Você está na página 1de 130

CHE 365

A CIGANA E O CAVALEIRO
KATHRYN KRAMER
TITULO ORIGINAL:UNDER GYPSY SKIES
Espanha, 1491
Ecos do Passado...
Alicia vivia entre os ciganos desde que se entendia por gente. Ela e Rafael de V
illasandro nunca haviam se encontrado, mas o destino o levou ao acampamento ciga
no,e antes de o dia terminar, Alicia salvara a vida dele, e ele conquistara o se
u coração...
Divididos entre o amor um pelo outro e a lealdade às suas origens, Alicia e Rafael
foram brutalmente separados. Julgando-se abandonada, e sentindo-se ameaçada pelo
filho mau-caráter da conselheira do grupo, Alicia decidiu fugir, deixando para trás
o seu povo e trocando uma vida de tradições pelas ruas da cidade grande. E quando Ra
fael se viu profundamente envolvido nas armadilhas da Inquisição, só restou a ele um últ
imo fio de esperança de, na corte da rainha Isabel, encontrar a justiça e cumprir um
a promessa de paixão feita a Alicia tanto tempo atrás...

Capítulo I

A noite possui mil olhos,


E o dia, apenas um;
Mas a luz do mundo inteiro perece
Quando o sol desaparece.
A mente possui mil olhos,
E o coração, apenas um;
Mas a luz de uma vida inteira se apaga
Quando o amor acaba.
F.W. Bourdillon, Luz

Iluminadas apenas pela luz da lua, as carroças avançavam ruidosamente pela estrada e
streita e tortuosa, em direção à floresta que ficava além da cidade de Toledo. À frente da
caravana, o cigano chamado Rudolpho cavalgava um garanhão
negro, um animal poderoso, controlado por um homem extraordinário. Os anos haviam
marcado o rosto de Rudolpho, mas ele ainda era uma figura que se destacava com s
eus ombros largos, queixo forte, olhos escuros e desafiadores e
um bigode preto de pontas caídas. Secando o suor do rosto com um lenço verde vivo, e
le levantou o braço, sinalizando que o grupo acamparia naquele lugar, na borda da
floresta e perto do rio.
Os outros homens da caravana começaram a posicionar suas carroças e cavalos em forma
de círculo, a desenrolar as tendas e a soltar os animais, para que pastassem na r
elva.
As mulheres e as crianças juntavam madeira para as fogueiras que seriam feitas, co
mo em todas as outras noites, para comemorar a liberdade dos ciganos.
Uma brisa quente sussurrou através dos ramos das árvores, fazendo voar a cabeleira r
ebelde e de um rico castanho escuro que caía, como uma cascata, até quase os joelhos
da jovem que saltava da primeira carroça. Dava azar uma mulher
cigana cortar o cabelo, segundo a tradição, e Alicia nunca havia aparado nem uma única
de suas mechas.
Ela riu, deixando o vento açoitar seus cabelos de um lado para o outro de seu rost
o e inclinando a cabeça para trás, em um gesto de suprema liberdade.
Uma linda mulher de dezessete primaveras, Alicia era alta e vivaz, os olhos verd
es brilhando como estrelas à luz da lua.
Alicia! A voz de Rudolpho era amorosa e mansa ao dizer o nome da filha, sem nenhu
m traço do trovejar feroz que tanto fazia alguns tremerem de medo. Alicia!
Ela avançou rapidamente com um sorriso envolvente, suas saias farfalhando ao andar
. A blusa branca e decotada era bordada com fios tão coloridos quanto as asas de u
ma borboleta;os brincos de ouro e prata balançavam com os seus
movimentos, no ritmo de seu andar gracioso.
O que foi, papai? perguntou ela, com uma expressão carinhosa nos olhos.
Eu apenas queria ver o seu doce rosto disse ele,desmontando do cavalo com a agil
idade de um homem da metade de seu tamanho e idade.
Alicia notou uma contração de dor ao redor da boca do pai enquanto ele esticava os b
raços e as pernas. Ele estava ficando velho, o rosto estava pálido e marcado. Ela de
sejava muito que outro homem o substituísse na liderança do
bando, tirando aquele fardo dos ombros dele, mas sabia que Rudolpho nunca consen
tiria nisso. Até a morte, ele seria o líder de seu pequeno grupo de nômades.
Rudolpho afastou um cacho do cabelo de Alicia, em um gesto de afeição, e a expressão d
ele se iluminou, mudando de sofrimento para orgulho. Lembrou-se da linda criança q
ue lhe havia sido entregue tanto tempo antes por uma mulher sem
coração, de cujo rosto ele já se esquecera.
Desde pequena, Alicia tinha traços delicados e olhos
grandes e expressivos.
Ah! Que linda mulher você se tornou sussurrou ele.
Só um príncipe seria bom para você.
Um príncipe! Ela estendeu a mão e tocou o ombro
dele. Nada de príncipe, papai. Vou me casar com um cigano como eu, certo?
Rudolpho não respondeu, limitando-se a olhar para ela com muita tristeza, como se
houvesse algo que ele lhe queria dizer. A filha se perguntou o motivo daquela súbi
ta mudança de humor, da expressão preocupada que ultimamente
tomava o rosto do pai com frequência.
O que foi, papai? Alguma coisa está errada?
Puxando Rudolpho pela manga de sua camisa verde-vivo,ela o levou até um aglomerado
de árvores. Talvez, longe do barulho e da confusão, ele relaxasse e lhe confidencia
sse suas ansiedades, raciocinou ela.
Os troncos das árvores gigantescas da floresta se erguiam em direção ao céu, sua folhage
m espessa encobrindo o luar.
Debaixo de uma dessas árvores, eles se sentaram sobre a relva úmida, ouvindo ao long
e as vozes do acampamento,que se misturavam com os sons da mata. O coro das aves
noturnas, o piar de uma coruja e o trinar dos grilos eram sons
reconfortantes.
Nem Alicia nem o pai disseram uma palavra por alguns minutos, e então ela quebrou
o silêncio, perguntando novamente a Rudolpho o que o preocupava.
Ele queria responder; precisava confiar nela, mas as palavras não vinham. Como pod
eria lhe dizer que ela não era um deles? Como despedaçar o coração daquela menina? Rudol
pho não conseguia contar àquela linda criança que ele trazia no
coração que ela não era sua filha verdadeira, nem da mulher que a trouxera para o acam
pamento quase catorze anos antes.
A criança era uma gorgio, uma não-cigana, mas bastou um olhar para ela para Rudolpho
sentir o coração cheio de afeição.
Apesar de tudo o que havia aprendido, ele adotara a criança como sua. As leis do b
ando para conservar a pureza do sangue cigano, porém, eram rígidas. Alicia nunca se
casaria com um deles. Como poderia ele lhe dizer isso naquele momento?
Ela era tão feliz e tinha tanto orgulho de ser uma cigana...
Papai?
Não sou mais jovem disse ele, tomando a mão dela nas suas. Preocupo-me com o que vai
acontecer com você quando eu for embora desta terra.
Embora? Não permitirei que o senhor me abandone,papai.
Típico dos jovens, isso de querer combater a morte, refletiu ele.
Não imagino a vida sem o senhor. Sempre estivemos juntos.
Ou, pelo menos, era isso que parecia. Mas havia ocasiões em que ela era perturbada
por sonhos, memórias de um outro lugar e de um outro tempo, que a assombravam. Al
icia tinha uma vaga ideia de ter pegado a mão de uma desconhecida,
que a empurrava com rudeza.
Ela havia imaginado que a mulher era sua mãe, mas Rudolpho sempre dissera que sua
mãe havia morrido quando ela nascera. As perguntas sobre sua infância e sobre a mãe se
mpre fizeram a testa do pai se enrugar de preocupação de forma que ela se conformou
com o silêncio dele.
Sempre? Rudolpho sorriu. Você está comigo há muito tempo, e todos os dias da minha vi
a eu agradeço o momento em que a encontrei. Você me trouxe muita felicidade.
Alicia sentiu o pai lhe apertar a mão. Apesar da idade, ele superava a maioria dos
homens, pensou ela. Um dia gostaria de se casar com um homem como ele.
Eu amo o senhor, papai.
E eu amo você disse ele, sorrindo. É fácil amar você, minha criança. Bela, selvagem e
, como os potros selvagens que tentamos domar.
Sou uma cigana! respondeu ela, empertigando-se e erguendo o queixo.
Ela estava satisfeita com a vida que levava, vagando com as carroças, acampando so
b as estrelas. Nunca desejaria ser uma gorgio. Pensar nos não-ciganos a deixava de
mau humor. Aqueles idiotas com cara de leite que sempre faziam o sinal da cruz
quando a caravana passava, olhando-a como se ela tivesse saído diretamente do infe
rno...
Havia muitas histórias sobre as origens do seu povo.
Alguns diziam que eles haviam vindo do exótico Egito antigo,que haviam fugido dos
sarracenos, movendo-se para o Oeste e o Sul. Mas Alicia acreditava em uma versão d
iferente: eles eram romani, vindos do vale do rio Indo, de onde haviam
saído muitos anos antes. Tinha muito orgulho de seu povo.
Alicia... disse Rudolpho, novamente com aquela expressão no rosto, perturbado, com
o se tivesse algo a lhe dizer.
Sim? respondeu ela, inclinando a cabeça e sorrindo.
Se ao menos Rudolpho conseguisse encontrar um homem do mesmo grupo dela, alguém qu
e a amasse e cuidasse dela quando ele não mais estivesse a seu lado... Se pudesse
encontrar esse homem para casar com ela, talvez tudo desse certo,no final das co
ntas, e Alicia nunca teria de saber a verdade.
Não é nada disse ele, tocando a ponta do nariz de Alicia com o dedo. Você é uma cigan
om toda a paixão e o fogo dos romani. Ele ainda não estava pronto para morrer. Ainda
tinha tempo.
Rudolpho! os outros homens o chamaram, depois de terem montado o acampamento.
Ouviu-se o som de música e sentiu-se no ar o cheiro de madeira queimando na foguei
ra. Estavam todos prontos para começar a tocar e a dançar enquanto a refeição da noite c
ozinhava.
Em geral, Alicia gostava de estar entre os outros, acompanhando a música com palma
s ou dançando, mas não naquela noite. A floresta era tão tranquila que ela queria fica
r só mais um pouquinho com o pai.
Vamos voltar disse Rudolpho, levantando-se. Estão sentindo a nossa falta.
Vá o senhor, papai. Eu vou daqui a pouco. Os pássaros estão cantando a minha música favo
rita. O riso dela era tão melodioso quanto o borbulhar do riacho que corria ali pe
rto.
Rudolpho beijou o rosto da filha.
Entendo, meu bem. Mas tenha cuidado. Nunca se sabe que tipo de animal essas mata
s escondem.
Não se preocupe.
Ela sabia que o pai se referia àqueles que odiavam os ciganos.
Estavam em uma fase perigosa. Um tal de Torquemada havia dito que os ciganos não p
odiam ser cristãos por causa de seu jeito selvagem e livre. Ele os chamava de feit
iceiros,blasfemos, astrólogos, observadores de ritos, contrários ao cristianismo, ab
stêmios dos sacramentos e fornecedores de poções do amor.
Alicia não sabia o que muitas daquelas palavras significavam,mas tinha noção de que el
e era o responsável pela morte de judeus e dos chamados marranos, judeus convertid
os à fé do Santo Deus que, segundo se dizia, praticavam em
segredo a fé judaica.
Não deixarei que nada de mal me aconteça, papai anunciou ela para depois colocar a mão
na pequena faca escondida no cinto.
Olhando para o céu, para a luz da lua infiltrada através das nuvens, ela sentiu uma
onda de magia primitiva. Alicia não sabia quando exatamente seus pés tinham criado a
sas,mas de repente viu-se correndo sobre a relva e o musgo
macio da floresta.
Movendo-se por entre as árvores, que a protegiam do perigo de olhos pouco amistoso
s, ela se entregou ao esplendor silencioso da noite. As estrelas brilhavam como
pequenas fogueiras de acampamento acima da terra, e ela parou por
tempo suficiente para olhar para a luz delas.
De repente, um som agudo lhe chegou aos ouvidos. Não era um barulho feito por algu
m animal da noite. As corujas e os pássaros noturnos não gritavam assim, e os animai
s não praguejavam de raiva. O que ela ouvia era uma voz
humana!
Alicia conteve a respiração e apurou os ouvidos. Eram vozes de homens, falando não em
romani, mas em espanhol.
Ela sentiu vontade de fugir, sabia que se tivesse juízo iria embora, mas sua curio
sidade levou a melhor. Quem teria perturbado aquela doce noite? Aqueles homens r
epresentariam algum perigo para seu povo? Avançou, tomando o cuidado
de se esconder nas sombras, determinada a descobrir do que se tratava.
Cristo! Você o matou, Manuel! exclamou um dos homens de pé perto da margem do rio.
Cale a boca, José! Nós tínhamos de bater nele com força. Ou você acha que deveríamos pedi
om delicadeza que ele nos entregasse suas jóias e ornamentos?
Não, mas tínhamos de matá-lo? E se chegar alguém...
Ele foi interrompido por um gemido baixo que escapou dos lábios do homem que estav
a no chão. Ele não está morto!
Jogue-o no rio. Rápido, antes que ele volte a si. A ordem foi dada em uma voz tão fr
ia quanto as neves das Terras Altas.
Jogá-lo?
Sim, e agora ou, por tudo o que é sagrado, você vai com ele!
Alicia viu os dois homens levantar a vítima do chão, arremessá-lo nas águas turbulentas
e, depois, saírem correndo.
Eram ladrões e haviam matado um homem, deixando-o para se afogar! Ladrões gorgios.
E eles tinham o descaramento de criticar os ciganos e insultá-los. Um cigano nunca
se rebaixaria ao ponto de fazer um ato tão traiçoeiro quanto aquele, pensou Alicia
com
raiva. Ela se perguntou se o homem que fora lançado ao rio era um gorgio ou um cig
ano de um outro bando. Mas isso importava? Um homem iria morrer afogado se ela não
agisse depressa. O que mais poderia ela fazer, a não ser tentar
salvá-lo?
Sem pensar duas vezes, Alicia pulou no rio gelado, arfando ao ser envolvida pela
s águas frias e profundas. Estava acostumada a nadar, mas a correnteza a puxava pa
ra baixo.
Sentiu os pulmões arder, na busca de ar, enquanto continha a respiração. Os ouvidos de
Alicia zumbiam forte, e suas saias pesadas ameaçavam puxá-la para o fundo.
O Del. O Del clamou ela, pedindo ajuda a Deus. Imaginou se morreria com aquele e
stranho. Não. Ela era forte, era uma cigana, afinal!
Lutando contra o medo, Alicia movimentou as pernas furiosamente para impelir o c
orpo para cima e, ao chegar à superfície, tragou com avidez o doce néctar do ar e da v
ida.
Então viu o corpo do estranho a alguns metros de distância e, com braçadas fortes, apr
oximou-se daquela forma que começava a afundar. Era como se Deus estivesse respond
endo às suas súplicas.
Ela sabia nadar desde menina, mas sempre havia nadado no verão, quando as águas são qu
entes, e não nos rios gelados do outono. Mesmo assim, lutando contra a correnteza,
ela sabia que venceria o rio.
No primeiro momento, aquela prisão de água lhe pareceu infinita, mas ela nadou vigor
osamente até o homem. Agarrouo por um braço e pelos cabelos, e o puxou até a superfície.
Ele tinha engolido água e estava sufocado. Mais uma vez,Alicia clamou por o Del, não
mais pela sua própria vida,mas pela daquele estranho. Precisava levá-lo até a margem
do rio e, como que em resposta às suas orações, as correntes
subiram, arrastando os dois para a margem.
Com toda a sua força, Alicia puxou o estranho para fora da água, feliz ao sentir a r
ocha sob seus pés. Inclinando-se sobre o homem, sentiu-lhe o pulso. Estava fraco,
mas havia sinal de vida.
Ela então se lembrou de uma vez em que uma criança caíra no rio e fora retirada por Ru
dolpho. Seu pai havia sugado a água para fora do corpo da criança e pressionado-lhe
as costas. Ela faria o mesmo.
Viva! gritou Alicia, enquanto massageava o corpo dele, como Rudolpho havia feito
com a criança. Ao ouvir o gemido do homem, ela repetiu: Viva! Ele não poderia morre
r. Não depois de tudo aquilo. Fosse ele gorgio ou cigano,isso não importava. Aquele
homem tinha de viver.
Virando-o de costas, ela pressionou a boca contra a dele,soprando o ar da vida n
os pulmões do estranho e sentindo uma fagulha de sua existência descer para ele. Ele
era um homem grande e musculoso, e tinha cabelos escuros e
espessos que lhe caíam na testa.
Alicia ficou chocada com o forte sentimento que a dominou ao tocar a boca dele.
Afastando-se do estranho,ela sentiu medo, ainda que não soubesse de quê. Teve
vontade de ir embora, mas ele a chamou de volta.
Não... não me deixe... quem...? sussurrou ele, com a voz rouca.
Olhava-a fixamente, com uma expressão de surpresa e confusão no rosto. Tentou se sen
tar, como se pretendesse segui-la caso seu pedido não fosse atendido. Alicia ficou
assustada com a intensidade daquele olhar penetrante. Era como se ele a tivesse
enfeitiçado.
Deite-se, poupe as suas forças murmurou ela em espanhol.
Como ele tremia de frio, Alicia o cobriu com seu peso até que ele parasse de treme
r. Examinando melhor o rosto daquele estranho, ela ficou hipnotizada com a força e
a beleza que via ali.
Os olhos dele eram cercados por cílios escuros, e ela se perguntou de que cor seri
am à luz do dia. Ele não tinha a coloração dos romani; a pele, os cabelos e os olhos era
m
mais claros. Aquele homem não era cigano. Mesmo assim, ela o admirou. Foi preciso
dois para dominá-lo, pensou. Dois covardes.
Quando os olhares de ambos voltaram a se encontrar, ainda que por apenas um mome
nto, Alicia pensou no que sua avó e conselheira, a phuri dai do grupo, dizia: que
se uma pessoa salvava a vida de outra, as suas almas se uniam por toda a eternid
ade. Isso seria verdade? A resposta veio em uma onda de sensações e, naquele momento
, ela soube que aquele homem era, de alguma forma, parte do seu destino.
A chama trêmula da vela iluminava o rosto do homem deitado sobre a cama rudimentar
, de pano e palha, dentro da carroça cigana. Os olhos de Alicia passeavam por aque
le corpo forte, enquanto ela limpava gentilmente o sangue da
cabeça dele com um pano umedecido em um chá de ervas curativas.
Quem é você? perguntou, embora soubesse que não receberia resposta do estranho adormec
ido.
Ela nunca tinha estado tão próxima de um gorgio antes, e a aparência dele a fascinava.
Ele não tinha a compleição morena nem os pelos faciais dos homens ciganos. O rosto ti
nha linhas suaves e o cabelo caía-lhe nos ombros, à moda
espanhola. As sobrancelhas eram espessas; as maçãs do rosto, altas e salientes; o na
riz, elegantemente esculpido.
Um homem extraordinariamente bonito.
Alicia mantinha uma vigília constante sobre ele, enxugando o sangue de seu rosto e
lavando o ferimento em sua cabeça com uma mistura de hidraste, água e mirra. Quando
ele gemia, adormecido, ela o acariciava e sussurrava palavras
doces, para aliviar o sofrimento.
Foi uma luta levar o homem semiconsciente até o acampamento,mas ela, de alguma for
ma, conseguiu. Teve, porém,de enfrentar um outro obstáculo: os homens ciganos, sempr
e desconfiados de qualquer estranho, disseram que ela não deveria ter levado um go
rgio para o acampamento, que a presença dele era um mau presságio, que ele traria má s
orte para eles. Mas Alicia se manteve firme na determinação de cuidar
dele. Todos sabiam que ela era uma gata selvagem quando contrariada e, no final,
os outros ciganos haviam recuado, ainda que seus olhares sombrios a tivessem ac
ompanhado quando Alicia e Rudolpho o levaram para a carroça.
Circularam murmúrios enraivecidos, que Alicia não compreendia,de que os anciões do ban
do tinham sido tolerantes demais com ela. Era como se os mais velhos soubessem d
e algum segredo. Normalmente, Alicia teria ficado curiosa,
mas sua preocupação com o gorgio ferido não demorou a afastar essa curiosidade de sua
mente.
Ao tirar o gibão molhado do gorgio, cheio de cordões e laços, a camisa de seda franzid
a no pescoço e nos punhos,debruada com um belo bordado espanhol de fios de seda ve
rmelhos, dourados e negros, Alicia ficou encantada com a beleza do vestuário do ho
mem. A roupa elegante não era nem um pouco prática, mas a fascinava. Rudolpho e ela
haviam rido das calças engraçadas do gorgio, agarradas às pernas dele como uma segunda
pele.
Enquanto enxugava o suor do homem com uma toalha e trocava suas roupas, Alicia d
eixou seus olhos vagar pelo corpo nu. A pele macia e lisa do estranho era dourad
a onde havia sido exposta ao sol, mas onde a luz solar não a havia tocado, era alg
uns tons mais clara. Um punhado de pelos cobria o peito largo e formava uma tril
ha fina e reta até o umbigo; os braços eram musculosos; a cintura, estreita; as pern
as, retas e fortes, e a masculinidade dele era bem definida.
Só de olhar para ele ficava estranhamente excitada,seu sangue se agitava em um cal
or lânguido e um desejo que a deixava envergonhada. Uma moça direita não deveria ter p
ensamentos como aqueles.
Como que sentindo os olhos penetrantes dela, o homem estremeceu no sono, soltand
o um gemido, e Alicia correu para acalmá-lo.
Você está em segurança aqui. Ninguém lhe fará mal.
E ela tinha toda a intenção de cumprir essa promessa.
Indefeso em seu repouso, ele tinha despertado todos os instintos protetores de A
licia, que jurara fazer tudo o que pudesse para garantir a segurança dele. Ela peg
ou uma manta, estendeu-a sobre o corpo nu para protegê-lo do frio da
noite, e sentou-se no chão a seu lado.
Por um bom tempo a vigília de Alicia transcorreu tranquilamente,tanto que uma ou d
uas vezes ela quase cochilou.
Mas, de repente, aquela calmaria foi interrompida por um grito do estranho:
Não! Não! Não me matem. Ele se debatia, como se estivesse lutando com os assaltantes n
ovamente. Não me matem, pelo amor de Deus! Vocês são covardes. Dois contra um. Maldito
s bastardos!
Levantando-se de um pulo e curvando-se sobre ele, Alicia tentou acalmá-lo. Seus ol
hos se encontraram com as profundezas escuras dos dele, que haviam se arregalado
de forma tempestuosa. Olhos de um castanho-escuro profundo encontraram os dela.
Eram tão escuros e tão selvagens quanto os
olhos de qualquer cigano.
Quem... sussurrou ele, estendendo a mão, entrelaçando os dedos nos fios macios e sed
osos dos cabelos dela e puxando-a para mais perto de si.
Alicia respondeu ela rapidamente, tentando se afastar daquele olhar fixo. Mas el
e a segurava pelo cabelo. Por favor, me solte. Não fui eu quem tentou fazer mal a
você.
E aqueles homens?
Foram embora. Eles jogaram você no rio e depois saíram correndo como os covardes que
são. Eu tirei você do rio.
Você? Os olhos escuros penetrantes pareciam enxergar através dela, até o fundo da alma
. Em seguida, ele sorriu. Linda bruxa... Soltando-a, ele voltou a fechar os olho
s.
Bruxa? A palavra a magoou. Ela lhe salvara a vida dele e ele a chamava de bruxa,
aquele homem bonito de lindos olhos castanhos!
Gorgio mal-agradecido! praguejou, dando-lhe as costas com raiva.
Por causa do ferimento na cabeça, Alicia decidiu continuar a tratá-lo. Ajoelhou-se a
o lado dele mais uma vez. Que ele a chamasse do que quisesse. Depois ela lhe dir
ia a verdade:não era um bruxa, mas sim uma pessoa que curava.
As horas passaram lentamente, as velas queimaram até o fim, e Alicia continuava à ca
beceira dele. Mais uma vez perdido no nevoeiro dos sonhos, o gorgio se agitava e
virava durante o sono, murmurando:
Marrana. Eles a chamaram de Marrana. Judia. Eles a condenaram à fogueira e eu não pu
de salvá-la. Eu não sabia.
Ele estendeu a mão, como se estivesse se afogando novamente,e mais uma vez Alicia
lhe ofereceu conforto, perguntando-se por quem ele estaria enlutado. Pela amante
?
Pela esposa?
Censurando a si mesma, lutou contra o ciúme que sentia.
Não tinha direito nenhum sobre aquele homem, por mais que ele mexesse com seus sen
tidos. Ele era um gorgio, e ela,uma cigana.
Alicia sabia que ele estava naquele estado de semi consciência entre a realidade e
o sonho. Ele voltou a sussurrar alguma coisa e ela se inclinou mais para ouvir,
mas recuou ao ouvir as mesmas palavras:
Bruxa... Adorável bruxa...
Ela ia protestar, dizer que não era uma daquelas velhas encarquilhadas e malignas,
mas antes de as palavras saírem de sua boca, Alicia sentiu o toque quente e suave
dos dedos dele em seu peito, o que provocou um estremecimento de
desejo que percorreu todo o seu corpo. A mão dele se encaixou no seio farto de Ali
cia, acariciando o mamilo através do tecido fino da blusa com uma ternura infinita
. Ela pegou a mão do gorgio com a intenção de afastá-la, mas a sensação
era tão excitante que não teve coragem de detê-lo.
Ele nem sabe o que está fazendo, pensou, olhando para o rosto do estranho, que dor
mia. Sentiu uma aguilhoada de dor no coração, ao pensar que talvez ele estivesse son
hando com outra. Sua vontade era de ser dona do desejo dele, por mais
tolo que fosse esse anseio. Foi tomada por uma vontade violenta de que ele acord
asse e estendesse a mão com a intenção de tocá-la e chamá-la de linda.
Como que respondendo ao seu desejo, a mão do estranho se moveu para baixo, desliza
ndo sobre a pequena cintura de Alicia e descansando na curva cheia do seu quadri
l. Ela nunca imaginara que a carícia de um homem pudesse provocar
uma reação tão forte como aquela, fazendo seu coração disparar num ritmo tão furioso.
Ela lembrou e relembrou muitas vezes o que a velha avó tinha lhe ensinado sobre o
ato do acasalamento, e não conseguiu deixar de imaginar como seria ficar com aquel
e homem.
Seria esse um pensamento pervertido? Alicia não sabia por quê, mas não lhe parecia alg
o errado. Ao contrário, era tão natural quanto respirar.
Buscando o calor do corpo dele, Alicia se deitou ao lado do estranho e se aninho
u na segurança daqueles braços fortes, fechando os olhos para esperar o amanhecer.
O som de cavalos relinchando, pássaros gorjeando, cachorros latindo e crianças rindo
acordou Rafael de Villasandro de seu sono profundo. Abrindo os olhos lentamente
, na expectativa de se encontrar em seus aposentos, assustou-se enquanto seus ol
hos vagavam pelo espaço fechado de algum tipo de carroça coberta. Viu as pequenas ja
nelas, as paredes de madeira, a lona pendurada no outro extremo, servindo
de porta.
Mãe de Deus, onde estava?
Rafael começou a se levantar, nervoso e confuso, e foi então que viu a jovem deitada
a seu lado. Ficou hipnotizado pelo rosto mais bonito que já havia contemplado na
vida. Então não tinha sido um sonho, ela existia!
Ao se mover, acabou por roçar o peito nos seios de Alicia e suas coxas tocaram as
dela com uma intimidade que o excitou.
Rafael avaliou a moça deitada a seu lado. Os cabelos escuros espalhados podiam ser
comparados a uma capa do mais escuro dos veludos; a compleição impecável era de um to
m creme escuro, e os cílios eram longos e espessos. Os lábios
eram cheios e feitos para ser beijados. Mas foi o corpo de Alicia que o fez vibr
ar: pernas longas, busto cheio e firme que ele ansiava tocar, uma cintura que el
e poderia enlaçar com as mãos e quadris arredondados e perfeitos. Mesmo
totalmente vestida, ela possuía curvas que faziam os menestréis padecer e transforma
vam os homens em idiotas apaixonados.
Adormecida, parecia um anjo, mas ele sentia que, acordada, ela seria uma mulher
de personalidade forte. Tratavase de uma mulher cigana, a julgar pela carroça.
Ciganos...
As mulheres eram conhecidas pela beleza, mas em toda a sua vida nunca tinha vist
o uma como aquela. A palavra cigano evocava desprezo e medo, e ele se lembrou das
histórias ouvidas desde a infância. No entanto, Rafael não podia evitar sentir algo di
ferente em relação àquela moça.
Recordava-se vagamente de ela lhe ter salvado a vida.
Todas as lembranças da noite anterior e dos homens que o haviam assaltado passaram
, como um turbilhão, pela mente.
Ao levar a mão à cabeça, tocou o calombo sobre a têmpora.
Sua cabeça latejava.
Bastardos! xingou ele em voz alta, despertando e assustando a moça cigana que dorm
ia a seu lado.
Alicia acordou, encontrando olhos escuros penetrantes que a avaliavam, e ficou r
uborizada ao se lembrar da forma como ele a havia tocado durante a noite. Ficou
em dúvida se ele também se lembrava. Abriu a boca para falar, mas estava perturbada
demais para dizer qualquer coisa.
O gorgio, no entanto, não se intimidou:
Olhos verdes. Belos olhos verdes, como o mar... É real a lembrança que eu tenho de v
ocê inclinada sobre mim como uma ninfa do mar?
Você me chamou de bruxa sussurrou ela, ainda magoada.
Rafael segurou-lhe o rosto com as duas mãos e forçou-a a fitá-lo.
Eu só quis dizer que você me encantou com a sua beleza. Não tive intenção de ofendê-la.
Por um longo momento, eles se entreolharam em uma intensa comunicação silenciosa. De
pois, ele tentou se sentar.
Ainda estou fraco como um potro recém-nascido disse ele, sentindo-se engolfar por u
ma onda de tontura.
Você vai recuperar a sua força. Conheço ervas curativas que funcionarão como uma mágica.
licia sorriu, mostrando os dentes perfeitos e brancos como pérolas.
Mágica cigana...
Ele suspirou, desconfiado por apenas um momento,lembrando-se das histórias que ouv
ira sobre bandos maltrapilhos que envenenavam pessoas, roubavam crianças,
lançavam bruxarias e furtavam.
A expressão do rosto dele, com as sobrancelhas levantadas,enfureceu Alicia. Todos
os velhos ressentimentos,a lembrança das multidões de gorgios os insultando a inunda
ram.
Sentando-se também e endireitando os ombros para trás, ela levantou a cabeça com orgul
ho, os olhos disparando fagulhas.
Mágica que cura, gorgio! Aceite-a ou dane-se!
Rafael inclinou a cabeça para trás e riu, um som profundo e alto.
Você é mesmo cheia de fogo! Eu não me enganei sobre você.
O riso dele a deixou furiosa e, em um ataque de mau humor, socou o peito dele co
m as mãos fechadas em punhos,esquecendo-se por um momento que ele estava ferido.
Como ousa rir de mim?! Eu deveria ter deixado você no rio! Diabo gorgio! O Beng!
Ele parou de rir e seus olhos assumiram uma expressão gentil, como poças escuras que
pareciam envolvê-la com seu calor.
Eu não estava rindo de você, adorável cigana, mas desta situação. Ao tentar colocar a m
s cabelos dela,Rafael gemeu de dor, devido ao movimento. Diabo, sinto a cabeça com
o se todos os soldados de Castela marchassem
pelo meu cérebro!
O gemido de dor fez com que a raiva de Alicia passasse,e no mesmo instante esten
deu a mão na direção dele, com a intenção de examinar o ferimento. Antes de ela completar
o movimento, porém, ele agarrou a mão estendida, tomou-a na sua e beijou a palma com
lábios gentis para alguém tão másculo e forte. A sensação da boca daquele homem sobre sua
ele fez com que Alicia sentisse que uma faísca havia sido acesa, percorrendo-lhe o
corpo inteiro.
Você está arrependida de ter me salvado?
Confusa e amedrontada, ela se afastou, fitando-o com os olhos verdes arregalados
.
Talvez eu esteja contente, apesar de tudo, de não ter deixado você morrer afogado.
Ele sorriu e o coração de Alicia deu um salto. Ele sim,que é um bruxo, que lançou um fei
tiço em mim, pensou ela.
Ser observada daquele jeito a fazia tremer, e o simples toque das mãos fortes a de
ixava lânguida. Ficar perto dele causava-lhe uma dor prazerosa no baixo-ventre. Ne
nhum outro homem jamais a fizera se sentir assim tão estranha.
Alicia provocava os rapazes ciganos com seus olhos sorridentes e o balançar dos qu
adris, mas sempre se mantivera distante e fora do alcance das mãos e dos olhos fam
intos que a perseguiam. Mas agora sentia uma estranha vontade de ser prensada co
ntra o peito musculoso daquele homem e ser confinada pela força dos braços dele.
Meu Deus, como você é bonita! Ele estendeu a mão na direção dela, puxando-a para o abra
e ambos almejavam.
O pulso de Alicia se acelerou com a paixão que via nos olhos dele. Saber que era d
esejada era algo tão potente quanto qualquer poção de amor cigana. Assim, entrelaçou os
braços ao redor do pescoço dele e lhe ofereceu os lábios.
Alicia conteve a respiração enquanto a boca do estranho descia sobre a sua. Rafael a
beijou como um homem que possuía uma grande sede a saciar, envolvendo-a e acarici
ando-a.
Ela se entregou às violentas emoções que dominavam seu corpo, respondendo ao beijo com
uma fome própria, extasiada pela experiência de sentir pela primeira vez os lábios de
um homem.
Oh, gorgio! murmurou quando, por fim, se afastaram.
Arrebatada por emoções e sensações inusitadas, Alicia se esqueceu de tudo o mais. Isso a
té baixar os olhos e notar,debaixo do tecido fino que o cobria, a dureza pulsante
da masculinidade dele. Enrubesceu, constrangida, livrando-se dos
braços que a envolviam. Seus olhos se encheram de medo,não do rapaz, mas de si mesma
.
Não, não me toque! Levantou-se depressa e ficou de pé, encarando-o.
Rafael tentou se levantar, querendo capturá-la nos braços novamente, mas a tontura o
deixou incapaz de fazer qualquer coisa, a não ser contemplá-la. Os olhos de Alicia
estavam tão apreensivos como se ela estivesse diante de um touro
indomado. Nada poderia extinguir o ardor dentro dele mais depressa do que ver a
expressão daqueles olhos assustados.
Perdão. Eu não deveria ter agido assim, doce cigana
desculpou-se ele.
O que o deixava assim tão atordoado, o seu ferimento ou a proximidade daquela ciga
ninha?
Alicia não respondeu e apenas evitou encará-lo. O forte rubor de seu rosto fez com q
ue ele percebesse o motivo do medo. Para evitar maiores constrangimentos, puxou
um cobertor que estava debaixo de seus pés e cobriu-se.
Então ela era inocente, pensou, desapontado. Já havia ouvido falar de como os cigano
s guardavam as suas virgens.
Ele teria de tirar da cabeça todos os pensamentos lascivos.
Mas isso era mais fácil de dizer que de fazer. Ali estava ele, nu como Adão, com uma
mulher tão bela quanto a própria Eva.
Como poderia não pensar em fazer amor com ela? O ar ficou tenso, o silêncio quebrado
apenas pela respiração levemente arfante de ambos.
Suas roupas devem estar secas agora. Eu as coloquei perto do fogo.
O seu nome... Eu não me lembro...
Alicia respondeu ela, jogando a cabeleira escura para trás. E o seu, gorgio?
Rafael Córdoba de Villasandro. Ele sorriu, os olhos ardentes e maliciosos. Eu gost
aria de me levantar e me curvar, como manda a etiqueta, mas temo que ficaria emb
araçado diante da senhorita, sem as minhas roupas. Os olhos dele dançavam alegrement
e. Ou a senhorita preferiria que eu a saudasse da maneira apropriada, como deve
fazer um cavalheiro espanhol?
Não, não. Ela enrubesceu novamente.
Uma coisa era vê-lo nu dormindo, outra bem diferente era deparar com aquela força másc
ula. Um homem forte e bonito, que ela não deveria permitir que a tocasse.
Vou buscar suas roupas e volto, gorgio... Rafael.
Alicia saiu correndo da carroça e viu um grupo de homens reunido perto de uma das ár
vores para o ritual do lançamento de facas e outros que se ocupavam dos cavalos. T
odas as cabeças se voltaram quando ela passou. Alicia notou o ressentimento
nos olhos deles.
Recolheu as roupas e voltou para a carroça antes que alguém lhe dissesse alguma pala
vra ferina. Não estava envergonhada de ter abrigado um outro ser humano, nem de te
r salvado uma vida. Que eles se danassem. Rudolpho lhe dera o seu consentimento
para o que fizera. E ele era o líder.
Quando ela voltou à carroça, o gorgio havia conseguido sair da cama e estava de pé, a
cabeça e os ombros inclinados levemente, tentando manter o equilíbrio.
Suas roupas, gorgio! disse ela, deixando-as no chão e enfatizando a palavra gorgio .
Eles eram diferentes, pertenciam a dois mundos distantes.
Por mais doces que fossem os beijos trocados, não havia futuro para os dois juntos
.
Ele ficou magoado pelo tom gelado daquelas palavras.
Gorgio? Por que me chama de gorgio? Eu lhe disse que meu nome é Rafael e é assim que
eu quero que você, Alicia,me chame. Eu não tenho medo de dizer o seu nome.
Ela levantou a cabeça e enrijeceu os ombros.
Não tenho medo de chamá-lo pelo seu nome. Sou uma cigana corajosa. Apenas me esqueci
como se chama, só isso.
Alicia lhe deu as costas enquanto Rafael se vestia, sabendo que em seguida ele i
ria embora e viajaria para longe.
Por que era tão doloroso pensar nisso? Mas não havia alternativa,era assim que dever
ia ser. Era o destino.
Quando eu puser as mãos nos dois que abriram a minha cabeça, eles vão desejar nunca te
r nascido ela o ouviu murmurar. Diabo! Ainda estou atordoado.
Alicia virou-se, estendendo a mão para ampará-lo. Suas mãos sentiram a força dos braços de
le e, naquele momento,toda a sua determinação desapareceu.
Só mais uma vez... Ela queria experimentar o calor dos lábios dele apenas mais uma v
ez. Um desejo apaixonado e voluptuoso gritava em suas veias.
Alicia... Eu detesto ter de deixá-la, mas sou obrigado a fazê-lo. Que isso seja o me
u agradecimento e a minha despedida.
De repente, Rafael se apoderou dos lábios de Alicia,exatamente como ela tinha dese
jado. Um beijo apenas, que lhe devastou os sentidos. Envolvida em um redemoinho
de sensações violentas, ela estendeu os braços delgados e puxouo
para mais perto de si. Abandonou-se ao fluxo de sensações que a dominava, consciente
apenas do seu próprio corpo, que ansiava pelo toque daquelas mãos fortes.
A intenção de Rafael era que aquele fosse um beijo de despedida,mas ele foi dominado
pelo desejo. Não se lembrava de ter desejado uma mulher com tanto desespero. Se a
quela mágica pudesse durar para sempre... Mas ele sabia que isso não seria possível. P
recisou de todo o seu autocontrole para afastar-se dela, abalado pela paixão que p
assara entre os dois.
Percebeu que Alicia também estava deslumbrada e confusa,e isso o agradou.
Talvez algum dia...
Eu tenho de ir, mas quase venderia a minha alma para ficar disse Rafael com a vo
z doce.
Ela virou o rosto para esconder as lágrimas que ameaçavam sair de seus olhos, determ
inada a não chamá-lo de volta.
O som do couro macio das botas dele ecoava nas batidas do coração de Alicia ao sair
da carroça.
Não vou chorar. Sou uma cigana sussurrou, passando a mão no rosto e sentindo que est
ava molhado.
A névoa de sofrimento que a envolvia foi rompida por gritos vindos de fora da carr
oça.
Você, gorgio! Você não vai a lugar nenhum. Ainda não gritava Stivo.
Ao reconhecer a voz do índio perigoso, Alicia correu até a entrada da carroça e olhou,
horrorizada, a cena que se desenrolava do lado de fora. O gorgio estava deitado
de costas sobre a relva com uma faca encostada ao pescoço. Com os olhos brilhando
tanto quanto uma fogueira, quatro homens do bando se debruçavam sobre Rafael de V
illasandro.

CAPITULO II

Nao, Stivo! - gritou Alicia, jogando-se sobre um dos quatro ciganos e cravando n
ele as longas unhas, tentando tirar-lhe a faca da mão.
Stivo era muito maior do que ela, mas o único pensamento de Alicia era salvar o go
rgio.
- Largue-me, sua bruxa! - urrou Stivo.
Ele sabia que Rudolpho estava do outro lado do acampamento consertando o eixo de
uma carroça e não poderia vir socorrê-la, por isso deu-lhe um empurrão que a levou ao c
hão. Os outros índios continuaram a dominar o forasteiro.
- Deixe-o em paz! - gritou Alicia, levantando-se para atirar-se contra eles com
mordidas, socos e pontapés.
-Não queremos machucar você, Alicia! - bradou Todero,o mais gentil dos quatro. - Só qu
eremos impedir que seu amigo o gorgio,vá embora. Não podemos confiar que ele
nãoo vá denunciar o local do nosso acampamento e nos colocar em perigo.
- Voce se esqueceu de Torquemada, 0 próprio 0 Beng? - perguntou Stivo, aos gritos.
- Os gorgios são nossos inimigos.
- Não este gorgio. Eu não salvei a vida dele para lobos. como vocês, o destroçarem.
- Eu me recuso a ser mantido prisioneiro! - gritou Rafael. - E não permitirei que
uma mulher entre em uma briga que é minha.
Ele encarou Stivo. O cigano era alto e forte, e tinha uma expressão de arrogância n
o rosto moreno, mas Rafael não se intimidou.
- 0 senhor não será nosso prisioneiro, mas nosso hóspede - disse Stivo, sorrindo. Du
rante três dias, gorgio, até levantarmos acampamento.
- Não, eu tenho de ir agora - respondeu Rafael, furioso.
- A minha palavra não é suficiente? Não falarei sobre o seu acampamento a ninguém. Um de
vocês - os olhos dele se dirigiram para Alicia - salvou a minha vida. Sou grato.
Por que trairia vocês?
- Por dinheiro, gorgio! disse o outro jovem, Dionisio, com desprezo. - Já fomos tr
aídos por gente da sua laia.
Todero concordou com um gesto de cabeça.
- Eu não gostaria de ir para a fogueira. Existem muitas pessoas que odeiam os ciga
nos mais do que detestam os judeus. Não, você ficara conosco ate que a ultima carroça
da nossa caravana esteja bem longe. - Ele se dirigiu para Alicia, procurando aca
lma-Ia. - Nós não faremos mal a ele, a não ser que haja um motivo. Cabe a você manter se
u amigo gorgio na linha. Foi você que o trouxe aqui.
O quarto jovem, Ramón, concordou.
- Três dias - sussurrou ela, desistindo de tentar persuadi-Ios a soltarem Rafael,
devido a perspectiva de tê-lo por perto por mais três dias.
Ah, se nós, os ciganos, pudéssemos realmente fazer encantamentos, eu daria a ele uma
poção do amor que prenderia o coração dele ao meu para sempre!, pensou ela.
- Você se sente atraída pelo homem que tirou do rio - disse baixinho uma voz atrás del
a. Virando-se, Alicia viu Rudolpho avaliando-a com seus olhos gentis.
Ela nunca tinha conseguido mentir para o pai.
- É verdade. Nunca antes conheci alguém assim. Forte, porem gentil, alem de muito bo
nito. É como se o destino o tivesse jogado nos meus bravos.
- Alicia ...
Ela viu a dor nos olhos do pai interpretou erroneamente o seu significado.
-Sei que é proibido uma pessoa do bando casar-se com um gorgio.Também sei que tenho
de chegar virgem ao leito matrimonial. Não posso deixar o gorgio me tocar. Assim e
sta escrito, e eu entendo.
- Mesmo assim, você o quer. Vejo isso nos seus olhos, Alicia.
Rudolpho pensou em lhe contar então que ela também era uma gorgio, não uma cigana. Por
tanto estaria livre para se juntar ao forasteiro, se assim o desejasse. Mas não se
ria melhor esperar um pouco? Quem sabe os dois se apaixonariam.Pensar dessa form
a fez com que um peso fosse tirado do seu coração. Durante todos aqueles anos ele se
angustiara pensando em como lhe diria que ela não poderia se casar com um dos cig
anos. - Alicia, este gorgio ...
- Sei o que o senhor vai dizer, papai. Eu nunca vou desonrá-Io, por mais que o gor
gio incendeie o meu sangue. Quando ele for embora, dentro de três dias, terei uma
lembrança agradável para sempre no meu coração e saberei que o Del sorriu para mim.
- Alicia ...
Os dois se dirigiram para a fogueira comunitária. As mulheres, como sempre, tirara
m a sorte para determinar quem prepararia a refeição matinal. Alicia teve de colocar
a carne no espeto, um trabalho que odiava. Mas uma cigana nunca se recusava a f
azer a sua tarefa para o bando. Enquanto trabalhava, o rosto do desconhecido não l
he saia da cabeça. A lembrança dos lábios dele sobre os seus estava marcada a fogo na
sua alma.
- Voce salvou um gorgio? - perguntou Vashti, enquanto todos comiam ao redor da f
ogueira.
- Ele e bonito - acrescentou Solis, sorrindo.
Todos sabiam que Solis era uma mulher ardente. Era casada com um dos homens mais
velhos, que não mais podia satisfazer os desejos dela. Ninguém entendia direito por
que o marido não a castigava pela sua natureza libertina.
Alicia sentiu uma ponta de ciúme e olhou para a mulher com uma expressão que dizia o
que sua boca calava: Ele é meu.
- Você o tirou do rio? - A voz de Zuba tinha um que de medo, já que a água corrente a
deixava apavorada.
Alicia contou rapidamente o que acontecera, ansiosa para ir para perto de Rafael
. Pensou em levar comida, pois ele na certa estava com fome. Talvez carne de cab
ra e um pouco de galinha.
Depois que os outros ciganos tinham comido, Alicia se aproximou do caldeirão comun
itário e ficou satisfeita em não encontrá-Io vazio. Havia mais do que o suficiente par
a o gorgio. Ela serviu a comida no seu próprio prato, já que não havia sobressalentes,
acrescentando algumas frutinhas e cogumelos. Era uma pena que naquele dia não hou
vesse ouriço, um dos pratos preferidos dos ciganos.
Ela procurou até encontrar onde Stivo havia levado Rafael, a barraca de Dionisio.
Levantou a lona e ficou sem fôlego ao ver o pobre gorgio amarrado como um animal.
Ele tinha as mãos atadas as costas e uma perna presa por uma corda a estaca centra
l da tenda. Stivo era um carcereiro cruel.
- Eu lhe trouxe um pouco de com ida, Rafael disse ela, suavemente.
Ele se limitou a fazer um gesto de assentimento com a cabeça.
- Você não esta com fome? E precise manter as forças.
- Como vou comer com as mãos atadas as costas? - Os olhos escuros flamejavam de ra
iva.
- Eu o solto, mas só se você jurar que não vai tentar fugir.
- Então, pelo menos você acredita que eu sou digno de confiança -foi a resposta mordaz
dele. - Juro pela abençoada Virgem Maria que não lhe darei motivo de preocupação.
Ela o fitou nos olhos e viu que ela realmente estava triste pela situação e resolve
u manter a sua palavra. Alem do mais, ele estava faminto.
Sem mais nenhuma palavra, Alicia soltou as mãos de Rafael. Ele a pegou pelos pulso
s e a puxou para perto de si. - Você não gosta de me ver amarrado. Isso quer dizer q
ue gosta de mim, minha cigana?
-Não gosto de ver ninguém confinado, gorgio. Os ciganos dão valor á sua liberdade.
-Então deixe-me ir embora. Liberte-me, Alicia. Ajude- me a fugir-sussurrou ele no
ouvido dela.
Estar tão perto de Rafael mexia com os sentidos de Alicia, a ponto de lhe satisfaz
er as vontades.
- Não, não posso. Nunca poderia trair o meu povo -disse ela, acrescentando mentalmen
te: Nem mesmo por você. Libertando-se do contato intimidador, pegou o prato de com
ida e entregou-o a ele.
Preciso de um garfo - disse ele, pegando o prato.
- Não temos talheres, Rafael - respondeu Alicia. Já tinha ouvido falar daquele utensíl
io tolo, cujo uso os gorgios tinham importado dos orientais.
- Uma colher, então.
Ela riu.
- Não usamos colheres, gorgio. Isso é bobagem. Só precisamos dos dedos.
Rafael deu de ombros e começou a comer. Estava faminto demais para discutir boas m
aneiras a mesa. A carne era condimentada e dura mas parecia-lhe deliciosa. O pra
to não demorou a ficar limpo.
- Você gostou? Quer mais? - perguntou Alicia.
- O que é? Carne de boi?
- De cabra.
- De cabra?
Rafael nunca havia comido carne de cabra antes. Só os camponeses comiam uma coisa
daquelas ... ou os ciganos.
- Só lamento que não tenhamos ouriço. Com tantos espinhos, é difícil tirar o couro, mas é t
saboroso!
- Ouriço! - exclamou ele, estremecendo.
A distancia entre eles era maior do que o que pensara. Mas quando ele deparou-se
com aquele sorriso encantador, percebeu que essas diferenças não importavam. Seria
verdade que os ciganos faziam feitiços? Aquela moça sem dúvida o enfeitiçara.
Alicia também percebeu o quanto eles eram diferentes e ficou imaginando como seria
a realidade dele.
Ouvira dizer que o mundo dele era dominado pela Igreja dos gorgios. Definitivame
nte, não se sentiria livre e feliz nesse mundo. Se o mundo deles era tão maravilhoso
como Rafael achava, por que as pessoas pareciam tão tristes? Havia famintos nas r
uas de Castela, León e Aragão, muita pobreza e ganância egoísta. Entre os ciganos não havi
a nada disso. Eram uma família. Ninguém passava fome.
Os dois ficaram se entreolhando e, perdidos em seus pensamentos, tentavam entend
er a atração que sentiam.
- Alicia! Sua tola! Você o desamarrou. Ele poderia ter fugido - repreendeu Stivo,
que chegara sem ser notado.
- Ele me deu a sua palavra.
- Ah! De que vale a palavra de um gorgio? - Stivo amarrou Rafael novamente e o e
mpurrou para o chão. - Da próxima vez, eu o vigiarei enquanto ele come. È só olhar para
você que se percebe que você tem uma queda por ele, Alicia. Você não vê que ele pode causa
r a nossa morte? Na cidade diz-se que, depois que a rainha Isabel e o rei Fernan
do expulsarem os judeus do pais mais uma vez, será a vez dos ciganos.
Ele pegou o braço dela e a conduziu para fora da tenda.
Ao sair,Alicia olhou para Rafael e ficou impressionada com a devastadora sensação de
perda que a invadiu. Mas ela voltaria.Ninguém, muito menos Stivo, a manteria long
e de seu gorgio.
Rafael andava de um lado para o outro na tenda, com uma corda amarrada no tornoz
elo. A cada momento que passava, mais furioso ele ficava. Ciganos de uma figa! S
elvagens, isso é o que eles eram,pensou.O tal de Stivo era o que mais o enfurecia.
Rafael tinha percebido os olhares daquele cigano arrogante na direção de Alicia.
Ele não acreditava que seria libertado depois de três dias. Não confiavam nele, e a de
sconfiança era mutua.
Eles vão cortar o meu pescoço e me deixar para os abutres quando levantarem acampame
nto, pensou amargamente. Só prometeram a Alicia que me libertariam para que ela não
me desamarrasse, mas Stivo tem um brilho assassino nos olhos. Não passam de ladrões
ciganos.
Como uma criatura adorável e gentil como Alicia podia pertencer aquela gente? Ele
não conseguia imaginá-la roubando ou lançando um mau-olhado. O lugar dela não era ali. S
e pudesse levá-la consigo quando fosse embora ... Mas Rafael sabia que isso era im
possível e que talvez nem saísse dali vivo. Se levasse consigo uma beldade cigana, e
le se tornaria alvo de desprezo e desonra.
Ele tinha de fugir. Mas seria possível se libertar com tantos olhos o vigiando? A
licia era sua única esperança de sobrevivência e liberdade. Suspirando, ele se sentou
no chão de terra da tenda e tentou elaborar um plano.
Alicia olhava para a imensidão do céu, onde milhares de estrelas brilhavam. Quando
era criança, pensava que as estrelas eram os olhos de Deus ,olhando para ela, pois
Rudolpho lhe dissera que Deus era o céu, o Ser Supremo. Será que 0 Del, o Deus único,
via o que se passava em seu coração? Ele via o que senti a pelo gorgio e que estava
dividida entre o dever para com o seu povo e o amor por Rafael? Muitas vezes el
a se sentira tentada a libertá-lo, mas se contivera devido aos ensinamentos de Rud
olpho sobre as leis do bando.
Era verdade que Rafael não era um deles, mas não era certo tratá-Io daquela maneira. A
principio, sentira uma felicidade secreta porque o teria por perto por mais três
dias, mas agora se envergonhava daqueles pensamentos egoístas, ao perceber a humil
hação que ele estava sofrendo. Mas não poderia libertá-Io. As leis do banda eram um laço m
uito forte entre o grupo. Se pelo menos Rafael fosse um cigano ...
- Sonhando com o seu gorgio? - perguntou Stivo.
- Não - mentiu ela. - Mas você poderia tratá-Io com respeito.Como podemos condenar a f
orma como os gorgios nos tratam quando agimos da mesma maneira?
- Ele é um prisioneiro é um gorgio. E ele não esta em uma masmorra infestada de ratos.
- Nosso prisioneiro? E qual foi o crime dele?
- Todos os gorgios são nossos inimigos, e nós, deles.
Foram eles que estabeleceram essas leis. Nós só queremos que nos deixem em paz - res
pondeu Stivo, de dentes cerrados. - Não foi ele que veio ate nos. Eu a trouxe. Ele
foi atacado por dois ladrões gorgios. Por que não pode libertá-Io?
- Você é uma mulher - disse Stivo, com desprezo.Não entende nada desses assuntas. o se
u lugar e cozinhando diante de uma fogueira ou aquecendo a cama do seu homem!
Stivo foi embora. Mais tarde, porem, Alicia percebeu que ele não tinha ignorado to
talmente as suas palavras, pois viu Rafael sentado em frente a fogueira. Ele tin
ha os pés livres, ainda que estivesse cercado por Stivo, Todero, Ramón e Dionísio.Quan
do os olhares se encontraram,ela leu os seus dizendo obrigado .
Alicia se sentou com as mulheres do outro lado da fogueira ,mas seu olhar era co
nstantemente atraído para onde Rafael estava. Antes de a caravana partir, dentro d
e dois dias,ela precisava sentir o beijo dele novamente, pela ultima vez. Ela se
lembraria disso quando os frios ventos do inverno soprassem do Norte. Ainda naq
uela noite ela iria procurá-lo. Que mal poderia haver? Apenas um beijo ... O ultim
o beijo ...
Pouco depois, começaram as danças noturnas. Normalmente, Alicia ficava entre as pes
soas que assistiam aos bailarinos,acompanhando o ritmo da musica com palmas. Mas
naquela noite ela sentia um desejo irresistível de participar, como se uma força pr
imitiva a movesse. Começou a dançar ao som da guitarra. Um calor desconhecido lhe pe
rcorria as veias, e ela se abandonou as sensações, acompanhando o ritmo da musica, d
oce e sensual. Era como se ela tivesse se tornado parte da musica.
Rafael a observava com os olhos ardentes, sentindo no coração que ela dançava apenas p
ara ele. Inflamado pela dança de Alicia, ele não conseguia tirar os olhos daquelas c
urvas, que desejava desesperadamente tocar. Sentiu o sangue disparar nas veias,
o coração parecia bater ao ritmo da dança. Mesmo que ele vivesse até os noventa anos, nu
nca se esqueceria da imagem de Alicia dançando.
Os olhares de ambos se encontraram e Alicia passou a imaginar que estava sendo
amada por ele, abandonando-se a sentimentos tão antigos quanto o próprio tempo. Esqu
eceu-se de todas as outras pessoas. Só Rafael existia.
O ritmo da musica acelerou, os violões passaram a tocar o flamenco da Andaluzia. E
la se movia cada vez mais ,rápido, tomada pela paixão. Quando a dança terminou, os esp
ectadores, extasiados, gritavam:
- Alicia, Alicia!
Rafael também gritava o nome dela, desejando arrastá-la para a floresta. Mas o olhar
gelado de Stivo o advertiu que bastava um movimento em falso para que ele se ar
rependesse. No entanto, talvez ainda houvesse uma possibilidade ...
Alicia desmoronou no chão, tão exausta quanto estivera depois de salvar o gorgio. Er
a como se estivesse saindo de um transe, como se a musica a tivesse enfeitiçado, f
azendo com que expressasse com seus movimentos o que não podia dizer com palavras:
que ela o havia escolhido e que o queria.
Do outro lado do acampamento, Rudolpho sorria, satisfeito. O coração de sua filha an
siava pelo gorgio. Era como se o Del tivesse respondido as suas orações. Os anciões do
bando conheciam o segredo do nascimento de Alicia, e isso facilitaria as coisas
. Ele poderia casar sua filha com Rafael e adotá-lo no bando, como acontecera com
Alicia. Todos os anos de preocupação pareciam prestes a terminar.
Pousou os olhos sobre o gorgio e o aprovou. Ele era forte, másculo e bonito. Da me
sma cepa de Alicia. Os dois formariam um par perfeito. Ele não poderia ter escolhi
do um marido melhor para a filha.
A única preocupação de Rudolpho era se o gorgio não quisesse viver com o bando, como um
cigano. Ele não toleraria que alguém lhe tirasse a menina. Mas o Del não teria conduzi
do aquele gorgio até ali para levá-la embora.
Não, Rudolpho ganharia um filho, 0 marido de sua filha.
Alicia salvara aquele homem para que ele tivesse uma nova vida, junto com o band
o. Ele teria de conversar com Rafael, fazê-lo ver que seu destino era fazer parte
da caravana.
-Stivo, solte o gorgio e traga-o ate mim. Quero falar com ele!- disse Rudolpho,
com a intenção de resolver o assunto logo.
-Faça o que eu digo!
Obedecendo,ainda que com relutância,ao comando do líder do bando,Stivo cortou as ama
rras.Rudolpho fez um sinal para que Stivo levasse Rafael até ele e,nesse momento o
s dois ciganos se encararam em um confronto silencioso.
Foi a brecha que Rafael precisava. Alicia passava perto dele,com o coração cheio de
amor, e ele a agarrou com força.
-Perdoe-me, Alicia, mas está á a minha única chance.
Ele tirou a faca que a tinha visto esconder no cinto e bramiu a arma. Sabia que
nunca a usaria contra ela, mas foi se afastando, usando a moça como escudo e grit
ando ameaças. O plano tinha chance de funcionar porque os ciganos não sabiam que el
e
jamais a machucaria.
Rafael fugia, e ela estava surpresa demais para resistir.
Sentia-se arrastada a como um boneco. Apenas quando ele a jogou sobre um cavalo
e a prendeu com os braços, como sua refém, Alicia soltou um grito.

