84

Ana tinha decidido fazer parte do grupo de


jovens de uma igreja há alguns anos. No início
porque David e a mãe dele também iam e ela
queria estar perto. As vezes ia só pra marcar
presença, não via muito sentido em ser
religiosa. Entretanto, ultimamente ela
desejava estar mais perto de Deus. Desejava
tomar as decisões certas na vida. Desejava
agradar a esse Deus invisível, misericordioso
e cheio de amor que ela ouvira falar por tanto
tempo. Orou:
“Guia-me o teu bom Espírito por toda terra plana. (Sl 143)”
..............................................................

Cordéis

Às 18h00 Hugo foi apanhar Mary no


apartamento de Katia. A tia insistiu em levá-
la ao salão de beleza. Os cachos vermelhos
ferrugem contidos num arranjo preso acima
da nuca lembravam um poodle
com laço.
- Olá!
- Oi pai.
- Sua tia te levou no petshop?
85

Hugo sacaneou de propósito, ele sabia que


a noite estava difícil para Mariana. Ele só não
imaginava quão difícil.
- Está bem professor linguiça. Aposto que
faria melhor. - Katia zombou com certo
desdém.
- Ei! é de mim que estão falando? Ainda
estou aqui, nada transparente!
- Desculpe Mary, não resisti a provocação.
- Argumentou o reitor.
- Vamos Mary, sua tia vai depois com o
doutor maluco.
. - Suma Hugo! Já! - Katia esbravejou
fingindo estar brava. – Mary leve esse
espelho na bolsa, é muito útil pra uma
moça- E dizendo isso abraçou-os e correu
para dar os últimos retoques em si
mesma.
Hugo acionou o DVD no Land Rover,
mais para distrair a filha, ela parecia muito
tensa. Talvez fosse as roupas e o penteado que
lhe davam um ar envelhecido. Um calafrio
estranho e a nítida impressão que até dentro
do carro soprava uma brisa fria.
86

- Feche as janelas Mary, vou entrar na


estrada B1, é mais rápido.
- Tudo bem, também estou sentindo frio.
Ficaram em silêncio.
Mary acionou o clipe seguinte, cantarolou
a letra da música "toma os pedaços do meu ser, torna tudo
novo..."(...).
- Não sabia que tinha essa música aí. Olha
Mary, eu...
Mas, Hugo não teve tempo pra terminar a
frase. Uma picape entrou na contramão pra
fazer uma ultrapassagem na curva. Hugo
conseguiu desviar indo de encontro com o
Guard rail. O Land Rover amassou toda a
lateral direita no impacto e capotou.
O cabelo agora era vermelho cor de

sangue. O esmalte bege


estava sendo tingido pelo sangue que escorria
da moça inanimada entre o painel e o banco.
Hugo também não se mexia.
87

Absorvida pela preocupação com Mary,


Katia não prestava atenção ao que Gil dizia.
- Kátia? Eu disse que vamos pela B1 tudo
bem?
- Oh, não sei.
- Como?
- É que é quase a mesma distância. Há
pouco trânsito. Sempre vamos por aqui mesmo,
por dentro dos bairros, não vejo necessidade...
- Psiu! O que há?
- Tem razão Gil, não sei, é que estou
sentindo uns calafrios. Vamos pela B1 é mais
rápido mesmo, mas vá devagar.
- Certo.
Gil tentou sorrir-lhe, mas ao entrar na
rodovia, viu o início de um pequeno
congestionamento na mão oposta.
- Quer que eu pegue o retorno?
- Quero. Deve ter sido algum carro
quebrado.
- Certo o retorno é mais à frente, depois da
curva.
- Eu sei. Não dá pra retornar agora?
88

- Não. Não vou arriscar.


O percurso foi lento o bastante para deixar
Kátia apreensiva.
- Vamos nos atrasar.
- Parece que é um acidente antes do
retorno. Deus! Aquele é seu carro que estava
com...
- Hugo!

Sirenes, gritos, paramédicos e soluços...


Kátia tinha ânsias, as pernas mal
sustentavam seu corpo, Gil a prendia. Os
bombeiros estavam lutando para remover os
corpos do carro.
- Senhora mantenha a calma, só vai ajudar
mantendo-se distante. Deixe os paramédicos e
os bombeiros trabalharem. Não vai ajudar
nada gritando. Seu irmão estava embriagado
quando o viu sair?
- Não senhor! Hugo é abstêmio. Me diga,
estão vivos? Eu exijo saber! Diga-me por favor!
Por favor policial!
89

Gil segurava Katia num aperto de aço. Já


vira muitas cenas deprimentes, mas jamais
esperou algo assim.
Ele mesmo não acreditava. Chocado e
desesperado precisava pensar em Kátia.
- Senhora, ambos estão respirando, é
precipitado qualquer diagnóstico agora. Tenha
fé!

No hospital...

- Doutro Gleen, as radiografias mostram


lesão de medula leve e poli traumatismo
craniano.
- Acidente? Qual a idade do
paciente?
- Dezessete anos, é uma menina. O
pai foi desviar de um maluco na curva e
bateu na proteção.
- E o pai, como está?
- Um pouco mais
complicado, está em coma.
- Paciente terminal?
- É possível, uma hemorragia interna já
está sobre controle, mas há outras
90

complicações nos órgãos, o paciente continua


desacordado.
- E a menina?
- Com dores, está medicada, estado de
choque talvez. Há um relato de alucinações no
plantão noturno.
- Hum...Quero acompanhar este caso de
perto.
Dr. Gleen de cenho franzido captava as
informações do médico residente no Hospital
Geral, para onde as vítimas do acidente foram
levadas há dois dias.
- Quarto 304, Doutor. Leito 2.
- Paciente Mariana Beatriz Kylle?
A figura assombrada com o corpo disposto
sobre o leito, apenas olhou o médico, não
respondeu nada.
- Meu nome é Dr. Gleen, estou
acompanhando seu caso. Vai precisar de um
tempo para se adaptar, quando mais rápido
aceitar sua condição, melhor. Você voltará a
andar com o tempo, com um pouco de
paciência. É necessário seguir as orientações e
o repouso absoluto à risca.
91

O médico procurou algum sinal de


protesto ou qualquer reação. Mas nada, a
moça só o olhava vez ou outra, não sabia ao
certo se ela o estava ouvindo. Os cabelos
longos emaranhados e os grandes olhos
violeta abertos pintavam uma moldura
mórbida.
- Você entendeu tudo que lhe expliquei?
Mariana sussurrou um "sim" penoso,
quase como um murmúrio.
- Está bem. Todos os dias a esta mesma
hora estarei passando para acompanhar seus
progressos.
Intrigado Dr. Gleen saiu do 304. Pobre
moça. Certamente estivera depressiva.
92

Um tenebroso segredo

Assim também a língua é um pequeno membro, e gloria-se


de grandes coisas. Vede quão grande bosque um pequeno fogo
incendeia... Tiago 3:5,6 ACF.

...Foi correndo os
olhos pelo salão.
Homens da terceira
idade com moças
seminuas a tiracolo. Observando um casal
mais próximo, Mariana pôde vislumbrar o
brilho da aliança no dedo do grisalho. A moça
era somente a acompanhante. Seu estômago
revirou. Um grupo misto de jovens, senhoras
e homens tragavam canabis sem nenhuma
cerimônia.
Raparigas se insinuavam aos homens que
entravam na boate, estando acompanhados
ou não.
93

O garçom trouxe a menta. Ela olhou para


o copo. Mal respirava. Sem saber por onde
começar ficou ali, com a bebida no balcão
sem tocá-la. E sem fixar os olhos em
nenhuma cena por mais de dez
segundos. Não queria encrenca. Já tinha
o bastante.
Passado um certo tempo o barman vendo
que ela não tocava na bebida, interrogou-a.
- Está esperando alguém?
- Sim, estou.

Os olhos do homem com malícia


percorreram o corpo de Mariana de cima a
baixo.
- E por quem espera?
- Pâmela!
O barman encarou-a, agora curioso e
surpreso.
- Pâmela? E ela sabe?
- Com certeza. Faz muito tempo que não
nos vemos. - Ao menos isso era verdade,
meditou com sarcasmo.
- Vou ver se posso ajudá-la.
- Não precisa, obrigada.
94

- Olhe garota. Não sou idiota. Você não


sabe nem onde está. Dá pra ver na sua cara
inútil. Nem sequer beber você sabe. Ou diz o
que quer logo ou sai agora! Repentinamente a
fúria sem causa do garçom, causou um medo
que Mariana precisou conter.
- E.. Ela é...
Neste momento rindo alto. Vestida com
um microvestido tomara que caia reluzente,
uma mulher aparentando meia-
idade, alta, cabelos
escandalosamente compridos e
olhos azuis; saiu de um
compartimento da boate de braços
com um senhor elegante dono de um
olhar malicioso que aparentava uns
sessenta anos. O barman deu um leve
assovio, imitando um bem-te-vi e
imediatamente a mulher olhou em direção a
Mariana.
Mariana que acompanhou o olhar do
cretino atrás do balcão, ficou imóvel diante do
olhar daquela mulher... Lembrou-se... Os
olhos... São estes olhos! Involuntariamente
gritou - É ela!
95

O barman num salto quase leve como


uma dança, cobriu por cima do balcão e
agarrou Mary pelo braço.
- O que quer com ela, piranha?
- Essa mulher é minha mãe!
A voz saiu mais alto do que uma cantora
de ópera conseguiria emitir.
A mulher deu um falso sorriso, fez um
sinal com cabeça. O barman arrastou Mary
para os fundos da boate.
-Você precisa de uma lição!
Mary tremia, as lágrimas corriam, o pavor
cobria seu rosto e seu corpo.
O homem apertou seus braços, queria
assustá-la. Mariana continuava imóvel, quase
sem respirar, em estado de choque. Um
vislumbre de virtude passou pelos olhos do
homem, tão rápido quanto seu caráter
canalha apareceu, quando levantou o rosto de
Mary, um temor brilhou no seu olhar na
intenção de zombar dela vislumbrou seus
olhos e sua face e constatou:
- Você é mesmo filha dela!
Tirou as mãos de Mary, que caiu ao chão
sem poder suster-se mais, nem o corpo, nem
96

a mente. O boa-noite-cinderela fez efeito.


Mariana desmaiou.
...........................................

