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Unine

Era uma vez uma mãe que teve uma filha muito bonita. Tão bonita que o sol, mal um dia a viu, logo
se perdeu de paixão por ela.

Ciumento, não deu mais luz, nesse dia, para que outros não vissem e também não se apaixonassem
pela linda menina. Fez-se um eclipse.

A mãe, com medo de ficar sem a única filha que tinha, a única companheira que Deus lhe dera,
resolveu escondê-la dos olhos do mundo.

A menina chamava-se Unine e pela mãe foi levada e escondida numa gruta, o que dificilmente lhe
seria perdoado por muitos sete anos e sete dias de vida que lhe fosse dado viver.

Numa noite escura ela levou Unine para a gruta que se situava numa montanha afastada da
povoação.

Disse-lhe: “Minha filha, tu ficas aqui para o teu bem. A porta da gruta não se abrirá por nada deste
mundo, a não ser quando for ouvida a voz da tua mãe.” E cantou uma canção para ela. Era a senha
que faria com que a porta, uma enorme pedra que tapava a entrada da gruta, magicamente se abrisse.
E assim Unine receberia comida e água que a mãe lhe levaria duas vezes ao dia.

Todas as madrugadas, antes que o Sol despontasse, e todas as noitinhas, logo que o Sol se punha, lá
estava a mãe com a merenda e com a cantiga. Era assim:

Unine, Unine, Nnine / cosi , cosi/ cosi, cosa/ que vem di dia/ qui vem di noite/ Unine, Unine!

O Sol inquietava-se. Nunca mais pôde ver a sua menina. Todos os dias se levantava e percorria o
povoado, a ilha toda, todos os continentes, todos os cantos do mundo, perguntando, a toadas as
criaturas que iluminava, pela menina mais linda que jamais tivessem visto.

Perguntava ao mar:
- Mar, não viste a criatura mais bela?

O Mar respondia: “Se mais bela que as minha ondas, pergunta à Nuvem.”

E o Sol, virando-se para a branca Nuvem perguntava: “Não viste, querida Nuvem, a criatura mais
bela?”

E a Nuvem, empalidecida, sempre se julgara a mais bela, respondia:


- Não, senhor Sol, se não é a mim que procurais …

Era assim todos os dias. E no final de cada dia, o Sol, exausto, cala de sono na sua imensa cama no
fundo mar, para, na manhã seguinte despertar muito cedo e repetir o mesmo ciclo.

A notícia começou a espalhar-se pelo mundo, com medo de que o Sol, cansado, sucumbisse de tanto
procurar a criatura mais bela, resolveu ajudá-lo.
Espalhou-se por todos os povoados que se procurava a criatura mais bela. Uma criatura estranha, que
não se sabia donde vinha tanta beleza. Se de seus olhos de codorniz, ora cinzentos, ora verdes, ora
laranja; se da cor púrpura da sua pele, como um céu em crepúsculo de Dezembro; se de seus esguios
e delicados dedos; se de suas frágeis e alongadas pernas de Íbis da ribeira; se da luz mágica e
estranha que emitia do seu sorrir.
- “Como é que ela pode ser tão bonita?
Perguntou o Corvo ao guardador de sementeira. “Se me prometeres não me roubar o milho, eu
respondo à tua pergunta”, disse o guardador.

- “Prometo”, disse o Corvo.

- Olha, há duas espécies de gente no mundo. Há uma espécie a que chamamos pessoas e outra
espécie que são os entes. As pessoas são as criaturas humanas, racionais, imprevisíveis nos seus
sentimentos, uma espécie ainda muito pouco conhecida. Tanto podem ser generosas, apaixonadas,
fazendo coisas boas e úteis, como podem esquecer que são isso tudo e fazer muito mal a si próprias e
aos seus semelhantes. Algumas vezes até tratam mal os animais, as crianças, os velhos e outras
pessoas boas e indefesas. Essa espécie de gente, digo-te meu caro corvo, é mesmo muito estranha.
Não gostam de morrer, mas fazem a guerra onde elas próprias e muitos dos seus irmãos morrem.
Não gostam de injustiças, mas são muitas vezes injustas para com os mais fracos. Não se dão conta
de que sendo uma espécie racional, são muitas vezes, irracionais nos seus impulsos de pessoa.

