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Inferno Helheim

Abigail Vitória Borges

Um dia normal, comum para uma mãe cui-


dando de seu bebê. Até pouco tempo atrás, a jo-
vem morava na cidade com seu recém-nascido,
pequenino, do tamanho de uma caixa de sapatos.
Porém, pensando no futuro, acabaram se mu-
dando para uma casa no interior.
A casa simples parecia sair de um filme
antigo, perfeita para uma vida calma no campo.
Olhando ao redor, havia itens e figuras religiosas
espalhadas, caixas de remédio, xaropes e brin-
quedos espalhados pela casa. Por quê? Seu filho
era uma criança saudável, na verdade, as visitas
frequentes ao médico eram desnecessárias.
Religiosamente, ela fazia seu bebê tomar
xarope todos os dias. No entanto, crianças meno-
res de seis meses não podem tomar nenhum tipo
de xarope. Segundo ela, o mundo ao redor poderia
machucá-lo. “Remediar é melhor para prevenir”.
Obviamente, a criança não era a única a tomar
remédios, mas o uso deles era totalmente desne-
cessário.
Ao anoitecer, tudo ficou mais frio e a criança
em seu colo já aparentava estar fria. Da sala, ouviu
um barulho vindo da porta da frente, uma batida
forte que ecoava pela casa. Pensando que era um

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vizinho, ela atendeu a porta. Ao abrir, uma rajada
de vento bateu contra seu corpo, fazendo-a segu-
rar seu filho com mais força. O vento baixou e ela
olhou para a figura que estava em sua frente: uma
mulher com roupa de freira, encarando seu rosto.
Olhar para o rosto da mulher misteriosa foi
um desafio, pois seu rosto era translúcido, não
se prendia a uma só face. Era como um fantasma
triste. Em outro olhar, viu que a entidade segurava
uma foice roçadeira em sua mão. De algum modo,
isso combinava com sua aparência cinzenta. De
repente, um sentimento de desespero passou por
seu peito, como uma flecha congelada que conta-
giou todo seu corpo. Encarar os olhos brilhantes
da mulher era como ser cortada por mil facas. En-
quanto estava congelada, sentiu seus braços fica-
rem mais leves; seu precioso bebê já não estava
mais em seu colo, mas sim nos braços da mulher.
Enquanto o ambiente ao redor ficava cada
vez mais escuro e fantasmagórico, a entidade se-
gurava seu filho e saía andando em direção à pró-
xima casa.

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Dois

Alexia Vicente Pereira

O Sol, durante sua aurora, brilha e ofusca


todos os outros astros no céu. Por ter luz própria,
a gigante bola dourada se ilumina e ilumina todos
os demais, inclusive sua amada Lua. Ela, mes-
mo sem brilhar um pouquinho sequer, consegue,
mesmo assim, ser para o Sol a coisa com o brilho
mais opulento que ele já admirou. Todas as ma-
nhãs, pela alvorada, assim que está para nascer,
o Sol, em uma rotação perfeita que faz, conversa
e declara poesias que tão perfeitamente aprendeu
com os humanos que ilumina. E ao crepúsculo da
noite, a Lua, que ficou um dia ao longe apenas ad-
mirando o seu amado, respondeu de sua forma o
que entendeu de seus versos. Já que, em sua breve
estadia pelo céu, havia poucos homens acordados
para lhe ensinar como é amar.
Um dia, porém, a Lua conheceu alguém que,
ao contrário dos outros humanos, declamava po-
esias à noite e dormia durante o dia. Que gostava
mais de esperar para olhar suas estrelas ao invés
de desejar um arco-íris após um longo dia chu-
voso e que, por fim, achava o anoitecer mais ilu-
minado, ainda que pareça muito contraditório, do
que a bela aurora de seu amado. Intrigada, lem-
brou de ter se perguntado por que merecia tanta
admiração mesmo não possuindo nada de espe-

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cial. Pelo menos, não tão especial quanto seu belo
Sol.
Assim, a ingênua Lua começou a escutar os
poemas de seu novo admirador. Em todos, se fa-
lava do Sol, e a Lua não pôde entender como o ho-
mem passava o tempo ao seu lado, mas escrevia
tão arduamente sobre seu companheiro. Enciu-
mada, ela decidiu que não apareceria no dia se-
guinte. E, mergulhados na escuridão profunda de
sua raiva, os humanos tiveram tempo suficiente
para pensar em seus atos. E o pobre Sol, coitadi-
nho, sentia uma falta tamanha de sua amada. Os
poemas dedicados a ele e ao amor já não faziam
sentido. E, aos poucos, seu brilho e sua alvorada
perdiam o vermelho, alaranjado e rosa tão vívidos
e davam espaço a um cinza tão melancólico quan-
to seu coração.
No dia em que voltou ao céu, sim, ainda dia,
a Lua disputou seu lugar ao lado do Sol. Queria
brilhar assim como o grande astro brilhava. E seu
Sol, mesmo sem ter certeza se a Lua ainda era sua,
continuava pertencendo a ela. Vendo sua amada
assim tão temerosa, o Sol, confuso, perguntou
o que tão de repente estava errado. E, ainda tão
cheia de medo e tão escura como jamais foi, a po-
bre Lua lhe disse que nunca esteve completamen-
te satisfeita com sua posição. Queria ser admirada
assim como o Sol era. Ele, demasiadamente tris-
te com o final que seu amor teve, como seu úl-
timo poema, proferiu: “Hoje, em minha aurora,
me declararam um verso qualquer e, em vez de
apenas calado escutar, de volta declarei um sobre
você”.