O corpo coçando e formigando, um cheiro


horrível de bebida e cigarro foram os odores
que Mariana identificou, quando despertou
muitas horas depois de estar na Boate Dama
na Rua Augusta. Abriu os olhos e viu-se num
cômodo sujo. Tentou levantar a cabeça, quase
explodiu de dor. Seu corpo todo doía. Dava
pra ver um sofá vermelho de courvin, com
almofadas soltas e vários pufs jogados no
chão. Cinzeiros lotados de bitucas e algo mais
que Mariana nunca vira na vida.
Desejou estar morta! Fechou os olhos com
medo, nem sequer sabia onde estava, nem o
que tinham feito com ela. Depois de um
quarto de hora, havendo ainda silêncio, teve
certeza de estar sozinha. Depois de algumas
tentativas, conseguiu sentar na cama suja.
Ainda estava com a calça legue que saíra
naquela noite, uma mini veste turquesa e o
97

sobretudo sujo e rasgado estava jogado no


chão.
Gritou, gritou muito, ninguém ouviu.
Andou até uma janela com cadeado e grade.
Percebeu estar no segundo andar de
algum prédio vagabundo. Embaixo carros
passavam alheios a tudo. Reconheceu a
avenida. Estava na Rua Augusta, no centro de
São Paulo e sem esperança de retornar.
Num acesso de raiva quebrou os copos
imundos que encontrou jogados numa pia
minúscula. Tentou cortar os pulsos. Não teve
coragem. Sem mais nada a perder, largou-se
no meio daquela bagunça e esperou que um
carrasco entrasse e por fim terminasse com
aquela agonia.
Pensando ser uma esperança vã,
vasculhou o cubículo em busca da bolsa.
Para sua completa surpresa, a bolsa
estava em baixo da cama, bem encoberta por
sapatos, como se alguém tivesse deixado ali
para somente ela achar. Vasculhou a bolsa,
tudo estava lá. Até o celular com vinte
mensagens de David e doze de Tia Kátia.
Ambos desesperados. A memória do celular
98

estava cheia, talvez por isso não chegou mais


mensagens. Tinha deixado no vibra-call. Nem
contou o número de chamadas perdidas.
Eram duas da madrugada. Mary desistiu de
ligar. Pra que pediria ajuda? Já não valia a
pena voltar. Davíd estava perdido pra ela,
perdido para sempre. Não sabia o que fazer.
Arrancou uma mecha de cabelos com as
mãos. O desespero era sua companhia.
Estava morta da pior forma. Estava morta
respirando. Uma esperança utópica de voltar
ao passado ou a outra vida. Talvez ela fosse
pra casa um dia antes de ter partido, ou
acordaria na casa de Tia Kátia um dia antes
do acidente na Rodovia.
Nada. Só o vazio. Anoitecia. O barulho de
uma chave virando a maçaneta a fez pensar
rápido. Jogou a bolsa de volta embaixo da
cama e jogou-se de pernas cruzadas no chão
sujo.
Uma mulher entrou, não parecia cansada.
A maquiagem ainda estava impecável. O rosto
não condizia com o resto do corpo. Apesar de
tudo a mulher tinha um rosto sereno. Os
olhos flamejantes e ardentes. A boca sorria
99

com escarnio olhando pra Mariana.


Entretanto havia uma tristeza de alma que
chegava aos olhos. Mariana sentia raiva e
pânico. Queria perguntar o quanto a
drogaram, e o que aconteceu depois. Mas não
queria ouvir. Queria perguntar se a mulher a
deixaria ir embora. Mas também não teve
coragem. Quando a mulher falou
Mariana percebeu que ela estava
um pouco embriagada, sentou-
se na cama. Foi a mulher que
perguntou.
- O que você sabe sobre sua
mãe?
Mariana levantou o rosto banhado de
suor. E embora a fraqueza mal permitia que
se movesse, ela tentou articular as palavras.
- Disseram primeiro que minha mãe havia
morrido. Mas depois que eu cresci compreendi
que essa versão estava errada, que havia algo
mais, então insisti, até que me contaram que
você foi embora, que abandonou Hugo e fugiu.
- Então foi essa estória bonita que
contaram pra você?
100

A mulher gargalhou – Quer saber a


verdade?
- Sim. – Mariana sustentava o olhar
furioso da mulher. – Diga-me por favor, por
que me deixou.
Por uma fração de segundos o rosto da
mulher ficou lívido. Parecia que ela ia desabar
em lágrimas, porém depois de alguns
segundos respirou fundo e iniciou. – Vou lhe
contar:
- Hugo não teve filho com a primeira
esposa, o casamento tinha apenas seis meses.
Casamento conveniente para as famílias. O
divórcio foi consensual. Bem... Hugo dava
aulas na Universidade Federal, eu ia ficando
entediada. Depois de quase um mês que
oficializamos o casamento eu descobri estar
grávida.
Mary teve uma ânsia que não deu pra
disfarçar.
-É, grávida de você!
- Eu ...preciso saber se...
Ela não conseguiu terminar a frase, mal
conseguiu chegar a pia suja e vomitou.
101

- Calma garota, você quer ouvir ou não.


Ainda nem comecei.
Mary recompôs-se:
- Prossiga, por...favor.
Como aquele monstro à sua frente poderia
ser sua mãe? No fundo ela tinha esperança
que não fosse. Que fosse só um terrível
engano. Aquela mulher decadente e sem
futuro, era a mãe que ela julgou ser um anjo
doce e terno? Guardou por toda a vida a
imagem...Já não importava mais. Nada mais
era real!
- Antes quero deixar claro, (o semblante da
mulher estava de novo sombrio e
inexpressivo, se fosse de carne e osso poderia
até estar sofrendo de fato) na outra noite, eu
não pude impedir o que aconteceu. Eu... estava
com um dos meus principais clientes como você
viu. Tony disse que você desmaiou e em
seguida uma gangue chegou gritando que a
garota que roubou o pacotinho de coca, tinha
corrido para o fundo. Tony tentou defendê-la,
mas, nem ele te conhecia. Seguraram ele. Se
Arthur não tivesse chegado a tempo, teriam
matado você por espancamento.
102

O estomago revirou, começou a suar frio,


Mariana sentiu tanto nojo e desta vez não
conseguiu chegar a pia. Vomitou sem parar.
Ficou tão fraca que se estirou no chão,
esperando que a mulher a esbofeteasse ou
começasse a praguejar.
Pâmela levantou-se ascendeu um
cigarro, abriu a porta e sentou-se na escada
de costas para Mariana por um longo tempo
houve silêncio. O único sinal de vida naquele
cenário era fumaça do cigarro. Depois, ela
pegou uma toalha de rosto encharcou com
água. Foi até Mary que jazia tremendo com os
olhos fechados e ajoelhando-se no chão junto
dela, passou a toalha molhada, nos lábios e
no rosto de Mariana. A voz saindo num
murmúrio como se também sentisse a dor da
garota.
- Eu sinto muito. Sinto mesmo. – E
tomando fôlego prosseguiu o relato. - Eu tive
um caso com um homem de quem eu gostava
muito, Joseph, ele tem um filho mais velho que
você, chama-se David, a mulher dele não tinha
boa saúde, mas era questão de tempo até seu
pai saber. Eu odiava seu pai, o traía com
103

qualquer um. Deixava você com a babá ou com


a vizinha. No começo tudo ia bem. Eu tentei ser
feliz, ter um lar mesmo. Hugo tinha dinheiro.
Mas sempre tinha reuniões na secretaria da
educação e quantas mais pudesse inventar. Eu
arrumei umas amigas e comecei a ir em bares,
bailes, eu ainda era muito jovem. Era mais
jovem do que você é hoje, compreende? Meu
irmão, Douglas vivia lá em casa, ele tinha um
casinho com a babá, não achei que tinha
nenhuma maldade. Você era um bebe de pouco
mais de um ano...
Mariana gemeu alto.
- Tenho que contar de uma vez, se não
nunca conseguirei contar, não se mexa,
apenas ouça! Seu pai apareceu em casa sem
avisar numa tarde em que normalmente ele
estaria dando aula. Eu tinha ido jogar boliche.
A babá não apareceu, Douglas disse que
tomaria conta de você. Eu nem pestanejei, saí
e deixa-a dormindo. Quando Hugo entrou no
quarto, Douglas estava tentando dar cerveja
pra você. Douglas tinha cheirado um pouco, era
normal, ele usava erva, e cocaína era
novidade. Hugo gritou com ele, mandou ele
104

largar você. Ele atirou-a no berço. Hugo não se


conteve e o atacou. Douglas disse que ia se
vingar ali mesmo, foi em direção ao berço e a
pegou como um trapo velho ia jogá-la na
parede. Hugo conseguiu impedir, mas para
isso usou um abajur. Douglas caiu e bateu a
cabeça com força. Teve traumatismo. Ficou
internado por um mês, então se recuperou e
voltou para as drogas. Teve uma overdose e
faleceu. Depois disso, sabíamos que era o fim,
mas, eu não ia levá-la comigo. Eu não podia.
Por sua causa, nada deu certo, meu
casamento, meu irmão, o amor de Hugo por
mim. Ainda fingimos estar juntos por um ano.
Quando declarei que estava indo embora com
o melhor amigo dele, Hugo não demostrou
nenhuma surpresa, só desprezo. Então eu fugi
com um homem casado, acreditando que
estaria deixando pra trás toda maldição.
Mariana não podia mexer-se, parecia
que estava em estado de torpor. A única
lembrança da mãe vinha à sua frente nítida
como água cristalina.
A rua estreita e bem ladeada. Um carro
preto esperando, a mãe correndo com a bolsa
105

na mão, sentou-se no banco do passageiro.


Chorando muito jogou um beijo e disse “te amo
pequena, perdoe-me”! A criança tentou correr
até o carro, o pai saiu da casa correndo, deu
duas palmadinhas leves. Colocou-a no colo e a
levou para o interior da casa. A criança
estendia os bracinhos em direção ao carro em
movimento, protestando o que parecia dizer
"mamãe". E... ela se foi. O pai também estava
chorando.

Mariana adormeceu ali mesmo no chão.


Não conseguia lutar, queria morrer, estava
fraca e maltrapilha de alma e corpo. Beirando
as 4h00 da manhã, Mary mexeu-se, percebeu
estar deitada na cama, limpa e com outras
roupas, cambaleou até o banheiro. Calculou
que estava sozinha novamente. Molhou o
rosto. Seu corpo ainda doía.
Atrás dela uma voz familiar.
- Então você sobreviveu. - Virou se
abruptamente.
- Quanto tempo eu apaguei? Me drogaram
novamente?
106

- Não. Não droguei você. Você só apagou


algumas horas.
- Certo.
Ainda quer respostas Mariana?
- Quero. Foi por isso que vim destruir
tudo de bom que eu ainda tinha.
- Sem ironias. Prossiga com o
interrogatório. Amanhã quero você longe daqui!
Sentaram-se na cama. Mary percebeu
que mesmo com a pouca iluminação de um
velho abajur, o cômodo estava limpo. Como se
passado por uma faxina instantânea. Mesmo
assim, sentia nojo de tudo, do lugar, da mãe,
de si mesma.
- Você fugiu com o pai de David. Por que
não se casou com ele. Por que preferiu viver da
prostituição noturna?
- Eu devia esbofeteá-la, mas não estou
com ânimo pra isso. - (A mulher riu, um riso
malicioso e cheio de sarcasmo). - Joseph não
tinha dinheiro. Conseguiu um trabalho como
bancário, alugamos um cômodo em Santo
Amaro. Ele reclamava que o emprego era longe
e sempre chegava mais tarde. Isso eu já
conhecia. Perdi o encanto. Havia outra mulher.
107

