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O UIRAPURU E A BUSCA PELO ROSTO

Beatriz Chaves

Apoena era um Uirapuru. Seu bisavô fora um, bem como seu avô e seu pai,
então era lógico que ele também o fosse. Como Uirapuru, passava boa parte de
seu tempo pendurado nos galhos das árvores, cantando e encantando com seu
assobio melodioso, guardando a mata de possíveis caçadores mal-intencionados.
Mas, diferente de seus antepassados, ele não se interessava em declarar seus
cantos por amores não correspondidos, e atualmente os caçadores malvados pelas
redondezas eram poucos. Não, Apoena tinha outros objetivos. E mais: ele tinha
um segredo.
Ele não era um pássaro o tempo todo.
Uma vez por mês, recebia uma benção. Quando a lua se ancorava cheia no
céu, Apoena deixava de ser pássaro e virava gente, e gente permanecia, contanto
que a lua ainda brilhasse. E esse era o momento mais esperado pelo Uirapuru.
Como humano, visitava a aldeia vizinha e nela brincava com seus habitantes,
dançava com os curumins, ouvia suas histórias e aprendia sobre seus costumes. O
encanto de Apoena era a humanidade.
E, naquela noite, seus planos eram especiais.
Quando Jaci brilhou cheia e redonda no céu estrelado, o Uirapuru desceu de
seu galho. Quando sentiu a metamorfose sacudir seu corpo, olhou para si mesmo,
como sempre fazia: para suas pernas e braços, encobertos pela pele avermelhada,
para seus dedos dos pés, sacudindo-os experimentalmente. Tocou seu rosto,
mesmo que não houvesse reflexo ali para vê-lo. Mas já o tinha visto antes: nem
muito feio nem muito belo, um rosto humano normal, que o dava a benção de
passar despercebido.
Escutou um revoar de asas. Então, um diminuto passarinho pousou em seu
ombro. A ave soltou um trinado enérgico, e Apoena revirou os olhos.
— Tu dizes isso toda noite de lua-cheia, Luz-Dalva.
Luz-Dalva piou novamente, dessa vez com um pouco de raiva. Era a
melhor amiga de Apoena – e era também uma andorinha. E, ao contrário do
Uirapuru, permanecia sempre como pássaro, sem jamais se transfigurar humana.
Até poderia fazê-lo, se quisesse, se pedisse um favor para a Matinta que habitava
os fundos da mata. Mas não queria. Dizia estar muito bem como pássaro, e que
humanos eram seres grosseiros, rudes e desconfortáveis de se ser.
Em nome da amizade, Apoena não discutia.
— Sei que estás preocupada — ele murmurou, acariciando as penas da
amiga. — Mas eu sempre quis ver uma selva de pedra. E o que tem de mais nisso?
Apesar de amar a aldeia, Apoena sempre tivera curiosidade de ver como
viviam aqueles homens que se enfiavam em casas de concreto, que se
locomoviam em máquinas e carroças, que viviam desconectados da natureza e das
bençãos que esta oferecia. Apoena queria entendê-los. Queria saber como
pensavam.
Luz-Dalva trinou outra vez, e o Uirapuru resmungou.
— Sei muito bem que tenho que voltar antes de Jaci descer. Não sou leso
assim, Luz. Sei o que estou fazendo. Se não quiser vir comigo, não estou te
obrigando.
Olhou incisivamente para a andorinha, desafiando-a a alçar voo. Mas ela
apenas o fitou com olhos aborrecidos e impacientes, e permaneceu em seu ombro.
Apoena engoliu o riso, assim como o alívio. Estava ansioso por aquela aventura,
mas não estava seguro em vivê-la sozinho.
Estava vestido com as roupas que o Cacique lhe dera, que segundo ele
eram vestimentas que humanos usavam em suas selvas de pedra. Eram estranhas,
quentes e desconfortáveis, mas aqueles sapatos, acolchoados e amarrados com
fios brancos macios, facilitavam de forma surpreendente a caminhada. Apoena foi
andando pela trilha já conhecida da mata, indo em direção ao que os homens
chamavam de estrada. Não fazia ideia de onde ficava o lugarejo mais próximo.
Pretendia descobrir.