Agora os entes, esses são outra coisa. São uma espécie que vive intensamente no mundo dos
sentidos. As pessoas não os entendem muito bem porque acham que eles vivem fora da realidade. E
não é assim. Eles vivem uma realidade serena onde mora tudo o que é belo e floresce,
continuamente, a poesia. Os entes são raros mas existem.

Aprendi isto tudo com um tocador de rebeca que um dia passou por estes campos. Ele tocou para
mim e ensinou-me alguns segredos do mundo. Nunca o esquecerei.

Voltando às espécies de gente no mundo, quero dizer-te ainda que as pessoas podem ser feias e
eventualmente bonitas, mas nunca eternamente feias, nem eternamente bonitas. Assim, elas mesmo
sendo feias poderão se transformar em pessoas bonitas se quiserem aprender a descobrir coisas belas
que existem no mundo. E sendo bonitas têm que cultivar continuamente o que há de bom nelas para
que não se tornem feias.

Os entes, esses, são eternamente bonitos. São sereias, são anjos, são a espécie cuja beleza não se
sabe donde vem, onde começa nem onde acaba, a luz e a paz que irradiam. Eles são muito poucos
em todo o mundo, enquanto pessoas há imensas, milhões e milhões, talvez demais nalguns lugares.

Os entes são muito sensíveis. Nasce-se já ente, “botiado” como se diz na minha ilha, ou seja mágico
e belo. Quando sobrevive um ente, e ele cresce entre nos, nem sempre a gente dá conta de que ele o
é. A maior parte das pessoas não os vê, estando mesmo perto deles e quase a tocá-los. Só as crianças
sabem reconhece-los. E também alguns adultos, muito poucos mas nunca o podem revelar. Se
revelarem a sua existência, perde-se a magia e o ente que às vezes também chamamos de
“encantado”, pode até morrer. Quando não morrem por serem descobertos e denunciados, crescem
inocentes, a andar pelas ruas, sujos e sem tino. Por isso nunca se deve fazer mal a uma pessoa nesse
estado, como o Safare. Elas, aliás, devem ser sempre protegidas por todos nos. Safare nasceu ente,
“botiado”. No dia da guarda-cabeça, perto da meia-noite, quase no momento em que, nesse dia, as
feiticeiras tentam vir buscar os bebés a mãe de Safare, vendo a criança fugindo pela parede de quarto
acima, soltou um grito que o espantou de vez e lhe quebrou a magia. A mãe nunca devia ter gritado.

Ele só estava fugindo às feiticeiras. Safare ficou “nocente” para sempre.

Por aquilo que me contas, meu caro Corvo, essa criatura que tanto queres ver, é um ente. Será muito
difícil para ti, vê-la. Só um outro ente como ela a encontrará e poderá confirmar a beleza que dela
dizem irradiar.
Tu terias que ter a pureza de uma criança, aprender a semear o teu próprio milho e não ter que roubar
a quem o semeia. Terias que aprender a cantar e tornar a tua alma sensível às coisas da vida como o
amor e a generosidade para, se calhar, poderes ver um ente.
Como eu te disse os entes não são para serem vistos e descobertos de qualquer maneira.
O corvo ficou cabisbaixo. Começava a apaixonar-se por Unine tal como o Sol.
Despediu-se do guardador de sementeira e voou alto e melancólico para o seu pequeno buraco na
montanha.

De lá contemplava os outros montes, as chãs, o mar a perder-se no horizonte, sempre na esperança


de um dia poder ver Unine. Perdera o apetite ao milho e lembrando os conselhos do guardador de
sementeira começou a esforçar-se para tornar sua alma sensível às grandes coisas da vida como o
amor, a generosidade, a poesia.

Embora continuasse rouco como são todos os corvos, seus treinos de voz começavam a dar algum
resultado. Sua voz era agora mais melodiosa, surpreendendo-se um dia a cantar uma morna, toda
certinha e com voz quase afinada.

E nesse estado de contemplação e treino, o Corvo, do alto do seu refúgio descobre, numa
madrugada, antes do nascer do Sol, uma senhora de xaile sobre os ombros, que se aproximava da
montanha vizinha. Ficou atento, nunca a tinha visto por aí. Cheio de curiosidade acompanhou-lhe os
passos até que a viu aproximar-se de uma enorme pedra que parecia tapar a entrada de uma gruta.

Ele estava um pouco distante mas percebeu que instantes depois a pedra se deslocou e a mulher
penetrou na gruta, voltando a sair algum tempo depois. A pedra fechou de novo a entrada e a mulher
desapareceu em direcção ao povoado.