Ele morreu ironicamente num acidente de moto


na garupa dela. A garota tinha a minha idade.
Fiquei só. Tive alguma ajuda de vizinhos, que
até me arrastaram para cultos eclesiásticos.
Mas minha revolta era muito grande. Meu ódio
da vida e de mim mesma. Conhecia Lavínia,
uma garota que trabalhava na Boate Dama e
que estava sempre vestida com roupas caras e
homens de carrão paravam na sua porta. Ela
me convidou e eu vim. Me identifiquei com a
boate desde a primeira noite. O casal que me
levou pra igreja ainda insistiu que não era um
bom caminho, mas eu me mudei pra cá e nunca
mais os vi. Sabe “queridinha”, eles tinham
razão, não era um bom caminho, mas era uma
opção. Com um filho bebê e sendo viúva, essa
foi minha saída. Talvez uma saída fácil, mas
foi a minha saída. Deve ter se perguntado
porque criei Arthur e não o dei para adoção?
Fiquei com ele para deixar de sentir-me
culpada por abandonar você e hoje ele me é
muito útil.
Duas batidas secas na porta
interromperam o diálogo.
- Entre.
108

O rapaz entrou sem cerimônia. Alto,


encorpado, cabelos castanhos, olhos azuis
como os de Pâmela. O semblante era todo de
David. Então Mary, caiu em si. A semelhança!
Arthur e David eram irmãos. Num impulso
quase insano ela correu até o rapaz e
dependurou-se ao pescoço dele num abraço
desesperado. O rapaz retribuiu sem timidez
alguma. Mary desabou, não aguentava mais.
Quando enfim ele afastou-a,
olhou-a bem nos olhos. Ele
também chorava, sem dizer uma
palavra conduziu-a até o lado de
Pâmela.
- Então vejo que ao menos a vida deu a
vocês um ao outro. Mariana e Arthur, são
irmãos!
- Não posso ir, sem esclarecer tudo. -
Mariana despejou juntando as últimas forças.
- Aproveite, estou boazinha hoje!
- Arthur é irmão de David?
- Claro! É tão óbvio.
- E, David é meu irmão?
- Como?
109

A mulher pareceu não entender a


pergunta.
-Ah! Agora entendi, então por isso veio me
procurar...Você pensou que...Claro que pensou!
Todos pensam! Pensam que você era filha de
Joseph?
- A... acho que sim.
Mariana gaguejou involuntariamente
voltando a tremer, o suor frio descia de seu
rosto. Arthur segurou suas mãos com
carinho. Como podia ele ser filho de Pâmela?
Como poderia ter sido criado em meio à
prostituição e drogas e ainda assim ser tão
carinhoso, compassivo, paternal?
- Pois, veio atoa. Perdeu tempo! Você é
filha de Hugo. Conheci Joseph bem depois,
através do próprio Hugo. Eram amigos. Volte e
diga ao seu pai covarde que ele poderia ter
feito simplesmente um teste de DNA.
- Não é tão simples assim. Ele não queria
me magoar, muito embora, fez isso a vida toda.
- Ainda o defende? Ele mentiu pra você a
vida toda, fazendo a crer que eu estava morta.
Eu ao menos fui embora. Odeio, seu pai, aquele
crápula!
110

- Não fale desse jeito dele!


O grito foi seguido por abraço de ferro.
Arthur prendeu-a quando Mary tentou
esbofetear a mulher.
- Estúpida! Vá embora, antes que eu me
arrependa de tê-la socorrido.
-Vou, é claro, mas escute você. Hugo está
morto! E por minha causa!
- O que? Você... Hugo está morto?
- Vai me escutar? É minha vez de
confessar os pecados. – Os olhos de Mariana
faiscavam, rajadas de lágrimas escorriam, ela
era toda feita de dor.
A mulher sentou no puf
do quarto abafado, pareceu
desabar sinceramente, fitou
Mary incrédula. Ela tremia.
Sua respiração tornou-se
ofegante. Ordenou:
-Não a deixa sair daqui Arthur até que eu
mande. - E dirigindo-se a Mariana - Comece!
Sou toda ouvidos.
“Há três anos. David ia ficar noivo de
outra moça. Hugo nunca tinha demonstrado
tanto carinho e preocupação, mas naquele dia
111

especialmente ele estava sinceramente


sensível a meu estado de espírito. Conversou
com Tia Kátia e decidiram me animar.
Levaram-me a um salão de beleza, pra que eu
me distraísse um pouco e esquece o drama.
Magda era a organizadora da festa. Naquela
manhã quando cheguei à cozinha, Lucas já
estava acordado. Ao ver-me pulou e foi
gritando entusiasmado: "Papai falou que você
vai a um salão de cabelereiro, que você vai
ficar muito mais bonita que Ana Carolina!". Eu
fitei-o incrédula e indignada. "É verdade pai?".
Ele disse: “Acho que mesmo você tendo a vida
toda para fazer outra escolha, quem sabe deve
mostrar ao David que ele poderia esperar mais
uns dois anos, quem sabe...". Mas dava pra
perceber que ele preferiria que David jamais
esperasse e na época eu não entendia o
porquê. Depois entendi. Eu disse a ele que
não precisava de subterfúgios, que meu mal
gênio já era suficiente. Ele apenas riu. Nunca
tínhamos conversado assim, eu detestava
vestidos, maquiagem, etc. E aquilo me
amaciou bastante. O fato dele ter notado
meus sentimentos em relação ao David que
112

eram desde sempre. "Kátia quer levá-la, acho


que vai fazer bem”. “O senhor tem certeza?”.
Rimos. Ele nunca sorria com tanta
complacência. "Bem se David não mudar de
ideia, ao menos não tenho que matar um rapaz
que vai querer casar-se com minha filha
adolescente. Vou correr o risco." Ele piscou, e
meus olhos encheram-se de lágrimas, talvez
ele tenha pensado que era pelo noivado de
David, mas naquele momento era porque
percebi que tinha um pai que se importava.
Ao cair da noite ele foi buscar-me no
apartamento de tia Kátia. Estávamos um
pouco atrasados para a festa, por isso ele
resolveu pegar a Rodovia B1. Numa curva uma
picape veio na contramão e colidimos. Hugo
ficou em coma por quase um mês. Eu tive poli
traumatismo, e uma lesão na medula. No dia
que ele acordou eu ainda estava internada. Ele
pediu pra ver-me. Levaram-me numa cadeira
de rodas. Ele estava diferente, cansado,
inchado, uma fisionomia abstrata e
desconhecida. Segurei uma mão dele e comei a
lacrimejar. Ele balbuciou um "desculpe" e
depois disse-me que tinha algo muito sério que
113

não podia mais esconder de mim. De alguma


maneira eu não queria saber. E foi isso que me
pus a gritar:
“Eu não quero saber! Não quero ouvir”.
Os enfermeiros tentaram me acalmar. Hugo
insistiu...
“Prometa-me que vai ouvir, Mary é
importante”.
“Prometa-me uma coisa então pai”.
“O que?”
Ele perguntou num esforço sobre-
humano.
“Prometa-me que vai cumprir essa
promessa, que não vai quebrar, como quebrou
todas que me fez. Prometa-me que não vai
morrer!”
Papai começou a tossir, apertou minha
mão. “Mary, preciso contar-lhe querida...”
“Não, não quero ouvir, Hugo Kylle! Cale a
boca! Não quero ouvir suas promessas
quebradas!”
Eu senti tanta revolta, tanto medo dele
ir-se. Os aparelhos monitorados começaram a
apitar. Gritei:
“Por favor, por favor, não me deixe!”
114

Os enfermeiros me tiraram do quarto,


médicos atravessaram as portas às pressas.
No fundo eu já sabia.
Tia Kátia estava à minha espera no
corredor. Dr. Gil Berg, ameaçou-a: “Aproveite
a oportunidade, conte a ela!” Ela só meneou a
cabeça e abraçou-me. Choramos por um
longo tempo.
Quando tive alta, ela já estava com
minha guarda definitiva. Fez de tudo para
tornar minha vida melhor, mas ela mesma
estava sem brilho. Tia Kátia estava apagada.
Eu vivia quieta no quarto, não saia, não queria
falar, eu era só revolta e dor. Cheguei a pensar
que o Dr. Gil, marido de Kátia, não gostava de
mim, mas foi o modo dele não me deixar morrer
de depressão. Um dia ele perdeu a paciência.
“Mary, vamos jantar fora”.
“Não vou a lugar algum”.
“Você vai!” - Dr. Gil ordenou erguendo
o sobrolho. “Quem vai obrigar-me?”
“Você está precisando é de uns bons
tapas!”
115

“Não vou a lugar algum, porque não me


deixam morrer em paz? Que merda! Me
esqueçam!”
Ele avançou um passo à minha frente.
Deu um tapa no meu rosto. “Escute aqui sua
hipocritazinha! Seu pai se foi e nada pode
trazê-lo de volta. Eu não tenho culpa, Kátia não
tem culpa e nem você tem culpa! É um milagre
você poder andar normalmente. Seu irmão
Lucas está fazendo terapia porque acha que é
culpa dele você ter sofrido o acidente. A ideia
do salão de cabelereiro foi dele. Você é tão
egoísta que só pensa na sua dor. Não vê o
quanto Kátia está sofrendo também? Ela
perdeu o irmão e a sobrinha que ama está
fazendo um inferno da vida dela!”
Foi como um chacoalhão no cérebro.
Embora enquanto falava, ele apertava meus
braços e seus olhos estão vivos de indignação.
Tia Kátia encostou a tez na parede fria,
parecia uma mulher sem esperança. Ela
fechou os olhos e aquilo me perturbou. De
repente eu desabei em um pranto alto.
Doutor Gil sentou-se a meu lado, pôs minha
cabeça em seu ombro e afagou meu cabelo
116

encaracolado. “Sei que dói Mary, mas já


passou da hora de reagir. Você sabe que tem
que lutar”.
Tia Kátia sentou do outro lado, Gil ficou
no meio. Ela recostou a cabeça no ombro livre
do marido, esticou a mão e apertou a minha
mão livre. Mais uma vez choramos. Nós três
choramos e choramos, e depois dali a vida
seguiu.
Naquela noite no restaurante do centro, eu
vi David pela primeira vez depois do acidente.
Eu não sabia que ele e Ana haviam
desmanchado o compromisso. Não houve
noivado. David voltou a morar na cidade
porque sua mãe estava com câncer e isso nos
aproximou. Demos vazão então ao amor que
tínhamos desde a infância. Depois que
decidimos casar eu tinha pesadelos e também
sempre sonhava com você, Pâmela.
- Comigo? Você casou-se então com ele?
- Não. Mas quanto a você, eu sempre via
seus olhos num anjo que me perseguia e
matava o noivo, ou o ministro da igreja nas
minhas bodas. Quando Tia Kátia me contou
que meu pai tinha dúvidas sobre meu
117

parentesco com David e que ele nunca quis


fazer o teste, e era o que ia me dizer no dia que
faleceu... Eu não tive escolha. Tive que vir. Não
contei a David, deixei por conta dela.
- Bom agora você pode voltar e contar
que não são irmãos.
- Você nunca entenderia. Não posso
voltar. Parece que não era pra ser, tudo era um
aviso, só eu não entendia. Lucas, Hugo, a mãe
de David, Ana Carolina, Você, o quanto podem
ter me machucado ontem... Eu não sei o que
aconteceu comigo lá na boate, nem você sabe
ao certo. Não tenho mais pra onde voltar.
Minha vida acabou na noite em que vim
procurar você! Nunca terei David, veja temos
um irmão em comum. Eu queria não ter
nascido...
- Foi tudo muito rápido, não tocaram em
você, além da pancadaria, é claro. Arthur e os
seguranças foram rápidos senão você teria
morrido. Entendo que está sob choque e é
assustador, e você pode estar fantasiando algo
terrível. David e você não tem o mesmo pai! Já
não basta todo esse lixo que envolve sua vida?
118

Por que acha que foi responsável pela morte de


Hugo?
- Porque ele teve um infarto fulminante
depois de tentar falar comigo.
- Como você é egocêntrica! Até eu sei que
ele não resistiria. Por que acha que permitiram
transportar você numa cadeira de rodas, ao
quarto de um homem que acabou de acordar
de um coma? Acorda! Não existem fadas, nem
príncipes! Volte! Eu ... não quero você aqui.
- Eu nunca pensei em ficar aqui!
- Será Mariana? Você é tão crédula.
Aposto que queria o colinho da mamãe. Eu não
tenho nada a oferecer pra você! Veja, Arthur
cresceu neste meio, sabendo o que faço, hoje
eu apenas “gerencio” as meninas, mas, meu
filho tem um emprego descente num escritório
de advocacia. Ele passa por lá pra ver se está
tudo bem comigo. É respeitado e admirado. Um
rapaz de presença marcante como pode ver.
Arthur faz faculdade e terá um futuro diferente
do meu. Deixei você lá, você teve toda sorte de
crescer no meio de hipócritas com certo conforto
social e nome. Parece que quer mais. Quer ser
uma prostituta?
119

- Monstro! Eu nunca tive mãe. Deixe-me ir.