A mata era iluminada pela lua e pelas estrelas, e estava cheia de entidades
e animais que Apoena tinha como amigos. Já a estrada humana, ele descobriu, era
vazia, e iluminada por colunas brilhantes esquisitas, cuja luminosidade
machucava os olhos. Por aquele lugar, o Uirapuru sabia, passavam máquinas
barulhentas nas quais os homens se transportavam, pois não possuíam asas ou
velocidade nas pernas. Mas agora, não havia nenhuma. Só silêncio.
Olhou de canto para Luz-Dalva, que nada disse – sua expressão cética
dizia o suficiente. Mas Apoena não esmoreceu.
— Vamos andando. Há de ter alguma habitação por perto.
Andaram, andaram e andaram. Apoena não era de desistir. Mas estava
ficando cansado. Não tinha costume de andar tanto com aquelas pernas, e estas
estavam desconfortavelmente doloridas. Não que fosse admitir isso a Luz-Dalva.
Mas então...
— Veja — ele sorriu para a andorinha, numa expressão de triunfo que
falava “eu não disse?” — Parece ser uma casa! E está iluminada!
O piado que a andorinha chiou tinha um significado deselegante demais
para que o Uirapuru traduzisse.
Foi andando animadamente até a construção. Era uma única casa, no
meio do nada, não uma cidade. Mas talvez seu ocupante pudesse conduzi-lo até o
povoado mais próximo.
E só havia, de fato, um ocupante. Um homem velho, desses que era
difícil determinar a idade exata, mas era obviamente vivido. Pele negra castigada
pelo sol, cabelos e barba branca farta cobrindo o rosto, que era um pouco magro e
encovado. Ele se balançava solitário numa cadeira de aspecto curioso, indo para
frente e para trás. Fumava – mas não o cachimbo que por vezes Apoena via o
povo da aldeia usar. Era um negócio esquisito, fino e de ponta escura, que
desprendia um cheiro desagradável.
Lançou um olhar hostil para o Uirapuru ao vê-lo, os olhos marrons secos
e desconfiados. Ainda assim, Apoena se muniu de coragem e boa-educação:
— Boa noite, senhor. Eu gostaria de pedir uma informação...
— Veio ao lugar errado, filho.
A voz, ríspida e seca – embora não realmente agressiva – emudeceu o
Uirapuru por um instante. Luz-Dalva se agitou em seu ombro, claramente
desejando sair dali.
Mas que tipo de criatura ele seria, se desistisse tão fácil?
— Não quero incomodar, senhor. Queria apenas que me dissesse onde
posso achar a selva... digo, a cidade... mais próxima. Se puder me indicar o
caminho, nem que seja longo... ai! — Luz-Dalva o bicou forte na orelha, e,
grunhindo, Apoena se corrigiu: — Digo, o lugar mais perto que tiver. Por favor.
O homem o encarou em silêncio. Tragou profundamente seu tabaco
esquisito, e então soprou fumaça para cima, para o céu estrelado que não era tão
estrelado ali. Então, voltou a encará-lo nos olhos. Sua expressão era sombria.
— Garoto, o que tu queres é dar meia volta e voltar pra onde tu vieste.
Porque o lugar que tu tás buscando não é bom de se ir, não. Se tu fores, é capaz de
não voltar.
A curiosidade acendeu no peito de Apoena. Ele olhou o velho com
interesse.
— Mas por que dizes isso?
O homem resmungou, com mais um trago em seu tabaco. Seus olhos
passaram por Luz-Dalva, e não pareceram estranhar um passarinho repousado
tranquilamente no ombro de um jovem. Ao soprar a fumaça, soltou um longo
suspiro.
— O povoado mais próximo de onde estamos, rapaz, chama Vila do
Amanhã. Costumava ser um lugar próspero, bonito. Agora é lar de gente
amaldiçoada.
— Que tipo de maldição?
O homem balançou a cabeça, a expressão desgostosa.
— Eu nunca vi com meus próprios olhos, mas o que vou te dizer, garoto, ouvi
de fontes de confiança. Vila do Amanhã já foi um lugar de paz, de felicidade. Mas
a semente da maldade mora em tudo que é gente. Um dia, um empresário
apareceu no povoado. Ofereceu um bom dinheiro pra população, em troca da
propriedade da vila. Com a quantia, esse empresário ia transformar a cidadezinha
em comércio. Ia derrubar o bosque em volta, destruir a fauna, a flora. Mas a
população ia lucrar. E a maioria do povo, claro, aceitou a oferta.