Intrigado, o Corvo esperou para no outro dia confirma se a cena iria repetir-se. Repetiu-se mesmo.
Ao terceiro dia quando a mulher chegou perto da gruta, o Corvo já lá estava e escondido atrás de um
rochedo. Viu que ela trazia consigo um cesto e um “bli”, com certeza comida e água para alguém
que estaria no interior da gruta. Isso pensou o Corvo e pensou bem.

A mulher postou-se em frente da grande pedra que bloqueava a entrada da grua e logo depois saiu-
lhe uma voz melodiosa, mas triste e culpada. Uma cantiga curta que se revelou ser o sinal para que a
porta da gruta magicamente se abrisse.
O corvo ouviu enternecido:

“Unine, Unine, Unine / Cosi, Cosi/ Cosi, Cosa / Qui vem di dia / Que vem di noite / Unine, Unine.”

A pedra afastou-se e a mulher penetrou no interior da gruta. Momentos depois, como nos dias
anteriores, ela saiu em direcção ao povoado.

A pedra recolocou-se no sitio sem que o Corvo pudesse ver quem que fosse a manipulá-la. Mas
pensou: tinha descoberto onde estava a criatura mais bela do mundo. Sabia já onde se escondia e que
seu nome era Unine!

Começou de imediato a ensaiar a cantiga que ouvira momentos antes. Coitado. A voz que lhe saia
era de corvo embora a tivesse melhorado nos dias anteriores. Cantou e mais contou, Unine, Unine
e… nada. A pedra não se mexia. Unine só reconhecia a voz da mãe e só essa voz e esse timbre
fariam mover a porta da gruta.

O Corvo desesperava-se de tantas tentativas e… nada!


Ai lembrou do Homem de Luz Mágica no Olhar. Esse homem ainda jovem vivia no povoado e
pensou o Corvo que talvez fosse um ente. Talvez ele pudesse cantar para Unine e fazê-la sair da
gruta. Esse homem era um solitário e parecia triste embora no seu olhar irradiasse alegria e uma luz
mágica, bonita, dai o nome próprio porque ele era conhecido. Vivia numa paz sem tempo, vivia dos
ensinamentos da luz, das cores, do som do vento, dos silêncios sem fim, serenamente, sem pressa na
vida.

Ele ficou surpreendido com o pedido do Corvo. Tinha ouvido falar dessa bonita criatura por que o
Sol se apaixonara, mas nunca esperou vê-la. Disse ao Corvo: “Vamos pedir à Íbis Sagrada que nos
ajude, pois Unine não pode mais viver presa nessa gruta.”
A Íbis que tinha uma voz maravilhosa, divina, não hesitou um instante para aceitar o convite do
Homem da Luz Mágica no Olhar.

O Corvo explicou tudo e combinaram estar na montanha da gruta na madrugada seguinte, antes da
mulher chegar. A Íbis deveria ouvir e aprender a cantiga. E foi assim: bem escondidos, ouviram o
seu canto. Um canto doce. Mas triste. Tão triste que parecia carregar nele castigo, um prenúncio de
um drama longo e sofrido. A pedra afastou-se e a mulher penetrou na gruta. Algum tempo depois ela
saiu e a pedra retomou o seu lugar. Durante esse tempo todos os três amigos ficaram muito, muito
quietinhos atrás do rochedo.

Assim que a mulher desapareceu, puseram-se todos à frente da gruta. A Íbis fechou os olhos para se
concentrar no canto, e cantou: “Unine, Unine, Unine / Cosi, Cosi/ Cosi, Cosa / Qui vem di dia / Que
vem di noite / Unine, Unine.”

Unine ouviu essa voz e estranhou: “O que terá acontecido à minha mãe? Porque regressou hoje tão
depressa?”

Apesar da estranheza fez o que sempre fez para que a porta se deslocasse, concentrando sua vontade
e seu olha na grande pedra que começou, lentamente a deslizar para o lado, deixando aberta a
entrada da gruta. A voz da Íbis era perfeita e Unine a reconhecera como sendo a da mãe.

O Sol já se tinha levantado para a sua viagem de sempre em busca da criatura mais linda do mundo.

Unine, vê a pedra a afastar-se, como habitualmente. Não vê a mãe. Entre o assombro e


deslumbramento, descobre as três criaturas à entrada da gruta. Percebeu logo que estavam a oferecer
a liberdade e a luz. Eufórica, sai para a rua de braços abertos para abraçar o Sol que estava vendo,
muitos anos depois de ter sido encerrada na gruta.