Arthur tentou segurá-la. Pâmela fez sinal
pra deixa-la ir. Havia uma súplica muda no
rosto severo e atraente de Arthur.
- A porta está aberta. Eu não devia
preocupar-me, mas é madrugada, na cidade
que não dorme. Ao menos deixe Arthur levá-la
até um taxi ou rodoviária, espere por Kátia.
Ligue pra ela. Se você morrer, vão culpar-me
por isso também.
- Não preciso da ajuda de vocês. Cheguei
sozinha, volto sozinha.
Antes fosse verdade, Mariana voltaria
com marcas, mais profundas que o abismo. A
jovem saiu correndo, desceu as escadas e por
algum motivo Arthur não a seguiu. Ficou
parado também sofrendo, também surpreso.
Ganhou uma irmã e a perdeu em poucas
horas. Queria ter a oportunidade de viver em
família. Queria ter tido a chance da inocência
e da decência, mas a vida não lhe permitiu.
Tinha amadurecido em meio ao caos.
Aparentava muito mais idade do que tinha.
Não odiava a mãe, sentia pena dela e estava
disposto a tirá-la da promiscuidade, mas no
120

fundo sabia que ela se acomodara nessa vida


e só conseguia sentir, porque ele não queria
mais pisar naquele lugar. Tudo que ele queria
era se apegar no salvador que lhe
apresentaram há duas noites atrás, quando
na volta da faculdade um grupo distribuía
marmitas para os moradores de rua embaixo
dos viadutos. Arthur caminhava sereno e
observou. Um homem de meia-idade
aproximou-se dele e entregou-lhe um folheto.
O homem começou a conversar sem pressa,
como se não fosse madrugada na rua, falaram
de políticas públicas e outros assuntos
abrangentes quando inesperadamente o
homem perguntou se podia orar por Arthur ali
mesmo na rua. Arthur não se sentiu à
vontade para negar. O homem estava sendo
tão simpático... Quando terminou a oração o
homem lhe disse como se o conhecesse a vida
toda “Meu amigo, você entrará numa grande
batalha hoje. Sua vida estará por um fio. Mas
não tenha medo, Deus estará com você e toda
sua vida mudará e terá as respostas que está
procurando”. Então o homem apertou as mãos
de Arthur e o grupo se foi. O folheto queimava
121

no bolso da camisa. Arthur leu no caminho


para a boate no dia em que Mariana apareceu:
“Saiba que você é único e amado de maneira
especial: Deus amou o mundo de tal maneira
que deu seu único filho para que todo aquele
que nele crê não pereça, mas tenha avida
eterna. (João 3;16)”. Foi ali, no meio de toda a
obscuridade que o amor de Jesus na cruz
atingiu o peito de Arthur dando-lhe
esperança!

Uma Cristina na vida

O desespero fê-la andar a esmo,


caminhou sem forças e sem medo, se
morresse àquela altura seria uma benção, um
assalto ou um carro desgovernado... Tanto
fazia.
Em algum lugar próximo ao hospital
Brigadeiro, um viaduto pouco movimentado
pelo adiantado da hora, viu o trânsito e
arriscou. Quem sabe este sedan me faz um
favor...
122

O barulho da cantada de pneus... Uma


senhora de roupa branca, blasfemando
enquanto a levantava do meio-fio.
- Mas que droga é essa? Você está bem
moça? Vou leva-la ao pronto socorro.
- Leve-me para o céu!
Cristina estancou. Um súbito tremor
percorreu-lhe o corpo, o coração disparava
com batimentos tão altos que ela jurava que
poderiam ser ouvidos na Avenida Paulista.
- Eu sabia que essas horas extras iam me
dar problemas... Espere aí mocinha! Você
estava tentando se matar? Era só o que me
faltava no meio da noite.
A esta altura um carro buzinava atrás,
uma van com passageiros soturnos e curiosos
parou no acostamento. Sem saber o porquê,
Cristina pediu ajuda ao motorista da van e
colocou Mariana no banco traseiro.
Percorreu uns cem metros até o retorno
que dava na entrada do pronto socorro e sem
saber o que fazia decidiu dirigir para casa com
a caixa de pandora gemendo num choro
tímido no banco de trás. "Esse meu gênio
123

curioso, ainda vai me meter encrencas",


pensou.
A simpática viúva, Cristina, era
enfermeira chefe do hospital, fazia plantão
noturno e horas extras em dia de folga, só
para não ficar em casa. Tinha uma loja de
conveniência dentro de um posto de gasolina
no bairro de Santana na zona norte onde
morava. Seu filho Jeferson casou-se há dois
meses e tendo se formado em comércio
exterior foi morar na Itália para gerenciar uma
rede bancária. A filha Ângela era professora
de língua estrangeira, formada em três
idiomas e atualmente também morava no
exterior, em Nova York, gerenciando uma
agência de turismo. Ângela tinha 26 anos e
nenhum desejo de casar-se. O marido de
Cristina morrera de velhice, um infarto
inesperado de um coração de oitenta anos.
Cristina era trinta anos mais nova que o
falecido esposo. Mesmo assim sentia falta de
suas manias, nunca quis casar-se de novo e
ele a deixara bem amparada financeiramente.
Porém, ela investiu todo o patrimônio na
carreira dos filhos. A casa era branca, uma
124

dessas construções antigas, com portões


baixos que abriam manualmente o que fez
com que a enfermeira praguejasse agora, por
nunca ter concordado com um portão
moderno e automático. Lentamente desceu do
sedan prata, destrancou o cadeado e abriu os
portões que rangeram sem constrangimento
reclamando uma mãozinha de graxa.
Cristina estacionou o carro na ampla
garagem coberta que parecia descordar com o
resto da casa. A porta de entrada era lateral e
já dava pra uma sala de estar. Cristina nunca
quis mudar o estilo antigo da casa, só fazia
alguns reparos e manutenção. Gostava do seu
cantinho como era.
Dirigindo-se a passageira inoportuna:
- Vamos. Se você não quer desfalecer aqui
no meu carro desça e entre naquela porta
aberta à direita.
Mesmo fraca e quase desfalecendo de
inanição, amparada pela hospitaleira
enfermeira; Mariana obedeceu, o que mais
tinha a perder? Cristina empurrou-a até o
sofá maior onde ela despencou.
125

Sem entender por que estaria agindo


com tamanha insensatez, Cristina deixou o
lado maternal falar mais alto e permitiu a
moça adormecer ali. O que teria acontecido
com aquela moça? Drogas? Estaria grávida?
Teria fugido de casa? Qual o motivo que levou
essa pobre desmiolada a atirar-se na frente do
seu carro? O dia clareou logo.
"A morte é boazinha", pensou Mariana ao
olhar a mulher à sua frente ainda vestida de
branco, colocando suco de laranja com um
contra gotas pelo canto de sua boca.
Arregalou os olhos e tentou levantar-se, mas
em vão tentou. Estava fraquíssima.
- Calma, antes deu levá-la até sua casa ou
hospitalizar você numa clínica anti-suícidas,
quero você bem alimentada. Já que não
conseguiu êxito em sua intenção de amassar
meu pobre sedan.
Mary suspirou e as lágrimas correram.
Cristina ergueu uma sobrancelha.
- Ei, chorar depois, agora alimente-se pra
eu poder lhe dar uma "boa coça", como dizia
minha falecida mãe. De súbito as palavras
fizeram efeito rebote. Mariana levantou-se e
126

chorava copiosamente como se uma dor


enorme lhe transpassasse o coração.
- Shhhhiiiii
Cristina abraçou-a num impulso
involuntário e deixou a moça chorar até
acalmar-se.
- Está melhor?
- Sim, obrigada.
- Bom, que tal um café reforçado. Você
está parecendo um zumbi.
Mary surpreendeu-se com a
cordialidade e a bondade daquela mulher. Ela
nem se quer a interrogou.
Cristina aprendera essa psicologia na
escola materna. Era melhor deixar os jovens
falarem quando sentirem- se seguros pra
confiar que terão apoio, seja o que for que
tiverem feito. Mariana surpreendentemente
tomou o suco todo aos poucos, comeu meio
pãozinho e bebeu uma xícara de café.
- Bom pelo menos você não tem anorexia,
já é um consolo. - Cristina deu um meio-
sorriso. - Qual seu nome?
127

A Garota ponderou entre omitir sua


identidade ou dizer a verdade. Num impasse
que durou segundos, respondeu:
- Mariana Kylle.
Saiu tão grosseiramente que Mary se
encolheu.
- Bom, Srta. Mariana, quer conversar?
Onde quer que eu a leve? Onde você mora?
- Não posso voltar, não tenho onde ir.
- Hum...
Mary desviou o olhar.
- Quer me contar? Você já sabe que não
sou o bicho papão, então se sentir-se à
vontade, que tal deixar-me ajudá-la. Sempre
existe uma saída.
- Não para mim.
E Mariana voltou a debulhar-se em
lágrimas, em soluços altos que chacoalhavam
seu peito e umedeciam as madeixas soltas em
seu rosto. Novamente Cristina deixou-a
chorar, desta vez sem aproximar-se.
Depois de alguns minutos assim.
Mariana fitou-a sombriamente e atirou o
relato todo como um jato ininterrupto por
duas horas seguidas sem pestanejar. Contou
128

desde a infância, o noivado de David, a morte


do pai e as últimas três noites que destruíram
sua vida.
Pela primeira vez Cristina sentiu-se
impotente e mais, sem palavras! Não tinha
sequer um conselho a dar. Estava chocada
demais. Limitou-se a dizer:
- Sinto muito, vamos achar uma saída,
você devia processar sua mãe!
Desta vez Cristina que chorava a
inconformidade de não poder curar a dor
visível daquela criaturinha à sua frente.
Nascia um grande laço de amizade. Mary
atirou- se para ela e chorou em seus braços
mais uma vez, desta vez um choro de
esperança quem sabe... Sentiu muita falta de
tia Kátia. Era a primeira vez que pensava na
tia com lucidez. "Isso vai matar minha tia",
pensou desesperada.
No restante daquele dia conversaram
muito, cada vez mais Cristina admirava a
fibra da jovem e Mariana aumentava a
confiança naquela mulher estranha. Para
passar o tempo Cristina falou sobre sua vida,
129

contou sobre o sucesso promissor de seus


filhos, sobre a lojinha e aí surgiu a ideia...
- Mariana, eu sei que devo estar ficando
louca, mas... Bem, você já tem dezenove anos
e é praticamente órfã. Pode morar aqui e
trabalhar pra mim na loja. Pode cuidar da
administração. Vai manter sua cabeça
ocupada e será um recomeço até que decida
voltar, porque um dia terá que enfrentar seus
tios, seu noivo e a vida que ficou em Vila
Califórnia. Posso ligar para sua tia e contar
tudo, é o mínimo que você deve a ela.
- Não! Não quero que ela saiba onde
estou. Ela viria buscar-me. Não posso
enfrentar David... Prefiro morrer!
- Seja razoável, eles porão a polícia atrás
de você. O que seria bom, assim sua mãe
peagaria maus tratos.
- Não! Não quero falar desta mulher
nunca mais.
- Tudo bem, acalme-se. Você confiou em
mim. Respeito isso. Pense mais um pouco e
quando decidir me diga.
- Obrigada, sinto muito.
- Tudo bem. Que tal um filme? De terror?
130