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O mistério da floresta
mágica

Alice da Silva Costa

Era uma vez, em um reino muito distante,


uma pequena vila cercada por uma floresta den-
sa e misteriosa. Os moradores da vila evitavam a
floresta a todo custo, pois havia rumores de que
criaturas perigosas e seres mágicos habitavam
suas profundezas.
Certo dia, uma jovem chamada Catarina,
com longos cabelos negros como a noite e olhos
brilhantes como estrelas, decidiu explorar a tão
misteriosa floresta proibida. Ela estava determi-
nada a desvendar os mistérios que envolviam a
floresta e mostrar aos moradores de sua vila que
não havia motivo para temer.
Equipada com uma mochila cheia de supri-
mentos e coragem no coração, Catarina adentrou
a floresta. À medida que avançava pelos densos
emaranhados de árvores, ela ouvia murmúrios
sussurrantes e risos distantes, mas não se deixa-
va intimidar. A garota estava decidida a desven-
dar os segredos daquela floresta.
Depois de horas caminhando, Catarina en-
controu uma clareira iluminada por uma suave luz
dourada. No centro da clareira, havia uma árvo-
re majestosa com folhas prateadas e cintilantes.
Curiosa, Catarina se aproximou e tocou na árvore,

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sentindo uma energia mágica fluir por seu corpo.
De repente, uma figura apareceu diante dela.
Era um ser mágico com uma aparência etérea e
olhos brilhantes. A criatura se apresentou como
Aria, a guardiã da floresta, e revelou a Catarina
que a floresta era, na verdade, um lugar mágico
onde criaturas encantadas viviam em harmonia.
Catarina ficou maravilhada com a beleza e
magia da floresta. Ela aprendeu que as histórias
de criaturas perigosas eram apenas lendas criadas
pelos moradores da vila para afastar os curiosos.
Aria explicou que a floresta estava em perigo, com
rios cada vez mais poluídos devido à quantidade
de lixo jogada no local, florestas devastadas com
queimadas e desmatamentos precoces, e animais
da região desaparecendo cada vez mais, afetando
assim a harmonia do local.
Determinada a ajudar, Catarina se ofereceu
para ser a defensora da floresta e proteger suas
criaturas mágicas. Aria a instruiu em antigos ri-
tuais mágicos, e Catarina se tornou uma poderosa
feiticeira, capaz de controlar os elementos e curar
a terra ferida pela poluição.
Catarina retornou à sua vila como uma ver-
dadeira heroína e compartilhou suas descobertas
e aprendizados com os moradores. Com o tempo,
eles aprenderam a valorizar e proteger a floresta,
e a vila e a floresta passaram a conviver em har-
monia.
Com o passar dos anos, a menina foi se
agregando cada vez mais à floresta e se afastando
de sua vila. Moradores do local até hoje comen-
tam que aquela linda menina, forte e determina-
da, nunca mais foi vista pela redondeza. O que não
se sabe é se Catarina foi realmente uma jovem que
salvou sua floresta, ou se essa é mais uma lenda
da vila Madalena.

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Amargo

Alícia Gabriely Alves Torres

Era uma manhã chuvosa, como de praxe, me


perdia em minha angústia, inerte em meu próprio
mundo. Esperava pela chegada dela enquanto fa-
zia café para deleitarmos com seu aroma doce e
natureza amarga.
Sempre era assim aos sábados depois de
conhecer Morgana, apreciando sua presença que
acalenta minha solitude. Nunca havia experi-
mentado tamanho conforto. Ela se calava para me
ouvir.
Ela cursava Filosofia. Eu, História. Passáva-
mos a maior parte do pouco tempo livre que tí-
nhamos, falando sobre aqueles que contribuíram
para a evolução e história da humanidade, e sobre
os ignorantes que a ignoravam e menosprezavam.
Das frases que ela recitava nas poucas vezes
em que se pronunciava, a de Sócrates me marcou:
‘Sábio é aquele que conhece os limites da própria
ignorância’. Meu reflexo no café me fez ponderar
sobre minha pequenez.
Como vivi perdido em meu egoísmo, não
esperava pela ligação que recebi. Paralisado pelo
que meus ouvidos captaram, derrubei a xícara,
com a qual tinha a intenção de deixar à disposição
daquela que se tornou meu sol.

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Foi culpa minha. Despejava em seu ombro
todos meus lamentos e não percebia as coisas às
quais ela resistia: dor, horror, amargura.
Morgana mudou o meu mundo. Sua mão
forte me dava forças para seguir. Percebo agora
que não fui nada, nem ouvinte para seus tormen-
tos.
Seu padrasto a despia e, aos poucos, sufo-
cava sua vida. Sua mãe negligente nada fazia, seu
irmão, o único que a protegia, não residia mais
naquelas paredes. Eu era a única pessoa que ela
tinha.
Quando foi necessário despedir-me, sen-
ti meu rosto molhado. A dor em meu âmago es-
correu, mas sabia que não seria apagada. Não era
ódio, apenas o puro amargor do arrependimento
que me perfurava.
Não era apenas pequeno, como também um
ignorante, mais do que aqueles que costumava
julgar nas manhãs de sábado. Beijei seu caixão fe-
chado, assim como ela beijava minha testa depois
de um desterro.

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A novidade

Alissa de Lima Teche

Tudo se mostrava novidade, tudo aparenta-


va ser tão novo. Ela sentia o cheiro do café casei-
ro e já dizia que tinha o mesmo cheirinho do café
de casa. Passava as mãos por cima daquele jornal,
que ainda estava quentinho, e afirmava ter acha-
do a melhor cruzadinha de todas. Ouvia a melodia
das caixinhas de som e falava que ouviria aquilo
pelo resto de sua vida. Era tudo tão novo. Ela fica-
va entusiasmada só de ouvir o frear dos trilhos do
trem. O acolchoado da cadeira era tão macio que
ela dizia estar sentada em um travesseiro cheio de
penas macias.
Ela fechou os olhos e respirou fundo, ab-
sorvendo cada cheiro, som e sensação ao seu
redor. Porém, com o passar do tempo, as coisas
mudaram. O cheiro do café deixou de ser familiar
e reconfortante, e as pessoas já não se importam
mais em ler jornais. Tudo é feito através de uma
tela, que vicia e distrai a atenção das pessoas. As
músicas já não trazem mais a mesma emoção de
antes, e os trilhos do trem precisam de manuten-
ção. O frear produz um som estridente, que ecoa
pela estação inteira. A cadeira, que antes era tão
macia e confortável, agora está mais dura e des-
confortável.