Ofuscada pela luz, abraça o Homem de Luz Mágica no Olhar.

O sol lá no alto, não se continha sem si quando descobriu, finalmente, a sua linda menina.
Mas, quem era esse homem que Unine abraçara? Um outro apaixonado? Não tanto como ele,
pensou.
Posto isto e quando reparou no olhar de luz do Homem Mágico, percebeu. Seu sorriso foi largo e
luminoso quando reconheceu que esse homem que correspondia com imensa ternura ao abraço de
Unine, era especial. E o Sol deixou que sua paixão nele se transfigurasse, nesse homem também
apaixonado cuja luz no olhar merecia a criatura mais bonita do mundo.

Dizem que o sol nunca mais foi ciumento. E também nunca mais se cansou de se levantar e de se
deitar todos os dias, brilhante e alegre, depois de alumiar todas as criaturas do mundo, quer vivam
algures em qualquer continente, ou no fundo do mar, ou mesmo numa galáxia qualquer.
Deslumbrados, o Corvo e a Íbis, espectadores de tão mágico momento, juntinhos afastaram-se do
local. O Corvo pensou baixinho:
-“Dois entes encontraram-se. Só eles se podem reconhecer. Mas, será que uma pessoa quando
apaixonada se torna num ente?” – pensou o corvo.
Pensou ainda que iria confirmar isso com o Guardador de sementeira. Entretanto lançou um olhar
doce, quase apaixonado à Íbis Sagrada que lhe correspondeu com ternura.

Unine e o Homem de Luz Mágica no Olhar partiram para longe. Partiram para um lugar onde jamais
alguém os encontraria, pensaram.
Entretanto, quando a mãe de Unine voltou à gruta, era quase noite, e vendo a pedra fora do lugar,
entrou em pânico. Viu que sua Unine tinha desaparecido!
Quem teria raptado a sua querida menina, para onde a teriam levado?

Atormentada, amarrou seu xaile à cintura e pôs-se a caminho. A caminho sem rumo, à procura da
sua menina. Subiu montes, desceu ribeiras, perguntando a toda a gente se não teriam visto a menina
mais bonita do mundo, levada, talvez, por um homem qualquer, ou por alguém que lhe quisesse
fazer mal. Chorava dia e noite, mil vezes arrependida de a ter escondido dos olhos do mundo.
Já era uma mulher muito cansada e magra quando um dia passando por um pastor, este lhe disse:
“Vá ao mar, dizem que o mar guarda lá no seu fundo, em palácios de algas e corais, as meninas mais
bonitas do mundo, mais bonitas que as próprias estrelas. Chama-lhes Sereias”.

A velha, cansada, andou, andou até que chegou a uma linda Praia de areia negra. Sentou-se num
rochedo e cantou triste: “Unine, Unine, Unine / hum, hum, hum, hum …

Banhada em lágrimas, implorou ao mar: -“Ó Mar, mar amigo, traz-me a minha menininha. Já andei
meio mundo e sou já uma velha cansada, por favor mar tem pena de mim, traz-me a minha
menininha.”

E o Mar, no seu vaivém de ondas que enrolam desfazendo-se em espuma na areia negra, não trouxe
Sereia nenhuma, nem notícias de Unine. E a velhinha lá continuou, implorando-lhe que de novo
rebuscasse la no fundo do oceano, ate descobrir a sua menina.

Chorou dias, chorou noites, engrossando com suas lágrimas as grandes ondas do mar. E o mar nada
dizia, nada trazia. Apenas se ouvia o seu resfolegar na areia, sua fala de onda que a mulher, coitada,
não entendia.

Um rapaz passou. A mulher perguntou: -“Ah menino de Deus, não tens visto por aqui, nenhuma
seria?”

- “Eu só vi uma vez, senhora. Ela estava sentada num rochedo não muito longe daqui. Penteava-se
com um pente de prata e olhou para mim, sorrindo. As ondas vinham banhar-lhe a cauda. Viam-se-
lhe as barbatanas e ela era muito bonita. Nunca mais voltei a vê-la. Venho sempre por aqui na
esperança de a rever, mas nunca mais ela me apareceu.”

A velha sabia que as crianças são os únicos seres que têm o condão de ver sereias. Mesmo que a sua
menina fosse agora sereia e viesse à praia, ela que já vira tanta coisa na vida, não teria olhas para ver
a sua Unine e muito menos abraça-la.