Pela primeira vez naqueles dias Mariana


riu, Cristina tinha um humor invejável.
- A Bela e a fera?
- Humm...Que tal As Crônicas de Nárnia?
Dizem que é assustador. - Ambas riram.
Dias depois de conhecer a loja chamada
"Shamá", Mary encantou-se com o bairro e a
possibilidade de nunca ter existido outra
Mariana que não aquela que nascera há dois
dias dentro do carro da enfermeira Cristina.
Mary sabia que estava fugindo e fingindo.
Projetando outra vida, como uma dupla
personalidade, como um filme de suspense ou
uma novela onde podia fazer o que quisesse
da protagonista.

Ferida

“Como se cura a ferida, quando perdoar é tão difícil e


quando esquecer não se consegue...”

Antes de jogar o chip do celular fora,


Mary mandou um SMS para David dizendo
para esquecê-la e que jamais seria possível
131

serem felizes juntos. Mandou outro pra tia


Kátia, dizendo que não poderia voltar nunca,
que seu passado estava manchado e que se
ela pudesse perdoá-la, um dia entenderia,
disse que havia começado vida nova e tinha
um emprego. Claro que mesmo desfazendo-se
do chip, tinha na memória os números
telefônicos das pessoas que mais amara na
vida.

Do outro lado

David andava de um lado para o outro


com as mãos na cabeça o celular na mesa
diante de Katia.
- Eu disse que ela não devia saber! Agora
nem temos ideia de onde aquela maluca possa
estar!
- Eu sinto muito David. Gil deu parte à
polícia do desaparecimento dela, porém,
disseram que não se configura sequestro, pois,
ela saiu de casa por livre vontade e ainda por
cima é maior de idade.
132

- Maior? Ela mal tem dezenove anos!


Parece que tem onze! Pelo amor de Deus! Amo
essa menina desde de que era uma pirralha. E
agora... O que ela quer dizer com esse SMS
“esqueça-me”? Oh Kátia, não chore. Eu sei que
nenhum de nós tem culpa. Só estou
desesperado!
- Me sinto uma idiota! Como pude confiar
que ela fosse madura o bastante para tomar
decisões. Nem sei se encontrou Pamela ou não.
O que vamos fazer?
- Orar! Esperar! Ir novamente à polícia...
Estou pensando em ir atrás dela, só não sei por
onde começar.
- Nenhum de nós sabe.
.....................................................................

Pensando em como sair dessa imensa


enrascada Cristina comtemplava o rosto
passivo de Mariana.
- O que achou da minha humilde lojinha?
- Oh! É uma graça.
- Que bom que gostou, pena que não
possa ficar pra trabalhar nela. - Mariana ficou
confusa.
133

- Mas, você convidou... Ah! Mudou de


ideia, entendo.
- Não mudei de ideia. Só há uma
condição a considerar.
- Que condição?
- Olhe, eu sou mãe. Morreria se minha
filha desaparecesse. Pense no desespero de
sua tia. Prometo não dar o bairro meu telefone,
nem nada. Ligaremos de um orelhão. Mas, ela
precisa saber tudo que houve, que você está
bem ao menos e viva; e que David não é seu
irmão. Você deve isso a eles! Como vai
recomeçar, sem limpar as vidraças da alma?
Mariana irou-se, depois refletiu...
- Está bem. Você liga para ela, eu dou o
número. Falar com ela ia me matar. Eu
desejaria voltar pra onde não tem retorno. Por
favor, prometa-me que não contará sobrea a
confusão na boate, ela poderia culpar-se por
me deixar vir.
- Como quiser. Me dê o número sem perca
de tempo. Vamos começar arrumando as
coisas.
No caminho para o telefone público
Cristina pensou se estava sendo má. Afinal
134

tinha que confirmar se a história de Mariana


era verdadeira. Só assim poderia ajudá-la sem
temores.

Naquela tarde...

Gil comtemplava a silhueta bem delineada


da mulher parada diante do lago à sua frente.
O lugar agora tinha placas indicando a
profundidade e uma singela placa “Proibido
pescar”, a advertência em si era um convite
tentador já que o lago dançava a luz do sol
com suas dezenas de peixes coloridos na água
cristalina. Aquele espaço antes fazia apenas
parte da história da vila, parte da vida dos
moradores daquele lugar, entretanto
atualmente era o “point” e o ponto turístico
para parentes e amigos, e por ter sido citado
em uma revista ecológica, agora era
singelamente “famoso”. E lá estava ela, os
cabelos curtos a altura dos ombros como de
costume, o corpo esguio projetado
displicentemente na direção das margens, a
cabeça erguida e os olhos voltados ao Céu
claro e repleto de nuvens que pareciam formar
135

uma imensa mão acolhedora. “Dai-me forças


pra continuar”, foi o sussurro que saiu dos
lábios rosados de Kátia. Gil aproximou-se
fazendo o máximo barulho que pode para
chamar a atenção. Ela virou-se nada
surpresa, ameaçou um sorriso com o canto
dos lábios.
- Eu imaginei que encontraria minha
esposa aqui – Disse ele.
- Eu estava com saudade, não do lago,
mas... dela. Ela adorava vir aqui, era o seu
lugar preferido.
- Eu sei querida. – Gil aproximou-se
passando os braços em volta da esposa
confortando-a. – Sinto muito.
- Todos nós sentimos. Se ao menos eu
pudesse saber o que aconteceria com eles.
- Mesmo que soubéssemos, não podemos
intervir no destino. Podemos?
- Eu não sei. – Kátia chorava agora. – Só
sei que essa dor não passa nunca.
- Vamos pra casa. – Gil afastou-a
gentilmente e apertou suas mãos. –
Precisamos ser fortes... por eles!
136

- Está certo. Espero que ela volte pra nós,


porque depois da mensagem que recebi...
- Não sei mais o que pensar. Devíamos ter
chamado a polícia bem antes. A mãe dela deve
saber onde ela está, apenas não quer dizer.
Vamos querida. Acompanharei você até em
casa, depois vou para a clínica. Preciso
trabalhar.
- Eu sei. Obrigada por estar aqui.
E dizendo isso caminharam abraçados.
Gil saiu em seguida e Kátia sentou-se no
sofá sem coragem para fazer nada. O
apartamento estava sofrendo o caos de suas
emoções. Havia poeira e objetos jogados a
espera de organização.
O telefone tocou.
A voz que atendeu do outro lado estava
esganiçada, parecia de alguém que chorou
sem cessar por horas seguidas.
- Quem fala?
- Kátia Kylle Berg.
Responder com nome e sobrenome era
costume de família pelo jeito, pensou Cristina.
- Bem meu nome é Cristina, sou
enfermeira e também formada em psicologia
137

(achou importante revelar essa parte, talvez a


tia ficasse mais confortada) é sobre sua
sobrinha Mariana.
- Oh! Graças a Deus! A mãe dela mudou
de ideia resolveu dizer pra onde ela foi? Diga-
lhe que retiro a queixa, só quero minha
sobrinha de volta. A voz continha uma dor
profunda.
- Bem, não conheço essa senhora, quanto
a retirar a queixa, depois do que vou contar-
lhe, acho que fará bem, mas para poupar
Mariana e não por causa desta desprezível
mulher!
- Sabe onde Mary está?
- Sim, neste momento na minha casa,
lendo um livro. Ouça...
Cristina contou-lhe tudo com todos os
detalhes sem poupar nada, nem mesmo a
violência na boate, e também colheu
informações sutilmente para julgar se
Mariana tinha cotando-lhe a verdade
absoluta. Do outro lado Kátia gritava de
pavor.
- Dê-me seu endereço, vou trazê-la de
volta hoje mesmo!
138

- Acalme-se Dona Kátia! Pense bem, você


pode obrigá-la a voltar, mas ela fugiria
novamente e desta vez seria mais cautelosa
para não descobrirem onde está. A confusão
que ela sente é muito grande. E também a dor
dessa jovem é indizível. Nenhum rapaz por
mais bom que seja talvez consiga lidar com
essa confusão sanguínea, e ser abandonada
por ele a levaria de novo a pensar em suicídio.
O impasse no telefone fazia Cristina suar
debaixo do sol escaldante. Quarenta minutos
e tinha convencido Kátia.
- Está bem, não sei porque, mas vou
confiar na senhora, Dona Cristina. Mas já que
Mariana não quer que saibamos onde está,
prometa-me que ligará toda semana, mesmo
que Mary não saiba e mantenha-nos
informada sobre ela e se sentir que o fardo
alheio é grande. Traga-a para nós! Diga-lhe
que a amamos e nunca vamos abandoná-la.
Neste ponto Cristina também chorava.
- Claro que vou dizer-lhe, mas neste
momento ela precisa perdoar a si mesma para
depois sentir que pode ser amada. No que
depender de mim, ela não se perderá. Ela
139

pediu pra dizer a David que ele está livre do


compromisso, a senhora entende?
- Claro. Por favor cuide dela, sinto
tanto...Se eu não...
As lágrimas de Kátia estavam matando a
estrutura emocional de Cristina. Ela se sentia
no lugar de Kátia e tudo aquilo era
demasiadamente perverso e doloroso. Decidiu
interromper.
- Olhe, preciso desligar. Corremos o risco
deu chegar lá, ela não confiar que não revelei
seu paradeiro e ter fugido. O que infelizmente
teria dado muito tempo pelo tanto que
conversamos.
- A senhora tem razão. Me ligue amanhã
pra dizer-me se ela ainda está sob seus
cuidados e se ela aceitou o emprego. Acha
mesmo que não tem perigo dela ver a mãe, ou
esse tal irmão.
- Sim, disso estou segura. Faremos
assim, se Mary infelizmente tiver ido embora
eu retorno do número de casa mesmo. Se eu
não ligar hoje é porque está tudo bem.
Combinado?
- Combinado e obrigada!
140

Kátia ainda soluçava ao desligar “Deus,


só o Senhor pode nos curar e perdoar. Se estais
aí ouvindo, por favor, eu imploro, proteja
Mary.”
Cristina voltou sem sentir o efeito do
calor, tamanho era o efeito da dor que sentia
na alma por aquela família destruída. Pelo
destino daquela jovem estar tão
comprometido. Abriu o portãozinho social
mecanicamente. Não viu Mary na sala onde a
deixou. Um arrepiou percorreu-lhe a espinha.
Seria tarde demais? Gritou pela moça, não
houve resposta. Estava tão apavorada com a
possibilidade que não se deu conta do cheiro
do café vindo da cozinha, onde procurou duas
vezes por Mary. Já estava com a mão no
discador do telefone quando a menina entrou.
- Onde você foi? Não combinamos que você
não sairia sem me dizer? Tem ideia do
desespero que senti?
A surpresa no rosto da moça fez Cristina
refrear sua histeria.
- Eu...achei que a senhora voltaria com
fome, fiz café e fui comprar pão. Desculpe. -
Mary estava sinceramente encabulada.
141

Só então Cristina notou o pacote de pão


nos braços da jovem. - Oh! Eu exagerei não foi?
É que sinto como se fosse minha filha. Fiquei
muito preocupada, você não conhece a cidade,
nem o bairro e...
A enfermeira parou. Sabia que mentia
mal e que Mariana entendeu no instante que
olhou pra ela, que ela pensou que Mariana
tinha ido embora.
- Tudo bem mamãe ganso. Sou o patinho
feio. Quer ou não café?
Nenhuma das duas achou graça, mas
deixaram passar, tomaram o café vespertino
em silêncio.