CAPITULO III

Rafael cavalgava em um ritmo alucinado,o que não era fácil com a jovem cigana prague
jando sobre o animal.Diversas vezes, os chutes e os movimentos bruscos dela por
pouco não os derrubaram do cavalo.
- Seu filho de uma juke!! Bastardo! Eu o amaldiçoo, Rafael de Villasandro! Que os
vermes lhe comam a carne! Que você pereça todo o seu ouro! Que a colheita dos seus c
ampos se pereça! Que a sua masculinidade murche!
- Calma, Alicia! Você não entende o quanto eu odeio usar você para fugir? Você me salvou
a vida duas vezes, mas eu não poderia continuar como prisioneiro. Não peço que me per
doe, mas apenas que compreenda!
E ela compreendia. No fundo do Coração, senti a que 0 que ele dizia era verdade. Mas
seu temperamento selvagem a fez continuar:
- Você me enganou, gorgio! Você é a própria encarnação do O Beng!
Mas logo ela parou com suas pragas. Nunca admitiria, mas aquele sequestro era mu
ito romântico, e ate excitante. Que mulher nunca tinha sonhado em ser levada a força
pelo homem que amava? Mas para onde estavam indo? Ela não queria deixar os cigano
s nem seu pai. Rudolpho devia estar muito nervoso!
- Gorgio! Para onde você está indo? - perguntou,ardendo-se a curiosidade.
- Para Toledo. Tenho de achar os homens que me roubaram. Pelas roupas e pelo sot
aque dele, é de lá que eles são. Vou lhes mostrar como se trata um nobre!
-Leve-me de volta seu miserável!-gritou Alicia, voltando a se debater.-Não vou com v
ocê!
O temor do mundo gorgio intensificava sua fúria. Já tinha estado antes em Toledo, e
os gorgios tinham jogado maças podres na caravana e não permitiram que eles acampass
em na cidade. Também estava preocupada com seu pai.
- Não quero ir para Toledo!
Ele não tinha intenção de leva-Ia tão longe, apenas o suficiente para garantir sua própria
segurança. No entanto, só de pensar na beleza de Alicia, no corpo dela se abrindo p
ara ele como uma flor,sentia-se tentado.Desde o primeiro momento em que abrira o
s olhos e se deparara com ela inclinada sobre ele,tinha se sentido atraído. Queria
beija-Ia, tocá-la, afogar sua dor e tristeza na doçura e no calor daquele corpo cur
vilíneo.O desejo o incendiou, tão ardente quanta as fogueiras dos ciganos, alimentad
o pelo roçar dos seios dela contra seus braços enquanto a moça se debatia. Quanto mais
cavalgavam, mais aumentava a atração que sentia por Alicia.
Más ele nem queria pensar no que lhe aconteceria se os ciganos opegassem. Roubar a
filha do líder tribal, um cavalo , uma faca e fugir do acampamento, como ele tinh
a feito, sem duvida os deixara sedentos de vingança. Mas não estava arrependido, far
ia tudo de novo.
Rafael olhava para trás com frequência, atento a sinais de que estava sendo seguido.
Não encontrou nenhum.
Ele sorria, sussurrando um nome ao vento:
-Alicia ...
O cabelo dela cheirava a flores do verão, soltos ao vento.
Ela não mais o xingava, 0 que era um alivio. Não saberia dizer por quanto tempo viaj
aram. Só parou quando sentiu que Alicia estava totalmente esgotada.
Ele a pegou nos braços, e a respiração dos dois se misturou quando ele a beijou, doce
mente. Por um momento, enquanto olhava dentro dos olhos dela, Rafael quase se es
queceu do perigo.
- Alicia, você me perdoa?
Ela afastou os cabelos para trás.
- Talvez sim, talvez não, gorgio provocou-o.
Mas já o havia perdoado, pois teria feito 0 mesmo se estivesse no lugar dele. E es
tavam juntos. Será que isso com provava uma atração mutua? Talvez, com paciência e esper
teza, ela conseguisse convencê-Io a retornar para os ciganos. Se ele voltasse por
sua livre vontade, isso os convenceria de suas boas intenções. Alicia deixou que os
seus sonhos prevalecessem sobre a razão. Só sabia que ainda não lhe era possível deixar
Rafael.
- Perdoe-me, Alicia.
- Veremos - disse ela, sorrindo.
Naquele momento, Rafael percebeu que queria mais que o perdão. Ansiava por seu amo
r. Alicia mexia com ele como nenhuma outra mulher havia feito antes. Ela era com
o um sonho, uma mistura fascinante de suavidade e paixão incontrolável. Se as coisas
fossem diferentes, poderia tê-Ia a seu lado para sempre. Mas era impossível ir cont
ra a realidade, por mais bonito que fosse o seu sonho. Ela não se adaptaria longe
dos ciganos. Quando chegasse a Toledo, ele a deixaria para trás, e só de pensar niss
o, sentiu a alma dilacerada. Não importava o quanto a desejasse, ela era 0ofruto p
roibido. Mas saber disso não fazia com que seu desejo desaparecesse.
Estava esfriando, e Rafael se preparou para passar a noite naquele lugar. Começou
a juntar folhas debaixo de uma arvore nodosa, para servir de cama para os dois.
Estava
determinado a não tocar em Alicia, mas esse voto enfraquecia á cada momenta que pass
ava.
Juntos e sozinhos no meio da noite, os dois se tornaram tímidos e silenciosos. A c
orrente de expectativa crepitava entre eles como a tensão antes de lima tempestade
.
-Agora eu sou sua prisioneira,gorgio?- ela quis saber rompendo o silêncio.
Ele estendeu a mão e afastou uma mecha do cabelo dela dos olhos.
-Não impossível você se tornar prisioneira de qualquer homem. - Ele a puxou para si. -
Meu Deus, como você é linda! Você não tem idéia de como eu a desejo.
Alicia recuou um pouco, uma virgem tremula, assustada diante do desconhecido. El
a também o desejava, mas as leis do seu povo proibiam essa paixão. Algum dia, quando
ela se casasse seu marido exigiria sua virgindade. O que faria então caso se ent
regasse aquele gorgio! Não podia fazer isso.Não devia.
-Não Rafael,por favor não me toque.
-Eu não a tocarei,a não ser que você queira, Alicia.
Eu nunca faria mal á você.
Os dois sentaram lado a lado, debaixo da arvore. Ela olhou para as estrelas.
-Nós, ciganos, acreditamos que cada homem e cada mulher da Terra pertence a uma es
trela.
Rafael pôs as mãos nos ombros dela, fazendo o tecido escorregar, roçando a pele alva.
-Alicia ...
Ele suspirou, pegando em seguida a mão miúda e levando-a aos lábios, demorando-se sobr
e as linhas da vida que determinavam o destino.
Ela não se afastou. Era tão fácil esquecer todo o resto, ali sozinha com Rafael!
-Eu quero você, Alicia. Por favor, não se negue a mim, minha pequena e amada cigana!
- gemeu ele, sem poder mais lutar contra o desejo:
Ele se inclinou e a beijou delicadamente. Alicia confiou nele, sem reservas: Ai
nda mais agora que descobrira que seu amor era retribuído. Tudo daria certo. Ele n
unca a magoaria, e talvez Rudolpho permitisse que se casassem.
- Por favor, deixe-me amar você, Alicia.
Outro beijo se seguiu, dessa vez mais ávido, a língua quente passando por entre os láb
ios carnudos e explorando o interior da boca de Alicia. Ela nunca imaginara que
um beijo pudesse incendiar o seu sangue daquele jeito. Nem mesmo a dança a fazia s
e sentir daquele jeito.
Como que presa em um encantamento, ela sentiu a realidade desaparecer enquanto R
afael puxava sua blusa para baixo, deixando nus os seus seios. Não fez nenhum esfo
rço para esconder o corpo. O pudor já tinha desaparecido. Aquele era o seu destino,
pertencer aquele homem.
Rafael beijou-lhe suavemente os bicos dos seios até Alicia perder o fôlego, estremec
endo, com as mãos agarradas aos cabelos dele. Com toques suaves, explorou aquelas
colinas, enquanto ondas de prazer se espalhavam pelo corpo feminino. Rafael era
um amante perfeito, demonstrando o amor intenso que sentia.
Ele se afastou apenas por um momenta e tirou a própria roupa. Depois, removeu lent
amente as ultimas barreiras entre os dois. Alicia usava sete saias e, como as péta
las de uma flor, ele as tirou uma a uma.
- Linda. Mais linda do que eu poderia imaginar. ..
E realmente, Alicia era bela: pernas longas, busto cheio, cintura fina. Era feit
a para ser amada. Mover a mão pela maciez do ventre de Alicia era um ato de adoração p
ara Rafael. A pele era macia como seda. Uma brisa fria tocou os mamilos dela, de
ixando-os intumescidos, como que pedindo para ser tocados, e ele o fez.
Ela sentiu uma alegria imensa ao ver, nos olhos dele, que o corpo dela o agradav
a. Era tudo como deveria ser. Ele era seu homem·
Estendeu as mãos para tocá-lo, e elas deslizaram sobre a cavidade rígida dos ombros e
peito dele. A pele era quente.
-Adoro que você me toque...
Rafael gemeu fechando os olhos.Ah,se tudo pudesse ser sempre assim,se ele não tive
sse nunca que deixá-la...
Sua boca fechou-se sobre a dela em um gesto ardente de posse.Ao senti-la estreme
cer, soube que Alicia experimentava o mesmo êxtase.
Ela a puxou para o chão a seu lado, os corpos de ambos contorcendo-se juntos em um
a dança lenta e sensual. Eram passos semelhantes aos que Alicia dançara no acampamen
to,mas dessa vez ela tinha um parceiro.
-Juro que nunca me senti assim- sussurrou ele com sinceridade.
A boca de Rafael desceu indo buscar os segredos da feminilidade,e alicia se abri
u para ele como um botão na primavera,gemendo de prazer e dominada por um anseio s
em limites.
Seu corpo respondia como que por vontade própria. Todos os temores ou duvidas que
ela tivera foram esquecidos, e sua paixão ardia. Correspondeu aos toques dele, exp
lorando o corpo do amante como ele havia feito com o seu. Sentia-se feliz com os
gemidos de prazer que ouvia.
Quando Alicia estava úmida e desejosa, Rafael a penetrou com gentileza. Ela deu um
grito de dor quando ele transpôs o marco da sua virgindade.
- Quer que eu pare? - perguntou ele, apreensivo.
- Não ... - Ela ofegou. - Eu quero você ... - Ela morreria se fosse abandonada naque
le momento.
Rafael respondeu consolando-a com beijos, as mãos nas curvas do quadril, encaixand
o-se na maciez dela com movimentos suaves, enquanto sussurrava seu nome:
-Alicia...
Lentamente, ele começou a se movimentar para a frente e para trás, e toda a dor pass
ou, sendo substituída por um fogo que parecia engolfá-Ios. Os corpos se uniram torna
ndo- se apenas um.
Ondas de prazer se espalharam pelo corpo de Alicia, que o puxava contra si, com
o êxtase que os dois compartilhavam espelhados nos olhos.
- Ah, Rafael! - ela gritou, fechando os olhos, em uma declaração de amor.
O próprio o Del devia ter sorrido, pensou Alicia. Sem duvida, fora ele quem lhe en
viara aquele homem.
Depois de terem compartilhado uma paixão imensa, ficaram deitados juntos e calmos,
relutando em se mexer para não quebrar o encanto. E assim adormeceram.
Carrancudo, Rafael de Villasandro olhava as montanhas distantes na luz da aurora
. Sabia que não poderia levar Alicia consigo. Tinha uma missão a cumprir e tinha de
ir sozinho.
Alicia. Até o nome dela parecia mágico e lhe tocava o coração. Ela era linda, a menina c
igana que dormia a seu lado, confiante e inocente. Sabendo que iria magoa-Ia, el
e se sentiu mais desprezível do que um cão raivoso.
Já pedi uma vez que você me perdoasse, doce Alicia, pensou, tocando suavemente o ca
belo dela. Ela se mexeu ao seu toque, mas não acordou.
Por que ele tinha permitido que a paixão os dominasse na noite anterior? Uma vez e
la o chamara de 0 Beng, e ele se sentia mesmo um demônio, ao pensar que tinha tira
do vantagem do amor dela, sabendo que a abandonaria ao amanhecer.
Deveria ter mantido a determinação de não tocá-la, mas era como se tivesse sido empurrad
o por uma força poderosa. Era mais que apenas luxuria. Era assustador pensar que h
avia perdido seu coração e sua alma para uma cigana, mas era verdade.
Que Deus ajudasse a ambos. Eles pertenciam a mundos diferentes, e um amor entre
eles não tinha a menor chance.Ele não poderia juntar-se á caravana cigana de Alicia e
vaga pela Terra. Ela, que era livre como um pássaro, também não seria feliz em seu mun
do.
Por Deus, Alicia, me perdoe. Teria sido melhor para nos dois se você tivesse me de
ixado morrer afogado, pensou Rafael, angustiado.
Ela lhe havia salvado a vida, tinha entregado sua virtude a ele, e ele se prepar
ava para abandona-Ia. Mas não tinha alternativa. Nada poderia separá-lo da missão que
tinha que realizar, nem mesmo aquela cigana.
O medo da atração que sentia por ela o fez tremer.Alicia estaria melhor com seu própri
o povo.Ele tinha que acertar contas com os dois que o haviam assaltado e, depoi
s ajudar as pessoas cujo destino estava ligado ao seu por causa do sangue de sua
mãe.Talvez algum dia eles voltassem a se encontrar,se o destino fosse benevolente
.
Rafael pegou a maior parte das sete saias de Alicia e cobriu o corpo nu dela. Não
quis acordá-la, furtando-se a enfrentar a dor e a fúria que veria nos olhos dela ao
saber que ele iria embora. Ele já a tinha ouvido praguejar antes e sabia que a própr
ia floresta vibraria com os insultos.
Deixou a faca, que pertencia a ela, e o cavalo, decidindo que seguiria a pé. Era 0
mínimo que podia fazer. Fitou-a pela última vez, com o coração apertado e remoído pela cu
lpa. Más era inevitável. Ele era um gorgio, como ela o chamava,e ela uma cigana. O d
estino deles estava selado.
- Adeus, Alicia - sussurrou, e então partiu.
Envolta no calor da manha, Alicia abriu os olhos para a luz do sol. Respirou fun
do e sorriu, lembrando-se da noite que passara nos braços de Rafael. Nunca imagina
ra que pudesse existir tanta felicidade, e muito menos que a encontraria nos braço
s de um gorgio.
- Rafael! - Suspirou.
Mas ele não estava a seu lado. Olhou em volta, desapontada. Para onde ele teria id
o? Viu o cavalo, Grai, pastando por perto. Rafael devia estai por ali, talvez ti
vesse ido procurar algo para comer. Mas então Alicia viu a faca e entendeu que ele
não havia ido caçar. Talvez estivesse tentando pescar com algum galho pontudo. Peix
e ia bem com frutas silvestres, pensou, levantando-se para colher algumas.
Ao pegar suas roupas, que estavam espalhadas, Alicia viu as manchas de sangue em
sua saia de baixo, sobre a qual se deitara quando fizera amor com Rafael. Era a
prova da sua virgindade. Ele não teria nenhuma duvida de que tinha sido o primeir
o amor da vida dela.
O meu único amor, pensou.
A noite de núpcias tinha acontecido antes do casamento, mas tudo daria certo. Rafa
el a amava. Ele não teria sido tão gentil e tão carinhoso se não a amasse.
Alicia foi colher as frutas silvestres, sempre olhando ao redor, procurando Rafa
el. Aonde ele teria ido? Ela começou a se preocupar. E se algo lhe tivesse acontec
ido? Se aqueles homens tivessem voltado e o matado?
- Rafael! - gritou, tentando tirar aquelas idéias da cabeça. - Rafael!
O canto dos pássaros foi a sua única resposta.
De repente, sentiu-se muito só e assustada, não por si mesma, mas por ele. Deveria t
er ido procurá-lo logo. Ele era um gorgio e não conhecia a floresta como ela. Ele po
deria ter tropeçado e caído em um buraco, ou torcido o tornozelo.
Agachou-se e examinou detalhadamente o chão, como havia aprendido na infância. Era fác
il seguir um rastro humano quando se sabia 0 que procurar. Um galho mais inclina
do, uma pedra pressionada mais profundamente no solo, um trecho de relva pisada.
Todos esses eram sinais que, como setas,apontavam o caminho tomado.
Assim ela encontrou a trilha de Rafael, cada vez mais distante do local onde tin
ham feito amor. Para onde ele estava indo? Por que não tinha voltado?
Alicia se recusava a dar ouvidos a voz da razão,que dizia que Rafael a havia aban
donado. Ele nunca faria isso. Não depois de ter tirado sua virtude. Nenhum homem d
e honra faria uma coisa dessas.
Mas ele e um gorgio, argumentou a voz da consciência.
Não, Rafael a amava. Ele voltaria. Embora as evidências fossem se tornando cada vez
mais claras, a medida que ela, com o coração despedaçado, caminhava em seu encalço.
O Del, por favor, me ajude! - bradou ela, olhando para o céu.
Como que em resposta a sua prece,ela sentiu uma onda de calor lhe percorrer o co
rpo.O Del estava com ela.Ele sabia da sua dor.
Era preciso enfrentar a verdade.Rafael a abandonara e fora embora sozinho de vol
ta para o seu povo.
As lagrimas corriam pelo rosto de Alicia. Uma cigana não deveria chorar por um gor
gio. Afinal, ela era uma romani, e portanto, corajosa. Mas saber que havia sido
deixada para trás quase a destruía. A tristeza foi se transformando em raiva, uma Ir
a tão quente quanta as chamas do desejo.
- Gorgio bastardo!
Ele a havia usado. Usado a bondade e o amor dela para fugir. Bem que os outros a
haviam alertado, mas ela não, lhes dera ouvidos. Tinha se deixado dominar pela be
leza máscula de Rafael, pelo seu toque e pelo seu sorriso. Agora compreendida o ódio
de Stivo. Tinha aprendido por si mesma quão traiçoeiros eram os gorgios. .
Por outro lado, quando Rafael a beijara ... Não! Não podia pensar nisso nunca mais.
Ele a havia desonrado. Ela se tornara uma vergonha para o seu povo. A virtude er
a o tesouro de uma mulher,e ela tinha sido empobrecida pelo êxtase do beijo de um
homem.
Alicia se ajoelhou e chorou. Ficou alheia a tudo, sem saber por quanta tempo até o
uvir o som de cascos de cavalo e sentir braços fortes a levantando.
- Alicia, Alicia, não chore. - Rudolpho limpava as suas lagrimas com as mãos. - Cont
e-me o que aconteceu.
- Fui uma tola, papai -disse ela, entre soluços. - Pensei que ele me amasse. Eu di
sse ao senhor que não faria, mas eu ... eu fiz.
- Onde ele está? - perguntou Rudolpho, bravo.
- Foi embora. Ele me deixou para trás - respondeu
Alicia, enterrando o rosto no peito do pai. - O senhor algum dia poderá me perdoar
?
- Perdoar você? Ah, Alicia, tudo isso magoou você muito mais do que a mim! - Rudolph
o lhe acariciou o cabelo, como fazia quando ela era criança.
Por fim, ela parou de soluçar e olhou para o pai, os olhos verdes brilhando de lag
rimas.
- Eu desonrei o senhor. Os outros ...
- Os outros ... ora, os outros! Você é minha filha. Que eles me desprezem, se quiser
em. Eu sempre vou amar você. Vamos para casa agora. Juro que um dia irei encontrar
esse gorgio. Ele vai reparar o mal que fez a você, Alicia. Ele vai se casar com v
ocê ...
- Não! - A raiva dela se misturou it tristeza. - Não quero nada com ele, apesar de f
icar desonrada para sempre. Ele me traiu. Eu salvei a vida dele, dei o meu amor
e ele jogou tudo fora porque eu sou uma cigana.
Rudolpho a encarou, e Alicia ficou emocionada com o amor e a bondade que encontr
ou ali. Seu pai a perdoara, apesar do que ela tinha feito.
- Chavi ... - Ele não a chamava de "minha pequena", desde quando ela era criança .
Abandonada a sua dor, Alicia não havia notado os outros homens que acompanhavam o
pai. Eles se aproximaram, montados em seus cavalos, e ela sentiu como uma flecha
da o desprezo nos olhos de Stivo. Montou Grai e seguiu os outros de volta ao aca
mpamento.

CAPITULO IV

O sol brilhava e o céu era de um azul-claro e sem nuvens. Rafael caminhava por ent
re campos de flores amarelas e vermelhas e arvores altas, rodeado pela beleza da
natureza. o mundo de Alicia.
Triste, ele se lembrou da imagem dela dormindo embaixo da arvore. Agora o mundo
dela o punia. Ele estava perdido. Não estava acostumado com a floresta e, com os p
ensamentos perdidos em Alicia, tinha vagado em círculos.
Da vez anterior, ele tinha dois guias, e eles o levaram para a armadilha.
- Bastardos! - praguejou ele. Ele os encontraria e então ...
Rafael se sentou para descansar sobre o tronco de uma arvore e, com o rosto nas
mãos, entregou-se a outras lembranças. Será que algum dia conseguiria esquecer o que s
eu pai lhe tinha revelado naquela noite fatídica, quando os dois discutiram tão aspe
ramente?
Rafael queria sair de casa, estava cansado de ser o segundo filho de Pedro Orteg
a de Villasandro. A guerra constante contra os mouros lhe dera a desejada oportu
nidade de se tornar um caballero, combatendo pelo rei Fernando e pela rainha Isa
bel.
Ele tentou fazer o pai compreender, mas o velho foi implacável.
- Você esta me abandonando como ela me abandonou?- disse ele em voz tão baixa que Ra
fael quase não o ouviu. A sua mãe.
Rafael se sentiu confuso. A vida inteira ele ouvira contar que sua mãe morrera de
uma febre, quando ele era pequeno.
- Ela me abandonou para se juntar ao seu povo - revelou seu pai, a fúria ardendo n
os olhos. - Foi o fogo da Inquisição,e não a febre que a matou. E agora você também quer
me desertar!
- Seu ... mentiroso! - explodiu Rafael, refugiando-se na raiva para fugir do tum
ulto de emoções que o consumia. Alguma coisa nos olhos do pai lhe dizia que ele fala
va a verdade, e ele recuou: - Então me conte toda a verdade.
A história jorrou junto com lágrimas do velho homem.
Pedro Ortega de Villasandro tinha se apaixonado loucamente pela filha de um médic
o,uma jovem judia de Navarra. Eles se casaram e tiveram dois filhos.
-Éramos felizes eu e minha Sarita - disse o pai, fechando os olhos e perdendo-se n
as lembranças. - Mas não era para ser - acrescentou, abrindo os olhos como que despe
rtando de um sonho. - Eles a mataram. Se pelo menos tivesse ficado comigo, eu a
teria protegido. Mas ela me abandonou, pois queria estar com o seu povo.
Aos poucos, o pai, um nobre leal aánova rainha Isabel, lhe contou a triste hist6ri
a. Em 1480, pessoas poderosas e fanáticas decidiram por fim a convivência entre jude
us e cristãos. As velhas leis contra os judeus foram restabelecidas: eles eram obr
igados a usar um circulo de tecido vermelho sobre o ombro como identificação e a viv
er nas juderías, os guetos. A judería em que vivia a família de sua mãe foi cercada por
um muro alto e nenhum judeu podia praticar as profissões de medico, cirurgião, apote
cário ou estalajadeiro.
O cardeal da Espanha, Pedro Gonzalez de Mendoza, e o frei Thomas de Torquemada
dirigiam a Inquisição em Castela e Imediatamente começaram a realizar a sua missão por v
ia del fuego, por meio da fogueira.
- Ele nada podiam fazer contra os judeus que tinham se convertido ao cristianism
o, a não ser que retomassem as praticas Judaicas ou obrigassem alguém a fazer isso _
explicou o pai de Rafael - A palavra "judeu" se tornou o equivalente a Judas na
percepção de muitas pessoas. Elas se entregaram á intolerância e a hostilidade e todo o
senso de realidade foi destruído. Eles chamavam os judeus, o povo da milha Santa,
de assassinos de Cristo!
- Minha mãe era judia?
- Ela tinha sido batizada no cristianismo, mas o pai dela, não. Santa amava os pai
s e frequentemente ia visitá-Ios na juderia. Ela não fez nada de errado, mas foi acu
sada de ter renegado o cristianismo porque estivera na casa dos pais durante var
ias festas judaicas. Sua mãe foi uma das vitimas da hostilidade dominante contra o
s judeus.
O velho estava exausto, mas Rafael queria saber mais.
Monges fanáticos liderados por Mendoza e Torquemada percorriam CasteJa, ordenando
que os fieis destruíssem os judeus. O resultado foram massacres em Castela, Aragão
e Navarra.
- E minha mãe ... - A raiva sufocava a voz de Rafael.
- Ela e sua família ficaram com medo e se esconderam. Eu não sabia onde ela estava.
Ela não queria prejudicar a mim e aos filhos, não queria que corrêssemos perigo e ...
eles a queimaram na fogueira, como uma herege. Eles, que não eram dignos de beijar
a barra das vestes de minha Sarita!
- E a família de minha mãe?
- Os pais, dela fugiram para Roma. Você tinha apenas doze anos, e eu não podia lhe c
ontar. Por isso, disse-lhe que ela morrera de febre. Isso foi ha onze anos. E vo
cê também correrá perigo se me deixar - disse o pai, apontando o dedo indicador para
Rafael. -Eles também o queimarão se souberem do seu sangue judeu. Você deve ficar aqui
ou procurar a proteção de seu irmão. Não se esqueça de como Torquemada é perigoso!
Rafael estava mais determinado do que nunca a sair da casa do pai. As palavras d
e Pedro Ortega de Villasandro, longe de atemorizar o filho, deixaram-no cheio de
fúria e de vontade de ajudar aqueles que, como sua mãe, corriam perigo de serem que
imados na fogueira. E assim, ele foi embora.
Rafael levantou a cabeça e olhou ao redor novamente. O passado desapareceu de repe
nte com a visão da floresta.
Seu pai havia ousado amar alguém diferente, e isso havia causado uma tragédia. A lem
brança do destino de sua mãe apenas reforçou sua decisão de deixar Alicia para trás.O amor
dele só serviria para colocá-la em perigo.
E,então Alicia se você soubesse que não sou livre para viver plenamente até ter cumprido
minha missão,talvez você me perdoasse,pensou ele.Mas você é livre.E,por um momento eu t
ambém fui livre como o vento.
Levantando-se, ele voltou a procurar o caminho para sair da floresta, como se ti
vesse sido perdoado, encontrou a trilha.Caminhou, cansado, os pés cheios de bolhas
dentro de solas gastas, as pernas e as costas doendo, e com fome.Mas a memória da
beleza de Alicia era como um balsamo para sua alma. Condenava-se pelo que havia
feito com ela,mas sabia que faria tudo de novo se revivesse o passado.A noite c
om ela havia sido o momento mais belo e mais feliz de sua vida.
Pela primeira vez, ele compreendeu verdadeiramente a loucura que seu pai havia s
enti do por sua mãe, aquele amor que tudo consumia e que transcendia todas as leis
terrenas. No entanto, o amor deles estava fadado a não dar certo.
E o nosso amor, como o deles ,também estava condenado Alicia,pensou Rafael, saindo
da floresta e tomando o caminho para Toledo.
Rudolpho, Alicia;Stivo e Ramon chegaram ao acampamento no meio da tarde. Mergulh
ada em seu sofrimento, ela viu varios homens deitados debaixo de arvores, fazend
o a siesta. Pelo menos, não teria de tolerar os olhares deles. As mulheres, no ent
anto, cochichavam umas com as outras, observando a chegada do cortejo.
"Onde esta o gorgio?" "Ele conseguiu o que queria?" "Será que a virtude de Alicia
ainda esta intacta?" Essas eram as perguntas que elas deviam estar fazendo uma a
s outras.
Alicia não sabia se elas de fato estavam pensando nisso ou se era a sua própria cons
ciência culpada que imaginava tudo aquilo. Mas o cochichar das mulheres a irritava
. Olhou para trás, na esperança de receber conforto de Rudolpho, mas o que viu não foi
o pai e sim Stivo. Ele a olhava com malicia e desejo, sem disfarce, o que fez A
licia estremecer. Ao perceber a inquietação dela, o cigano sorriu, satisfeito.
Por que Stivo tivera de acompanhar Rudolpho na busca por ela? Stivo sabia da sua
desonra e não demoraria a contar para os outros. Ele e sua mãe, a phuri dai, eram a
ssim: maliciosos, desprezíveis e vãos. De todos os homens do bando Stivo era o único q
ue tinha o rosto barbeado. Segundo Rudolpho, ele "não queria esconder seu rosto pe
rfeito debaixo do bigode, que era o orgulho de um cigano. Stivo sempre procurava
ser o centro das atenções, e Alicia achava que ele se ressentia da autoridade de Ru
dolpho.
- Alicia! - Ela despertou do seu devaneio com a voz de Zuba, sua amiga. - Você está
bem? Ele não lhe fez mal? - as olhos de Zuba eram os únicos que se voltavam para a r
ecém-chegada com bondade.
-Estou bem - respondeu Alicia, de forma inexpressiva, esforçando-se para manter o
queixo erguido e para não chorar diante dos outros.
Zuba pegou a mão dela, os grandes olhos castanhos cheios de preocupação e afeição.
- Quando eu o vi levar você embora, temi que ...
- Ele não me fez mal- mentiu Alicia.
Solis abriu caminho pelo grupo que se formara ao redor de Alicia. Seus lábios chei
os sorriam.
-Ele é tão bonito! Deixa a gente curiosa sobre o que se passou sob os céus ciganos. -
as olhos escuros da mulher pareciam estar procurando a resposta nos de Alicia.
Alicia, que nunca antes se deixara intimidar por aquela mulher voluptuosa, não con
seguiu articular uma palavra.
Sentia-se derrotada, e já não tinha vontade de lutar, pelo menos por enquanto.
-Chega de tagarelice- interveio Rudolpho, em tom de censura.Ele dispersou as mul
heres como se elas fossem moscas.-Venha!ele chamou Alicia,com aquele sorriso que
sempre lhe tocara o coração.
Ela o seguiu em silêncio. Rudolpho se dirigiu para a floresta,a beleza e a paz da
mata fizeram com que a dor que sentia no coração diminuísse.
Meu querido pai, ele sabe qual o remédio para 0 meu sofrimento, pensou.
-Quanta beleza! - exclamou ele, pegando-a gentilmente pelo braço. - A lenda cigana
sobre a terra, De Develeski, , é que ela é a Mãe Divina de toda a existência. Olhando p
ara toda esta beleza, eu acredito.
-Eu também - sussurrou ela.
-Vivemos tão próximos da natureza que não é de surpreender que gostemos tanto das arvore
s, dos rios, da relva e da terra. E da liberdade. Nunca permita que ninguém, cigan
o ou gorgio, tire essa liberdade de você. É como a alma, a própria essência da vida.!
-Mas, e se eu for presa? Ouvi falar de Torquemada ...
- É no coração que esta a liberdade. Enquanto formos livres no coração, ninguém pode nos a
risionar de verdade. A liberdade e a nossa ligação com O Del. E também e a coragem de
enfrentar de cabeça erguida, o ridículo e as línguas ferinas. Eu não sou perfeito, nem v
ocê. Apenas Deus e perfeito. Mesmo tentando fazer o que é certo e viver honradamente
, nem sempre conseguimos. Mas orgulhe-se de ser você Alicia. - Os olhos dele se en
cheram de lagrimas. -Você nunca saberá a alegria que trouxe para a minha vida. Deixá-l
a para trás será a única coisa que lamentarei ao morrer.
Os dois voltaram para o acampamento sorrindo.
Acreditavam que estavam a sós na floresta e não viram os olhos que os observavam. Ol
hos gorgios e cheios de ódio.
- Ciganos, Manuel.
- Ciganos.
- Existem pessoas que nos recompensariam pela informação sobre onde exatamente está o
acampamento desses bastardos hereges. Vamos segui-los.
- Você leu os meus pensamentos, José. Não encontramos o corpo de Villasandro, mas talv
ez tenhamos encontrado algo mais valioso. Alem disso, poderemos atribuir a culpa
da morte dele aos ciganos, esses infames de olhos escuros.
Os dois caíram na gargalhada.
Como Alicia havia suposto, a língua ferina de Stivo alertou todo o acampamento, e
sua virgindade perdida se tornou assunto ao redor das fogueiras. Mas ela se lemb
rou das palavras de Rudolpho e manteve a cabeça erguida. Depois de algum tempo, as
pessoas começaram a se ocupar de outros assuntos e a deixarem-na em paz. Todos, m
enos Stivo.
Os insultos que ele lhe fazia eram amargos como fel, e quando ninguém estava por p
erto, ele a agarrava e apertava, machucando-a. Alicia começou a odiá-lo. Tentava evi
tá-lo, mas ele sempre dava um jeito de encontrá-la.
- Prostituta de gorgio! - cochichava ele quando passava por ela. E a olhava de u
ma forma que parecia queima-Ia.
-Deixe-me em paz, Stivo! - advertia ela, olhando-o com desdém. Mas ele ignorava as
palavras dela e a observava. Estava sempre de olho em todos os seus movimentos.
No final de uma tarde, Alicia esfregava um caldeirão que tinha usado para preparar
a refeição da noite, quando ele se aproximou.
-Boa tarde rawnie - cumprimentou-a, usando a palavra cigana para "milady", mas c
om um tom de voz que a fazia soar como um insulto.
-Boa tarde,Stivo- respondeu Alicia,em tom de voz frio,sem interromper o trabalho
.
-Você parece ter se recuperado de sua escapulida amorosa- disse ele aproximando-se
.
-Eu estou bem Stivo,obrigado pela preocupação.
-Ora estou preocupado,mas não é com você,e sim com o que você fez.Talvez em breve tenha
motivo para lamentar ter dado seu corpo para aquele gorgio.Ele trará a morte para
todos nós.
-Se eu lamento ou não, não cabe a você me julgar,Stivo.O líder é Rudolpho, e não você.
- Rudolpho! - exclamou ele, com um sorriso sarcástico. Ele está se tornando um velho
tolo.
Alicia não conseguiu mais se conter. Que ele falasse o que quisesse dela, mas não su
portava que insultasse seu pai.Ela jogou um punhado de areia que estava usando p
ara polir o caldeirão no rosto dele, levantou-se e pôs as mãos nos quadris.
-Velho ou jovem, ele é o dobro do homem que você jamais será!
Ela lhe deu as costas, mas Stivo a agarrou por trás e lhe torceu o braço, fazendo-a
arfar de dor.
- Sua vagabunda ... Vou lhe mostrar quem é homem!
Ele torceu-lhe mais o braço, fazendo-a ficar com os olhos cheios de lagrimas de do
r.
-Eu o amaldiçoo! - praguejou ela, mantendo a cabeça erguida, apesar da dor, e recusa
ndo-se a implorar para que ele a soltasse.
Stivo queria que ela se humilhasse.
Ele a soltou e se afastou. Alicia viu então Todero e Zuba se aproximando, de mãos da
das, e entendeu que Stivo havia fugido por não querer testemunhas da sua crueldade
.
Todero e Zuba estavam apaixonados e formavam um par perfeito. Os dois só haviam de
monstrado gentileza com Alicia, e ela lhes desejava toda a felicidade do mundo.
- Preciso ir - disse Todero, depois que os três conversaram um pouco. - Amanha dei
xaremos este lugar ao amanhecer. Tenho muito que fazer. - Fez uma mesura e foi e
mbora. - Estou feliz por você, Zuba - Sussurrou Alicia. _ Todero é um ótimo sujeito e
será um bom marido.
- 0 destino sorriu para mim. Eu o amo de todo o coração - disse Zuba, corando. Depoi
s, com um sorriso triste acrescentou: - Só queria que o destino tivesse sido tão ben
evolente também com você, Alicia. Gostaria muito que você fosse feliz com o seu gorgio
.
- Não estava escrito nas estrelas. Ele não me amava.
A calma de Alicia escondia o tumulto que sentia por dentro. Apesar de tudo o que
havia acontecido, tinha uma vontade avassaladora de ir atrás de Rafael, de segui-
Io até o fim do mundo. Mas isso não era possível, e ela lutava contra esse desejo. Hav
ia sido tola de pensar que, amando-o com todo o coração, teria seu sentimento corres
pondido. Mas ele fora embora e ela nunca mais o veria. Só de pensar nisso, sentia
uma pontada no peito.
-Alicia! exclamou Zuba, abraçando-a. - Ele deve ser um idiota,para não querer você. V
ocê e tão linda e tão corajosa. Como ele pode tê-Ia traído assim? Que tipo de homem é ele p
ra lhe causar tanta dor?
-Uma aparição, um sonho, mas o homem roubou o meu coração e, apesar de tudo, ainda o tem
na palma da mão .. Alicia não conseguiu mais conter as lagrimas. Nunca imaginara qu
anta dor a partida do gorgio lhe traria.
Zuba tentou conforta-Ia, mas, com a mesma rapidez com que tinha desmoronado, Ali
cia se recompôs.Enxugando as lagrimas, ela se afastou do abraço da amiga.
-Vamos, temos trabalho a fazer.
Mais tarde, depois do jantar, enquanto todos estavam sentados ao redor da foguei
ra.Alicia disse adeus aquele lugar onde tinha conhecido tanta felicidade e tanto
sofrimento. Todos pareciam animados com a mudança do dia seguinte. A caravana seg
uiria para o sul, uma parte da Espanha em que Alicia nunca estivera e que era g
overnada pelos mouros.
Alicia não compartilhava da alegria geral daquela noite.
Seria uma longa jornada, escondendo-se daqueles que lhes poderiam ser hostis. P
or que não ficar ali, na segurança da floresta? E como eles poderiam saber se os mou
ros do Sul eram pacíficos?
- Pare com isso - advertiu a si mesma.
Estava pensando como uma gorgio medrosa, quando era uma cigana, e vagar era o se
u estilo de vida.
Ela se levantou, foi para a carroça e se deitou, mas o sono não veio. Tinha o presse
ntimento de que alguma coisa terrível estava para acontecer.
O que há de errado comigo?, pensou. Foi então que ouviu um barulho estranho. Levanto
u-se e espiou pelo canto da lona que servia de porta para a carroça. O que viu a d
eixou aterrorizada. Iluminados pelo luar havia homens montados á cavalo. Os
ciganos estavam em perigo!
Vestiu-se apressadamente e saiu da carroça.Rudolpho estava longe, tentando defende
r seu povo. O acampamento se transformou em um pandemônio.O choro das crianças,o gri
to das mulheres e a fúria dos homens enchiam a noite.Alicia sentiu que muitos morr
eriam e, nesse momento lembrou-se da advertência de Stivo de que o gorgio causaria
a morte deles,de que ele denunciaria onde estava o acampamento dos ciganos.
- Eu o amaldiçoo, Rafael de Villasandro! _ praguejou ela,o punho erguido para o céu,
em um gesto de fúria Impotente.
Como ele podia ter feito uma coisa daquelas? Gostaria muito de acreditar na inocên
cia de Rafael,mas os homens que se aproximavam do acampamento eram a prova da tr
aição dele.
Alicia entrou na carroça, pegou sua faca e se preparou para lutar.

CAPITULO V

Atrás dos cavaleiros, vinha uma multidão de homens armados com paus, pedras e bastões.
Os pássaros noturnos gritaram, batendo as asas com furor e pulando de árvore em árvo
re,em protesto contar a invasão. As vozes raivosas dos agressores se misturavam ao
choro de mulheres e crianças, que procuravam algum lugar para se esconder.Muitos
como Alicia e Rudolpho,se mantiveram firmes determinados a se defender.
_Gorgios!-exclamou Alicia, com desprezo. Que tipo de gente ataca pessoas que estão
dormindo? - Covardes! - Ela amaldiçoou o dia em que tirou o gorgio do rio. Stivo
tinha razão. Rafael trouxera sofrimento para o seu povo. Ele teria recebido recomp
ensa pela traição?
Os homens montados a cavalo avançaram com um estrondo sobre a caravana, bramindo s
uas espadas. Os outros vieram mais devagar, mas também estavam armados. Alicia ouv
iu os gritos das mulheres ciganas pedindo misericórdia e sabia que elas não encontra
riam nenhuma clemência naquela noite.
O tilintar das espadas, os grunhidos das pessoas dispostas a combater, os gemido
s dos que já tinham sido feridos soavam nos ouvidos de Alicia. Agarrada a sua fac
a, ela esperou que chegassem mais perto, aqueles diabos gorgios.
Nesse momento, ouviu um grito de gelar o sangue. Vashti foi derrubada e morta d
iante ,dos olhos de Alicia. A expressão dos invasores era de ódio, e eles abriam as
cortinas das carroças gritando:
- Morte aos hereges! Morte á descendência de Caim! Morte a todos os ciganos!
Como poderiam os adoradores de Cristo ser tão violentos e ter tanto ódio? O sangue j
orrava, as tendas e carroças eram saqueadas e, depois, incendiadas. Alicia desisti
u de esperar. Foi para o centro do acampamento, com intenção de vingar aquela brutal
idade. Ela morreria junto com seu povo!
- Olhe só isso! - gritou um forte camponês, agarrando Alicia. - Uma prostituta cigan
a. Devo mata-Ia, como fiz com a outra?
- Não! Vamos leva-Ia conosco e torna-Ia nossa escrava. Ela e bonita demais para se
r morta.
Eles cercaram Alicia, que lutou com bravura e conseguiu tirar sangue de um de se
us atacantes.
- Cristo! Maldita prostituta cigana! - praguejou o homem. Ele chutou a mão dela, e
a faca voou.
Um dos outros homens a agarrou pelo cabelo e a arrastou pelo chão. Alicia se recus
ava a ser dominada, e lutou contra os seus opressores com mordidas e unhadas. Co
m a força nascida do medo e do desespero, ela conseguiu se livrar e fugir.
Viu Rudolpho combatendo e correu na direção dele, o seu pai querido, que sempre fora
seu refúgio e conforto. Viu um homem montado a cavalo se aproximar dele pelas cos
tas e gritou:
- Olhe para trás, papai!
O alerta salvou a vida dele.
- Volte, Alicia! - ordenou ele. - Fuja enquanto pode, eu me encontro com você depo
is.
- Não vou sem o senhor.
- Vai, sim. Isto e uma ordem.
Ela queria ir, mas se sentia muito desleal em deixá-Io ,ali. Rudolpho repetiu a or
dem com um grito que não deixava duvidas sobre quem estava no comando. Ela correu
para o abrigo das árvores e, de longe, assistiu á destruição do grupo cigano. Uma carnif
icina. Diante dela estava uma massa de cadáveres, de ciganos e gorgios, e de armas
quebradas. Embora em numero muito menor, os ciganos lutaram bravamente, mas a f
orça e o orgulho de seu povo drenavam junto com seu sangue.
Alicia ouviu, entre os muitos gritos, a voz de Zuba. Três homens a arrastavam de
debaixo de uma carroça, onde ela tinha se escondido. Um camponês forte puxou as saia
s da moça. Naquele momento, Alicia se esqueceu totalmente da própria segurança. Tinha
de salvar Zuba.
-Deixe-a em paz,jukel! - gritou Alicia, avançando.
Ela não era a única a socorrer Zuba.Do outro lado do acampamento,Todero correu para
salvar a mulher que amava.
Lutando com um dos gorgios,Alicia viu Todero esfaquear o peito de um homem,mas a
o se voltar para investir contra um outro,ele foi dominado por homens montados,q
ue gritavam que ele deveria ser morto.
Tudo parecia se mover em câmera lenta enquanto Alicia via o homem amado por Zuba s
er trespassado cruelmente por uma espada.Sem pensar, ela se jogou, praguejando,
sobre os homens, como uma gata selvagem.
-Alicia,volte!
O grito de Rudolpho foi a ultima coisa que ela ouviu.
Sentiu uma dor lancinante na cabeça e tudo escureceu.
-Maldito seja você, Rafael. Maldito seja, gorgio! Alicia ainda praguejou ao cair a
o chão.
-Alicia! Chavi! Por favor, abra os olhos!
Alicia ouviu de longe a voz do pai e estendeu a mão para ele.
- Papai!
Ela sentia que ele segurava a mão dela e acariciava seus cabelos.
- Você foi 'atingida na cabeça, Chavi. O porrete de um gorgio a derrubou. Ele já não est
a mais entre os vivos.
Alicia abriu os olhos e viu que estava dentro de uma carroça.
- O que aconteceu depois de eu ser derrubada?
- Muitos dos nossos foram mortos. Aqueles homens tinham sede de sangue - disse R
udolpho, a voz expressando magoa e raiva.
- E as carroças? Como ... como e possível? _ perguntou ela, olhando ao redor. - Elas
estavam queimando ...
Rudolpho sorriu e ergueu os olhos para o céu:
- O Del mandou a chuva. Esses cristãos acreditam em milagres, e eu lhe digo que ho
je eu vi um. A chuva salvou as nossas vidas e a nossa caravana. Parece que até lav
ou o ódio dos gorgios! Eles foram embora com a mesma pressa com que chegaram.
- A Chuva! - De fato, era um milagre. Todas as vezes que eles haviam acampado na
quele local ao longo dos anos, nunca tinha chovido. - E Todero? Eu o vi cair...
Ele morreu?
- Não. Pelo menos, ainda não. Se sobreviver, será mais um milagre. Zuba está tomando con
ta dele.
- Ele não vai morrer! - exclamou Alicia, sentindo um enorme alivio. - Zuba será a ra
zão para ele viver. -Depois de um longo silencio, ela perguntou: -E os outros? Qua
ntos morreram?
- Muitos! Dionisio, Ramon, Vashti, Truffeni, Bazena, Keje. E ha vários feridos.
Esquecendo-se da dor que sentia na têmpora, onde o porrete a tinha atingido, Alici
a inclinou a cabeça para trás.
- Malditos sejam esses gorgios! Maldito seja Rafael de Villasandro! Ele trouxe o
mal para nós. Eu o odiarei até o dia de minha morte!
-Não Alicia, o ódio destrói - advertiu Rudolpho, pegando-a pelos ombros, os olhos fixo
s nos dela. Você não sabe se foi o seu gorgio. As coisas nem sempre são o que parecem,
Chavi.
-Mas quem mais sabia sobre o nosso acampamento nesta floresta?Quem a não ser o gor
gio?
-Não sei-respondeu o pai, balançando a cabeça. Por algum motivo, ele não acreditava que
Rafael fosse o tipo que procurava fazer mal aos outros. Apesar de ter tirado a v
irtude de Alicia e a abandonado, ele parecia um homem de alma nobre, e não um trai
dor. Mas, então, quem? Talvez nunca venhamos a saber.
-Foi ele! Stivo tinha razão. Odeio todos os gorgios!
Alicia encarou o pai e viu que o rosto dele estava com aquela expressão de novo, c
omo se houvesse algo que ele não quisesse lhe contar.
- Papai, O que è?
Ele queria contar, mas aquele não era o momenta certo. Não seria bom que ela odiasse
a sua própria gente. Ela havia lutado como uma cigana, e ele não poderia lhe revela
r que os responsáveis por tanta destruição eram a sua própria gente.
- Preciso ver os outros - Rudolpho anunciou, levantando-se do lado da cama dela
e saindo da carroça. - Não podemos ficar aqui. E muito mais fácil matar uma vaca que não
se mexe. Vamos dividir a caravana em três grupos, de forma que será mais difícil nos
seguir.
Alicia sabia que mais tarde as caravanas se reuniriam.Era assim que eles faziam
quando havia perigo. Como mercúrio, separavam-se e juntavam-se, e tornavam a se se
parar e a se juntar. Os grupos se mantinham em conexão uns com os outros por meio
de contatos secretos e de sinais deixados ao longo do caminho, como um pedaço de u
m lenço ou um brinco.
-Está bem,papai. Temos de ir em frente. Somos como o vento que passa através dos gal
hos das arvores ou como um rio que sempre corre, certo?
Apesar de s sentir fraca; Alicia se levantou e foi ajudar os outros a recolher o
s pertences para a mudança. Quanto aos mortos, a lei cigana determinava que fossem
queimados com suas posses, para que tivessem uma existência confortável no outro mu
ndo.
Alicia viu com tristeza cada um dos corpos das pessoas que ela conhecera e amara
ser posto dentro de uma carroça e queimado, junto com tudo o que ele ou ela tives
se estimado em vida. A tarefa não era fácil, porque a chuva havia molhado a madeira,
mas finalmente as ultimas carroças dos mortos pegaram fogo e todos sussurraram a
prece:
- Nós os deixamos com o Del, com Deus.
Chorando, Alicia se despediu de Vashti, lembrando-se da amiga, com quem tinha da
nçado, quando as duas eram crianças, no mercado, em troca de moedas.
- Perdoe-me, Vashti - disse Alicia, soluçando.
Ela se lembrava do rosto surpreso da amiga, perguntando-lhe, perto da fogueira,
se ela tinha mesmo salvado um gorgio.
Mas Rudolpho sempre lhe ensinara que se devia viver o presente, que esse era o m
odo cigano. Nada de lamentações sobre o passado ou de pensar demais no futuro.
Os feridos foram postos em carroças. Alicia acolheu na sua duas crianças que haviam
perdido os pais.
Apesar da dificuldade causada pela lama, eles saíram da floresta, dividindo-se em
três grupos.
Rafael de Villasandro acordou em um quarto quente e muito iluminado pelo sol. Fi
cou deitado, quieto, ouvindo o som dos pássaros no jardim. Sentia-se fraco, depois
de ter passado uma noite mal dormida. Tinha novamente sonhado com Alicia,apesar
de ter pensado que quando chegasse em Toledo e estivesse longe da floresta, a e
squeceria. Mas não conseguia tirá-la da cabeça.
Agora ela já se foi, seu imbecil, recriminou-se em pensamento.A caravana já, III dei
xou a floresta e viajou sabe Deus para onde.Ela está feliz em segurança com o seu po
vo. Esqueça-se dela!Mesmo que quisesse encontrá-Ia, não saberia como.
Ele se levantou e foi até o terraço, de onde se via Toledo.
A cidade se levantava a partir do rio, como uma escada de casas de pedra, madeir
a e barro, dominada pela catedral gótica.
Rafael estava hospedado por alguns dias na casa do irmão, Carlos, perto de Toledo
. Era uma construção de dois andares e tinha uma simplicidade elegante. Ele pretendi
a viajar para León, depois que encontrasse José e Manuel. Ate agora, nem sinal deles
. Parecia que haviam desaparecido no ar.
- Vou encontrá-Ios - jurou, mais uma vez.
Perdido em seus pensamentos de vingança, mal ouviu baterem á porta.
- Rafael, você está acordado? - Era a voz de sua cunhada, Maria. - Esta com fome? Pr
eparei algo para você.
A mulher de seu irmão, baixinha e rechonchuda, era uma jóia de pessoa. Depois de se
vestir as pressas, Rafael a seguiu para o andar de baixo, onde encontrou Carlos
tomando uma farta refeição matinal. Agora ele entendia por que o irmão e Maria eram go
rduchos.
-Se eu ficar muito tempo por aqui vou acabar como Carlos, Maria - disse ele, rin
do.
-Ora, meu irmão. Junte-se a nós. - convidou Carlos.
Ele tinha os mesmos cabelos escuros de Rafael, mas os olhos eram de um castanho
um pouco mais claro, e as feições menos definidas. - Maria se superou hoje, preparan
do ovos com pimentões, cebola e tomate, fruta fresca com creme e carne fatiada e t
emperada com alho.
Ele experimentou os ovos;e viu que o irmão tinha razão. - Maria, alem de bonita é uma ót
ima cozinheira. Você é um homem de sorte - elogiou Rafael, e viu, com satisfação, o rubo
r da cunhada.
- Ela poderia ter dez cozinheiras, se quisesse, já que sou um homem bem sucedido -
disse Carlos com orgulho. _ Mas insiste em fazer tudo sozinha.
Além de ter herdado as terras do pai a sudeste de Castela Carlos era proprietário de
grandes campos de oliveiras.
Rafael comeu rapidamente, ansioso para ir a cidade. Deveria se encontrar com um
homem, nobre como ele, que também queria ajudar os judeus convertidos a fugir da E
spanha. Esse homem escondia fugitivos em suas terras, apesar de que, se fosse pe
go, poderia não apenas ser punido como também excomungado. A excomunhão era como se a
pessoa deixasse de existir: não podia ter emprego nem cidadania. Ninguém poderia aju
da-Ia, sob pena de ter o mesmo destino. E depois da morte, seu corpo não teria um
enterro cristão.
A Inquisição, porém, não era vista com bons olhos pelas pessoas mais cultas, particularm
ente pelos nobres, que estavam pagando impostos em dobro para sustentar a vingança
de Torquemada, como se a guerra em Granada não fosse uma carga monetária suficiente
.
- Como estava nosso pai quando você o deixou? - perguntou Carlos, com a boca cheia
e estudando o irmão com os olhos, como que se perguntando o motivo daquela visita
.
- Estava bravo. Ele me contou sobre nossa mãe, Carlos. Carlos quase engasgou, deix
ando claro que não queria que Maria ouvisse aquilo. Fez um gesto para que ela deix
asse a sala e,como uma esposa obediente, ela se retirou para seus aposentos .
- Você está maluco de falar assim tão livremente? Quer ser queimado na fogueira? - cen
surou-o Carlos logo que ficaram a sós.
-Eu sou assim Carlos.Não me envergonho de minha mãe.Ela morreu com coragem e espero
em Deus ter a mesma bravura.
-Não me diga que você quer se converter a fé judaica!
-Não só quero ajudá-los, não ser um deles.
-Então você continua a ser um bom católico.
-Sou cristão,não precisa ter medo. Mas me pergunto como Deus seja cristão ou judeu, pe
rmite que as pessoas sejam tão cruéis umas com as outras. Como Ele pode não ouvir os
gritos das pessoas que morrem nas fogueiras? Como um Deus justo pode permitir qu
e Torquemada fava o que quer? Eu ou salvar quantos judeus conseguir.
Rafael viu a preocupação nos olhos do irmão.
-Só falta você me dizer que também quer salvar de Torquemada aqueles ciganos maltrapil
hos que o mantiveram prisioneiro! - retrucou Carlos com voz contida, sem esconde
r a irritação.
-Eles não são maItrapilhos - respondeu Rafael, lembrado-se de Alicia e de Rudolpho.
- Acho que nós não os compreendemos porque eles são diferentes.
-São ladrões! Hereges! Um dia a rainha Isabel vai expulsar muitos deles da Espanha,
ouça as minhas palavras!
-Ladrões são aqueles que me roubaram a bolsa e tentaram me matar. E os ciganos não pod
em ser chamados de hereges, já que nunca se converteram ao cristianismo.
-Pagãos, então. Mas vamos parar de brigar - disse ele, limpando a boca com um guarda
napo e se levantando.-Isso já não importa,os ciganos não nos perturbarão mais.
-O que você quer dizer, Carlos?
-Eles foram embora. Um grupo de homens os atacou expulsou. Lamento porque disser
am que mataram alguns. Queimaram suas carroças e...
O rosto de Rafael empalideceu.
- O que você está me dizendo? - perguntou ele, segurando o irmão pelos ombros. - Você te
ve alguma coisa a ver com isso, Carlos? Eu nunca deveria ter lhe contado o que a
conteceu comigo. Eu lhes dei a minha palavra que não contaria para ninguém! Mas .. c
onfiei em você!
- Não, juro pela Virgem Santíssima - afirmou Carlos.
- Foram dois homens desta cidade que viram a caravana na floresta!
- Qual o nome deles?
- Não me lembro. - Carlos nunca tinha visto Rafael naquele estado e se assustou.
- Desculpe - murmurou Rafael, tirando as mãos do irmão. - Mas e que havia uma mulher
, e nem todos as ciganos são o que dizem. Tenho de encontrá-los. Por favor, tente se
lembrar.
Carlos ajeitou a roupa com dignidade e pensou no assunto por um momento.
- Acredito que eram Manuel e Juan ... Não, Manuel e Jose.
Rafael se lembrava bem daqueles nomes e rapidamente compreendeu tudo o que se pa
ssara. Eles haviam voltado para ter certeza de que ele estava morto e encontrara
m a caravana. Como os covardes que eram trouxeram outros para atacar e pilhar os
ciganos. Agora tinha mais um motivo para se vingar dos dois, mas antes precisav
a encontrar Alicia. Correu para o estábulo, pegou o melhor cavalo e saiu na direção da
floresta.

CAPITULO VI

Rafael entrou na floresta, rezando o tempo todo para que seu irmão estivesse errad
o. Talvez os ciganos tivessem escapado. Eles sabiam lutar e se defender. Suas es
peranças caíram por terra ao chegar ao local onde antes estivera o acampamento. Dess
a vez, não havia risos nem musica. Tudo estava terrivelmente quieto. Até os pássaros p
areciam calados.
- Cristo! - exclamou ele, horrorizado com o que via.
Ainda havia resquícios de carroças e de pessoas em brasa e cinzas. Ele viu um amonto
ado de cadáveres e armas quebradas que os ciganos obviamente haviam tentado queim
ar, mas que não conseguiram por causa da umidade.
Desceu do cavalo e, com os olhos quase cegos pelas lagrimas , andou por entre os
corpos, em uma busca frenética por um sinal de Alicia. Chutou o cadáver de um dos i
nvasores e deu vazão a sua fúria:
-Veja o que você conseguiu com o seu ódio, seu tolo! A sua morte! E por que? Porque
essas pessoas eram diferentes de você. Ele se lembrava muito bem da primeira impre
ssão que tivera dos ciganos, de que eram ladrões. E tinha chamado Alicia de "bruxa",
considerando-se vitima de um encantamento,e depois a deixara para trás.
Entregando-se ao sofrimento, Rafael caiu de joelhos. " Alicia estaria entre os m
ortos? 0Ocorpo glorioso dela tinha sido consumido pelas chamas? Ou ela teria fug
ido? Não ousava ter esperança. Rezou para que o Deus dos ciganos, 0 Del, a tivesse a
judado.
Ao contar o numero de carroças queimadas, concluiu que muitos tinham conseguido fu
gir. Mas para onde? Procurou rastros das carroças, mas, não encontrou nenhum. A chuv
a os havia apagado. Quando, finalmente, estava prestes a desistir e sair da flor
esta, ouviu ao vento uma risada. Escondeu-se e ficou olhando através da vegetação. Par
a sua surpresa e fúria, eram os dois homens que estava procurando.
- Bem que eu disse a você que se tivéssemos paciência conseguiríamos lucrar com tudo iss
o.
- Eu sei, Manuel, mas roubar dos mortos foi algo que nunca me atraiu. E você disse
que haveria ouro, mas só vejo cinzas!
Manuel avançou e deu uma busca pelas ruínas da carroça mais próxima.
- Nada de ouro! Esses ciganos bastardos levaram tudo consigo!
- Talvez não houvesse ouro. Eles não me pareceram ricos.
Manuel não teve tempo de responder porque com uma fúria vingadora, Rafael voou de se
u esconderijo para cima dele:
- Assassino! Você provocou a destruição dessas pessoas apenas pela sua própria ganância!
O outro, José, olhava assustado, o rosto tão branco quanto o fantasma que ele pensa
va estar vendo.
- Manuel, é ele! Voltou dos mortos. Que me valham os santos! - exclamou José, benzen
do-se. - Não me mate! Não fui eu quem o matou, mas ele - acrescentou, apontando o de
do para o comparsa.
-Ele não voltou dos mortos, mas logo estará entre eles- disse Manuel, com pouco caso
. Em seguida pegou a espada e avançou sobre Rafael, que conseguiu se esquivar em t
empo.
Ele soltou José e concentrou sua atenção no mais perigoso dos dois. José aproveitou a op
ortunidade e fugiu pela mata. - Você não vai me dominar desta vez. Agora sei quem vo
cê é e não sou mais uma vitima inocente - disse Rafael, desembainhando a própria espada.
- Veremos. Eu não sou covarde como o meu amigo e não vou fugir de você. Vou matá-lo!
Manuel brandia a espada, como de estivesse possuído pelo demônio. Rafael conseguiu e
scapar ao golpe, uma das vezes por muito pouco.
- Viu? Da próxima vez eu derramarei o seu sangue! Manuel se lançou contra seu oponen
te, e o gesto ousado deu a Rafael a oportunidade de que precisava. Ele feriu o o
mbro de Manuel com a espada.
- Eu deveria matá-lo, mas então seria igual a você. Largue sua arma, e eu o levarei pa
ra receber a punição por seus roubos.
-Largar minha espada? Prefiro morrer a viver na prisão- respondeu o outro.
Ignorando a dor do ombro, investi u novamente, mas Rafael aparou o golpe e tirou
-lhe a espada da mão.
Em seguida, golpeou-o com o punho no estomago. Os dois caminharam até o cavalo de
Rafael, onde ele pegou uma corda e amarrou as mãos de Manuel nas costas.
-Você vai andando atrás de mim, como o canalha que é-disse Rafael.
-Não v ou voltar para a prisão.
Com a velocidade de um réptil atacando, ele deu um pontapé no peito de Rafael e sai
u correndo pelo mato. Lutando contra a dor, Rafael o seguiu. Não iria chegar tão per
to de capturar aquele desgraçado para depois deixá-lo escapar.
Manuel estava próximo daquele mesmo rio onde Rafael tinha sido jogado, tentando de
sesperadamente livrar-se da corda.
- Vou fugir e matar você! - ameaçou Manuel, o barulho do rio misturando-se as suas p
alavras.
Rafael avançou e o outro recuou, sempre tentando afrouxar a corda, mas o chão cedeu.
Arregalou os olhos e deu um grito apavorado, ao cair nas águas turbulentas.
Rafael correu ate a margem do rio, sem poder fazer nada enquanto o rio fazia mai
s uma vitima. Ao contrario de Alicia, Rafael não sabia nadar. A justiça havia sido f
eita. A fúria e a sede de vingança dele se aplacaram. Que José vivesse sua vida miseráve
l até se tornar vitima do próprio medo.
Rafael sentia que um capitulo de sua vida se encerrara.
Alicia havia ido embora, e ele tinha muitas vidas a salvar.
Rafael chegou a Toledo no fim da manha. Apressando-se, dirigiu-se para a parte p
obre da cidade, onde as casas eram térreas e feitas de madeira e barro. Cachorros,
galinhas e porcos se moviam livremente pelas mas, e ele enrugou o nariz ao sent
ir o cheiro forte dos animais.
Crianças seminuas brincavam, e ele pensou que, quando aquele horror tivesse passad
o e a Inquisição tivesse terminado, gostaria de ter uma porção de filhos.
Ele se dirigia para uma taverna, onde se encontraria com um homem, Fernando de T
orga, que poderia mudar a sua vida. Meio italiano e meio espanhol, de Torga tinh
a sido responsável por encontrar navios para a fuga de centenas de judeus converti
dos ao cristianismo e perseguidos por Torquemada.
O tocar do sino da igreja informou Rafael de seu atraso.
Por fim, chegou diante das paredes caídas da taverna,que parecia um oásis,cercado de
árvores altas.Ele descansava por um momento debaixo da árvore mais frondosa,quando
um homem o chamou.
-Você!- disse ele, fazendo sinal para o recém-chegado se aproximar.
Cautelosamente, Rafael chegou perto, preparando-se para se defender, caso aquele
também se revelasse um inimigo.
O homem era forte, tinha um pescoço de touro e parecia filho de um camponês. Seus ol
hos também sondavam Rafael, como se também temesse ser traído.
- Estou procurando um homem chamado de Torga- anunciou Rafael, em voz baixa.
- Por que você o procura?
- Preciso de informações. Quero ajudar pessoas e só ele pode me ajudar a fazer isso.
Dessa vez, o homem sorriu.
- Sou a pessoa que você procura.
- Vamos entrar?
- Você e de Torga?
- Surpreso? Eu sou de Castela, e você? - perguntou o homem, pois as vezes era mais
importante saber de que região uma pessoa era do que o status da pessoa.
- Eu também sou de Castela. Podemos entrar?
- Não! Há olhos e ouvidos por toda parte, espiando para Torquemada. Todo cuidado é pou
co. Discutiremos o nosso assunto aqui ao ar livre, senõr.
Os dois se sentaram sobre uma pedra de onde se poderia ver qualquer pessoa que s
e aproximasse da taverna.
- Ouvi falar dos seus corajosos esforços a favor dos judeus que se converteram ao
cristianismo, os conversos, e quero a sua ajuda para fazer o mesmo. Tenho terras
, onde poderia abrigar fugitivos, e dinheiro para fazer com que eles viajem par
a Roma ou Constantinopla.
- E por que você oferece os seus serviços? Um nobre como você deve ter muitas formas d
e gastar seu dinheiro.
- Com mulheres e vinho? - perguntou Rafael, olhando-o com expressão,seria. - Não sou
desse tipo. Muitas pessoas da elite desse pais são contra os métodos da Inquisição. Já co
nversei com Don Francisco, e foi ele quem me mandou até você.
- Calma, amigo - disse de Torga, rindo. _ Eu também conversei com Don Francisco, e
é por isso que estava a sua espera. Temos muita necessidade de homens corajosos e
dedicados a causa da justiça.
- Temos pouco tempo. Temo que logo os fanatismo de Torquemada se expanda para além
dos conversos e atinja os próprios Judeus. E talvez então seja impossível! salvá-Ios.
- Torquemada esta furioso porque alguns hereges estão fugindo do pais. Ele impôs uma
multa para qualquer capitão de navio que transporte conversos. Todos os descenden
tes de judeus estão absolutamente proibidos de sair da Espanha.
- Então e tarde demais !- lamentou Rafael.
- Não, nunca e tarde demais. Apesar da multa ainda existem pessoas dispostas a nos
ajudar. Se trabalharmos juntos, salvaremos mais vidas do que separadamente. Eu
consigo encontrar barcos pesqueiros para levar os fugitivos até o navio, reservar
os lugares e juntar os suprimentos necessários. O que não posso fazer e obter as inf
ormações de que preciso, a que apenas um nobre teria acesso. Preciso de você.
- Informações? Que informações?
- Precisamos saber quais as famílias que correm perigo e onde Torquemada atacara d
a próxima vez, para tirar essas pessoas de debaixo do nariz deles - explicou de To
rga baixando ainda mais a voz. - Precisamos de você, para se aproximar dele. .
- Como posso fazer isso? Eu não o conheço!
- Existe um padre, Juan Dorado, que você deve procurar e de quem deve se tornar a
migo.Ele é enteado de um dos homens mais influentes da província de León.O padre é o fav
orito de Torquemada, e o padrasto dele é um dos conselheiros da própria rainha. Enqu
anto você cultiva a amizade padre, poderia ceder suas terras para abrigarmos os co
nversos enquanto não temos um navio a disposição. Podemos
Contar com isso?
-Ficarei feliz em ajudar - concordou Rafael. Mas como posso entrar em contato c
om esse Juan Dorado?
-Ele esta aqui em Toledo, com Torquemada. Você tem de descobrir como conquistar a
amizade e confiança dele. Isso é tudo. E não me procure. Eu procurarei você.
Dizendo isso, de Torga se afastou rapidamente.
O sol queimava a pele de Alicia, que conduzia a sua carroça. Rudolpho estava a fre
nte da caravana, procurando o caminho mais seguro. Os ciganos avançavam, dominados
pelo medo, pois poderiam ser alvo de um novo ataque ou ser capturados pelos age
ntes da inquisição.
O calombo na cabes;a de Alicia havia sarado, e ela conseguia conduzir sua carroça
novamente. Sentir-se independente a acalmava.
Ao ouvir um barulho dentro da carros;a, desviou o olhar da estrada, para ver o q
ue estava acontecendo com as crianças que estavam sob sua guarda. Tudo estava bem,
mas o instante em que ela desviou o olhar do caminho foi suficiente para a carr
oça passar sobre uma pedra grande e se inclinar para um lado. Alicia quase perdeu
o controle das rédeas.
- Você está bem? - gritou Todero da carroça que vinha atrás da dela.
Apesar de ainda sentir dores por causa do seu ferimento, ele fizera questão de con
duzir seus cavalos, uma tarefa difícil para um homem com um braço na tipóia.
- Tudo bem - respondeu Alicia. - Só preciso me lembrar de não tirar os olhos da estr
ada.
Todos os dias ela agradecia a O Del por Todero ter sobrevivido. Não havia melhor a
migo que ele. Todero, Zuba e Rudolpho eram os únicos que Alicia podia considerar s
eus aliados. Os outros a desprezavam. Não havia duvida de que as acusações de Stivo ti
nham deitado raízes na mente deles. Os ciganos acreditavam que tolerar uma mulher
não casta trazia má sorte.
A caravana saiu da floresta e entrou em um planalto descampado, de forma que ser
ia preciso mais cuidado ainda pois ali seria difícil se esconder. A paisagem tinha
uma beleza rudimentar, coberta por uma vegetas:ao rasteira viçosa e montanhas á dis
tância.
Havia tanta beleza no mundo e, ao mesmo tempo, tanto mal e tanto ódio, pensou Alic
ia. De repente voltou a pensar em Rafael. Por mais que tentasse esquecê-lo, não cons
eguia. Lembrava-se de que havia salvado a vida dele e assim seus destinos se tin
ham entrelaçado.
Um pouco mais tarde, o eixo da carroça de Alicia quebrou, e eles foram obrigados a
acampar antes do planejado.
- Pelo menos aqui a vegetação é um pouco mais alta para nos abrigar - disse Rudolpho,
consolando o grupo. _ Também há um pequeno lago, que nos fornecera água.
A noite, o grupo estava animado ao redor da fogueira. Os homens conversavam, as
mulheres riam e nem parecia que tinham sido obrigados a interromper seu curso. T
odos estavam contentes de estar longe do ódio dos habitantes da cidade, mas mesmo
assim Alicia sentia os olhares desconfiados, expressando as maldições que não eram dit
as em voz alta.
Stivo não tirava o olho dela. Um sorriso malicioso fez com que ela desviasse o olh
ar, com um calafrio. Será que o que tinha acontecido entre ela e o gorgio jamais s
eria esquecido? Sentindo-se infeliz, ela se afastou e foi comer longe da fogueir
a. Zuba se aproximou e foi lhe fazer companhia.
-O que esta fazendo aqui sozinha? - perguntou a amiga.
- Eles me culpam pelo que aconteceu. - Alicia suspirou. Eu não poderia lhes ter tr
azido mais azar se Fosse uma gorgio.
- São uns tolos - disse Zuba, sentando-se a seu lado. A culpa não é sua. Mas tenho uma
novidade para contar: Dei a Todero um sinal do meu amor.
- Você encheu um bolo com moedas e o jogou no mato para ele? Agora, só faltam os lenço
s ... - Os olhos de Alicia estavam cheios de ternura.
Zuba riu e tirou um lenço vermelho da manga de seu vestido.
- Já peguei o lenço de Todero. Estamos noivos!
- Noivos! - Alicia se esqueceu de toda a sua tristeza e abraçou a amiga. - Estou m
uito feliz por você. Quase desfaleci quando pensei que Todero tinha sido morto. Ma
s agora esta tudo bem. Ah, minha amiga Zuba ...
As duas riram e choraram juntas enquanto Zuba fazia confidencias sobre como Tode
ro havia declarado o seu amor quando ela cuidava do ferimento dele.
- Para quando e o casamento?
- Vamos esperar para nos reunirmos a meu pai e a meus irmãos, que foram na outra c
aravana. Fiz questão de ficar com Todero. Mas quando estivermos todos juntos novam
ente, nossos pais farão o contrato de casamento. - Ela estava resplandecente. - Eu
o amo, Alicia!
- Eu sei. Agora, vá se encontrar com seu noivo.
Zuba saiu, movendo-se com a graça de uma mulher apaixonada como se estivesse flutu
ando. Sozinha mais uma vez, Alicia caminhou até o lago, agachou-se e molhou o rost
o com água fria.
Foi então que ouviu um ruído e se virou. Duas mãos a agarraram com força, machucando-a.
Ela escutou um risinho asqueroso e entendeu imediatamente quem era seu agressor.
- Stivo!
Ele a rodopiou e a olhou no rosto.
-Eu sabia que chegaria a hora em que a encontraria sozinha, sem o seu cão de guard
a, Rudolpho, e aquelas crianças tagarelas. Zuba e Todero estão ocupados agora.
- Solte-me, Stivo! - gritou Alicia, lutando contra o terror que se apoderava del
a.
-Não. - Ele estendeu as mãos e apalpou-Ihe os seios.
- Do Jeito que eu gosto, maduros e firmes.
- Deixe-me em paz! - ela exclamou, indignada. - Me solte ou Juro que eu ...
Ela levou a mão ao cinto, em busca da faca, mas ele compreendeu sua intenção e foi mai
s rápido: tirou a arma e a Jogou longe.
- Agora a abelhinha esta sem o seu ferrão!
- Você é um brutamontes! O seu toque me enoja!
- Posso ser um selvagem, mas vou fazer você gemer de prazer. Agora vou provar o me
l que o gorgio experimentou.
Alicia sentiu os braços fortes aprisiona-Ia. Stivo rasgou sua blusa e empurrou-a p
ara o chão. Quando Stivo tentou beiJá-la, ela o mordeu, sentindo o gosto de sangue.
Em seguida, passou as unhas naquele rosto do qual Stivo tanto se orgulhava.
- Sua vadia! Você vai me deixar com cicatrizes! _ rosnou ele, segurando os braços de
la contra o chão acima da cabeça.
Alicia sabia que não podia deixar aquilo acontecer. Era dona de seu próprio corpo, e
Stivo não podia se apoderar dele.
-Lembrou-se de Rafael. Ele não a havia forçado e tinha sido gentil. Fechou os olhos
e gritou, e ao abri-los novamente ela estava livre. Rudolpho estava de pé, seguran
do Stivo pelos cabelos e puxando a cabeça dele para trás. Ele havia ouvido os gritos
e viera em seu socorro.
-Você é mais viI que uma serpente - trovejou ele, golpeando Stivo. - Se eu o vir nov
amente perto da minha filha,juro que mato você!
- Vou deixa-Ia em paz agora, mas chegara um dia, velho, chegara um dia ... -Stiv
o disse em tom de ameaça, levantando-se e em seguida se afastou.
Alicia sabia que se algum dia Rudolpho não estivesse em condição de protegê-la, Stivo cu
mpriria a sua ameaça.
- Chavi, Chavi. Sempre temi que isso acontecesse; há muito que sei que Stivo ãao pre
sta - O pai a consolou.
Nesse momento, os braços de Rudolpho penderam ao lado do corpo. A emoção fora demais.
Com a mão sobre o peito, ele respirava com dificuldade. No momento seguinte, ele c
aiu no chão.
- Papai! O que o senhor tem? - perguntou Alicia, chorando e o abraçando.
- Meu coração - respondeu ele, com dificuldade e se contorcendo de dor. - Vai passar
, sempre passa. Eu sou forte, vai passar.
Naquele momento, Rudolpho compreendeu que teria de encontrar o gorgio. Apenas qu
ando sua Alicia estivesse em segurança, com alguém da sua própria gente, ele poderia m
orrer em paz. E a verdade era que ele estava morrendo. Aquele coração acabaria por m
atá-lo antes do previsto.