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A novidade se desgastou e as coisas que an-
tes eram tão encantadoras se tornaram comuns
e até mesmo incômodas. Hoje, a sua vista rara-
mente muda. São sempre pessoas que vêm e vão,
e de vez em quando um desejo de ‘tenha um bom
dia!’ é ouvido. À medida que ela se acostumou
com isso, foi fácil perder a conexão com as coisas
simples da vida.
Um dia, uma jovem moça lhe disse que a be-
leza está nos olhos de quem vê. Foi aí que ela per-
cebeu que mesmo as coisas mais comuns podem
ser extraordinárias quando vistas com a mente
e o coração abertos. Ela se levantou da cadeira
desconfortável, esticou as costas e sorriu para si
mesma. Olhou ao redor e, apesar de tudo conti-
nuar igual, agora ela conseguia enxergar a beleza
nas coisas simples.

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Sequestro de crianças

Amábile Boccassius Watzko

Pousei em Miami faz alguns minutos. Era


minha primeira viagem para fora do Brasil e ain-
da por cima sozinho, sem meus pais exagerados,
que me encheram de mensagens desejando boa
sorte. Mas era compreensível. Tinha acontecido
muitos problemas com o meu visto e eles estavam
preocupados de eu ser negado. Eu estava acom-
panhado por pessoas aleatórias de uma empresa
de viagem, que já estavam desembarcando. Hele-
na estava tentando acordar seu irmão gêmeo, Ga-
briel. Conheci esses irmãos na escala de São Pau-
lo. Como tínhamos a mesma idade, quinze anos,
logo de cara já ficamos amigos.
Fomos direto à fila de imigração, para poder
entrar no país. Eu estava bem nervoso, pois não é
todo dia que se fala com a embaixada americana.
Depois de duas horas na fila, eu, Gab, Lena e o ca-
sal de idosos que faziam parte do grupo, que in-
clusive eram argentinos, fomos chamados. De to-
dos, eu era o único que sabia falar ‘melhorzinho’
o inglês. Acabei tendo que conversar com o poli-
cial em nome de todos, o que não foi legal. O ho-
mem tinha cara de bravo e, sinceramente, parecia
ser meio ignorante. Ele pediu só os documentos
do seu avô (o senhor), que reagiu meio estranho,

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parecia estar tenso, acho que por não entender
o que o homem falava. O policial começou a agir
estranho, fazendo muitas perguntas. Não sabia o
que estava errado, mas fiquei com medo.
Me deparei em uma sala, longe da fila e com
medo de ser deportado. Ainda conseguia escutar
os barulhos caóticos que o aeroporto normal-
mente possui. Um dos coordenadores da nossa
viagem brutalmente abriu a porta. O barulho as-
sustou a todos e fez o policial colocar a mão na
arma. Isso só me deixou mais nervoso. O nosso
coordenador, careca e pálido, começou a passar
suas informações ao policial e tentar compreen-
der o porquê de tudo isso. A tensão estava no ar.
Engolia minha saliva com dificuldade, ela descia
arranhando. Gab estava com os olhos arrega-
lados. Lena tremia. Seu avô respirava ofegante.
Até que ele descobriu. Os policiais achavam que
aquele casal de velhinhos estava fazendo tráfico
de crianças, e dessa vez, nós éramos as vítimas.

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O portal secreto

Amanda Longari Pacheco

Era uma sexta-feira 13 no ano de 1989. Eu,


junto ao meu gato, avistei uma casa de madeira
velha em uma floresta. Eu tinha 16 anos e Salem,
meu gato preto, morávamos na Grã-Bretanha.
Era um dia chuvoso, frio de outono. Estávamos
caminhando pela floresta adentro, observando as
plantas e as flores, quando de repente nos depa-
ramos com uma casa velha de madeira. No entan-
to, não sabíamos que ela era mal-assombrada. Se
você está lendo isso e se perguntando se eu sobre-
vivi, sim, por pouco. Aquela casa era mais anor-
mal do que você imagina, repleta de armadilhas.
Havia um som estremecedor ao entrarmos,
um estalo alto de madeira rangendo. Em seguida,
um vulto preto passou em nossa direção e atra-
vessou a porta - era um morcego. Seu eco ecoou
pelo ambiente, aquele grito agoniante e fino me
deu calafrios, os pelos dos meus braços se arre-
piaram. Uma luz muito forte vinha lá de cima, re-
fletindo na escada. Subimos cada degrau de olhos
fechados, quando senti algo encostando no meu
pé. Estava irreconhecível diante daquele clarão
que cegava meus olhos. Fui levantada no ar e algo
me sufocava. Alguém havia invocado um demô-
nio para proteger a luz.

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Os demônios falavam entre si enquanto eu
estava no ar. Eu lembrei que tinha verbena da ca-
minhada - ‘Toda a paz e proteção surgirão, aque-
les que me atacarem ou atacarem Salem serão
punidos.’ Com a verbena na mão, eu repetia esse
verso várias vezes, enquanto Salem encontrava
uma saída. Com isso, os demônios se enfraque-
ceram. Antes de irmos embora, fui ver o que eles
protegiam - era um portal que viajava no espa-
ço-tempo. Apesar de ser muito intrigante, saímos
correndo o mais rápido possível antes de nos tor-
narmos iscas dos demônios. Admito que essa não
será nossa última visita. Ainda estou muito curio-
sa para entrar no portal, mas essa é uma história
para outro dia.