..........................................................
E Mariana viveu uma nova identidade
amortizada como se não houvesse passado, só
futuro, e planos que não se desenhavam por
mais os projetasse.

DAVID
“Leva-me mais alto do que já estive”
142

Essa frase da canção não saia na memória


de David. Foi o que veio à mente desde
quando ele se pôs a orar para que Deus
salvasse Mariana e Hugo da morte. Nos dias
subsequentes ao acidente de carro, David mal
dormia, sentia estar numa terrível leva de
pesadelos. No dia fatídico ele ficaria noivo de
Ana Carolina, porém estava angustiado e
triste. Tinha ido até o lago e tudo que
conseguia sentir era saudade de Mariana. Ele
não queria ceder a esse sentimento. Havia ao
menos quatro anos de diferença entre eles.
Mas desde que ele era adolescente a achava a
criança mais linda que já tinha visto. Parecia
uma boneca tão original. O gênio rebelde e
irreverente o fascinava. Mas então ele cresceu
e ela ainda ficou pra trás. Ele se encantou por
Ana Carolina e achavam que iam casar. Mas
ambos concordaram que a decisão era um
tanto prematura e decidiram contra todas as
regras e convenções terminar o compromisso
bem no dia do noivado. A mãe de David ficara
aliviada. Os pais de Ana ficaram bravos e
decepcionados. A discussão que tiveram
havia sido constrangedora e o pai de Ana
143

Carolina ofendeu bastante o rapaz rotulando-


o de inconsequente e irresponsável. David
decidiu que merecia aquilo, devia ter revisado
melhor seus sentimentos, embora não tivesse
intenção de magoar a futura noiva.
Entretanto tudo ficou pior com a notícia do
acidente do reitor. Todos os murmúrios pelo
cancelamento da festa faltando apenas duas
horas para o evento, foram substituídos por
orações e lamentações pela fatalidade. David
sentia-se culpado. Se não tivesse planejado o
noivado... Mas então, Hugo faleceu, e por
milagre Mary sobreviveu; ficou meses em uma
cadeira de rodas e se recuperou aos poucos.
Então ele pensou em falar com ela sobre seus
sentimentos. Ela estava depressiva e ele teve
paciência. Então sua mãe, a única pessoa que
David tinha na vida, ficou doente e ele trancou
a faculdade. e então ele e Mariana se
apoiaram um no outro e ele se apaixonou
perdidamente por sua amiguinha de infância.
E agora quando estavam prestes a casar... O
segredo de Hugo e de seu pai veio à tona! E
ela fugiu! Sem falar com ele, sem considerar
seus sentimentos e então tudo mudou e no
144

lugar dela ficou um vazio imenso. Ele tentou


esperar por ela. Mas, a espera deu lugar a
mágoa e pensar que ela preferiu não voltar
para ele tornava a vida fria e dolorosa. Então
ele tentou namorar outras garotas, mas não
conseguia se envolver de fato. Estava muito
ferido pela vida e tudo que conseguia pedir a
Deus era "Leva-me mais alto do que já
estive...pelas águas eu caminhe por onde quer
que chames..."

Reverso, tudo começa onde termina:


O lago.

Três anos e alguns meses passaram-


se. Cristina telefonava religiosamente uma vez
por semana para Kátia, dando notícias e por
menores da vida de Mariana. Mary
reingressara na faculdade por insistência de
Cristina e ainda não queria contato com a
família. Tinha medo. Medo de querer voltar,
medo de encontrar David casado, medo do
olhar perscrutador do doutor Berg, medo de
não se encaixar mais no mundo, medo até
145

mesmo da saudade que sentia. Ela namorou


alguns rapazes. Nada de relacionamentos
íntimos ou muito sérios. Tinha pavor de
compromisso. No fundo admitia que ainda
amava David. E David, já estaria casado?
Apenas que uma notícia iria mudar tudo.

- Mary, sua tia escreveu. Seu irmão André


está muito doente. - Mary alarmou-se,
esquecera completamente dos irmãos. - O que
ele tem?
- Está numa clínica de recuperação para
desintoxicação de viciados. Ele deseja muito
vê-la. Foi hospitalizado há algumas semanas
por overdose.
- André!? Como fui tão egoísta com ele.
Mariana desesperou-se. Então essa era a
maneira mais dolorosa de voltar, encontrar o
irmão naquele estado.
- Será que algum dia eles vão perdoar-me?
- Só descobrirá quando parar de fugir.
Sabe que a amo como uma filha, mas
reconheço que é hora de regressar querida.
Mary abraçou Cristina e chorou, um
pranto de despedida.
146

- Escreva-me e se precisar volte.


- Jamais esquecerei de você!
...............................................................

Cristina quis levá-la de carro.


Mariana fez questão de ir de ônibus.
- Levarei apenas algumas roupas -
Argumentou. - E não tenho certeza de ficar.
Se eu não retornar, a senhora pode visitar-me
e então poderá levar o restante dos meus
pertences.
Mariana sorriu e Cristina deu-se por
vencida. Mary não queria espectadores. A
viagem de ônibus pareceu dias, o que foi
apenas horas. Mentiu o horário de chegada
para que não a estivessem esperando na
rodoviária. Queria adiar a vergonha de olhar
nos olhos daqueles a quem tanto amara e
abandonara. Sentia-se covardemente
assustada. Desembarcou carregando apenas
uma bolsa e uma pequena mala. Rezava para
não dar de cara com nenhum conhecido.
Ia chamar um táxi, quando decidiu que
precisava fazer algo antes.
147

Desceu a rua até o centro da cidadezinha,


contornou a praça e já ia em direção ao bairro
quando parou estarrecida.
Um homem alto, de costas, abria os
braços para um bebezinho de
aproximadamente um aninho que ameaçava
os primeiros passos. Ela não precisava ouvir
a voz para reconhecer David. Parecia-lhe bem
mais alto, se é que isso era possível. Uma
mulher de cabelos lisos e cortados na altura
do queixo, sorria deliciada com a cena. Mary
quase desmaiou, quando a mulher se
aproximou e beijou David na boca.
Reconheceu-a instantaneamente, era Ana
Carolina! David continuava de costas, quando
ela percebeu que ele fazia o movimento para
virar-se, rodopiou nos calcanhares e correu o
mais que pode carregando as malas.
As lágrimas escorriam com vigor. Mary
diminuiu o ritmo. Desejava não ter voltado.
Sentia muito por André e Lucas, sua tia e
Berg, e até por Magda, mesmo assim ia pegar
o ônibus de volta. Não podia enfrentar a
realidade, achou que poderia, mas não pôde.
148

Antes, porém queria ir a um lugar, o


único onde fora feliz. Enquanto descia a
estradinha de terra depois do morro, a chuva
começou a cair. Agora haviam placas
sinalizadoras e parte do caminho
pavimentado com pedras e paralelepípedos,
algum bom paisagista havia deixado o lugar
excepcionalmente bonito e atraente. Como
um quadro bem pintado, magnifico e
reformado. Uma garoa fina banhava o
caminho, mas para Mariana era como um
bálsamo.
Parou diante do lago. Largou a bolsa e a
pequena mala. Estupidamente tirou as botas
e molhou os pés na água fria.
Lembranças misturadas com vozes, e sua
própria voz de lamento. Por meia hora
recordou a infância vivida ali. A infância feliz
em que tinha David consigo. O crepúsculo
enunciava o espetáculo no espelho d’água.
Mary sentou-se na beira do lago, não se
importando com mais nada, queria ficar ali
para sempre.
Repetiu pra si mesma em voz alta:
- Aqui eu fui feliz!
149

- Eu também!
Uma voz tênue foi ouvida às suas
costas. Mary virou-se espantada.
Um sorriso largo no rosto do homem que
a olhava ali sentada.
- Você realmente combina com esse lago,
Mariana. É tão bela quanto a paisagem.
Mariana estava atordoada, não
conseguia pensar.
A voz era diferente, a maneira de olhá-la
quase com devoção, mas era David que estava
ali em pé, diante dela.
Levantou-se passando as mãos na saia
molhada, o rosto desfeito pelas lágrimas, os
cabelos embaraçados pela chuva. Sentiu-se
pequena.
- David...
- Sua tia deve estar maluca na
rodoviária, esperando por você.
- Eu...
Mary não se conteve, correu até aqueles
braços fortes. “Que saudade” - Murmurou.
O homem sorriu.
Ele parecia mais jovem. Mary deduziu
que dor a tinha envelhecido, enquanto o
150

casamento com Ana Carolina tinha feito bem


demais a ele.
Afastou-se dele.
- Eu vi seu filho e Ana Carolina.
-Viu?
- Sim, vocês formam uma linda família.
A amargura implícita em cada palavra.
- Também acho.
- Não precisa ser tão grosseiro!
- Desde o primeiro momento que a vi,
achei você indócil, fascinante e precipitada.
- Como assim?
- Bem, que tal me dar um abraço de
irmã?
- David! Não contaram a você? Não sou
sua irmã!
- Eu insisto Mariana!
Ele estava diferente. Não havia dúvida,
austero, sarcástico e até arrogante.
- Pare com isso! Sei que não perdoará
nem a mim, nem a meu pai. Nem...
- Cale a boca!
Mariana tremeu com a sombra de
violência que vislumbrava em David.
151

- Então você me viu na praça com meu


filho?
- Sim.
Mary tentou lembrar-se da cena.
Comparou a camisa listrada, era a
mesma.
- Sim, era você! Não era?
- Era eu. Mariana, olhe-me direito. Olhe
pra mim. - Mary levantou o rosto, o pescoço
quase doía, David crescera muito e estava
musculoso. Fitou os olhos brilhantes e...
Verdes!
- Oh!
O homem ria divertido.
- Arthur! O que faz aqui...Arthur!
Mariana também sorriu e abraçou o
meio-irmão. A emoção que sentiram foi
indescritível.
- Enfim reencontramo-nos Mariana
kylle!
Entre a surpresa e a emoção ela tentava
questionar. - Mas..., mas... como você veio
parar aqui? Você casou-se com Ana Carolina?
Ele analisava-a na roda de seus braços,
ainda no abraço fraternal.
152