Limpou as lágrimas que lhe banhavam o rosto, levantou-se e pôs-se a caminho. A sua Unine, se
agora era sereia, era com certeza uma sereia de terra, para a poder ver, para a poder abraçar. Bonita,
sempre bonita, mas sem barbatanas. Pensou a velha senhora.
Já se tinham passado de sete anos e sete dias, desde a tarde em que Unine, não mais lhe respondeu à
cantiga: “Unine, Unine, /cosi, cosi/ cosi cosa / qui vem di dia/ qui vem di noite / Unine, Unine!”

Já mal podia andar a pobre velha, mas continuou percorrendo mais ribeiras, mais montes, até que um
dia avistou do cimo de um cabeço, uma pequena granja cuja cerca de pedra seca protegia algumas
casinhas caiadas de fresco e cobertas de palha, serenas, com que saídas de um livro de contos.
Trôpega, ela desceu a encosta, quase sem poder mais, em direcção às casinhas que acabara de ver.
Tinha muita sede. Aproximou-se da cerca que envolvia a pequena granja, viu que uma linda criança
se preparava para lançar um papagaio.
Disse-lhe a velha: - “Ó menininha de Deus, vá buscar-me uma caneca de água! Tenho tanta sede!”
A criança olhou para a velha senhora e rapidamente largou o papagaio partindo para dentro de casa
para logo regressar com uma caneca de água.

- “Entre, senhora. Entre e descanse”, – disse a criança, abrindo-lhe a cancela.

A mulher entrou e caminhou para a sombra de um beirado. Encostou seu cajado à parede e sentou-
se.
A criança, silenciosa, ajudou-a a instalar-se. Enquanto lhe estendia a caneca de água, perguntou-lhe,
cheia de curiosidade: - “ Para onde é que vai? Como se chama?”

A mulher, olhou para a criança. Fixou-a melhor e reparou que ela tinha uns olhos estranhos, donde
irradiava uma luz quase magica. Ficou intrigada, mas respondeu: - “Vou para onde me levar o resto
das minhas forças, para onde me levar o meu castigo de mãe. Talvez um dia chegue aonde eu quero,
encontre que eu procure, se tal destino eu merecer.”

E a criança mostrava-se ainda mais curiosa: - “Mas, aonde quer a senhora chegar? E quem a senhora
procura?”
- “A menina mais bonita do mundo … para lhe cantar uma canção!” – Respondeu a velhinha.
- “Mas, eu sou a menina mais bonita do mundo! Disse-me a minha mãe. Cante-me essa canção!”

A mulher enternecida com a espontaneidade da menina, busca lá no fundo do peito a melodia que
agora é mais triste que nunca. Já quase perdera forcas para cantar. Começou:

“Hum, hum, hum, hum, hum, hum ….


Hum, hum, hum, hum
Hum, hum, hum, hum …”

A criança deu um salto. Interrompeu a senhora, que quase se assustou: - “Mas, esta é a cantiga da
minha mãe! Como é que a senhora a aprendeu? Mãe, mãe!”

A menina correu para dentro de casa e logo regressou acompanhada da mãe, uma mulher bonita,
talvez a criatura mais bonita do mundo.

Quando a mãe descobre essa velhinha, meio andrajosa, faminta, queimada pelo sol, seu coração
estremeceu de alto a baixo.

E pediu à senhora: -“Cante, cante para nós ouvirmos.”

A mulher ainda meio assustada, pegou de novo o tom, e fez sair do fundo da alma:
“Unine, Unine, Unine …”

Não pôde mais continuar. Mãe e filha caíram nos braços uma da outra entre beijos e lágrimas.
Não se pode descrever esse momento tão inebriante, tão fascinante. A criança atónita e também feliz,
saiu a correr para o campo.

Momentos depois regressava correndo ainda, acompanhada do pai e do irmão mais velho.

Todos tinham uma luz mágica no olhar. E foi com imensa alegria que viram a felicidade emanando
de Unine e de sua mãe, ainda abraçadas.

Comovidos, pai e filhos, não sabiam como partilhar tanta alegria.

O pai, o Homem de Luz Mágica no Olhar, virando-se para os filhos, disse-lhes com ternura:
- “Venham, vamos tratar da comida e pôr a mesa. A vossa avó deve estar com imensa fome!”

“Unine, Unine, Unine …”

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