CAPITULO VII

Alicia ficou deitada na cama, os olhos arregalados,sem conseguir dormir. Olhou a


s adormecidas a seu lado, cheia de ternura.Algum dia gostaria de ter filhos com
o aqueles mas por enquanto tinha de se concentrar em tomar conta do pequeno casa
l.
Fechou os olhos, mais uma vez tentou dormir . Mas coisas demais haviam naquele d
ia para se entregar decentemente ao sono.
Já tinha percebido havia algum tempo que Rudolpho não estava bem, mas agora tinha ce
rteza,o que a abalava profundamente. Rudolpho sempre a havia confortado,era ele
quem precisava dela agora dela agora,apesar de dizer que aquilo não era nada.
Alicia o havia ajudado a deitar no local onde ele dormia,debaixo da carroça,e o ob
rigou a tomar um chá quente de borago, uma erva que ela sabia ser boa para o coração.
Como vou viver sem o senhor papai?,pensou ela,com lágrimas nos olhos.Não se lembrava
de nenhum momento que ele não estivesse á seu lado,mas era perseguida por sonhos fr
eqüentes com outras pessoas,um homem e uma mulher carrancuda.
Ele vai ficar bom, pensou Alicia, fazendo planos de lhe dar o chá todas as noites.
Rudolpho precisava descansar e voltaria a insistir para que ele deixasse outro
homem dirigir a caravana por algum tempo. Ela abriria mão de sua carroça para ceder
ao pai a cama macia em que dormia.
Lembrou-se da forma como Stivo havia olhado para Rudolpho e estremeceu. Em certa
s ocasiões, parecia que o próprio O Beng tomava conta do rapaz. Ele tinha ciúme de Rud
olpho. Talvez Stivo achasse que, por ser filho de uma phuri dai, a conselheira d
o bando, seria o próximo na linha sucessória.Era prudente ter medo nao apenas dos go
rgios, mas também de alguns ciganos.
Foi então que Alicia ouviu um ruído. Lembrando-se dos olhos cheios de luxuria de Sti
vo, pegou a faca. Nunca mais seria pega despreparada. Aproximou-se da entrada da
lona sem fazer barulho e esperou.
- Peço-lhe, Manolo, que o encontre. Eu mesmo iria, mas não posso deixar a caravana,
como você bem sabe. - A voz era de Rudolpho.
- Deve ser importante para você. Não compreendo o seu motivo, mas farei o que pede,
Rudolpho. Como poderia esquecer de quando você salvou a minha vida?
- Ficarei eternamente grato. Faça o que é preciso para eu poder morrer em paz.
- Não fale de morte. Você ficara conosco por muito tempo ainda.
- Nós todos temos de morrer quando chega a nossa hora.
- Vou e levo Gyuri comigo. Você o terá diante de si antes do próximo por do sol.
-Muito cuidado. Lembre-se de como os que nos perseguem são traiçoeiros. Eu nunca me
perdoaria se você encontrasse a morte.
Alicia apurou os ouvidos, pois os dois falavam baixo.
De quem eles estariam falando? Depois que Rudolpho se recolheu debaixo da carroça,
ela teve vontade de ir perguntar para ele, mas aquilo era assunto de homens. Ru
dolpbo sabia o que estava fazendo, e ela tentou esquecer o assunto.
Todos ficariam muito ocupados no dia seguinte. Era preciso encontrar, uma arvore
grande para fazer um novo eixo para a carroça, lavar as roupas enquanto estavam p
erto do lago, arejar os lençóis, preparar a comida. Mas a curiosidade não lhe dava Sos
sego .
Ela demorou a dormir e sonhou com o gorgio, com seus abraços, beijos, caricias e p
alavras de amor. O prazer sentido no sono se transformou em vergonha e sofriment
o quando acordou pela manha.
Quanta fraqueza, pensou, soluçando. Será que nunca vou ficar livre de você, gorgio?
Rudolpho também não conseguira dormir na noite anterior. Deitado sob a carroça, ele se
lembrava do dia em que a mulher, vestida com uma capa escura, havia trazido Ali
cia até o acampamento.
- Eu vim para lhe trazer esta criança _-ela dissera, empurrando Alicia para a fren
te. - Ouvi dizer que os senhores muitas vezes roubam crianças da cidade por isso
resolvi facilitar o trabalho de vocês.
Rudolpho lembrava-se vividamente de que havia cerrado os maxilares, cheio de rai
va, e respondido:
- Nós não roubamos nada, especialmente os seus filhos!
Os ciganos são pessoas honradas.
Deveria ter mandado a mulher embora imediatamente, mas alguma coisa na criança hav
ia lhe tocado o coração. Ele se inclinou para olhar mais de perto a menina de cabelo
s escuros e olhos verdes que não demonstrava medo, e sua raiva se evaporara como a
nevoa da madrugada.
- Qual é o seu nome, pequena?
- Alicia - respondeu ela, estendendo a mão e tocando uma das argolas brilhantes qu
e ele usava na orelha. Sua expressão demonstrava que gostava de Rudolpho.
-A menina não tem família- disse a mulher.-Se o senhor não quiser comprá-la,serei obriga
da a deixá-la nas ruas para morrer de fome.Ela não pode mais depender da minha carid
ade para se alimentar e se vestir.
Alicia olhou para Rudolpho com tanta confiança que ele compreendeu que ficaria com
ela.Ela seria sua filha,aquela que poderia ter tido com sua mulher,caso ela não t
ivesse morrido tão jovem.
- O senhor a quer ou não?
-Fico com ela.A partir de hoje alicia será minha filha.
Ele pegou a mão de Alicia e foi se afastando com ela,quando a mulher gritou:
-Espere,quero dinheiro por ela.
-Dinheiro?Nada de dinheiro.Agora a criança é minha.
-Está bem.Está bem-resmungou a mulher.
Rudolpho ficou a observá-la,junto com sua nova filha.
-Venha pequena você ficara muito melhor sem essa mulher.Eu tomarei conta de você.
Alicia lhe deu a mão e, sem e hesitação,seguiu-o até o acampamento dos ciganos.
Ele levou a menina para a carroça de sua avó,na época a phuri daí do bando,uma mulher de
rosto curtido e enrugado.
-Quem é essa criança,a pequena de olhos verdes?-perguntou a líder espiritual do grupo-
Ela é gorgio.Por que está aqui?
-Uma mulher a trouxe para nós.A criança não tem pais nem para onde ir.
Rudolpho sabia que sua avó era muito sabia e queria seu conselho.
-Se ela ficar entre nós nunca poderá se casar dentro do grupo;você conhece a lei.Ela t
erá uma vida solitária quando se tornar adulta.
Os olhos da velha examinaram atentamente a menina,mas Alicia não mostrou medo.Isso
impressionou Rudolpho,por que as outras pessoas costumavam tremer diante da phu
ri daí.
-Conheço a lei,mas ela estará melhor aqui do que vivendo com uma mulher como a que a
trouxe para mim.Ela odeia essa criança e lhe faria mal.
Ajoelhando-se diante da avó, em sinal de respeito, Rudolpho pediu para ficar com a
criança.
- Eu a criarei como se fosse minha. Podemos tentar encontrar um marido para a me
nina entre a sua própria gente quando ela crescer.
Finalmente, a mulher consentiu. E desde então, os dois tinham vivido juntos. Ele s
empre a amara e protegera, mas agora teria de encontrar outro homem para protegê-l
a. O destino de Alicia era pertencer ao gorgio que ela salvara do rio.

Rafael de Villasandro atravessou o pátio de pedra que levava á igreja de São Miguel, p
erguntando-se o que diria para alcançar as boas graças do padre Juan Dorado. O que t
eriam em comum? Na verdade, havia vezes em que Rafael questionava a igreja em se
u coração. Quantas pessoas não haviam morrido por não aceitarem o abençoado Cristo? mouros
, muçulmanos, judeus, judeus convertidos e tantos outros ... Como poderia um Deus
de amor tolerar tanto derramamento de sangue?
Ele se lembrou da mãe, cujo único crime fora amar seus pais judeus, e de Alicia, que
ele não sabia se estava viva ou não.
Oh, Alicia ... tenho de acreditar que você está viva, ou enlouquecerei!
Ele precisava cumprir seu dever. Tinha de visitar Juan Dorado, na esperança de que
o padre não conseguisse ver o que se passava em seu coração e em sua mente.
Assim atravessou o arco de pedra e entrou na igreja, que estava lotada.Levantand
o os braços ao céu,o padre dava inicio a missa:
- Dominus vobiscum.
-Et cum spiritu - respondeu a multidão inclusive Rafael.
Rafael mal ouviu as palavras da missa.Estudou o rosto do padre,tentando julgar o
homem.Era um rosto muito comum de traços pouco marcantes,faces pálidas e lábios finos
.Mas os frios e brilhantes eram d eram radical,de um inquisidor.Rafael sentiu re
pudio pelo homem e por aquilo que ele representava e, mais uma vez perguntou-se
como poderia ganhar a confiança de Juan Dorado.
As velas lançavam luz sobre o altar da Virgem Santa,que ficava a esquerda.Os olhos
do padre foram atraídos pela imagem.Ele a olhou com expressão de devoção,como se aquele
rosto belíssimo e sereno estivesse vivo.Naquele momento,Rafael viu a resposta á sua
s duvidas.A reverencia e o amor do homem pela beleza e pela arte seriam a chave
de sua missão.
Alguns anos antes,o pai de Rafael fora para a Itália e adquira os quadros de um ar
tista chamado Leonardo da Vinci.Guardara um para si e dera um para cada filho.O
presente de Rafael era um quadro da Virgem Maria com o menino Jesus no colo.Era
uma pintura belíssima,de que ele gostava muito.Mas abriria mão dela,na esperança de qu
e ela fizesse um milagre.
A missa acabou,e depois que a igreja ficou vazia,Rafael se aproximou do padre,qu
e estava ajoelhado no altar.
Aquele seguidor de Torquemada,que pertencia ao tribunal dos frates predicatores,
os frades pregadores,parecia em transe.
-Malditos judeus,hereges blasfemos!Todos aqueles que conheçam a glória do batismo e
reverteram ao judaísmo novamente.Não descansarei até ter visto todos serem queimados.
Vou exterminar esta pestilência antes que ela se alastre e ameace outras almas.Mor
te aos hereges e, a vossa vontade meu Deus.Sou apenas seu ministro.
Depois dessa oração o padre fez o sinal da cruz e olhou na direção de Rafael,que o obser
vava.
-Quem é o senhor?-perguntou ele parecendo aborrecido.
-Meu nome é Rafael Cordoba de Vilassandro,padre.Sou um nobre de Castela,e meu irmão
e proprietário dos olivais próximos a Toledo.
-Um nobre- disse o padre levantando-se.Os olhos dele avaliaram Rafael,as roupas
finas, a bolsa pendurada na cintura,e perderam a expressão de hostilidade.-De Cast
ela? E o que o traz a minha humilde igreja?
- Ouvi falar da beleza simples desta igreja e do seu devoto padre. Vim ver com m
eus próprios olhos e não me decepcionei ...
- É apenas uma moradia humilde. Preciso de muita riqueza para adorná-la, para deixá-la
tão magnífica quanto ela deveria ser.
- O senhor precisa de riqueza? Eu o ajudarei.
Os nobres e mercadores faziam doações generosas a Igreja em troca de orações. E todos pa
gavam impostos para manter a igreja. Mesmo assim, ainda era difícil para Dorado ju
ntar tanto quanto desejava.
- E como o senhor vai me ajudar?
- Ela e uma beleza, não e? - perguntou Rafael, olhando para o quadro da Virgem.
- Sim. Eu daria a minha vida por ela.
- Eu tenho uma pintura que o senhor precisa ver. A Virgem e 0 Menino, de Leonard
o da Vinci. Eu a darei para o senhor pendurá-la em uma das paredes de sua igreja.
- Como o senhor a obteve?
-Em Florença.Nunca vi nada tão magnífico.
-E o senhor a daria para mim?
-Como um gesto de amizade.Há alguma no senhor que mexe com minha alma.Nós dois temos
uma mesma paixão.Fiquei impressionado ao ver sua devoção e amor a tudo que é belo.
- O senhor realmente conseguiu enxergar dentro da minha alma- respondeu o padre
tocando o braço de Rafael .-Eu também amo a arte.Antes de fazer meus votos até pensei
em ser artista.Mas Deus tinha outros planos para mim.
Os dois saíram da igreja e foram em direção aos aposentos do padre,atrás da igreja.Juan
Dorado falou sobre si mesmo,que era o enteado caçula de Phillip Navarro de León. Faz
ia cinco anos que tinha se ordenado padre.Observando a expressão dele,Rafael perc
ebeu que o padre tinha ambição de se tornar bispo ou arcebispo.Era esse o objetivo
que o fazia se aliar a pessoas como Torquemada,avaliou.
-Eu também sou o segundo filho- respondeu Rafael consciente de que deveria tomar c
uidado e permanecer alerta,para não revelar sua s verdadeiras intenções.-Pensei em com
bater os mouros,mas acabei voltando minha atenção para outros inimigos da Espanha.
- Conversos - sibilou Dorado .-Judeus.Então estamos do mesmo lado.
-Sim,estamos do mesmo lado- respondeu Rafael calmamente,contendo a vontade de gr
itar a verdade.
Ao chegarem diante dos aposentos do padre,Rafael se despediu,prometendo trazer o
quadro para a igreja no dia seguinte.Não notou que estava sendo observado por doi
s homens que o haviam seguido,e foi-se embora.
Os olhos da Virgem olhavam do quadro para Rafael.Seu sorriso recatado parecia ab
ençoar o que estava fazendo.
Ele tirou a pintura da parede e colocou gentilmente a sua frente,para olhá-la mais
uma vez.
- Leonardo da Vinci é um gênio -murmurou.
Não gostava nada da idéia de doar a pintura,mas havia dado a sua palavra.
Havia tanta paz na capela da casa de seu irmãos que era difícil acreditar que apenas
alguns quilômetros dali pessoas estavam enfrentando o terror e as torturas dos f
anáticos de Torquemada, padres da Ordem Dominicana como o padre Juan Dorado,o arc
ebispo de Toledo e o cardeal Jimenez.
-Rafael,por que o quadro não está na parede?- perguntou sua cunhada.
Ele não havia percebido a chegada dela.
- Eu o tirei, Maria. Vou doá-lo .
-Não!
- Este quadro foi dado para você pelo nosso pai- interveio Carlos, que estava para
do Iná porta , os braços cruzados sobre o peito _ Ele deve passar de geração em geração.Com
não tem uma casa própria,você o manteve aqui sob minha guarda,e é aqui que ele deve fic
ar.Não é certo que se desfaça dele.
- O que eu faço é pelo bem de outras pessoas- respondeu Rafael e rapidamente contou
ao irmão sobre seu encontro com Juan Dorado,mas não recebeu a compreensão que esperav
a.
- Você e um tolo de querer ajudar os conversos,vai levar a família a ruína.Sabe qual é
a penalidade por ajudar esses Judeus hereges? Isso vai lhe custar a vida ,ouça o
que eu digo.
- Se você opta por dar as costas para o povo de sua mãe,por passar a vida ficando c
ada vez mais rico e gordo,não posso dissuadi-lo retrucou Rafael enfurecido.-Mas eu
escolhi outro caminho.
- O povo de sua mãe? - perguntou Maria de olhos arregalados O que isso significa, C
arlos?
Tarde demais, Rafael percebeu que seu temperamento o deixara descuidado. Ele tin
ha se esquecido da presença de Maria na capela. Já tinha ido longe demais para se ma
nter em silencio agora.
- Nossa mãe era judia, Maria. Ela se converteu ao cristianismo, mas morreu nas mãos
da Inquisição. Isso é algo que você tem o direito de saber.
- Judia? Uma conversa?
Carlos se aproximou e tomou nas suas a mão da mulher. -Não tem importância. Fui criado
pelo meu pai depois que ela morreu. Sou, como você, um bom cristão. E Rafael também e
, apesar de suas idéias tolas.
- Mas ... nossos filhos ...
- Ninguém nunca precisa saber disso. Nunca .
Rafael deu as costas ao irmão, enojado. Homens como Carlos, que viviam confortavel
mente e preferiam ignorar o horror que os cercava, eram tão responsáveis pela situação q
uanta o próprio Torquemada. Quando as pessoas optam por ignorar o mal, ele se mult
iplica.
Procurando se acalmar, Rafael saiu da casa e foi para um local isolado da hacien
da.
Estou tão cansado de Carlos e seus medos ... , pensou.
No entanto, talvez seu irmão tivesse motivo para ser cauteloso, refletiu. Ele não de
veria ter tentado mudar o que seu irmão pensava, assim como Carlos não podia sequer
cogitar em mudar seu destino.
O latir de um dos cachorros de seu irmão o alertou para o fato de que não estava a sós
. Virando-se, viu dois cavaleiros vindo em sua direção.
Seu primeiro pensamento foi de que alguém descobrira seus planos. Rafael lamentou
estar desarmado. Mas ele lutaria. Aparentemente, mais uma vez seriam dois contra
um. Mas, pelo menos, agora ele não seria atacado por trás.
Quando os homens se aproximavam, porem, Rafael viu, surpreso, que usavam lenços ve
rdes e amarelos ao redor do pescoço,que indicava que eram ciganos.
Pensando ,que talvez Alicia os tivesse enviado ,correu na direção deles.Pelo menos e
la estava viva.Estaria ela em perigo?Nem lhe ocorreu ter medo.Ele os saudou leva
ntando a mão direita,como faziam os ciganos, mas nenhum retribuiu o gesto.
Um deles disparou o cavalo cortando a linha de fuga de Rafael, enquanto o outro
guiava sua montaria no sentido de bloquear o avanço do gorglo.
- Rudolpho nos disse para não lhe fazer mal-disse um deles.
O outro jogou a corda que tinha nas mãos e quando Rafael deu por si,estava preso
no laço impotente.O cigano riu.
- Solte-me! - gritou Rafael . ele tentava lutar mas não havia nada que pudesse faze
r.
- Não. Alguém quer ver você.
Rafael foi puxado e atravessado sobre o cavalo como um saco de cereal.
Alicia segura com firmeza as rédeas da carroça,que avançava.O menino de quem tomava co
nta ,Palo estava sentado a seu lado.Os homens tinham levado quase a manhã toda par
a encontrar uma arvore forte o suficiente para fazer o novo eixo,esculpi-lo nas
dimensões certas e prende-lo as rodas.
Todero assumira seu lugar atrás da carroça de Alicia,seguido pelos dois carros de du
as rodas,carregados de alimentos.Ficar no fim da caravana era humilhante,mas Tod
ero voluntariamente ficara atrás dela,o que aliviou o orgulho ferido de Alicia.El
a tentou esquecer o sorriso de satisfação no rosto de Stivo.
A jornada era difícil e cansativa. Eles tinham mais uma vez chegado a um planalto
, cruzado por profundos desfiladeiros. Para não se envolver na guerra em Granada,
o bando liderado por Rudolpho mudou de rota.
O grupo mantinha contato com os outros membros do bando através de urna rede de co
ntatos secretos, e todos se reuniriam dentro de um mês, perto de León, e não de Granad
a, como havia sido planejado anteriormente.
A caravana viajou o dia to do sob o sol quente, parando apenas uma vez para desc
ansar os cavalos e deixá-los beber em um riacho.
Alicia aproveitou para se refrescar na água. Estava cansada e com calor, as costas
doíam depois de ter passado tantas horas sentada no banco duro da carroça, e os ded
os estavam esfolados e dormentes por causa das rédeas.
Ela viu Rudolpho sentado e aprumado, e ficou impressionada com a disciplina. Nin
guém diria que ele tinha se contorcido de dor na noite anterior. Parecia vigoroso,
mas Alicia suspeitava que ele escondesse seu sofrimento com a coragem que sempr
e mostrara na vida. Notou também que ele olhava para trás com frequência, como se esti
vesse procurando ou esperando alguém.
Logo depois, a caravana retomou seu caminho. O ranger da carroça e o ruído das rodas
pareciam cada vez mais altos. Tinha ouvido aqueles sons toda a sua vida. Par qu
e agora o barulho a incomodava tanto?
No final da tarde, percebendo que todos tinham chegado ao limite de sua resistênci
a, Rudolpho fez um sinal para que as carroças parassem e se posicionassem em circu
lo, como de costume. Os ciganos se prepararam para passar a noite , apesar de o
sol ainda não ter se posto. Alicia desceu da carroça e se aproximou do pai.
-O senhor esta se sentindo melhor? - perguntou ela, estudando-lhe a expressão do r
osto.
Rudolpho estava pálido,mas as linhas de dor ao redor dos olhos não eram mais visíveis
.
- Muito melhor.-respondeu ele acariciando o cabelo dela.tentou sorrir mas sua ex
pressão era de tristeza.
- Vou preparar mais chá hoje,certo?
Ele fez que sim com a cabeça, mas estava desatento,o olhar perdido no horizonte.
-Papai? Quem o senhor está procurando?
- Você verá, Alicia '- ele respondeu envolvendo o rosto dela com as mãos.-O que estou
fazendo é por você.
- Por mim? '
Alicia queria fazer mais perguntas,mas resolveu deixar para mais tarde.havia mui
to trabalho a ser feito,e Rudolpho não parecia disposto a falar naquele momento.
Quando anoiteceu, foram acendidas fogueiras que iluminavam os rostos dos ciganos
exaustos,sentados em círculos no chão.O grupo comeu em silencio o cozido de coelho
que as mulheres haviam preparado.
Stivo observava Alicia de longe,com uma expressão cínica nos olhos.Ele moveu os lábios
como se dissesse: Algum dia Alicia,algum dia.
Não posso me esquecer de não me afastar sozinha, pensou ela.
Nesse momento o som de cascos rompeu a quietude da noite. Com todos os outros ci
ganos Alicia pegou a faca, preparando-se para o caso de um outro ataque.Mas quem
se aproximava eram dois ciganos Manolo e Gyuri.
Quem eles traziam consigo?
- Rafael - exclamo Alicia, sem fôlego, O que ele fazia ali?
Ela não tinha a menor duvida de que mais uma vez ele era um prisioneiro.Tinha os b
raços e as pernas amarrados e,apesar de toda raiva pelo que ele lhe fizera,sentiu
pena.Seria isso o que Rudolpho queria dizer quando afirmara que tudo o que fazi
a era por ela? Ele estaria buscando vingança pela perda de sua castidade? Esse não
era o jeito do pai. Ele não era um homem cruel nem vingativo.
- Rafael! - Alicia reprimiu um soluço, quando ele foi posto no chão, de costas para
ela.
Ela pensara que nunca mais o veria. Ele virou o rosto em sua direção, e por um Longo
momento os olhares de ambos se encontraram.
Alicia teve vontade de tocá-lo, mas ele parecia muito distante, como um fantasma o
u um sonho .
Ao ver Alicia novamente, Rafael por um momento se esqueceu da raiva que sentia.
Ela era tão linda!
- Alicia ... - sussurrou ele.
Mas, em seguida, a realidade o atingiu brutalmente, Suas mãos estavam amarradas, d
e forma que não poderia nem mesmo cumprimenta-Ia. Lembrou-se de Juan Dorado. O que
o padre pensaria quando ele não levasse a pintura? Como ele poderia salvar vidas
estando naquele lugar? Por que aqueles ciganos o haviam aprisionado novamente?
Alicia viu o corpo de Rafael enrijecer, o rosto assumir lima expressão de raiva, e
o encanto entre os dois se quebrou. A lembrança de tudo o que acontecera se ergue
u como um muro entre os dois. Ele tinha lhe tirado a virtude e, depois, a abando
nara sem pensar duas vezes.
Alicia não era suficientemente boa para ele. Rafael desprezava os ciganos e, não sat
isfeito em ter se afastado, tinha informado o local do acampamento. O rosto de
Vashti passou diante dos olhos dela, e seu coração enregelou-se. Ela abriu a boca pa
ra falar, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Rudolpho deu um passo, fic
ando entre os dois, as braços erguidas para silenciar os murmúrios de raiva dos ciga
nos que, como Alicia, lembravam-se dos ataques contra o acampamento e pensavam q
ue o gorgio era o culpado.
-O que ele esta fazendo aqui? - gritou Stivo.
Outros imediatamente começaram a se manifestar.
- Eu mandei trazê-lo aqui - respondeu Rudolpho, de cabeça erguida.
Em seguida passou os olhos por todo o grupo, com uma expressão que não deixou duvida
s sobre quem era o líder.
- Por que?- perguntou Todero, com uma voz tão carregada de raiva que nem parecia a
sua.
Ele se lembrava do ataque contra o acampamento e também de como Alicia fora traída.
- Nós não o queremos aqui! - começaram a gritar as mulheres em uníssono. - Ele vai traze
r azar para nós novamente!
- Faça-o pagar pelo que fez! - bradou uma mulher que havia perdido o marido no ata
que.
- Mande-o embora! Para o mais longe possível- sibilou Jana, a phuri dai. - Ele é mal
igno.
- Silencio! - A voz retumbante de Rudolpho ecoou na noite. - Este homem tirou a
virtude de minha filha, Alicia. E meu direito de pai me vingar ou, como pretendo
, ter a honra de minha filha restaurada.
As pernas de Alicia tremiam tanto que ela teve dificuldade em se manter de pé. Rud
olpho ia forçar Rafael a se casar com ela!
-Não!
Sua voz se perdeu no burburinho da multidão.
- É o meu direito! - repetiu Rudolpho. E, voltando-se para Rafael, acrescentou: -
Você se casara com minha filha amanha, gorgio. Tenho dito.

CAPITULO VIII

-Não faça isso, papai!-pediu Alicia.


- Querendo privacidade com a filha Rudolpho fez um gesto para que os outros se d
ispersassem.Eles se a afastaram lentamente, curiosos quanto ao que seria dito en
tre pai e filha.
-Sumam. - berrou o líder, impaciente.
Os olhos de Alicia seguiram Rafael,que estava sendo levado embora para a carroça d
e Manolo e ,ela repetiu, em um sussurro:
- Não faça isso, papai.
Ela se sentia confusa. Os bandos não aprovavam o casamento entre um cigano e um não
cigano. Como Rudolpho poderia sancionar uma coisa dessas,mesmo tendo ela se ent
regado ao gorgio?
-Não vou me casar com ele!
-Você tem de aceitar esse matrimonio!Assim o decidi,e é para o seu próprio bem.-Apesar
do tom de braveza na voz de Rudolpho,os olhos dele eram amorosos.
O pensamento de ser banida do bando a atormentava.Por outro lado seria um castig
o tão terrível se ficasse com Rafael?O coração lhe dizia que seu sonho de seguir o homem
que amava até os confins do mundo,se necessário fosse seria realizado.Sua mente por
em rebelava-se contra essa idéia.Ela era uma cigana.Aquela união não era possível.Nunca
se encaixaria no mundo de Rafael.Além disso a falsidade dele havia destruído seu amo
r.
- É possível, sim - Rudolpho teimou. _ Eu já disse, e assim será. Não cabe a você me questi
nar.
Alicia olhou para ele através das lágrimas.
- Eu não toleraria ser banida do bando. Seria pior do que a morte.
Rudolpho a abraçou.
- Não, Chavi. Você não será banida. Você é minha filha e eu a amo. Como você pode pensar qu
u permitiria uma Coisa dessas? - Ele acariciou os cabelos de Alicia. _ O gorgio
vivera entre nos, vou providenciar isso. Como você pode ter tido dúvidas quanto a mi
m? Sempre penso em você. Quero a sua felicidade.
- Então deixe o gorgio ir embora. Esse casamento entre nos e algo que não deve acont
ecer. Eu não amo o gorgio, nem ele me ama.
Rudolpho a afastou de si um pouco, mantendo as mãos nos ombros dela, e fitou-a nos
olhos.
- Minta para si mesma, Alicia, mas não para mim. Você o ama, vejo nos seus olhos, e
creio que ele também a ama, ainda que talvez ainda não saiba disso. Eu soube desde o
começo que ele era 0 seu destino. Agora, vá embora. Não vou mais falar disso. Como se
u pai e líder deste bando, eu lhe digo que o gorgio será seu marido.
Rudolpho se afastou e Alicia conteve o impulso de segui-lo, de Implorar que muda
sse de idéia. Ela caminhou, apática, para a sua carroça, sentindo-se total mente perdi
da. O pai tinha razão, ela amava o gorgio, mas nunca admitiria isso.
Ela tinha confiado naquele gorgio uma vez, mas nunca mais faria isso. Lutaria, c
om todas as fibras do seu ser, contra aquela fraqueza que senti a por ele. Rafae
l. nunca saberia o poder que tinha sobre ela. Nunca! . .
Deitando-se na cama, no meio das duas crianças, ela caiu no choro .
Rafael de Villasandro, com as mãos e os pés atados, também não conseguia dormir. Alem de
estar em uma posição desconfortável, sentia a bílis lhe subir pela garganta ao pensar
no casamento que estava prestes a acontecer. Alicia era linda. Ele quase tinha f
icado louco quando imaginara que ela poderia estar morta. Mas ser obrigado a rea
lizar um casamento cigano fazia com que seu sangue fervilhasse. Ele nunca gostar
a de ser forçado a fazer nada. .
Se ele a tivesse procurado, as coisas poderiam ser diferentes. Que o pai dela fi
zesse o que quisesse, pensou com raiva. Ele não era um carneirinho para ser domado
e fazer o que um cigano mandasse. Rudolpho não tinha esse direito.
Entretanto, uma vozinha em sua mente e em seu coração lhe dizia que o cigano tinha t
odo o direito. Rafael havia sequestrado a filha dele, feito amor com ela e depoi
s a deixado sozinha na floresta. Sem duvida, qualquer pai reagiria daquela forma
.
- Se ele tivesse vindo ate mim, conversado de homem para homem, tudo poderia ser
diferente - resmungou Rafael em voz alta.
Afinal ele era um homem honrado e razoável. Será que Carlos o estaria procurando naq
uele momento? Haveria alguma possibilidade de ele ser resgatado? Não! Mais uma vez
, encontrava-se preso em uma armadilha. .
Mas, estaria mesmo? Ele sonhava com Alicia muitas noites, e tinha saudade dela.
Quando a havia encarado poucos minutos antes não sentira o coração se mover dentro do
peito? Vê-Ia e saber que ela não estava entre as vitimas da
chacina tinha feito com que sentisse o corpo tremer por dentro. Não podia negar qu
e sentira um desejo incontrolável de toca-Ia. Nem mesmo a magoa e a fúria tinham pos
to fim a esses sentimentos.
Sua mulher. Alicia será sua mulher, sussurrava uma voz interior.
Seria o casamento algo tão trágico assim? Não era verdade que pensar que nunca mais a
veria, que nunca mais ouviria a sua voz e que nunca mais a tocaria o deixara mui
to triste? Esses pensamentos conflitantes faziam sua cabeça doer.
Uma noiva cigana.
Ele se lembrou do pai e de como o amor por uma mulher de outra fé havia causado so
frimento. Da mesma forma como acontecera com seus pais, um abismo separava a sua
realidade e a de Alicia. A cerimônia cigana não seria reconhecida na sua sociedade.
Ele queria estar perto dela, mas casamento era impossível. O amor que lhe fervia
no peito era algo fadado ao infortúnio.
E quanto a sua promessa para de Torga de que participaria da ajuda aos conversos
? Que tipo de homem seria se permitisse que a sedução de fogosos olhos verdes e lábios
macios o impedissem de cumprir o seu dever? Muitas vidas dependiam da missão com
que se comprometera.
Que o pai de Alicia fizesse 0 que quisesse, pensou, frustrado. Depois de dar vazão
a toda a sua raiva, o bom-senso tornou conta dele. Por que arriscar-se a fúria do
líder? Sem um padre, o casamento não teria validade. Então, por que lutava contra o i
nevitável?
Talvez porque ele tivesse medo de suas próprias emoções...
Era só olhar urna vez para Alicia, e todo a capacidade de raciocinar o abandonava.
Ele só conseguia pensar em amá-la. Mas aquele era um mundo real, um lugar onde muit
os inocentes estavam morrendo nas mãos de Torquernada.
Ele tinha de fugir, mas seria esperto. Não se negaria a se casar. Seria manso e fa
ria o que eles quisessem. Ninguém poderia mantê-lo amarrado para sempre. Tinha escap
ado uma vez antes e fugiria de novo. Conquistaria a sua liberdade.
Esses pensamentos deveriam deixá-lo feliz, mas .Rafael sentia uma estranha tristez
a. Trair a confiança de Alicia mais uma vez era odioso e fazia com que seu coração doe
sse. Ele seria um tolo de pensar que poderia haver algum futuro para um nobre e
uma cigana? Sim, era isso o que ele era. No fundo do seu coração, tinha a esperança de
que, de alguma forma, ele e Alicia seriam felizes juntos.
Depois de passar uma noite insone, Alicia se levantou antes do nascer do sol. Er
a o dia do seu casamento. Deveria ser o dia mais maravilhoso de sua vida, mas el
a se sentia vazia. Rever Rafael a tinha feito perceber o quanto era vulnerável. Se
mpre se orgulhara de ser forte, de seu sangue cigano, mas na noite anterior tinh
a fraquejado. Se Rafael tivesse acenado para ela, não tinha duvidas de que teria c
orrido para os braços dele.
- Mas hoje eu serei forte! - exclamou, tão alto que acordou a menina, Mala.
- Por que esta triste? - a pequena quis saber.
- Você não entenderia se eu explicasse, meu bem.
- Mas você deveria estar feliz - continuou Mala.
Não entendo por que essa cara fechada. É porque você não conseguiu um preço nupcial alto?
Como poderia aquela pequena cigana inocente entender a humilhação de Alicia? Não haver
ia preço nupcial para ela, nem o pai do noivo regatearia com o da noiva. Ela estav
a sendo impingida a um homem que não a queria, que estava sendo forçado a se casar.
Alguém que ela tinha todos os motivos para odiar, mas cuja proximidade a atormenta
va com lembranças de uma noite estrelada e com sonhos.
- Isso mesmo - respondeu ela. É o preço nupcial. Ela se vestiu rapidamente e saiu da
carroça, fugindo ao olhar indagador da menina.
O clima era festivo, como se o grupo cigano tivesse perdoado o gorgio, pelo men
os por enquanto. As pessoas até pareciam contentes por ter algo a comemorar.
Alicia evitou os olhares curiosos que, segundo imaginava, estariam estranhando a
reação que tivera ao comando do pai. Logo ela, que sempre obedecera a Rudolpho em t
udo. Com o orgulho cigano, Alicia andava de um lado para o outro de cabeça erguida
, controlando o desejo de pegar seu cavalo e sair galopando até o fim do mundo. Es
tava muito confusa. Por que o pai estava fazendo questão que ela se casasse com aq
uele homem? Não estava grávida. Rudolpho não costumava ir contra os seus desejos.
Alicia nunca soubera de um caso em que uma cigana tivesse se casado com um gorgi
o. Perguntava-se por que os anciões do bando não tinham argumentado com seu pai.
No meio de tantas duvidas e inquietações, ela se agarrou ao seu orgulho. Casaría-se co
m o gorgio, mas nunca mais permitiria que ele a possuísse. Se permitisse que Rafae
l se aproximasse dela daquele jeito novamente, sabia que estaria perdida. Ela se
tornaria, de bom grado, a escrava de Rafael. Deixaria de ser livre. Em silencio
, fez um voto de celibato que acalmou os seus temores.
Ele ira embora na primeira oportunidade, pensou Alicia, surpreendendo-se com uma
lágrima que lhe escorreu pela face. Se ele quisesse se casar, as coisas seriam mu
ito diferentes. Ela lhe daria um amor tão ardente quanta a luz do sol.
- Alicia - chamou Zuba, tirando-a de sua meditação.
- Não fique tão triste, minha amiga. Tudo vai dar certo.
Alguma coisa naquelas palavras acalmou os temores de Alicia, pelo menos naquele
momento.
- As duas caminharam, de mãos dadas, pelo acampamento, vendo os preparativos para
o casamento. Varias. mesas tinham sido montadas e estavam cheias de todos os tip
os de comida. Normalmente as rações eram apertadas quando eles viajavam. De onde ter
ia vindo tudo aquilo? .
Havia meio porco assando no espeto, condimentado com sementes de anis; um faisão e
um frango que, segundo Alicia suspeitava, tinha sido Furtado de uma fazenda dis
tante, temperado com salvía, tomilho e manjerona e recheado com maça. Havia grandes
pratos de legumes, feijões com páprica, grãos-de-bico em um molho de óleo e vinagre e ti
gelas de lentilhas fumegantes. Ali encontravam-se azeitonas pretas, cebolas e be
rinjelas. De algum estoque escondido, sem duvida de Rudolpho, tinha surgido um p
equeno barril de vinho que havia sido diluído para ser suficiente para todos os "c
onvidados".
- Esta venda, Alicia? O seu povo a ama, apesar das palavras duras que foram dita
s.
Alicia se comoveu. A seu modo, os ciganos estavam desejando felicidade para ela.
A única exceção era Solis. - Que fim levou o noivo? - perguntou ela.
- Não sei - respondeu Alicia.
- Talvez ele esteja amarrado como um cachorro em uma prisão - sibilou Solis, a inv
eja estampada no rosto.
Alicia pensou que, prisioneiro ou não, aquela mulher não hesitaria em tomar o gorgio
como marido, e sentiu ciúme.
- Ele será o meu marido, e melhor não se esquecer disso! Alicia deu um passo a frent
e, furiosa, mas Zuba entrou entre as duas, dando a noiva tempo de controlar a su
a raiva. - Vá embora, Solis! - gritou Zuba, em uma rara demonstração de fúria. - Ou eu c
ontarei aos outros o que você pretende. Quer que a sua cabeça seja raspada?
Solis, que não era de dar chance ao azar, se afastou. - Vamos, vou ajuda-la a se v
estir - Zuba disse.
Ela enfiou a mão no bolso e de lá tirou uma corrente de ouro e a colocou ao redor d
o pescoço da amiga. Era um alerta simbólico para os outros homens de que Alicia esta
va , prestes a se casar.
- Não posso aceitar, Zuba. Isso pertence a você - disse Alicia, começando a tirar a co
rrente.
- Arrumarei outra - disse a amiga, detendo o gesto da noiva. - Por favor, este e
' um presente meu para você, um símbolo da nossa amizade. - As duas ficaram se olhan
do e Zuba sussurrou: - Você o ama, Alicia. Mesmo que não saiba, eu sinto isso no cor
ação. A sua reação ao que Solis disse ...
- Foi só uma expressão de raiva. O gorgio não significa nada para mim. o amor que um d
ia tive por ele morreu no dia em que fui abandonada.
- Minta para você mesma, mas não para mim, Alicia.
Não adianta negar. Não permita que sua amargura estrague a felicidade que esta por v
ir. Uma manha nublada muitas vezes se transforma em um lindo dia. Um cigano nunc
a sabe qual será o seu amanha ...
Ao ouvir essas palavras, Alicia fechou os olhos e, em silencio, pediu a O Del qu
e o seu amanha fosse tranquilo.
A multidão se reuniu para ver o casamento. Do mais jovem ao mais velho, todos usav
am suas melhores roupas e as mais coloridas. Muitos traziam moedas de ouro pendu
radas no pescoço e nas orelhas. Entre musicas e risos, as pessoas se empurravam, n
a tentativa ver a noiva primeiro. Fazia muito tempo que não havia um casamento ent
re eles.
Um poste alto trazia no alto um lenço branco tremulando ao vento, símbolo da pureza
da noiva. Parecia que, por um momento, todos haviam se esquecido do motivo daque
la cerimônia apressada. Um galho de tojo, coberto de flores amarelas, foi pregado
sobre o local onde ficaria o jovem casal. Era uma tradição,mas aquelas eram as únicas
flores cortadas que eram permitidas, pois estas eram um símbolo de morte prematur
a, e aquela festa marcava o começo de uma nova vida.
- La está ela - gritou uma criança. - Alicia!
- Ela está linda ...
Vestindo uma blusa bordada em branco, os contornos do busto destacados por um ac
abamento em viés, as saias esvoaçando ao vento, ela parecia uma deusa paga. A saia u
sada por baixo era a mais comprida, e cada uma delas era um pouco mais curta, de
forma que se viam as cores de cada uma branca, amarela, rosa e vermelha.
Destacando a cintura fina, ela usava um cinto preto enfeitado com contas colorid
as. Grandes brincos de ouro desciam de suas orelhas, e os braços brilhavam com o o
uro de muitas pulseiras. Ao redor do pescoço, Alicia usava muitos fios de contas p
retas e vermelhas, para trazer boa sorte.
Os cabelos soltos caiam em cascata ate abaixo da cintura.
A grinalda, feita de folhas entrelaçadas com fitas de muitas cores e que pendiam d
os dois lados do rosto de Alicia, de alguma forma parecia o véu de noiva usado pel
as mulheres cristas.
Ao chegar para a cerimônia e ver Alicia, Rafael não conseguiu conter um suspiro. Ela
estava mais linda do que ele poderia imaginar.
Alicia sentiu os olhos de Rafael sobre si, ouviu o som dos seus passos, ao se ap
roximar, mas não ousou olhar para trás. Eles ficaram lado a lado, na frente de Rudol
pho, que agiria como o celebrante naquela cerimônia, o que era seu direito como líde
r do bando.
Um atrás do outro, os anciões do bando falaram, desejando felicidade ao casal que in
iciava uma nova vida e contando histórias sobre as cerimônias de seus próprios casamen
tos.
Apenas durante esses discursos Alicia ousou olhar na direção de Rafael.
Ele usava um traje cigano e estava mais lindo do que nunca. Os ombros largos qua
se estouravam o tecido fino de sua camisa. Ela reconheceu a camisa como pertence
nte a Stivo e pensou na ironia da situação. Stivo detestava o gorgio, mas havia sido
solicitado a contribuir com sua camisa, j[a que era o único cigano suficientement
e musculoso para emprestar as roupas para Rafael.
As pantalonas de lã escura estavam um pouco curtas.
Ao redor do pescoço, ele usava um lenço azul -vivo e um crucifixo de ouro pendurado,
como que para zombar daquela cerimônia paga.
Rafael virou o rosto para Alicia e, por um momento, eles se olharam com uma inte
nsidade que desencadeou uma torrente de emoções em cada um deles.
Rudolpho fez um sinal para Todero, que lhe entregou uma braçada de pequenos ramos.

- Estes ramos São de sete tipos diferentes de árvores, que simbolizam os nossos band
os - disse Rudolpho. Murmurando palavras mágicas, ele quebrou os ramos um a um e o
s jogou ao vento. - Como esses ramos, vocês também serão livres como o vento, mas não de
vem quebrar o compromisso assumido com 0 outro ate o dia em que um dos dois venh
a a falecer.
Alicia tremeu ao ouvir aquelas palavras. Rafael seria seu marido ate que a morte
os separasse.
Mais uma vez, Rudolpho fez um sinal para Todero, que lhe entregou um jarro de água
, um cristal de sal e um pequeno pão recém-assado. Rudolpho pegou os itens, um a um,
oferecendo a água, primeiro para Rafael, e depois para Alicia.
Com mãos tremulas, a noiva levou 0 jarro aos lábios no mesmo ponto que tinha sido to
cado pela boca de Rafael, e bebeu.
Rafael a observava, comovido. Para ela, aquela cerimônia era tão autentica quanta u
ma feita perante um sacerdote. No entanto; não podia se esquecer de que, para ele,
a cerimônia não significava nada. Apesar de tudo, sua vontade era abraça-Ia e sussurr
ar que tudo daria certo, que ele a amava.
Um estrondo o assustou. O jarro de cerâmica jazia despedaçado no chão a seus pés. Pelo s
orriso triunfante de Rudolpho, percebeu que não se tratava de um acidente.
- Esses pedaços dispersos representam os anos de felicidade que vocês terão juntos. -
Pegando dois pedaços, Rudolpho entregou um para cada um deles. - Guardem esses ca
cos e cuidem deles. Se os perderem, a tristeza e a solidão, sem duvida, os visitarão
.
Rafael estendeu a mão devagar. Aquilo era supersticioso e herético. No entanto, de r
epente ele sentiu que queria ter sempre o caco de cerâmica consigo, e o guardou no
cinto.
- Estendam as suas mãos.
Os dois obedeceram. As mãos de Alicia estavam frias, e Rafael as segurou com firme
za para aquece-Ias, em um toque de posse e, ao mesmo tempo, de caricia, que fez
com que o sangue dela se incendiasse. Apesar de tudo 0 que ele havia feito e de
ele não a querer, ela o amava de todo 0 coração. Perceber isso o deixou arrasado.
Rudolpho atou os pulsos dos dois com três nos, para simbolizar a unidade, fertilid
ade e uma vida longa.
- Enquanto o tempo nos governar, vocês não podem ser separados.
Em seguida, ofereceu um pedaço de pão e um torrão do cristal de sal para que eles come
ssem, enquanto os ciganos gritavam vivas.
Rudolpho desatou a corda que os mantinha juntos, tirou de seu pescoço uma corrente
de moedas de Duro e a pôs na mão direita de Alicia e na esquerda de Rafael.
- Da minha parte, um pouco de ouro, e que o Del lhes dê bastante.
Zuba se aproximou e tirou a grinalda de folhas e fitas da cabeça de Alicia, substi
tuindo-a pelo lenço vermelho das mulheres casadas.
- Que você tenha uma vida de sorte e amor - Sussurrou Zuba.
Em transe, Alicia mal sentiu os abraços e beijos de todos os que lhe desejavam fel
icidade.
Fogueiras foram acendidas, e os ciganos começaram a cantar e a dançar. Tradicionalme
nte, a festa deveria durar três dias. Mas como estavam em transito, seria apenas u
ma noite.
Alicia não conseguiu comer nada. Depois de horas de comemoração, a festa acabou. As mu
lheres escoltaram a noiva para a carroça onde ela passaria sua noite de núpcias.
Elas a despiram e a prepararam. Com uma camisola fina como as asas de uma borbol
eta, Alicia esperou pelo homem que agora era seu marido. Mas que não permitiria qu
e a tocasse.
As chamas das fogueiras do acampamento lançavam sombras misteriosas sobre o rosto
de Rudolpho, que estava de pé, observando com atenção seu novo genro. Seus olhos brilh
avam perigosamente, em uma clara advertência: que não houvesse nenhuma tentativa de
fuga. Por fim, quebrou o tango silencio que reinava enquanto os olhares de ambos
duelavam.
- Alicia sempre foi uma boa filha. A felicidade dela e tudo 0 que eu peço da vida.
Fazer mal a ela e fazer mal a mim. Você me entende, gorgio?
Rafael fez que sim, serio. - Entendo.
Ele gostaria de dizer aquele gigante cigano que também queria a felicidade de Alic
ia e que o que ele teria fazer, mais cedo ou mais tarde, despedaçava o seu coração. Ma
s limitou-se a dizer:
- Mas o senhor não garante o futuro dela me forçando a tomá-la como esposa. Nunca pode
rei ser um cigano.
Rudolpho arqueou uma sobrancelha e começou a andar de um lado para o outro diante
da fogueira, com ar pensativo. Quando Rafael achava que não conseguiria mais aguen
tar aquele caminhar de um lado para outro, Rudolpho parou e, mais uma vez, medi
u-o de alto "a baixo com os olhos.
- E se Alicia fosse com você para o seu mundo, gorgio?
Você a faria feliz? Você a amaria com a mesma intensidade , com que acredito ela o a
ma?
- O senhor permitiria que ela fosse embora?
- Eu sacrificaria meu próprio coração se isso a fizesse feliz. Minha filha só conhece a
vida dos ciganos. A sua gente a evita. Vocês, gorgios, sabem ser cruéis ao tratar os
que são diferentes de vocês. Eu não quero que Alicia seja magoada por tanto preconcei
to. - Ele pensou um pouco mais e, balançando a cabeça, acrescentou: - Não. É você quem tem
de se juntar a nos, tornar-se um cigano. E uma vida boa, uma vida de liberdade.
- Liberdade? - murmurou Rafael, sem conseguir esconder a amargura. - Por duas ve
zes, sua gente fez de mim um cativo e me manteve preso contra a minha vontade. C
omo o senhor pode falar de liberdade?
- Eu peço desculpas por isso - Rudolpho se defendeu, sem encarar Rafael. - Mas era
inevitável. Eu só quis apressar a união entre você e minha filha. - Segurando um dos br
aços de Rafael, em um gesto que pretendia mostrar amizade, ele fitou intensamente
os olhos do rapaz. - É certo que vocês fiquem juntos.
Rafael viu uma grande tristeza naqueles olhos cansados, e não entendeu. Quando ia
começar a fazer perguntas, o líder cigano 0 fez calar-se levantando a mão.
- Não vamos mais falar disso hoje. Sua noiva espera por você.
A palavra "noiva" encheu o coração de Rafael de sentimentos contraditórios. Ele queria
sair correndo atrás dela, toma-Ia nos braços, mas seu orgulho e seu desejo de liber
dade o deixavam ressentido.
Eu deveria tentar fugir agora, quando os outros ciganos estão um pouco bêbados, pens
ou ele. Mas aquela moça tinha um poder sobre ele. Rafael sabia que não poderia deixa
-Ia sem se despedir ou sem fazer amor. Lembrou-se da noite sob as estrelas e sou
be que queria sentir a paixão dela novamente, queria aquele corpo escultural sob o
seu.
Pensou no presente inestimável que ela lhe ofertara da ultima vez em que estiveram
juntos, e soube que não poderia ir embora ainda. Ela pertencia a ele pela lei cig
ana, ainda que não pela lei dele. Alicia era sua noiva cigana, pelo menos naquela
noite.
- Ela é o seu destino - declarou Rudolpho, acompanhando Rafael ate a carroça em que
Alicia esperava por ele.
Alguns homens ciganos acompanharam os dois, e Rafael aprendeu, as pressas, o cos
tume de que o noivo, ainda que tivesse sido obrigado a se casar, tinha de "lutar
" pela esposa e "rapta-Ia".
Alicia simulava medo e chorava, como era o costume. A sua frente, formou-se uma
cadeia de homens que, pretensamente, defendiam a noiva.
O noivo teria de "lutar" por ela. Tudo não passava de uma encenação, e os homens havia
m deixado de lado seu rancor contra Rafael.
Todos, menos Stivo.
- Fique esperto, intruso! Você não tem direitos aqui sussurrou ele no ouvido de Rafa
el.
Rudolpho deu um passo a frente e rompeu a cadeia humana. Rafael se aproveitou da
confusão que o movimento brusco do líder causara e, puxando Alicia pela mão, saiu cor
rendo.
Os dois seguiram até o extremo do acampamento, olhando para trás de vez em quando. R
afael lembrou-se da outra vez que tinha tirado Alicia de seu povo e sentiu um en
orme desejo de leva-Ia embora de novo. Olhou em volta a procura de um cavalo, ma
s não havia nenhum. Os ciganos não tinham confiado nele tanto quanta imaginara.
- Você não vai fugir desta vez, gorgio disse Alicia por entre os dentes, compreenden
do perfeitamente o que se passava na cabeça dele. - Apesar de eu desejar que você fo
sse embora e não voltasse nunca mais.
As palavras dela o magoaram. Ele não esperava tanto ódio, por mais que fosse justifi
cado.
- Eu mereço o seu desprezo, Alicia. Peço desculpas por todo o sofrimento que causei
a você.
- Desculpas? -Alicia estava com as pernas tremulas e se esforçava para não cair. Com
medo da fraqueza que a dominava, ela se refugiou no ódio. - Eu nunca perdoarei o
que você me fez. Nunca!
Rafael ficou abalado. Se ele soubesse qual era o motivo, poderia ter explicado a
ela que era inocente do ataque contra o acampamento cigano, mas achou que o ódio
era por tê-la abandonado.
- Era uma coisa que eu tinha de fazer. Você não entende isso?
Rafael estendeu a mão para pegar a dela, mas ela se afastou.
- Vou me lembrar do que você fez ate o dia da minha morte - disse Alicia, com difi
culdade. - Você é como veneno. Nunca mais vou acreditar nas palavras doces de um gor
gio.
Ela se virou, com intenção de fugir, mas viu que Stivo se aproximava. Alicia detesta
va Stivo, e tinha medo dele, mas não recuou. Por mais perigoso que ele fosse para
ela, era mais ainda para Rafael.
- Você não lutou por ela, gorgio - rosnou Stivo.
Com a graça de um felino, pegou o chicote que era a marca da masculinidade para os
ciganos, estalando-o com tanta força que produziu um som semelhante ao disparo de
uma arma de fogo.
- Eu a sequestrei, como manda a tradição cigana.
Agora Alicia é minha.
- Sua, gorgio? Ela nunca será sua, apesar de o segredo do nascimento dela ser conh
ecido de muitos. Você não a quer,e eu quero. É só você me entrega-Ia que eu reivindicarei
os direitos de marido em seu lugar e permitirei que você vá embora, totalmente livre
.
Ele brincou com o chicote, fazendo-o se contorcer no chão como uma cobra, perto do
s pés de Rafael.
Rafael nunca entregaria Alicia para aquele homem maligno. Ele sabia que o que St
ivo senti a pela moça era apenas luxuria, e não amor.
- Não! Você nunca colocara as mãos nela! Não enquanto eu viver.
Stivo avançou, estalando o chicote no ar e atingindo o braço de Rafael.
- Então você vai morrer - ameaçou ele.
- Não, Stivo! - gritou Alicia, colocando-se no meio dos dois homens, na tentativa
de deter o cigano, ainda que á custa de sua pr6pria segurança.
Rindo, o cigano demoníaco enroscou o chicote ao redor da cintura de Alicia e usou
-o como uma corda para puxa-Ia para os seus braços.
- Deixe-a em paz. Se você não for um covarde, lute comigo, não com ela - desafiou Rafa
el.
- Claro que vou lutar com você - disse Stivo, soltando o chicote da cintura de Ali
cia e olhando para Rafael com expressão de desafio.
- Ele esta desarmado, Stivo. E injusto. Esse não e o jeito dos ciganos - disse Ali
cia, enquanto, com os olhos inflamados de raiva, procurava ao redor algum tipo d
e arma.
Ela só tinha a sua faca. Sentindo-se impotente e frustrada, viu os dois se aproxim
ando um do outro. Alicia sabia que Stivo era um lutador traiçoeiro, e ainda tinha
no corpo as marcas das brigas que tivera com ele quando eram duas crianças. Desesp
erada, começou a rezar.
- O que e isso? Stivo? - trovejou a voz de Rudolpho.
- O que você esta fazendo?
- Vá embora, velho! - rosnou Stivo, lançando o chicote para atingir a cabeça,de Rudolp
ho.
O pai de Alicia se abaixou, e o chicote não o atingiu por pouco.
- Jukel! Não e assim que um cigano age! - vociferou Rudolpho, ignorando o chicote
e avançando contra Stivo. Pare imediatamente ou eu o banirei do bando. Juro pela mão
do meu pai que eu o banirei!
Como água na fervura, as palavras de Rudolpho extinguiram a fúria temerária de Stivo.
Ser banido do bando e ter de vagar sozinho pelo resto da vida era o pior castigo
para um cigano, pior que a morte.
- O senhor não faria isso. Minha mãe é a phuri daí.
- Sou o líder do bando e tenho o direito de fazer o que achar certo - respondeu R
udolpho, cuspindo no chão perto dos pés de Stivo. - Você e uma desonra para tudo o que
nos consideramos sagrado. Vá embora, seu rosto me da nojo.
Fechando o punho, Rudolpho pôs a mão sobre o coração, como se estivesse tentando control
ar a raiva. Sem nem mais uma palavra, Stivo saiu furtivamente, mas o brilho de s
eus olhos prometia que aquilo não terminaria ali.
- Alicia, gorgio, vão para a carroça, rápido! - ordenou Rudolpho, a voz sufocada.
Os dois obedeceram ao comando e, quando já estavam longe, Rudolpho se entregou a d
or, agarrando o peito com a mão.
- Nada vai mantê-la longe do seu gorgio - sussurrou ele.
- Ele tem de tomar conta de você quando eu morrer.
Rudolpho então caiu ao chão, lutando contra a angustia e a dor. Ele não podia morrer.
Ainda não. Não enquanto a felicidade de Alicia não estivesse garantida.
Os dois, estavam de pé, um ao lado do outro, na carroça. Alicia sentia um forte dese
jo de tocar Rafael. Ela queria que ele a abraçasse e amasse, mas o orgulho a fez s
e manter calada. Não podia se esquecer do que ele havia feito.
- Você esta bem, Alicia? Ele a machucou? - A voz de Rafael rompeu o silencio.
- Não, o chicote não me tocou a pele - declarou ela, evitando os olhos dele.
- Ótimo.
Rafael não sabia o que dizer, lembrando-se das palavras de ódio que ela lhe dirigira
pouco antes. Ah, como desejava que ela o amasse novamente, que deixasse de lado
toda a amargura do seu coração, mas não sabia o que dizer a ela. Rafael tomou o rosto
delicado nas mãos e a forçou a encará-lo.
- Alicia. Minha doce Alicia.
Ela sentiu um calor desabrochar dentro de si, e sua cabeça girava, lembrando-se da
s caricias que um dia sentira e de como ele a tinha amado.
Alicia quase se deixou dominar pelo desejo irresistível de se deitar .com ele. Seu
coração batia tão forte que ela temia que Rafael o escutasse.
- Ele machucou você? - perguntou ela, com um fio de voz.
- Não. Seu pai interveio antes de ele conseguir derramar meu sangue. - Ele acarici
ou o cabelo dela, macio como seda. Você estava preocupada comigo, pequena cigana?
Talvez o seu ódio não seja tão profundo quanta diz.
Afastando-se em um ímpeto, ela procurou controlar o tremor de seu corpo.
- Não quero mal a nenhum ser vivente, gorgio - gaguejou ela.
- Gorgio?! O meu nome e Rafael, como você bem sabe.
Diga o meu nome.
- Eu não obedeço as suas ordens, gorgio.
- Alicia, sou o seu marido; segundo as suas próprias leis e costumes. Você tem de me
obedecer, não é verdade?
Ela fez que sim com a cabeça, tremendo. - Diga: Rafael.
- Rafael - obedeceu ela num sussurro.
- Gosto de ouvir o meu nome nos seus lábios.
Alicia viu o desejo nos olhos dele e rapidamente se afastou.
- Não me toque, gorgio. Nunca mais!
- Nunca e tempo demais - retrucou ele, puxando-a para seus braços antes que ela pu
desse se afastar. - Minha doce Alicia, faz tanto tempo ...
Alicia sentiu 0 cheiro viril que emanava daquele corpo másculo e 0 gosto da língua d
ele quando a beijou. Queria protestar contra o beijo roubado, mas a doçura dele a
fez se manter calada.
Contra a vontade de Alicia, seu corpo reagia ao toque de Rafael. Um formigamento
tomou conta de seus membros, fazendo-a tremer. Seu próprio corpo a traía.
-Não ...
Amá-Io a destruiria. Ele satisfaria a sua luxuria e depois, insensivelmente, a jog
aria fora outra vez, como fizera antes. Não podia confiar nele, não em alguém que havi
a levado tanta destruição as pessoas que amava. Vashti. Ela não podia se esquecer de V
ashti. Aquele homem também a destruiria.
O medo deu a Alicia a força de que precisava para se afastar dos braços fortes de R
afael.
- É o desejo, e não o amor, que guia a sua mão - disse ela, com desprezo.
- Stivo está cheio de desejo por você ... Eu estou cheio de amor.
- Amor, ora! Espera que eu acredite nisso? Você já mentiu para mim.
- Eu não menti para você quanta aos meus sentimentos, Alicia .. Não ha nada de falso n
os meus beijos. Minhas mãos nunca mentiram ao tocar você. Eu queria você então, e quero
agora.
- É mesmo? Então, por que foi embora?
- Tive de ir. Talvez você nunca compreenda, nunca me perdoe. - Os olhos de Rafael
a percorriam como se estivesse lhe acariciando o corpo. - Eu não deveria ter feito
amor com você naquela noite. Deveria ter deixado você em paz. Mas você estava tão incri
velmente linda ... Eu não conseguiria ir embora sem nunca ter amado você. E não estou
arrependido. Eu nunca esqueci aquela noite.
Alicia ficou impressionada pela profunda emoção expressa no rosto dele. Será que Rafae
l dizia a verdade? Ele a amava? Ela queria acreditar, mas ... e o juramento que
fizera? E Vashti e os outros? A lembrança do ataque contra 0 acampamento cigano en
dureceu-lhe o coração.
- Por algum motivo que eu não compreendo, meu pai decidiu me casar com você - disse
ela com uma voz fria que escondia o calor que sentia no coração.
- Ele acredita que você me ama. É verdade, Alicia?
- Não. Talvez já tenha amado. Mas sua traição matou a afeição que eu senti a por você, Rafa
Você nunca mais terá o meu coração.
Inesperadamente, ele deu um passo a frente, uma veia pulsando erraticamente no p
escoço, os olhos brilhando com uma chama interior.
- Você me pertence, Alicia. Pela palavra do seu pai, você é minha. Eu vou tê-la esta noi
te.
Sentindo-se como um animal que caiu em uma armadilha, Alicia avançou contra ele e
começou a esmurrar-lhe o peito. - Eu odeio você! Vou lutar contra você com todas as mi
nhas forças. Você pode se apoderar do meu corpo, me obrigar a me submeter a você, mas
nunca terá o meu coração.
Rafael a pegou nos braços e a apertou contra si, beijando-a com volúpia. Alicia não co
nseguia pensar enquanto as mãos dele acariciavam seu,corpo, os dedos roçando-lhe os
mamilos. As mesmas mãos que haviam lutado contra ele começaram a puxá-lo para mais per
to. Colocou os braços ao redor do pescoço dele, pressionando o corpo contra o peito
musculoso, deseJando-o tanto quanto era desejada.
- Esta vendo, Alicia? Você não me odeia - ele sussurrou, com voz doce.
Alicia enterrou o rosto nas mãos e deu vazão as lagrimas. Era verdade. Naquele momen
to, ela odiou a si mesma e a seu corpo, que sempre se inflamava ao toque de Rafa
el. O inimigo não era ele, mas ela mesma.
Ao ver suas lagrimas, Rafael esqueceu seu desejo e procurou apenas confortá-la.
- Alicia - murmurou, abraçando-a.
- Por favor, me deixe em paz.
Ela queria ficar só, longe daquelas emoções que a inflamavam. Sentia-se confusa e com
medo. Como ele poderia entender?
- Esta bem, vou deixá-la a sós, Alicia. Pelo menos por hoje. Durma na sua cama solitár
ia. Mas lembre-se de que eu a amo e que um dia farei com que você seja minha novam
ente.
Alicia levantou-se ao nascer do dia. Tinha passado a noite toda revirando-se de
um lado para o outro, e a falta de sono lhe deu uma enorme dor de cabeça.
- O que vou fazer da minha vida? - gemia ela. Pretendo ser a esposa de Rafael ap
enas no nome.
Por que aquelas palavras eram tão tristes? Não conseguia esquecer a doçura dos olhos d
ele na noite anterior.
Se aquele tivesse sido um casamento cigano normal, ela estaria exibindo sua roup
a de cama pela manha, para provar a sua pureza. Todo o acampamento sabia que ela
não tinha sido uma noiva virgem. Mas não podia permitir-se sentir vergonha.
As palavras de Rafael ressoavam em seus ouvidos:
"Eu não conseguiria ir embora sem nunca ter amado você. E não estou arrependido. Eu nu
nca esqueci aquela noite."
Era assim que ela também se sentia. Apesar de todo o sofrimento e do desprezo de s
ua gente, ela sabia que teria se entregado a Rafael novamente.
Por que dissera palavras tão odiosas para ele? Por medo, por orgulho. Ela havia di
to que queria que ele fosse embora e nunca voltasse, mas isso não era verdade. E s
e ele tivesse acreditado e tivesse fugido durante a noite?
- Rafael! Rafael! - chamou ela, saindo da carroça de camisola, esquecida de se ves
tir.
Ele não estava com os outros! Seus temores eram reais!
Voltou a carroça com os olhos cheios de lagrimas.
- Não fui embora, Alicia - disse Rafael, em tom amoroso, saindo de debaixo da carr
oça, onde havia dormido. Eu não a deixaria, ainda não terminamos um certo assunto.
Os olhares de ambos se encontraram e ele sorriu.
- Veremos, gorgio, veremos - ela falou, constrangida, mas erguendo a cabeça e desv
iando os olhos para que ele não visse sua alegria.
Voltou para a carroça e vestiu-se adequadamente. Ela o amava, tinha de admitir, pe
lo menos para si mesma. Sentia um tipo estranho de satisfação e de orgulho. Se tives
se de pertencer a algum homem, ficava contente que esse homem fosse Rafael. O so
l parecia um pouco mais brilhante, o ar um pouco mais perfumado.
Ao sair, viu que Rafael estava com os outros homens, desmontando e enrolando as
tendas para a viagem. Apesar de ter sido levado para o acampamento contra a vont
ade, ele ria com os outros e trabalhava com a mesma intensidade Que cigano ele d
aria! Se os outros podiam perdoá-lo, por que ela não?
Enquanto Alicia e as outras mulheres preparavam a primeira refeição do dia, Zuba l
he perguntou, sussurrando, como fora a noite de núpcias- Alicia fingiu não ouvir, ma
s a amiga a puxou de lado e lhe perguntou:
- Vamos, me conte. Ele a fez feliz ontem a noite? Os braços dele são fortes, ele a f
ez gemer de prazer, ele ...
-Não.
- Como assim, não?
- Eu não deixei que ele me tocasse - respondeu Alicia, evitando os olhos castanhos
e intensos de Zuba.
- Por que? - perguntou a amiga, incrédula.
- Porque ele ... ele ... O ataque contra o acampamento ...
- Você tem medo dele. Admita, Alicia. Eu sou sua amiga e você pode se abrir comigo.
Você tem medo de lhe dar o seu coração.
- Claro que tenho medo. O que você esperava? - Alicia mexeu nervosamente nas dobra
s da saia. - Você acha que eu quero ser magoada mais uma vez?
- Isso não acontecera se não aprender a confiar e perdoar - profetizou Zuba, seguran
do Alicia pelos ombros e olhando no fundo dos olhos da amiga. - Você mesma vai se
magoar. Rafael a ama, tanto que não tentou fugir. Talvez nem ele mesmo saiba ,a pr
ofundidade do sentimento que tem por você, mas eu sei. De a ele uma chance de faze
-Ia feliz. Não acredito que tenha sido ele o responsável pelo ataque contra nós.
- Não sei mais o que pensar.
As duas tinham de voltar para as tarefas do dia a dia.
As outras mulheres gesticulavam, chamando-as de volta ao trabalho. Havia muito a
fazer, e ninguém, nem mesmo uma noiva, tinha tempo para ficar ociosa.
Enquanto executava suas tarefas, Alicia não conseguia esquecer as palavras de Zuba
. Ela procurou Rafael com os olhos, e quando ele olhou em sua direção, ela sorriu.
Por fim, quando todas as cobertas, tendas e utensílios de cozinha tinham sido post
os nos veículos, e os animais estavam amarrados as carroças, a viagem começou. Rafael
sentou-se ao lado de Alicia, as mãos firmes nas rédeas. Perturbada pela proximidade
dele, ela pensava nas palavras de Zuba. Seria possível que Rafael fosse inocente?
Ela queria de todo o coração confiar nele. Quando percebeu que ele a encarava, virou
o rosto.
- Qual é o problema, Alicia? No que você esta pensando? Existe alguma coisa alem de
eu a ter deixado na floresta que a incomoda. O que é?
- Somos diferentes, vivemos em mundos separados. Meu pai devia estar louco quan
do resolveu nos unir. Isso nunca vai funcionar.
-Eu também pensava assim, e foi por isso que a deixei naquele dia. Mas agora não ten
ho tanta certeza. Seu pai deve ter suas razões para fazer o que fez.
Os dois viajaram em silencio, lado a lado, por um longo tempo, cada um tentando
compreender seus próprios sentimentos.
Rafael ainda estava bravo por ter sido sequestrado de forma tão brutal, mas agora
sua raiva fora amainada por saber que Rudolpho havia feito aquilo pensando na fe
licidade da filha. Ele gostava do líder cigano e o respeitava, mas não poderia perma
necer com eles por muito tempo mais.
Conseguiria fazer Alicia entender por que ele teria de abandona-Ia novamente? Be
m, ao menos faria uma tentativa. Não queria ser torturado para sempre com o pensam
ento de que ela o odiava.
- E apesar de tudo o que tenho de fazer e de tudo que meu raciocínio me diz, não que
ro ir embora - sussurrou ele.
A caravana viajou o dia todo parando apenas para descansar os cavalos. Por fim,
o sol se pôs, e Alicia soube que 'em breve estaria novamente a sós com Rafael.
Durante todo aquele longo dia, mantivera-se quieta e pensativa, mas sempre consc
iente da forte presença masculina a seu lado. O som da voz dele, o perfume almisca
rado de seu corpo, o toque forte e, ao mesmo tempo macio, daquelas mãos grandes me
xiam com ela.
Com Rafael a seu lado, o mundo parecia mais vibrante, como se ela o estivesse ve
ndo pela primeira vez. Inclinando a cabeça para trás, ela se entregou ao prazer de s
entir o vento passando pela sua longa cabeleira solta.
Rafael, por sua vez, a encarou e sentiu uma pontada no coração. Como aquele amor que
sentia por ela poderia estar errado? Os olhares de ambos se encontraram.
- Eu te amo, Alicia, alem de todo entendimento ou raciocínio. Minha razão me diz que
eu sou um tolo, que somos de dois mundos diferentes, mas meu coração e contra, e eu
quero dar ouvidos a ele.
Enquanto falava, Rafael puxou as rédeas, fez os cava[os parar e conduziu a carroça a
o local indicado para o descanso, com tanta agilidade que nem parecia um gorgio.
Mais uma vez, Alicia pensou que lindo cigano ele seria. Rafael ajudou-a a descer
da carroça. Ele teria dito que a amava? Ela havia ouvido direito?
- Rafael. .. você ... você ... - Ela queria se certificar, mas as palavras lhe falta
vam.
- Eu o que? 0 que esta tentando me perguntar, Alicia? Ela tentou dizer alguma co
isa, mas as crianças, Mala e Palo, correram para ela e a abraçaram.
- Alicia, sentimos a sua falta. Por que não pudemos dormir com você ontem? - pergunt
ou o menino.
- Era minha noite de núpcias, Palo - respondeu Alicia, ruborizada.
- Podemos dormir com você hoje?
Rafael tinha outros planos para aquela noite, mas também lhe faltavam as palavras.
- Veremos - disse ele.
Em seguida, ele abraçou a cintura de Alicia e, pela primeira vez desde que chegara
ao acampamento cigano, ela não o rejeitou.
- Quero você toda para mim hoje a noite - ele sussurrou ao seu ouvido.
Alicia travava uma luta surda com o amor que sentia no coração, mas Zuba tinha razão.
Se ela desse as costas a Rafael, acabaria se magoando.
Demorou uma eternidade ate que o alimento fosse preparado e consumido, as carroças
descarregadas e os potes de cozinhar, limpos. Mas, finalmente, ela ouviu a voz
de Rafael em seu ouvido.
- Esta na hora de os outros irem dormir, mas você não tem tempo para o sono, minha l
inda noiva cigana.
Alicia sentiu a respiração dele em seu cabelo, e um tremor percorreu-lhe a espinha.
Mas não queria demonstrar a ele a profundidade dos seus sentimentos.
- Estou cansada, Rafael. E teremos uma longa viagem pela frente amanha.
- Você continua a lutar contra mim, Alicia. - Ele colocou a mão sobre a curva do qua
dril dela. - O que eu tenho de fazer?
Os dois saíram, abraçados. Nesse momento, chegou Palo. - Ah ai esta você. Alicia, cont
e uma historia para mim e Mala.
Rafael nada pode fazer a não ser observar enquanto Alicia pegava as duas crianças pe
la mão e as levava para o toco de uma arvore, onde os três se sentaram.
- Vou lhes contar a historia do primeiro homem e da primeira mulher - ela anunci
ou.
- Você acredita em Adão e Eva? - perguntou Rafael, sentando-se também.
- Adão e Eva? - perguntou ela, fingindo-se horrorizada.
- Nada disso. Sou uma cigana, e nós, ciganos, conhecemos a verdade - acrescentou,
sorrindo.
- A verdade? - perguntou ele, erguendo uma sobrancelha. E qual é a verdade?
- O Del fez o primeiro homem de giz e o colocou no fogo para assar. Mas ele esta
va tão ocupado criando as areias do deserto e os vales dos rios que se esqueceu de
tirá-lo a tempo. Pobre homem! Ele ficou torrado!
-Os mouros! - gritou Palo.
- Os mouros? Entendo. Então o primeiro homem foi um mouro - disse Rafael, encostan
do a perna na dela. - E o que aconteceu então?
- O Del fez outro homem, mas esse ele tirou do forno cedo demais! - continuou Al
icia, tentando se concentrar na historia.
- O primeiro espanhol - interpôs Mala, também querendo exibir seu conhecimento para
o estranho.
Rafael sentiu medo ao pensar o que Torquemada faria se ouvisse aquela historia.
- O primeiro espanhol? - perguntou ele.
- O primeiro homem da raça branca - disseram juntos Maia e Palo.
Rafael pensou que a historia tinha acabado, mas Alicia piscou para ele.
- A terceira tentativa foi a bem-sucedida. - continuou ela. - Mais uma vez, O De
l fez um homem de giz, mas dessa vez ele calculou,o tempo certo de cozimento, ne
m demais, nem de menos, e criou um homem moreno. O primeiro cigano!
Ela riu, e Rafael também.
- E então ele fez uma mulher para cada um deles - acrescentou Palo, serio.
- Acho que o Del fez primeiro a mulher, e depois o homem - opinou Maia.
As duas crianças começaram a discutir, e Rafael pegou ambos, um em cada braço, e levou
-os para a carroça de Zuba.
-Creio que ele criou os dois, homem e mulher, ao mesmo tempo. Agora vocês vão para a
cama.
Voltando para onde Alicia estava, ele a pegou nos braços e a levou para dentro da
carroça. .
-Você não diga "nao" para mim outra vez - disse ele colocando a moça gentilmente sobre
a cama.
Alicia se lembrava de seu juramento e não queria se entregar a ele. Ela tremia de
medo. Temia mais o amor que sentia por Rafael do que o chicote de Stivo. . .
- Como posso deixar você por as mãos em mim depois do que fez? Você trouxe morte e des
truição para o meu povo! _ Morte e destruição? Do que você está falando? - A reação dele er
o se ela tivesse lhe dado uma bofetada. _ Os cristãos que atacaram a caravana, mat
ando tantas pessoas. Vashti, pobre Vashti ... - Alicia contou, fechando os olhos
e revivendo aquela noite terrível.
-E você acredita que eu ... Meu Deus! Não e a toa que você disse que me odeia. Não fui e
u, Alicia. Eu nunca faria isso.
Ela queria acreditar no que Olivia, mas seu orgulho teimava em encerrar o assunt
o.
- Então, quem foi? Como os gorgios nos encontraram? - Os homens que tentaram me ma
tar. Eles voltaram para procurar o meu corpo e devem ter visto o seu acampamento
. - Rafael deu um murro na parede de madeira da carroça, como se estivesse batendo
nos dois. - Os bastardos gananciosos! Eu os ouvi conversando quando voltei para
procurar você naquela noite. Se soubesse o mal que eles tinham feito, eu os teria
matado logo que os vi.
- Você voltou para me procurar? - A voz de Alicia era pouco mais que um Sussurro.
- Sim, voltei. Eu estava doente de medo e indignação.
Temia que você estivesse morta, e isso quase me destruiu _ ele confidenciou, aprox
imando-se lentamente. - Ah, Alicia! Eu nunca a trairia assim. Você tem de acredita
r em mim.
Ela viu a verdade nas palavras de Rafael, nos olhos dele, e acreditou. Tentando
conter as lagrimas, abriu os bravos para ele, o coração doendo de tanto amor. Agora
era ela que procurava confortá-lo por ter pensado tão mal dele.
- Oh, Rafael, meu amor!
Eles se abraçaram com a fúria do desejo cujas comportas haviam sido abertas. Alicia
sentia a excitação dele embaixo das calças apertadas que os gorgios usavam, mas dessa
vez a paixão daquele homem não a atemorizava; ao contrario, enchia-a de desejo.
Lentamente, uma das mãos dele se encaixou ao redor dos seios dela, o polegar moven
do-se e irradiando fogo com seu toque. Era maravilhoso senti-lo toca-Ia daquele
jeito outra vez.
Ele tinha o rosto corado, os olhos cravados nas curvas macias do corpo de Alicia
. Rafael respirava com dificuldade.
Como poderia ter pensado em viver sem ela? Ele baixou a blusa dela, deixando-lhe
os seios a vista.
Naquele momento, tudo o mais ficou esquecido: Juan Dorado, a pintura, sua missão.
Ele só queria fazer amor com a esposa, ficar ao lado dela para sempre.
Os lábios de Rafael prenderam os de Alicia em um beijo faminto e exigente. Era aqu
ilo o que ela queria. Ah, como o amava!
Ele a havia procurado depois do ataque ao acampamento.
Ele tinha voltado! Alicia se rendia não apenas aquelas caricias, mas ao seu próprio
desejo. Não iria mais se preocupar com seu orgulho. Aquela noite era para o amor.
Deslizando as mãos pelo corpo dela como um gesto de adoração, Rafael lentamente foi de
spindo-a, peça por peça, como se quisesse saborear aquele momenta mágico. Quando ela e
stava total mente nua, os olhos dele vagaram por sobre o corpo feminino, absorve
ndo a imagem do ventre liso, os quadris arredondados, a curva graciosa da cintur
a e os seios fartos, dos quais ele se lembrava tão bem.
- Você é linda, Alicia ...
Orgulhosa, ela ficou diante dele, como uma deusa paga aquecendo-se ao calor do o
lhar do marido. Ele tocou-a com as mãos tremulas.
- Quero que esta noite seja linda para você, Alicia.
Quero que você nunca a esqueça.
Empurrando-a gentilmente para a cama, Rafael explorou o corpo dela com o fogo úmid
o de seus lábios, deixando-a embriagada de uma ternura sensual, até o ponto em que e
la se contorcia contra 0 corpo dele, desejando-o com ardor.
Rafael se afastou por apenas um momenta para se despir, enquanto ela o olhava.
Ele era um homem magnífico, cheio de graça e força, pensou Alicia. O seu Rafael. Apena
s vê-lo já a deixava excitada.
Rafael sentia os olhos de Alicia acariciando-o, e isso o agradava. Voltando para
a cama, segurou a mão delicada e conduziu-a para sua masculinidade.
- Você quer me sentir dentro de você tanto quanta eu desejo?
- Quero, sim, quero!
O corpo de Alicia se dobrava em arco contra o dele, procurando um contato mais i
ntimo com a virilidade de Rafael.
- Quero que me ame agora!
O desejo que sentia por ele se tornou quase insuportável quando ele a cobriu com
seu peso, acariciando-a e beijando-a. Quente e úmida, ela o recebeu, com prazer e
ele a penetrou gentilmente.
Alicia envolveu o corpo de Rafael com as pernas, arqueando-se e movendo-se de e
ncontro as investidas dele.
- Alicia! - Rafael gritou, enquanto enterrava fundo dentro dela.
Ele a sentia apertada e quente ao redor de sua virilidade. Fechou os olhos enqua
nto explosões de prazer percorriam seu corpo. Era o paraíso estar ali nos braços dela,
como se Alicia tivesse sido feita para ele.
Os corpos dos dois se fundiram e, naquele momento ela era tudo para ele: uma nin
fa, uma sedutora, um anjo, uma' flor frágil com o fogo de uma estrela.
Alicia se movimentava com ele, dominando-o tanto quanta ele a possuía. Não existia m
ais nada no mundo alem daquele homem que a preenchia e amava. Ela queria que o t
empo parasse, para que os dois pudessem permanecer entrelaçados daquele jeito para
sempre.
Como uma doce flecha de fogo, o prazer corria através dos dois, enquanto os olhare
s se prendiam. Agarrando-se a Rafael, Alicia disse o nome dele, enterrando o ros
to no calor do peito largo, inalando o cheiro másculo do seu corpo. Como poderia t
er considerado rejeitar aquele êxtase?
- Você nunca mais vai me abandonar - sussurrou. Rafael ficou olhando e acariciando
o rosto delicado. Alicia era sua. Como poderia deixá-la? E, no entanto, era isso
que ele teria de fazer. Esse pensamento o atormentava e, por um momento, ele o a
fastou. Abraçou-a com ternura e os dois dormiram.
Rafael acordou quando os primeiros raios de sol se infiltraram pelas frestas da
cobertura de lona da carroça. Seus olhos se banquetearam com a beldade que estava
aninhada em seus braços. Desejava de todo o coração nunca mais magoá-la.
Eu estou sempre abandonando você, minha pequena. Mas não posso evitar. Até que a Espan
ha esteja livre do poder de Torquemada, tenho de fazer o que me for possível para
...
A continuidade do pensamento lhe fugia.
O que poderia dizer? Com raiva de si mesmo e do mundo, Rafael imaginou o quanto
faria aquela moça sofrer. Também pensou em Stivo e perguntou-se como poderia deixá-la
a mercê daquele homem que a olhava com tanto desejo. Mas Rudolpho a protegeria. Es
se pensamento deveria consolá-lo, mas uma vozinha interior lhe dizia que ele dever
ia ficar com a mulher que amava.
Aquela altura, não havia mais como negar que a amava.
Ele que ria ficar com ela e protegê-la, mas não podia. Só haveria paz para os dais dep
ois que sua missão fosse cumprida. - Eu te amo, Alicia - sussurrou ele.
Rafael agora compreendia a paixão de seu pai por uma mulher de um mundo diferente.
Fosse Alicia cigana ou castelhana, ele sempre a amaria.
Ela estremeceu no sono, e ele a abraçou. Pensou sobre a segurança de Alicia ate a su
a volta. Se a vida Fosse mais simples, ele ficaria feliz em vagar pelo mundo com
o o amante, marido e companheiro cigano dela.
Rafael passou as olhos pelo interior da carroça, pelas mantas coloridas e bem dobr
adas empilhadas ao lado da cama e pelos utensílios pendurados na parede. Os cigano
s tinham tão poucas posses, mas eram mais felizes do que muitos dos mais ricos esp
anhóis. Sem grandes riquezas, pareciam menos sobrecarregados, mais livres para bus
car a felicidade. Talvez fossem mais ricos do que os espanhóis pensavam. Tinham o
céu como teto, toda a Terra como leito e risos como musica.
Ele mesmo havia pensado tantas coisas ruins sobre os ciganos, mas eles eram pess
oas de honra, que só tiravam da terra o suficiente para satisfazer suas necessidad
es básicas Era isso o que ele tinha visto nos dois dias em que estava viajando com
a caravana.
Os ciganos nunca eram gananciosos. O que tinham lhes era dado pelo Del. E não eram
hereges. O Del era apenas um outro nome para Deus, o mesmo Deus dos cristãos e da
s outras religiões, o único que existia.
- Rafael - Sussurrou Alicia, acordando.
Então não havia sido um sonho, pensou ela. Aquele homem havia explorado seu corpo co
m mãos e lábios, e ela realmente pertencia a ele.
- Rafael, eu te amo.
- Alicia ...
Era preciso contar suas intenções naquele momento. Mas ela lhe cobriu os lábios com os
dedos.
- Me abrace, me ame, não vamos perder nosso precioso tempo com palavras.
Ela o puxou para si, e Rafael foi tomado novamente por aquele fogo maravilhoso.
Os dois se perderam em caricias beijos e na sensaçãoo do corpo de um se fundindo no
do outro.
Por fim, exaustos de paixão, adormeceram nos braços um do outro.
Ele nunca mais vai me abandonar, pensou Alicia antes de cair no sono, sorrindo.
Ele me ama.
Quando Rafael acordou novamente, estava sozinho na carroça. Vestiu-se e saiu. Alic
ia estava ocupada, reunindo lenha para a fogueira onde seria preparada a primeir
a refeição do dia. Ele estranhava a comida dos ciganos, mas gostava de ovos.
De qualquer jeito, ainda que seus apetites culinários não fossem satisfeitos, os car
nais estavam, pensou ele, sorrindo. Dirigiu-se para onde estavam os cavalos. Rud
olpho o encarregara de cuidar dos animais, e Rafael suspeitava que o sogro estiv
esse tentando testá-lo. Ele ainda não se senti a tentado a fugir e sabia que era por
causa de Alicia.
- Então você ainda esta por aqui - disse Stivo, saindo de trás de uma arvore e interro
mpendo os pensamentos de Rafael.
- Claro que eu ainda estou aqui. Você acha que eu iria embora sabendo da sua lascívi
a por Alicia?
- É só uma questão de tempo - respondeu o cigano, rindo com desprezo. - Os gorgios são c
omo peixes. Começam a cheirar mal depois de três dias - acrescentou Stivo, tapando o
nariz e se afastando.
- Bastardo arrogante!
- Eu também acho, gorgio disse uma voz, surpreendendo-o.
Era Solis, que saia de trás de um arbusto e caminhava na direção dele, rebolando e com
um sorriso provocante no rosto. Ela se abaixou como que para pegar alguma coisa
do chão, oferecendo-lhe uma boa visão de seus seios fartos.
Rafael sorriu, constrangido. Solis poderia tê-lo tentado antes com sua sensualidad
e felina, mas agora tinha Alicia e não se interessava por mais ninguém. Alem do mais
, aquela mulher poderia fazer com que um homem fosse esfaqueado. Mas não poderia f
echar os olhos para 0 comportamento dela por muito mais tempo.
- Existe uma pequena lagoa aqui perto. Vamos nadar? - sugeriu ela.
Rafael fez que não com a cabeça e se afastou. Ele queria manter a maior distancia po
ssível daquela loba antes que os ciganos os vissem juntos e chegassem a conclusão er
rada.
Agora que reconquistara o coração de Alicia, não queria que nenhuma mulher se interpus
esse entre eles. Ouviu o som de cascos de cavalo e se dirigiu para o mato, acred
itando que fosse Todero em sua cavalgada matinal. Mas, ao se aproximar,
viu que não eram ciganos. .
- Carlos! Não acredito! - sussurrou, dividido entre a alegria e a preocupação.
Ele poderia ir embora, mas isso era a ultima coisa que queria naquele momento. Não
poderia sair sem se despedir de Alicia, sem lhe prometer que voltaria quando su
a missão terminasse.
Viu os cavalos se aproximar e percebeu que os quatro cavaleiros estavam armados
com espadas e um mosquete, uma arma nova e perigosa. Mirando-as nele, os homens
avançavam, como os quatro cavaleiros do Apocalipse. Só então Rafael se lembrou de que
estava vestido como cigano.
- Carlos! Carlos! Sou eu, Rafael! - gritou ele, mas sua voz se perdeu no eco dos
cascos batendo contra o solo.
Meu Deus, meu próprio irmão vai me matar!, pensou ele um minuto antes de cair, senti
ndo a dor de uma lamina lhe cortar a carne.
Capitulo X