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Vozes

Hunter Jacone

“Eu não quero morrer.” Foi tudo que con-


segui pensar ao ver, diante de mim, um demônio.
Eu já não sabia mais quantas horas haviam pas-
sado. Rastejei por todos os tipos de lugares, passei
pelas mais estreitas paredes, caí nos mais diver-
sos buracos... Fiz de tudo para achar a saída da-
quele maldito lugar. Porém, quanto mais seguia
por aquele túnel lamacento de paredes argilosas,
onde estavam gravados desenhos deformados
pelo tempo, mais minha esperança se esgotava.
Meus joelhos estavam ralados, o ar era di-
fícil de se inalar e cada parte do meu corpo doía.
Parecia não haver uma saída ou esperança ali.
Minha lanterna estava fraca, então no momento
tudo que me guiava eram as vozes que vinham do
walkie-talkie que estive guardando como se fosse
minha própria alma. Dele soavam nítidas as vozes
de meus colegas.
Nas gravuras, uma figura disforme me
acompanhava onde quer que eu fosse. Toda es-
quina e todo buraco que eu me enfiava, ela esta-
va! Desde que a plataforma onde eu estava des-
moronou, quando acordei sem reconhecer nada
ao meu redor e sem nenhum meio de voltar para
cima dessa maldita cratera, fui forçado a ir cada

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vez mais adentro.
Foi então, quando minha sanidade já estava
esgotada, que ouvi uma voz pela primeira vez em
horas, que não vinha do walkie-talkie. Confesso
antes de tudo que, a esse ponto, minhas forças já
tinham esgotado e eu já não tinha mais voz para
falar, então a única coisa que fiz foi reunir cora-
gem e ir atrás do que pensava serem meus com-
panheiros no mais profundo silêncio. Estou certo
de que isso foi o que me salvou. E oh, Deus, antes
que eu tivesse morrido de exaustão!
Após uma ou duas curvas, finalmente che-
guei até a fonte das vozes. Meu coração nunca ba-
teu tão forte por alegria. Alegria essa que não du-
rou três segundos antes de ser esmagada, quando
iluminei uma coisa, uma coisa que não pertencia
a esse mundo, a coisa que vi durante todo o cami-
nho... Quando iluminei o próprio demônio e des-
cobri, enfim, o que eram todas aquelas gravuras
e quem esteve conversando comigo durante todo
esse tempo.
Depois disso, meu corpo horrorizado ce-
deu ao estresse e ao cansaço. Não consigo me
lembrar de nada após esse ponto, sequer como
saí daquela caverna. Meus colegas estão dados
como desaparecidos e a pesquisa em que estáva-
mos trabalhando foi adiada. Ninguém acredita no
que conto, mas até hoje, quando passo por perto
daquela cratera, eu consigo vê-la perfeitamente,
aquela criatura rindo de mim, abrindo e fechando
sua boca e imitando as vozes de meus amigos. As
vozes que me atormentam à noite, as vozes que
aquele maldito demônio gravou em minha vida.

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Um conto previsto

Ana Paula Romano Rodrigues

Daphne Park era uma moça muito deste-


mida. Sabia o que queria e não deixava ninguém
a abalar. Sempre quis ver o mundo de outra ma-
neira, e não queria fazer isso de forma simples.
Daphne queria ser escritora, para poder usar as
palavras ao seu favor, e instigar outras mulhe-
res a serem destemidas. Na época em que vivia,
as mulheres ainda não possuíam direitos, e tam-
pouco podiam escrever livros, porém ela tentava
mudar isso de todos os jeitos.
Estive algum tempo observando-a. Um dia
a assisti sair de uma casa editorial reconhecida
muito zangada, fechou a porta de vidro com toda
a força. Descobri mais tarde o motivo, nenhum
de seus textos foi “aprovado” pelos homens que
trabalhavam ali, porque nenhum deles falava so-
bre histórias de amor.
Fui atrás dela, caminhando em passos lar-
gos. Ela entra em uma loja de coisas antigas. Seria
um ótimo momento para entrar nessa história.
Nos cruzamos em frente a um armário velho, me
apresentei e perguntei se ela queria escrever so-
bre algo que ninguém tivesse escrito antes. Uma
coisa interessante sobre Daphne Park: ela aceita-
va qualquer desafio.

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O que vou te contar agora talvez mude o jei-
to que você pensa sobre o mundo. Do outro lado
da cidade onde Daphne vivia, existia um povo que
dizia saber mais sobre o futuro do que todas as
pessoas na Terra. O que ela teria que fazer era ir
até eles e pedir para lhe contarem sobre os acon-
tecimentos do futuro. Em troca, isso nunca seria
revelado, pois o mundo correria graves perigos.
Assim, Daphne escreveu a história que co-
nhecemos, como as mudanças na sociedade, as
novas invenções, e conseguiu o que queria. Mas
cuidado, caro leitor, esse povo não pode ser des-
coberto. Talvez eu esteja te observando também,
e esbarre em você numa loja qualquer...

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Um dia sem café

Anna Julia de Almeida Cruz

Hoje pela manhã, minha mãe fez café como


agradecimento por tê-la abrigado aqui duran-
te sua viagem. Como de costume, me dirijo para
o trabalho com meu novo carro, entro no escri-
tório e todos estão reunidos batendo um papo e
tomando seu café matinal. Pego uma xícara por
força do hábito, mas eu já havia tomado meu café
pela manhã.
A conversa diminui. Não sei como expli-
car, mas o clima do lugar muda também. Agora,
no escritório com pilhas e pilhas de papel se acu-
mulando em cada um daqueles cubículos, as pes-
soas trabalhavam como robôs em frente aos seus
computadores, no automático, desalmados e sem
propósito. Eu era um deles até ajeitar a coluna que
se curvava em direção ao computador e entrar em
outro mundo. Parece que saí de um transe.
Ando pelo escritório e o que mais me chama
atenção é que todos, sem exceção, tinham um co-
pinho de café ao seu lado, alguns até mais de um.
Esses eram os mais robotizados. Andando espan-
tada, vejo o chefe me olhando de sua sala no an-
dar de cima. Me ajeito para manter minha postura
igual a todos do local, com as costas curvadas. Os
fios do meu grande cabelo afro caem nos meus

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olhos e agora o mundo muda e de novo não vejo
mais nada.
De volta à minha gaiola, uma moça passa
em todas as mesas enchendo o copinho de todos.
Como eu nunca a tinha visto aqui? Eu e Brenda so-
mos as únicas mulheres do local. Eu me lembraria
se tivesse outra de nós. Guardo toda a substância
debaixo da minha língua. O sabor desse café não
se parecia nada com o que eu via tomado de ma-
nhã.
Com meus pés já para fora do escritório, eu
escuto:
— Com ou sem café, amanhã você vem para
o trabalho.
Meus batimentos aceleraram ao ouvir a voz
do chefe enquanto voltava para o carro. Ele tinha
que olhar para cima para falar comigo, mas ainda
assim seu olhar ameaçador me caçava.