— Que horror – Apoena murmurou com espanto; sua mente pensava nas
pobres plantas e animais que habitavam a tal vila, entristecido em perceber como
os humanos das selvas de pedra podiam ser cruéis.
— Horror mesmo. Mas o horror maior, filho, foi o que aconteceu depois. O
empresário era empresário coisa nenhuma. Era uma bruxa, dessas cheias de
ruindade e desejo de vingança. A bruxa viu a mesquinhez que tinha naquela gente,
e lançou uma maldição. Disse que se eles não tinham respeito pela própria casa,
pela própria identidade, então ela tiraria a identidade deles.
— Como assim? Como se rouba uma identidade?
— Rostos, garoto. A bruxa roubou os rostos de todo mundo daquela vila. E
agora o pessoal de lá anda assim, sem cara, sem marca, sem nada. Um povo sem
nenhuma face.
A história era espantosa. E Apoena estava um tanto confuso.
— Mas... como é possível? Se não têm rosto, como podem respirar? Ou falar,
enxergar?
— Não conheces mágica, menino? Essa é a maldição. Eles andam, respiram,
mas não tem nada preenchendo a cara. Se falam, não sei. Mas enxergam. Esse é o
maior castigo: eles se olham no espelho e se veem do jeito que são, monstros sem
rosto nenhum.
O Uirapuru, sendo o que era, já havia visto muita mágica na vida, tanto boa
quanto má. Mas uma cidade inteira de rostos roubados, isso nunca tinha
encontrado, em todas as suas jornadas. Era assombroso só de imaginar. Ele devia
seguir o conselho do velho, dar meia volta e ir para casa. Voltar para a segurança
do que conhecia, dos bons humanos da aldeia e de sua mata sã e segura.
Mas...
Ele olhou para Luz-Dalva. O olhar da andorinha dizia que ela já imaginava qual
seria sua decisão.
— Pobres almas — sussurrou, e tanto o pássaro quanto o idoso puderam escutar.
— Devíamos ajudá-las. Devem estar em imenso desespero.
O idoso soltou uma curta tosse. Sua cadeira pendeu para trás.
— Não sou burro, garoto. Sei que não és um moleque comum. És alguma
entidade, algo além desse nosso mundo mortal. Se quiseres te arriscar naquela vila
esquecida por Deus, que vá. Mas aviso — e seus velhos e sábios olhos o
encararam em cheio, a expressão grave. — Mágico ou não, pode ser que não
consigas voltar.
Apoena olhou para a lua. Brilhava cheia e resplandecente no céu, ainda alta. Se
não voltasse para seu galho a tempo de ela baixar, então ficaria aprisionado para
sempre na forma de um pássaro. E não mais um pássaro mágico, não. Um pássaro
comum, sem conhecimento ou raciocínio.
Estava arriscando demais, sabia. Mas pensava na vila amaldiçoada, e nas pobres
almas que lá viviam. Era um guardião, um protetor. Como poderia dar as costas a
algo assim?
— Agradeço imensamente a ajuda, senhor — falou por fim, curvando-se
respeitosamente para o homem mais velho. — Espero que nos vejamos
novamente.
— Eu duvido muito, rapaz. Duvido muito.
Foi andando lentamente na direção que o idoso indicou, com somente os
ocasionais bater de asas de Luz-Dalva quebrando o silêncio da noite. E era uma
noite perturbadoramente silenciosa. Uma cidade deveria ser cheia de movimento e
barulho. Mas Apoena não escutava nada.
Até que viu.
Do alto de um morro, viu a pequena vila que jazia abaixo. Não era nada como as
selvas de pedra imensas e fervilhantes que os humanos na aldeia haviam descrito.
Era de um tamanho reduzido, e não havia carros ou carroças nem sons
eletrizantes. Mas havia, ele constatou, as tais casas de concreto, e ruas iluminadas
pelas colunas artificiais esquisitas. Era definitivamente uma cidade.
Só não parecia haver ninguém.
Luz-Dalva soltou pios agitados, e levemente Apoena acariciou suas penas.
— Vamos. Olhar não custa nada.