Carlos! - gritou Rafael, olhando para o irmão com a dor espelhada nos olhos.
- Deus de misericórdia, é meu irmão! - exclamou Carlos, acenando freneticamente para d
eter os outros. - Parem, este não é nenhum cigano, e meu irmão.
Ele desmontou e correu para Rafael. - Você está muito ferido?
- Apenas superficialmente, mas dói. - Rafael arquejou. - Graças a Deus, você nunca foi
um espadachim muito bom, meu irmão. Caso contrário, eu estaria morto.
Rafael pôs a mão sobre o ferimento, tentando estancar o sangue. Mais alguns centímetro
s para a direita e ele estaria morto.
- Por que você esta vestido assim? - perguntou Carlos, arrancando o lenço do pescoço d
e Rafael para usá-lo como um torniquete.
- Quando estiver com os ciganos, vista-se como um cigano. - Rafael sorriu, apesa
r da dor. - São as minhas roupas de casamento, meu irmão.
- Você ficou louco? Vamos embora, antes de sermos descobertos e obrigados a
combater.
- Nada de combates, Carlos. Por favor, deixe essas pessoas em paz.
- Deixar esses bastardos e ladrões em paz? Eles o sequestraram nas minhas terras.
Nas minhas terras! Se eu tivesse tido tempo de reunir mais homens, lhes mostrari
a a vingança divina!
- Prometa-me que não lhes fará mal - disse Rafael levantando-se e se apoiando no irmão
. - Em parte, foi minha culpa eles terem me sequestrado.
- Sua culpa? Como poderia ser sua culpa? Eles o amarraram como a um animal. Quan
do Pepe me contou, jurei vingança. Pensar que um castelhano não esta em segurança em s
uas próprias terras! Mas nos conversaremos depois. Eu trouxe Diablo para você. Vamos
embora.
- Espere. Não posso ir embora ainda, Carlos. Tenho de me despedir de uma pessoa ..
.
- Dizer adeus a um cigano? - Diante da expressão de Rafael, ele entendeu: - De uma
mulher?
- De minha esposa cigana. Foi para vingar a honra dela que eu fui sequestrado, e
agora sou um homem casado ,meu irmão.
Rafael pensou com sofrimento que não poderia ir embora mais uma vez sem se despedi
r, sem explicar para Alicia o que estava acontecendo. Mas Carlos lhe bloqueou o
caminho.
- Vim buscá-lo e vou levá-lo para casa. Agora. Não temos tempo para aventuras amorosas
. Não insista, ou eu e meus homens daremos vazão á nossa Ira contra esses vagabundos q
ue você tanto parece estimar.
Rafael tentou argumentar, mas o irmão se manteve irredutível.
- Rápido. Minha paciência esta acabando - advertiu Carlos.
Rafael pediu mais uma vez, mas sabia que seu irmão era orgulhoso e que poderia faz
er mal á gente de Alicia para se exibir diante de seus homens.
Nesse momento, algo se mexeu no mato. Um dos homens de Carlos avançou e bateu sob
re as folhas com sua espada. Solis, aterrorizada, saiu do esconderijo e se jogou
no chão, pedindo misericórdia.
- Esta é a sua cigana, Rafael? - perguntou Carlos, irritado.
-Não.
- Ela estava nos espionando. Vamos levá-la conosco.
- Ela e bem bonita. Pepe, você pode ficar com ela.
- Deixe-a em paz - pediu Rafael, vendo a expressão aterrorizada de Solis. - Eu vou
com você, Carlos.
Rafael ajudou a cigana a se levantar e pediu-lhe desculpas. - Solis, por favor,
de um recado meu a Alicia. Aterrorizada, Solis concordou. Ela se lembrava de Vas
hti, que tinha sido trespassada por uma espada diante de todos. Rafael não tinha c
onfiança nela, mas Solis era cigana como Alicia e era a sua única esperança de fazer c
om que a mulher que ele amava recebesse um recado.
- Conte a Alicia tudo o que você viu. Diga-lhe que eu preciso ir embora, que no qu
ero ter derramamento de sangue na minha consciência. Mas que eu voltarei e a encon
trarei. Você compreendeu?
- Sim, compreendi. Você vai embora, mas voltara. Direi a ela.
Solis olhou o ferimento dele e perguntou-se por que ele iria embora com os homen
s que o haviam machucado. Os gorgios eram uma gente muito estranha.
Antes de partir, Rafael tirou do dedo um anel que pertencera á sua mãe e que ele con
siderava o seu maior tesouro.
- Entregue isto para Alicia. Quero que ela tenha certeza de que eu voltarei.
Lutando contra as lagrimas, Rafael pediu a Deus que Alicia esperasse por ele. So
lis esperou que ele montasse no cavaa10, com dificuldade devido ao ferimento, e
somente depois que todos se foram ela voltou ao acampamento.
Você quer que eu dê este anel para a sua preciosa noiva, gorgio?, pensou Solis, cusp
indo na jóia com raiva. Você foge de mim como se eu fosse peçonhenta, mas fica com os
olhos cheios de lágrimas ao pensar naquela magrela. Alicia age como se eu fosse o
pó sobre o qual ela pisa, como se a minha necessidade de homem fosse uma doença. Ela
anda para baixo e para cima de nariz empinado, como se fosse a rainha dos cigan
os, mas eu já ouvi dizer que ela não pertence ao nosso povo. Pois ela vai ver o que
eu vou fazer com o orgulho dela ...
Solis ficou olhando demoradamente para o anel, tentada a guardar para si uma coi
sa tão bonita. Mas, pensando melhor, resolveu entregá-lo.
- Eu prometi que entregaria o anel para sua Alicia e vou cumprir minha promessa,
gorgio - sussurrou ela.
O cacarejar da galinha e as pragas de Alicia fizeram com que muitos olhos se vo
ltassem para ela. O que seria que a filha de Rudolpho estava fazendo?
Depois de muito lutar com a ave, ela conseguiu o que queria: um ovo. Os ciganos
nunca comiam ovos porque acreditavam que ovos, leite e outras substancias escorr
egadias enfraqueciam as pessoas. Mas os gorgios comiam, e Rafael tinha falado so
bre o quanto gostava de ovos. Alicia então resolvera que lhe faria uma surpresa, s
ervindo ovos no desjejum. E havia conseguido!
- Ovos, Chavi? - perguntou Rudolpho, fingindo-se horrorizado, ao vê-Ia preparando
o alimento.
- Para o meu marido, papai. Os gorgios tem hábitos alimentares estranhos, mas eu q
uero agradá-lo.
- Seu marido foi bom para você, então. Posso ver isso no seu rosto e estou muito fel
iz, Alicia.
- Ele e tudo o que eu sonhei, e sou a mais feliz das mulheres. Amo e sou amada.
Agradeço ao senhor por tê-lo trazido de volta para mim. Como sempre, o senhor estava
certo.
Mais uma vez, Rudolpho se sentiu tentado a contar a filha que ela não era cigana,
já que ela havia encontrado o amor de sua vida. Mas nesse momenta Solis apareceu,
voltando correndo para o acampamento.
Alicia ignorou a moça e procurou Rafael com os olhos.
- Você não vai encontra-lo - ronronou Solis, toda satisfeita. - Ele foi embora. E de
ixou isto para você acrescentou, entregando o anel a Alicia.
Antes que Alicia pudesse dizer uma palavra, Rudolpho interveio:
- O que você esta dizendo? - perguntou, em um tom que não encorajava brincadeiras.
- O gorgio abandonou a esposa cigana e foi embora com gente do seu próprio mundo.
- Não! - gemeu Alicia, deixando o prato com o ovo cair no chão. - Você esta mentindo.
Ele não me abandonaria de novo.
Em seguida, mudou de tom. Avançou contra Solis e, chacoalhando-a pelos ombros, ame
açou:
- Retire as suas palavras. As suas mentiras são como serpentes para os meus ouvid
os.
- Silencio! - bradou Rudolpho. Dirigindo-se para Solis, acrescentou: - Fale!
- O gorgio foi embora do acampamento. Eu estava indo para a lagoa para tomar ban
ho quando vi quatro homens chegar a cavalo e gesticular para ele. O gorgio ficou
todo ansioso e acenava os braços para eles, como que possuído por demônios.
Solis passou a língua nos lábios, nervosa. Afinal, não estava exatamente mentindo, pen
sou.
- Talvez eles fossem inimigos; disse Alicia, ofegante, recusando-se a acreditar
que Rafael a abandonaria mais uma vez depois da noite de amor que haviam
compartilhado - Por favor, papai. Temos de ir atrás deles. Eles podem matá-lo.
- Não acho que eles queiram matá-lo. Nem os gorgios matam pessoas da mesma espécie.
Solis voltou a estender a mão com o anel para Alicia, sorrindo com a dor,que via n
o rosto da outra.
- Ele lhe deixou isto ... como pagamento pelos seus favores. É costume,dos gorgios
pagar pelas suas mulheres, pelo que me disseram. É ouro puro, e você não ficou de mãos
vazias.
Nem a autoridade de Rudolpho conteve a fúria de Alicia.
Com um grito, ela avançou contra Solis, puxando-lhes os cabelos, arranhando-lhe o
rosto, mordendo-a e dando-lhe pontapés. Solis retribuía os golpes.
- Mentirosa! Você o queria e ele a desprezou. Você roubou o anel dele!
As duas mulheres rolaram pelo chão, enquanto Rudolpho assistia a tudo em silencio.
Talvez fosse melhor deixá-las por para fora toda a amargura e o ódio, como veneno.
- Juro, Alicia - disse Solis, depois de ter sido dominada pela outra. - Ele foi
embora e me pediu para lhe entregar este anel. Juro pelo tumulo do meu pai.
- Deixe-a, Alicia - aconselhou Rudolpho, depois de algum tempo. - Nenhum cigano
juraria pelo tumulo do próprio pai se isso fosse mentira, nem mesmo essa ai.
Levantando a filha do chão e acolhendo-a nos braços, ele acrescentou:
- Ele foi embora, Chavi. Que O Del o perdoe, porque eu não posso perdoá-lo.
Solis levantou-se do chão, furiosa e humilhada porque Alicia havia se saído melhor n
a briga. Jogou o anel no chão e foi embora.
- Pranteie o seu gorgio, Alicia, porque você nunca mais o vera.
Alicia porem, já não prestava atenção nela, soluçando contra o peito do pai.
- Por que? Por que ele me abandonou?
- Eu não sei, meu bem.
Rudolpho balançava a filha nos braços, com infinita ternura, enquanto as palavras sa
iam de seus lábios cerrados de raiva. Doía-lhe ver a filha sofrer daquele jeito.
- Vou encontrá-lo e descobrir a verdade. Isso eu garanto a você - ele prometeu.
Como uma borboleta ferida que se refugiasse no seu casulo, Alicia escondeu-se en
tre as mantas de sua carroça, tentando não chorar. O travesseiro ainda tinha 0 cheir
o de Rafael. Aquela segunda traição havia sido ainda mais dolorosa, porque ela estiv
era tão confiante no amor dele e tinha aberto totalmente o coração.
A lembrança das caricias e da paixão de Rafael estava marcada para sempre no seu cor
ação e na alma. Ela havia acreditado que ele ficaria a seu lado e acabaria sendo ado
tado pelo bando.
- Oh, Rafael soluçou.
Alicia se lembrou da brutalidade das palavras de Solis.
Apesar da raiva que sentia daquela mulher, sabia que nenhum cigano juraria pelo
tumulo do próprio pai se não estivesse dizendo a verdade. E o fato era que Rafael de
saparecera.
E o anel! Era difícil acreditar que Rafael tivesse deixado o anel "como pagamento
pelos seus favores", como dissera Solis. Era difícil acreditar que ele fosse tão ins
ensível.
Será que ele tivera pena ao perceber o quanto ela o amava? Quem ele pensava que er
a para ter pena dela? A raiva serpenteou em seu intimo como uma víbora. Ela era um
a cigana, filha de Rudolpho, não alguém de quem se tivesse pena. Preferia que ele s
entisse ódio dela do que pena.
Alicia se levantou lavou rosto e, ignorando os olhares de curiosidade dos outros
ciganos, forçou um sorriso e foi se desincumbir de suas obrigações do dia. Eles nunca
saberiam que o gorgio havia arrancado seu coração e levado-o consigo. Rudolpho tinh
a saído do acampamento, acompanhado por Todero.
Enquanto limpava os caldeirões para a refeição seguinte, Alicia decidiu que diria, até o
dia de sua morte, que estava contente porque aquele homem com quem tinha sido o
brigada a se casar tinha ido embora. Perdida em seus pensamentos, não percebeu a a
proximação de Mala e Palo.
- Onde está Rafael? - perguntou a menina.
- Foi embora - respondeu ela, tentando disfarçar a amargura.
- Mas eu gostava dele! Por que ele foi embora?
- Ele voltou para sua própria gente.
- Isso quer dizer que nos podemos voltar a dormir com você? - perguntou Palo, anim
ado, depois de um momento de silencio.
Alicia abraçou os dois e, nesse momento, ouviu o tropel de cavalos se aproximando.
Todero entrou no acampamento, puxando atrás de si o cavalo de Rudolpho, sobre o q
ual estava o corpo do líder cigano.
- Rudolpho! Papai! Meu pai - gritou Alicia, jogando-se sobre o corpo inerte.

CAPITULO XI

O que aconteceu, Todero? - Alicia conseguiu finalmente, perguntar ao amigo. - El


e está morto? .
- Não. Pelo menos, ainda não - respondeu Todero, muito serio. - Estavamos indo atrás d
o seu marido, e tínhamos cavalgado apenas durante algum tempo quando Rudolpho pass
ou mal. Tenho medo por causa do coração dele, Alicia. Ele estava tão bravo, tão ansioso
para encontrar o seu gorgio ... De repente, pôs a mão no peito e se dobrou de dor. D
epois disso, não falou mais nada.
Sob o comando de Todero, quatro ciganos transportaram Rudolpho gentilmente para
a carroça de Alicia e, depois se afastaram respeitosamente, deixando-a a sós com o p
ai.
- Não morra, papai! O senhor não pode morrer -sussurrou ela no ouvido dele, lutando
contra o medo.
Em outras ocasiões ele havia sarado, e se recuperava dessa vez também, repetia ela p
ara si mesma. Mas o rosto dele estava muito pálido, e seu pulso muito fraco, como
se Já estivesse semimorto.
Rezando, Alicia pôs um pouco de pó de pimenta caiena na boca do pai. Ele precisava d
e um estimulante para fazer os batimentos do coração recuperar a força, 0 Del não seria
tão cruel de permitir que ela perdesse Rudolpho.
Alicia passou o dia todo e a noite inteira ao lado do pai, enquanto ele lutava p
ela vida. Ela o acariciava e lhe administrava ervas, enquanto se torturava ao pe
nsar que a culpa pelo que acontecera era sua. Se não tivesse entregado sua virtude
para o gorgio, nada daquilo teria acontecido.
- O senhor sempre pensou na minha felicidade, papai. Eu amo o senhor.
Ela ouvia os prantos e as lamentações do lado de fora da carroça, como uma onda. Os ci
ganos já estavam de luto por ele.
- Por favor, não morra, papai - pediu ela, pegando as mãos dele nas suas.
- Alicia ... - A palavra era pouco mais que um suspiro, mas parecia que ele havi
a ouvido a sua suplica.
Rudolpho abriu os olhos, onde se refletia a dor que ele sentia.
- Preciso lhe contar antes de morrer...
- O senhor não vai morrer. Não fale agora, papai, tente poupar suas forças.
- Eu tenho de lhe contar. .. Eu não a teria amado mais se você fosse minha filha de
sangue.
- O que o senhor esta dizendo?
- Você ... não é quem você pensa ser, Alicia- ele falou, com dificuldade.
Alicia fechou os olhos, reconhecendo no fundo do seu ser o que ele estava tentan
do lhe dizer. Ela sempre se sentira diferente dos demais. Seria por isso que hav
iam permitido que ela se casasse com um gorgio?
- Não, eu sou cigana! - protestou em voz alta. No entanto, lembrou-se da mulher qu
e aparecia em seus sonhos. Inclinando-se sobre Rudolpho, ela disse: - O senhor e
sta tentando me dizer que eu não sua filha? Que não pertenço a seu sangue e sua carne?
Se for isso, quero que saiba que o amor une os nossos corações e que estamos ligado
s com mais força do que se eu fosse fruto da sua semente.
Rudolpho pegou as mãos dela nas suas, enquanto lutava contra a agonia que lhe cort
ava o corpo por dento.
- Você facilita as coisas para mim, chavi. Eu sempre tive medo deste dia, mas agor
a que estou morrendo não posso mais esconder-lhe isso. Quando eu morrer. ..
- O senhor não vai morrer!
- Todos morreremos um dia. E eu vou embora antes do que desejava. - Ele fez uma
pausa, reunindo coragem, e acrescentou: - Você não é cigana.
- Não sou cigana? - A verdade que ela sempre temera tinha sido dita em voz alta.
Então Rudolpho lhe contou, da melhor maneira que pode, a sua historia, deixando de
lado detalhes como o ódio que vira nos olhos da mulher que se livrara dela.
- Eu deveria ter lhe contado antes, mas tinha medo de perder você. Eu deveria ter
deixado você ir embora com o seu gorgio para se unir a sua própria gente, mas eu, ve
lho egoísta que sou, não consegui. Perdoe-me. Eu não conseguiria aguentar ficar longe
de você.
- Não tenho nada a lhe perdoar - Alicia apressou-se a dizer, sem poder conter as l
agrimas por mais tempo . - O senhor me deu todo o amor do mundo. Eu sou uma ciga
na e tenho orgulho de ser sua filha.
- No seu coração, você realmente é uma cigana, cheia de paixão e fogo. Mas você tem de acei
ar que é uma gorgio. León. Alicia, não se esqueça desta palavra. Foi lá que eu a encontrei
e é para lá que você deve ir algum dia.
- Gorgio! - Alicia pronunciou a palavra com desprezo.
- Sou cigana e serei cigana até o dia da minha morte!
- Não digo isso para magoa-Ia - Rudolpho contemporizou, com dificuldade. Quero que
algum dia você possa se encontrar com seu próprio povo. Lembre-se, Alicia: é em
León que estão as suas raízes.
Alicia ficou em silencio, chorando pela morte de todos os seus sonhos. Depois de
algum tempo, Rudolpho, com o rosto branco como um fantasma, pediu:
- Agora, me leve para fora. Estou morrendo ...
Alicia já não conseguia mais esconder a verdade de si mesma. Aquela revelação tirar o re
sto de força que restava a seu pai. Ele de fato estava morrendo. Ela abriu a corti
na de lona que servia de porta da carroça e dirigiu-se a dois outros homens:
- Meu pai ... deseja ser levado para o ar livre.
Era um costume cigano evitar morrer em um espaço fechado. Assim foi feito, e os ci
ganos prestaram os seus últimos respeitos ao líder, enquanto Rudolpho jazia, quase i
móvel, sobre um acolchoado grosso de baixo de uma velha arvore.
Como era costume entre os ciganos, eles choravam e se lamentavam, e lhe pediam d
esculpas por alguma ofensa que pudessem lhe ter feito. Não era bom para um cigano
ir para o outro mundo sem acertar suas dividas antes. O moribundo também pediu des
culpas aos que o homenageavam.
A cerimônia se estendeu por toda a noite. Eles beberam vinho e contaram historias
sobre a coragem e a sabedoria de seu Iíder. Ninguém dormiu.
Pouco antes da primeira luz da manha, Rudolpho suspirou o nome da filha e fechou
os olhos para sempre.
O enterro de Rudolpho teve toda a dignidade apropriada a um líder cigano. Vestido
com suas melhores roupas, ele parecia dormir. Suas mãos estavam cobertas com todo
s os seus anéis, e braceletes adornavam seus braços. O chicote símbolo da virilidade p
ara os ciganos,estava a seu lado, assim como todos os seus pertences terrenos. C
omo o seu corpo, tudo sena incinerado. Os ciganos não acreditavam em guardar nada
que tivesse pertencido a um morto.
O corpo, rodeado por sete velas, estava na carroça que tinha sido a moradia de Al
icia durante todos aqueles anos e que seria a pira fúnebre de Rudolpho. Alicia est
ava sem teto. Ela ficou sentada, aos pés do pai, chorando mansamente e alheia aos
outros, que desfilavam, manifestando publicamente o seu luto e se despedindo.
Os ciganos formaram um circulo ao redor do caixão, abraçando-se em busca de força e co
nforto. Todos eles amavam aquele doce gigante, que os havia liderado com sabedor
ia e amor.
- Rudolpho, nós o deixamos nas mãos de 0 Del entoaram em conjunto, jogando moedas de
ouro sobre o corpo, como uma oferenda final.
Ouviu-se a melodia de uma musica fúnebre tocada por um violino e um violão, que se m
isturava as vozes do povo de Rudolpho. Os rostos brilhavam devido ás lagrimas.
Fazia três dias que Alicia não saia de perto do pai, e não comera durante todo esse te
mpo. Percebendo que ela se sentia fraca, Todero se adiantou e lhe ofereceu apoio
. Fora ele quem construíra o caixão do pai. Ela tentou sorrir para o amigo, mas não co
nseguiu. Será que algum dia voltaria a sorrir?
- Obrigada por tudo o que você fez, Todero.
- Fique com isto, que lhe dara sorte. - Ele entregou-lhe a fita que tinha usado
para medir o caixão.
Os ciganos costumavam cortar essa fita em pedaços pequenos e atá-los com um nó, forman
do o que chamavam de mulengi dori, ou "0 fio do morto". Acreditavam que se a pes
soa levasse a fita sempre junto de si, ela poderia ser usada, ainda que apenas u
ma vez, para ajudar alguém que estivesse encarcerado ou correndo perigo .
- Quando você tiver usado a mulengi dori, desfaça-se dela. Jogue-a na água corrente.
Alicia pegou o presente, sem saber que um dia recorreria á sua mágica para salvar a
vida de outra pessoa.
Stivo deu um passo a frente , carregando uma tocha acesa. Todero quis afasta-Ia
para que ela não presenciasse a incineração, mas Alicia foi firme:
- Não. Faço questão de ficar - declarou, soluçando.
O calor das chamas queimara a sua pele, a fumaça fazia com que ela tivesse a sensação
de que seus pulmões iriam arrebentar, mas permaneceu imóvel, assistindo á pira queimar
, até quando só restavam cinzas.
- Adeus, papai. Eu nunca me esquecerei do senhor.
Só então ela percebeu que estava só. Os outros tinham voltado para o acampamento, para
preparar o banquete do morto. Nos próximos dias, não haveria bebidas, musica ou ale
gria. Todos os espelhos seriam cobertos. Todos os jarros e utensílios que continha
m água tinham sido esvaziados e agora seriam reabastecidos novamente. O luto dever
ia durar cerca de seis dias.
Alicia, porem, sentia que seu luto nunca terminaria, sabia que a vida nunca mais
seria a mesma. Ela não era cigana, nem gorgio. Não era nada, e uma luz tinha sido t
irada de sua vida. Ela não saberia viver sem Rudolpho.
Ao se aproximar dos outros, percebeu que já estavam discutindo a escolha de um nov
o líder para substituir o pai. - Todero - disse alguém. - Ele é sábio.
- Manolo, que é o mais velho - sugeriu outro.
- Stivo. Ele é o filho da phuri dai.
- Stivo. Meu filho deve ser o novo líder - concordou lana, a phuri dai.
A mulher estava de pé, ereta, com os cabelos grisalhos soltos ao vento. Parecia um
a sacerdotisa antiga profetizando, os olhos fixos e chamejantes.
Aqueles olhos sempre fizeram Alicia pensar em um réptil, e a mulher também nunca gos
tara dela.
- Tive uma visão. Meu filho é o único que poderá nos guiar e nos tornar fortes para enfr
entar esse demônio, cristão conhecido como Torquemada. Stivo deve ser o novo líder.
O grupo parecia hipnotizado.
- Não! - protestou Alicia, mas sua voz sumiu sob o grito da multidão:
- Stivo! Stivo! Stivo!
Os ciganos levantaram Stivo no ar, aclamando como seu novo líder aquele homem que
nunca havia demonstrado qualquer bondade para com Alicia, que a havia ameaçado mai
s de uma vez e que jurara que um dia possuiria o corpo dela.
Á vários quilômetros de distância da caravana cigana, Rafael de Villasandro estava diant
e do padre de batina preta com um sorriso congelado no rosto. Nas mãos, ele trazia
a pintura de Maria e seu filho, uma oferenda que seria o resgate de muitas vida
s.
- No entanto, minha própria vida precisa ser resgatada. Ele suspirou, pensando mai
s uma vez em Alicia. Solis teria lhe dado o recado?
- O que o senbor disse, meu amigo? - perguntou Juan Dorado, os olhos examinando
a pintura avidamente, como se quisessem devorar a tela.
- Apenas pensei alto - respondeu Rafael. Não podia deixar aquele homem perceber o
que lhe passava pelo coração.
- Sobre a sua provação com os ciganos? Escória paga!
Seu irmão me contou. Pensar que sequestraram um cristão de suas próprias terras! Imagi
no que queira esquecer esse assunto, por isso não vou falar mais no assunto. Mas u
ma coisa eu lhe digo: um dia eu verei Castela, León e Aragão livres de hereges.
Á luz das velas, as feições contorcidas de ódio do padre remetiam ao próprio demônio. Por u
momento, Rafael sentiu medo e, ao mesmo tempo, uma enorme vontade de chacoalha
r aquele homem, de lhe dizer que hereges eram as pessoas como ele, e não os judeus
, os conversos ou os ciganos. Mas controlou-se e estendeu os braços, entregando a
Juan Dorado a pintura.
- Aqui está, padre. É sua, como prometi.
Acariciando a tela como outro homem faria com uma amante, Juan Dorado se delicia
va com seu novo tesouro.
- Vamos encontrar um lugar de honra para a pintura. Depois de percorrer a igreja
, acompanhado por Rafael, ele se deteve em um nicho iluminado por sete velas.
- Aqui. É um lugar perfeito, o senhor não acha? - Ele se apressou a pendurar o quad
ro. - Daqui, a Virgem observara todos os cristãos piedosos e julgara aqueles que são
inimigos do Seu Filho, por toda a eternidade.
Rafael olhou para a pintura e pareceu-lhe que o sorriso da Virgem zombava de Jua
n Dorado.
É ele quem é o inimigo de Nosso Senhor, pensou Rafael.
Em seguida, seu pensamento voltou-se para Alicia. Ela estaria em segurança? Rudotp
ho cuidaria dela? E Stivo? Ah, se ele ousasse tocar em um fio de cabelo dela ...
- O senhor está bem? - perguntou o padre, interrompendo suas dolorosas divagaçõs.
- Não é nada. Eu me senti mal, mas já passou.
Os dois saíram, e o ar fresco da manha fez Rafael pensar em Alicia, que lhe ensina
ra tanta coisa na vida. Muitos nobres dormiam de manha, mas aquela cigana de olh
os brilhantes lhe mostrara que havia coisas melhores para serem feitas naquele h
orário e que a riqueza não estava no ouro, e sim em tesouros mais simples.
- Desculpe-me, senor de Villasandro, mas parece que o senhor não esta ouvindo o qu
e eu digo. - A voz de Juan Dorado era fria.
Suas divagações estavam ameaçando a tarefa que ele se propusera a cumprir, percebeu Ra
fael.
- Não. estou contente em cuidar dos olivais de meu irmão, ele tentou se explicar, es
perando que a mentira não fosse obvia demais.
Para sua surpresa, a carranca do padre se transformou em uma expressão de quem est
a se divertindo.
- O senhor é como eu era há alguns anos. Estou sempre surpreso com o quanto nos do i
s nos parecemos - disse Juan Dorado, rindo. - Eu também tenho um irmão mais velho e
sei como o senhor se sente. Tive de encontrar meu próprio caminho. Mas agora, o po
deroso da família sou eu, e não o primogênito. Se o senhor fizer o que eu mandar, se f
or leal a mim, eu também posso torná-lo poderoso.
- É só me dizer o que devo fazer - respondeu Rafael, satisfeito e surpreso com o fat
o de que aquela conversa mole estava conquistando a confiança do padre.
Ouviu-se então, ao longe, o som de tambores, que anunciava que alguma pobre alma e
stava prestes a perder a vida. Juan Dorado parecia não ouvi-lo, mas, de alguma for
ma, o som parecia ecoar as palavras que ele dizia.
- Preciso de olhos e ouvidos para me ajudar a encontrar nossos inimigos, aqueles
que fingem ser bons cristãos, mas que, na realidade, são judeus no fundo do coração e a
inda praticam suas heresias em segredo. Quero que o senhor me informe sobre essa
s pessoas.
- Espionar para o senhor? o padre riu.
- Sim, exatamente isso. Eu cuidarei das execuções quando tiver as provas necessárias p
ara livrar o pais dessa escoria. Também cabeça ao senhor providenciar para que esses
hereges não escapem. - Em seguida, abaixando a voz, ele acrescentou: - 0 senhor v
iaja amanha de manha para León.
- León?
- O senhor será hospede de meu pai, ou melhor, de meu padrasto, Philip Navarro. Te
mo que ele tenha se tornado complacente e tolo com a idade. Talvez ele tenha mes
mo alguma simpatia para com os judeus. Preciso de alguém em León que pense como eu.
Posso contar com o senhor?
Rafael pensou em Alicia. León era tão longe! Queria recusar e voltar para os braços da
mulher que amava. Mas tinha de tentar salvar vidas.
- Fico feliz em ir para León - respondeu ele, forçando um sorriso. - Chega de olivai
s.
- Chega de olivais, meu filho. E pela sua lealdade, Deus o recompensara. Pode de
ixar que eu providencio tudo.
Perdoe-me, Alicia. Que o seu 0 Del e o meu Deus a protejam ate a minha volta, pe
nsou Rafael.
uma forte tempestade despencou, como se o céu chorasse a morte de Rudolpho, enquan
to a caravana prosseguia. As carroças formavam uma fila única, arrastando-se na estr
ada lamacenta. Mulheres e crianças haviam sido abrigadas nos veículos. Com exceção de Al
icia. Para atormenta-Ia, Stivo havia ordenado que ela ficasse no banco a seu lad
o.
A roupa molhada de Alicia grudava no corpo, e ela tremia de frio. Estava cansada
e sofrendo, mas sabia que não poderia esperar nenhuma solidariedade da parte do n
ovo líder dos ciganos. Sendo assim, não havia ninguém para lhe fazer frente,com exceção, t
alvez de Todero. Mas ela não queria que seu amigo corresse perigo para ajuda-Ia, p
referindo sofrer em silencio.
Depois de horas de viagem, a caravana teve de parar porque uma carroça tinha atola
do. Alicia suspirou aliviada, na expectativa de "um pouco de descanso.
- Desça! - ordenou-lhe Stivo.
Diante da reação de surpresa dela, ele prosseguiu:
- Não vou permitir vagabundagem - repreendeu, com um sorriso cruel no belo rosto.
- Você é forte e sempre se achou a altura de qualquer homem. Portanto, terá de
provar a sua força, ajudando a desatolar as rodas.
Bastardo!, pensou ela.
Com a lama até o tornozelo e escorregando, ela foi ate a carroça atolada. Os homens
já haviam feito alavancas, e Alicia juntou sua força a deles, ignorando a chuva e o
barro que espirrava no seu rosto.
Quando conseguiram soltar a roda, Alicia sentiu-se feliz e orgulhosa. Triunfante
, ela achou que tinha sido mais esperta que Stivo. Em seguida, porem, viu nos ol
hos dele que o prazer que sentia o tinha deixado furioso.
Stivo chegou até onde ela estava e a empurrou, derrubando-a na lama, com uma risad
a maldosa.
- Lute contra mim, Alicia, lute - disse ele, agarrando os seios dela. - Pode lut
ar, que não vai adiantar. Já esperei demais. Hoje a noite você será minha. Agora você não t
m Rudolpho para me deter.
- Nunca! - gritou Alicia, tentando arranhar o rosto dele, mas Stivo foi mais rápid
o e lhe segurou as mãos.
- Pode espernear o quanto quiser, eu não me importo. O que eu quero não é o seu coração, m
as apenas o seu corpo.
Dizendo isso, ele a beijou brutal mente, dando uma amostra do que a esperava. Al
icia mordeu a boca odiada de Stivo.
- Vadia! - praguejou ele, limpando com a mão o sangue da boca. - Você não sabe que eu
posso banir você? Eu sou o líder do banda e filho da phuri dai!
- Não pode me castigar assim, eu não fiz nada de errado.
Mesmo sendo líder, você tem de obedecer as leis ciganas.
- Ser gorgio é motivo suficiente - respondeu ele, com um riso de triunfo.
Alicia estremeceu. Stivo tinha a arma necessária para feri-Ia.
- Rudolpho me contou antes de morrer. Mas como você sabe?
- Minha mãe sempre soube,e depois da morte de Rudolpho, ela confirmou as minhas su
speitas. Pequena vadia gorgio!
- Sou mais cigana do que você Jamais será, Stivo _ rebateu ela, erguendo a cabeça - Eu
tenho honra. Você apenas busca o poder e a satisfação dos seus desejos egoístas.
Ele estendeu a mão na direção dos seios dela, e Alicia cuspiu no rosto dele.
- Vou matar você por isso! - ameaçou ele, sacudindo-a violentamente. - Não, eu não vou m
ata-Ia. Mas vou fazer com que você deseje, muitas e muitas vezes, estar morta.
Dizendo isso, ele se afastou, deixando-a desesperada.
Ele vai cumprir essa ameaça, e eu estou impotente para dele-lo. Se eu pedir ajuda,
ele prejudicaria os que vierem em meu socorro. Slivo e impiedoso e agora não ha n
inguém para segura-lo ...
Fechando os olhos, ela rezou para que 0 Del tivesse piedade dela e lhe mostrasse
o que deveria fazer. Ao abri-los, uma palavra lhe veio á mente: León. Rudolpho tinh
a lhe dito que ela deveria ir para lá para encontrar suas raízes. Ele teria previsto
o que aconteceria depois da morte dele?
Mas como poderia ela abandonar a sua gente e enfrentar o desconhecido? Naquele m
omento, Stivo virou-se e sorriu para ela. Alicia sentiu que suas duvidas tinham
sido dissipadas. Não poderia continuar nem mais um momento com a caravana. Estava
apavorada, mas era uma questão de sobrevivência.
Ninguém poderia vê-Ia partir. Ela montou seu cavalo e esperou a primeira oportunidad
e. Quando o apito tocou, sinalizando que as carroças deveriam retomar a viagem, el
a silenciosamente se despediu da sua gente de longe. Cigana ou não, aquela era a s
ua família.
- Adeus Todero. Vou sentir saudades de você, Zuba.
Criando coragem e antes que mudasse de idéia, ela aproveitou enquanto todos estava
m concentrados em vencer a chuva torrencial e desviou seu cavalo, partindo na di
reção que, esperava, a levasse a León.

CAPITULO XII

Alicia cavalgou até que as partes internas das suas coxas estivessem esfoladas e s
angrando. Ela enfrentava a chuva e o vento inclementes, com medo que Stivo a seg
uisse e a levasse de volta ao acampamento para cumprir suas ameaças. Era preciso a
umentar o máximo possível a distancia entre eles e chegar a León. La estaria em segura
nça, pensava, apesar de não saber como sobreviveria na naquelas terras do norte da E
spanha.
Quando não aguentava mais, olhou para trás para se certificar de que não estava sendo
seguida e desmontou. Arrastando-se ate duas grandes pedras, escondeu-se no meio
delas e dormiu, exausta. Foi um sono profundo e sem sonhos. Quando acordou, aind
a era noite e o luar iluminava a paisagem.
Os ciganos consideravam a lua como um poder misterioso que afetava vidas, e Alic
ia achou que aquele era um bom sinal.
Lembrou-se das historias sobre a lua, a mãe dos céus, que Rudolpho tantas vezes lhe
contara quando era criança. Uma pontada de saudade lhe doeu no peito.
Com os olhos cheios de lagrimas, ela se levantou. O medo e a solidão a encheram de
duvidas a respeito de sua fuga. Ela estava sozinha, a mercê de animais selvagens
e de
bestas humanas.
- Acho que vou voltar. ..
Logo apos decidir, lembrou-se de Stivo. Não poderia voltar. Jamais permitiria que
a tocasse. Rudolpho havia lhe contado a verdade sobre seu nascimento porque sabi
a que ela tinha de encontrar o seu próprio destino. Ela jurou que chegaria a Leon
ou morreria tentando.
Na calada da noite, ignorando os sons da noite e enchendo-se de coragem, Alicia
ela montou Grai e prosseguiu em direção a León.
A viagem para Leon foi longa e exaustiva, através de quilômetros de lama, colinas es
téreis e desfiladeiros. Alicia viajava pelos campos dos gorgios e terras da igreja
, o que servia para lembra-Ia de seu auto imposto exílio e de sua vulnerabilidade.