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Fantasma amigo

Anna Vitória Marquetti

Em um dia normal, Arthur, um garoto de


cabelos e olhos escuros, que sofre de alguns pro-
blemas psicológicos, está aproveitando o interva-
lo com Laura. Laura é uma garota super amigável
e a única amiga de Arthur. Os dois estão aprovei-
tando a companhia um do outro quando aparece
um grupo de adolescentes.
— Olhem o esquisitão que sempre fala sozi-
nho - disse um garoto qualquer.
— Por que vocês não vão embora?
— Vamos embora, senão o esquisitão vai
começar a chorar. - Eles saíram imitando um ba-
rulho ridículo de choro.
— Você já viu que você é minha única ami-
ga?
— Eu não entendo por que eles fazem isso
com você. Você é um garoto tão legal.
— É justamente pelo que estou fazendo
agora, conversando com você. Mas eu não me im-
porto, você é a pessoa mais importante para mim.
- Ele termina a frase parecendo que quer acres-
centar algo.
— Tem mais alguma coisa para falar? - diz
Laura, curiosa.
— Hum, eu queria dizer como eu gosto de

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você. Não só como amigo, me entende, Laurinha?
— Ah, para ser sincera, eu não entendo mui-
to bem. Você tá dizendo que está a fim de mim?!
Isso não é possível, Arthur. Você nem sabe dizer
se sou real, se estou morta ou se sou algo de sua
imaginação. Ninguém consegue me ver, ninguém
me nota, você ainda não percebeu? - Laura fala,
indignada com a situação.
— Eu gosto muito de você, Laura. Faria de
tudo para ficar com você, até morrer. Consegue
me entender?
Antes que Laura consiga responder, o sinal
para voltar à aula toca. Arthur volta à sua rotina
normal até chegar em seu apartamento. Quando
ele chega em seu apartamento, dá de cara com sua
mãe. Ela chega cheia de perguntas, irritando Ar-
thur, que vai logo para seu quarto.
Arthur mora no décimo quinto andar. Antes
mesmo de conversar com Laura, ou até com sua
mãe, Arthur parte em direção à sacada.
— Você não vai fazer isso, né?! Sai daí ago-
ra! - Laura começa a falar apavorada.
Sem responder Laura, Arthur continua se
aproximando mais da beirada e logo se joga. Sem
pensar muito, sem se despedir de ninguém, ele
pula acreditando ficar com Laura.

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Terra à vista

Artur Trussardi da Rocha

Era terça, ou quarta, pouco importava em


alto-mar. Só era importante saber se havia sol ou
não. Acordara bem, sem muito sono, porém ain-
da com aquela maldita dor na coluna. O timoneiro
aparentava sonolento, mas sabia que podia con-
tar com ele por mais algumas léguas, ainda mais
com o clarão que se iniciava no horizonte. A maré
batia calmamente contra o casco, tudo seguia
normalmente. A tripulação lentamente dava as
caras no convés e prontamente arrastavam seus
corpos cansados para suas estações de trabalho.
O timoneiro da manhã já dormira e acorda-
ra novamente. Começávamos a parte mais difícil
do nosso ciclo diário de navegação: a noite. Mi-
nha coluna doía agudamente e, se não fosse pelo
pouco que faltava para chegarmos na costa oeste
da Europa, com certeza não aguentaria mais tra-
balhar na cozinha do Lua Negra, barco de grande
renome do qual eu tinha o prazer de fazer parte da
tripulação há 6 anos. O Lua Negra era comandado
por um dos mais importantes capitães de toda a
Itália, Giuseppe Campioni.
Havia visto algumas baleias, tubarões, pei-
xes enormes e de todas as formas, porém nada
que fizesse tanto barulho quanto o que me acor-

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dou de meu sono raso que mal começara e já ha-
via sido interrompido. Prontamente me levantei
e fui checar o que havia acontecido. Perguntei ao
timoneiro e ele disse que nada havia visto. Estra-
nho, algo que pudesse produzir um som tão alto
deveria ser visível mesmo com a luminosidade
reduzida de nossas lanternas a gás. Alguns minu-
tos depois, novamente, um som de rastejo, cruel,
indomável, rápido e amedrontador. Agora, já com
mais da metade da tripulação trajados com suas
roupas de dormir, alguns quase despidos.
O barco tremia, e Giuseppe falou que nada
de importante acontecia e que poderíamos voltar
a dormir. Mas eu já o conheço há mais tempo que a
maioria deles e vi medo em sua voz e em sua face,
um medo que só havia visto uma vez em minha
vida. E estava certo: aquele som podia ser a últi-
ma sinfonia que ouviríamos. E sem nem dar tem-
po de voltarmos a nossos aposentos, na escuridão
imensa e infinda do mar, pude ver algo que previa
nosso fim. Tentáculos, longos, grossos, cheios de
marcas de arranhões, e que a cada piscar de olhos
se aproximavam mais do casco.