Desceram devagar, com calma, atentos a qualquer presença ou movimento.
Quando finalmente pisaram no vilarejo, o Uirapuru ficou fascinado com o chão
sobre o qual seus sapatos pisavam, duro e cinza, sem grama ou terra. Quedou-se
fascinado pela arquitetura peculiar das casas, e observou o quanto eram
estranhamente bonitas. Havia enfeites espalhados pelo caminho: bandeiras
coloridas amarradas em fios.
Mas estavam velhas e gastas. Como se, há muito tempo, houvera ali uma
comemoração festiva, que fora interrompida e jamais arrumada.
— É estranho — sussurrou para a andorinha — Realmente parece que não...
Então ele ouviu.
Primeiro, achou o som esquisitíssimo: uma série de resmungos engrolados e
ininteligíveis, seguidos por passos arrastados e pés que pareciam andar aos
tropeços. Ao longe, Apoena avistou: um grupo vinha se aproximando, a passos
lentos e trôpegos.
Seu coração palpitou. Primeiro, cogitou se apresentar, oferecer ajuda, mas
então pensou melhor. Seriam pessoas amaldiçoadas agressivas?
Mesmo enquanto se aproximavam, ele não podia distinguir seus rostos.
Eles não tem face, mas podem enxergar.
Mais que depressa, o Uirapuru se encolheu, escondendo-se numa pequena ruela
sem saída, misturando-se às sombras da parede. Não estava sendo covarde, disse a
si mesmo. Estava observando. Primeiro observaria, e depois decidiria se era
seguro ou não.
Ficou olhando enquanto o grupo atravessava a rua.
Era mais ou menos uma dúzia. Homens e mulheres, de peles claras e escuras,
de todas as formas e tamanhos. Era óbvio que eram todos diferentes, mas ainda
assim, todos tinham um grande e aterrador ponto em comum.
As faces, lisas e vazias, sem um único traço visível.
Mesmo sem boca, emitiam sons. Mas não chegavam a ser palavras. Eram
ruídos abafados, como a vez em que Apoena pegara com seu bico tantas frutas
que não conseguiu piar até engoli-las. As pessoas sem face andavam se
arrastando, emitindo aqueles balbucios incompreensíveis enquanto se afastavam
rua abaixo.
Deveria ser uma cena assustadora, mas não era. Era triste.
— Então o velho tinha razão — ele sussurrou o óbvio para Luz-Dalva, cujas
penas estremeciam em seu ombro. — Mas o que nós podemos...
Sua frase foi interrompida por um novo som chegando aos seus ouvidos. Sua
espinha se arrepiou de espanto.
— Está ouvindo isso? — Luz-Dalva balançou o bico, e ele resmungou,
impaciente. — Tem alguém chorando.
Será que era possível chorar sem um rosto?
Ele seguiu o som. As ruas estavam vazias, com aspecto abandonado. Havia no
chão pedaços de comida largados pela metade, carroças tombadas com seu
conteúdo despejado. Como se tudo por ali houvesse sido deixado às pressas.
A origem do choro não foi difícil de encontrar. Estava na pequena figura
sentada à beira da calçada, com a cabeça envolvida entre as mãos.
Tinha o tamanho de uma criança, e isso mexeu com o peito do Uirapuru.
Devagar, sem ter certeza se a menina podia escutá-lo, se sentou a seu lado no
chão.
— Por que choras, garotinha?
A menina ergueu o rosto para ele, e mais uma vez ele se espantou: não estava
vazio.
— Meu rosto — a criança sussurrou, em voz entristecida — Está indo embora.
E estava mesmo, Apoena percebeu. E era um lindo rosto, pensou com tristeza.
A pele era como grãos de café, e os olhos eram como dois favos de mel. O nariz
era arredondado e a boca era cheia e de coração, como a de uma delicada boneca.
Mas os traços estavam embaçados e difusos, como se estivessem sendo pegos
por uma terrível ventania. Como se estivessem prestes a ser levados pelo ar.
Mas ainda era possível ver as lágrimas, marcando as bochechas.
— O que posso fazer pra ajudar? — Apoena perguntou, sentindo-se
desesperado.
A menininha soluçou.