Os dias de intenso calor eram seguidos por noites geladas e Alicia tremia com o
frio dos ventos, que atravessavam suas roupas. O inverno estava chegando. Acampa
ndo em florestas e campos, assustada e sozinha, ela procurava se lembrar das pal
avras de Rudolpho e sentia a sua determinação renovar-se.
Em toda sua vida o pai tinha lhe dado bons conselhos e agora não seria diferente.
Precisava chegar a León o quanto antes.
Mesmo quando parecia que não tinha mais forças para ir adiante, de alguma maneira Al
icia conseguia se levantar montar Grai e retomar sua jornada. Era tão diferente de
viajar com a caravana.
Agora estava sozinha, com apenas seu cavalo como companhia, sem musica cigana e
sem risos. Sentia falta ate das caras feias com que a olhavam. Ao menos as lembr
anças lhe serviram de companhia.
No fim, ela não contava nem mesmo o cavalo, pois certa noite? Enquanto dormia, alg
uém lhe roubou a única coisa de valor: Grai. '
Forçada a terminar a jornada a pé, Alicia alcançou a cidade por pura determinação. Agora e
stava no meio da civilização gorgio em um mundo,muito diferente de tudo o que conhec
ia. Com olhos arregalados, ela olhava as torres das igrejas góticas, delgadas e el
egantes, lançando-se contra céu.
Não que nunca tivesse visto vitrais e jardins floridos antes. Mas quando os vira,
viajando com os outros ciganos pelas cidades, não tinha prestado muita atenção na sua
beleza.
Naquele momento observava todos os detalhes: as fontes cobertas de musgo, os pil
ares de mármore, as casas com telhados.
Tudo era tão lindo, divagou ela, contemplando a paisagem enquanto caminhava. Via a
beleza do mundo gorgio, apesar da feiúra de alguns de seus moradores, que não eram
nem um pouco gentis, alguns chegavam inclusive a insulta-Ia. Contudo, ela fazia
o possível para ignorá-los.
Os sinos da igreja tocaram seis vezes enquanto Alicia andava pelas ruas de Salam
anca, na província de León. A tarde estava terminando, aquela seria sua primeira noi
te entre os gorgios.
Estava frio e ela caminhava, cansada e com fome, segurando um esfarrapado xale i
mprovisado. Apenas os pedintes e as crianças maltrapilhas a trataram com bondade.
As damas e os cavalheiros bem-vestidos a olhavam com hostilidade. Alguns á chamava
m de gitana, como se a própria palavra fosse um insulto. Ela devolvia os olhares c
om uma carranca e fingia ignorá-los.
Que Beng carregasse aqueles cães!
Pelo menos a cidade. a recebera com simpatia, compartilhando com ela sua varieda
de de paisagens, sons e cheiros. Ruas estreitas atravessavam Salamanca como fita
s longas e graciosas, com sobrados com persianas vermelhas, verdes e azuis e gra
des de ferro negro. Havia também casas de barro, sendo, aparentemente, a moradia d
os pobres. Ao contrario dos ciganos; esses gorgios não tinham aprendido a comparti
lhar. Alguns tinham muito e outros, tão pouco.
Burros, porcos, galinhas, gatos e cachorros se espalhavam pelas ruas, abrindo ca
minho para comerciantes e carroças. Algumas crianças riam, brincando e correndo no m
eio da rua. Alicia se lembrou de Palo e Mala, e disse aos meninos que aquelas br
incadeiras eram perigosas, porem as mães dali a xingavam e diziam para ela não roub
ar seus filhos.
- Roubar crianças? as ciganos não roubam crianças.
Eles tem seus próprios filhos em numero suficiente - ela resmungou, apressando-se
em fugir da enxurrada de imprecações.
A praça estava cheia. Alicia olhava os vendedores e seus produtos. O cheiro de fru
tas, verduras,legumes, pães e tortas recém-assados enchia o ar, misturado ao aroma d
e peixe e couro. Respirando fundo, ela tentou esquecer a fome. Sua sacola estava
vazia e ela não tinha o que comer. Seu suprimento de queijo, peixe salgado, pão e s
ementes tinham terminado.
Ela, então, se lembrou de uma cigana de outra caravana que lhe contara ter consegu
ido sobreviver no mundo gorgio dançando e lendo a sorte. No entanto, ela era muito
orgulhosa e pôs sou aquela noite sem comer nada. Depois de muito andar, encontrou
um canto para se abrigar e tentou dormir, na esperança de que o dia seguinte foss
e melhor.
Alicia passou três noites miseráveis, com fome, ate que, finalmente, percebeu que da
nçar e ler a sorte eram a sua única saída. As pessoas da cidade não confiavam em ciganos
para trabalho honesto. Como ela poderia explicar que não era cigana? Quem acredit
aria?
Os gorgios batiam-lhe as portas de suas casas na cara logo que viam as suas roup
as esfarrapadas. Alem disso, ela não saberia limpar as casas de gente como eles, f
azer pão ou servir vinho.
A avó havia lhe ensinado pouco sobre ler a sorte e agora ela estava grata á phuri da
i por esse conhecimento. Não que fosse um trabalho fácil. Ela logo descobriu que par
a ler bem a sorte,a pessoa precisava ser atenta e persuasiva. E ela era ,honesta
demais e isso a atrapalhou um pouco no começo, até que a arrogância dos gorgios e sua
fome a fizeram mudar de idéia.
De agora em diante eu vou mostrar para esses esnobes pensou, ao ver um caballero
desviar o seu caminho para evitá-la, como se apenas tocar nela fosse sujar sua ro
upa.
Por que se preocupava com pessoas assim? Elas sorriam para os ciganos somente qu
ando queriam que eles lessem a sua sorte . Então por que não dizer aos gorgios que s
eus sonhos se tornaram realidade, que ficariam ricos e seriam amados e famosos?
O mesmo caballero que a tinha evitado foi seu primeiro cliente .. Ela lhe promet
eu que ele conquistaria o coração da mulher amada, e em troca recebeu moedas suficie
ntes para comprar pão. A promessa feita a um pastor de cabras de que ele se tornar
ia um homem de renome, lhe rendeu um pedaço de queijo de cabra. Pela primeira vez
desde que chegara a Salamanca, Alicia comeu. Mesmo assim, sua consciência doia, Ru
dolpho certamente não aprovaria o que estava fazendo. Ciganos não liam a sorte, a não
ser a phuri daí,que era quem tinha a visão .
Desculpe, papai, ela pensou, olhando para uma estrela no céu escuro, o brilho da
estrela lhe deu um certo conforto como se Rudolpho compreendesse o que ela estav
a fazendo leitura de sorte e a uma brincadeira feita com os gorgios para ganhar
dinheiro. Pobres coitados daqueles que tinham esperança de um futuro melhor ...
Os ciganos sabiam que o presente, o agora, era a coisa mais Importante na vida,
viver o agora, aproveitar o momento presente, sem remorso. Ciganos viviam dessa
forma. Se o presente fosse bem vivido, não seria necessário se preocupar com o futur
o ou lamentar o passado. E isso era exatamente o que Alicia pretendia fazer. Tin
ha de parar de pensar no passado e viver o dia a dia. Rudolpho, com certeza, ent
enderia.
Mas ela muitas vezes era duramente ridicularizada, e acabou pensando em tentar o
utras formas de matar a fome, alem de ler a sorte.
Olhando a praça lotada, Alicia concluiu que dançar poderia lhe render algum dinheiro
. Pessoas bem-vestidas comiam espetinhos de carne, legumes assados, peixe ou que
ijo, que eram vendidos na praça. Depois de se alimentarem, na certa apreciariam um
a diversão, ela pensou, determinada. Depois do jantar, os ciganos tinham vontade d
e dançar ou assistir aos dançarinos ao redor da fogueira. Seriam os gorgios tão difere
ntes? Ela resolveu descobrir.
Começou a bater palmas ao ritmo de um violão imaginário e a dançar flamenco. Havia uma o
usadia em seus movimentos, temperada com inocência, um olhar que dizia que ela era
uma dama, apesar das roupas esfarrapadas.
- Como ela e graciosa! - disse um serralheiro, interrompendo o seu trabalho para
observá-la.
Lentamente, uma platéia se formou ao redor de Alicia.
- Ela realmente é graciosa. E tão bonita que poderia conquistar até os mouros,
- Quem é? - perguntou um vendedor.
- De onde vem? Nunca a vimos antes. - murmuravam os homens.
As mulheres não estavam tão enfeitiçadas quanta seus maridos e filhos.
- Cadela cigana! Como ela se atreve a dançar tão audaciosamente?
- Nós deveríamos expulsa-la daqui.
- Não, deixe-a ficar! Cigana ou não, ela encanta todos que a olham - diziam os homen
s.
Alicia imaginou que dançava para Rafael, fechando os olhos para ver o rosto dele.
Se pelo menos ele a tivesse amado ... Se ...
De repente, uma voz fria e áspera acabou com seus devaneios. Ela abriu os olhos e
viu um padre, que a olhava com desaprovação.
- Ela dança como se possuída pelo demônio! _ disse ele, fazendo o sinal da cruz. - Aqu
eles que prezam suas almas abandonem esse lugar de danação antes que vocês sejam conde
nados ao fogo do inferno. Ela e maligna e não tem alma!
Alicia parou de dançar e sentiu um calafrio na espinha.O nome Torquemada lhe veio
a mente. Seria esse um dos seus sacerdotes? Ela tinha ouvido historias de que ha
via espiões de Torquemada por toda parte, a espreita.Uma palavra errada ou um ato
de desafio podia ter consequencias terríveis
- O padre está certo - disse um homem, recuando, assustado.
- Ciganos são crias do Diabo! - disse o padre. - Expulsem-na! - ,acrescentou, desa
parecendo nas sombras, tão rápido quanto tinha surgido.
-Ciganos são crias do demônio. Deviamos expulsa-la da cidade. - gritou uma mulher, r
epetindo as palavras do padre.Da mesma forma que a havia admirado, a multidão se v
irou contra ela. Uma mulher jogou uma pedra em Alicia acertando-a no ombro.
-Vá embora! - vociferou outra mulher, juntando sua pedra a avalanche de outras ped
ras e pedaços de madeira que o grupo jogava contra ela.
Como Alicia corria bem, ela conseguiu fugir e se esconder em uma das grandes igr
ejas de pedra das redondezas fechando a porta firmemente atrás dela.
Tremendo de medo e ofegando, esperou o tumulto acabar do lado de fora, antes de
abrir a porta e espiar. Ainda havia gente procurando por ela, par isso teria que
ficar ali por algum tempo. Tornou a fechar a porta e encostou-se na madeira .
- Tolos! Gorgios tolos! - murmurou com raiva.
Afinal, só queria entretê-los e ganhar algum dinheiro para poder comprar comida.O qu
e havia de mal? Dançar era urna boa coisa. Algo tão alegre só podia vir do Del não do Be
ng.
Ela sabia que não havia esperança para aquele banda de gorgios. Na verdade, nunca os
entenderia, ou poderia viver com eles. Aquela seria mais uma noite sem comida,
longas e solitárias horas.
Suspirando, Alicia retirou o lenço vermelho que cobria sua cabeça, o símbolo de seu ca
samento. Estranho que ela ainda o usasse. Relembrou o tempo que havia passado co
m Rafael. Parecia outra vida. Tanto havia mudado desde então: a morte de Rudolpho,
a escolha de Stivo como líder, sua fuga, a dura viagem pelas montanhas até a provínci
a de León.
Limpando o rosto da sujeira e fuligem e verificando se seus braços e pernas estava
m feridos, ela resolveu, mais uma vez, nunca mais pensar em Rafael.
Gorgios!, pensou, brava. Até agora, eles a haviam tratado muito mal, e pensar que
Rudolpho dissera que ela era um deles ...
Desencostando da porta da igreja e olhando ao redor, Alicia decidiu que só iria le
r a sorte a partir daquele momento. Dançar era perigoso. Era necessário fazer alguma
coisa para sobreviver. O Del queria que ela vivesse, não que fosse expulsa da cid
ade, concluiu. O inverno se aproximava com rapidez, e ela morreria se estivesse
sozinha e fora da cidade.
Olhando a sua volta, encontrou um nicho ao lado de um altar, e levando a mão ao bo
lso, pegou seus poucos pertences. Examinou a fita que Todero havia lhe dado para
trazer sorte, o caco do jarro de cerâmica de seu casamento e o anel de Rafael. Es
tranho ela o ter tirado da mão de RudoJpho quando havia morrido· Deveria ter deixado
o anel para ser cremado com o pai, mas ela o guardara. Por que?
A verdade era dolorida, mas ela não esqueceria Rafael tão facilmente quanto ela esqu
ecera. Desanimada, ela olhou ao redor, com medo de que o padre aparecesse novame
nte para insulta-Ia. Mas tudo estava quieto, e ela concluiu que
estava sozinha. .
Ela nunca tinha estado em uma igreja gorgio antes. O Deus de Rafael viveria ali?
Rudolpho sempre havia dito que Deus estava nas florestas, não em uma igreja, mas
ela sentia que ele estava naquele lugar e que não estava sozinha.
Com os olhos arregalados, ela observou a igreja, as velas brilhando no altar, os
mosaicos decorados que formavam imagens, o altar, as imagens. Viu uma escultura
de uma mulher com uma criança no colo, e a bondade no rosto dessa mulher a emocio
nou. Era como se ela sentisse a dor de Alicia e quisesse ajuda-Ia. Quem seria aq
uela mulher?
Outra imagem que lhe chamou a atenção era de um homem amarrado a uma árvore, ou melhor
, a uma cruz. Ele estava praticamente nu, apenas com um pano na cintura, os pés de
scalços amarrados juntos, e uma coroa de espinhos em sua cabeça.
Pobre homem, ela pensou, os olhos cheios de lagrimas.
- É o Senhor, o Cristo? Aquele de quem Rafael me falou? - perguntou, como que espe
rando que a imagem lhe desse algum sinal.
Talvez a imagem tivesse lhe respondido, porque, subitamente, ela teve a certeza
de que aquele era o Cristo. O olhar de paz no rosto da imagem a hipnotizou. Como
podia alguém como o perverso Torquemada venerar esse homem e ter tanta raiva e am
argura em seu coração? Era difícil de entender. Por que os gorgios davam ouvidos a pal
avras de ódio?
Por que não olhavam nos olhos e no coração do Cristo. .
Alicia estava cansada, e aquelas perguntas a deixaram triste. Voltou para a port
a com a intenção de ir embora,mas ela olhou para a imagem e decidiu ficar na segurança
da igreja. Pela primeira vez em semanas, sentia-se em paz. Procurou um lugar próx
imo da imagem, deitou-se e dormiu.
- Quem é você? O que esta fazendo aqui? - A voz era suave mas Alicia abriu os olhos
, assustada ao ver que era outro padre, ela levantou os braços para se defender de
uma possível agressão.
- Por favor, por favor. Eu só estava cansada...
Mas os olhos do padre exprimiam preocupação, e não ódio. - Não tenha medo, não vou fazer m
l a você - ele assegurou, pousando a mão no ombro dela. - Quem é você.
- Meu nome e Alicia.
- Alicia. Um lindo nome para uma linda senorita. Os olhos azuis do padre a obser
vavam com bondade. - Você parece triste, o que eu posso fazer para ajuda-la.
Os olhos de Alicia o estudaram. Ele era baixo e corpulento, quase gordo, com um
rosto redondo e um grande sorriso? A impressão era de que se tratava de um rapaz d
e aparência jovial, gentil e tranquilizador. .
Seria muito bom se ela pudesse confiar nele, precisava de uma amizade, mas estab
elecer vínculos com os gorgios sempre havia resultado em traição.
- Eu não preciso de ajuda - disse ela, cautelosamente.
- Eu sou cigana. E ciganos são fortes.
Ele colocou as mãos na cintura com um ar de reprovação. - Ninguém e forte com fome. Olhe
para você! Só pele e ossos. Há quanto tempo não come direito?
Alicia era muito orgulhosa e também teimosa para contar tudo o que já tinha passado.
- Eu comi ainda ontem. - Ficando de pé, ela arrumou o xale em seu ombro, defensiva
mente.
- Ontem? Ontem? Deus abençoado, pobre criança. Bem, nós vamos corrigir isso já. Venha co
migo.
Alicia não arredou ,o pé do lugar, com medo de confiar, mas ao mesmo tempo gostando
do jeito do padre.
- Eu não preciso de caridade, eu trabalho pela minha comida.
- Claro, sem duvida, criança. Você vai poder trabalhar pela comida, eu garanto. - El
e riu. - Sou um péssimo cozinheiro, como você pode perceber - disse ele, batendo na
própria barriga. - Se você preparar o meu desjejum, eu o dividirei com você. Parece ju
sto?
Alicia concordou com um sorriso e disse, brincando: - Vou preparar um ouriço frito
para o senhor.
O padre estremeceu, como Rafael tinha feito. Aparentemente, os gorgios não gostava
m desse tipo de carne.
- Graças a Deus, nos não temos essas criaturas espinhentas por aqui. Vamos ter que u
sar carne de porco mesmo.
Ele fez sinal para que Alicia o seguisse e juntos saíram da capela. No caminho, o
padre cumprimentou com a cabeça as pessoas que rezavam, nos bancos.
- O que eles estão fazendo? - perguntou Alicia, curiosa.
- Eles acendem velas e conversam com Deus - respondeu ele.
- Falam com Deus? - Ela pensou na imagem do Cristo.
- Mas ele esta lá atrás - disse, apontando para a capela, com um olhar questionador.
- Não, não ... Aquele e o filho Dele, que morreu pelos nossos pecados.
Alicia ficou em silencio enquanto seguia 0 padre por um caminho longo e silencio
so, depois subiram uma escadaria. - E quem é a mulher com a criança?
- A mãe de Cristo. Maria, com o bebê é Jesus.
Agora Alicia estava confusa. - Jesus? Quem é esse Jesus? o padre sorriu.
-Crsto. Não se preocupe, você vai entender aos poucos. _ E muito confuso - admitiu A
licia, meneando a cabeça. Os gorgios, eram de fato muito estranhos. Mas a memória do
rosto compassivo da estatua de Cristo a fez querer saber mais.
- Como Cristo morreu?
- Ele foi crucificado, pregado a uma cruz. Por causa do sacrifício dele, nós que acr
editamos nele, temos a vida eterna.
- Todos os gorgios?
- Aqueles que acreditam. Homens maus são condenados ao purgatório e ao sofrimento, a
o inferno e ao fogo eterno. O destino deles e se tornarem escravos do demônio.
-Do Beng? Que punição terrível!, pensou ela.
Então eles chegaram a cozinha e Alicia viu que havia fogo no grande forno. Queria
perguntar mais, porem seu apetite por comida superou a fome por conhecimento, pe
lo menos naquele momento.
Havia uma grande tigela de madeira cheia de frutas picadas e ela deu um passo a
frente, sentindo a boca cheia de água.
- Sirva-se, minha criança. Pegue o quanto quiser.
Alicia pegou um punhado de uvas e as pôs na boca, estavam azedas, mas ela as sabor
eou mesmo assim. De repente, percebeu, horrorizada, o que estava fazendo? A fome
era uma coisa assustadora, tinha a capacidade de tirar o orgulho das pessoas.
Engolindo rapidamente, Alicia olhou para o padre com a cabeça erguida.
- Eu disse que prepararia o seu desjejum e só depois comeria. Esse era nosso acord
o e eu vou mantê-lo.
Havia uma massa de pão já enrolada. Ela a colocou em uma forma e pôs no forno.Vendo al
guns ovos ela os abriu e misturou com cebola e pimentas picadas.Isso a fez lembr
ar do dia em que fora abandonada por Rafael,e seus olhos se encheram de água.
-Você está triste criança.Alguém a magoou?
-Não, é só a cebola e nada mais.
O padre, mesmo percebendo que não era verdade,não exigiu que ela lhe dissesse a verd
ade .Já tinha concluído estar diante de uma moça orgulhosa,cheia de coragem e força,a ad
mirava por isso.Ele por certo encontraria uma forma de ajudá-la.
-Desculpe-me mas não me apresentei,eu sou o padre Julio e cresci na Irlanda.
-Irlanda?-Alicia tinha ouvido falar daquele pais distante.-O que o senhor está faz
endo aqui em León.
-Eu fui chamado por Deus- disse ele baixando a voz como se tivesse medo de que
os outros o ouvissem.
-Pretendo ser o instrumento de Deus para acabar com essas fogueiras absurdas.
Alicia entendeu imediatamente que ele falava da Inquisição.
- Torquemada é um demônio- disse.
O padre fez um sinal para que ela ficasse quieta,mas concordou.
- Torquemada é louco É preciso detê-lo,mas não falemos mais de assuntos tão horríveis. Cont
-me a seu respeito.
Alicia falou do acampamento cigano,enquanto se ocupava na cozinha.Ela estava sur
presa de como era fácil cozinhar em uma cozinha como a dos gorgios,entre quatro pa
redes.
Colocou presunto fatiado,frutas e pão em dois pratos.Serviu a maior parte dos ovos
para o padre e um pouco para si,curiosa para experimentar aquele prato.
-Eu estou com fome- confessou finalmente começando a perceber que podia confiar na
quele padre.
Ela se agachou sobre os calcanhares perto do forno, como faziam os ciganos. Padr
e Julio sabia que, por ser cigana, ela não tinha ,o costume de sentar-se a mesa pa
ra comer e, para não constrange-la, sentou-se também no chão. Em breve ela aprenderia
os costumes deles, pensou.
- Fale-me de você, Alicia.
Para sua surpresa, o padre achou aquele jeito de comer bem confortável, talvez tiv
esse mais a aprender com os ciganos do que ele havia imaginado.
- Por que você esta aqui em Salamanca sozinha? Enquanto comia Alicia respondeu a t
odas as perguntas, e contou sobre a morte do pai, a revelação de que ela não era realm
ente cigana, o medo de Stivo, a viagem para Leon e a esperança de descobrir quem e
ra.
- Acho que não quero ser uma gorgio.
- Pobrezinha, eu não a culpo. Você passou por tanta coisa e só encontrou hostilidade a
qui em Salamanca. Estou envergonhado por meus compatriotas.
- Eles estão errados quanta aos ciganos, padre. Ciganos são pessoas honradas. Rudolp
ho, meu pai, era o melhor homem da Terra.
Padre Julio olhou para a garota. Ele tinha de encontrar uma forma de ajuda-Ia. C
ontudo, era difícil por causa do orgulho de Alicia. Ela não aceitaria caridade.
- Sinto falta da caravana - Alicia dizia -, principalmente de Todero e Zuba. E d
as crianças, Palo e Mala.
As crianças! Sim, aquela era a resposta. As palavras de Alicia lhe deram uma idéia
- Alicia, fique aqui. - pediu ele. - Nos precisamos de ajuda com as crianças. Como
você, elas não tem ninguém. - Crianças?
- Sim. Órfãos. Crianças sem pais. A igreja toma conta delas. Talvez você pudesse ...
Alicia sorriu para o padre, sentindo que ele era, de muitas maneiiras, como Rudo
lpho.
- O que está acontecendo aqui? - A voz era forte e autoritária, e Alicia ,virou-se a
ssustada. - Padre Julio, o que o senhor está fazendo, sentado no chão?
Parado a porta estava um homem vestido todo de vermelho, do chapéu aos sapatos. Ti
nha um nariz grande, como um bico de pássaro.
- E quem é esta garota ,maltrapilha? Mais um dos seus enjeitados, padre?
Alicia levantou-se imediatamente e olhou com expressão de desafio para o homem. En
rolou-e no seu xale e saiu em direção a porta. O padre levantou-se rapidamente e foi
atrás dela.
- Não, Alicia. Fique - pediu o padre Julio, gentilmente pegando em seu braço. Dirigi
ndo-se ao homem, ele o enfrentou: - Don Henrique Dorado, estou envergonhado pelo
senhor destratar assim uma filha de Deus. Seu pai, Philip Navarro, nunca seria
tão rude.
- Meu padrasto é um tolo que desperdiça dinheiro em suas tolas caridades e vai acaba
r nos deixando na pobreza. - O homem olhou novamente para Alicia, avaliando-a. -
Ela pode ser maltrapilha, mas ate que e bonitinha. Entregue a moça para mim, que e
u a alimentarei e vestirei.
O sorriso debochado deixava claro o que ele tinha em mente. Aquele homem não era m
elhor que Stivo.
- Eu nunca iria com o senhor - Alicia o encarou. _ Nunca! Prefiro morrer de fome
.
Pondo o padre de lado com um gesto de mão, Don Henrique pegou uma mecha do cabelo
de Alicia.
- Coragem e beleza. Eu gosto disso em uma mulher _ observou, rindo.
- Largue-a. Estamos na casa de Deus! - exclamou padre Julio, pondo-se entre Alic
ia e o homem.
-Uma cigana.você não ouviu o que disse Torquemada sobre esses pedintes?
Por um momento os dois homens se esqueceram da presença de Alicia,envolvidos em um
a batalha particular.Ela concluiu que não podia ficar ali,por mais que o padre tiv
esse sido gentil.O outro homem era perigoso.Em silencio,foi até a porta,parando só u
m momento para olhar o único gorgio que tinha sido gentil com ela.Lembraría-se daque
le padre por muito tempo.
-Eu escuto apenas a Deus e ao papa,e não a Torquemada.
Dou amor e ajuda aos que precisam, como Cristo ensina, e não...
O som da porta batendo interrompeu o padre no meio da frase. Surpresos, os dois
homens olharam ao redor e viram que a cigana não estava mais ali.
-Alicia.Volte! _ gritou padre Julio, correndo atrás dela.
Ao chegar ate a porta, porem descobriu que a mulher de cabelos escuros havia des
aparecido e,com ela,a esperança que ele tinha de ajudá-la.

CAPITULO XIII

Rafael de Villasandro andava de um lado para o outro no seu quarto na casa dos N
avarro. Ele estava em Salamanca havia duas semanas e ainda não tinha conseguido qu
ase nada, apesar de ter planejado fazer muita coisa e salvar muitas vidas. Será qu
e tinha deixado a mulher amada para ficar preso em uma gaiola dourada? Pelo meno
s era um lugar confortável, ele pensou, zombando de si mesmo.
A casa dos Navarro era uma construção de dois andares que se estendia ao redor de um
grande pátio, fechado por grades de ferro negro. Era uma das melhores casas da ci
dade. Philip Navarro era um homem muito rico.
A casa era decorada com diversas peças de arte como pinturas, esculturas e cristai
s finos. Era obvio que Don Philip amava o belo. Não era de espantar que seu entead
o tivesse um olho tão bom para obras de arte. Nisso ele aparentemente era igual ao
padrasto, mas apenas nisso.
Rafael fora acomodado em um quarto no segundo andar, com vista para o jardim. Er
a possível entrar discretamente na casa por uma entrada particular, próxima ao pátio,
e ele podia ir e vir a vontade, o que era muito conveniente. Havia dúzias de empre
gados, mas antes das seis da manha, depois das onze da noite e durante a siesta,
a casa ficava relativamente como se fosse invisível.
Rafael pensava muito em Alicia e tinha vontade de procurá-la e lhe pedir que o aco
mpanhasse,mas sabia que ela estava segura com Rudolpho,enquanto ele só tinha a lhe
oferecer o perigo .
Mas algum dia eu vou voltar para você,Alicia.Algum dia,pensava ele.
A idéia de perambular pelo campo parecia estranhamente atraente agora,e ele entend
ia o amor dos ciganos pela liberdade.Os últimos dias que havia passado com a carav
ana tinham sido os mais felizes de sua vida.
Estranho ele só ter percebido isso,depois de ter partido.
Existe honestidade entre os ciganos,não esta perigosa e diabólica maquinação que eu tenh
o que enfrentar entre os meus.
Um espião,um informante,era isso o que o conspirador Dorado queria que ele fosse.
Ele quer que eu fique de olho em um padre daqui.Padre Julio lembrou-se Rafael.
Olhou pela janela e achou que a luz do dia parecia opaca.O inverno estava chega
ndo e era preciso terminar logo terminar o trabalho de ajudar os ameaçados convers
os,antes do inicio das tempestades.
Até agora ele tinha descoberto que duas famílias de conversos estavam na lista dos s
uspeitos,a de um medico chamado Abraham Isaacson e a de um agiota de nome Noah
Ravalya,para quem ,segundo suspeitava Rafael.Juan Dorado devia muito dinheiro.
A própria rainha tinha utilizado os serviços de uma advogado judeu,que lhe emprestar
a vinte mil sueldos para o casamento com Fernando.Ela pagara o que devia depois
de se tornar rainha,mas o advogado não fora poupado pela Inquisição.
O próprio medico do rei Fernando, Ribor Altas, um judeu convertido, havia sido qu
eimado na fogueira. Ninguém estava a salvo daqueles que faziam da desgraça alheia su
a fonte de poder.
Por enquanto, os judeus estavam a salvo. A Inquisição se concentrava em perseguir os
que, depois de terem se convertido, supostamente haviam abandonado o cristianis
mo.
Rafael temia que não demorasse ate que Torquemada voltasse a atenção para os judeus. H
avia quase duzentos e cinquenta mil judeus na Espanha. Dizia-se que eles ainda não
eram perseguidos por resistência do rei Fernando. Contudo circulavam historias ho
rrendas e ridículas sobre os judeus, como acontecera antes da morte da mãe de Rafael
. Dizia-se, entre outras coisas, que eles tentavam converter cristãos ao judaísmo e
que sacrificavam crianças cristas.
Perdido em seus pensamentos, Rafael não ouviu seu anfitrião se aproximar.
- Don Rafael, o senhor parece preocupado _ disse Don Philip, tocando-lhe o ombro
. - Posso fazer alguma coisa?
Virando-se, Rafael saudou-o com um sorriso forçado.
- Não, esta tudo perfeito e agradeço sua hospitalidade. Rafael fora recebido caloros
amente naquela casa. Philip Navarro era um homem bonito, de uns cinquenta anos,
de barba e cabelos grisalhos.
Impecavelmente vestido de negro e dourado, era um perfeito nobre.
- Que bom, fico contente. - o sorriso de Don Philip era sincero e Rafael pensou
no quanto ele tinha gostado e respeitado esse homem desde que o conhecera.
O padrasto de Juan Dorado era um homem honesto e honrado. Como o enteado podia s
er tão diferente do homem que o havia criado?
Como é possível que Phillip Navarro seja o único homem honrado nesse mar de tubarões?-i
ndagou-se Rafael com amargura.
Ele também não gostava do irmão de Juan Dorado,Enrique,um homem que só se interessava po
r mulheres,jogos e seu próprio bem estar.
Doña Luisa, esposa de Phillip e mãe de Juan,Enrique e Violetta,também lhe parecia eg
oísta e perigosa,apesar de suas boas maneiras e sorrisos.Phillip Navarro merecia m
ais que isso.
Percebendo que distraído em seus devaneios,não ouvira o que o anfitrião lhe dissera,Ra
fael decidiu ser franco:
-Desculpe a minha desatenção,Don Phillip.Esses últimos dias tenho estado com a cabeça e
m outro mundo.Apaixonei-me por uma jovem e não consigo pensar em mais nada além diss
o.
Phillip Navarro riu.
-Eu entendo.Também estive apaixonado uma vez.
-Por doña Luisa?
O homem de cabelos grisalhos balançou a cabeça com tristeza.
-Não eu fui casado antes a muito tempo.-Seus olhos ficaram marejados,como se o ass
unto ainda fosse muito doloroso para ele.-Minha esposa morreu dando a luz a minh
a linda filha.
-Violetta?
-Não,ela é minha enteada.Minha filha morreu afogada em um acidente quando tinha três a
nos de idade.Infelizmente um descuido da ama custou a vida da minha preciosa men
ina.
Eu nunca superei a morte dela e acho que jamais conseguirei.
Houve então uma longa pausa,enquanto Phillip se recompunha.
-Não falemos mais disso,foi há muitos anos.
Eu vim convidá-lo para cavalgar comigo.
-Seria uma honra.-Rafael aceitou de imediato,seguindo seu anfitrião.
Ele estava ansioso para ver os cavalos andaluzes de Phillip Navarro.Talvez ele p
udesse convencê-lo a vender dois de seus animais.Podia imaginar como Alicia ficari
a surpresa quando ele levasse cavalos tão maravilhosos de presente.
No caminho até os estábulos,Phillip se mostrou interessado no jovem amigo de seu ent
eado.Ele perguntou muitas coisas a Rafael,terminando em:
-Conte mais sobre a jovem por quem se apaixonou,qual é o nome dela?
-Alicia.
Rafael sorriu,mas o sorriso congelou-se ao ver Don Phillip empalidecer.Sem enten
der o que havia acontecido,tocou-o no braço.
- Eu estou bem - Phillip assegurou É só que ...este nome...Meu Deus era o nome da mi
nha filha! Alicia.Por um momento eu...que tolo que sou...Não adianta tenho que esq
uecer o passado.-Phillip apressou o passo,pedindo que Rafael o seguisse,e Alicia
foi esquecida.
Rafael entrou na elegante e espaçosa sala de jantar dos Navarro, depois de uma
revigorante cavalgada.Os cavalos andaluzes de Philip eram realmente magníficos.
Ele tinha gostado de cavalgar ao lado de Don Phillip e descobriu que os respeita
va mais do que a qualquer outro homem,com possivelmente exceção de Rudolpho.
Aqueles eram homens sábios e honrados e ,Rafael tinha certeza de que se um dia ele
s se conhecessem,simpatizariam um com o outro de imediato.
-Como está bonito señor Rafael- disse doña Luisa,medindo-o de alto a baixo como se ele
fosse um garanhão e ela,uma possível compradora.
Desde que ele chegara, a mulher havia deixado claro que faria todo o possível para
casá-lo com a filha, Violetta, uma jovem parecida com a mãe.
Rafael sabia que tinha de tomar cuidado.
Sorrindo, Luisa Navarro indicou-lhe uma cadeira vazia ao lado de sua filha na me
sa. Rafael obedeceu.
-Boa noite, señor de Villasandro - cumprimentou-o Violetta Dorado, abrindo e fecha
ndo as pálpebras rapidamente e, em seguida, baixando os olhos com modéstia, como as
moças espanholas eram ensinadas a fazer na presença de um homem.
Como ela era alta e de compleição grande, esses trejeitos a faziam parecer uma tola.
Usava um vestido verde-esmeralda, bordado em dourado, e um excesso de jóias, talv
ez para compensar seus traços pouco atraentes. O verde da roupa a fazia parecer ma
is pálida do que já era.
Rafael percebeu que a moça, assim como seu irmão Enrique, tinha um nariz muito proem
inente; o cabelo negro estava preso em um penteado que fazia com que o nariz par
ecesse ainda maior.
Ele também pensou em Alicia. Violetta seria o tipo de moça que seu pai escolheria pa
ra se casar com ele. Só de pensar nisso, ficou irritado. Não havia lugar para o amor
no mundo?
Fui um tolo de abandonar Alicia.
Imaginar que talvez nunca mais a visse o atormentava.
Definitivamente, não poderia viver sem ela.
- Señor, algo errado?
Violetta havia notado seu cenho franzido e o olhava com curiosidade. Rafael sent
iu uma certa simpatia pela jovem. Ela não era culpada pela forma como a mãe agia.
- A senhorita está linda - mentiu ele.
Um sorriso radiante foi o que recebeu em resposta.
Violetta tinha os lábios cheios, os dentes regulares e brancos como perolas. A bo
ca era sem duvida o seu ponto forte ,ela deveria sorrir mais.
- Obrigada pelo elogio.-ela agradeceu com suavidade, baixando os olhos, novament
e modesta como convinha a uma senhorita. Rafael percebeu que ela o achava atraen
te e sentiu pena da moça.
Não posso casar,já sou casado,respondeu em pensamento.
Cercando-o como uma ave de rapina Luisa Navarro falava sem parar sobre as qualid
ades da filha.Violetta sabia tecer,Violetta sabia cozinhar,Violetta sabia costur
ar.Violetta aceitaria o marido escolhido pelos pais,sem nunca questionar o seu p
róprio coração,pensou ele.
Ele também teria agido assim antes,foi obrigado a admitir para si mesmo.Porem,não ma
is.Novamente ele se lembrou de como tinha sido tolo.A felicidade era frágil, e tal
vez tivesse destruído a sua ao partir...
- Os escalopes não estão bons?- O senhor quase não comeu-Luisa havia interpretado mal
a expressão de Rafael.
- A com ida esta deliciosa. Mas não estou com muita fome. Rafael levou a colher ao
aos lábios para agradar a anfitriã.
_ Depois de nossa cavalgada,estou tão faminto como meus cavalos.-Phillip riu pisca
ndo para Rafael.Ele entendia as intenções da esposa e se divertia com a situação.-talvez
nosso hospede tenha medo de perder sua liberdade.
Luisa lançou um sorriso para Rafael,um sorriso que se limitava aos olhos e não chega
va aos olhos.Rafael se perguntou o que Phillip Navarro havia visto naquela mulhe
r.Formavam um casal muito diferente.Teria sido um casamento arranjado?Ele observ
ou a mulher.Doña Luisa parecia ter sido bonita em sua juventude.
O casal mantinha aparência de cordialidade para os outros,contudo Rafael percebia
a infelicidade do marido.
-Então,gostou dos meus cavalos?-perguntou o anfitrião, sorrindo, depois de algum tem
po. - Imagino que Juan ...
- Padre Dorado, Philip - corrigiu dona Luisa. - Meu filho e um sacerdote da Sant
a Igreja.
-Padre Dorado, meu querido enteado - corrigiu-se Philip,já sem sorrir. - Ele lhe f
alou de nossos touros, Rafael?
-Não.
-Crio animais para as touradas de Madri. Os melhores touros de toda a Espanha. É u
m passatempo que se tornou rentável. Temos touradas aqui em Salamanca todos os sábad
os. Vamos juntos a uma delas para você ver que ótimos touros vem da minha fazenda.
- Eu gostaria muito.
Rafael não gostava particularmente de touradas, mas seria uma boa oportunidade de
andar entre o povo e ouvir o que Torquemada andava fazendo.
- Nós iremos, então.
-Você e os seus touros - resmungou Luisa. - As vezes acho que você lhes da mais atenção
do que a mim, que sou sua esposa.
-É por que eles não me incomodam com suas línguas maliciosas - Philip Navarro retrucou
. - Mas não vamos discutir a mesa. Nós temos um convidado, Luisa.
Foi então que Enrique entrou em cena, atravessando a sala como uma tempestade, a v
oz alta rompendo o silencio.
- Aquele padre idiota! Voltou a fazer isso!
Todos ficaram olhando para aquele homem vestido de vermelho.
-Fez o que? - perguntou Philip, aborrecido com a interrupção.
-Pegou outro mendigo. Ele deve achar que e algum tipo de santo, enquanto ele gas
ta o nosso dinheiro. Eu o lembrei disso!
- Não é nosso dinheiro, é meu dinheiro. Quantas vezes tenho que lembrá-lo disso? Você não t
m nada que interferir com o padre Julio.
Luisa tomou imediatamente as dores do filho e ficou contra o marido.
- O dinheiro pode ser seu mas com cada moeda que dá para aquele padre gordo você n
os empobrece.
Phillip lançou um olhar de desculpas para Rafael,envergonhado dos modos de sua famíl
ia.Estava obviamente furioso,mas controlou a ira para justificar:
-talvez uma lição de humildade e fome fosse boa para você e seus filhos.Você esqueceu de
antes de casar comigo,vocês também passaram fome?como podem então serem tão insensíveis c
om os menos favorecidos pela sorte?
Depois de censurada pelo marido,Luisa se levantou e saiu da sala.Antes,porem deu
uma olhada para a filha,porem a jovem não a seguiu,o que fez Rafael imaginar que
talvez muitas vezes ela se sentisse dividida entre os pais.
-Não pretendia irritá-lo-desculpou-se Enrique,sorrindo e fazendo uma mesura para o p
adrasto.-Eu só queria aconselhá-lo pai.Caridade é uma virtude importante,como disse a
nossa nobre Rainha,mas é preciso tomar cuidado para não se tornar,no futuro,um pedin
te também.Nenhum de nós pode alimentar todo pedinte e todo cigano que anda por nossa
s ruas.
Rafael enrijeceu-se quando ouviu a palavra cigano .Enrique a havia pronunciado com
repugnância.já não tinha simpatizado antes com aquele homem de cabelos negros e nariz
de águia e passou a gostar menos ainda.
- Duvido de que o senhor encontre muitos ciganos pedindo comida. Eles são um povo
nobre e orgulhoso,e cuidam uns dos outros .Talvez nos pudéssemos aprender algo com
eles.
-E o que você sabe sobre os ciganos?-perguntou Enrique .
- Eu vivi entre eles.
- Viveu entre eles? Nunca imaginei.
- Uma jovem cigana me salvou de um afogamento e foi bondosa comigo. Eu, infelizm
ente, antes tinha os mesmos preconceitos que você. Mas agora eu sei que estava err
ado.
- Então você também os defende - Enrique concluiu com um sorriso debochado. - Como e q
ue você e meu irmão podem se entender tão bem? Ele detesta tanto ciganos quanta judeus
.
Rafael percebeu que deveria tomar cuidado. Em silencio, ouviu o homem contar a h
istoria da jovem cigana que havia encontrado com o padre Julio.
-Ela era, tenho que admitir, uma beldade, Mas fugiu, o que e uma pena. Eu a teri
a feito trabalhar muito para ganhar alguma coisa. Seria mais útil para mim do que
para um padre castrado. Mas não importa, já que viajo ainda hoje para a Corte da rai
nha Isabel.
Rafael sentia como se as paredes estivessem se fechando ao seu redor, enquanto l
utava para controlar a raiva. E se fosse Alicia e não alguma pobre mulher?
Eu o partiria em pedaços, pensou, agradecendo a Deus por Alicia estar a salvo com
Rudolpho. Ela estava a quilômetros de distancia, mas alguma coisa o levava a quere
r ajudar a cigana de que Enrique falara. Ele se lembrou de Zuba, tão quieta e sere
na. E se a pobre garota fosse como ela? Por quanta tempo poderia sobreviver? Ele
pediria que o padre o ajudasse a encontrá-la e lhe daria dinheiro suficiente para
mantê-la longe das garras de homens como Enrique Dorado.
Rafael passou uma noite agitada, assombrada por sonhos e visões. Alicia estava par
ada á sua frente, com o vestido de noiva, fitas e flores enfeitando seus longos ca
belos escuros. Sorrindo, ela andou em sua direção, murmurando palavras de amor. Ele
tentava desesperadamente tocá-la, mas a cada passo que dava, ela estava mais longe
, ate desaparecer na neblina, deixando-o sozinho. .
- Alicia, volte!- murmurou,Rafael, debatendo-se entre os lençóis. Faces malévolas olha
vam para ele.
Juan Dorado, com as vestes negras de sua ordem religiosa, falava "cigana", 'como
se fosse uma maldição; Enrique Dorado, vestido da cor do sangue, ria e tentava agar
rar Alicia. Rafael olhava, impotente, enquanto as roupas dela eram tiradas.
- Cigana. Judeu. Marrano. Converso. Mande-a para a fogueira! - gritavam as vozes
no seu sonho.
Rafael acordou assustado, o coração disparado no peito.
Ele sabia o que o sonho significava. Ciganos e judeus logo estariam ameaçados. Já ha
via pessoas que chamavam os ciganos de blasfemadores e ameaçavam lhes cortar as líng
uas. Os ciganos ainda não estavam sendo presos ou punidos, mas isso era apenas uma
questão de tempo.
Ele havia deixado Alicia para ajudar pessoas que nem conhecia. Teria sido um ato
nobre ou tolo?
Alicia entenderia? Ele não a tinha abandonado por vontade própria, ainda que, talvez
, a principio, não a tivesse considerado boa o suficiente para ser sua esposa e qu
e aquela cerimônia pagã não tinha significado nada.
Agora, porem, percebia que ela era sua esposa, tanto quanto se um padre tivesse
feito 0 casamento. As preciosas memórias da paixão que eles haviam compartilhado viv
eriam para sempre em seu coração.
Alicia era o seu amor, a sua vida.
Rafael ouviu vozes alteradas no andar de baixo. Philip e Luisa estavam discutind
o. Philip informava que iria para a cidade, para longe das farpas da esposa. Em
seguida, o bater de uma porta reverberou pela casa. Era esse o tipo de casamento
que ele queria? Um casamento com alguém da sua própria gente? Rafael tinha certeza
de que ele só queria Alicia. Seria tarde demais. Ainda poderia acha-Ia?
De repente compreendeu o que tinha que fazer.Saltou da cama e se vestiu apressad
o.Tinha que encontrar a cigana que Enrique havia mencionado e enviá-la até a caravan
a de Rudolpho com uma mensagem para Alicia.Ele pediria perdão e imploraria que ela
fosse para León a fim de se encontrar com ele.A garota cigana certamente o ajudar
ia.Alicia havia dito varias vezes que todos os ciganos tinham o habito de se aju
dar e se mantinham sempre em contato uns com os outros.
Enquanto se vestia,ele se censurou repetidas vezes.Havia encontrado a felicidade
e o amor,e os tinha desprezado.Só depois percebera que para cumprir sua missão,salv
ar vidas e tornar-se um herói,ele precisava de Alicia ao seu lado.Não conseguia pens
ar direito sem ela ao seu lado.A única coisa importante na sua vida era Alicia.
Ser testemunha da infelicidade de Phillip Navarro no casamento tinha feito com q
ue compreendesse a verdade.Ele tinha visto uma amostra do futuro que o esperava
se perdesse a mulher amada.

CAPITULO XIV

Com os braços apertados em volta do corpo, Alicia tentava desesperadamente manter-


se aquecida no abrigo que havia encontrado para aquela noite debaixo de uma peq
uena carroça. Com fome, fechou os olhos e foi tomada por uma onda de desespero.
Talvez não valesse a pena lutar tanto para sobreviver .
Seria muito mais fácil dormir e não acordar mais.Ninguém se importaria com o que acont
ecesse com ela.Rafael talvez até já tivesse se esquecido da esposa.
Lembrou-se que na noite anterior, havia engolido o orgulho e pedido esmola para
comprar pão, mas ninguém tinha mostrado nenhuma bondade.
Ninguém, a não ser padre Julio Pensar que havia uma pessoa que realmente se importav
a com ela animou-lhe o espírito. Alicia passou a mão pelos cabelos e percebeu que de
veria estar desgrenhada. Ela, que era sempre tão limpa não tinha tomado um banho des
de que tinha chegado a Salamanca.
Estava suja e mal trapilha.
Por que os gorgios odiavam tanto os ciganos? Um cigano nunca veria outro ser hum
ano morrer de fome sem lhe oferecer pão. Exceto por padre Julio, os gorgios eram c
ruéis. Ela se sentiu tentada a procurá-lo na igreja, mas a lembrança do
homem de vermelho a conteve.
Ela não sabia o que fazer. Não deveria pensar em morrer, Rudolpho quereria que ela s
obrevivesse, Decidiu então que iria sobreviver, apesar dos gorgios.
Alicia acordou com o canto dos galos e o som distraiu-a por alguns minutos. Esfr
egando os olhos sonolentos, ajoelhou-se e limpou os fiapos das roupas com as mãos.
Depois espiou fora do esconderijo. As mas estavam desertas, a cidade ainda dorm
ia.
Onde havia galos, havia galinhas e comida, concluiu. Seguindo o canto dos galos,
imaginou seu café da manha. Galinhas põem ovos, Ela estava faminta o suficiente par
a pegar alguns. A fome era tanta que ate ovos crus poderiam lhe acalmar o estoma
go. Ciganos não comiam ovos, mas tanto padre Julio quanta Rafael haviam se delicia
do com eles.
Alicia achou as galinhas em um celeiro ao lado de uma casa de madeira no fim da
rua. Conseguiu chegar ate Ii sem ser vista.
- Quietinha ... Pare com isso ou vão me encontrar - disse ela, suavemente, pondo o
s dedos debaixo de uma galinha. Pegou um ovo, quebrou a casca e deixou a substânci
a morna e escorregadia lhe encher a boca. O gosto não era bom, mas ela engoliu rap
idamente e pegou outro. Estranho como esse não parecia tão ruim quanta o primeiro. S
eria possível começar a gostar de ovos?
Sentiu-se mais forte depois de ter comido, mas não gostava da idéia de pegar algo qu
e não era seu. No entanto, havia muitos ovos ali, e as galinhas reporiam os que el
a tinha comido. Ela ia pegar outro quando um grito, na porta, a assustou.
- Ladra cigana! Minhas galinhas, minhas galinhas! Parada na porta do celeiro est
ava uma mulher gorda, bloqueando uma possível fuga.
-Não estou roubando as galinhas, .. - Alicia tentou explicar - Por favor, não quero
suas galinhas. Eu estava com fome. Sò. peguei alguns ovos :- disse ela, ficando de
pé. Agora entendia por que RUdolpho havia proibido o roubo de galinhas dos gorgio
s.
- Mentirosa! Você sera punida por isso.
A mulher correu para a rua, em busca de um soldado para prender a invasora, mas
Alicia a empurrou com a força nascida do desespero. Não poderia deixar que aqueles g
orgios a prendessem. Ela era livre, era cigana.
Assim, saiu correndo pela rua de pedregulhos por entre as casas, sendo perseguid
a por dois homens. Algumas vezes tropeçava e caia, machucando as pernas e as mãos, m
as se levantava e continuava a correr. De repente, porem, atravessou o caminho d
e um homem montado em um cavalo.
- Saia do caminho do señor Navarro, cadela cigana! gritou um soldado.
Entretanto era tarde demais, Alicia tropeçou em uma pedra solta e caiu no chão a pou
cos metros do cavalo. A queda a deixou sem forças para levantar de novo. A única alt
ernativa que lhe restava era encolher-se e aguardar a morte se aproximar Junto c
om o barulho trovejante dos cascos dos cavalos.
-Madre de Dios! - Philip Navarro viu a moça no seu caminho e tentou desesperadamen
te dominar o cavalo, mas não conseguiu.
A julgar pela pequena distancia e a velocidade do animal, Phillip compreendeu q
ue a única maneira de salvar a moça sena pulando sobre ela, arriscando que os cascos
do cavalo poderiam machuca-Ia.
- Cristo abençoado!
Depois do salto, ele teve medo de olhar para trás, mas, era preciso. Ao virar a ca
beça, viu que a moça não estava ferida .Se ele fosse um cavaleiro menos hábil ela estari
a morta. Phillip desmontou e correu para ajuda-Ia.
- A señorita está bem?
Ela estava tão pálida e magra que o coração do nobre se compadeceu. Seria essa a garota
de quem Enrique tinha falado?Ele gentilmente limpou-lhe o rosto com seu lenço.
- Eu não a vi. Você correu na frente do cavalo, não tive como ...
- Eu estou bem - Alicia assegurou, enquanto olhava ao redor, procurando seus per
seguidores - Por favor, preciso ir. - Ela tentou se levantar, mas Philip a segur
ou.
- Você pode estar machucada, deixe-me ajuda-Ia. - Foi então que olhou direito para o
rosto de Alicia. - Madre de Dios! - exclamou ele novamente, olhando-a como se e
stivesse vendo um fantasma. O coração dele parou por um momenta e recomeçou a bater fu
riosamente .
A cigana era linda! A mulher mais linda que ele já havia visto. Seu cabelo, escuro
, de um castanho profundo com reflexos avermelhados por conta do sol da manha, o
fazia se lembrar da mulher que tanto amara. O nariz pequeno e reto, a pele tão ma
cia, tudo o fazia pensar em outro rosto. Mas eram os olhos, aqueles olhos verde-
esmeralda que o olhavam com tanto orgulho, que foram sua perdição. Olhos que o tinha
m assombrado durante anos.
- Por favor, deixe-me ir. - Alicia estava assustada com a forma como aquele home
m a olhava.
- Catalina! Catalina! - Arquejou ele .
Por um instante, Philip achou que estava enlouquecendo.
Catalina estava morta. Haviam se passado dezessete anos. Sua esposa estava morta
. Aquela não poderia ser sua amada esposa, mas ... A semelhança era impressionante,
deixando-o tremulo e tornado por mem6rias comoventes.
- Eu tenho de ir. Eles vão me pegar. .. Por favor. - Alicia tentou se soltar, mas
estava exausta e não conseguiu se libertar das mãos que a seguravam.
Philip Navarro podia sentir o medo da garota, mas não suportava a idéia de solta-Ia.
Era como se ela houvesse trazido de volta outro tempo.
- Catalina...
- Meu nome não, é Catalina.
- Claro que não é ... - Philip desculpou-se, os olhos nublados pela tristeza: - É que
você me faz lembrar da minha esposa. Eu a amava, mas ela morreu e eu não consigo esq
uece-Ia, por mais que tente.
- Sinto muito que ela tenha morrido - Alicia lamentou comovida pela tristeza del
e, e tocando-lhe o ombro. Ela se senti a estranhamente próxima daquele homem, e não
imaginava por que. Ele era um gorgio, um completo estranho, e ainda assim, ela l
he ,contou a historia dos ovos e das galinhas, de sua inocência e do medo de ser p
resa.
Por que se sentiu tão feliz quando encontrou compreensão nos olhos daquele estranho?
- Eu sei que você não queria roubar as galinhas - murmurou ele. - Venha comigo. Não vo
u deixa-Ia aqui nas ruas para sofrer novamente com a ignorância das pessoas.
Alicia olhou para o bonito rosto do homem, mais liso do que seria de se esperar
de um homem daquela idade.
- Não posso aceitar sua caridade, senhor. Sou cigana, pertenço a um povo livre.
- Não pretendo aprisiona-Ia - garantiu-lhe Philip.
- Poderá ir e vir como quiser, mas vai ter comida e abrigo, assim como a minha pr
oteção, se quiser.
- Vou trabalhar peia minha comida e hospedagem _ disse ela, olhando-o nos olhos
com determinação e orgulho.
- Se você fizer questão. Mas, por favor, venha comigo. Os olhos dele eram azuis e b
ondosos e contrastavam com o bronzeado do rosto. Alicia decidiu que ir com ele e
ra a coisa certa a fazer.
Ajudando-a a subir no cavalo, don Philip se sentiu jovem novamente.
Alicia segurou na cintura do nobre gorgio de cabelos prateados e os dois cruzara
m a cidade a galope, ignorando as expressões chocadas das pessoas, diante do estra
nho espetáculo do orgulhoso cabalero com a cigana maltrapilha. Alicia tinha urna s
ensação esmagadora de que fora 0 Del que tinha enviado aquele homem para salva-la.
Eles saíram da cidade e Alicia arregalou os olhos quando a enorme casa rodeada por
urna cerca de ferro apareceu no caminho. Parecia urna visão surreal criada pela f
ome ou pela loucura.
- Está é minha casa - murmurou o homem, com orgulho.
Philip ajudou-a a descer do cavalo em frente aos estábulos. Enquanto se dirigiam p
ara a casa, Alicia olhava ao redor, em duvida sobre se deveria ter aceitado o co
nvite para estar ali.
Ela não o conhecia. Embora don Philip tivesse alguma coisa que a fazia ter certeza
de ter tornado a decisão certa.
- Você vai gostar daqui - assegurou Philip. - Não lhe faltara nada.
havia balcões no primeiro andar com a mesma grade de ferro que cercava toda a casa
. Uma trepadeira espalhava-se pelas paredes da casa, tingindo-as de verde.
- Linda! - Suspirou Alicia ao ver uma escultura de marfim de um anjo nu, que gua
rdava uma fonte ao lado da entrada da casa.
- Foi esculpida em Veneza - informou Philip, caminhando com o passo ágil de uma ju
ventude recém- descoberta em direção a entrada da casa.
A porta foi aberta par um rapaz mouro de turbante branco, que sorriu, os dentes
contrastando com o tom moreno de sua pele.
-Hadaj, diga a Juanita para preparar um prato de figos e queijo. E mande água para
um banho para esta jovem.
Ela será nossa hóspede.
O mouro curvou-se silenciosamente e saiu para cumprir as ordens.
- Sua convidada? - Alicia murmurou. - Não, não. Eu não posso viver aqui sem pagar pel
a casa e comida.
Ela ergueu o queixo, desafiadora, mas ao olhar nos olhos daquele homem de cabelo
s prateados, seu coração se derreteu. Havia tanta tristeza ali que Alicia esqueceu o
orgulho e perguntou:
- Por que o senhor fica com uma expressão tão triste quando me olha? E por que eu o
faço se lembrar de Catalina? - Estranho como dizer aquele nome a tranquilizava.
Philip meneou a cabeça e lhe contou sobre a morte da esposa durante o parto de sua
filha, do quanto as amava, e de seu sofrimento quando também havia perdido a cria
nça e de como ele quis morrer.
- Mas Deus não respondeu as minhas preces. Eu continuo andando sobre a terra, aind
a que o meu coração esteja morto. - Entendo a sua tristeza - disse ela, comovida. _
Eu também perdi alguém que amava, o meu pai.
- Sinto muito. Talvez possamos, juntos, nos consolar. Um longo silencio se fez,
enquanto Philip a conduziu escada acima e parou em frente a uma grossa porta de
madeira. - Quando eu a vi, senti-me vivo novamente.
- 0 senhor foi bondoso comigo, um nobre de coração.
- Não, na verdade, estou sendo egoísta ao traze-Ia aqui.
Ver você, estar perto de você, me permite fingir, ao menos por alguns momentos, que
Catalina não esta morta. Perdoe este velho homem por usa-Ia dessa mane ira, mas vo
cê me fez voltar a uma época mais feliz. Eu lhe devo muito.
- Mas tenho de lhe pagar de alguma forma - ela insistiu. Os dedos dele cobriram-
lhe os lábios, silenciando-a.
- Não vamos falar mais sobre pagamento. Se você estiver feliz, eu me sentirei muito
bem pago.
Ele abriu a porta e Alicia entrou no quarto. A primeira coisa que notou foi a en
orme lareira acesa e se aproximou rapidamente do fogo.
- Eu mandei que trouxessem comida e agua para 0 banho. Mi casa es su casa.
Assim dizendo, ele saiu.
Sozinha, Alicia se sentiu deslocada naquele quarto enorme. Era tão grande que talv
ez coubessem umas oito ou dez carroças ciganas ali. A estranha cama no meio do qua
rto era quase do tamanho da carroça de Rudolpho. Havia também um grande dossel que a
cobria, como o que tinha sido usado em seu casamento e sob 0 qual ela e Rafael
tinham feito os seus votos. Votos que não significaram nada para ele ...
Alicia pensou em Rudolpho e sentiu que aquilo era o que ele queria para ela quan
do sussurrara a palavra Leon em seu leito de morte. Ela estava no mundo a que pe
rtencia. Mas seria feliz ali?
Explorando o quarto, olhou os tapetes e tapeçarias coloridas, e admirou o intricad
o trabalho manual. Havia quatro mesas com encostos altos ao lado da cama, três del
as cobertas com grossos estofamentos.
Para que serviriam aquelas mesas? Uma senhora entrou no quarto carregando uma ba
ndeja quase transbordando de comida. Depois de coloca-Ia sobre a mesa vazia, ela
apontou para uma das cadeiras acolchoadas.
- Sente-se e descanse, senorita, enquanto come - sugeriu a mulher.
Alicia encheu o prato com figos, queijos e maças, e sentou-se no chão, ao lado de um
a das mesas estofadas, tentando, por orgulho, não comer tudo depressa demais.
-Não - disse a mulher. - Sente-se na cadeira, não no chão.
Alicia respondeu, mantendo a cabeça erguida.
- Estou bem aqui. - Sem saber o que teria feito errado, ela prestou atenção em como
a mulher havia chamado as estranhas mesas: ,cadeiras. Ela lembraria esse nome e
de
que os gorgios as usavam para se sentar.
Ela recomeçou a comer, olhando a mulher. Juanita, como Philip a havia chamado, fit
ava-a com expressão maternal, apesar de ser uma gorgio.
- Depois que terminar de comer, tire estas roupas sujas e rasgadas - disse ela,
enquanto três garotos traziam baldes de água quente e os colocavam em uma banheira q
ue haviam colocado perto do fogo. - Tome seu banho enquanto eu acho alguma coisa
para vesti-Ia - acrescentou, e saiu do quarto.
Minutos depois, Alicia aproximou-se da tina enquanto se despia. Estava encantada
com o cheiro quase doce da água. Acostumada a tomar banhos em rios e lagos, ela s
e perguntou como fazer com aquele balde gigante. Deveria ficar fora do balde e j
ogar a água no corpo ou entrar na água? Decidindo pela segunda opção, mergulhou a mão e de
scobriu que a água estava muito quente.
Céus, os gorgios estariam tentando cozinhá-la?
Os meninos tinham deixado um balde menor com água fria ao lado da tina e com ela A
licia esfriou a água o suficiente para conseguir entrar na tina. Ainda estava quen
te, mas ela logo se acostumou. Agachou-se e se alegrou com a sensação de estar limpa
novamente, ate ouvir uma voz atrás de si.
Juanita havia voltado.
- Sente-se na tina. Não tenha medo, senorita. E use o sabão para se lavar. Veja. - P
egando um pequeno objeto branco, ela mostrou a Alicia como fazer espuma com ele.
O cheiro do sabão era como o das flores selvagens da floresta na primavera. Alicia
o usou em todo o corpo, dos cabelos aos pés, rindo das bolhas que se formavam qua
ndo se mexia, e limpando os olhos quando a espuma entrava neles.
Ao menos aquele habito dos gorgios ela aprovava. . .
Algum dia vou contar isso para Zuba, e vamos rir Juntas, pensou.
Onde estaria Zuba agora? Será que voltariam a se ver.
Depois de algum tempo, a água ficou fria. Alicia se levantou, pegou a toalha das mão
s de Juanita e se secou .
- Eu achei um roupão nas Coisas de dona Violetta disse a criada, entregando-lhe um
de brocado azul. Apesar de desbotado e gasto, Alicia achou-o lindo e olhou fasc
inada
para os desenhos, traçando-os com os dedos.
- É muito grande para você, mas use-o enquanto não encontro uma roupa melhor - Juanita
completou.
Realmente, era muito grande, mas estava limpo e era quente, e Alicia ficou agrad
ecida. .
-Obrigada, Juanita - murmurou ela, sorrindo para a velha senhora, que lhe retrib
uiu o gesto. .
- Vou deixa-Ia descansar agora - disse a criada, dando uma segunda toalha para e
la enrolar nos cabelos. - Se precisar de qualquer coisa, me chame. O senhor Nava
rro quer que a senhorita se sinta bem. - Ela se dirigiu para a porta, mas parece
u hesitar. Depois, virou-se para Alicia e disse, em voz baixa: - Deixe me avisa-
Ia sobre dona Luisa .Não fique no caminho dela, ou a senorita não será feliz aqui. E s
aiu sem mais nada dizer.
- Dona Luisa. - Aquele nome não lhe era estranho. E por que a deixava tão assustada?
Alicia ainda não a havia conhecido, mas tinha a impressão de ter ouvido esse nome a
ntes. De repente, a alegria redescoberta foi ofuscada por pressentimentos sombri
os.
As portas da igreja bateram, fazendo barulho, e Rafael se censurou por deixar qu
e as emoções o levassem a mostrar tamanho descaso. Mas estava desesperado para encon
trar a cigana e lhe pedir para mandar uma mensagem para Alicia. Sena como procur
ar uma agulha em um palheiro, pois Salamanca era uma cidade grande. Porem ele ti
nha que tentar.
A busca começaria pela igreja, onde Enrique a tinha visto.
- Posso ajuda-lo, meu filho? - Rafael virou-se e viu um padre, cujo rosto redon
do o faziam pensar em um querubim. - O senhor é o padre Julio?
-Sim.
- Por favor, procuro informações sobre a cigana a quem o senhor deu abrigo algumas n
oites atrás. Preciso encontrá-la.
Padre Julio não disse nada, mas sua expressão deixava claro que queria proteger a jo
vem e temia que Rafael tivesse mas intenções em relação a ela.
- Por favor, o senhor tem que me dizer. Juro que não farei nada contra .ela. Preci
so apenas que ela leve uma mensagem para outra cigana, a mulher que eu amo com t
odo meu coração .. Não sou um idiota como Enrique Dorado e não desprezo os ciganos. Por
favor.
- Eu acredito em você, meu filho. Mas, infelizmente não sei para onde ela foi. E uma
pena, porque eu queria ajudá-la. A pobrezinha estava magra, praticamente pele e o
ssos, mas, ainda assim, tão altiva. Ela insistia que não poderia aceitar caridade. E
u a teria convencido a ficar aqui, mas Enrique' Dourado chegou como um tufão, como
o próprio demônio, e a assustou.
- Ele me contou a história. Alguém como ele sem duvida pode.ria assustar ate Deus. V
im aqui com a esperança de que ela tivesse voltado, ou que o senhor tivesse alguma
idéia de onde ela poderia estar. - Rafael lembrou-se de que Alicia lhe dissera qu
e um cigano s6 viajaria sozinho se tivesse sido banido da caravana e perguntou.
- O senhor sabe por que ela estava sozinha? Ela disse alguma coisa mais especifi
ca? Algo que pudesse me ajudar a encontra-Ia? Acha que ela pode ter sido banida
do bando?
- A jovem partiu por sua livre e espontânea vontade, depois da morte do pai, que e
ra o líder da caravana. As ultimas palavras dele a trouxeram ate Leon. Se ele soub
esse o que pobrezinha iria passar, nunca teria feito tal sugestão. Enrique Dorado
não é a exceção, mas a regra. Nos, cristãos, falamos sobre caridade e amor fraterno, contu
do são apenas palavras se não somos guiados pelo coração.
Ele convidou Rafael a ir ate o seu aposento. Apesar de serem dois sacerdotes de
Deus, Juan Dorado e padre Julio eram tão diferentes quanta a primavera e o inverno
, a noite e o dia, mas ambos eram padres, pensou Rafael. Juan Dorado havia escol
hido fazer os votos para alcançar seus objetivos, enquanto aquele padre jovial e b
ondoso era um dos anjos de Deus na terra.
Objetos de arte decoravam as paredes de Juan Dorado, prateleiras de livros preen
chiam as de padre Julio.
- Os livros são os meus amigos - disse o padre, sorrindo. - Acredito que a capacid
ade de ler seja o que distingue os homens dos animais. E ainda assim existem aqu
eles que nos tiram isso, e nos levam de volta aos tempos em que os homens eram c
riaturas ignorantes, para dominá-los continuou ele. - Tenho esperança de que a razão v
ai prevalecer. A inteligência do homem e sua ligação com Deus. - Fazendo um gesto mão, i
ndicou uma cadeira a um canto do aposento. - Por favor, sente-se.
Ele serviu uma taça de vinho a Rafael e acomodou-se em outra cadeira.
- Mas chega de falar sobre 0 que eu acredito. o senhor perguntava sobre a jovem
cigana.
- Eu queria saber se ela tinha sido banida de seu bando. O senhor disse que ela
partiu por vontade própria apos a morte do pai, mas conheço a lealdade dos ciganos u
ns com os outros e não entendo por que ela iria embora.
- Orgulho. Medo. 0 homem que substituiu o pai dela era seu inimigo, e a faria pa
ssar pela' maior humilhação que uma mulher pode sofrer.Ele ameaçou usar o corpo dela q
uando bem entendesse, Pobre criança!Se, ao menos, eu a tivesse ajudado.
- Talvez, se ela encontrar, o senhor tenha a sua chance. Mesmo sem conhecê-la, a h
istoria tocou fundo no coração de Rafael. Ele não podia deixar de pensar que, se não fos
se pela piedade de Deus, Alicia poderia ser essa jovem. Caso Rudolpho morresse e
Stivo assumisse seu lugar, ela também teria que enfrentar um poderoso inimigo.
- É preciso encontrá-la antes que seja tarde demais. No dia que ela veio aqui, ela
havia escapado por pouco de uma multidão. Penso muito nela e, nos meus sonhos, vej
o aqueles olhos verdes brilhantes me pedindo ajuda - o padre lembrou.
- Olhos verdes? - perguntou Rafael, como se alguém apertasse seu pescoço. Uma cigana
de olhos verdes era uma raridade, mas seria tolice pensar que ... - Qual era o
nome dela?
- Era um nome estranho para uma cigana, mas, ela não é realmente cigana. Parece que
o pai a adotou. Ele lhe revelou a verdade no leito de morte. Que choque deve ter
sido! E as pessoas aqui em Salamanca a trataram com muita crueldade. Ela me dis
se que jamais poderia viver entre o seu povo. Pobre Alicia, dividida entre dois
mundos.
- Alicia? - Rafael arfou, com receio de se mover, receio de respirar. - Não, não pod
e ser.
- Esse era o nome dela, meu filho. Lembro-me muito bem quando ela o pronunciou -
disse padre Julio, levantando-se e pondo a mão no ombro do jovem. Subitamente Raf
ael empalidecera. - Você está bem?
- O pai dela ... o senhor se lembra do nome do pai dela?
- Deixe-me ver ... - disse ele, fechando os olhos e pondo a mão na testa. - Ricard
o ... Ramondo ... não, Rodrigo ...
- Rudolpho?
- Rudolpho! Ah ... sim! Era Rudolpho mesmo.
- Madre de Dios! - Em choque, Rafael exclamou em voz alta.
Era ela, a sua Alicia. Tinha que ser, mas, no fundo, ele tinha esperança de que não
fosse, porque pensar que a tinha abandonado a tal destino era mais do que ele po
deria suportar.
- De onde ela era? Ela disse de onde era a caravana dela?
- Das proximidades de Toledo. Ela falou de uma floresta. - De repente, padre Jul
io percebeu o motivo de Rafael fazer tantas perguntas. - Por acaso, você a conhece
? Era dela que você estava falando. Sim, a mulher que você disse amar. - O padre men
eou a cabeça. - Ela tinha tanta tristeza nos olhos. Eu a via chorando, mas ele dis
se que tinha sido por causa da cebola ... Eu devia saber que seu coração estava part
ido.
O padre olhou para um ponto distante por um momento, e quando voltou o olhar nov
amente, Rafael não estava mais lá.

CAPITULO XV

A cabeça de Rafael não parava de girar enquanto ele cavalgava pelas ruas de Salamanc
a. Alicia! Ele tinha que encontrá-la.O que ele tinha feito? O vento parecia soprar
a resposta no seu ouvido:
Abandonara a única mulher que ele já tinha amado, deixando a mercê do pior dos destino
s. Seu amor cigano a única mulher que ele queria como esposa, perambulava sozinha
e com fome pelas ruas de Salamanca.
O peso da culpa fazia com que uma serie de imagens passasse por sua mente, Alici
a encolhida em um beco escuro com fome e frio; sendo insultada e agredida por um
a multidão. Ele tinha que encontrá-la o mais rápido possível! Por Deus, Rudolpho tinha m
orrido! Pensar nisso era como se uma faca atravessasse seu coração. Um homem orgulho
so sábio e nobre,cujos únicos pensamentos estavam voltados para a felicidade da filh
a.
Pobre Alicia, passar por tamanha tristeza sem ser confortada pelo mando, Maldit
a a hora em que ele havia partido com o irmão, em vez de dar ouvidos ao seu próprio
coração. Agora o sofrimento de Alicia seria a sua punição.
- Alicia' - O grito de Rafael se misturou ao vento.
Como ele pudera pensar que seria fácil encontra-Ia? Havia muitas ruas em Salamanca
e seria preciso procurar em cada beco, igreja e casa.
De repente, Rafael entendeu o que havia acontecido.
Rudolppo tinha certeza de que estava morrendo. Tinha sido por isso que fizera qu
estão de casar a filha, para que ela fosse protegida da crueldade de Stivo.
Claro, Rudolpho tinha visto a luxuria nos olhos do cigano, e encontrara um jeito
de manter Alicia a salvo. Tinha confiado a ele seu maior tesouro, e ele, cego p
or suas verdades, traíra a confiança do líder cigano.
Será que Alicia o perdoaria algum dia? Bem, antes era precise perdoar a si mesmo.
Rafael passou o dia cavalgando, correndo e andando pelas ruas tortuosas e pelos
becos da cidade, parando pessoas que onde passava, batendo em todas as portas, o
usando ter esperança de que encontraria alguém que lhe dissesse ter visto uma cigana
. Ele se agarrava a esse fio de esperança, por mais frágil que fosse.
Vendedores e comerciantes não escapavam de suas perguntas, assim como os pedintes.
Muitos se lembravam de ter visto uma jovem cigana dias antes, mas ninguém sabia s
e ela ainda estava na região do mercado.
Ao anoitecer, Rafael se rendeu ao fato de que não havia encontrado sua Alicia. Mas
ele continuaria a procurá-la e, enquanto isso, recusava-se a voltar para o luxo e
o conforto da casa dos Navarro e a gastar 0 dinheiro que tinha nos bolsos para
comprar comida.
Alicia estava em algum lugar naquela cidade, maltrapilha e faminta. Como ele pod
eria comer, sabendo que seu amor estava com fome? Como teria coragem de procurar
o conforto de sua cama, sabendo que ela dormia em algum beco sobre pedras duras
e frias?
Os sinos de uma igreja próxima soaram oito badaladas enquanto Rafael caminhava pel
as ruas, depois de ter deixado seu cavalo em um estábulo para passar a noite.
A parte da cidade que ele escolhera para procurá-la estava repleta de ladrões, prost
itutas,soldados sem sorte e pessoas arruinadas pela bebida. Sem duvida um lugar
perigoso para um nobre, mas era a única parte da cidade que ofereceria refugio par
a uma cigana, e ele esperava que Alicia estivesse ali para passar a noite.
Desviando-se de um bêbado e com a mão na espada o tempo todo ele olhava ao seu redo
r. Sombras escuras cobriam parte da rua como se fossem fantasmas malignos, bloqu
eando toda a luz natural, dificultando sua busca.
Finalmente, cansado, com fome e sede, ele encontrou um lugar para descansar. Apo
iou a cabeça no braço e tentou fugir de seus pensamentos, mas não conseguiu dormir.
Alicia ... o nome dela estaria eternamente gravado em seu coração. O rosto dela, um
adorável sonho que o perseguia.
"Eu sou cigana, gorgio", ele parecia ouvi-Ia dizer, com aquele tom superior de o
rgulho. Uma cigana! Na época pensara se tratar de uma selvagem não domesticada. Ciga
nos, o povo que sua gente desprezava.
Como se enganara ... Tal como aqueles que tinham perseguido sua mãe. Cristãos. Judeu
s. Ciganos. Mouros. Que diferença fazia um nome? Amar, respirar, casar, cuidar dos
filhos, chorar a perda dos entes queridos. Não eram todos humanos, no fim das con
tas?
Cigana! Se Alicia fosse filha de um nobre, ele a teria deixado para buscar o seu
destino em Toledo?
Cigana! Era uma palavra da qual ele também havia zombado como um tolo. Ainda assim
, existia algum homem melhor do que Rudolpho? Alguma mulher que merecesse seu am
or mais do que Alicia?
Cigana! E mesmo nisso o demônio havia zombado dele, fazendo-o uma vitima de sua próp
ria cegueira. Alicia não era cigana, era como ele.
Que brincadeira cruel! .
- Nãããoooo! - Esquecendo de onde estava e do perigo que o cercava, Rafael gritou como
um animal ferido.
Corria o risco de perde-Ia, a alma mais linda que havia surgido em sua vida. Ima
ginou como Alicia se sentira quando Rudolpho lhe dissera a verdade. Ela teria ch
orado? Ficado enfurecida?Pobre Alicia descobrir que não era realmente uma cigana.
A noite estava fria, e em um esforço para se aquecer, Rafael abraçou os joelhos e os
puxou para junto do corpo, como fazia quando era criança.
Balançando para frente e para trás, lutou contra os demônios que partiam seu coração, mas
só havia um Jeito de vencê-los. Já não pensava mais em Juan Dorado ou em atos de heroísmo
. Resolveu ficar em Salamanca até encontra-Ia. Ao amanhecer ele mandaria uma mensa
gem a don Phllip explicando sua ausência, na esperança de ter Alicia a seu lado quan
do retornasse a casa do nobre cavalheiro.