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Um gato na guerra

Caio César Gastão Faria

O soldado britânico Adam estava em meio à


Segunda Guerra Mundial. Ele lutava bravamen-
te nas trincheiras, enfrentando a dura realidade
do conflito. Mas, em meio ao caos, ele encontrou
uma pequena fonte de conforto: um gatinho cin-
za e branco que ele chamou de Kyle. Kyle era um
gatinho abandonado que Adam encontrou em
uma das cidades que foram bombardeadas pelos
inimigos. Ele o resgatou e o cuidou com carinho,
compartilhando sua ração de comida com o pe-
queno felino.
Kyle se tornou seu companheiro fiel durante
os dias difíceis da guerra. Adam percebeu que Kyle
tinha um efeito positivo sobre os outros soldados
também. O gatinho trazia um pouco de alegria e
normalidade para o ambiente de guerra. Ele era
uma distração bem-vinda aos horrores do cam-
po de batalha. Em uma missão perigosa, Adam foi
ferido e levado de volta para o acampamento para
ser tratado. Ele pediu para que procurassem Kyle,
só que ele não foi encontrado. Adam, mesmo ma-
chucado, saiu da tenda médica à procura de Kyle,
só que a única coisa que viu foi os céus sendo ras-
gados por bombardeios alemães.
Kyle, na verdade, era um gato espião al-

29
tamente treinado dos alemães e, quando teve a
oportunidade, voltou para o lado nazista. Kyle ti-
nha sido treinado para desenhar coordenadas no
chão lamacento. Esse ataque fez com que os ale-
mães conseguissem avançar e vencer a guerra, e
então o mundo era dominado pelos nazistas.

30
Marcas e arranhões

Catarina Saraiva da Silva Araújo

Sua mãe havia morrido de uma maneira


trágica. Um dos motivos de Dafine estar naquele
lugar seria isso. Seu padrasto havia acertado mais
de 10 facadas em sua mãe, fazendo com que Da-
fine a encontrasse em seu próprio quarto, ensan-
guentada e cheia de marcas roxas em seu corpo.
Aquela noite não havia sido calma. A mãe de Dafi-
ne teria o traído com um amigo de trabalho e, fora
de si, o padrasto resolveu fazer aquilo. Dafine,
com um ódio guardado por meses, o atacou pelas
costas com uma garrafa, deixando em sua cabeça
inúmeros cortes, fazendo com que ele apareces-
se em um hospital e fosse mandado para a cadeia
pelo assassinato de sua mãe. Dafine foi internada
em um hospício por passar tanto tempo pensando
em algum tipo de vingança.
Sentada embaixo de uma árvore perto do
hospício onde hoje vive, Dafine se sentia obser-
vada. Até este ponto, não parecia tão preocupada,
já não era algo estranho para ela. Desde o tempo
em que sua mãe foi assassinada, havia começado
a ter esses sentimentos estranhos. Mas dessa vez
não parecia ser o mesmo sempre. Dafine comen-
tava em seus momentos comigo que parecia algo
que queria ficar perto dela, e estava conseguindo.

31
Aquilo almejava a atenção de Dafine. Ela sentia
que aquilo não iria apenas passar como os outros.
Ela sabia que não iria ser um daqueles sentimen-
tos diários.
Em uma crise, Dafine surta e foge do hos-
pício, assim acreditava que conseguiria encerrar
essa fase de sua vida. Caminhando por uma flo-
resta com seus pés descalços, já não estava onde
tinha costume de passar. Encontramos seu corpo
algumas semanas depois. A causa de sua morte
não foi descoberta ainda, mas acreditam que al-
gum animal a tenha atacado. Mas isso não entra
na minha cabeça. Que animal deixaria o corpo
dela desse jeito, esses roxos, essas marcas e ar-
ranhões?

32
Campo de camélias

Cauê Tinoco da Costa

Era madrugada, ainda faltavam alguns


minutos para o nascer do sol. O alojamento es-
tava lotado como sempre. A garota estava mais
magra que no dia anterior, não iria durar muito
mais tempo. Imersa em pensamentos, lembrava
de quando vivia com sua família, saía às compras
com as amigas, ia à escola... Agora, só queria li-
berdade, não sabia bem o que significava essa pa-
lavra, mas a queria com todas as forças. Seu tur-
bilhão de pensamentos logo é interrompido por
um barulho, não muito alto para todo mundo ou-
vir, mas não tão baixo para passar despercebido.
Arya nota uma pequena chave no chão. O guarda
noturno deve ter deixado cair. A garota reconhe-
ceu a chave, era do portão principal. Esfomeada,
sem pensar muito bem, não perde a chance e sai
correndo silenciosamente, se esgueirando, para
garantir que ninguém a seguia a cada esquina.
Saindo do prédio e chegando no que ela poderia
talvez chamar de quintal, a jovem garota corre
até o portão principal e o destranca. Era pesado,
mas Arya, com todas as suas forças buscando sair
daquele lugar, consegue abrir o portão. Assim,
correndo desesperadamente, a garota finalmente
chega à fronteira, um pequeno muro que se es-

33
tendia por quilômetros, que representava a divi-
sa entre a liberdade e os jaqueta cruz de 4 pontas.
Arya sobe na mureta e vislumbra o nascer do sol
iluminando milhares de camélias, um verdadeiro
jardim de liberdade. Aquela foi a visão mais bonita
e pura de toda sua vida, pela primeira vez em anos
a criança dá um sorriso sincero. Já se colocando
para frente com o pé esquerdo pronto para pisar
no jardim da liberdade, ela ouve um barulho que
faz seus tímpanos arderem. Ainda com o sorriso
no rosto, mas agora com um buraco no peito, vê
as lindas camélias ficarem vermelhas e sua visão
ficar preta.

34
Embaixo daquele
sol quente, em cima
daquela areia fervendo

Yuri Oliveira

— Cheio de gente esse verão...


— Os turistas desceram tudo pra cá mesmo.
Nem o chinelo aguentava mais aquele calor
escaldante, que vinha do sol forte ou da areia pe-
lando, mas tinha que aguentar. Das 8 às 18 era pra
cima e pra baixo.
— E aquela ruivinha que tá sempre aí?
— É o último dia dela na cidade.
— Será que ela vem hoje?
— Nesse sol? Até se eu não precisasse viria.
— É.
— Sanduíche natural!
— E salada de fruta!
Roda e roda sanduíche aqui, salada ali. Sim,
tem de frango, sim, atum também. Melão? Na sa-
lada não. Moça bonita do cabelo crespo. Sobe e
desce orla, bate onda, bate vento, bate sol quente
e areia fervendo.
E a cabeça só na ruiva, que pelos últimos 5
dias vem todo dia aqui na praia, senta mais perto
da ponta norte. Dois de frango e três saladas (que
tem que ser do fundo do isopor, é geladinha).
— E ela nada?
— Não.
— E você?