— Nada. Tu não podes lutar contra a bruxa, menino, ninguém pode. Antes ela
só pegava o rosto de quem era mau, mas agora tem mais fome, e está levando o de
todos nós. O meu está sendo levado, e é melhor tu ires logo embora, antes que o
teu seja também.
A voz também parecia estar sumindo, percebeu o Uirapuru com alarme.
Luz-Dalva se agitava em seu ombro, e ele sentia em seu peito medo e urgência,
pavor pelo destino da doce menina.
— Tu falaste da bruxa... podes me levar até ela? — perguntou, num ímpeto de
urgência. — Talvez se eu puder falar com ela... onde ela mora?
— Ela mora... — a voz da menina se reduziu a um sopro, e Luz-Dalva soltou
um piado aterrorizado quando as lindas feições foram varridas de vez. Em um
segundo, Apoena agora olhava para um rosto deserto, vazio como o fundo de uma
colher.
Era perturbador já não saber o que a criança estava sentindo, embora sentisse
que ela o olhava. Seu rosto vazio era mais inexpressivo que a lua cheia.
Mas, ainda que não expressasse nada, com certeza ainda pensava, ainda sentia.
Os pequenos pés se agitavam à beira da calçada: um sinal de ansiedade.
Talvez ainda houvesse esperança.
— Me diga onde achar a bruxa — Apoena pediu, lutando para expulsar o
desespero da voz. — Me leve até lá. Prometo que vou consertar tudo.
A criança não se mexeu durante alguns segundos, e por um instante ele temeu
que ela não pudesse mais entendê-lo. Mas então, ela se levantou. E, com um gesto
de mão, pediu a ele que a seguisse.
Foram andando os três na rua vazia: a andorinha, o garoto-uirapuru e a menina
sem face. A lua brilhava alta acima deles, mas já começava a descer.
Luz-Dalva estava claramente tensa e agitada. Não parava de bater as asas e
piar. Quando dobraram uma esquina, ficou ainda mais nervosa, e, ao olhar em
volta, Apoena entendeu o motivo.
A rua estava cheia de gente. Na calçada, havia um conjunto de mesas, como se
aquele fosse outrora um lugar onde as pessoas comiam, bebiam e conversavam.
Agora, nas mesas só havia pessoas estáticas, sem rosto e sem voz. Uma música
animada saía fraca de uma caixa de som, mas naquele cenário soava macabra.
E todas as cabeças sem rosto estavam voltadas para os três andarilhos. Um
homem em particular, grandalhão e de couro-cabeludo raspado, parecia olhar
diretamente para Apoena, mesmo desprovido de olhos. O Uirapuru estremeceu.
— Eles não vão fazer nada contra a gente, ou vão? — perguntou inutilmente à
menina, mesmo sabendo que não obteria resposta.
Mas, como se quisesse responder, a criança virou em direção a ele,
interrompendo os passos.
E, quase ao mesmo tempo, todas as pessoas na mesa se levantaram.
Nos primeiros segundos, foi pavoroso. Um cerco se fechou em torno dos dois
pássaros e da criança sem face. O grupo dos sem-rosto se aglomerou ao redor
deles, em seus passos vacilantes e seus resmungos sem palavras. Por um instante,
Apoena temeu ser atacado. Se fosse ave, poderia simplesmente sair voando. Tinha
poderes que o protegeriam de ataques de um humano perverso, mas o que dizer de
duas dezenas?
Mas, assim que formaram um círculo a seu redor, os sem-rosto não se
aproximaram mais. Não fizeram menção de tocá-lo ou atacá-lo. Continuaram
resmungando, porém; cada vez mais alto e mais alto. O Uirapuru balançou a
cabeça, confuso e impotente.
— Desculpem, não entendo o que estão dizendo. Realmente não sei...
De repente, Luz-Dalva soltou um pio alto, agitando as penas. A menina sem
rosto permanecia ao lado, impassível, mas seus braços abraçavam o corpo. Ainda
mais confuso, Apoena mirou sua melhor amiga. A andorinha parecia, de algum
modo, entender os resmungos indistintos dos habitantes da vila. Os traduziu em
seus piados, e, quando o Uirapuru entendeu, arregalou os olhos:
— Estão me pedindo que não vá até a bruxa? — repetiu, e quando a multidão
sem rosto balançou a cabeça em concordância, arregalou os olhos. — Mas vocês
não desejam ter seus rostos de volta?