A luz suave da manha brincou com os olhos de Alicia, que acordou, confusa. Onde
estava? A lembrança dos doces olhos azuis pôs fim ao seu medo ao se lembrar do caval
heiro em cuja casa ela estava. Tinha se deitado sobre um cobertor,no chão ao lado
da cama, porque achou a cama dos gorgios era macia demais.
Espreguiçou-se e olhou ao redor. A grande tapeçaria em lima das paredes chamou sua a
tenção: era uma imagem da floresta, e os seus olhos se encheram de lagrimas. Com a l
embrança da felicidade tranquila em que um dia havia vivido.
Lembrou-se que o passado não existia mais e que deveria aproveitar o momento prese
nte. Limpou as lagrimas dos olhos. O Del tinha sido bom em leva-Ia para aquela c
asa, longe do frio e dos olhares cruéis dos gorgios. Tinha recebido uma nova chanc
e, e deveria estar agradecida.
Uma leve batida na porta!.anunciou a chegada de alguém.
Pouco depois Juanita entrou.
- Senorita, esta acordada? - A mulher olhou, assustada, para Alicia ,deitada no
chão. - A senorita caiu? Esta machucada?
Alicia levantou-se rapidamente.
- Oh, não. Não cai. - Foi tudo o que disse, olhando a bandeja que a mulher carregava
.
- Trouxe leite fresco e pão sovado frito em óleo de oliva e polvilhado com açúcar.
Lembrando-se da noite anterior, Alicia foi ate uma das cadeiras e se sentou na a
lmofada. Não era desconfortável como tinha imaginado. Sorriu para Juanita ao pegar a
bandeja de suas mãos. O pão doce estava delicioso. Ela demonstrou toda sua satisfação l
ambendo os últimos grãos de açúcar dos dedos e, mais uma vez, Juanita a olhou, horroriza
da.
- Não faça isso - repreendeu ela. - Existem panos para limpar as mãos.
- Mas eu só ... - gaguejou Alicia, magoada com a censura. Ela só quisera mostrar sua
gratidão com aquele gesto. Era o costume cigano.
A expressão de Juanita se suavizou ao ver a magoa nos olhos da garota.
- A senorita tem muito o que aprender. Preciso ser paciente. Don Philip disse qu
e a senorita e nossa hospede de honra.
-Eu vou ser como a senhora, uma criada aqui _ disse Alicia, em tom de desafio. -
Vou trabalhar para ganhar minha comida e hospedagem. - Ela.olhou pelo quarto no
vamente, imaginando o que poderia fazer.
- Então, a sua primeira tarefa será se vestir. _ Juanita saiu e voltou.'em seguida c
om uma pilha de roupas. _ Isso vai ter que servir enquanto a costureira não fizer
algumas roupas para você. Estas estão um pouco fora de moda.
Maravilhada, Alicia escolheu uma saia vermelha e um corpete negro, usando-o por
cima de uma camisa. branca. imaginou que aquelas roupas, como o roupão, haviam si
do da mulher que Juanita chamara de dona Violetta e se sentiu muito agradecida p
or ela tê-la deixado usar suas roupas. Depois deveria procurá-la e agradecer, da for
ma cigana.
- Estas roupas eram de dona Violetta quando ela se transformou de uma criança em u
ma mulher - explicou Juanita, enquanto penteava os cabelos de Alicia com um pent
e de madeira, fazendo duas longas tranças. - Ela era uma criança tão doce, até aquela mu
lher envenenar a menina com sua crueldade. Pobre don Philip! A senorita logo ver
a que esta não é uma casa feliz - a criada disse, para depois deixar escapar um susp
iro. - Mas não falemos mais disso. Ele pediu para vê-la logo cedo.
Alicia queria perguntar tantas coisas a Juanita, sobre Catalina sobre o gorgio d
e cabelos prateados, mas a mulher praticamente a empurrou, com mão fieme na sua ci
ntura, para fora do quarto e escada abaixo. Depois de atravessar uma arcada, ela
se encontrou com seu benfeitor.
- Que manha mais agradável! - disse Philip, tomando-lhe a mão e sorrindo com alegria
: - Você dormiu bem?
O cabelo e a barba dele brilhavam como prata ao sol da manha. Alicia olhou-o, fa
scinada, enquanto Philip a estudava com os olhos azuis. Por que aqueles olhos,a
comoviam tanto.
- Oh, sim. Dormi muito bem, obrigada.
- E a roupa que Juanita conseguiu para você realmente lhe caiu bem. Você esta adorável
, Cata ... - Ele começou a chamá-la pelo nome da outra mulher, mas silenciou. - Não. e
u não devo chama-Ia assim, você tem seu próprio nome. Perdoe-me. Como quer ser chamada
?
- Alicia - respondeu ela, prontamente.
Philip empalideceu, e ela se perguntou o que o deixara tão assustado.
- Não, não, não pode ser..·Isso e apenas uma brincadeira cruel do. destino?- disse ele,
com a voz tilo baixa, que Alicia mal podia ouvir. Deus esta zombando de mim. Por
que? Eu sempre fui um homem justo. Por que, então, Ele me apresenta uma mulher. q
ue e a imagem da minha falecida esposa e tem o nome da minha filha, da minha men
ina que se afogou! - Agarrando-a pelos ombros, ele olhou em seus olhos. _ Você men
tiria para mim? Isso é um truque? Uma conspiração para me atormentar?
Os olhos inocentes e arregalados de Alicia o encararam com honestidade.
- Não! - continuou Philip. - Voê não e o tipo de mulher que se associaria a minha espo
sa. E se Alicia é realmente seu nome ...
Ansiosa em agradá-lo, Alicia segurou-lhe a mão.
- Se meu nome o magoa, o senhor pode me chamar como quiser. Não quero feri-lo. o s
enhor tem sido muito bom para mim.
- Alicia - a voz soou suave. E ele pegou a mão da Alicia.
-Vou repetir este nome ate que a dor em minha alma diminua. Alicia. Alicia. - A
dor na expressão dele se dissolveu. - Se qualquer outra pessoa usasse este nome, e
u ficaria bravo, mas o nome lhe cai bem, minha criança.
Philip fez um sinal para que Juanita os deixasse a sós e guiou Alicia ate uma sala
enorme, estudando-a com olhos atentos. Ele a fez se sentar em uma cadeira que e
ra quase tão grande quanta uma cama. Embora fosse de madeira e meio acolchoada, Al
icia achou-a confortável. Mas ela preferiria agachar-se sobre seus calcanhares, no
chão.
-Conte-me tudo sobre você. Você sempre foi cigana? Alicia, então, contou-lhe sua histo
ria desde o começo,falando sobre a bondade com que Rudolpho sempre a havia tratado
, sobre seu orgulho de ser filha do líder dos ciganos, sua felicidade por viver na
caravana. Falou também sobre Zuba, Todero, Mala e Palo, rindo enquanto contava da
alegria de estar com eles. Seus olhos, porem, perderam o brilho ao mencionar St
ivo.
Quando terminou o relato, Philip sabia inclusive sobre o gorgio que havia despe
daçado o seu coração.
- Foi por causa do gorgio que Rudolpho, meu pai, morreu - disse ela com amargura
. - Ele tentou cavalgar atrás dele para trazê-lo de volta, mas seu coração ...
- E depois que ele morreu, você deixou seu povo .
- Stivo tornou-se o novo líder, e eu não podia ficar lá,sabendo que ele era meu inimig
o. O que ele queria era impensável, um insulto que ninguém deveria se atrever a faze
r a uma mulher de sangue cigano. - Os olhos dela se encheram de lagrimas. - Mas
ele sabia que eu não nasci entre os ciganos, que não era realmente filha de Rudolpho
, mesmo que meu pai me amasse profundamente.
Philip segurou a respiração e perguntou, com a voz embargada:
- Você não é cigana?
- Rudolpho me contou antes de morrer, ele sabia que isso partiria o meu coração, mas
eu tinha que saber. - Alicia fechou os olhos, lutando contra as lagrimas. - Ele
disse que uma mulher me levou para o acampamento, uma gorgio. Eu não tinha parent
es e ninguém para cuidar de mim, e ela esperava que os ciganos ficassem comigo: Ao
morrer, Rudolpho disse que eu deveria vir para Leon e descobrir a verdade sobre
o meu nascimento.
- A verdade do seu nascimento .... - Philip a olhava, mas parecia estar a quilom
etros de distancia. Alicia começou a imaginar que sua historia o aborrecia. - Sim,
descobriremos logo as mentiras contadas por outros. - Ao notar o olhar confuso
de Alicia, ele abrandou o tom de voz. - Talvez, com sua ajuda, eu possa espantar
alguns demônios do passado. Você pode me ajudar, Alicia? Pode trazer um raio de esp
erança para a vida de um velho?
Alicia concordou imediatamente e ficou feliz de vê-lo sorrir. A dor desapareceu co
mo que por encanto dos olhos de Philip e ele voltou a ser o homem bonito, forte
e justo como Rudolpho.
Ela ainda o ouviu dizer que a transformaria em uma dama, sem fazer a menor idéia d
a mudança que iria acontecer em sua vida.
Chovia e grandes gotas das lagrimas do Del batiam contra as janelas arredondadas
, enquanto Alicia olhava, frustrada, para a grama verde. Gostaria de estar lá fora
e se senti a presa naquela casa de gorgios, por mais espaçosa que fosse.
Com um suspiro, ela andou ate as janelas e, com a testa encostada contra o vidro
frio, conformou-se em ter paciência. O tempo iria melhorar, e então, ela poderia an
dar no terraço novamente.
Havia flores e plantas em vasos e quando o clima permitia ela passava no jardim
todo seu tempo disponível. Era a ultima ligação com a sua vida cigana.
Se tivesse tido escolha ela teria preferido dormir fora de casa, mas teve corage
m de pedir isso a don Philip, com medo de aborrecê-lo. Ele queria transformá-la em u
ma dama pensou ela, deprimida. '
Alicia não tinha certeza se vivia um sonho ou um pesadelo, porque não era fácil viver
com os gorgios. Eram tantas as coisas que não se podia fazer, tantas regras e regu
lamentos que ela não sabia como os gorgios conseguiam se lembra; de tudo. Mas não se
oporia a nada, pois queria agradar ao homem que fora tão bom para ela. Vê-lo sorrir
valia o preço que tinha que pagar.
Nos três dias que estava na casa de Philip Navarro ele a tratara muito bem, ainda
que, as vezes, ela se sentisse sem jeito com as perguntas e olhares questionador
es. Era como .se ele quisesse que ela recuperasse algo do fundo da memória.
No entanto as perguntas só lhe davam dores de cabeça.
Ela queria lembrar, mas cada vez que parecia que ia conseguir, via-se como que d
iante de uma porta fechada. Talvez O Del não quisesse ajuda-Ia, pelo menos por enq
uanto.
Ela também não tinha certeza de que poderia ser feliz no mundo gorgio, por mais que
tentasse. As vezes ela se perguntava se era urna hospede ou uma prisioneira, mes
mo don Phihilip tendo mantido a promessa de que ela poderia ir e vir conforme su
a vontade.
Alicia evitava os olhos das mulheres da casa, que a olhavam com a mesma hostilid
ade das mulheres de Salamanca. Ela seguia o conselho de Juanita e se mantinha lo
nge da esposa de don Philip, sentindo a inimizade da mulher.
Na verdade, sentia-se mais a vontade com a cozinheira, as criadas e o pessoal do
estábulo. Dona Luisa evitava a companhia dos que considerava seus inferiores, e a
cozinha era o único lugar onde Alicia podia ser ela mesma, agachar-se sobre os ca
lcanhares e ouvir as historias e lendas da Espanha.
El Cid tornou-se seu personagem favorito, uma vez que, de muitas formas, a sua c
oragem a fazia se lembrar de Rudolpho. Talvez os gorgios não fossem tão maus, afinal
...
O som da sineta do jantar interrompeu os pensamentos de Alicia, entristecendo-a
. A primeira coisa que Juanita havia atacado era seu costume de comer com as mãos.
Ela lhe entregara dois objetos estranhos e dissera que eles serviam para carreg
ar a comida do prato para a boca. Sentadas a mesa dos empregados, Juanita lhe in
struíra a imitá-la.
Quanta tolice! Por que os gorgios não comiam com os dedos? Ela se lembrou de que,
na primeira vez que levara comida para Rafael, ele a olhara, chocado, ao percebe
r que teria que comer com as mãos. Ele deveria ter se sentido tão estranho quanta el
a naquele momento.
- Use o garfo para segurar a comida enquanto você corta um pequeno pedaço com a faca
- ensinara Juanita olhando enquanto Alicia tentava usar os estranhos objetos.
Para Alicia era muito difícil usar aqueles instrumentos sem deixar a comida cair n
o colo, e isso a fazia dizer uma imprecação. Foi mais um teste para a paciência de Jua
nita, porque praguejar era totalmente proibido.
"Não pode", "não deve'., "não faça" eram frases que Alicia ouvira muitas vezes nos último
s dias. Mas ela tentava se adaptar porque uma cigana, de sangue ou não, nunca queb
raria uma promessa, e ela prometera a Philip Navarro que ficaria na casa.
Por que havia feito aquela promessa?, perguntou-se certa vez.
Seria porque achava que o homem de cabelos prateados fazia parte de seu destino,
e que 0 Del, em sua sabedoria, queria que ela trouxesse um pouco de felicidade
a ele? Teria sido por isso que ela concordara com o desejo dele de transforma-Ia
em uma dama gorgio?
Não havia amarras físicas que prendessem Alicia entre aquelas paredes, mas era algo
mais forte que portas e correntes. A cada dia que passava, ela se sentia mais af
eiçoada a don Philip. Era a primeira vez que sentia isso desde a morte de Rudolpho
.
Philip Navarro teria sido um bom cigano, ela pensou, sorrindo ao imaginar se ous
aria fazer-lhe esse elogio. Ele se sentiria ofendido, apesar de a intenção ter sido
a do mais alto elogio. Pensando essas coisas, ela desceu as escadas, parando qua
ndo dona Luisa cruzou o seu caminho, com o habitual cenho franzido.
Pobre don Philip, ter uma esposa assim. Não era de estranhar que a casa tivesse um
a atmosfera tão tristonha. A filha também não era melhor que a mãe.
A família de don Philip sentava-se a mesa com rostos tão sérios, que Alicia chegou a p
ensar que estivessem de luto.
Ela tinha perguntado a Juanita, inocentemente, quem havia morrido. O jantar deve
ria ser um momento para o compartilhamento de risos, conversas e musicas. Os cig
anos sabiam como deveria ser.
Ao se aproximar, Alicia ouviu vozes na sala.
- Por quanta tempo você pretende manter essa ... essa criatura nesta casa? - Alici
a reconheceu o tom esganiçado da voz de dona Luisa.
- Por muito, muito tempo - foi a resposta de don Philip.
- Como você se atreve a ir contra a minha vontade?
- Da mesma forma que você sempre se opõe a minha.
A jovem me faz feliz, ela me encanta com suas maneiras naturais. Com ela, eu enc
ontro alegria.
- Mas ela e uma cigana. Ela vai roubar tudo o que temos e fugir a noite.
Alicia estremeceu diante daquele insulto, e sentiu vontade de fazer a mulher eng
olir aquela mentira.
- Ela foi criada por ciganos, mas, na verdade, e de descendência espanhola. Talvez
a linhagem dela seja melhor que a sua, querida esposa. - Havia um deboche na vo
z de don Philip, como que lembrando dona Luisa as suas próprias origens.
- Você se atreve a me insultar. Vamos ver o que acontece quando Enrique voltar da
Corte. Ele vai falar com você e fazê-lo enxergar a verdade. Só espero que você o escute!
Meu filho, Enrique Dorado, e um cavalheiro.
Enrique Dorado ... o nome não era estranho a Alicia, mas ela não se lembrava onde o
havia ouvido antes. Sem duvida, se era filho dessa mulher, ele poderia ser muito
desagradável, pensou, desejando não encontrá-lo.
- Se ele é um cavalheiro, e porque ... - Philip não terminou a frase. - Não vou discut
ir com você. Estou muito feliz para tanto. Eu descobri, minha querida esposa, que
não se deve acreditar em quem mente para alcançar seus objetivos. As Coisas nem semp
re são o que parecem ser.
- Você esta dizendo bobagens. Não entendo o que esta querendo insinuar - disparou Lu
isa.
- Um dia entenderá, dona Luisa. Na hora certa, entendera tudo.
Alicia gostaria de continuar do lado de fora da sala de Jantar, ouvindo a conve
rsa, mas Juanita foi procura-Ia e ela se apressou, saindo dali envergonhada de s
er pega ouvindo atrás da porta. Os ciganos proibiam esse tipo de comportamento. Co
ntudo, Juanita não a repreendeu, de forma que a pratica não deveria ser tão ruim entre
os gorgios. Ela nunca entenderia os costumes deles. Mas, depois de ouvir as pal
avras de desdém de dona Luisa, ela ficou ainda mais determinada a tentar.
Philip Navarro havia dito que ela o fazia feliz, que ela lhe dava alegria, e Ali
cia não o desapontaria. Faria com que ele se orgulhasse dela e, ao mesmo tempo, co
m que sua esposa engolisse as palavras maldosas.
Isso ela jurava, pelos olhos de seu pai!

CAPITULO XVI

Sem fazer a barba e sujo, Rafael de Villasandro não parecia um jovem nobre. Mais p
arecia um pedinte como os que lotavam as ruas de Salamanca,mas não se importava.
Dominado pelo pesar, ele não ligava para sua aparência ou seu orgulho. Tinha procura
do Alicia por toda a cidade, mas só encontrara decepção e derrota. Ela não estava em lug
ar algum, e ele só podia concluir que o pior havia acontecido.
Duas semanas haviam se passado, durante as quais se celebraram o Natal e o Ano N
ovo, mas ele não tinha nenhum motivo para alegria. A mulher que amava havia desapa
recido, aparentemente para sempre.
Se fosse um padre ou monge, ele se chicotearia para se penitenciar de seus erros
, mas encontrou outra forma de autoflagelo: andar pelas ruas, sem casa e com fom
e, como Alicia tinha sido forçada a suportar.
Entretanto, a fraqueza e a fome o dominaram, e como era humano, acabou procurand
o comida. Comprou pão e queijo de cabra de um vendedor na rua. Porem, mesmo manten
do seu corpo vivo, sua alma e coração já não lhe eram de grande valia.
Em sua tristeza, Rafael queria apenas ficar sozinho, deixando de lado os ideais
e o desejo de ajudar outros.
Ele se sentou sozinho em uma taverna escura, apesar de as mesas estarem cheias d
e gente. Era um lugar de encontro para os mais pobres e desafortunados, local qu
e antes ele teria evitado a todo custo, mas pelo qual, agora, sentia-se atraído.
Tomando uma caneca de vinho, Rafael tentava ignorar o barulho de vozes, canecas
e as historias que eram contadas. De vez em quando, porem, alguma frase ou murmúri
o chegava aos seus ouvidos.
- A guerra em Granada acabou.
- Já não era sem tempo.
- Tantas vidas! Mas, pelo menos, a vitoria foi da Espanha.
- Tanto dinheiro! Cristo! Se eu tivesse apenas um milésimo dos florins gastos!
Então a guerra tinha acabado. Pelo menos era alguma coisa para se alegrar. O ultim
o reduto dos mouros na Espanha tinha sido conquistado. O que fariam agora o rei
Fernando e a rainha Isabel? Eles teriam muito para se preocupar, pois todos sabi
am o quanta o pais havia sofrido por causa da guerra.
- Acabo de voltar de Aragão. Houve revoltas por causa da Santa Inquisição e um inquisi
dor foi morto. Ninguém e a favor dessas fogueiras.
Rafael não pode evitar de prestar atenção nas conversas e se lembrou de Juan Dorado. S
eria bom que ele não tivesse apoio, mas não desejava a morte para ninguém.
- Fale por você, Ramon. Eu acho que todos os infiéis deveriam ser expulsos de nossa
terra. E o que fazer com os judeus que estão entre nos?
- Mas eles deram muito dinheiro para a rainha, para ajudar a Espanha a vencer a
guerra.
- Isso só prova o quanto são ricos. Todos são ricos, enquanto homens de León, como nos,
estamos atolados na pobreza.
- As casas deles são cheias de prata e ouro, enquanto nos sofremos.
Aqueles comentários maldosos enfureceram Rafael. Tolos! Eles não conseguiam enxergar
o que estava acontecendo? Agora que os mouros haviam sido derrotados, Torquemad
a se prepararia para iniciar outro tipo de guerra. Aquela inquietação tinha sido sem
eada por agentes da Inquisição, e era só o primeiro passo.
- Torquemada disse que Deus deu a vitoria it Espanha contra os infiéis para que a
Espanha possa ser expurgada de mouros e também de judeus e ciganos.
- Expulsem esses amaldiçoados bastardos!
A ira cresceu dentro de Rafael. Influenciado pelo vinho e por sua tristeza, leva
ntou-se, puxando sua espada, com tal violência que virou a mesa.
- A Espanha tinha que ser limpa de idiotas como vocês! - gritou. Rafael estava def
initivamente em desvantagem, mas precisava dar vazão á sua raiva e já não se importava c
om as consequências. Eram homens como aqueles que haviam feito Alicia sofrer.
- Quem e ele? - perguntou um ferreiro.
- Não sei e não quero saber, ninguém me chama de idiota!
O homem e quatro de seus companheiros levantaram-se e rodearam Rafael, ameaçadoram
ente.
- Retire o que disse, ou sofra por sua arrogância, senor! Antes que Rafael pudesse
dizer alguma coisa, eles o atacaram com garrafas, facas e espadas. O ar se ench
eu de barulhos de espada contra espada e de imprecações de homens lutando. - Ele lut
a como um louco! - alguém disse.
Rodopiando e atacando, Rafael lutava, real mente como que possuído, mas nem mesmo
o melhor espadachim da Espanha poderia lutar contra tantos por muito tempo. Não de
morou muito e ele foi cercado. As expressões dos olhos dos atacantes demonstravam
que não seriam nada gentis.
Rafael conseguira derrotar dois homens e fazer um terceiro fugir, mas outros se
te se aproximavam com a clara intenção de matá-lo.
Apesar de ter se mostrado um oponente terrível, ele se preparava para o pior quand
o, para sua surpresa, descobriu que não estava sozinho.
- Parece que precisa de ajuda, signore! - disse um homem.
Agora eram duas espadas lutando contra os sete. O estranho provou ser um combate
nte hábil, usando sua espada com grande agilidade. Apesar de serem apenas dois, el
es eram melhores espadachins, e logo fizeram com que os oponentes recuassem. Só en
tão Rafael pode olhar para o homem que o salvara, e ficou impressionado com o que
viu. A seu lado estava um homem impressionante, de aproximadamente trinta anos,
vestido no chamativo estilo italiano, com uma túnica sem mangas, listrada de verd
e, laranja e vermelho, uma camisa verde escura e uma calva justa do mesmo tom, s
endo que a perna esquerda era listrada como a túnica. Seu chapéu verde escuro era en
feitado por plumas coloridas. O grosso cabelo mostrava um pouco de prata nas têmpo
ras, o que aumentava seu ar de distinção. Talvez não fosse bonito, mas era um homem di
fícil de esquecer.
- Quem é o senhor? - Rafael quis saber.
O homem fez uma reverencia antes de se apresentar:
- Sou Giovanni Luigi Alberdeci, ao seu dispor, signore. E você?
- Rafael Córdoba de Villasandro. - Eles trocaram um olhar, que foi o suficiente pa
ra que se entendessem. _ Por que o senhor me ajudou?
- Não gosto quando a desvantagem de uma pessoa e tão grande, e não gostei do que estav
a sendo dito. Talvez tenhamos dado a eles algo em que pensar.
- Bem que eu gostaria de acreditar nisso. Eu fui imprudente, mas quando eles fal
aram dos ciganos, tive que agir. Não gosto daqueles que perseguem os outros, sejam
eles judeus ou ciganos. - Rafael abaixou-se para endireitar a mesa que havia de
rrubado, e Giovanni o ajudou. Giovanni Luigi Alberdeci, seu nome me parece conhe
cido.
- Sou apenas um capitão de navio, um negociante veneziano. Tenho vários navios na ba
ia de Biscaia neste momento.
- Baia de Biscaia? O que o traz para tão longe do mar? Por um momento, os olhos de
Giovanni assumiram uma expressão de precaução.
- Eu estava procurando uma pessoa, mas descobri que o destino dele não foi o mais
agradável. E contente-se com isso, pois não vou dizer mais nada.
- Um capitão de navios. Quantos navios o senhor tem?
- Cinco. Trabalho com exportação e importação. Trago vidros venezianos e levo azeitonas,
pimentas, temperos e tecidos.
Cinco navios indo para Veneza, pensou Rafael. Apesar de a responsabilidade de co
nseguir navios para levar os conversos para um lugar seguro ter ficado com Ferna
ndo de Torga, o cartógrafo e navegador, Rafael não podia deixar de perceber que a aj
uda daquele homem poderia ser muito valiosa.
- Todos os seus navios estão na baia?
- Não, Apenas quatro: Fiducios, Fedele, Carita e Onorevole. Fé, esperança, caridade e
honra, as coisas que eu mais prezo.
- Quatro navios.
Seria o suficiente para levar um grande número de fugitivos para Roma ou Constanti
nopla, pensou Rafael. Aquele homem era honrado e corajoso, mas será que se arrisca
ria u receber uma multa de quinhentos florins? Sendo um veneziano, ele era cristão
e o problema dos judeus e dos convertidos não era dele. Ainda assim, Rafael teve
o pressentimento de que Giovanni gostaria de ajudar. Mas como poderia tocar no a
ssunto sem se arriscar? Os espiões de Torquemada estavam por toda parte,porem esse
capitão sem duvida não era um deles.
- Talvez isso não seja da minha conta, mas tenho a impressão de que você tem mais do
que navios na cabeça. Você me parece um homem com problemas. Eu sou um bom ouvinte,
amico mio.
Os olhos escuros inspiraram confiança e Rafael acabou contando aquele homem que ac
abara de conhecer, sobre Alicia e sua busca por ela.
- Então você teme que ela tenha encontrado um destino triste ...
- Quero acreditar que ela esteja viva e que vou encontrá-la novamente, mas temo qu
e isso seja apenas uma fantasia minha. Ela desapareceu e eu sou o homem mais arr
ependido do mundo.
- Acredite em seu coração, não em sua cabeça. As coisas nem sempre são o que parecem. Quan
do duas pessoas se amam tanto assim, o destino sempre sorrira para elas. Você vai
voltar a ver a sua Alicia.
Isso parecia impossível, mas Rafael acreditou. - Rezo para que você esteja certo.
- E, se você não acha-Ia, talvez ela o encontre. Foi o que aconteceu com a minha Is
abela, e ela fez de mim o mais feliz dos homens, mas esta essa e outra historia.
Eles pediram mais vinho e Giovanni prosseguiu:
- Você me pareceu muito interessado nos meus navios.
Por acaso é um marinheiro?
- Marinheiro? Não, eu tenho olivais perto de León. E espero que eu possa usa-I os pa
ra outras coisas alem de cultivar azeitonas. Rafael decidiu arriscar-se e confia
r naquele homem. - Estou interessado nos seus navios porque pretendo ajudar as p
essoas ameaçadas pela Inquisição. Você conhece um homem chamado Fernando de Torga? Ele
e cartógrafo e navegador, melo espanhol, meio italiano, creio que de Veneza, - De
Torga? Eu o conheço. Foi com ele que eu vim encontrar em Salamanca.
- E você o encontrou?
- Então você não sabe - disse Giovanni, com ar de tristeza. - Fernando de Torga foi pr
eso.
- De Torga foi preso? - perguntou Rafael, sentindo o coração batendo nos ouvidos.
- Fale baixo, amico mio. Ele esta sendo interrogado, e só isso. Vamos esperar que
ele não fale demais.
- Você não sabe como os inquisidores agem, Eles podem quebrar um homem como se fosse
uma casca de ovo com torturas. Esses homens amarram cordas nos braços e pernas do
s prisioneiros e os esticam ate que seus músculos sejam dilacerados. Mas essa e a
tortura mais leve que usam. Existe ainda a tortura da água, em que colocam um funi
l na garganta da vitima e ... preciso dizer mais? E essa gente se diz crista! Se
guidores daquele que pregava bondade e amor.
- Já enfrentei perigos maiores. Se tomarmos cuidado e agirmos rapidamente ... - Gi
ovanni olhou para Rafael.A menos que você queira reconsiderar a idéia.
Os olhos de Rafael brilharam febrilmente.
- Como assim? Claro que não! Eu estou mais decidido do que nunca. Pela minha causa
, eu perdi a mulher que amo: Que o bem que eu possa fazer agora seja o epitáfio de
la. A morte não me amedronta. Nada mudou, senor, apenas que eu tenho que fazer as
minhas tarefas e também as de Torga. Vamos marcar o primeiro embarque de fugitivos
para o fim de janeiro. Eu vou lhe dar um mapa detalhado para que saiba exatamen
te onde fica a minha propriedade. Vou descobrir que famílias estão ameaçadas e levá-las
para as minhas terras, onde lhes fornecerei comida e abrigo.
- E eu vou preparar meus ,navios e ajudar você a levar a nossa carga pelo interior
e pelas ruas das cidades. -Levantando o corpo, Giovanni fez um brinde. - Ao nos
so
sucesso. Que Deus esteja conosco.
Rafael hesitou ...
- Você não teme a fúria de Torquemada?
- Não tenho medo de I!tomem nenhum, nem desse padre maluco. Mas temo a injustiça e a
s fogueiras alimentadas pelo ódio. - Os copos tilintaram e ambos deixaram que o vi
nho lhes acariciasse a garganta. Depois, começaram a discutir seus pianos.
- Existe um padre que e dos nossos. - A voz de Giovanni era menos que um murmúrio.
- Padre Julio. Você o conhece? - Sim. Qual e o papel dele nisso tudo?
- Primeiro, ele o ajuda a localizar as famílias que correm perigo. Segundo, vai fa
lsificar os documentos para que possamos sair do porto com nossa carga humana. -
Estendendo-lhe a mão, Giovanni completou: - Que Deus esteja com você.
- E que o acompanhe também.
- E que você encontre o seu amor cigano quando estiver tudo resolvido.
Dizendo isso, Giovanni pôs o seu chapéu emplumado na cabeça e saiu da taverna sem olha
r para trás. Rafael também estava ansioso para sair, pois queria conversar com padre
Julio.
Pouco depois, chegando á igreja, ele encontrou as portas abertas e entrou. Ajoelha
ndo-se, rezou e pediu a Deus o fim da loucura de Torquemada, a segurança das suas
vitimas, o restabelecimento da paz e da tranquilidade á sua terra. Implorou a Deus
que cuidasse de Alicia, onde quer que ela estivesse, e que ele tornasse a vê-Ia.
Ao terminar, sentiu-se livre da culpa e da dor. Sem Alicia ele nunca seria feliz
, mas pelo menos seu coração teria paz novamente.
_ Você voltou, meu filho - murmurou o padre Julio, aproximando-se dele.
- Preciso falar com o senhor. Desculpe-me por ter ido embora tão abruptamente da u
ltima vez.
- Eu entendo. Você a encontrou?
_ Não. Sinto-me como se tivesse ido até o Purgatório e voltado.
_ Vejo que você está muito abatido, mas isso era tão inútil, tão desnecessário ... Se tives
e esperado, teria percebido que Deus age por caminhos misteriosos. Aproximando-s
e mais, o padre pôs a mão no braço de Rafael. - A sua cigana foi encontrada.
_ Alicia? Quando? Onde? - perguntou ele, olhando ao redor á procura de seu grande
amor. - Ela está bem? Onde ela está?
_ Ela não esta aqui. Ela não me procurou. Só ontem eu soube do que aconteceu. A pobre
menina quase foi pisoteada por um cavalo na rua, mas foi salva pelo mais nobre d
os homens, e ela esta hospedada na casa dele.
- Na casa de quem? Diga-me, por favor.
_ Na casa de Philip Navarro. Ele a levou para lá no mesmo dia que você veio falar co
migo.
Primeiro, Rafael arregalou os olhos de susto, depois, jogou a cabeça trás e começou a
rir.
Padre Julio temeu pela sanidade do rapaz.
_ Meu filho, por favor, esta e a casa de Deus.
_ Giovanni estava certo. E eu tenho sido o maior de todos os tolos. Não uma, mas d
uas vezes! Todo o tempo em que eu procurei por Alicia ela estava bem debaixo do
meu nariz. Que idiota que eu fui. Giovanni tinha razão. Quando duas pessoas se ama
m assim, as coisas acabam dando certo.
Explodindo de felicidade, Rafael abraçou o padre e saiu correndo da igreja para ve
r o amor de sua vida.
A luz da lua dançava no telhado, dando a tudo uma aparência mágica. Encantada, Alicia
olhava pela janela da casa de don Philip Navarro. As arvores do pátio murmuravam a
o vento, e ela tentou, por um momento, fingir que estava novamente na floresta.
Mas logo o sonho se desfez. Aquela vida tinha ficado para trás. Agora, a sua vida
era: naquela bela hacienda.
Ela já conhecia bem a casa, pois don Philip a deixava circular por quase todos os
cômodos, na esperança de que ela assim se acostumasse e se sentisse a vontade em sua
nova vida. A casa era construída ao redor de um pátio central, e todos os quartos t
inham um baldio voltado para o jardim.
Quando a primavera chegar, vou poder sentir o perfume das flores do pátio.
Mas ainda estavam no começo do inverno. Fazia quanto tempo ela estava naquela casa
? Tinha perdido a conta. Porem tinha sido tempo suficiente para ela não se sentir
mais uma cigana.
Alicia havia mudado e estava no meio de dois mundos, com uma perna em cada caval
o, como costumava dizer Rudolpho.
O seu pai não a reconheceria se a visse agora. Ela parecia uma dama gorgio, como P
hilip Navarro desejava. Seu cabelo abundante era trançado e preso no alto da cabeça.
A pele estava muito mais clara, uma vez que passava os dias dentro de casa, lon
ge do sol. As bochechas e os lábios ainda tinham um rosado saudável, mas os olhos pa
reciam assombrados pela solidão.
Alicia ainda não pertencia aquele mundo, por mais que usasse vestidos elegantes.
Olhando-se no espelho, ela se achou parecida com uma dama espanhola. Não mais usa
va blusas ciganas e varias saias, mas os vestidos das mulheres de León. Naquele di
a, estava com um vermelho vivo, bordado com flores douradas, que era usado sobre
um saiote, que aparecia sob a barra. O vestido era, de acordo com don Philip, a
ultima moda na Corte.
Dizia-se que a moda de usar corpetes fechados por cordões havia sido iniciada pela
própria rainha. Usando-se o vestido com um espartilho, a cintura parecia minúscula
em contraste com a saia volumosa.
"Espartilhos!", pensou ela, irritada, tocando aquele instrumento de tortura que
tanto odiava. Como a cerca de ferro ao redor da casa, aquilo simbolizava a liber
dade perdida e os costumes ciganos abandonados.
Como as mulheres gorgio eram tolas! Como suportavam essas roupas? Era difícil sent
ar-se e andar com aqueles ridículos aros de madeira presos as saias. Se don Philip
não tivesse feito questão que ela os usasse, Alicia teria jogado o espartilho no fo
go. Mas ele era sempre tão bondoso que, se ela podia agradá-lo usando aquelas saias
ridículas, talvez não fosse um preço alto demais a ser pago.
No entanto, não deixava de achar que os espanh6is eram muito rígidos. Desde as roupa
s, o jeito de falar ate a postura ereta. Era como se tivessem me do de relaxar.
Tinha sido difícil aceitar que agora esse era o seu povo.
Mas precisava se conformar. Ela era uma gorgio tanto quanto eles. No entanto, ad
oraria voltar a ser livre como tinha sido antes. Acatara o estilo novo de rotina
, porem não esquecia a felicidade de sua vida anterior ou Rafael vivia no mundo de
le, como ele tinha, um dia, vivido no dela.
- Ah, aqui esta você, amuada no quarto novamente. Alicia virou-se e viu Violetta p
arada na porta do quarto, com os cantos de sua boca virados para baixo, como sem
pre. Don Philip havia sido bondoso com ela, mas o mesmo não podia ser dito daquela
jovem ou de sua mãe, apesar de Alicia ter tentado obter a aprovação das duas.
Com inveja da crescente afeição de don Philip pela cigana, Violetta só havia lhe demon
strado desdém.
- Ela é tratada da mesma forma que eu, a sua filha.
- Alicia ouvira Violetta reclamar mais de uma vez. - Ela não passa de uma mendiga.

Don Navarro a tinha silenciado imediatamente, afirmando que, enquanto elas vives
sem na casa dele, as duas, Violetta e a mãe, teriam que mostrar respeito pelos hóspe
des. Desde então, Violetta dava vazão á sua hostilidade quando ele não estava por perto.

- Não estou triste - Alicia retrucou. - Estou pensativa e nada mais.


- Você pode pensar lá em baixo. O meu pai me mandou avisa-Ia que o jantar esta servi
do.
Com um farfalhar do brocado azul, Violetta desapareceu.
A principio, ela tratara Alicia como a uma criada, uma vez que ela havia insisti
do em trabalhar como pagamento por sua comida e alojamento. Mas don Philip a con
vencera que ela estava fazendo um favor para ele permanecendo na casa.
Até certo ponto, o ressentimento de Violeta era compreensível. Alicia certamente ter
ia sentido ciúme se alguma jovem tivesse disputado a atenção de Rudolpho. Tentando tir
ar esses pensamentos da cabeça, Alicia seguiu Violetta ate o andar de baixo.
Os outros já estavam sentados quando ela entrou na sala e se dirigiu para seu luga
r, no extremo da mesa. Alicia sentia os olhos frios de dona Luisa sobre ela. Aqu
ela maneira de se portar remetia Alicia a pensar em um caldeirão aquecendo lentame
nte e que, a qualquer momento, poderia ferver e derramar.
Ultimamente, aqueles malignos olhos cinzentos haviam assombrado seus sonhos, e p
or mais que ela tentasse evitar os pensamentos, tinha a impressão de já ter visto aq
ueles mesmos olhos antes.
-Você fica adorável de vermelho, Alicia - O olhar de Don Philip era caloroso e genti
l. -Sente-se.
Alicia sentou-se com hesitação no seu lugar, não gostando da tensão que permeava as relaçõe
daquela família.Ainda não tinha muita pratica com as novas "boas maneiras" e sempre
estava com medo de fazer algo errado, esquecer de usar o guardanapo para limpar
as mãos, não usar os talheres corretamente, esquecer-se de dizer "por favor" e "obr
igada" toda vez que lhe passavam alguma coisa.
O fato de dona Luisa se referir a ela como "aquela paga" quando don Philip não es
tava por perto contribuía para que ela não se sentisse á vontade.
- Você não esta com fome, nina? - A expressão de Philip mostrava preocupação. - Coma, coma
.
- Ela não chegou a tempo de rezar! - Violetta estreitou os olhos em reprovação. - Ela
não deveria aprender a vir para a mesa a tempo da oração? Ou ela não tem que agradecer a
o nosso Deus pela comida?
- Violetta! - A boca de Philip tremia de raiva - Não vou avisa-Ia novamente. Alici
a e nossa convidada.
- Perdoe-me, papai.
Abaixando os olhos, Violetta não disse mais nada, mas a expressão de dona Luisa era
de triunfo. Alicia percebeu que Violetta a havia avisado tarde demais que o jant
ar estava sendo servido, com a intenção de faze-Ia passar vergonha.
Por que essas duas mulheres estavam tão determinadas a serem suas inimigas?
Por um longo período Philip comeu em silencio, perdido em seus pensamentos. Depois
, dirigiu-se para Alicia:
- Violetta me lembrou, mesmo não tendo sido essa sua intenção, que e hora de você aprend
er as escrituras, minha menina. Falarei com padre Julio para que ele a ensine.
Alicia lembrou-se do bondoso padre e sorriu. - Você sabe alguma coisa sobre os cri
stãos?
- Sei que eles acendem velas.·e falam com Deus - informou Alicia, lembrando-se do
dia em que passara com padre Julio. - Sei que Maria era a mãe de Cristo e do meni
no Jesus também.
- Cristo e Jesus são a mesma pessoa, criança, você precisa aprender isso. Mas estou co
ntente que você já saiba tanto.
Entusiasmada com o elogio, Alicia continuou:
- Ele foi pregado a uma árvore para que os gorgios pudessem viver para sempre. Ele
queria salvá-los do fogo do Beng, para que não fossem seus escravos. Talvez esse Cr
isto tenha sido um cigano, por que ele era pobre, andava pelos campos e, como os
ciganos, era ...
- Um cigano? Jesus, um cigano?! - Luisa estava indignada. - Se Juan estivesse aq
ui para ouvi-Ia falar isso! Ela é uma herege! - Os olhos cinzentos da mulher brilh
aram com raiva e, por um momento, Alicia achou que seria expulsa da mesa. Mas, c
omo sempre, Philip veio em sua defesa.
- Mulher, segure a língua! Ela não é uma herege, e uma criança inocente que precisa apre
nder a fé. Se ela não tivesse sido tão cruelmente traída ... - Ele não pode dizer mais nad
a, porque, naquele momento, Rafael de Villasandro irrompeu sala adentro.
-Don Rafael! - Philip ficou chocado com a aparência desleixada de seu convidado, m
as, como um cavalheiro, não disse nada. - Eu estava preocupado com você. A mensagem
que me mandou era vaga ...
Rafael, porem, não ouvia Philip, sua atenção estava concentrada naqueles olhos inesque
cíveis, que o olhavam com raiva e dor.
- Alicia? - No lugar da garota cigana estava a mais linda dama espanhola .que el
e já havia visto. - Alicia!
Ao ouvir seu nome, Alicia ficou paralisada, venda o rosto de Rafael borrado, atr
avés de um véu de lagrimas. De repente viu-se em meio a um turbilhão de emoções. Mas logo
veio lembrança do abandono e a raiva lhe endureceu o coração e não conseguia pensar e ma
l podia respirar. Sentia-se como um animal encurralado e tremulo sob o olhar del
e.
Alicia! - Esquecido dos outros, Rafael deu um passo frente, querendo toma-Ia nos
braços.
Ele tinha vivenciado o momenta do encontro e reconciliação durante todo o caminho de
volta para a casa de don Philip, e não estava preparado para a distancia com que
Alicia olhava.
- Alicia?
_ Vá embora! - disse ela, em voz baixa. A dor e o ressentimento que guardava no co
ração vieram a tona. - Eu odeio você! Nunca mais quero vê-lo de novo.
E, dizendo isso, ela fugiu da sala.

CAPITULO XVII

_ Alicia! - Rafael .tentou segui-Ia, mas Philip bloqueou seu caminho. - Preciso
ir atrás dela tenho muito a lhe dizer.
- Deixe-a sozinha com suas lagrimas e pensamentos por algum tempo. E assim que a
s mulheres fazem
Philip lançou um olhar de advertência para Violetta e Luisa. E, ao menos uma vez na
vida, Luisa ficou quieta. Levantando-se, ela fez um sinal para que a filha a seg
uisse e as duas deixaram da sala, deixando os pratos quase intactos.
- É ótimo que ,elas tenham saído, temos muito que conversar. Mas este não é o lugar, aqui
ha muitos olhos e ouvidos. - Eu tenho que ver Alicia! - Mais uma vez Rafael tent
ou ir para a porta, contudo Philip o segurou pelo braço. Relutantemente, o Jovem o
seguiu para a biblioteca.
-Como você conhece Alicia? - indagou Philip sem rodeios. - Foi dela que você me falo
u?
- Alicia e a mulher que eu amo. Ela me salvou a vida e me levou. para seu acampa
mento. Desde aquele dia, minha vida não é mais a mesma.
Philip riu.
- Não, eu imagino que não. Ela e cheia de fogo e, ao mesmo tempo, nunca vi ninguém tão d
elicada. Alicia me encanta. Conte-me sua hist6ria e talvez eu possa ajudá-lo nesse
assunto do coração.
Rafael abriu a alma. Contou que havia tirado a virtude de Alicia, abandonado-a e
partido atrás dos ladrões que o tinham roubado, sem perceber que Philip ia fechando
a cara á medida que ele falava.Rafael relatou também que havia ficado muito preocup
ado, com medo de que Alicia tivesse sido vitima do ataque contra os ciganos, que
a tinha procurado em vão e que só a encontrara quando Rudolpho resolvera
sequestrá-lo.
- Esse homem e dos meus, esse Rudolpho. Gostaria de tê-lo conhecido - observou Phi
lip a certa altura.
- Era um homem sábio e forte. Nunca o esquecerei. Ele decidiu que eu tinha de cas
ar com sua filha. Alicia e minha esposa, pela lei cigana. - Rafael tirou do bols
o um pedaço do jarro de cerâmica que havia sido quebrado na cerimônia de casamento. -
Antes eu talvez tivesse ridicularizado essa cerimônia, mas agora ... Alicia é minha
esposa, não importa o que os padres digam.
- Sua esposa? - Philip ergueu uma sobrancelha e, em seguida, pareceu aprovar a i
déia. - Mas então, por que ela estava sozinha em Salamanca? Por que não a trouxe com v
ocê?
- Porque eu sou um tolo! - Rafael não explicou suas razoes, não por falta de confiança
, mas porque não queria envolver Philip em seus planos. Mesmo um homem da posição de s
eu anfitrião não estava a salvo de Torquemada.
- Mas eu sofri pela minha estupidez! Então, quando o seu filho mencionou ter visto
uma cigana, eu sabia que tinha de acha-Ia novamente, que essa seria a única forma
de eu voltar a ser feliz. Procurei o padre Julio e descobri que, na verdade, a
cigana era Alicia. Eu tinha pensado em achar a moça para enviar uma mensagem para
a mulher que eu amo. Não á encontrei e mergulhei no desespero. - Ele passou a mão pela
s roupas sujas e rasgadas. - Procurar Alicia foi o que eu fiz nas ultimas duas s
emanas. Quando padre Julio me disse que ela estava aqui, voltei imediatamente.
- E encontrou uma mulher que parece ter sido profundamente magoada por você.
- Preciso explicar tudo para ela. Eu amo Alicia mais do que a minha própria vida.
Não sabia disso antes, mas agora eu sei, depois de ter pensado que a havia perdido
e ter ficado desesperado. Ela precisa me perdoar. Ela tem que me amar novamente
.
Rafael sentiu-se muito aliviado pelo desabafo, mas então percebeu que tinha falado
sem parar, sem ouvir o que Philip tinha a dizer. Sentiu uma pontada de ciúme, des
confiando se as intenções do homem não seriam românticas. Afinal, ele alimentara, proteg
era e vestira Alicia como um anjo.
Rafael duvidava de que tivesse sido simplesmente Por caridade e tinha que saber
quais eram as verdadeiras intenções de Philip Navarro.
- Qual o interesse do senhor em Alicia?
Philip sorriu, divertido com o óbvio ciúme de Rafael.
- Eu salvei uma jovem cigana e descobri que ela era a imagem da minha esposa, da
mulher que eu perdi há tanto tempo. Eu a trouxe para cá, mas devo admitir que minha
s intenções são completamente altruístas, pois ela tem a mesma idade que minha filha ter
ia.
- Sua filha?
- Parece bom demais para ser verdade, eu mesmo duvido as vezes, mas deve ser. O
nome Alicia não é realmente espanhol, mas uma variação de Alice. Era o nome de minha bis
avó, e o nome que dei a minha filha. Achei que se tratava apenas uma incrível conhec
idência, até descobrir que Alicia não é cigana.
- E esta e a maior de todas as ironias - murmurou Rafael,pensando em seu próprio p
reconceito contra os ciganos.
Ela foi levada para o acampamento cigano quando ainda era uma criança. Eu não sei o
motivo com certeza, mas tenho as minhas suspeitas.
O senhor acha... .
Disseram-me que a minha niña sofreu um acidente,que se afogou enquanto estava aos
cuidados da ama. Eu não tinha razão para duvidar da história, mas o corpo nunca ,foi e
ncontrado. Agora tenho certeza de que mentiram para mim.
Acredito firmemente que Alicia seja minha filha. Estou tentando faze-Ia se lembr
ar, mas até agora não consegui. Ela reprime essa memória ha muito tempo, mas vai acaba
r se lembrando ...
Rafael e Philip não tinham idéia de que outra pessoa escutava o seu segredo. Com o o
uvido junto a porta, Luisa mal podia acreditar no que ouvia. Seria possível que J
ovem fosse a menina que ela havia levado para os ciganos. A idade, o nome os olh
os verdes ... Estava preocupada e se sentiu impotente. Mas não permitiria que seu
marido viesse a saber o que ela havia feito. A vinda de Alicia para aquela
casa mudava tudo.
Se a moça se lembrasse, tudo pelo qual ela lutara e planejara seria perdido. O que
seria de Juan, Enrique e Violetta? E dela? Jamais se esqueceria de como era a p
obreza e nunca mais voltaria para aquele tipo de vida.
Enrique saberia o que fazer. Ela tinha que ter paciência e esperar ate a volta do
filho. Dai eles encontrariam uma forma de se livrar daquela ciganinha.
Admirando, da sacada de seu quarto, o jardim encharcado de chuva Alicia sentia a
neblina misturando-se com suas lágrimas. Sua roupa estava molhada, mas sequer not
ou, perdida no tumulto das emoções provocadas pela volta de Rafael. Sentia as pernas
tremulas e seu coração batia forte, os ouvidos atentos a cada som. Ela queria que e
le a seguisse, mas temia um novo confronto.
Medo? Não, ela não se permitiria essa emoção indigna.
Endireitando as costas e levantando a cabeça, recusava-se á ser intimidada. Era inte
ligente e forte, e poderia enfrentar qualquer obstáculo.
Seria melhor lidar com a presença perturbadora de Rafael agora do que prolongara d
or do seu coração. Já não era uma criança, não podia fugir novamente. Ainda assim, quando a
porta se abriu e ela olhou naqueles olhos escuros, a vontade era de sair corrend
o. Só não o fez porque sabia que não tinha para onde fugir.
- Alicia, preciso falar com você.
- Não quero ouvir, gorgio! - Ela cerrou os dentes quando ele se aproximou.
- Mas eu pretendo falar do mesmo jeito.
Diante da determinação dele, Alicia suspirou fundo e voltou para o calor e a luz do
quarto. Rafael a estudou cuidadosamente, notando as mudanças que iam muito alem da
s roupas e do penteado.
Da ultima vez que a vira, Alicia era uma mocinha. Ela havia amadurecido completa
mente e a sua beleza tornara-se ainda mais impressionante.
- Eu te amo, Alicia!
- Amor? Ah, gorgio, você não sabe o significado desta palavra. Amor e mais do que co
rpos unidos na cama. E algo que vem do coração. OP fato de você ter me abandonado me m
ostrou quão pouco você gosta realmente de mim.
- Repito que te amo e, por isso, detestei ter de ir embora ...
- Então, por que foi? Éramos felizes. Você havia me dito que me amava, e eu quis acre
ditar. Mas não sou mais aquela cigana inocente que tolamente lhe ofereceu seu coração.
- Por favor, Alicia, tente entender. Eu tinha os meus motivos ... Meu irmão foi me
procurar e eu não podia correr o risco que você ou seu povo fossem feridos. - Ele não
ousava contar-lhe toda a verdade, por medo de colocar a vida dela em perigo.
-Você se preocupou comigo, gorgio, mas partiu sem dizer adeus.
-Você precisa acreditar em mim, eu pretendia voltar para você, foi por isso que lhe
deixei o ane!. Era uma promessa,um juramento.
-O anel? - Ela senti a o metal contra a pele, pendurado em uma fita, no vale ent
re os seios. - Solis me deu. esse anel de que você fala. Ela disse. que você o havia
deixado como pagamento pelos meus serviços amorosos. Disse que você estava feliz em
partir ..
-Aquela vadia mentirosa!
-Ela jurou pelo tumulo do pai dela - Alicia afirmou.
- Mesmo assim, e mentira. Eu amava você e ainda amo. Aproximando-se dela, ele incl
inou a cabeça, os lábios quase tocando a orelha dela e sussurrou: -Você está gelada, seu
vestido está molhado da chuva. Deixe-me aquece-Ia, Alicia.
Como que hipnotizada, ela o deixou abraça-Ia, mas a memória da morte de Rudolpho fez
com que um muro se erguesse entre eles. Afinal, o pai tinha morrido tentando tr
azer Rafael dc volta ao acampamento.
- Não! Rudolpho morreu porque foi atrás de você. O coras:ao dele ... Eu nunca vou me e
squecer disso.
- Sinto muito pela morte de seu pai. Rudolpho era um homem muito nobre. Mas, Ali
cia, entenda que eu não o matei. Ele estava morrendo, por isso queria tanto que nós
nos casássemos. Ele queria ter certeza de que alguém fosse cuidar de você depois que e
le partisse.
Era verdade, ela não podia acusá-lo pela morte de Rudolpho, mas e quanta ao resto? S
e ele a tivesse abandonado apenas uma vez, poderia perdoá-lo, mas Rafael a havia á
deixado duas vezes.
Da primeira,vez, ela o havia perdoado, aberto seu coração para ele novamente, ele to
rnara a partir. Ela tinha feridas no coração que jamais se cicatrizariam.
- Você teria me abandonado se eu fosse gorgio, e não uma cigana? -, Ela o olhava com
cuidado, procurando a verdade no rosto dele.
- Alicia ... - Rafael não sabia a resposta. Fizera essa mesma pergunta muitas veze
s. .
- Mas, agora, que eu não sou uma cigana, você me considera digna de seu amor? Não é assi
m? - Dominada pela raiva e pelo orgulho cigano, Alicia disparou uma serie de ins
ulto contra Rafael. - E você acha que eu posso esquecer tão facilmente que você me men
osprezou? Nunca vou perdoá-lo, nunca! No dia em que você partiu, meu amor morreu! E
les cremaram meu pai na pira funerária, e o meu amor foi consumido pelo fogo com o
corpo dele. Morreu com Rudolpho.
- Então não há mais nada a dizer. Seja feliz, Alicia.
-Como você, eu sou convidado de don Philip, mas eu não vou incomoda-Ia mais. - Os ol
hos dele espelhavam o sofrimento ao fitá-la antes de seguir em direção a porta.
- Rafael. .. - Ela queria dizer-lhe que estava mentindo, que o amor dela não morre
ria nunca, mas tinha medo de confiar nele novamente, de abrir seu coração e ser traída
mais uma vez. Assim limitou-se a vê-lo se afastar.
Ao chegar á porta, Rafael parou, com a mão no trinco.
Virando-se momentaneamente, ele banqueteou seus olhos com a beleza de Alicia.
- Eu preferia você com os cabelos soltos sobre os ombros. Querida, meu primeiro e ún
ico amor cigano! _ E, dizendo isso, foi embora.
Alicia sentiu como se o vento de inverno das montanhas a cobrisse. Queria chamá-lo
de volta, dizer-lhe que ela o amava também, mas a voz não saia.
Os dias seguintes foram extremamente dolorosos. Ela não queria ver Rafael, porem não
havia como evitá-lo.
Nessas horas, desejava dizer-lhe que o perdoaria, que ainda o amava, mas então se
lembrava da traição.
Sua vontade era de fugir dali, desaparecer e se esconder.Como podia ter esperança
de esquecer aquele amor que carregava no coração, com a presença constante de Rafael
?
Ela se sentia como um pássaro engaiolado. E, por mais doloroso que fosse vê-lo e es
tar próxima dele, a idéia de nunca mais encontrá-lo era ainda mais perturbadora.
Alicia jurou esquecê-lo, mas a memória do amor que haviam vivido não lhe saia do coração,
da alma e da cabeça. Apesar do orgulho, era como se o desejo a consumisse pela pri
meira vez, presente em cada batida de seu coração.
Os dias pareciam não ter fim, no entanto o tempo voava quando Rafael estava na sal
a. Depois, á noite, sozinha e com vontade de estar nos braços dele, ela sucumbia aos
sonhos.
Ele tinha sido seu primeiro e único amor, e saber que o quarto dele ficava no mesm
o o corredor que o seu era a pior tentação possível. Estar com ele novamente, amá-lo, se
ntir o rogo de sua paixão agora e para sempre era uma esperança longinqua.
Nem mesmo as tentativas de Luisa de fazer Rafael se interessar por Violetta abal
avam a determinação de Alicia, de não se esquecer de que ele havia ido embora por verg
onha de amar uma cigana.
Nas refeições, Violetta sempre se sentava ao lado dele, os olhos negros voltados par
a Rafael. Violetta Dorado fazia parte do mesmo mundo que Rafael, de uma forma qu
e Alicia jamais conseguiria. Apesar de suas recém adquiridas roupas e maneiras ele
gantes, ela sempre seria uma cigana de coração, e os olhares de desdém que Violetta lh
e lançava não a deixavam se esquecer disso.
Luisa nunca perdia uma oportunidade de comparar as duas jovens, com o mais genuíno
dos sorrisos nos lábios finos e apertados. Violetta jamais tinha um fio de cabelo
fora do lugar, enquanto que a massa de cabelos escuros de Alicia parecia estar
sempre escapando do penteado no alto de sua cabeça. Violetta parecia sempre saber
a coisa certa a dizer era espirituosa e brilhante, enquanto Alicia era imprevisíve
l e engraçada com seus costumes exóticos. O bordado de Violetta era perfeito, e Alic
ia sabia que o dela era cheio de emaranhados e pontas. Violetta nunca erguia a v
oz mas Alicia, quando estava com raiva, as vezes se esquecia de onde estava e so
ltava uma sequência de blasfêmias ciganas.
Naquela noite, o olhar de Alicia passeava ao longo da mesa e ela teve vontade de
sorrir, mas antes que movesse os lábios, o riso de Violetta se fez presente e ela
virou a cabeça.
Durante o jantar, sentiu um ciúme sem limite, apesar de Rafael ignorar os esforços d
eterminados de Luisa de fazê-lo prestar atenção na filha. Ele que ficasse com a gorgio
, ela não se importava.
Violetta falava e sorria e, apesar de Rafael não lhe dar atenção, Alicia ainda se sent
ia magoada ao vê-lo ao lado de outra mulher. E, em silencio, ela amaldiçoava os dois
.
Como um estranho em uma capa negra, o perigo perseguia Rafael. Havia espiões de To
rquemada por toda a parte. Sofrendo com a rejeição de Alicia, ele tinha uma audácia in
sensata, e esse destemor era bem-sucedido.
Trabalhando ao lado de padre Julio, ele foi capaz de se manter sempre um passo a
frente dos emissários secretos de Juan Dorado e conseguiu reunir um grupo de conv
ertidos que, sem a sua ajuda, enfrentariam tortura e as fogueiras da Inquisição.
Homens ricos e pobres, comerciantes, nobres e camponeses corriam perigo. Rafael
não podia evitar a repulsa que sentia por pessoas que, com suas acusações, desejavam c
ausar tanto sofrimento aos seus próximos. Era só dizer que um dizer que um cristão con
vertido havia se recusado a comer carne de porco ou de coelho, celebrado um dia
santo judeu ou ter lido O Torah, para que houvesse prisões e interrogatórios.
Quando um homem se tornava suspeito, toda sua família corria perigo. Não havia compa
ixão, exceto pela morte, nem fim da tortura, a não ser pela confissão, nem veredito qu
e não fosse a fogueira para os considerados culpados.
Isac El Diego, um medico renomado, cuja família havia se convertido ao cristianism
o trinta e cinco anos antes, era um dos suspeitos. Havia rumores de que ele prat
icava o judaísmo secretamente. Rafael desconfiava de que um medico de menor capaci
dade e inteligência fora quem o denunciara a Inquisição. Isaac Diego, sua mulher, dois
filhos e uma filha estavam a salvo, mas o irmão dele havia sido capturado pela in
quisição e não pode ser resgatado.
Rafael tinha a impressão de que a cada dois conversos que conseguia salvar, pelo m
enos um não podia ser ajudado. _ Eu devia ter agido mais rapidamente - ele disse a
o padre Julio, enquanto ambos observavam a prisão de um comerciante de especiarias
.
_ Eu tenho tanta responsabilidade quanta você. Não se recrimine meu filho. Quem pode
ria saber? Quem teria adivinhado?- Os olhos de padre Julio estavam tristes. - El
e foi denunciado por um homem que lhe devia muito dinheiro. Um modo terrível de se
livrar de uma divida.
Rafael observou os prisioneiros, descalços, marchando pelas ruas da cidade ao ritm
o sinistro de um tambor.O comerciante era um jovem próspero, com menos de trinta
anos e conhecido na cidade por sua honestidade. Ele iria morrer, condenado a fog
ueira, e Rafael nada podia fazer para salva-lo .
_ Bastardos sem coração! - murmurou. Ninguém ouviu a praga, a não ser o padre Julio, que
o advertiu com uma expressão carrancuda no rosto.
Havia dez prisioneiro na procissão, andando de cabeça baixa, Rafael sabia o que os e
sperava: estacas presas ao chão, as quais cada prisioneiro seria amarrado e então qu
eimado vivo.
Deus misericordioso, por que? Rafael não conseguia entender o fervor religioso que
levava um homem a tirar a vida de outro, Deus era um Ser Supremo, Que diferença f
azia como ele era venerado? Sendo assim não fazia sentido o zelo fanático de Torquem
ada.
Rafael havia questionado padre Julio sobre sua opinião e recebera a resposta de qu
e ele não compreendia porque era um homem razoável e racional.
Sentindo-se seguros entre as paredes de pedra da biblioteca do padre Julio, eles
tinham se permitido uma discussão teológica. Rafael perguntara ao padre por que tan
tos convertidos se arriscavam ao manter os costumes e leis judaicas.
- Muitos judeus vêem os cristãos como homens que dizem uma coisa e fazem outra; home
ns que veneram a Jesus, que pregam caridade e abnegação, mas que são levados pela ganânc
ia. Enquanto pessoas morrem de fome pelas nossas ruas, nós usamos roupas finas e jói
as. Pregamos a castidade, e muitos de nossos padres, monges e bispos se compraze
m com prostitutas e amantes. Um dos papas, Rodrigo Borgia, conhecido como papa A
lexandre VI, exibia seus bastardos com orgulho.
- Mas morrer por suas crenças? - Rafael pensou em seus avós, que tinham estado dispo
stos a enfrentar a fogueira, mas que haviam escapado.
- Eu respeito os que tem essa Coragem. Espero que, um dia, tudo o que estiver er
rado com nossa fé seja corrigido, que nós voltemos a ser a fé do amor fraternal. Talve
z um dia, quando essa loucura das fogueiras houver terminado ...
Rafael pensou no que Alicia estaria achando dos ensinamentos cristãos que ela esta
va recebendo e ficou triste.Havia uma inocência tão bonita na crença do povo cigano.Se
rá que ela entenderia a missão que ele havia assumido?Se ele contasse seu segredo,a
decisão de ajudar os judeus convertidos seria aprovada?Ela o perdoaria se soubesse
de Giovanni De Torga e dos barcos esperando na baia?Muitas vezes ele se sentia
tentado a lhe contar toda a verdade,mas deixava que a preocupação o calasse.Não podia
colocá-la em perigo,mesmo que,por isso,ganhasse desprezo.
Nas ultimas semanas Rafael tinha se afundado no trabalho,tentando esquecer a dor
.Perguntava-se se algum dia Alicia o amaria de novo.
Dois navios ainda esperavam na baia,dois já haviam partido para Roma,e Rafael prom
etera que,quando o ultimo navio tivesse saído da Espanha,sua missão estaria terminad
a.
Quando o perigo tivesse passado,ele contaria tudo a Alicia,na esperança de encontr
ar um pouco de amor que ainda pudesse existir no coração dela.
-Deus tenha piedade da alma dele,por que eu não consigo perdoá-lo.
O comentário de padre Julio trouxe Rafael de volta a realidade.Ele olhou para o ob
jeto das palavras do padre.
A procissão estava mais perto,e Rafael viu o sacerdote que,envolto em uma capa neg
ra,liderava o grupo,carregando a cruz verde da Inquisição.
Juan Dorado havia voltado de Toledo e agora estava em Salamanca.E Rafael podia i
maginar a razão.