35
— Eu o que?
— Não tem número dela? não conversou
nada com a linda?
— Aquelas coisa sabe.
— Sei. Salada de fruta!
— E sanduíche natural!
Quatro da tarde e ela nada. Já foi isopor e
voltou, foi frango, atum, foi tudo. Última caixa, 20
frango 10 atum. 30 saladas de fruta. Última volta.
Olhava cada centímetro daquela praia, céu
azul, areia amarela, água meio esverdeada, mas
nada daquela ruiva de cabelo laranja ardente.
Sol nas costas e areia nos pés. E ela nada.
— Esse ano tá cheio de turista linda, né não?
— Deve ser.
— Qual foi que tu só pensa nela?
Chegando na ponta norte, se não for agora
não é nunca mais.
— Salada de fruta!
— Sanduíche natural!
— Aqui ó!
— Fala, ruiva, dois de frango e três saladas?
— Isso.
— Ruiva, me faz um favor?
— Fala?
— Me dá o último beijo do verão.

36
Animais de palavra

Daniela Ceroni Drehmer

Saí do ônibus sentindo o congelante frio


russo ao adentrar ao zoológico de Tomsk. Eram
3:30 da manhã quando troquei de turno com um
idoso do qual nunca fiz o esforço de perguntar
o nome. Agora sozinha, me sinto muito melhor
para começar a revista.
Começo indo para a área dos répteis, meus
favoritos, pelo simples fato de meu irmãozinho
Kai adorá-los, e estar ali me lembra dele e do mo-
tivo pelo qual trabalho exaustivamente todos os
dias neste lugar. Pelo menos desde que nossa mãe
morreu e meu pai se tornou um inútil alcoólatra.
Deixo esse pensamento de lado, sentindo o
choque térmico quando entro no habitat de Ter-
say e, em apenas um segundo, me vejo na sava-
na e a jiboia me entreolha enquanto preencho seu
cocho com ratos mortos.
— Korsica. — Uma voz feminina soa.
Viro rapidamente e vejo Tersay revirar a ca-
beça. Ignoro a voz, pois estou ciente de que a falta
de sono pode causar alucinações.
— Korsica, não me ignore como se eu fos-
se um animal. — Dou um salto quando Tersay se
aproxima realmente proferindo palavras.
— Vo... você fala?

37
— Claro, querida, todos aqui falamos. Os
novatos raramente permanecem depois de nos-
sa primeira conversa, mas você não parece igual
a eles.
Sinceramente, não sei nem que tipo de rea-
ção expressar.
— Eu preciso alimentar os lobos.
— Me leve com você.
Depois de muita discordância, resolvo levar
Tersay comigo, e quando chego ao habitat dos lo-
bos e sinto a neve queimar meus pés por baixo das
botas.
— Bom dia! — Os lobos me cumprimentam
em um coro, vendo Tersay em meu ombro.
Meu Deus, estou mesmo enlouquecen-
do. Passo o dia com a jiboia, indo de mundos em
mundos, falando com diferentes raças e tipos de
animais.
Retorno ao habitat dos répteis e deixo a co-
bra calmamente ao chão e me sento ao seu lado.
— Eu nunca vou me acostumar com isso.
— Korsica, todos aqui têm um passado
sombrio, inclusive eu, minha ruivinha.
Sinto meu corpo todo falhar ao ouvir meu
apelido de infância, dado por minha mãe.

38
A menina e o labirinto

Eloah Frade de Oliveira

Era uma vez uma menina delicada, frágil


como o mais comum dos vidros e solitária como o
sussurro dos ventos. Uma criança que há tempos
encontrava-se presa em um labirinto, incapaz
de se recordar como chegara ali, mas lutava para
descobrir sua saída. Existiam incontáveis cami-
nhos a serem percorridos, com exceção de um: o
Caminho do “Padecer”.
Os animais que habitavam os arvoredos
sussurravam nos ouvidos da pequena, alertando-
-a de que, se pisasse nas terras daquele solo, não
teria mais vida. A menina deu voz ao seu medo e
manteve distância da penumbra. As estações pas-
saram uma após a outra e nenhum sinal do fim.
Exausta e com lágrimas nos olhos, ela passou a
olhar as estrelas e suplicou que lhe indicassem a
direção.
Uma borboleta que brilhava como uma vela
incandescente pousou em seu nariz. A criatura ti-
nha asas pintadas com as cores do arco-íris e uma
luz intensa capaz de cegar. As duas, uma atrás da
outra, percorreram várias direções. A jovem, ape-
sar de seus ferimentos, fazia nascer dentro de si
uma esperança. Olhava para o pequeno inseto à
sua frente como se fosse um farol que iluminaria

39
o caminho até sua liberdade.
A borboleta parou de voar, voltou-se para a
garota, que a seguia, e lhe disse para continuar o
caminho à frente. A criança congelou e, com uma
voz trêmula, afirmou:
— Este é o caminho cujas trevas me opri-
mem, sua feiura me assombra como pesadelos. Se
eu o cruzar, morrerei. - retrucou a garotinha.
A borboleta respondeu:
— Morrer? Você já não vive desde o mo-
mento em que chegou a este labirinto. Nem ao
menos sabes o valor que carregas. Às vezes, a
mesma escuridão que te fez cair é capaz de fazer
com que renasças.
Então, ela continuou:
— Você andará ao meu lado para iluminar a
obscuridade com seu brilho?
A borboleta informou:
— Eu pude te ajudar a encontrar sua di-
reção, como tanto pediste, mas apenas em suas
próprias mãos está o poder de vencer as trevas.
Assim, a garotinha desafiou o que todos jul-
gavam ser invencível. Ela correu pela estrada que
despertava seus piores infortúnios e encarou o
mal diretamente nos olhos. Quando menos espe-
rava, pôde sentir o ar puro agraciar suas narinas,
o calor recobrir sua pele gelada, e esperou a visita
de sua amiga para poder agradecer-lhe.
A borboleta apareceu e a moça exclamou:
— Muito obrigada, senhora borboleta. Você
abriu meus olhos, agora recordo-me de quem
sou.
A borboleta disse:
— Sempre lembre-se de que uma alma não
pode florescer se for feita refém da insegurança. É
preciso lutar por suas transformações. Adeus, até
um futuro incerto.