Mais resmungos. Luz-Dalva traduziu, e Apoena negou com a cabeça.
— Eu sei que é perigoso. Mas já lidei com bruxas antes. Posso pedir que
devolva os rostos a vocês. Vocês não merecem ter essa vida. Por Tupã, ninguém
merece!
Os resmungos pareceram se tornar entristecidos. Mesmo sem a tradução de
Luz-Dalva, Apoena pôde entender que a população de Vila do Amanhã não se
sentia digna de ajuda. Apiedado, se aproximou do grupo. Havia uma mulher num
vestido esfarrapado, carregando um bebê de colo, ambos sem nenhuma face. O
Uirapuru tocou muito levemente a mão gorducha da criança.
— Não se preocupem comigo — sussurrou docemente — Terão seus rostos
de volta. Eu prometo.
Alguma coisa em sua voz deve ter convencido o grupo, pois eles se dividiram
e abriram espaço para que o trio passasse. A menina continuou andando a passos
firmes, enquanto Apoena e Luz-Dalva a seguiam. O Uirapuru ainda passou alguns
segundos mirando a multidão, que agora estava parada à rua, em silêncio.
Andaram pelo que pareceu uma eternidade. Estavam indo até o limite da vila,
ao que parecia. As casas foram rareando, e as ruas de pedra voltaram a ser de
terra. Todos os seres vivos, mesmo meros insetos, começaram a desaparecer da
paisagem, deixando uma ruela sombria e escura no lugar; uma via muita mais
assustadora do que a população sem face mostrou ser.
Até que a garotinha congelou. Voltou sua cabeça para Apoena, e estendeu o
braço, o indicador apontando uma direção. O Uirapuru a seguiu, e seus olhos
miraram uma pequena casa, quase uma choupana, não tão diferente das habitações
dos homens da aldeia. Estava escura e parecia inabitada.
Mas bruxas sabiam como criar ilusões.
— Certo. Fique aqui. Volto já — e, antes que Luz-Dalva pudesse protestar,
pegou a andorinha nas mãos e pousou no ombro da menina. Ainda assim, a ave
reclamou, piando alto e sacudindo as asas. — Não faça drama. Tens que ficar aqui
para cuidar da... me desculpa, menina, podes me dizer teu nome?
A menina emitiu um grunhido. Luz-Dalva traduziu, e Apoena abriu um sorriso.
— Elis. Fique com Elis, Luz-Dalva. Volto em alguns minutos.
E, sem dar brecha para novos protestos, virou-se e andou em direção à cabana.
Fazia tempo desde que Apoena lidara com uma bruxa. Uirapurus encantados
viviam sete vezes mais que qualquer humano, mas ele ainda era um Uirapuru
jovem, quase um adolescente. Vivido, mas nem tanto.
Mas precisava tentar.
Como sabia que devia ser feito, bateu três palmas em frente a porta:
— Minha senhora desta casa, dona encantada, rogo permissão para entrar.
Um instante de nada se fez.
Então, com um rangido, a porta se abriu. Uma voz grave se elevou do interior:
— Entre, menino.
Ele entrou devagar. Foi rodeado pela escuridão da cabana, pelo ar abafado e
cheio de poeira. Olhou em volta, surpreso. Parecia como uma casa normal, exceto
que aparentava ter sido abandonada por seus donos há muito, muito tempo. Havia
fotografias borradas nas paredes, uma xícara gasta de café apoiada sobre a mesa
antiga. Brinquedos empoeirados no chão. No canto, um berço vazio.
No centro, uma cadeira, como a do velho eremita, também de balanço.
Balançou devagar, e então girou, exibindo sua ocupante:
— Ora, ora. Um jovem Uirapuru, nada menos que isso. Há quanto tempo não
recebo visitas de alguém da tua espécie. Mas que honra, meu menino.
Apoena piscou. E piscou uma, duas vezes, pois seus olhos demoraram a
entender o que viam.
A bruxa não tinha um rosto. E não porque era sem face, como os habitantes da
amaldiçoada vila, mas porque tinha muitos rostos; tantos, que no final não tinha
nenhum. Estes giravam em sua cabeça como um caleidoscópio: ora um homem
forte e viril, ora uma moça jovem, ora um idoso de pele gasta, e assim
sucessivamente. Por um instante, o Uirapuru achou que podia ver o rosto lindo e
suave de uma garotinha.