CAPITULO XVIII
Não demorou muito para que Rafael descobrisse por que o padre Juan Dorado estava e
m Salamanca. Depois de se acomodar na igreja de padre Julio e usar a biblioteca
dele como escritório,o Inquisidor de Torquemada intimou Rafael a se apresentar.
Enquanto seguia pelas ruas na noite fria e lúgubre a caminho da Indesejada entrevi
sta, todos os medos passaram pela cabeça de Rafael: Juan Dorado havia descoberto s
obre os navios. De Torga tinha falado seu nome em confissão. Giovanni, o ousado ca
pitão dos navios, fora capturado. Os navios tinham sido interceptados. O astuto pa
dre descobrira sobre seu sangue judeu e a execução de sua mãe.
O cheiro acre de fumaça ainda estava no ar, lembrando de forma macabra as execuções do
dia. Esse seria o destino de Rafael também caso fosse pego. Mas a
lembrança dos gritos de agonia dos que haviam morrido e o fato de saber que
salvara outros de destino semelhante, fez com que seu coração se acelerasse com dete
rminação.
Ele não se arrependia do que havia feito, apenas lamentava ter partido o coração de Al
icia no processo. Ela seria a única pessoa que lamentaria deixar, caso tivesse que
enfrentar aquela punição.
Qualquer ruído, ele olhava para trás, com medo de ver os homens vestidos de negro da
Militia Christi, a policia secreta da Inquisição. Encontrou Juan Dorado cercado por
pilhas documentos.
-O senhor me convocou, Reverendíssimo. - Irritava Rafael ser tão subserviente, mas e
ra precise ser cauteloso.
Colocando os papeis que examinava de lado, padre Dorado olhou-o com uma expressão
impassível.
-Sente-se. - Os frios olhos observavam Rafael. - Eu esperava ter noticias suas,
mas infelizmente o senhor tem estado muito quieto.
-Peço que me perdoe. A minha única desculpa e que seu pai é um homem extremamente inte
ressante.
-Meu padrasto - corrigiu-o Juan Dorado. - Mas o seu dever e me ajudar, não importa
ndo as distrações. Era esse nosso acordo, não?
- Eu tenho sido perseverante em minhas tarefas, mas não tenho nada a relatar.
Juan Dorado apertou os olhos assumindo uma expressão perigosa.
- Nada? O senhor esta me dizendo que não existe nenhum rumor em toda Salamanca, ne
nhum convertido, nenhum judeu, cujas atividades possam me interessar? Devo deduz
ir disso que Salamanca é um verdadeiro paraíso de cristaãs devotos? - Ele esmurrou a m
esa. - Se isso fosse verdade, eu não teria testemunhado as fogueiras de hoje. Como
é que não foi o senhor quem me avisou dessas transgressões?
Rafael tremia internamente, controlando a raiva, mas conseguiu sorrir.
-Eu realmente sinto muito. Serei mais cuidadoso no futuro.
-E o senhor não sabia do comerciante? Contaram-me que fez que transações com ele duas
vezes.
-Ele me pareceu um homem muito devotado, mas eu não tenho a sua capacidade de perc
epção, Reverendíssimo.
Juan Dorado forçou um sorriso.
- Eu sei apenas com um olhar o que se esconde no coração de um homem. Quanto ao senh
or, soube que é um homem cujo coração esta nas mãos de uma linda mulher. Talvez eu não dev
a culpá-lo por suas falhas desta vez.
Rafael engoliu em seco. Aquela serpente havia descoberto sobre Alicia? Era preci
so protege-Ia daquele homem.
- Uma mulher? - respondeu, fingindo inocência.
- Não se preocupe, eu aprovo totalmente suas intenções para com a minha irmã. Violetta v
ai ter um bom dote e foi preparada para ser a mais dócil das esposas.
- Violetta? - A idéia era ridícula, mas Rafael rapidamente entrou no jogo. - Eu espe
rava guardar segredo sobre os meus sentimentos, mas sabendo que o senhor aprova
minhas intenções me deixa aliviado.
Ele sabia que a informação deveria ter vindo de dona Luisa. Teria que ter cuidado, o
u logo teria uma esposa indesejada. A única esposa que conhecia era Alicia. Se ela
nunca o aceitasse, então, preferia ficar sozinho para resto da vida.
Juan Dorado parecia ter melhorado de humor, talvez confiante por ter encontrado
um marido para a irmã. Ele falou abertamente sobre muitas coisas. A cada palavra,
em cada sorriso, demonstrava o quanto admirava a mãe e a Irma. Contou a Rafael que
sempre fora o preferido da mãe e que os dois eram, de muitas formas, parecidos.
A aprovação, entretanto, não se estendia a don Philip, de quem ele falava com raiva, i
rritado por que o padrasto controlava com mão de ferro as despesas da casa. O fato
de não ter dinheiro fizera com que Juan Dorado optasse pelo sacerdócio, mas agora e
le estava satisfeito.
A família do frei Tomas de Torquemada tinha sido mais humilde que a de Juan Dorado
. Torquemada havia sido pobre,mas revelara zelo pela perfeição e a ambição fanática de pur
ificar a Espanha por Cristo. Agora, como o Grande Inquisidor, ele já havia percorr
ido um extenso caminho, e Juan Dorado esperava ter o mesmo destino.
-É claro que frei Torquemada fora o confessor da rainha antes de ela se casar com
o rei Fernando, mas parece que também chamei a atenção da rainha, e com a ajuda de Tor
quemada ... Uma vocação digna do filho de uma mulher que se casou com um viúvo muito r
ico.
Juan Dorado pareceu se cansar da conversa ociosa.
Pegou um dos documentos e voltou a tratar de assuntos mais sérios.
-Você tem alguma idéia do que estou segurando na minha mão? - Diante da negativa de Ra
fael, prosseguiu: O instrumento pelo qual podemos livrar a Espanha de todo o per
igo.
-Os conversos pararam de ser uma ameaça? o riso alto de Juan Dorado foi significat
ivo.
Os convertidos não são mais importantes. Temos um peixe maior para pegar, e agora qu
e a guerra com os mouros acabou, ele pode ser capturado. - Sua voz abaixou para
um murmúrio, como se ele tivesse medo que alguém os ouvisse.
-Os próprios judeus.
-Os judeus? - Rafael empalideceu.
Ele tinha ouvido rumores, mas não podia acreditar que alguém, mesmo Torquemada, ousa
sse atacar pessoas que estavam entre os súditos mais fieis da Espanha, o tribunal
da Inquisição havia sido estabelecido para aqueles. que abandonassem a Igreja Católic
a, não para a população Judia em geral. Mas ele sabia que havia ressentimento contra o
s judeus porque, apesar das restrições sobre as vestimentas, as profissões que poderia
m exercer e os locais onde poderiam morar, eles tinham conseguido prosperar.
- A vitória da Cruz nunca será completa existirem judeus entre os habitantes da Espa
nha.
- O que esta dizendo? - Rafael encontrava dificuldade em controlar suas emoções.
- Vamos exigir que eles se convertam. Caso contrario, serão presos. Não e de se espa
ntar que os conversos sejam tão facilmente abalados quando testemunham a induIgência
com que tratamos os judeus. O mal dos judeus e conhecido e incontestável. Apesar
das providencias tomadas para manter cristãos e judeus separados, apesar da Inquis
ição, esse mal persiste. Os judeus tentam converter os cristãos novos de volta ao judaís
mo. E as fogueiras da Inquisição não podem queimar todos eles. Tenho aqui o primeiro r
ascunho de um edital de banimento, só falta a aprovação do rei para se tomar lei.
"Banimento!" A palavra girava na cabeça de Rafael. Ser expulso do próprio pais seria
a maior de todas as injustiças. - Os soberanos adiaram a decisão desse assunto, ape
sar da insistência do frei Torquemada, mas ainda acho que acabarão seguindo o consel
ho dele.
- Mas eles provaram a sua lealdade! Juan Dorado estreitou olhar.
- O ouro judeu era necessário para a guerra contra os mouros. Agora a guerra acabo
u. Os judeus perceberam as intenções de Torquemada e apresentaram apelos com argumen
tos eloquentes aos monarcas Isabel e Fernando, lembrandos de que foram eles que
forneceram dinheiro para a campanha contra os inimigos da Cruz, mas Torquemada v
ai vencer.
Rafael se recusou em acreditar que os monarcas, Isabel e Fernando podiam ser cruéi
s a ponto de voltar as costas á lealdade dos judeus, nem poderiam ser tão cegos á verd
ade.
- Torquemada não lhes dará paz. É só uma questão de tempo, e é por, isso que eu o chamei aq
i. Para nos prepararmos para a vitória de Torquemada. Quando o edital de banimento
estiver assinado, eu estarei preparado, com a sua ajuda.
-O que preciso fazer?
- Quero que você compile uma relação de todos os judeus de Salamanca e de suas proprie
dades. Para que eu saiba quão ricos eles são e esteja preparado.
Para ficar com as riquezas deles para si, completou Rafael em pensamento.
Pensou em dizer "não" para Juan Dorado e cuspir em sua cara, mas ficou quieto. Era
preciso manter a calma a fim de fazer o possível para frustrar as intenções de Torque
mada e Juan Dorado. Faria a lista, mas não para entrega-Ia ao padre. Tinha a intenção
de avisar os judeus da cidade que a tempestade estava para começar, para que eles
buscassem abrigo.
Se os lideres judeus fossem avisados, talvez pudessem usar a sua influencia junt
o ao trono a seu favor.Nenhum pais poderia prender tantas pessoas. Era contra to
das as leis dos homens e de Deus. E se Torquemada conseguisse real mente o que q
ueria, quem estaria a salvo de sua maldade?
Era preciso deter os avanços do frei. E, se isso se provasse impossível e os judeus
corressem perigo, Rafael queria dar á eles a mesma ajuda que dera aos conversos.
Ele tinha dois navios esperando.
As ruas dos arredores de Salamanca estavam cheias, e Alicia teve de abrir caminh
o entre as pessoas, apertando o passo para não ficar atrás de Philip Navarro. Ele a
havia convidado para ir a uma tourada e ver a disputa entre a força e graça de um de
seus estimados touros e a de um dos melhores toreros de toda León.
- Senor Navarro! - Um jovem fez uma reverencia para don Philip e abriu um estrei
to portão que levava á arena.
Alicia se viu em meio a uma excitada multidão, que gritava "ole" com tanto entusia
smo, que ela pensou que a tourada já havia começado.
- Senor Feroz talvez seja. O melhor torero de toda Espanha, mas eu acho que meu
Diablo estará a altura dele. - Com um gesto protetor,-Philip colocou um braço ao re
dor da cintura dela e a conduziu por entre a multidão, que a assustava um pouco. M
as, logo eles chegaram a um banco sobre uma plataforma elevada, de onde assistir
iam toda a ação.
O som alto das trombetas assustou Alicia. Do outro lado da arena, homens a caval
o seguidos por outros a pé seguiam em procissão, com roupas coloridas e enfeitadas.
Com a graça de bailarinos, os toureiros faziam mesuras para o publico, que os saud
ava aos gritos.
- Torero! Torero!
A multidão ficou ainda mais enlouquecida e se levantou quando um homem vestido tod
o de vermelho tirou a capa e a jogou para o público como um souvenir. Alicia enten
deu imediatamente que aquele era Feroz.
- Bravo!Bravo! Torero! Torero! Feroz! Feroz!
Naquele momento, o maior dos toureiros era um rei para o público, e Alicia sentiu
um frêmito de antecipação. A tourada deveria ser algo glorioso para que todos estivess
em tão animados, pensou. Mesmo don Philip, geralmente tão calmo, gritava com os outr
os.
- Estou contente de tê-la convidado a vir comigo hoje - confessou Philip, quando o
barulho diminuiu um pouco.
- É a primeira vez em semanas que eu a vejo sem o cenho franzido. - Olhando para A
licia, ele a questionou: - Alguma coisa muito profunda a está incomodando, e eu go
staria de ajudar.
- Não é nada! - as olhos de Alicia, porem, não escondiam a dor com a mesma facilidade
que mentira.
- Esse "nada" a esta corroendo por dentro e vai transforma-Ia em uma mulher amar
ga. Conte-me, Alicia. Eu ainda não me provei seu amigo?
Ele quisera tantas vezes contar-lhe que tinha quase certeza de que ela era sua f
ilha, mas uma voz interior lhe dizia para esperar. Era melhor aguardar o momento
mais adequado.
-Quem a deixou infeliz? dona Luisa? ,
-Ela não e bondosa. Eu tentei de todas as formas agradá-la, porque ela e a dona da c
asa, e Juanita me ensinou como ser educada. Mas ...
-Por varias vezes eu percebi e a adverti para não ridicularizar suas qualidades. M
as ela esta com ciúme,niña. Você não deve dar ouvidos a sua língua afiada. - Uma expressão
e pesar passou rapidamente pelo rosto dele e, em seguida, foi substituída por raiv
a. - Eu me acostumei tanto com os ataques de Luisa que eles já não me afetam, mas não
vou deixar que você seja vitima.das pirraças dessa megera. Você é como uma brisa fresca
de verão, uma fonte borbulhante que refresca o meu coração cansado com o seu sorriso
inocente. Você renovou meu interesse pela vida, e eu estou agradecido, Alicia. Não s
e preocupe mais com a falta de bons modos da minha esposa .
Alicia considerou falar mais, mas Luisa era apenas parte do seu problema. Não sabe
ria como confessar seus sentimentos por Rafael, por isso, calou-se. Estranho com
o ela imaginava o rosto dele, o seu sorriso, em cada homem que se aproximava. Es
tava sempre pensando em Rafael e amaldiçoava a fraqueza que senti a por aquele gor
gio. Pensar nele com Violetta a fazia desejar a morte. .. .
Até pensar em Rafael lhe doía. Ela jamais havia imaginado que apenas pensar em um h
omem pudesse lhe trazer tanto pesar. Estava constantemente chorando por ter perd
ido o amor dele.
Antes de sair para a tourada, Alicia ouvira as insistentes palavras de Luisa par
a sua filha. Não era a primeira vez que a mulher defendia a conveniência e os encant
os de Rafael de Villasandro.
- Seria um arranjo perfeito, um casamento entre você e o amigo rico de Juan -disse
ra ela. - Ele tem terras de olivais. Seria muito adequado.
- E ele é bonito ...
Ele é meu .. marido! Meu. Era isso o que Alicia tivera vontade de dizer e foi prec
iso muito esforço para controlar o ciúme. Sentindo o caco de porcelana tocar-lhe a p
ele, lembrou-se de que Rafael não reconhecia o casamento deles. Ele era livre, pel
o menos aos seus próprios olhos, embora tivesse dito que a amava.
Quantas vezes não tivera vontade de se atirar nos braços dele ... Seria tarde demais
? A batida do tambor fez com que sua atenção voltasse para a arena. Agora, havia um
toureiro e um touro ali.
- Aquele é Diablo?
Philip fez que não com a cabeça, olhando com desdém para o animal. O toureiro, vestido
de verde e negro, movimentava a capa diante do touro, que batia os cascos furio
samente no chão. Aquele era um divertimento estranho, pensou Alicia. De repente, o
touro atacou e ela não pode conter um grito que escapou de sua garganta. Então, de
repente, ela se lembrou de algo escondido nos mais profundos recônditos de sua men
te e, instintivamente, gritou:
- Ele vai morrer, por favor, faça alguma coisa, cariñoso papa!
-Cariñoso papa. Don Philip repetiu as palavras, tremulo, lembrando-se da criancinh
a que o chamava assim de "amoroso papai". Se ele ainda tivesse alguma duvida,qua
nto a identidade de Alicia, esta teria terminado naquele momento.
- Vai dar tudo certo. O touro não vai matá-lo - disse ele, ,abraçando-a de forma prote
tora. - Ah, minha pequena Alicia, agora já não tenho mais duvidas sobre sua origem.
Ela se perguntava de onde teriam vindo as palavras que acabara de dizer, parecia
que de outra vida e de outro tempo. - Você ainda não adivinhou, não é mesmo? Você não
Sabe?Eu sou seu pai, Alicia! - Ao dizer isso, a alma dele encontrou um grande al
ivio.
Os gritos "Bravo! Olé!" do publico impediram Philip de ouvir a resposta dela, mas
ele viu, pela expressão do rosto Alicia, que ela estava chocada. Ele havia guardad
o segredo por tanto tempo ... Simplesmente não podia mais se manter calado.
-Alicia! - O silencio dela o preocupava. - Todos esses anos, eu achei que você est
ivesse morta. Ela me disse que você havia se afogado. E como em tantas outras cois
as, ela mentiu para mim!
- O senhor é meu pai? - Alicia deixou a idéia entrar em sua mente. - Meu pai!
Ela trançou os dedos nos fios prateados de sua barba e sorriu. Já o havia comparado
a Rudolpho tantas vezes e os achado tão parecidos, tanto quanto um gorgio e um cig
ano poderiam ser. Rudolpho ficaria feliz, seu instinto lhe afirmava, acalmando-a
.
- Eu sinto que o senhor está dizendo a verdade, mas Rudolpho ...
_ Rudolpho terá sempre um lugar muito especial no seu coração, minha querida - Philip
afirmou. - Eu entendo. Ele lhe deu o amor que eu não pude dar, e por isso serei se
mpre grato a ele.
Emocionada, Alicia assistiu a tourada com os olhos marejados. Seu pai! Philip Na
varro era seu pai. Não estava mais sozinha no mundo, e aquele era um motivo para f
icar muito feliz. Seria por isso que sentira algo especial por aquele gorgio de
cabelos prateados e tinha ido para a casa dele sem medo?
Don Philip tinha sido tão bondoso, como poderia deixar de amá-lo? Existiam tantas pe
rguntas a serem feitas ... Ela tentava entender o que havia acontecido. A filha
de don Philip havia sido levada de sua casa quando tinha quatro anos de idade. R
udolpho lhe dissera que ela, Alicia, tinha essa idade quando fora morar com ele.
Ela tentou, desesperadamente lembrar-se do passado,mas tudo que lhe vinha a memór
ia eram aqueles frios olhos cinzentos.
Olhos cinzentos! Como os de dona Luisa!
Não! Era difícil de acreditar! Que mulher seria tão má a ponto de tirar uma criança do próp
io pai? Mas.,. desde o começo a presença da mulher a deixara nervosa. Ela tinha de s
e lembrar, era a única maneira de ficar livre dos fantasmas que a perseguiam.
- Alicia, olhe, e Diablo, Aquele touro negro é meu! _ disse Philip.
Ela levantou os olhos e viu um magnífico animal entrar na arena, onde estava o tou
reiro. Havia ficado horrorizada ao saber que o premio que o touro recebia por su
a coragem era morrer pela espada. Instintivamente, ela apertou a mão de don Philip
.
- Vai depender do público, Alicia. Vamos torcer para que poupem Diablo.
Todos assistiam, ansiosos, ao drama que estava prestes a se desenrolar. O touro,
que cavava o chão com os cascos e bufava, era astuto. Ele seguia o toureiro pela
arena, passo a passo, com a cabeça baixa e os chifres brilhando ao sol. Quando Por
fim atacou, o animal derramou sangue do toureiro. Alicia enterrou o rosto no om
bro de don Philip, sem se atrever a olhar. Ela queria que o animal se salvasse,
mas não á custa da vida toureiro.
- Toro! Toro! - O público, antes tão devotado ao toureiro, agora ovacionava o touro.
Alicia achou que o homem de vermelho seria morto, mas quando o touro avançou, ele
se moveu como se não estivesse ferido e o animal pegou apenas a borda de sua capa
.
Naquele duelo, ora um, ora outro levava a melhor. O público rugia, refletindo com
seus gritos o que acontecia na arena.
-Torero! Torero!
Apenas quando a multidão ficou em silêncio,Alicia se atreveu a abrir os olhos.Mas o
que viu não foi o touro nem o toureiro,mas um rosto de que ela se lembrava muito b
em e que a fez estremecer.Assustada,tentou se esconder atrás de don Phillip.
-O que houve Alicia?
-Aquele homem,aquele que está olhando em nossa direção.
-Quem é ele?-Ela levou a mão ao peito,tentando acalmar seu coração que batia descompassa
do.-Eu me lembro dele.Foi o homem de quem eu fugi na igreja.
-Eu sei.-O rosto de Phillip expressava claramente a repulsa que sentia.-Este hom
em é Enrique Dorado,Alicia.
Mas não tema eu não permitirei que lhe faça nenhum mal.
-Enrique Dorado?
-Filho de doña Luisa e, meu enteado.Que Deus misericordioso nos proteja,ele voltou
da corte do rei Fernando e da rainha Isabel.
-Seu enteado?
Alicia observou Enrique Dorado que se aproximava,dominando o impulso de sair cor
rendo.Don Phillip a protegeria.O homem voltou sua atenção para a arena,com os polega
res para cima,como os outros na platéia para que Diablo fosse poupado,Alicia no en
tanto não sabia se ele mostraria tanta clemência com ela.
Os olhos de Enrique Dorado seguiam Alicia como os do toureiro tinham seguido o t
ouro.era um olhar penetrante,predatório e astuto,inclusive quando olhava para Don
Phillip.
Por mais que ela temesse sua própria segurança,tinha mais medo do que aconteceria co
m o homem que acabara de lhe revelar ser seu pai.Não tinha duvida de que Enrique
Dorado estava a espreita,esperando a hora certa para que pudesse acabar com o pa
drasto.Ela jurou em silencio que assim como Don Phillip prometera protegê-la ,ela
também o protegeria.
-Diablo,foi fantástico hoje,estou feliz que tenha sido poupado.O senhor é um verdade
iro mestre na criação de touros.-o sorriso de Enrique era lisonjeiro.Sem ser convida
do,ele se sentou no banco ao lado de Alicia,esbarrando a perna na dela.-Quem é ess
a linda señorira?
-Está é Alicia Maria Navarro,minha querida parente e hospede.-A expressão de Phillip e
ra extremamente protetora.
-Alicia Navarro?Uma prima distante talvez.Ele pegou os dedos de Alicia e levou a
os lábios para beijar-lhe a mão.-Então a senhorita também é minha parente por afinidade.
O olhar de avaliação mostrava claramente que Enrique não se lembrava de Alicia . Ele
a tinha visto antes como uma cigana maltrapilha e a gora, a considerava uma nobr
e. Por um momento a tourada ficou esquecida enquanto o homem tentava conquistar
Alicia com seu falso encanto.As atenções continuaram por todo o caminho até a casa de
Don Phillip e se intensificaram durante o jantar. Enrique Dorado não disfarçava seu
interesse por Alicia,para total irritação de Rafael.
Esse bufão vaidoso devia temer por sua vida se ousar a encostar a mão nela,pensou Ra
fael,irritado.
Se bem que ele duvidava de que Alicia fosse se interessar por Enrique,mas apenas
a atenção dele para com ela o deixava enciumado.
Alicia olhava para Rafael com desprezo,porem ele não conseguia os olhos dela.
Ela era tão linda!Ele desejava tocar aquela pele macia,realçada pela luz das velas.L
embrou-se da textura e do calor daquela pele sedosa e do toque da boca voluptuos
a e, um intenso onda de desejo lhe percorreu o corpo.
Rafael teve vontade de soltar-lhe os cabelos que estavam presos em uma coroa de
tranças e entremear os dedos em sua extensão. Por mais encantadora que Alicia estive
sse com um vestido da ultima moda, ele queria a sua cigana de volta.
Nunca o tempo havia demorado tanto a passar como enquanto ele aguentava a conve
rsa de Enrique Dorado. Se fosse possível, gostaria de pegar Alicia pela mão, leva-Ia
para o jardim e declarar seu amor e encontrar uma forma de reconquistar a afeição d
ela. Mas não podia fazer nada além de acaricia-Ia com os olhos.
Será que Alicia tinha noção de quanta sua rejeição o magoava?
Ele parece tão triste, como se o mundo pesasse sobre seus ombros, pensou Alicia.
O perdão começava a germinar dentro de seu coração e, quando seus olhos se encontraram
novamente com os de Rafael, ela sorriu.
O sorriso reavivou as esperanças dele. Encontraria algum jeito de ficarem sozinhos
e então arriscaria tudo para reconquistar o seu amor.
- Don Rafael! - Apesar de ter sido ignorada por ele durante o jantar, dona Luisa
elevou a voz, exigindo a atenção de Rafael. - Parece-me que o señor não ouviu uma palav
ra do que meu filho disse. Não lhe interessa o que acontece na Corte? - Sem espera
r a resposta de Rafael, ela repetiu, palavra por palavra, tudo que o filho revel
ara. - E muito triste que a filha dos soberanos tenha perdido o marido. Enrique
disse que ela esta muito triste. Pobre Alfonso, que caiu do cavalo e morreu! E o
que o senhor acha desse capitão do mar?
- Capitão do mar? - Rafael voltou subitamente a realidade, pensando que estavam fa
lando de Giovanni.
- Capitão? Eu não conheço nenhum capitão.
- Mas toda a Espanha já ouviu falar de Cristovão Colombo. Até eu dei dinheiro para sua
tola aventura. Imagine que ele se atreveu a ir ate o rei Fernando e a rainha Is
abel para pedir três navios que sejam capazes de navegar por dois meses ou mais. M
adre de Dios! - Enrique estava ansioso para terminar a historia que a mãe havia co
meçado.
- E qual foi a determinação real? - Rafael ficou curioso, imaginando se esses navios
e suprimentos poderiam ser usados para seus planos.
- Negaram, mas eu acho que ele vai acabar conseguindo.
A rainha Isabel esta muito impressionada com o homem, apesar de ser italiano. El
e insiste que tem que zarpar no máximo em agosto. Os nossos soberanos, porem, estão
preocupados com outro problema: os judeus.
- Os judeus? - Pela primeira vez, Rafael estava realmente interessado no que Enr
ique tinha a dizer.
Enrique sentia-se satisfeito, pois voltara a ser o centro das atenções. Ele ignorou
Rafael e dirigiu-se a Alicia, como se ela fosse a única pessoa na sala. Contou his
torias absurdas , como os casos de judeus que teriam sacrificado crianças cristãs e
de sacrilégios feitos com a cruz. Até a doença do jovem príncipe don Juan seria resultad
o de uma infâmia hebréia.
- Eu não acredito em nenhuma palavra disso! - protestou Phillip. - Isso não passa de
maldades e mentiras criadas por inveja e ignorância. Estou surpreso que você, Enriq
ue, se rebaixe a divulgá-las. E o pior e que essas historias absurdas são espalhadas
como se fossem zelo sagrado.
- Meu próprio irmão foi testemunha dessas coisas! _ defendeu-se Enrique.
- É ótimo que o rei Fernando não tenha o poder que nossa rainha tem em León e Castela. A
rainha Isabel, pelo menos, dará ouvidos á razão - Philip disse, confiante, olhando En
rique com uma expressão de censura.
- Os judeus se recusam a aceitar Cristo como Deus.
Invadiram terras cristas, roubam e matam cristãos, mesmo crianças - insistiu Enrique
.
- Basta! Não vou mais permitir tamanha difamação dentro da minha casa. Os judeus são hab
itantes de Leon e Castela, de toda a Espanha, e são meus vizinhos ...
- Eles não serão mais seus vizinhos por muito tempo. - Enrique parecia muito satisfe
ito, os olhos brilhando de ódio. - Torquemada e Juan estão certos, não vai haver uma E
spanha unida enquanto eles estiverem em nossa terra. A Espanha tem que ser compl
etamente crista. Se o senhor me fizer calar, jamais saberá o que esta acontecendo
...
- Don Philip, por favor, permita que ele fale - pediu Rafael, ansioso para saber
as novidades.
- Eu estava lá no dia em que os judeus se apresentaram diante da rainha e do rei.
- Enrique prosseguiu. - Disseram que já tinham feito muito pela Espanha e prometer
am se manter em seus guetos e não negociar mais com os cristãos. Seus representantes
, Abrahan Seneor e Isaac Abarbanel, ofereceram trinta mil ducados para cobrir os
custos da guerra. Trinta mil ducados! O suficiente para tentar qualquer homem,
mesmo um rei. Mas Torquemada estava lá e impediu que ele se rendesse á tentação. Judas v
endeu o filho de Deus por trinta moedas de prata, foi o que Torquemada disse. Os
monarcas pensam em vendê-lo novamente por trinta mil? Vendam-no, mas me excluam c
ompletamente dessa transação! - A voz de Enrique trovejava, como se, por um momento,
incorporasse o próprio Torquemada. Em seguida, ele jogou o crucifixo na mesa pera
nte os reis e saiu da sala. - Sorriu. - E então 0 edital de expulsão foi assinado.
- Expulsão? Os judeus serão banidos, então? - perguntou Rafael, amaldiçoando todos os To
rquemadas e os Juans Dorados deste mundo. Sabia que os soberanos jamais aprovari
am tal lei se não fosse pela malicia e fanatismo de Torquemada.
Torquemada! ? O nome também trouxe medo ao coração de Alicia. Todos sabiam que ele de
sprezava os judeus, e também os ciganos.
- E quanto aos ciganos? - perguntou ela, sem conseguir se conter.
- Os ciganos? - Enrique riu, inclinando a cabeça para trás. - Nos vamos nos livrar d
eles também. Como os judeus eles serão banidos da nossa terra!

CAPITULO XIX

Alicia saiu correndo da sala de jantar e foi para o jardim, ansiosa para ficar s
ozinha. "Banidos!" Todero, Zuba e os outros, o que aconteceria com eles? Para on
de poderiam ir?
Apertando o xale ao redor do corpo, ela fechou os olhos, sentindo-se impotente.
Nem mesmo sabia onde eles estavam. Não haveria nada que pudesse fazer.
Olhou, ansiosa, para o céu, como se as estrelas pudessem lhe dar uma resposta. Se
havia uma estrela para cada pessoa na terra, qual seria a estrela de Zuba? E a s
ua? será que ainda acreditava naquela fabula cigana? Não sabia mais no que acreditar
, nem para quem rezar. Padre Julio falara de um Deus de amor, o Deus cristão, mas
ela não poderia virar as costas ao Del. Eles não eram um só? Um único Deus, mas com nome
s diferentes? E o Deus judeu também?
- Ajude-os, Senhor. Por favor, ajude a todos eles! Padre Julio diz que o Senhor
e piedoso. Por favor, meu Deus. Não deixe que o Beng consiga seu intento. Não somos,
todos nós, seus filhos? - rezou baixinho.
Alicia andou pelo jardim, tentando organizar os seus pensamentos. Havia aconteci
do tanta coisa naquele dia. Don Philip declarara que ela era sua filha. Depois o
aparecimento de Enrique Dorado, um homem que ela temia, com seus olhos ameaçador
es, e trazendo noticias sobre banimento. E como se não bastasse, ainda havia Rafae
l. Ela o amava e naquele dia, quando os olhos dos dois se encontraram, ela ente
ndeu que também era amada. Seria tolice permitir que o orgulho os separasse.Ela er
a a filha de don Philip. Ele lhe dissera e, no fundo do coração, ela sabia que era v
erdade. O sangue dela, portanto, era tão nobre quanto o de Violetta.
Era verdade que Rafael a valorizava agora, depois de tê-la desprezado. Mas, se ela
se afastasse, estaria deixando que dona Luisa conseguisse o que queria ... Agin
do assim, permitiria que Violetta se casasse com seu amor, só para manter o seu ju
ramento.
Não!
O barulho de um graveto se quebrando avisou-a de que não estava sozinha. Viu a som
bra de urna pessoa oculta entre as plantas que cercavam o pátio. Seu sexto sentido
' confirmava que aqueles olhos de predador que a observavam não eram de Rafael ou
de don Philip.
- Quem é? - perguntou. - Quem esta aí? Rafael?
Não havia como fugir dali. Como um lobo perseguindo sua presa, Enrique Dorado saiu
das sombras e se colocou entre ela e a porta da casa.
- Que noite adorável, não é señorita?
- Realmente, señor, mas um pouco fria. Acho que voltarei para dentro. - Ela tentou
passar por ele, mas Enrique a segurou.
- Não se apresse tanto em partir, minha linda. Precisamos nos conhecer melhor. - E
le a puxou, bruscamente; para os seus braços, deixando suas intenções mais do que clar
as.
- Solte-me!
A única resposta foi uma risada, enquanto a arrastava para trás de alguns arbustos.
Assustada, Alicia lutou por sua honra tão violentamente quanta como fizera com Sti
vo. Seu cabelo se soltou e se espalhou pelos ombros. Os olhos dela o desafiavam.
Nenhum homem a teria contra a sua vontade, fosse gorgio ou cigano.
Enrique era considerado um cavalheiro, mas não era melhor que Stivo. Como acontece
ra com o jovem cigano, ele sentiria sua força.
- Solte-me! - repetiu ela, mas Enrique Dorado não se abalou.
Imaginando que ela estava amedrontada demais para fugir, ele afrouxou a mão que a
segurava. Era tudo de que Alicia precisava. Para sua sorte, ainda carregava sua
faca escondida no bolso da saia. E estava feliz de ter mantido esse costume ciga
no.
- Don Philip pensou que eu ficaria longe de você simplesmente porque ele mandou,
mas vou mostrar a todos que sempre consigo o que eu quero. E eu quero você.
- Mas esteja certo de que não vai conseguir, gorgio!
o vestido de brocado azul tinha se rasgado durante a luta, expondo parte dos sei
os de Alicia.
- Gorgio? - Enrique Dorado estava obviamente espantado.
Quantas mulheres indefesas teriam sido vitimas da voracidade daquele homem, perg
untou-se Alicia. Mas com ela seria diferente.
Ela não seria dominada facilmente. Nunca! A ponta da faca brilhou a luz da lua, e
Enrique arregalou os olhos.
- Dios, o que e isso?
- Uma faca, gorgio. Se você der mais um passo, vai descobrir o quanto ela e afiada
. - Enrique, porem, ignorou o aviso. - Estou avisando! Não quero feri-lo, mas ...
- Você não passa de urna mulher, eu não tenho medo de você. Solte esta faca. Ha outras c
oisas que eu prefiro que você segure. - Ele a olhava com desejo e um sorriso cruel
no rosto.
Não havia dúvida de que ele pretendia violentá-la. Mas ao precipitar-se para,cima dela
, Alicia usou a faca.
- Ah ... você me feriu! Em vez de tomar aquilo como um aviso, Enrique ficou enfurec
ido. - Eu pretendia agir com bondade, mas agora; por Dios, vou fazer você se arre
pender do que fez sua vadiazinha.
Ele a puxou pela saia, rasgando-a ainda mais. Segurou o pulso da mão que segurava
a faca e por pouco Alicia não perdeu sua arma. Ela olhou ao redor, na esperança de q
ue alguém da casa tivesse ouvido o barulho e aparecesse para ajuda-Ia. .
Enrique percebeu o que passava pela cabeça de Alicia e riu.
- Todos estão envolvidos em uma discussão teológica.
-Ninguém vai ouvir.
- Se é assim, terei que lutar sozinha!
Alicia atacou Enrique com uma violência que o surpreendeu. Ele ficou assustado, ol
hando para o sangue que escorria de um ferimento no braço.
- Eu não queria machucá-lo! Mas não tive escolha!
- Quem é você? - Os olhos de Enrique apertaram-se com dor e fúria, final mente a recon
hecendo. - Padre Julio! A cadela cigana! Uma cigana imunda! O que você esta fazend
o aqui? .
- Não sou cigana, apesar de que gostaria de ser. Sou a filha de Philip Navarro! -
A fúria que sentia por ser tratada daquela maneira fez com que eia confessasse o q
ue nunca deveria ter revelado.
- Filha dele? - Enrique a olhava, sem acreditar. - Filha dele? - Ele não queria ne
m imaginar 0 que aquilo poderia significar. - Seja você quem for, aviso de que você
conquistou um inimigo. Ninguém derrama o sangue de Enrique Dorado, muito menos uma
mulher. Você vai se arrepender do que fez pelo resto da vida. Vou faze-Ia pagar p
or isso, pode ter certeza!
Apenas uma vela iluminava a sala. A chama tremulava e movia-se ao sopro dos murmúr
ios trocados entre Enrique e sua mãe, dona Luisa. As vozes deles traiam a raiva e
o medo. - Então o que ela diz e a verdade. A cigana, a cadela que me atacou e a fi
lha do velho. Madre de Dios! Estamos arruinados!
- Nada disso. Eu não passei todos esses anos trabalhando e planejando para garant
ir a vocês uma herança, para ser posta de lado com o aparecimento dessa ... Cuidado,
ouvi um barulho!
- É só o vento. Todos na casa estão dormindo. - Só para ter certeza, Enrique abriu a por
ta da biblioteca e olhou do lado de fora. Satisfeito que não havia ninguém próximo, vo
ltou ao assunto. - Como ele a encontrou novamente?
- Ela o encontrou.
- A cigana do padre Julio? - Diante da confirmação pela mãe, ele praguejou: - Maldito
enxerido! Se eu soubesse naquele dia quem ela era, essa vagabunda nunca teria ti
do a chance de interferir em nossas vidas.
- Mas ela esta aqui e Philip sabe ...
- A senhora deveria ter se livrado dela.
- Eu não podia me arriscar tanto. O que eu poderia ter feito, envenena-Ia? - Apos
um longo silencio, Luisa acrescentou: - Eu nunca poderia fazer isso. Não sou urna
assassina, Enrique.
- Mas se a senhora tivesse usado um meio mais eficaz de tira-la do nosso caminho
, agora ela não estaria nos incomodando. Foi uma estupidez levá-la para os ciganos.
Se eu não fosse urna criança na época, teria pensado em um plano melhor.
- Quanta ingratidão! Pensei apenas nos meus filhos quando me desfiz dela. Nunca qu
is que vocês passassem pela mesma experiência, que eu. Foi por isso que, depois da m
orte da esposa de Phllip, fiz de tudo para convencê-lo a se casar comigo. E conseg
ui. Como eu ia saber que ele pretendia deixar tudo para a filha dele?
- Ele ainda não mudou o testamento? .
- Não, ainda não. Não me disse nada ainda, mas eu sei porque o ouvi contando á Rafael de
Villasandro .. E se ela se lembrar de que eu estava com ela naquele dia, seremo
s todos expulsos:' Philip não pode jamais saber o que eu fiz.
- A senhora acha que ele suspeita?
- Sim, ele suspeita, mas não tem certeza. Por sorte, Alicia não se lembra de nada do
passado. Típico de uma cigana _ acrescentou ela, com desdém.
- Cigana! É isto!
- Aguardei a sua volta, na esperança de que descubra como podemos agir. Não podemos
levantar suspeitas, atacando-a abertamente. Philip a protege dia e noite, como s
e ela fosse uma jóia preciosa, e o nosso convidado, señor de Villasandro, também esta
sempre de olho nela. Sem falar de Juanita, que mais parece a mãe dela. Se movermos
um dedo contra essa moça ... Não! É perigoso demais.
- Então não seremos nos a agirmos contra ela.
O gesto que Enrique fez para enfatizar o que acabara de dizer apagou a vela, dei
xando a sala no escuro.
- Como a senhora bem disse, ela é uma cigana!
- Ela é a filha de Philip. Qualquer um pode ver isso. Eu mesma a levei para os cig
anos. Eu sei ...
- Mas os outros não sabem! Ela é cigana! Como o idiota do seu marido poderá provar o c
ontrario? A senhora mesma me disse que a garota não se lembra.
- E os ciganos foram banidos. Dios, que plano!
- Ela é uma herege, uma paga e uma das escolhidas por Torquemada para ser banida d
e nossa terra. Preciso dizer mais? - A sala foi tomada pela risada sinistra dos
dois.
A senhora não precisa mais se preocupar. Quando os judeus e ciganos forem exilados
, ela estará entre eles, dou-lhe a minha palavra.
Rafael andava pelo quarto como um urso enjaulado, sem conseguir dormir. Como pod
eria repousar, depois de tudo o que havia descoberto aquela noite? Seu sangue fe
rvia de raiva ao se lembrar de como Enrique Dorado havia devorado Alicia com os
olhos. Ela não estava segura naquela casa com um homem daqueles a solta.
Será que ele teria reconhecido Alicia como a cigana que assustara na presença de pad
re Julio? Não, ele a tratara com muito respeito, apesar da luxuria de seus olhos.
O som de passos no corredor o deixou alarmado. Quem mais estaria acordado aquela
hora? Espiou pela fresta da porta e viu Enrique. Ao passar pelo quarto de Alici
a, ele parou um pouco, pôs a mão no trinco da porta, mas em seguida seguiu em frente
e entrou em seus próprios aposentos.
Rafael tinha se mantido distante de Alicia, decidido a não implorar pelo perdão dela
, mas agora ele sabia que tinha que vê-Ia e avisá-la do risco que corria. Foi, em si
lencio, para o quarto dela e descobriu, como havia acontecido com Enrique Dorado
pouco antes, que a porta estava trancada.
- Alicia, e Rafael.
- Rafael!
O som da voz dele naquele momento pavor era tudo o que ela queria ouvir em um mo
mento em que estava tão abalada. Sem hesitar, abriu a porta.
Rafael entrou, rapidamente fechando e trancando a porta atrás de si. Ao olhar para
Alicia, viu 0 medo no rosto dela.
-Alicia, não vim aqui para magoa-Ia. Preciso conversar com você, mas se preferir vou
embora.
-Não! -:- Ela tremia e Rafael não hesitou em abraça-Ia.
-O que aconteceu? Por que você esta tremendo tanto? _ Ele abraçou-a mais forte, aspi
rando o perfume do seu cabelo. - Enrique ... está noite ... no jardim ... - Lagrim
as rolavam ,de seus olhos. - Ele é como Stivo.
- Dorado? Vou matá-lo! - disse ele por entre os dentes. Apesar da tensão de Rafael,
o seu abraço acalmou Alicia. - Ele chegou a tocá-la?
A resposta foi uma risada de desdém.
- Eu nunca permitiria que um homem como ele me rebaixasse a esse ponto. Ele sent
iu o fio da minha faca.
- Sua faca? - Rafael podia imaginar a cena e riu ao pensar na surpresa de Dorado
ao ver que sua vitima era menos impotente do que imaginara.
- Você ri, gorgio?
Todas as semanas aprendendo a se portar como urna dama tinham desaparecido, e Al
icia voltou a ser a feroz cigana de que ele se lembrava e amava.
- Estou apenas feliz por ter a minha amável cigana de volta aos meus braços.
Alicia vestia uma camisola de linho branco, os pés descalços, os longos cabelos solt
os. Ele não resistiu e passou os dedos pelos cabelos dela.
- Você não tem idéia de quanta senti falta da minha cigana. Dona Alicia e urna adorável
senhorita espanhola, mas nem ela pode tomar o lugar da minha Alicia! O olhar del
e deslizou, cheio de amor, sobre o corpo delicado em seus braços.
Os segundos em que ficaram se entreolhando refletiram na pele de Alicia levantan
do-a em arrepios. Para não perder a altivez, ela ergueu o queixo em desafio e mant
eve a postura, embora tivesse reconhecido o imenso amor nos olhos dele. Foi o qu
e bastou para calar as razões que acreditara existir e permaneceu quieta.
- Eu te amo, Alicia. Essa não e a primeira vez que digo isso, mas vou repetir quan
tas vezes for necessário. Vim aqui para avisa-Ia sobre Enrique Dorado, porem vejo
que cheguei tarde. Ele e perigoso, assim como toda a família. Estamos no meio de u
m vespeiro. Gostaria de leva-Ia embora daqui.
- Como assim?
Alicia não sabia ao certo 0 que queria ouvir, mas procurou algum traço revelador no
semblante de Rafael, fitando-o por longos minutos. Rafael era um homem muito bon
ito, mas o que chamou mais sua atenção foram os lábios carnudos. Ah, como desejava pro
vá-los mais uma vez! ... - Você viria comigo, Alicia?
Acrescentando mais uma emoção aquele momento, Rafael tomou-lhe a mão, levou-a ate sua
boca e permitiu que ela sentisse o calor de seus lábios.
E naquele momento, Alicia soube que, apesar de tudo, sempre o amava.
- Sim, Rafael, eu iria.
Todas as barreiras erguidas pelo orgulho desmoronaram. Alicia coisa que importav
a era o quanto o amava.
Rafael foi muito cauteloso, com medo de romper a frágil harmonia recém-estabelecida
entre os dois. Tantas vezes sonhara com aquele momento, enfeitiçado pelo belo sorr
iso de Alicia, ao mesmo em que as cenas de amor, que um dia tinham desfrutado, l
he vinham a mente. A suavidade do corpo dela o levava a loucura, mas controlando
a vontade de possuí-la, ele se aproximou com cautela enlaçando-a pela cintura.
Estavam a distância de um beijo e ela não se afastou, apesar de estar com os olhos a
rregalados e o rosto vestido em Lima mascara carmim.
A única coisa que importava para Alicia era estar novamente nos bravos de seu amad
o. Ela fora a escolhida, e não Violetta. Rafael amava a cigana, e não a dama.
Gentilmente, ele a beijou, fazendo-a entrar num turbilhão de sensações do qual ela se
lembrava tão bem. Ah, como era maravilhoso beijá-lo novamente, estar envolvida por a
queles braços fortes e sentir o coração de Rafael batendo contra o seu! Ela pressionou
o corpo contra o dele. Foram inúteis os esforços para aplacar a vontade de estar ab
raçada a ele. Não se esquecera um instante sequer, apesar da sua raiva e dor.
Suspirou ao envolvê-lo pelo pescoço, pressionando os seios contra o tórax musculoso, e
ncaixando as pernas entre as dele.
Rafael se esqueceu de tudo que não fosse o suave corpo da mulher amada em seus braço
s. Todos os desejos mantidos sob controle por tanto tempo se libertaram.
-Alicia ...
Sussurrando o nome dela, ele moveu os lábios pelo rosto delicado, acariciando-lhe
a orelha, os olhos, o pescoço e voltando para a boca. A sede que sentia era incess
ante, feroz.
Os dois corpos se moldaram um ao outro, os braços se entrelaçaram e os corpos se fun
diram em um único ser. Alicia sabia que ela nunca mais poderia rejeitá-lo, não importa
va o que acontecesse. Eles tinham desperdiçado um tempo muito precioso. Não importav
a que Rafael pudesse abandoná-la mais uma vez. Ela sabia que as forças que os tinham
juntado sempre o trariam de volta a seus braços.
E, naquele momento, decidiu que esperaria por ele, mesmo que fosse para sempre.
Desde aquela primeira noite sob as estrelas, ela soubera que pertenceria a ele.
Nenhum outro homem jamais a possuiria. Amava Rafael, não existia, nem jamais haver
ia alguém semelhante.
A febre do desejo a fez arquear o corpo para trás. Ansiava por sentir o contato do
s corpos nus, deitar-se ao lado dele sob o luar. Afinal, eram casados, segundo a
s leis e os votos em que ela acreditava. Consumar seu amor era certo.
Apesar de ter negado com palavras, Alicia desejava que ele a amasse. Dessa forma
, não protestou quando Rafael a pegou no colo e a carregou ate a enorme cama.
- Você sabe que quero fazer amor com você, Alicia.
Mas somente se você quiser. Caso contrario, vou embora imediatamente. - A respiração d
ele era difícil, e seus olhos brilhavam de desejo, mas Alicia sabia que sua vontad
e prevaleceria.
- Não vá embora! Eu queria que você me procurasse.
Achei que você gostasse daquela gorgio ...
- Violetta? Amo você, Alicia, sou cego para qualquer outra mulher, apesar da insis
tência de dona Luisa. Ela quer um marido para a filha, mas escolheu um homem que já
,tinha uma esposa.
As bocas se uniram com urgência, como se estivessem fazendo novamente os votos nup
ciais.
Languidos, os dedos de Rafael passearam pelo corpo dela. Ao baixar a camisola, e
le viu o caco de cerâmica que ela carregava entre os seios, preso a uma fita pendu
rada no pescoço, e 0 tocou com reverência.
- Eu fui o maior dos tolos, Alicia. Você pode me perdoar?
- Já o perdoei ha muito tempo, apesar das coisas que disse. Eu pertenço a você, Rafael
. Agora e para sempre.
Os olhos de Alicia se encheram de lagrimas ao vê-lo tirar do bolso da camisa o out
ro caco do jarro quebrado na cerimônia do casamento. Ela havia pensado que a cerimôn
ia cigana não significara nada para Rafael, mas ele também tinha guardado perto do c
oração o símbolo da união.
Ela o fitou por um longo momento, como se tivessem se encontrado primeira vez, m
as ao mesmo tempo, como se conhecessem desde sempre.
O toque da mão de Rafael em seus seios a fez estremecer e o pulso acelerar. A paixão
, que o consumia, revelava-se pela chama brilhante de seus olhos.
Envolvidos nos braços um do outro, eles se exploraram gentilmente e, com mãos impaci
entes, se despiram. Com um gemido, ele se deitou cobrindo o corpo dela com o seu
.
A paixão explodiu entre eles em um abandono selvagem, unindo os dois de corpo, alm
a, coração e mente. Como a corrente de um rio,caudaloso, 0 corpo de Alicia atraiu o
dele com uma força sensual. As pernas abraçando-o no quadril, possuindo-o com ,a mes
ma voracidade que ele. Era como se ela fosse um recipiente de doçura, prestes a se
r consumida pelo calor e amor de Rafael.
Não demorou para que o êxtase os sugasse, levando-os ao epicentro do pleno,prazer.
O mundo deixou de existir, e nada mais importava alem do desejo que uniria os do
is corações para sempre.
- Eu te amo. E vou amar você para sempre, indiferente a qualquer situação adversa. Não s
e esqueça disso. Peço que acredite e confie em mim. Aceitei uma missão que devo termin
ar antes que podermos ficar juntos.
- Eu vou confiar em você. - Ela enterrou o rosto no peito largo, sentindo-se a sal
vo e segura.
Por um momento, os amantes estavam longe das maldades e crueldades do mundo, cie
ntes apenas da felicidade de estarem juntos. Naquele momento, não existia Torquema
da, Inquisição, ódio ou violência, mas somente o amor.
Alicia e Rafael passaram o resto da noite juntos, os corpos entrelaçados. Nenhum d
eles queria quebrar aquele maravilhoso feitiço que os envolvia. Fizeram amor novam
ente sem a mesma intensidade, mas com menos pressa, aproveitando cada segundo.
No silencio do depois, Rafael acariciou as costas de Alicia, e ela adormeceu e t
eve sonhos maravilhosos.
- Rafael? - Ela abriu os olhos pela manha e se descobriu sozinha.
Por um momento, receou que tudo não tivesse passado de um sonho. Foi tomada por um
a decepção devastadora, mas ao correr os olhos pelo quarto, viu o que ele deixara. O
caco de cerâmica, junto ao dela. Um símbolo de que ele voltaria, de que o amor de a
mbos seria eterno, exatamente como diziam os seus votos de casamento.

CAPITULO XX

Sentindo-se segura quanta ao amor de Rafael, Alicia passou a olhar o mundo com o
utros olhos. Estava satisfeita, verdadeiramente viva. O mundo era lindo. Nem o e
sforço constante de unir Violetta e Rafael podia estragar sua felicidade.
Ela tinha certeza de que Rafael nunca escolheria Violetta como noiva. Ele mesmo
já tinha confessado sua preferência,a cada noite dava provas de seu amor.
Alicia descobriu, entretanto, que a felicidade era algo frágil. Ela e Rafael não pod
eriam se manter afastados do mundo indefinidamente. Uma tempestade estava preste
s a estourar, e Rafael estava no meio do furacão.
A ansiedade era visível no arfar do peito de Rafael, mas ele não dizia nada, por med
o de envolve-Ia no perigo. Nas semanas que se seguiram, ele passou longos períodos
longe da casa de don Philip. Alicia teria morrido de preocupação, mas havia prometi
do confiar nele.
Don Philip era muito atencioso, e o vinculo entre eles havia se fortalecido muit
o depois que soubera que ele era seu pai. Ele estava decepcionado por ela não ter
se lembrado da primeira infância, mas era um homem paciente. Temendo inflamar o ódio
de Enrique contra seu pai, Alicia não lhe contou sobre o ataque no jardim, contu
do nunca mais andou sozinha por entre as flores,e sempre trancava a porta do qua
rto.
Mesmo assim os olhos de Enrique Dorado a incomodavam. Tinha feito um inimigo. Er
a como se ele a observasse e esperasse, não se sabia o que.
O verão pairava no ar, com a promessa da beleza que se aproximava. Alicia desejava
ficar ao ar livre, mas evitava o jardim. Seguia o exemplo das outras mulheres d
a casa e bordava, apesar de a toda hora furar os dedos com a agulha. Achava que
bordar era uma tolice de gorgios. Por outro lado, adorava quando o pai a convida
va para ir a cidade com ele. Ignorando os olhares de reprovação de dona Luisa, ela e
scapava da casa tão feliz quanta um pássaro que estivera engaiolado.
Naquele dia, as ruas estavam lotadas e cheias de flores e bandeirolas. O clima f
estivo contagiou Alicia. Uma mulher apaixonada era como uma estrela brilhante, u
ma luz radiante. Don Philip notou e ficou feliz por ela.
- Rafael de Villasandro é um bom homem, um cavalheiro. Estou contente porque ele t
rouxe um sorriso a seus lábios de novo.
Lembrando-se das noites repletas de paixão, Alicia corou, imaginando o que o pai p
ensaria se soubesse o que ela andava fazendo.
- Eu o amo, papai, e agora eu sei que sou amada! Ele se declarou.
- E você tinha alguma duvida? Quando Rafael a encontrou aqui em casa, o rosto dele
irradiava amor. Ele tinha me contado do amor que senti a por uma moça cigana e qu
e desejava reencontra-Ia. Fico feliz que isso tenha acontecido.
Trovadores e menestréis com roupas coloridas, carregando nas costas flautas e har
pas, misturavam-se as pessoas, sempre prontos a cantar uma musica por uma ou dua
s moedas.
Alicia chamou a atenção de alguns deles, que louvaram a sua beleza com musicas e ver
sos. Don Philip parecia divertir-se a certa altura, cumprimentou com entusiasmo
um jovem músico.
- Aquele caballero bonito, de cabelos castanho-avermelhados, e de uma família vizi
nha. Ele se chama Alfonso Suarez. Há algum tempo, ele se interessou por Violetta,
mas dona Luisa achou que não servia para a filha.
- Por que?
_ Ele é o quinto filho. Sem fortuna, terras ou qualquer esperança de se tornar rico
, alem de ter adotado uma vida errante de um trovador.
O soar de um sino anunciou a hora. Philip disse a Alicia que muitos dos foliões es
tavam indo para um torneio de justa. Esse tipo de combate não era mais tão popular q
uanto um século antes, no entanto ainda atraia um bom público.
Alicia ficou curiosa.
- Esse combate e como as touradas?
Philip sorriu.
- Na justa, dois homens simulam uma luta para ganhar dama e mostrar suas habilid
ades. Venha, vou lhe mostrar. - Ele a levou até a área que havia sido separada para
o torneio cercada de bancos cobertos com toldos. - Quando você era criança, adorava
me acompanhar.
Alicia tentou se lembrar, mas, como em muitas outras coisas, sua mente parecia v
azia.
Os pavilhões também tinham um ar festivo, porem havia uma certa tensão. Por toda parte
as pessoas comentavam, em voz baixa, o decreto de banimento.
- Por esse decreto, qualquer judeu que se recusar a receber o batismo têm um mês par
a deixar a Espanha para nunca mais voltar, sob pena de morte - comentou um homem
.
- A Espanha faz bem de se livrar deles, tanto quanto desses ladrões ciganos.
- Ciganos não são ladrões! - Alicia não conseguiu se conter.
- O que a senhora sabe sobre isso? São sim!
- Não são!
A mão de Philip em seu braço a impediu de continuar argumentando. Ele a guiou, com g
entileza e firmeza, até um banco protegido do sol. Ali eles assistiram a dois home
ns a cavalo, vestidos com armaduras, golpeando-se com espadas e lanças.
Estava um dia muito quente, e, em dado momento, Philip resolveu ir buscar refres
cos e a fez prometer que não sairia do lugar. Alicia o observava por entre a multi
dão, quando viu Rafael de relance. Esquecendo-se da promessa que fizera ao pai, el
a se apressou a ir encontrá-lo. Ele não estava sozinho.
Um homem alto, de cabelos escuros, com um chapéu cheio de plumas coloridas estava
ao lado dele. Os dois conversavam.
- Temos que agir com rapidez, Giovanni. - Ela ouviu Rafael dizer.
- Os barcos estarão prontos. Só estou esperando a sua carga, amico mio. - Palavras i
nocentes, mas Alicia não se deixou enganar. A sua intuição lhe dizia que Rafael corria
perigo. Quando ela se aproximou, os dois homens se calaram.
- Alicia? O que você esta fazendo aqui? - perguntou-lhe Rafael, com olhar exaspera
do.
- Papai me trouxe. Nunca havia visto uma justa antes.
Rafael...
- Ah ... então esta e a bela Alicia de quem você me falou.
- O homem de nome Giovanni fez-lhe uma mesura. _ Bella! Bella! Não e de se espanta
r que ela tenha conquistado o seu coração. Agora eu sei por que você a procurou tanto
pelas ruas de Salamanca.
Alicia corou diante do exame detalhado de Giovanni mas gostou daquele homem e l
he retribuiu o sorriso.
- Muito prazer, meu nome é Giovanni - apresentou-se ele.
- Ele é um capitão de navio, Alicia. Ele quer trocar vidro veneziano por azeitonas e
carne de Leon.
- Azeitonas? Carne? - Eram muitas as perguntas que gostaria de fazer, mas Rafael
, apesar de cortes, deixava claro que aquela não era uma boa hora. Preocupada, ela
viu don Philip voltando ao banco, despediu-se e saiu apressada.
Rafael observou-a se afastar, desejando chamá-la de volta. - Você não contou para ela?
- Era mais uma afirmação que uma pergunta.
- Não, seria perigoso demais.
- Pode ser mais perigoso se ela não souber. Vamos voltar aos nossos lugares, como
se estivéssemos gostando desse torneio.
Nenhum dos homens percebeu que estavam sendo observados, mas dois pares de olhos
os vigiavam enquanto eles se afastavam.
- A mulher que o cumprimentou e a de que eu lhe falei a respeito, Juan. Ela esta
hospedada na casa de nosso padrasto agora.
-Alicia!
- A nossa cigana. Eu suspeito que Rafael de Villasandro seja amante dela.
- Eu confiei nesse homem. Se ele esta envolvido com essa mulher, pode haver cons
equências desagradáveis. Espero não ter sido tolo.
- Ele pareceu perturbado quando eu lhe disse sobre o decreto. Será que e um lobo e
m pele de cordeiro?
- Talvez. Temos que vigiá-lo com mais cuidado, Enrique.
- Juan Dorado acrescentou o nome de Rafael de Villasandro á lista dos que merecia
m a atenção de seus espiões.
Era tarde quando Rafael retornou a casa dos Navarro, mas, apesar da hora, ele de
sejava encontrar conforto nos braços de Alicia. Talvez assim conseguisse se esquec
er do que vira naquele', dia. Os judeus de Salamanca estavam se preparando para
o êxodo.
Caridade cristã, pensou ele com amargura. Ouvira histórias de judeus trocando sua ca
sa por um jumento, ou vendendo seus vinhedos por uma peça de tecido. Os judeus es
tavam sendo banidos do pais que ,havia sido a pátria de seus ancestrais durante sécu
los e sendo obrigados a se desfazerem de todas suas coisas rapidamente. Aproveit
ando-se disso, os nobres cristãos, entre eles Juan Dorado, faziam barganhas impied
osas.
Tudo o que Rafael havia podido fazer era prometer a passagem no navio, mas sabia
que isso não era suficiente. E seria único se fosse descoberto. Um decreto proibia
os cristãos de fazer amizade, ajudar, dar comida ou abrigo a judeus.
Torquemada proibira ainda qualquer ajuda aos judeus nas estradas. Quem fosse bat
izado poderia ficar na Espanha.
Ao chegar bem cedo a cidade, Rafael ficou horrorizado ao ver que os dominicanos,
em suas túnicas brancas e negras, já estavam por toda parte, pressionando os judeus
a se batizarem. Mais pareciam vendedores de rua no seu fervor religioso.
Eles não respeitavam nada. Invadiam ate sinagogas.
Mesmo judeus chorando sobre os túmulos de seus mortos antes de abandoná-los, eram ab
ordados pelos padres e freis de Torquemada. Alguns se convertiam, mas a maioria
não.
Aqueles que Rafael tinha conseguido contatar haviam sido levados de Salamanca pa
ra Madrigal, de Medina del Campo para La Mota, e de lá para Portugal, ontem pegari
am os navios de Giovanni, com destino a Itália. Montara-se uma corrente de simpati
zantes ao longo do caminho. Ainda havia cristãos que acreditavam na fraternidade.
Entretanto; Rafael não queria pensar naquilo agora. Por apenas um momento, ele que
ria esquecer todo o sofrimento e se refugiar nos braços de Alicia. Ficou em duvida
se ela .
Não tinha suspeitado de nada. Afinal, tinha se encontrado com Giovanni perto do lo
cal do combate por segurança. Era perigoso ser visto conversando nas sombras e ser
ia menos arriscado no meio da multidão, ou pelo menos era o que ele e Giovanni hav
iam achado. Nunca imaginara encontrar Alicia ali.
A casa inteira estava na escuridão, mas ele sabia de cor como chegar ao quarto de
Alicia. Rápida e silenciosamente, foi até lá e bateu na grossa porta de madeira, da fo
rma que eles haviam combinado. Temia que ela já estivesse dormindo, mas a porta se
abriu.
- Rafael!
Ele entrou e a abraçou, silenciando-a com seus beijos. Apenas a suave luz da lua i
luminava o quarto. Olhando o rosto dela, Rafael viu preocupação mesclada com amor.
Mais uma vez, ficou impressionado com a beleza de Alicia. Ela era um paraíso de co
nforto e sanidade em um mundo que havia enlouquecido. Por um longo período, ele se
satisfez em abraça-Ia. Depois, ele a pegou no colo e a levou para a cama. Acarici
ou-a e beijou, sem deixar nenhuma parte de seu corpo intocada, e Alicia responde
u com uma paixão tão selvagem e indomada quanto o seu coração.
- Eu te amo, Alicia!
Olhando nos olhos dele, Alicia sentiu uma enorme ternura e se agarrou aquele pei
to forte. Começou a explorar o corpo dele, como ele havia feito com o dela. Pela p
rimeira vez, era ela quem tomava a iniciativa, acalmando Rafael com seu amor, ti
rando a dor que lhe machucava o coração. Não havia nada no mundo a não ser esse homem pr
eenchendo todo seu ser e amando. A força e a maravilha da ternura da união tomaram c
onta dos dois.
- Alicia, minha doce Alicia ... Rezo a Deus que eu não lhe traga mais dor.
- A única dor que eu poderia ter seria ficar sem você.
- Ela o abraçou, entrelaçando braços e pernas ao redor dele, como se assim pudesse seg
urá-lo perto de si para sempre. - Rafael, eu sinto que você corre perigo, aquele hom
em, Giovanni ...
- Ele é amigo, não inimigo. Ele esta me ajudando. Não posso dizer-lhe mais do que isso
.
- Rafael...
- Shhh, amor. - Gentilmente, seus lábios acariciaram os dela, calando as perguntas
que ainda estava por fazer.
E o silencio reinou em absoluto, exceto pelo bater de seus corações, o som de seus s
uspiros, enquanto um desejo doce e quente os unia, trazendo paz e alegria antes
da fúria que estava por vir.
O verão havia chegado, trazendo dias quentes e noites insones. Alicia se lembraria
depois daquele período como o mês de sua maior felicidade e também de iminente pesar.
O mês de junho havia sido cheio de festivais, musicas e alegrias. Pela primeira ve
z na vida, Alicia estava completamente dominada pelas emoções, entregando-se de corp
o e alma ao animo geral. Apenas os frequentes episódios de melancolia de Rafael am
eaçavam sua completa felicidade. O tempo que ela passava em seus braços, porem, lhe
trazia enorme felicidade.
Protegida pelo casulo que Philip Navarro havia tecido ao redor dela, Alicia não ti
nha a menor idéia da trama que se armava entre os muros da hacienda.
Uma noite, Philip tinha programado uma fiesta para reconhecer publicamente Alici
a Maria Navarro, como sua filha e sua herdeira. Ela ficou divida entre a alegria
e a apreensão. Orgulhava-se de ser filha dele, mas se preocupava com o que essa d
eclaração faria ao orgulho de Violetta. A jovem só havia lhe mostrado hostilidade, mas
Alicia tinha pena dela e lamentava que não tivessem sido amigas. E dona Luisa? A
inimizade brilhava nos olhos da mulher.
Do balcão de seu quarto, Alicia olhava as estrelas e o jardim, que havia sido enfe
itado com lanternas. Um menestrel cantava, acompanhado de uma flauta. Ela o reco
nheceu como sendo Alfonso Suarez e sorriu. Se sua meio-irmã fosse uma mulher feliz
, ela não teria necessidade de sentir inveja dos outros.
A face do meu amor e branca como uma rosa,
a asa do corvo e negra como seu cabelo.
Parando sob o balcão de Violetta, o menestrel não fez segredo que cantava sua balada
para ela. Violetta que estava na sacada admirando as flores, o repreendeu:
- Alfonso! Quieto, você atraíra a ira de minha mãe sobre nos dois. Esqueceu-se de como
o temperamento dela e violento? - A voz da moça era apenas um suspiro.
- Que ela se enfureça! Eu nunca deveria tê-la deixado, Violetta. Você é a única mulher que
eu amei em toda a minha vida.
- Alfonso! - Os protestos de Violetta não escondiam a alegria que as palavras dele
lhe trouxeram, e Alicia surpreendeu-se ao ver quão adorável a jovem de cabelos escu
ros podia ser quando sorria.
- Fuja comigo!
- Não posso, Alfonso, minha mãe quer que eu me case com outro.
- Mas você o ama?
- Ele é muito bonito e minha mãe diz ...
- Você o ama?
- Acho que não. Mas eu não suportaria partir o coração dele.
- Mas você esta partindo o meu ...
- Oh, por favor. Não fale assim.
- Então me dê uma prova seu amor. É tudo o que eu peço.
Alicia, então, viu Violetta tirar a rosa que usava nos cabelos e a atirar aos pés do
menestrel.
- Uma rosa vermelha e linda, mas que tem inveja de seus lábios.
- Alfonso, não fale assim. Eu vou me casar em breve.
Minha mãe ...
Alicia virou-se e entrou para dentro do quarto, dando ao menestrel e sua amada d
ama maior privacidade. Embora tivesse certeza do amor de Rafael, as palavras de
Violetta a deixaram magoada. Ela desceu lentamente as escadas.
O solar estava cheio de gente que não conhecia, cavalheiros que usavam calças e pale
tós justos e de cores vivas, e damas com vestidos multicoloridos. Eles a fizeram s
e lembrar dos gorgios que a haviam desprezado quando chegara a Leon e se sentiu
nervosa e acanhada. Queria fugir dali.
- Alicia! - Philip cumprimentou a filha calorosamente, beijando-a na face. - Hoj
e é um dia que eu guardarei como um tesouro no coração. Um dia que me traz alegria e t
risteza. Você nasceu exatamente ha dezoito anos. Achei que era um bom dia para apr
esenta-Ia a meus amigos.
- O dia em que eu nasci ...
- Se sua mãe tivesse vivido para ver este dia, ela estaria muito orgulhosa. - Toma
ndo-a pelo braço, ele passeou por entreos grupos de convidados, exibindo, com seu
sorriso, o seu orgulho. Ele apresentava Alicia a tantas pessoas e ela sabia que
nunca se lembraria de todos os nomes.
Alicia foi saudada com entusiasmo por algumas das pessoas que a haviam apedrejad
o nas ruas, mas que não mais a reconheciam. Padre Julio havia dito que o perdão era
uma benção e, com um suspiro, ela tentou esquecer o passado. Se aqueles eram os ami
gos de seu pai, ela teria que aprender a gostar deles.
Quando Rafael entrou na sala, ela sentiu o coração acelerar. Os olhos dos dois se en
contraram, e ela percebeu que ele estava triste. Queria acariciá-lo, mas os convid
ados de seu pai eram uma barreira humana que os mantinha separados.
As horas se passaram em meio a conversas, musicas e vinho. Finalmente, Rafael co
nseguiu aproximar-se de Alicia. - Don Philip me disse que hoje e seu aniversario
. E eu contei a ele que nos somos casados, Alicia.
- Você contou? Então ele sabe!
- Ele gostaria que nos refizéssemos os nossos votos diante de um padre. Você aceita
se tornar minha esposa mais lima vez?
Alicia sentiu o calor do hálito dele, enquanto Rafael sussurrava no seu ouvido:
- Eu te amo, minha adorável esposa cigana.
Alicia não sabia o que dizer, mas seu sorriso respondeu por ela. Ela esperava por
aquele pedido e por um casamento cristão. Padre Julio havia sido inflexível quanta á i
mportância de tal cerimônia. Ela se ligaria a Rafael pelas leis ciganas e cristãs. Rud
olpho ficaria feliz.
Juntos, eles foram ate onde Philip Navarro estava.
- Papai ...
Contudo, as palavras de Alicia foram encobertas por um grito furioso. Luisa fora
ao quarto da filha, mas voltara sem Violetta e com um bilhete nas mãos.
Alicia, Rafael e Philip correram para perto da mulher, que chorava copiosamente.
- O que foi? - perguntou Philip, pegando o bilhete. Ao lê-lo, porem, ele sorriu. -
Violetta fugiu com aquele menestrel, Alfonso Suarez. - Ele piscou para Rafael -
Ela lhe pede desculpas por ter partido o seu coração e deseja que você tente esquece-
Ia.
- Nunca vou perdoá-la! - exclamou Luisa, afastando-se apressada.- Fugir com aquele
...
Alicia estava encantada com a coragem de Violetta e aliviada ao mesmo tempo, poi
s a jovem não mais cercaria, Rafael. No fim, tudo dera certo. Ela encontrara o seu
pai, Rafael a amava, o que mais poderia querer? A sala estava cheia de convidad
os, mas era como se ela e Rafael estivessem sozinhos. Nem o olhar lascivo de Enr
ique Dorado poderia arruinar sua felicidade. Seus olhos estavam tão voltados para
Rafael que ela não notou a entrada de um padre, de batina negra, ate que outros se
virassem para olhá-lo.
- O senhor veio se unir as nossas festividades, padre Dorado? - O tom de Philip
era frio. Embora ele fizesse uma pequena reverencia em sinal de respeito.
- Vim a serviço de Deus! - Olhos frios e cruéis examinaram Rafael. - Há um inimigo ent
re nós.
Saindo das sombras, sete oficiais especiais da Inquisição entraram na sala.
- Como você se atreve a invadir a minha casal - Philip Navarro não tinha medo do ent
eado, mas foi incapaz de deter os homens armados quando eles cercaram Rafael.
- Este homem esta preso. - A um sinal de Juan Dorado dois homens agarraram os br
aços de Rafael.
- Preso? Do que eu sou acusado?
- O Santo Oficio não costuma informar um prisioneiro das acusações contra ele. Nos ape
nas temos que fazê-lo confessar.
Alicia abriu caminho ate Rafael. - Não! Não podem levá-lo.
Ela foi brutalmente jogada para o lado e ficou assistindo, impotente e horroriza
da, Rafael ser arrastado para fora, prisioneiro do ódio de Juan Dorado.