- Sim. Casei-me e temos um filho, chamado


Hugo de um aninho. – Eu achei que esse lugar
também tinha uma história pra mim.
- Mas, parece ter mais...
- Puxou o pai!
- É, você é mais alto que David.
- Notou é? - Riram com gosto.
- Quase não notei. Vocês são tão...
parecidos. Como veio parar justo aqui?
- Eu parti uns dias depois de você.
Procurei David. Depois retornei para procurá-
la, porém, sua tia proibiu-me. Na segunda vez
que vim, vim morar com David, e conheci Ana,
o resto você pode deduzir.
O coração de Mariana pulava no peito. -
E David, ele sabe tudo?
- Sabe, e respeitou sua vontade.
- Ele...Ele se casou?
- Ainda não. Neste exato momento, ele
está na rodoviária, ansioso por vê-la.
- Céus! E você só me diz agora! Mas...
Mariana voltou a chorar, Arthur abraçou-
a novamente.
- Não tenho coragem Arthur, não posso
olhar pra eles.
153

- Não seja tola! Quando pensei ter visto


uma moça de cabelos vermelhos correr
escandalizada por presenciar um beijo terno
entre marido e mulher, justamente no dia da
sua chegada, deduzi que só podia ser você.
-Você comentou com alguém?
- Somente com Ana, ela me disse que
David falava muito sobre suas travessuras no
lago e então resolvi arriscar.
- Como vou fazer com um irmão tão
parecido com David? – Mariana choramingou.
- É só não nos confundir. - Arthur puxou-
a pela mão e conduziu-a até picape que estava
parada a alguns metros do lago.
- Não ouvi o barulho do carro.
- Eu sei. Você estava absorta.
- Este carro parece o...
- O carro de sua tia?
- E é. – Arthur afastou-a gentilmente
fitando seu rosto. - Já me ligaram, antes deu
vir, estão todos na antiga casa. Vamos Mary.
- Não posso entrar ai.
- Mary, este é o carro que a seguradora
pagou e não exatamente o mesmo do acidente.
154

- Eu sei, mas não tenho coragem de olhar


pra todos.
- Você pode até ser dois anos mais velha,
mas é mais burra! Entre logo!
Mary obedeceu pela surpresa da atitude
possessiva do irmão. No curto caminho quase
não falou.
Quando Arthur ajudou-a a descer da
picape, David estava no portão da casa. Usava
barba, estava magro, um ar de sofrimento.
Envelhecera pela dor, mas continuava lindo,
era o seu David, como pode confundi-lo? Mary
tremia, só saiam lágrimas, nada de palavras.
David avançou uns passos. Segurou o rosto
dela entre as mãos. Era alto, não tanto quanto
Arthur, mas sem dúvida era muito alto e mais
alto foi o grito que saiu dos seus lábios.
- Mariana! Minha Mary! - Foi como se sua
alma gritasse.
Choraram muito, abraçados, sentaram
na calçada, sem dizer palavra alguma. Depois
de muito tempo a chuva voltou a cair junto
com a noite. David virou-a para si e beijou-a.
Um beijo longo, sôfrego, cheio de amor,
saudade, desejo...
155

- Vamos entrar sua fujona! - Ele ainda


conseguia brincar? Não fosse por David quase
força-la a entrar ela jamais teria conseguido.
Abraçou Kátia primeiro, depois André,
depois Lucas, por longo tempo até que
cessaram os soluços, abraçou Ana e temerosa
aproximou-se do doutor Gil.

- Desculpe e obrigada.
- Ainda posso deixa-la de castigo até a
próxima geração. - E Gil abraçou-a. Todos
riram.
- É bom estar de volta.
- E cabe a David, amarrar você ao pé da
mesa. - A voz de Lucas saiu tão infantil o
quanto ela lembrara, mas agora ele era um
adolescente esguio e frágil. Espantou-se com
a cumplicidade entre David e Lucas.
- Pode deixar Lucas, Mary nunca mais vai
embora. Até porque ela só tem trinta dias para
preparar o casamento.
Mary perdeu o fôlego, estava sonhando
de novo?
- Vai me dar a honra de organizar a festa?
- Uma Magda, sofrida, mas ainda altiva e
156

elegante, jogava uma bolsa no sofá e corria até


ela. - Perdoe-me Mariana, se puder um dia.
- Não tenho do que perdoá-la. Você
também sofreu com tudo isso, cuide do nosso
André e do Lucas.
- Estou cuidando querida. Mas, e você, vai
ficar?
- Você não ouviu Magda, tem apenas um
mês pra minha festa de casamento.
E os olhos de David posaram sobre os
cabelos revoltos e tão puros da menina que
amou a vida inteira.
- Senti sua falta, Mary. – E a tirou de
Magda puxando-a novamente para si.
- Eu quase morri sem você, David.
Beijaram-se novamente e ficaram
abraçados por alguns instantes. Porém
quando David afrouxou o abraço, Mary
cambaleou e só não foi ao chão porque ele a
amparou.
- É melhor sentar-se. Você comeu
alguma coisa hoje?
Mary balançou a cabeça enquanto
informava – Tomei apenas um suco de laranja
pela manhã. Não consegui ingerir mais nada.
157

- Bem, deixemos o amor para depois. –


Arthur brincou enquanto afastava Mary de
David e sem cerimônia invadia a cozinha.
Mary sentou-se numa banqueta enquanto
Kátia preparava um lanche para ela.
- Obrigada tia, é muito bom ser
mimada novamente. - Então um turbilhão de
imagens e emoções vieram com o cheiro do
café. Aquela casa... sua casa! A garota achou
que tinha chorado tudo que podia, mas a
lembrança da voz do pai ali sentado à mesa...
De repente parecia que ele chegaria a
qualquer momento com um pacote de pão
quente embaixo do braço e dizendo que
dormiram demais e ele estaria atrasado. Mary
tapou a boca com as mãos, pois ela queria
gritar. Deu-se conta que o luto não tinha
passado. Ela não tinha vivido o luto, tinha
fugido dele! Arthur chegou mais perto, mas
não a tocou. Compreendia que aquela era
uma dor só dela. David passou as mãos pelo
cabelo num gesto nervoso sem saber como
agir, Kátia ficou parada com o lanche nas
mãos. Então Magda veio da sala e correu até
ela, abraçou-a. Lucas também se aproximou,
158

agora um rapaz com o rosto cheio de sardas,


alto como o pai e um coração cheio de perdas,
ele também a abraçou e André agora com doze
anos, ainda que timidamente apertou as mãos
da mãe. Então os demais apenas assistiram.
Era uma dor que aquela família: a esposa, os
filhos de Hugo, precisavam chorar sozinhos e
juntar os pedaços. Um a um os outros foram
saindo da cozinha. Arthur avisou que voltaria
mais tarde. Todos entenderam. Arthur e
Mariana tinham assuntos dolorosos e
inacabados para tratar. David também.
Apenas Kátia e Gil resolveram ficar na sala e
disseram que pernoitariam ali.
Horas mais tarde, depois que Mariana
dormiu um pouco, conseguiu comer.
A família espalhou-se pela enorme sala
e Mary timidamente respondia às inúmeras
perguntas dos irmãos mais novos. Olhando
para Lucas e André não havia sinal de que
haviam se envolvido com drogas ou qualquer
outra coisa. André parecia ainda inocente e
infantil e Lucas sóbrio, amadurecido e
bastante responsável. Então ela franziu a
testa e virando para eles perguntou:
159

- Vejo que estão recuperados. Vocês não


pensam em fazer mais nenhuma besteira, não
é?
André engasgou com o suco e Lucas
olhou para Magda e em seguida para Kátia
que se apressou em confessar.
- Desculpe Mary. Nós mentimos! Não
conseguimos pensar em outra maneira de fazê-
la voltar!
Mariana olhou de um para outro, mas
não conseguiu ficar com raiva.
- A ideia foi minha. – Lucas defendeu a
tia.
- Tudo bem. Melhor que nada daquilo
fosse verdade! Já estou aqui. Não importa o
motivo. Estamos juntos.
- Sim. E esperamos que fique Mary. –
Kátia não escondia seus temores.
- Aqui é meu lugar Tia.
Gil e Kátia trocaram um olhar de
cumplicidade, o que não passou despercebido
e com um mau presságio Mary disparou:
- Estão escondendo alguma coisa? Existe
algo que eu deva saber?
160

Antes que formulassem uma resposta a


campainha tocou. Era Arthur. Apesar de já
ser tarde da noite, ele não conseguira esperar
para falar com a irmã.
- Entre. Mary acordou ainda pouco.
Arthur entrou dando um beijo na face de
Magda e foi direto para junto de Mariana sem
a mínima cerimônia.
- Vejo que está melhor e refeita. Eu ainda
preciso falar com você. Acha que é demais
hoje? Quer que eu volte amanhã?
- Não. Está tudo bem. Nenhum de nós
conseguirá dormir. Vamos conversar. – Mary
dirigiu-se para cozinha e Arthur a seguiu.
A mesa parecia grande demais agora.
Sentaram-se frente a frente. Arthur pegou
suas mãos e abaixou a cabeça ficando uns
minutos assim, como se estivessem orando
silenciosamente.
Parecia que a garota era feita de
expectativa. Era bom saber que tinha um
irmão adulto, era bom olhar pra Arthur, uma
cópia externa de David, apenas que a cor dos
olhos, altura e outros pequenos detalhes,
agora tão latentes os diferenciavam. Arthur
161

respirou fundo não sabendo por onde


começar.
- Vou começar falando de mim. Por mais
difícil que seja pra você entender, minha mãe...
Nossa mãe, foi um grande incentivo pra eu
vencer na vida.
- Como? Está brincando, não é? - Mariana
ironizou.
- Mary, ela nunca escondeu de mim que
havia sido prostituta e nem que depois se
tornou uma espécie de cafetina. Assim que
tive idade pra entender ela me contou e depois
disso todos os dias ela repetia: “você não
pertence a esse lugar, você vencerá na vida.
Isso aqui não é pra você! Você terá futuro e
uma carreira decente. Eu fiz uma péssima
escolha, mas não permitirei que você faça o que
eu fiz...”. Quando fiquei adolescente eu senti
vergonha de tudo aquilo e medo de não sair
nunca daquele meio. Como pode imaginar tive
várias oportunidades de entrar para o tráfico,
prostituição e toda a sujeira que envolvia
nossas vidas ali. Porém, instintivamente
minha mãe parecia adivinhar, então ela me
vigiava e martelava as mesmas palavras “isso
162

aqui não é para você.” Ela pagou minha


faculdade e logo arrumei um bom emprego
enquanto ainda estudava. Várias vezes eu
quis tirá-la dali, mas parecia que ela tinha
medo de recomeçar em qualquer outro lugar,
ela dizia “Já estou manchada, não tem mais
jeito pra mim, mas para você há esperança”.
- Não... Não consigo associar a pessoa
que está descrevendo com a mulher que
conheci.
- Mariana, não culpo você. Ela estava
desesperada e tentando defender-se.
Atingindo pra não ser atingida. Ela sofreu
demais quando a polícia a procurou. Não sei se
você soube. Sua tia, Kátia, entrou com um
processo.
- Eu não sabia.
- Mas depois retirou a queixa. Mesmo
assim, ela não podia suportar que você tivesse
sido agredida por ter ido procura-la. Foi aí que
ela me contou tudo. Até o dia que você
apareceu eu não sabia que tinha uma irmã.
- Onde quer chegar Arthur? - Mariana
perguntou com amargura.
163