Era isso que fazia com as faces, então. Roubava-as para si.
Num ímpeto de raiva, ele cerrou os punhos.
— Senhora da magia, por que fazes tal maldade? Por que roubar as faces dessa
pobre gente?
A bruxa exibiu um olhar tranquilo, que brilhou no rosto de um homem jovem
de pele negra. Apoena notou que, por mais que as faces mudassem, os olhos
permaneciam os mesmos: cinza-escuros, da cor de tempestade.
A feiticeira pegou a xícara de café da mesa e sorveu um gole, como se o líquido
nela fosse fresco.
— “Pobre gente” ... — repetiu, a voz em gralha. — Essa pobre gente, meu caro
passarinho, é cheia de soberba, ganância e mesquinharia, não vês? Estavam
dispostos a vender suas terras por uma merreca. Concordaram em depredar a
natureza que tu tanto amas, meu rapaz encantado.
Apoena engoliu em seco. A voz da bruxa era mansa, calma, até gentil, e por um
instante o fez acreditar que nada naquela situação era errado. Que a feiticeira
havia meramente feito uma reparação justa.
Mas então pensou na garotinha lá fora. Elis. E nas pessoas sentadas nas mesas
da rua, ouvindo uma música que jamais poderiam cantar.
— Talvez algumas fossem más. Mas não todas. Há uma garotinha inocente lá
fora, sofrendo. — Encarou o rosto da bruxa com acusação; agora tinha a aparência
de um rapaz adolescente. — Os outros não me pareceram pessoas más tampouco.
Tentaram me impedir de vir até aqui, mesmo querendo seus rostos de volta.
Talvez já não sejam mais mesquinhos e egoístas como antes. Talvez tenham
aprendido a lição.
— Achas que o castigo os fez pessoas boas, então?
— Acho que humanos são complexos. Não podem ser classificados como bons
ou maus; não a maioria, ao menos. E não acho que a resposta para a iniquidade
seja tirar-lhes as faces, as escolhas, as oportunidades de crescer e melhorar. Não
acho que seja esse o caminho.
A bruxa o encarou longamente em silêncio. Então, lentamente, sorriu. Os
dentes eram gastos e amarelados: o rosto agora era o de uma idosa.
— Sabe, conheci teu bisavô — disse, cruzando os braços, e o Uirapuru piscou;
não esperava por uma fala daquelas. — Era um homem apaixonado, tal como és.
— Não sou apaixonado por ninguém.
— És apaixonado pela vida. E isso é infinitamente mais perigoso que romance,
meu rapaz, acredite.
Ela se levantou da cadeira. Era alta, muito alta, de um jeito não natural; como
se sua estrutura óssea fosse alongada além de qualquer corpo humano.
— Façamos um acordo, meu bem — em seu rosto agora havia uma mulher
jovem e muito bonita, e ela cravava o dedo nodoso sob o queixo de Apoena. —
Eu devolverei os rostos. Libertarei aquela “pobre gente”. Se tu me deres algo em
troca.
O Uirapuru engoliu o medo. Era uma ave mágica, descendente de homens
apaixonados e corajosos. Não havia o que temer de uma bruxa.
— O que queres?
Ela sorriu. Seu rosto agora era de um gorducho bebê; inocente e singelo, não
fossem os olhos acinzentados.
— Me dê tua vida, passarinho — sussurrou, e o hálito de café e tabaco bateu
em cheio no rosto de Apoena. — Se tens tanta fé nos humanos deste vilarejo, eis o
que vamos fazer: se eles, e preste bem atenção, se todos eles forem pessoas boas,
desprovidos de ganância e mesquinharia, então eles e tu poderão viver para
sempre em liberdade. Mas, se um dia, se somente um deles voltar a expressar o
egoísmo de outrora... então tu, jovem Uirapuru, serás meu. Te prenderei numa
gaiola e escutarei teu canto pela eternidade.
A coragem de Apoena vacilou. Percebeu que havia, sim, o que temer. A bruxa
havia buscado e encontrado nele o que mais prezava: sua liberdade. E estaria ele
disposto a arriscar seu mais valioso bem em prol de uma vila de humanos que
sequer conhecia?