CAPITULO XXI

Rafael! - O grito de lamento de Alicia perdeu-se --- entre a comoção e tumulto que a
prisão havia criado. Ela tentou segui-lo, mas o pai bloqueou o caminho. - Eu tenh
o que ir ate ele! Por favor, papai!
- Não, Alicia. Temos que ficar calmos e ser cuidadosos. Correr atrás dele poderia pi
orar a situação. Você está me entendendo?
Alicia assentiu, chorando, impotente, no peito dele.Acariciando os cabelos da fi
lha, Philip tentou conforta-Ia.
- Deve ser um engano. Rafael é o mais nobre dos homens.
- Ele olhou, irritado, para a esposa. - Seu filho enlouqueceu, mulher. Ele se vo
ltou contra o homem que ele mesmo pôs nesta casa como hospede. Por que?
- Talvez esse Rafael não seja tão nobre quanta você acredita. - Ela se afastou, mas ma
nteve os olhos fixos no marido e na filha dele, e, depois, olhou de forma signif
icativa para Enrique.
Os soluços de Alicia partiam o coração de Philip.
- Vou falar com meu enteado agora mesmo. Eu vou fazê-lo desfazer esse absurdo. Den
tro de uma hora, Rafael estará de volta ao paraíso de seus braços.
Dito isso, ele escoltou a filha para a segurança de seu quarto e pediu que ela fic
asse ali. Chorando, Alicia prometeu obedecê-lo. Correndo ate a sacada, ela viu o p
ai sair de casa e ouviu os cascos de seu cavalo enquanto ele se afastava.
Como poderia esperar? Rafael era o seu amor, a sua vida!
Ela correu para porta, mas a razão a fez pensar duas vezes. Don Philip era sábio, co
mo Rudolpho havia sido, e se ele havia dito para ela ficar ali tinha um bom moti
vo.
Alicia procurou organizar seus pensamentos. Daria tempo para seu pai ajudar Rafa
el, sem deixar que as suas emoções a levassem a fazer algo de que se arrependesse de
pois. Porem, atormentava-se com a idéia de que Rafael fosse culpado. Ela o tinha o
uvido conversar com o capitão do navio sobre um carregamento e sabia que ele tinha
um segredo, que escondia ate mesmo dela.
Talvez devesse procurar esse Giovanni e descobrir a verdade. Melhor não. Amar sign
ificava confiar, e ela sabia que Rafael jamais faria mal a ninguém. Ela teria que
ser paciente. Don Philip voltaria, trazendo Rafael consigo.
Resignada, sentou-se na cama. Paciência era uma virtude difícil de alcançar.
- Deus, por favor, mande Rafael de volta para mim! Rezou ela. Desesperada, repet
iu a oração, mais alto, tão alto que, a principio, não ouviu as batidas ria porta.
- Alicia! Alicia! - A voz de Luisa soava do lado de fora da porta, acompanhando
a batida de sua mão na porta. Alicia! Deixe-me entrar. Recebi uma mensagem do seu
pai .. - Meu pai - Sem pensar, Alicia correu para a porta.
- O que aconteceu?
- Abra a porta que eu lhe digo. - Alicia ficou parada, sem saber o que fazer. -
Se você não abrir a porta, vou embora, sou uma mulher ocupada e o destino de Rafael
de Villasandro não me interessa.
Aturdida, Alicia abriu a porta, e o seu coração congelou ao ver que Luisa não estava s
ozinha. Ao lado dela, com um sorriso malévolo nos lábios, estava Enrique. -Não!
Ela tentou fechar a porta, mas Luisa foi mais rápida e pôs o pé na abertura. Ela então s
e lembrou de outro confronto como aquele.
-Você virá comigo. Conosco. Nos vamos levá-la para seu pai, ele esta chamando você. - Os
olhos de Luisa estavam frios e duros como gelo, apesar da voz doce e amável. - Não!
Meu pai me disse para ficar aqui.
Os olhos verdes de Alicia se encontraram com os cinzentos de Luisa em um duelo s
ilencioso, semelhante a outro que tinham travado antes, havia muito ... muito te
mpo. Era como se um antigo sonho, ou pesadelo, estivesse sendo revelado quando a
mulher a segurou pelo braço.
- Não temos tempo para discutir. Venha. Date prisa!
Rápido!
Luisa puxou o braço de Alicia, mas ela não era mais uma criancinha que a obedecia. A
vida dura dos ciganos a deixara forte, e naquele momento, com a violência vinda d
a raiva, ela se soltou.
-Enrique! Rápido. Pegue-a antes que ela fuja.
Enrique a olhou maldosamente, desafiando-a a tentar passar por ele. Alicia corre
u para o balcão com a intenção de saltar, mas braços fortes a alcançaram e impediram sua f
uga.
-Não tão rápido! Você não vai escapar de mim desta vez, cigana!
Alicia se debatia e ia gritar, mas ele cobriu sua boca com a mão.
A faca!, pensou ela. Minha faca!
Era preciso encontrar um jeito de recupera-Ia.
-Silencie-a rapidamente ou os criados aparecerão!
Enrique rasgou um pedaço do xale de Alicia e o amarrou-lhe na boca.
- Os convidados se foram, ·os criados se recolheram. Esta tudo calmo lá em baixo,mas
temos que nos apressar antes que Philip volte. - Luisa olhou, triunfante, para
Alicia - Eu tentei livrar esta casa de você antes, mas você voltou para me assombrar
.. Desta vez, não haverá volta. Direi a seu pai que você estava tão abalada com o desti
no de Rafael que fugiu. Com tantos perigos na noite, quem sabe que tragédia poderá l
he acontecer?
- Vamos levá-la para Juan. Ele saberá o que fazer.
Ele é um especialista em livrar nossa cidade de ciganos indesejados.
Um silencio tenso, perigoso e mortal, seguiu as palavras de Enrique, e a enormid
ade do que havia sido tramado deixou Alicia aturdida. O desespero a invadiu. Ele
s a levariam e ela nunca mais veria Rafael ou seu pai.
- Ha uma carroça do lado de fora, já esta pronta e, se formos cuidadosos, ninguém susp
eitara... - Uma exclamação de surpresa interrompeu as palavras de Luisa quando a por
ta se abri u.
Parado na entrada, como um anjo vingador, estava Philip Navarro.
- O que esta acontecendo aqui? - perguntou ele, os olhos brilhando de raiva e a
mão na espada.
- Nos a pegamos roubando, meu marido! Quando tentei repreende-la, ela me atacou
com uma faca. Se não fosse por Enrique ...
- Mentirosa! Vadia! Você acha que eu sou tolo! Você pode ter sido esperta uma vez co
m a sua historia de que minha filha tinha fugido da ama e caiu no rio. Eu não sabi
a, na época, o quanto você era traiçoeira, mas agora eu a conheço melhor. Soltem minha f
ilha, ou ambos sentirão o fio da minha espada. - Philip não teve que repetir a ameaça.
- Papai! Eu me lembro agora. Ela veio ao meu quarto, como fez hoje, e me agarrou
. Disse que o senhor queria me ver, mas me levou para o acampamento cigano!
- Não, Philip. Não fiz isso. Ela enlouqueceu!
-E você acha que eu nunca tinha suspeitado disso, Luisa?Eu tinha esperança de que vo
cê fosse inocente e lhe dei o beneficio da duvida, mas hoje você se entregou e passo
u dos limites. Eu quero você e esta criatura viI a quem você deu cria fora da minha
casa ainda esta noite.
-Não! - Luisa Teresa Dorado Navarro caiu de joelhos, engolindo todo o seu orgulho.
- Eu não tive má intenção. Perdoe-me! Eu o amava e tinha ciúme da menina. - Ela olhou par
a Alicia, os olhos com expressão enlouquecida. Perdoe-me. Eu não vou fazer mais nada
contra você ou lhe dizer mais nada, nunca mais. Só não me jogue nas ruas!
- Eu não deixá-la morrer de fome. Sou um homem honrado. Mas nunca mais quero vê-la, vo
cê ouviu? - Philip tinha uma expressão de repulsa no rosto. - Vão embora, vocês dois, an
tes que eu mude de idéia. Tremo só em pensar no que aconteceria hoje se eu não tivesse
voltado a tempo. Que Deus a perdoe pelos anos de sofrimento que você me custou, p
orque eu não consigo.
Havia fúria em seus olhos, enquanto ele assistia Luisa e seu filho partirem. Contu
do, seu olhar se enterneceu quando ele tomou a filha em seus braços.
-Onde esta Rafael, papai? - perguntou-lhe Alicia, logo que os dois ficaram a sós.
- Ele esta preso a sete chaves. Amaldiçoado seja Juan Dorado! Mas a batalha ainda
não esta vencida! Vou enviar padre Julio, o papa, se for preciso, para examinar o
caso de Rafael. Não importa o que precise ser feito, você vai ter o homem que ama a
seu lado de novo. Eu juro em nome de Deus.
A passagem para as masmorras era escura e lúgubre, o que era acentuado pelo tremel
uzir das chamas das tochas carregadas pelos homens de túnicas escuras.
- Por que estou sendo ,levado para este lugar imundo?
Sou um cidadão de Castela. Vocês não tem o direito de me tratar desta maneira. - Rafae
l achava que dificilmente receberia resposta a sua pergunta. Os homens da Inquis
ição não costumavam dar satisfação de seus atos. Mas Juan Dorado parecia ansioso em revela
r suas intenções.
- Por ajudar e abrigar judeus, para começar. Por crimes contra a igreja e por ser
um converso.
- Um convertido ao judaísmo, eu? Esta acusação e absurda e você sabe disso! Sou um cristão
fiel.
A resposta de Juan Dorado foi lima risada fria e cruel.
- Cristão fiel? Não é assim que se chama alguém que e acusado de transportar fugitivos e
de adotar o judaísmo como religião.
Rafael não teve chance de responder a acusação. Juan Dorado deu um sinal para que seus
homens o levassem por um corredor pouco iluminado que dava acesso a, pelo menos
, uma dúzia de minúsculas celas. A área não tinha janelas e o cheiro era fétido. Rafael se
perguntou se algum dia se acostumaria com tamanho mal cheiro, mas aquele era o
menor de seus problemas.
O grito de um homem nas garras da agonia quebrou o silencio do lugar. Rafael se
encolheu de medo. Ele sabia que estava preso, sem esperança de escapar. Mas só conse
guia pensar em Alicia.
Ela não pode ser envolvida em nada disso! Deus permita que don Philip a proteja.
- Coloquem-no na segunda cela! Vou mostrar a ele o que acontece com aqueles que
traem a minha amizade.
Rafael ouviu o barulho da fechadura sendo aberta e foi empurrado para dentro. Po
r um momento, ficou livre e se atirou contra o odiado padre. Juan Dorado saiu do
caminho com a agilidade de um gato.
-Acorrentem-no! - Três guardas se adiantaram para segurá-lo.
Rafael tentou se desvencilhar, mas foi subjugado. Os guardas o jogaram no cubículo
e empurraram seus pulsos contra algemas presas por correntes a parede.
-Isso vai acalmá-lo! - disse um dos guardas.
- Somente uma confissão sincera e completa de tudo o que você fez poderá salvá-lo de mai
ores danos.Juan Dorado queria dizer tortura, Rafael bem sabia, mas procurou não mo
strar medo. - Dê-me os nomes daqueles que o ajudaram.
- Vá para o inferno!
A voz de Juan Dorado tornou-se mansa.
- A sua única chance de salvação e uma sincera e completa confissão do que fez. Quem são s
eus comparsas?
- Ninguém. Eu não fiz nada! - Ele nunca trairia Giovanni ou os outros. - Não tenho nad
a a dizer.
- Então eu tenho pena de você, rapaz, porque a sua vida será a mais miserável de todas a
te que decida cooperar.
A partir dali, as horas se arrastaram com Juan Dorado interrogando Rafael com p
erguntas incessantes. - Você come carne de porco?
Rafael riu.
- Sim, é uma das minhas carnes favoritas.
- Come porco, mesmo sendo um converso?
-Não sou um converso. Sou cristão. Homens como você zombam de Deus.
- Silencio, ou eu o acusarei de blasfêmia também. Dorado andava de um lado para outr
o na frente de Rafael, os olhos pequenos estudando-o avidamente. De repente ele
parou e, abaixando a voz, confidenciou no ouvido de Rafael: _ Eu sei que você não é um
convertido ao judaísmo, mas esse vai ser nosso segredo. Não importa o que um homem
tenha dito só e necessário acusá-lo de ser um convertido para que a punição seja aplicada
com rigor.
- Você sabe e, ainda assim não se importa de me ver sofrer. Que tipo de homem é você?'
- Um homem que cumpre o seu dever. Mas não preciso me explicar a um homem que car
rega a marca do sangue judeu! - Vendo o olhar surpreso de Rafael, ele acrescento
u - Descobri sobre a sua mãe e a sua vergonha secreta.
- Minha mãe era uma mulher linda e honrada, e de quem eu tenho orgulho. Mas eu não s
ou judeu.
Juan Dorado tremeu de raiva.
- Pelas leis dos próprios judeus, qualquer criança nascida de uma mulher judia é judia
! Eu jurei limpar toda a Espanha de qualquer um com um sangue tão sujo.
- Os judeus estavam na Espanha muito antes dos cristãos. Se eu praticasse o judaísmo
, teria orgulho disso.Ele não ousava dizer mais por medo da represália de Juan Dorad
o.
- Então, você, por fim, revela seus verdadeiros sentimentos. - Ele chamou os guardas
de volta. - Não vai demorar para ele nos dar a informação que desejamos.
Rafael foi solto das correntes e levado para uma cela um pouco maior. Acostumand
o os olhos com a luz, ele olhou ao redor e, vendo os instrumentos de tortura, es
tremeceu.
- Estes são os brinquedos do padre Dorado - brincou o carcereiro. - Eu acho, señor,
que não demorará muito antes de implorar por piedade.
Era o procedimento comum mostrar aos prisioneiros os instrumentos de tortura, pa
ra que pensassem nas consequencias de não confessar.
- Sou generoso - disse Juan Dorado, sorrindo.Vamos dar duas semanas ao acusado,
para pensar sobre seus pecados. Duas semanas e então continuaremos o exame.
Duas semanas, Rafael pensou. Ele estava preso, sem esperança de escapar. Sua sente
nça era a condenação, tendo confessado ou não. Negar a culpa só traria a tortura. Admiti-l
a faria com que fosse para a fogueira.
- Devo confessar, dizer o que os senhores querem ouvir, para escapar ao sofrimen
to? E isso o que seu povo espera? - Os olhos de Rafael demonstravam sua ira cont
ida.
- Você deve nos dar a informação que desejamos. - respondeu Juan Dorado. - A propósito,
señor de Villasandro, aquela adorável pintura que me deu, eu adicionei outra a coleção.
Uma que pertencia ao seu irmão.
- Meu irmão? - Rafael empalideceu ao pensar em seu irmão e sua família nas mãos daquele
demônio. Dorado percebeu seu medo e, como um animal atrás da presa, atacou. - Ele ta
mbém é nosso prisioneiro em Toledo. A esposa dele nos contou algumas historias muito
interessantes.
Dios! Rafael sabia que as pessoas confessariam qualquer coisa sob tortura. Pobre
Maria. Pobre, gentil e amorosa Maria. O que não deviam ter feito com ela.
- Não sou judeu ou convertido. Meu irmão, seus filhos e eu somos leais cristãos. Quant
as vezes terei de lhe dizer? - E um cigano? - Novamente Dorado abriu aquele sorr
iso de gelar o sangue. Devo supor que você não conhece a mulher que mora na casa Nav
arro?
- Ela não tem nada a ver com isso! - Rafael protegeria Alicia, mesmo que isso lhe
custasse a vida. Poderia suportar qualquer tortura, desde que soubesse que ela e
stava a salvo. - Veremos ...
Dorado, então, informou Rafael de seus pianos. Dentro de duas semanas ele seria le
vado a Toledo para julgamento, do qual participaria o próprio frei Tomas de Torque
mada.
Os primeiros raios do dia se espalhavam pelo horizonte, iluminando o caminho do
grupo de cavaleiros que se dirigia a Toledo. Alicia tinha viajado por aquele cam
inho antes, sozinha. Agora estava acompanhada pelo pai, dez criados e o capitão do
navio, ,Giovanni. Depois de tomar conhecimento de onde Rafael se encontrava,a i
ntenção do grupo era libertá-lo, fosse pelo perdão real, por ardil ou pela força.
- Deveríamos nos disfarçar de monges e tirar Rafael de debaixo dos narizes deles! -
sugeriu Giovanni.
A presença e a ousadia daquele homem eram um balsamo para a alma torturada de Alic
ia. Apesar do perigo, ele continuava a acreditar que tudo terminaria bem. Alicia
queria ser tão otimista quanta ele e trazia consigo a mulengi dori, a fita que To
dero havia usado para medir o caixão de Rudolpho. Segundo a tradição cigana, ela tinha
propriedades mágicas e poderia ser usada apenas uma vez, para ajudar alguém que est
ivesse preso ou correndo perigo.
- Vamos começar pedindo uma audiência com a rainha.
Isabel. Ela e uma mulher leal aos que a serviram - disse Philip. - Apesar da inf
luencia de Torquemada sobre ela, acredito que ela me dará ouvidos. Quando eu era j
ovem, lutei pelo direito de Isabel a coroa contra a filha louca de Henrique IV,
Juana. Desde então, a rainha sempre ouviu os meus conselhos.
Giovanni concordou com um sinal de cabeça. Os dois homens tinham estabelecido uma
relação de respeito mutuo entre si.
Alicia olhou o pai com culpa. Ela não lhe dissera tudo o que Giovanni tinha lhe co
ntado. Philip Navarro não sabia que Rafael e Giovanni eram mais do que apenas conh
ecidos. Ela mesma soubera apenas recentemente sobre a coragem de Rafael em se op
or a Juan Dorado e sobre o objetivo real dos navios, que era transportar para um
lugar seguro as pessoas que corriam perigo. Para ela, Rafael era um herói. Mas co
mo a rainha consideraria os atos dele?
Eles cavalgavam a um ritmo acelerado durante todo o dia e Alicia estava contente
por estar vestida como menino.
A roupa era muito confortável.
- Ainda falta muito para Toledo? perguntou Giovanni com uma voz que denunciava s
ua ansiedade.
Alicia suspeitava de que ele não estivesse acostumado a cavalgar. Suas aventuras t
inham sido no mar ou nos canais de Veneza, portanto deveria se sentir mais a von
tade na água do que na terra.
- Apenas alguns quilômetros a mais, señor - respondeu Philip, apontando para onde, a
o longe, a estrada de terra se unia com as ruas calçadas da cidade.
De onde estava, Alicia viu a distancia, os muros de pedra de um castelo e imagin
ou se Rafael estaria ali. Cumpriria o juramento de morrer junto com ele, caso ho
uvesse a condenação. Neste ou no próximo mundo, eles ficariam juntos.
Os últimos cinco quilômetros pareceram se transformar em centenas para os viajantes
cansados. Eles viram uma multidão saindo da cidade.
- São judeus, as pessoas que Rafael tentava ajudar -disse Giovanni, com tristeza.
- Olhe para eles e veja o quanto um homem pode ser desumano com outro homem.
A pé, sobre burros ou cavalos e em carroças, jovens e velhos, pessoas capazes e frágei
s formavam uma procissão de desamparados. O êxodo da Espanha havia começado. Avançando c
om dificuldade no meio do calor e da poeira, eles formavam um espetáculo desolador
.
Um enxame de inquisidores vinha atrás, empurrando os fugitivos. Eles iam em direção ao
Sul, para o mar. Outros para o Oeste, a caminho de Portugal. E ainda havia os q
ue seguiam para o Leste, para Navarro. Fugiam, como seus ancestrais tinham feito
muito antes.
Alicia se perguntou o que aconteceria aquela pobre gente e amaldiçoou Torquemada.
O pai dela havia lhe contado que o Grande Inquisidor havia decretado que era pro
ibido ajudar aquelas pessoas. Rafael ignorara o decreto e, ao pensar nisso, Alic
ia sentiu, ao mesmo tempo, medo e orgulho.
- Idiotas, os monarcas Isabel e Fernando! - praguejou Philip, ao se aproximarem
da cidade. - A Espanha esta expulsando seus mercadores e financistas. Não tenho du
vida de que os mouros, os nossos melhores artesãos e agricultores, serão os próximos.
Nós somos os nossos piores inimigos, por causa de homens como .Juan Dorado e Torqu
emada. Se eu fosse um homem do mar, teria requisitado todos os meus navios para
ajudar essas pobres criaturas. Foi isso que Rafael fez. - Voltando-se para Giova
nni, ele acrescentou: - E você?
- Eu também. Estou satisfeito que o senhor saiba. Rafael é um homem muito corajoso.
- Você esta arriscando a própria vida, caso seja pego.
- É um risco que tenho de correr. Existe um número demasiadamente pequeno de homens
como Rafael de Villasandro. E eu nunca abandonei um amigo.
- Rezemos para que a rainha Isabel mostre misericórdia, porque temo que Torquemada
não tenha nenhuma.

CAPITULO XXII

A pequena cela era escura e silenciosa. Não havia janela, de forma que Rafael não sa
bia se era dia ou noite. Mas, pelo menos ali em Toledo, ele não estava acorrentado
a uma parede.
Deitado de costas sobre o colchão de palha sobre o chão, ele olhava para o teto, ven
do a imagem de Alicia. Apegava-se a lembrança dela para manter a sanidade. Pobre A
licia, quanta angustia deveria estar sentindo, mas pelo menos estava fora do alc
ance do Grande Inquisidor. Pensar que ela estava em segurança lhe dava motivo para
agradecer a Deus.
Ele tentou dormir. O sono era a sua única recreação, e os sonhos, a única fuga, mas as v
ezes ate isso lhe era negado. Os guardas o acordavam aleatoriamente, no meio do
dia ou da noite, tentando deixá-lo desanimado e mais vulnerável as exigências dos inqu
isidores.
Rafael estava sempre exausto, com dor de cabeça e fome.
Só lhe davam pão bolorento e uma sopa rala, apenas uma vez por dia, o mínimo para mantê-
lo vivo. Juan Dorado não queria que a morte lhe roubasse uma vitima. Mas, apesar d
e tudo, Rafael estava agradecido por estar vivo. Enquanto houvesse vida, haveria
esperança.
Ele tinha passado quatro dias na prisão de Juan Dorado, antes de ser jogado em uma
carroça, com os braços e as pernas acorrentados, e ser levado para Toledo.
Passou a mão sobre os furos que tinha feito sobre o frio chão de pedra, para calcula
r, a grosso modo, quanto tempo estava naquela cela sombria. Um pouco menos de três
semanas. A demora era a pior tortura. Os seus carcereiros prolongavam o suspens
e, na esperança de que a expectativa o deixasse com medo. A ameaça era sempre a tort
ura.
Ele ouvia gritos e gemidos ao seu redor, prova de que os instrumentos de tortura
estavam sendo usados com frequência. Logo seria sua vez.
Rafael lutava desesperadamente contra a ira que ameaçava sufocá-lo, o ódio era uma emoção
que só trazia mal consigo. Ele não queria ser igual a homens como Torquemada e o seu
braço direito, Juan Dorado.
Haveria alguma esperança de encontrar misericórdia? O Grande Inquisidor o pouparia?
Ele tinha ouvido contar de prisioneiros que haviam passado anos na prisão antes de
serem levados a julgamento. Essa possibilidade o angustiava mais do que a ameaça
de morte imediata. O isolamento completo naquele inferno ameaçava deixá-lo louco, Até
o rosto do carcereiro foi um alivio quando ele abriu a porta.
- Venha comigo.
Antes, Rafael tinha enfrentado aquele homem magricela.
Foram necessários diversos guardas para dominá-lo na primeira vez em que ele tinha s
ido jogado em uma cela. Mas agora, depois de uma longa inatividade e privação de ali
mentos, estava fraco como um bezerro recém-nascido.
Sentiu uma forte tontura ao se levantar e quase caiu. Não era preciso dominá-lo, Jua
n Dorado tinha tornado as providencias necessárias para isso.
Rafael acreditava que seria levado a câmara de tortura . Tentava se resignar ao se
u destino, por isso ficou surpreso ao se encontrar na câmara de audiência do Santo O
ficio. Era um tribunal composto por inquisidores que representavam Torquemada, e
ntre eles Juan Dorado,
Ao ver o sorriso nos lábios finos do padre, Rafael compreendeu que não encontraria
misericórdia ali.Sentados perto de uma mesa sobre a qual havia um crucifixo alto e
ntre duas velas, estavam diversos monges e dois padres, um escrivão e um defensor
publico. Eles perguntaram a Rafael seu nome, lugar de nascimento e detalhes sobr
e sua família e a diocese na qual tinha sido criado. Rafael respondeu as perguntas
concisamente, olhando fixa e diretamente para os olhos de Juan Dorado, em um de
safio silencioso.
- O senhor sabe do que esta sendo acusado?
- De seguir o conselho de Cristo para ajudar o meu próximo e demonstrar amor frate
rnal - respondeu Rafael.
A resposta fez com que o rosto de Juan Dorado ficasse roxo de raiva.
- O senhor mente. O senhor ajudou judeus, os assassinos de Cristo. Tenho provas
de que forneceu navios para ajudá-los na fuga.
- Torquemada emitiu um edito para exilar os judeus da Espanha. Eu meramente aume
ntei a velocidade e o conforto da fuga.
- O senhor ajudou judeus!
- E o próprio Jesus não era judeu?
- Ele era o filho de Deus que fundou a Igreja Cristã! - bradou Juan Dorado, levant
ando-se e batendo na mesa com o punho. - Hereges, judeus e ciganos são um insulto
para os intentos de Deus! A heresia e recompensada com a punição eterna. Ao acabar c
om um herege, cada um de nos esta salvando um ser humano homem e seus convertido
s potenciais do Inferno para toda a eternidade. Portanto, eu devo salvar o senho
r!
- Eu não sou herege!
- E, no entanto, o senhor viveu entre ciganos. Negue isso! Eu tenho uma declaração
escrita de um homem que viu o senhor assassinar o companheiro dele.
Rafael entendeu imediatamente que ele falava de Jose, o homem que tentara matá-lo,
jogando-o no rio. Era aquilo o que tinha ganhado por ter poupado a vida dele. S
er acusado de assassinar Manuel era a maior das injustiças.
- Nunca na vida assassinei um homem inocente - declarou Rafael, enquanto o escri
ba anotava tudo o que dizia. - O senhor está se baseando na palavra de um ladrão. O
testemunho dele e falso.
- O senhor diz que ele é um mentiroso?
-Digo!
- Basta. E o senhor que esta sendo julgado, e não o outro homem - clamou Juan Dora
do, para em seguida, adotar outra linha de ataque. - A sua cunhada antecedeu o s
enhor neste local, assim como o seu irmão. Ela nos contou muitas historias interes
santes. Disse que quando o senhor estava na casa do marido dela, ela o viu reali
zar ritos judaicos. Disse que o senhor trocava a sua roupa de cama aos sábados, não
comia carne de porco e tomava banhos nas noites de sexta feira para se preparar
para O Sabat judeu. Ela ouviu o senhor rezar preces hebraicas, balançando o corpo
para a frente e para trás.
Aquilo era mentira, como sabia muito bem Juan Dorado. - Eu não sou judeu! Para se
casar com meu pai, minha mãe aceitou o batismo. Nasci cristão de pais cristãos. Fui ba
tizado na fé cristã. - Voltando-se para os outros homens do tribunal, Rafael continu
ou. - Os judeus usam barbas. Os senhores vêem algum pelo no meu rosto? - perguntou
.Os judeus são proibidos de cavalgar, e eu passei uma grande parte do meu tempo so
bre cavalos. Os judeus não podem portar armas e, até os senhores a tirarem de mim, a
minha espada era minha companheira!
- O senhor recita O Kiddush, a oração judaica da fé em Deus.
-Não.
- O senhor observa 0 Pesach, a Páscoa judaica? O senhor estudou O Torah? - pergunt
ava Juan Dorado, sem se cansar. - O senhor acredita que a Bíblia foi ditada pela p
alavra de Deus?
Na sua tentativa de incriminar Rafael, o padre beirava a incoerência. Vendo que os
seus próprios conselheiros pareciam impressionados pelas respostas de Rafael, Jua
n Dorado passou para o assunto dos conversos , fazendo acusações rapidamente, sem da
r tempo para o réu responder. Acusou-o de crimes contra a Espanha, ao ajudar aquel
es fugitivos.
- Confesse a verdade. Conte-me sobre outros envolvidos, para que eu possa salvar
as almas deles. Não tenha medo de confessar tudo.
- Não há nada a confessar!
- Ele é um homem forte - disse um monge baixo e barrigudo, em tom de admiração.
- Não tão forte que eu não possa alquebrá-lo. Vejo que,no final das contas, vou precisar
da ajuda de Torquemada. - O sorriso de Juan Dorado era implacável. - Na minha inf
inita misericórdia, darei mais um dia para que o prisioneiro considere as consequênc
ias de não se confessar e pense nos seus pecados. Continuaremos o interrogatório ama
nha.
Juan Dorado se levantou e fez sinal para que os outros fossem embora. Depois que
todos saíram, ele voltou-se para Rafael e disse:
- Pense no que eu lhe disse. Já ouviu falar do strappado ou pendulo? Do banco da t
ortura, em que o corpo da pessoa é esticado? Da limpeza da alma ou tortura da água,
em que a pessoa e obrigada a ingerir muitos litros de acido? Tudo isso
será o seu destino, caso o senhor não me entregue o que eu peço. Amanha conhecerá a tort
ura.
O enorme salão do palácio cintilava com cem velas e tochas, e Alicia sentiu um apert
o no coração de emoção quando os pajens anunciaram o nome de seu pai. Tocando a mulenge
dori escondida no seu corpete, ela acreditou que o apelo pelo marido teria suces
so. Acreditava que Cristo também faria a sua mágica para libertar Rafael.
Eles avançaram em direção a plataforma onde o rei e a rainha estavam sentados em cadei
ras de encostos altos. Alicia seguia entre o pai e Giovanni. Os três estavam vesti
dos esplendidamente para a ocasião. Philip Navarro vestia uma túnica longa de veludo
verde, aberta na frente, revelando o forro dourado e uma túnica listrada, calças ju
stas e chapéu preto; Giovanni vestia-se de maneira mais extravagante, com uma túnica
de veludo vermelho e uma pluma no chapéu; e Alicia usava um vestido dourado e pre
to. Ao chegarem diante dos soberanos, os três se inclinaram, em sinal de respeito.
- Vossas Majestades - cumprimentou Phillip.
- Levante-se don Phillip - disse a rainha Isabel, toda sorrisos, recebendo o hom
em que tinha sido o seu súdito mais leal e seu amigo. - Faz muito tempo que não vejo
o senhor, tempo demais.
- E, no entanto, o tempo não diminuiu a sua beleza, minha rainha. A senhora contin
ua bela como sempre. Talvez ainda mais.
- E o senhor o mesmo fidalgo encantador de que eu me lembro.
Alicia ergueu os olhos para ver a mulher que tinha nas mãos o destino de Rafael. A
rainha tinha quarenta anos e ainda conservava os traços da beleza de sua juventud
e. Os olhos azuis de Isabel se encontraram com os seus e ela sorriu.
- Quem é esta bonita jovem, don Phillip? - E, dirigindo-se a Alicia. - Levante-se,
criança. Em seguida, os olhos da rainha se voltaram para Giovanni: - E quem é o sen
hor?
- Sou Giovanni Luigi Alberdici, mercador veneziano e capitão de navio, vossa Majes
tade.
- Mais um marinheiro! - A rainha parecia encantada. Nesse momento, o rei falou p
ela primeira vez:
- Conheci outro navegador e capitão da sua terra, Cristóvao Colombo.
- Ouvi falar dele. Mas ele e de Genova e não de Veneza. Soube que ele procura uma
nova rota para o Leste. - E o senhor acha que indo para o Oeste ele pode alcançar
as Indias?
- Creio que tudo e possível, vossa Majestade. _ respondeu Giovanni, sorrindo.
Aquela foi a melhor resposta, já que Isabel sorriu novamente, com um brilho triunf
ante nos olhos. Ela olhou para o marido e pareceu que eles tinham discutido sobr
e o assunto.
Apenas então Alicia prestou atenção no rei, que tinha sido obscurecido pela presença mar
cante da rainha. De queixo forte e moreno, Fernando não era um homem de sorrir mui
to.
- Quem é esta linda flor? - perguntou o rei.
- Esta é minha filha, Alicia Maria Navarro. Deus a devolveu a mim. E é em nome dela
que eu vim. O homem que ela ama esta preso dentro das muralhas desta cidade, acu
sado falsamente pelo meu enteado. Imploro que lhe concedam misericórdia e o libert
em.
Um profundo silencio seguiu-se as palavras de Phillip.
Por fim, a rainha falou:
- Seu filho é Juan Dorado, padre e inquisidor. Se ele foi contra esse homem, trata
-se de um assunto de fé e não de governo. Por que, então o senhor veio até mim?
Phillip se inclinou ,humildemente diante da sua soberana. - Porque sei que vossa
majestade observa de perto as operações da Inquisição e que um apelo pode ser feito par
a os senhores em relação as decisões do tribunal. Estou, portanto, fazendo esse apelo!
Isabel levantou-se do trono e andou de um lado para o outro. Os olhos de Fernand
o a seguiam, e Alicia sentiu medo, ao ver a expressão implacável do rei. Phillip hav
ia lhe dito que o próprio rei lucrava com a propriedade confiscada aos condenados.
Ele seria favorável a ruína de Rafael?
- Quero falar com padre Dorado. Tragam-no aqui!
A ordem foi cumprida imediatamente. Pouco depois, ao se aproximar da rainha, ves
tido de negro, os olhos de Juan Dorado brilhavam com malignidade ao enfrentar o
seu padrasto.
- O senhor ousa se meter em questões de Deus? - perguntou ele, fazendo o sinal da
cruz, para impressionar a rainha com sua piedade.
- O senhor busca fazer mal a um inocente, em beneficio de seus próprios fins. Eu p
eço justiça. - Philip respondeu, mal disfarçando a abominação que sentia pelo enteado.
- Don Phillip veio fazer um pedido em nome de sua filha. Ele ...
Juan Dorado interrompeu a rainha, com uma risada cruel. - Filha dele! Os delírios
de um velho demente. Esta não e a filha dele, vossa Majestade, mas uma cigana. Uma
paga.! Uma feiticeira que confunde a mente dele!
- Não! Eu sou filha dele! - disse Alicia, horrorizada.
- A filha de don Phillip Navarro morreu na infancia!
Morreu afogada! Esta dizendo que, como o nosso salvador, Jesus Cristo, a senhora
ressuscitou dos mortos?
-Não ...
- Ela é minha filha! - reafirmou Phillip.
- O senhor não tem prova disso, e eu tenho uma testemunha que garante que a criança
em questão caiu na água e morreu. Ela não é batizada! Uma cigana! Virando-se para a rai
nha, ele disse: - Se vossa Majestade permitir que em a interrogue, provarei a ve
rdade das minhas acusações através da confissão dela. Meu padrasto é um tolo. Ele vem pedi
r pela vida de um judeu que voltou a fé antiga atendendo aos pedidos de uma cigana
! Mas o próprio Deus dará o seu veredito. Levem-na! .
Philip lutou com todas as forças para afastar de Alicia as mãos dos guardas, que ob
edeciam a ordem de Juan Dorado. - Não vou perder a filha que reencontrei ha tão pouc
o tempo. Vossa Majestade, eu lhe imploro!
O pedido não surtiu efeito, ou pelo menos foi o que pareceu.
- Eu irei, papai. Serei corajosa - disse Alicia, endireitando os ombros e erguen
do a cabeça, com dignidade. - Se Rafael for sacrificado, estou pronta para morrer
ao lado dele. - Os olhos dela se encontraram com os da rainha quando foi empurra
da para fora. - Padre Julio me ensinou sobre o amor e o perdão do Cristo. Como e,
então, que os seus seguidores não tem esse amor uns para com os outros?
Ela não pode dizer mais nada, pois foi arrastada para fora brutal mente, mais uma
vitima da traição de Juan Dorado.
A porta da cela de Rafael foi aberta e ele foi levado por dois guardas para uma
câmara no subsolo.
- Rápido! O próprio Grande Inquisidor vai vê-lo! - O guarda enfatizou a ordem dando um
murro nas costelas de Rafael.
- Torquemada?
A porta da câmara foi aberta e Rafael se encontrou diante do homem que tinha deixa
do toda a Espanha de joelhos. Ver aquele sujeito deixou-o com as mãos tremulas. Er
a como olhar o rosto do próprio Satanás.
- O senhor é Rafael Córdoba de Villasandro? - perguntou Torquemada.
Os olhos dele eram fundos e cheios do fogo do fanatismo. Torquemada era alto e e
squelético, o corpo recurvado devido a idade, mas emanava poder.
-Preciso repetir a minha pergunta?
- Sou eu.
- Vamos prosseguir com esse assunto - disse Juan Dorado, saindo da sombra de Tor
quemada. Ele estava agitado e parecia querer acelerar os procedimentos. - Repass
amos as evidencias com cuidado e o interrogamos. Mostramos a ele a câmara de tortu
ra, mas ele se recusou a confessar ou dar o nome de seus associados no crime.
- Quais são as evidencias que o senhor tem?
- Ordenei o interrogatório de alguns marinheiros no litoral da fronteira entre Esp
anha e Portugal, e de pescadores da região. Também tenho informação sobre a mãe desse home
m· Ela morreu na fogueira como uma conversa, ha muitos anos.
- Minha mãe era crista de ascendência judaica, que foi condenada erroneamente.
O escriba, sentado a uma pequena mesa redonda, anotava todas as palavras de Rafa
el.
- Ele não desiste, é arrogante demais. Devemos usar a tortura nessa questão.
Obedecendo as palavras de Juan Dorado, os guardas esticaram Rafael em uma mesa d
e madeira e o amarraram com cordas nos pulsos e tornozelos, cortando-lhe a pele.
Enquanto isso, Juan Dorado fazia um grande numero de perguntas c exigências. Dura
nte as horas de agonia, Rafael resistiu bravamente. Jamais entregaria Giovanni e
os outros homens de coragem. Seria melhor morrer do que ter o sofrimento deles
na consciência. Resistiu em silencio, até que a inconsciência abençoada o livrou da dor.
- Jogue água nele para trazê-lo de volta e continuaremos com o nosso interrogatório.
Isso foi feito e, com um gemido, Rafael estremeceu e abriu os olhos.
- Este método é fraco demais. Temos que usar a garrucha, o strappado.
- Não temos intenção de matá-lo - Torquemada respondeu.
- Ele terá a assistência do medico. Conheço este homem.
Não ha outra forma de salvar a sua alma e a de outros.
Os guardas tiraram a roupa de Rafael e o penduraram ao teto por uma corda Presa
aos pulsos em uma extremidade e a uma polia na outra.
- Pense bem, meu filho. Você está com fome, cansado, nu e amarrado. Diga-nos o que q
ueremos saber e será poupado. - A voz de Torquemada era quase de pena, mas chamas
brilhavam no seu olhar. O silencio de Rafael o enfureceu. - Que seja, então·
Lentamente, dois dos homens puxaram a corda, elevando os braços de Rafael gradualm
ente. Continuaram puxando, ate ele ficar suspenso, to do o peso do corpo sobre o
s braços tensionados.
Rafael nunca tinha sentido tanta dor. Contra seus próprios desejos, ele gritou e f
oi puxado ainda mais para cima, até que o seu corpo balançasse sobre as cabeças do Inq
uisidor e dos outros homem·
- Diga-nos o que sabe. Quem ajudou na fuga dos conversos? Foi a sua amante cigan
a que roubou os navios?
- Não. Eu n ao conheço nenhuma cigana - Rafael mentiu para proteger Alicia. Juan Dor
ado era capaz de tudo.
Seguindo as instruções do inquisidor, a corda foi solta um pouco. Rafael caiu um pou
co mais de um metro e a queda foi interrompida por um safanão que por pouco não arra
ncou-lhe os braços das articulações.
- Ele protege a cigana dele ? Aquela bruxa! Vou lhe perguntar mais uma vez,Rafae
l de Villasandro!
- Não tenho nada a lhe dizer. - Rafael sentia uma dor excruciante, mas se segurava
para não gritar.
Ele foi levado de volta ao chão e pesos foram amarrados aos seus pés, aumentando a s
everidade da tortura, que foi reiniciada logo a seguir.
- Onde estavam os seus cúmplices?
- Não tenho nenhum. Não fiz nada de errado! Não conheço ciganos.
Estava louco de dor, mas conteve o grito. Preferia morrer a colocar Alicia em pe
rigo. Ela era filha de Philip Navarro e ele a protegeria ate o fim. Tudo daria c
erto se conseguisse se manter em silencio.
- Abaixem-no. Ele deve ter uma aliança com o próprio Satanás para aguentar tanto sofri
mento. - Os olhos de Torquemada estudavam Rafael com grande interesse. -Vamos su
spender a tortura por hoje.
- Obrigado, Reverendíssimo murmurou Rafael, abrindo e fechando a mão para recuperar
a circulação dos pulsos e dedos. Pelo menos, seus braços ainda estavam nas articulações.
- Ele disse que não fez nada de errado e que não conhece ciganos - sussurrou Juan Do
rado no ouvido de Torquemada. - Vou provar que mente. Tenho quatro ciganos sob m
eu poder e os trarei imediatamente.
Rafael teve medo de que Juan Dorado trouxesse alguém do grupo de Alicia. Quem seri
a? Solis? Stivo? No entanto, nada no mundo poderia prepará-lo para aquele momento,
quando, minutos depois, Juan Dorado abriu a porta e empurrou Alicia para dentro
do aposento .
- Alicia! Madre de Dios! - exclamou ele, surpreso, ao ver a moça ser empurrada par
a dentro da sala.
- Rafael! - Alicia correu para ele e o abraçou. - Eles estão com Zuba, Todero, Stivo
e os outros. O que vamos fazer?Não podemos permitir que o meu povo morra!
Com suas palavras inocentes, Alicia condenou não apenas a si mesma, mas também a Raf
ael. Aos olhos de Torquemada, e]e foi classificado como mentiroso.
- Se ele mente em relação a uma coisa, também e falso em relação ao resto. - Como uma aran
ha, Juan Dorado tecia a sua teia traiçoeira. - Provarei que tudo o que ele diz e f
also. Ele e um converso e ajudou outros conversos e judeus. Tem relações carnais com
ciganos e blasfemos. A fogueira para os dois!
- Faça com eles o que o senhor tem que fazer. - Sem nem mesmo lançar mais um olhar p
ara os prisioneiros, Torquemada saiu da sala, deixando Rafael e Alicia a mercê da
justiça de Juan Dorado.
- Ela e inocente, o culpado sou eu. Confessarei tudo para poupa-Ia.
- Não, Rafael! - disse Alicia.
- Se eu a libertar, você confessará tudo? - Os lábios de Juan Dorado sorriam. Ele não ti
nha a menor intenção de libertar a filha de Philip Navarro, mas isso foi omitido.
- Deixe-me passar apenas uma noite nos braços dela e eu farei tudo o que o senhor
me pede. - Rafael sentia como se estivesse negociando com o próprio demônio. E talve
z estivesse mesmo.
- Por que não?
A condescendência de Juan Dorado despertou a desconfiança de Rafael. No entanto, a i
déia de passar uma noite nos braços de Alicia era irresistível. E ele ainda tinha espe
rança de conseguir escapar. Assim, com os braços em tomo dos ombros de Alicia, Rafae
l deixou-se conduzir de volta a sua cela. Pensaria em uma forma de salvar sua am
ada. Aquele foi seu ultimo pensamento antes de a porta ser fechada atrás dele.Pore
m, desta vez, e escuridão seria bem-vinda.

CAPITULO XXIII

Depois que a porta da cela foi fechada,Alicia se refugiou nos braços de Rafael.
-Pensei que fosse morrer quando você entrou naquela sala, Alicia.como você veio para
r aqui?Eu pensava que você estava a salvo em Salamanca.Esse era o meu único conforto
.
-Meu pai me trouxe por minha insistência.Ele recorreu ao rei e arainha por você.
Rafael se aproximou um pouco mais e Alicia pode ver que havia medo em seus olhos
.Medo por ela.
-Escte,Alicia.Você tem que tomar cuidado e não se esquecer de tudo o que padre Julio
lhe ensinou.Não fale no Del ou nada sobre a maneira como os ciganos vivem.Você comp
reende?
-Entendo.Eu sei que é perigoso.Sei que devo negar o povo que amo,as coisas que apr
endi desde a infância.Para salvar própria vida.Preciso fazer como se nunca tivesse c
onhecido Rudolpho.Mas também tenho que negar que amo você?
-Sim.Ao fazer isso,você será poupada.Estou condenado,Alicia.Tive a ilusão de poder com
bater a injustiça ,por isso,perdi o que é mais precioso para mim:você.
-Isso não é verdade,Rafael.Agora que sei o que você fez, eu o amo ainda mais por isso.
Enquanto eu pensava que tinha sido abandonada, você agia com nobreza, ajudando as
pessoas que corriam perigo. - Ela acariciou-lhe o rosto.
Rafael afastou-se, lutando com suas emoções.
- Sou um prisioneiro, um paria, desprezado e arriscado a perder a vida. Temos de
encontrar uma forma de provar que Juan Dorado é um mentiroso. Deve haver algum je
ito de don Philip provar que você é filha dele. Assim, pelo menos, você estará em segura
nça.
- Nada mais tem importância, Rafael. Estou disposta a morrer com você, se for precis
o. Na verdade sou mais cigana do que gorgio, mesmo sendo filha de don Philip. -
Dizendo isso, ela procurou no corpete da roupa e tirou a fita com a qual o caixão
de Rudolpho havia sido medido. - Isto ajuda quem corre perigo ou esta preso. Eu
o trouxe para você. Vai libertá-lo.
Rafael silenciou-a com um gesto de mão.
- Quieta, Alicia. Se alguém a ouvir, você será acusada de blasfêmia e condenada a fogue
ira.
Nos olhos de Alicia surgiram lagrimas, e Rafael a beijou com ternura. Ela encost
ou o corpo contra o dele.
- Eu não posso fazer isso, Rafael. Sou o que sou. Padre Julio ensinou-me muitas co
isas sobre o seu Deus. Coisas que eu deveria acreditar. Mas ha muitas outras que
os ciganos acreditam e que eu trago em meu coração.
- Você não deve morrer, Alicia. Ainda possui a vida inteira pela frente. Deve se cas
ar e ter os filhos que não pudemos ter, com um homem que a proteja como eu não posso
mais fazer.
Só de pensar em outro homem com Alicia nos braços despedaçava o coração de Rafael. Entreta
nto ele estava determinado a pensar apenas no bem de Alicia.
- Nunca terei um filho de outro homem. Não quero outro homem. Dê-me um filho, Rafael
. Agora!
Ele acariciou o cabelo dela, pensativo. Alicia acabava de lhe dar uma forma de s
alvá-la. Uma mulher grávida não correria o risco de ser torturada ou morta, pelo menos
até o nascimento do bebê.Isso faria com que ela ganhasse vários meses, talvez o tempo
, suficiente para que don Philip encontrasse uma forma de tira-la dali. E ele de
ixaria na terra uma parte de si, não morria totalmente.
- Eu sempre amarei você.
Rafael estava fraco, mas o amor dos dois o fortaleceu e o consolou de todo o sof
rimento das ultimas semanas. Estar juntos novamente era a cura para qualquer tor
mento. As caricias começaram tímidas, como se um quisesse tirar com a mão o sofrimento
do outro. Exploraram-se, entregando-se ao poder e ao calor do amor.
Rafael a cobriu de beijos e os dois se esqueceram de tudo que não fosse a beleza d
a sua união. Refizeram seus votos de amor e Alicia teve certeza que teria um filho
de Rafael.
Alicia adormeceu nos braços de Rafael, vestida apenas com sua longa roupa de baixo
, parecendo um anjo. Até o monge que espiava através das frestas da porta ficou como
vido com o que viu. Juan Dorado o havia instruído a ouvir a conversa dos dois, mas
o irmão Rodrigo não obedeceu a ordem e deixou que os do is amantes ficassem a sós.
Quando vieram buscar Rafael, Alicia o agarrou. - Não o levem!
Ele olhou bem para o rosto dela, como se quisesse memorizar seus traços para sempr
e.
- Eu fiz uma barganha e esta na hora de cumprir a minha parte .. Juan Dorado terá
apenas uma vitima. - Ele se levantou, se vestiu e se preparou para enfrentar o q
ue viesse.
- Leve-me para os padres - disse, por fim, a irmão Rodrigo.
- Não sei se isso importa, acredito na sua inocência - O monge declarou. - Gostaria
de poder fazer alga para ajuda-Ilo. Juan Dorado tem a pretensão de ser um homem sa
nto. Torquemada trouxe sofrimento, em nome da unificação religiosa na Espanha. Padre
Dorado faz o que faz em beneficia próprio.
- Sei que não posso contar com seu depoimento em meu favor, mas agradeço a sua compa
ixão. Alicia deve ser poupada a to do custo. Se mantê-la ilesa significar minha mort
e, então e essa a minha vontade - Rafael parou de falar ao vislumbrar Juan Dorado
se aproximar, parecendo muito satisfeito com a sua vitória. Ele trazia nas mãos um p
ergaminho. Devia ser a confissão que Rafael teria que assinar, condenando-se assim
á fogueira.
Só em pensar que a morte o separaria de seu grande amor, seu coração se apertava no pe
ito.
Tenha um filho ou uma filha minha, meu amor, pensou ele, olhando-a nos olhos. Sa
iba que eu a amo e que você me trouxe a maior alegria do mundo.
Como se tivesse ouvido seu ultimo lamento, Alicia colocou um dedo nos lábios, sopr
ando-lhe um beijo em sinal de um ultimo adeus.
- Tenho nas mãos a transcrição do seu interrogatório. Tomei a liberdade de redigir as su
as declarações - disse Juan Dorado. - Ah, você me enganou direitinho no nosso primeiro
contato. Sei que sua alma sofrera muito antes de sair do purgatório. Eu poderia tê-
lo usado...
- Como usou todos que tiveram contato com o senhor?
Creio que esteja usando ate frei Torquemada para em seu favor.
Um murro no rosto silenciou Rafael, que continuou a pensar. Se ele encontrasse u
ma forma de fazer Torquemada, o rei e a rainha tomarem conhecimento da perfídia de
padre Dorado, de todo o dinheiro que havia passado pelas mãos dele sem nunca ir p
ara os cofres dos soberanos ... Juan Dorado havia usado a miséria dos judeus para
enriquecer. Mas quem lhe daria ouvidos?
Juan Dorado apresentava um grande espetáculo com a sua suposta piedade, Nunca comi
a carne, dormia sobre uma tabua, sem roupa de cama, e a sua túnica era da lã mais áspe
ra.
- Com licença, Reverendíssimo! - um jovem monge se apresentou ao padre Dorado, que o
ignorou.
- Você nunca saberá o quanto eu desejei a sua ruína disse ele a Rafael. - Desde que de
scobri a sua traição...
- Reverendíssimo ... - O jovem monge bateu no ombro de Juan Dorado.
- Pelo amor de Deus, o que é? - perguntou ele, olhando para o monge como se olhass
e para um inseto.
- O senhor foi convocado para se apresentar, junto com o seu prisioneiro e a moça,
a rainha e ao rei, imediatamente.
Pela primeira vez desde que fora preso, Rafael sentiu esperança. Uma esperança que f
oi reforçada pela expressão de surpresa e desanimo que viu no rosto do padre. Rafael
seguiu Juan Dorado, mais quatro monges e Alicia pelas escadas longas e tortuosa
s até o salão de audiências.
Ao entrar, viu que entre os presentes estavam Philip Navarro e Giovanni.
- Vossas Majestades me chamaram? - perguntou Juan Dorado, inquieto e aparentando
nervosismo. - Eu estava prestes a obter a confissão do meu prisioneiro.
- Por meio de tortura e ameaças?
O comentário de Philip Navarro foi recebido com um olhar duro da rainha. Ignorando
a reprimenda, ele abraçou Alicia.
- Uma delegação especial foi enviada ao papa Inocêncio VIII, em relação a prisão de señor d
illasandro. Padre Julio nos enviou uma mensagem dizendo que não deve mais haver in
terrogatórios ate que recebamos novas orientações.
O nosso pontífice esta doente, com febre alta. Rezemos pela sua recuperação.
- Mas, Majestade, tenho apenas que obter a assinatura de Rafael de Villasandro.
E quanto ao caso da moça cigana?
Os olhos da rainha Isabel se voltaram para Alicia, com bondade.
- A moça cigana, se é que realmente seja cigana, me impressionou com as suas palavra
s sobre a misericórdia. Quero mostrar a ela que sigo os passos de Cristo e também se
i ser misericordiosa. Anulo, portanto, os julgamentos anteriores e assumo a juri
sdição sobre esses procedimentos.
- A senhora?
Juan Dorado estava furioso, mas não ousou discutir.
- Don Philip sempre foi meu conselheiro e amigo, e eu confio nele. Ele diz que o
senhor mente ao dizer que a moça não é filha dele e o acusa de não ser leal a mim. O próp
rio don Philip, que pagou pela sua educação no direito canônico, o acusa de ser indign
o do cargo que ocupa. Ele diz que o seu objetivo e satisfazer a sua própria ambição e
não divulgar a palavra de Deus. E ele acusa 0osenhor de se apossar de recursos da
igreja e do reino.
- Sou total mente leal, primeiro a Deus e, em segundo lugar, a minha rainha. Ele
é um velho tolo e mente. Por que Vossa Majestade lhe da ouvidos?
- Sei que don Philip é um homem sábio. - A rainha então deu permissão para que Philip Na
varro falasse.
- A sua única lealdade e a ambição! - exclamou ele, desafiando o enteado a contrariá-lo.

Foi então que Rafael viu a sua chance de corroborar a afirmação de Philip. Deu um pass
o a frente e revelou a ordem que Juan Dorado lhe dera de registrar o valor das p
ropriedades de todos os judeus condenados.
- Ele traiu a sua confiança, Vossa Majestade. - Rafael forçou-se a fazer uma mesura,
apesar de seu corpo doer devido a tortura. - Se mandar examinar os livros de re
gistro dele, descobrirá que esse homem recolheu impostos que foram para os seus próp
rios cofres, e não para os da Coroa.
Confiscou uma obra de arte do meu irmão, depois de acusá-lo falsamente de um crime.
Ele vem coletando terras, animais e todos os tipos de bens. Todos estão em seu própr
io nome.
- Isto e uma acusação muito grave - disse Isabel, surpresa.
- Grave e falsa! - rebateu Juan Dorado.
- Deixarei que Deus seja o juiz! - Olhando para um, e depois, para o outro, a ra
inha Isabel pensou em um recurso que fora usado por muitas gerações para revelar a v
erdade. - Julgamento por combate! O senhor, padre Dorado, poderá escolher entre os
campeões de Castela, pois é religioso e não tem habilidade com armas. Señor de Villasan
dro, o senhor inspira o meu lado romântico. Lutara pela sua honra, liberdade e por
sua dama. Se tiver sucesso, tudo o que pede será atendido, e o senhor e seus asso
ciados serão libertados. Deposito a minha fé em Deus! Ele será o juiz.
O combate seria realizado em um lugar semelhante ao campo onde Alicia assistira
a justa em Salamanca. Se Rafael perdesse a luta, a rainha entenderia que aquilo
era um sinal de Deus e significaria que ele e os outros eram culpados.
Gorgios tolos!, pensou ela.
Se Rafael perdesse seria porque estava cansado e faminto, enquanto seu oponente
não tinha sofrido as privações das torturas. No entanto, era uma chance de liberdade.
Alicia apertava na mão direita uma cruz de aura que ganhara de don Philip e, na es
querda, a mulengi dori, ainda dividida em suas crenças. Deus protegeria Rafael?
O local foi decorado com bandeiras e Alicia ficou chocada. Aquilo não deveria ser
diversão. Mas as pessoas riam e ela viu que muitos apostavam em quem seria o vence
dor.
Quando Rafael e seu oponente tomaram os lugares marcados no campo, a multidão grit
ou, animada. Os dois estavam a pé e não usavam armaduras. Alicia sabia que aquela ba
talha poderia terminar em morte.
- Que Deus esteja com ele - murmurou, pegando o braço do pai.
- Tenho fé no julgamento de Deus e creio que Rafael vencera - Philip confortou-a.
Giovanni também era da mesma opinião. Os oponentes estavam vestidos com calças justas
e túnicas longas. As roupas de Rafael eram amarelas com chamas vermelhas no peito,
o emblema das pessoas acusadas pela Inquisição. O outro homem usava vestes brancas
e uma cruz vermelha no peito.
Olhando em meio a multidão, Rafael encontrou os olhos de Alicia, fez uma mesura e
a saudou com a espada, mostrando que ela era sua dama e que ele lutaria por ela.
As pessoas que torciam pela vitória de Rafael o aplaudiram, enquanto os demais o
vaiaram.
- A rainha e o rei chegaram - anunciou Philip, apontando para lugares reservados
e decorados com as armas dos soberanos, castelos e leões. O combate vai começar.
A rainha estendeu uma enorme cruz de Duro e cada um dos combatentes a beijou, so
b os aplausos do publico.
- Rafael escolheu a espada como arma. Escolheu bem - opinou Giovanni. - O machad
o e difícil de manejar.
Não morra, Rafael. Viva, meu amor, por você, por mim e pela criança que ainda não nasceu
, pensava Alicia.
Rafael percebeu o olhar dela e fortificou-se com seu amor.
Era preciso ganhar. Estudou o seu oponente, um homem baixo e musculoso. Sabia se
r aquela a vantagem de Dorado, porem a agilidade e a astucia eram suas companhei
ras de guerra.
Ao som de uma trombeta, o combate começou. Foi uma luta brutal, espada contra espa
da, escudo contra escudo.
Rafael segurava a sua arma com determinação, defendendo-se dos avanços do oponente. Ma
s foi ele que recebeu o primeiro golpe e foi ao chão.
A multidão prendeu a respiração, enquanto Rafael rolava para o lado, esquivando-se do
golpe seguinte. A espada ficou enfiada no solo, a apenas alguns centímetros da ca
beça dele.
- Da próxima, você não me escapa - praguejou o outro, Decepcionado por não ter consegui
do derramar sangue, Jogou-se sobre Rafael e os dois se engalfinharam pelo chão. A
multidão gritava, empolgada.
Conseguindo por fim se livrar do oponente, Rafael voltou a se erguer.
- Não quero matá-lo. Não tenho nada contra você, só quero provar a minha inocência. - disse
ele ao oponente.
- Não vai conseguir, pois estou ansioso para derramar o seu sangue. Não gosto daquel
es que estão contra Deus!
Com um rosnar, o homem se lançou novamente contra.
Rafael, com a espada erguida. Mais uma vez, Rafael aparou o golpe bem a tempo.
O som de espada contra espada rasgava o ar, enquanto os homens lutavam furiosame
nte. Era um teste de força, coragem e habilidade. Repetidamente, o homem musculoso
avançava, e a raiva porque o outro conseguia se desviar dele o tornava descuidado
. Com os sentidos afiados pelo perigo, Rafael aparou cada investida ate que, com
uma explosão súbita de força, ele arrancou a espada da mão do oponente. A multidão gritav
a, pedindo sangue. Exigia um espetáculo sanguinário.
O rei, que era um bom espadachim, inclinou-se para a frente, irritado com o resu
ltado do confronto. Ele gritou para que o campeão ?e Juan Dorado pegasse a espada,
o que o homem fez, aproveitando-se da interrupção da luta imposta pelo rei.
O publico aguardava, tenso, enquanto os dois homens se preparavam para retomar a
luta. Rafael amaldiçoou o seu senso de honra, que o havia impedido de atacar um h
omem desarmado. Esperava que isso não resultasse no seu próprio fim. Sentia o peso d
os dias que tinha passado com pouco alimento e sono. Estava atordoado, os braços não
tinham se recuperado total mente do strappado e doíam nas articulaçõees. Ele sabia qu
e aguentaria um combate curto, mas temia ficar cansado com o prolongamento da di
sputa. Havia limite para o seu corpo, mesmo pela honra e pelo amor.
O seu oponente subitamente atacou com fúria e ele sentiu a lamina da espada no omb
ro e o calor do sangue que escorria pelo seu braço.
- Rafael! - Ele ouviu o lamento de Alicia.
A multidão estava de pé, aguardando sua derrota, mas Rafael também estava determinado
a vencer.
Com um grito, seu oponente se Iançou para o golpe mortal, a espada sibilando no ar
. Rafael abaixou-se bem a tempo. O homem tropeçou na perna estendida de Rafael e c
aiu no chão, impulsionado pela própria força que empregara no ataque. O representante
de Juan Dorado então permitiu que a raiva o cegasse. Começou a atacar como um louco.
Rafael percebeu que aquela era a sua chance e atacou com rapidez e precisão, sent
indo a espada perfurar a carne do outro homem.
- Dios, você me matou! - O homem se enrolou no chão, como um bebe no útero da mãe, e fic
ou imóvel, uma mancha vermelha se alastrando ao redor dele.
Rafael fechou os olhos e rezou pela alma do homem, enquanto ouvia os gritos da m
ultidão. Ele havia vencido, mas o preço tinha sido a vida de um homem. Os médicos que
vieram examinar o ferido disseram, porem, que ele poderia sobreviver se consegui
ssem estancar a hemorragia.
A trombeta tocou novamente e todos olharam para a rainha.
Atordoado, Rafael ouviu-a anunciar que ele era o vencedor e declarar que ele era
inocente. Atordoado, ele procurou o rosto de Alicia na multidão. Era nisso que el
e pensava ao cair no chão.
Rafael abriu os olhos, sentindo-se zonzo, sem saber onde estava.
- Alicia?
-Estou aqui meu amor.-Ela pegou a mão dele e a levou ao peito. - Deus esteve com v
ocê e com todos nos. A rainha e o rei o julgaram inocente e eu fui declarada filha
e herdeira do meu pai. Zuba, Todero, Stivo e os outros vão receber salvos-conduto
s até chegarem ao litoral de Portugal. Como vê, tudo esta bem.
- Onde estamos?
- No local onde nos encontramos pela primeira vez. Meu pai quis nos deixar em um
lugar seguro, longe de todos os que desejavam cumprimentá-lo pela vitoria, e também
nos deixar a sós.
Rafael olhou ao redor e viu, ainda atordoado, que eles estavam onde antes ficara
o acampamento cigano. O barulho do rio se misturava ao Sussurro do vento.
- E a mulengi dori, onde está?
- No rio. Foi a vontade de Deus, e não a mágica, que nos salvou. Padre Julio me diss
e que o certo sempre ganha do errado, e agora percebo que ele tem razão.
- Espero que padre Julio volte logo de Roma. Preciso de um padre. - Ao ver a exp
ressão de preocupação no rosto de Alicia, Rafael riu. - Esta na hora de nos casarmos e
quero que ele faça o casamento.
Rafael então percebeu que ele estava deitado sobre a sua capa, que fora ,estendida
no chão. Pegando Alicia pelo braço, puxou-a para que ela se deitasse a seu lado.
- Onde esta o seu pai?
- Ele e Giovanni estão cuidando da nossa segurança, mas estão longe e não podem nos ver.
Rafael, então, tomou-a nos braços, a boca procurando a dela com paixão. Eles tinham di
ante de si toda a vida para estar juntos.
O amor tinha vencido tudo.

FIM

Você também pode gostar