Ela parecia muito pequena perto dele,


talvez o porte físico que o fazia parecer mais
velho que ela, talvez a enormidade de sua
presença e dureza de expressões que adquiriu
cedo na vida. Ou apenas aquele ar tão
paternal e bem-vindo que trazia ao mesmo
tempo proteção e desafio. Ou ainda a
semelhança com David. Ela não sabia, só
sabia que estava se sentindo intimidada e não
queria ouvir nada que fosse a favor daquela
mulher, sua mãe!
- Veja bem Mary. Tanto eu quanto você
crescemos cercados por maldições... Hoje
posso reconhecer isso. Mas Deus nunca nos
deixou desamparados. Sempre enviou alguém
para nos confortar e incentivar.
- Sei! E isso desculpa tudo que ela já fez
na vida?
- Não, também não estou menos prezando
sua dor. Mas a diferença entre mim, você e
nossa mãe é que... Nós abraçamos os braços
que nos foram estendidos e ela virou as costas
pelo orgulho.
- Como se fosse simples assim.
164

- Não é Mary. Mas isso não é mais entre


você e ela. É entre você e Deus!
- Deus? Você andou bebendo? – A irmã
ironizou apenas porque não queria ir fundo
naquela conversa.
Nesse interim ouviram a campainha tocar
novamente, ouviu-se passos e sabiam ser
David quem havia retornado. Arthur torcia
para que todos se unissem em intercessão
silenciosa na sala, e também sabia que sua
esposa havia ficado em casa intercedendo por
eles.
- Mariana, sinceramente agora que sabe
tudo gostaria que ela tivesse levado você pra
crescer no meio em que eu fui criado?
- Isso não vem ao caso!
- Claro que vem! Por mais doloroso que o
passado seja, foi melhor pra você crescer no
meio de uma família. Ainda que imperfeita e
cheia de problemas. Deus enviou David, depois
enviou Kátia e consertou o coração do próprio
Hugo em relação a você. Ele nunca te deixou
desamparada. Até quando tudo parecia
perdido Ele permitiu que aquela enfermeira, a
165

Dona Cristina, cuidasse de você. Será que


pode ver o cuidado de Deus em tudo?
- Já que é o senhor das respostas, então
me diga porque Deus levou meu pai? - Mary
gritou.
Arthur sentia uma dor profunda na alma,
a dor da irmã. Não tinha as respostas como
ela pensava. Então acalmou a voz o máximo
que pode e prosseguiu....
- Eu não sei Mary. Terá que perguntar a
Ele. Mas deixa eu te contar. Na noite em que
você apareceu na boate, eu saí da faculdade e
decidi andar um pouco. Há algum tempo eu
estava angustiado, minha vida não tinha
sentido. Eu olhava pra minha mãe e sentia
pena e ao mesmo tempo vergonha. São
sentimentos confusos demais para um filho. Eu
olhava pro Céu sem saber o que buscar, foi
quando um grupo de pessoas estava
evangelizando mendigos e servindo jantar
para eles. Eu observei. A comida tinha um
cheiro bom e aquelas pessoas pareciam felizes
em ajudar. Era como se eles estivessem
fazendo o que deveriam fazer e eu desejei
saber o que fazer da minha vida. Então um
166

senhor simpático se aproximou e puxou


assunto, e depois de algum tempo orou por
mim e me entregou um folheto. Eu não esqueci
o que ele disse, nem o que o folheto dizia.
- E o que ele disse afinal.
- Disse que minha vida mudaria
drasticamente naquela noite e que Deus
estaria comigo na luta terrível que eu iria
passar. Quando cheguei na boate a gangue
estava querendo matar você e eu a tirei dali e
nem sabia que você era minha irmã. Eu não
posso deixar de agradecer a Deus por ter
guardado nossas vidas e por você estar aqui.
Mariana ficou comovida. Ainda estava
muito confusa. As lágrimas não pediam
licença. Os dois tinham as vozes embargadas.
Sabiam que todos na sala podiam ouvir a
conversa. Mas não se importavam. Não
queriam mais segredos.
- Depois que saí de lá eu peguei o folheto
amassado no bolso da camisa e li que Deus
tem um amor especial por mim e enviou seu
filho Jesus para me religar com ele. No
momento não fazia sentido algum pra mim,
parecia apenas o discurso de uma religião
167

simplesmente. Mas a parte que dizia que Ele


me amava ficou gravada. Eu queria ser amado
e me sentir amado. – Arthur, aquele
homenzarrão deixava fluir lágrimas sinceras
diante da irmã. – Você precisa fazer as pazes
com Deus Mary e perdoar-se também.
Mary não respondeu nada. Ficou em
silêncio um momento e então sem saber o
porquê perguntou:
- E sua... nossa mãe? Onde está gora?
- Compreenda que se eu apenas quisesse
para mim uma vida nova, o que é
completamente compreensível e desculpável, e
a tivesse abandonado lá sozinha, eu não seria
tão diferente do que ela foi. Digo... das atitudes
que ela teve. Eu não quero ser somente
desculpável, Mary. Eu quero ser mais. Quero
ser um porto seguro onde as pessoas possam
encontrar abrigo. Entende?
- Mais sou menos.
- A Cristina que você conheceu foi um
porto seguro para você num momento de dor. É
isso que somos! Somos uma luz apontando o
caminho!
168

- Não sei se estou acompanhando o que


está me dizendo.
- Eu a trouxe para perto de mim Mariana.
Ela é minha mãe. Eu quero que ela tenha uma
chance de recomeçar também.
- Você o que!? – Mary levantou-se e David
entrou na cozinha mesmo sem ser convidado
e pôs as mãos no ombro dela impedindo-a de
sair da mesa.
- Você... Você também sabia disso David?
- Sim. Eu sabia e concordei.
- O que? Eu não acredito! Essa mulher é
um monstro! Ela destruiu tudo que eu tinha!
- Não Mary! Olhe a sua volta. Nada está
destruído. Você precisa liberar perdão e seguir.
Mas se insistir em carregar esse fardo de ódio
e rancor não será capaz de ver que tudo está
aqui. Tudo lhe foi devolvido, inclusive ela.
- Está vendo meu pai em algum lugar? Ele
não está aqui!
- Mary, Hugo se foi – David sussurrou
calmamente. Mas Arthur veio. Ninguém é
culpado do acidente. Infelizmente se Hugo
estivesse aqui, o resto não estaria. Consegue
ver? Hugo partiu tendo se redimido como pai e
169

como pessoa. Ele a amou e cuidou. E então


Deus o tomou para si. Mas enviou socorro e
cuidado em dobro. Sua mãe pecou, errou,
transgrediu, a abandonou. Mas também tem o
direito de se arrepender e ter o filho e o neto
por perto. Arthur é filho dela e deve muito a ela
como ele já te falou.
- Mary suspirou várias vezes e então
falou:
- É Tudo muito recente e difícil. Eu não
estou pronta pra vê-la novamente. Não
aguentaria sentir seu desprezo e zombaria
novamente.
- Nós entendemos. – David manteve-a
sentada de costas pra ele, enquanto estava de
pé com a cabeça apoiada em cima da cabeça
dela. Os cabelos soltos do coque revoltante
como um novelo brilhante e gigante. Os olhos
brilhando com tantas emoções. David olhava
fixamente para Arthur. E Arthur não tirava os
olhos das costas de David onde uma mulher
havia entrado silenciosamente. Os cabelos
escandalosamente longos e negros escovados
e deixados na lateral dos ombros caindo até a
cintura. O azul diamante dos olhos brilhantes
170

de lágrimas recém derramadas. A boca


semicerrada num grito mudo. A bela silhueta
marcada discretamente por uma jaqueta
puída e uma calça larga de veludo azul que
fazia contraste com os olhos e a pele. A
mulher beirava os 50 anos de idade, mas sua
aparência não lembrava velhice. Lembrava
juventude. Então quando o silêncio se
prolongou, David tirou as mãos dos ombros
de Mariana e a mulher se aproximou. Mariana
sentiu a presença dela e não se mexeu até que
ouviu sua voz. Agora uma voz branda e
sincera, marcada por muita dor e
arrependimento.
- Eu sinto muito de verdade. Sinto por
todo mal que fiz e por todas as decisões
erradas. Sinto não fazer parte de sua vida, e
sinto quase ter causado indiretamente sua
morte. Até aquele dia, mesmo com Arthur tão
perto daquele ambiente, eu nunca havia
sentido a morte tão próxima, como quando sua
vida ficou em risco ali.
Mariana levantou-se e virou devagar.
Não sabia o que estava sentindo. Mas ouvir
aquela voz... era sua mãe. Estava ali. Ela
171

encarou Pâmela. Olhou-a nos olhos,


sustentando o olhar cheia de expectativa e
curiosidade, a raiva cedendo para compaixão.
A mulher prosseguiu.
- Eu não vim manchar a vida de vocês,
nem a sua história, mais do que já manchei. Eu
só peço que me perdoe e se quiser eu vou para
longe novamente e não voltarei mais.
- Não! – Arthur soltou cheio de desespero
e súplica.
Mary olhou para ele. O conhecia há tão
pouco tempo, mas parecia que o conhecia a
vida toda. Ele fora tão sincero se expondo
daquele jeito. Era a mãe dele também. Era
tudo que tinham em comum. Se Mary não se
permitisse tentar, talvez a ligação com Arthur
e consequentemente com David jamais tivesse
chance de dar certo. David havia perdido a
mãe. O pai o havia abandonado, mas ela não
via rancor, nem mágoa nele. Talvez porque
David já havia conversado com Deus bem
antes, lá na infância. Ela compreendeu. Todos
ali naquela casa a haviam perdoado. Mary
precisava vencer a si mesma.
172

- Eu... não posso prometer que será fácil.


Eu posso tentar. Por nós todos. – Mary revelou
tremendo.
Pâmela desabou num pranto incontido,
Arthur a abraçou, Mary observava, a beleza
daquela mulher tinha sido sua maldição.
David pegou as mãos de Mary conduziu-a até
Pâmela e Arthur. Mariana não mostrou
resistência. Então Arthur se afastou e Pamela
abriu os braços. Mary jogou-se neles e na sala
ouvia-se soluços e sussurros e no Céu anjos
festejavam o perdão! Então quando tudo
parecia muito sério novamente Mariana
convidou:
- Acho que a senhora deveria vir ao lago
comigo amanhã. - E piscou para o futuro
marido.
- Você sabe pescar? - Pâmela duvidou.
- É claro que sim. Mas não é sobre
pescaria e sim sobre o grande salão natural
que será o palco da cerimônia do meu
casamento.
E da sala os curiosos não resistiram
exclamando:
- O lago!

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