Pensou no rosto marcado de lágrimas de Elis.
— Sim – falou, antes que pudesse pensar. — Aceito o acordo.
A bruxa gargalhou. Uma risada cacarejada tão aguda que as janelas da
choupana estremeceram. Um vendaval cortou o interior da casa, ainda que do lado
de fora não ventasse. A feiticeira ainda agarrava Apoena, de modo que ele assistiu
de perto enquanto as centenas de rostos tremeluziam e desapareceriam, puxadas
pela ventania como folhas na chuva. Foram desvanecendo cada vez mais rápido, e
ficou quase impossível de identificá-los; embora, ao final, ele achou ter visto a
face de boneca de Elis.
Então o vento cessou. Apoena agora olhava para um rosto só.
Parecia exatamente como uma bruxa deveria ser: nariz pontudo e aquilino,
cabelos esfarelados e grisalhos, sorriso lânguido e perverso e sobrancelhas
peludas em arco. Mas seria aquele o verdadeiro rosto da bruxa, ou ela um dia o
havia roubado de outro alguém?
Ele provavelmente nunca saberia.
— Acordo feito, meu passarinho — ela o olhou sorridente, e os olhos ainda
eram do perturbador tom de cinza. — Aproveite sua liberdade enquanto ainda a
tem. Nós nos veremos em breve.
Um forte vento soprou de novo. Apoena piscou os olhos, e quando os abriu, a
cabana estava vazia. Inteiramente vazia; sem ninguém, sem nada.
Trêmulo, ele saiu da casa, que desmantelou assim que atravessou a porta. Foi
andando rapidamente pela rua, sentindo o peito pesado.
Mas, alguns passos depois, o que avistou o fez sorrir.
Elis estava no meio da rua, pulando e gritando de alegria. Luz-Dalva sobrevoava
sua cabeça, dando voltas e piruetas, como se também comemorasse.
Quando o viu, a menina abriu o mais lindo dos sorrisos, acendendo seus olhos
cor de mel.
— Tu conseguiste! Tu conseguiste mesmo! – sem aviso, ela se lançou a ele num
abraço, que o Uirapuru retribuiu a braços trêmulos. – Como tu convenceste ela a
nos libertar?
Apoena ergueu os olhos para Luz-Dalva, que o observava atentamente. Lutou
para formular sua expressão de maior casualidade no rosto.
— Vou te contar um segredo, pequena. Uirapurus, além do canto mais bonito,
também têm uma senhora de uma lábia.
A menina exclamou um gritinho, soltando-o e dando mais um salto de alegria.
Era raro ver uma felicidade tão pura quanto aquela, mesmo em uma criança.
— Preciso achar minha mãe — ela anunciou, e antes de sair correndo estalou
um beijo na bochecha de Apoena. — Obrigada, muito obrigada, seu Uirapuru!
Ele trocou um olhar com Luz-Dalva. Ambos olharam para a lua, que, menos
brilhante, começava a baixar no céu.
— Temos que correr — ele constatou, e num acordo mútuo, ambos dispararam
pelas ruas da cidade.
Por todos os lados ele pôde ver e ouvir pessoas gritando, chorando e se
abraçando, comemorando aos risos e lágrimas. Mas não parou para admirar o
rosto de ninguém. Atravessou desabalado a Vila do Amanhã, e então a estrada, até
adentrar a floresta, pedindo a devida permissão às entidades.
Subiu no galho junto a Luz-Dalva, segundos antes da lua desaparecer no céu.
Sentiu a metamorfose mais uma vez alcançando seu corpo, e quando viu, sua pele
avermelhada deu lugar às penas pretas e vermelhas.
Luz-Dalva dormia tranquilamente a seu lado. Ele, por sua vez, não pregava o
olho. Olhava o sol nascer, e as palavras da bruxa reverberavam em sua mente:
Mas, se um dia, se somente um deles voltar a expressar o egoísmo de outrora...
então tu, jovem Uirapuru, serás meu.
A bruxa tinha razão: ele era apaixonado. Apaixonado pela humanidade, e pela
fé em sua bondade e amor. E agora, sua liberdade estava nas mãos deles.
Só restava torcer para que fizessem valer sua fé, pensou. E finalmente
adormeceu, ao despontar dos primeiros raios de sol.

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