40
Maçãs do amor

Emanuel Cabral Müller

Preparei tudo para aquela noite. As ervas


estavam ao lado do caldeirão, que borbulhava o
líquido transparente. Assim que joguei as pétalas
das rosas dentro do caldeirão, o seu cheiro se es-
palhou por todo o pequeno cômodo. Misturei os
poucos ingredientes que existiam no recipiente e
adicionei o açúcar, mexendo até se transformar
em um caramelo doce e pegajoso. Peguei as ver-
melhas maçãs que colhi no pomar do reino pela
manhã, que estavam no cesto ao lado do caldei-
rão. Escolhi uma delas, espetei com um palito e
mergulhei no caramelo. Apoiei-a na bandeja ao
meu lado e repeti o processo com as outras ma-
çãs. Depois de secas, embalei-as no papel rosa
e amarrei com o cordão de sizal. Colocando as
maçãs na cesta, fui até meu guarda-roupa, ves-
ti minha roupa de festa, um longo vestido cor de
açafrão, e transei os cabelos com fitas vermelhas.
Peguei a cesta e fui até o festival.
Uma moça veio até mim. Ela parecia ter seus
14 anos, mas eu sabia que tinha, no mínimo, 17.
A moça pediu uma maçã e me pagou. Entreguei o
doce para ela e a observei, indo ao encontro de um
moço, provavelmente seu amado. Os dois dividi-
ram a fruta caramelizada, sorridentes. O amor ali

41
já existia, isso era óbvio. Então, por que precisa-
vam da magia do amor que se encontrava no doce
que lambuzava suas mãos? Olhando ao redor,
percebi a presença de duas mulheres os obser-
vando com um rosto que expressava raiva e hor-
ror aos dois. Talvez suas mães, que não aceitavam
um amor jovem.
Voltei a vender os doces e observei os casais
que se formavam. O festival agora tinha uma nova
cara. Rostos felizes, contagiados pela música ale-
gre e reconfortante. Mas nem todos se encontra-
vam felizes.
Depois de vender todas as maçãs, me sen-
tei em um banco de madeira e os pensamentos
vieram à minha cabeça. Eu espalhava amor para
aqueles camponeses no festival da colheita por
5 anos seguidos. Mesmo assim, depois de todos
esses anos, eu continuava sozinha, com o vazio
em meu gelado coração. Eu espalhei amor por to-
dos esses anos, mas o amor não chegou até mim,
nunca. E hoje eu percebo que ele nunca mais virá.

42
Vicente

Enzo Silva Martins

Vicente, um homem de meia-idade, extre-


mamente educado, era fechado, retraído e parecia
que sempre iria enrolar-se como um caracol. Ele
é meu cliente há quase 8 meses. Lembro-me até
hoje da noite em que o conheci. Foi tão estranho,
cumprimentou-me apenas com um aperto de
mãos formal, sem beijinhos e abraços (algo que
nunca fez inclusive). Ele falava de um jeito seco
e expressava-se feito gringo em roda de samba.
No início, pensava que fazia parte do ritual dele.
Muitos clientes querem ter a sensação da con-
quista, mesmo conscientes de que estão pagando
pelo que acontece, mas não, Vicente só conversou
durante a uma hora e meia que havíamos com-
binado. Desde então, ele frequenta meu quarto.
Vem às segundas-feiras e quintas-feiras depois
das 20h e só batemos um papo. O máximo que ele
pede é para deitar-me ao seu lado na cama, mas
sem nenhum contato físico, que ele mesmo exi-
gia. Nós conversamos sobre tudo, desde as coi-
sas mais banais até as mais profundas. Vicente
sempre fala da infelicidade em seu casamento, da
inexistência de conexão e que se sente obrigado a
prosseguir para manter as aparências para os fi-
lhos. Eu e ele nos tornamos ouvintes um do outro.

43
Eu acabo falando dos meus demônios também.
Sinceramente, essas duas noites na semana me
fazem bem. Fazia muito tempo que não me sen-
tia humana, sem ter meu corpo sexualizado e mi-
nha etnia fetichizada para manter a barriga cheia
durante o mês. É como sentir afeto pela primeira
vez.
Durante a noite, ouvi berros vindos do an-
dar de baixo. Nem dei bola, até porque eram nor-
mais as confusões e brigas naquele buraco sujo
onde eu trabalho e vivo. Porém, os berros pare-
ciam estar chegando cada vez mais perto de mim,
a velocidade da chegada daquela voz se intensifi-
cava. Quando resolvi abrir a porta, dei de cara com
Márcia.

44
Estou exausto

Fernanda de Souza Pita

Eu estou cansado, exausto de tudo. Não


aguento mais ter que ajudar todo mundo e nin-
guém me ajudar. Eles não se esforçam nem um
pouco. Eu faço tudo por eles e, no final, nem me
agradecem. Já estou aqui há bastante tempo e sou
totalmente desvalorizado, mal cuidado, e nunca
pensam em me reformar.
Nas segundas, é o dia das camisetas, co-
loridas e neutras. Traduzindo, as preguiçosas. E
por isso, sempre brigam pelo estreito lugar onde
tem sol, pois assim não precisam fazer muito
esforço. O problema é que as outras sobram pra
mim, então tenho que ficar soprando, perdendo
o meu fôlego, e elas nem pra ajudar. Pelo menos,
não são tão pesadas quanto os casacos, que vêm
toda quarta. Eu quase durmo com eles, pois são
um bando de velhos rabugentos e grossos. É cada
patada que até eu me sinto ofendido. Nas quintas,
é a vez das calças jeans debochadas, que preferem
perder amigos do que perder a piada. Só que tem
uma hora que cansa e nem tem mais graça. Eu
prefiro ficar na minha, fazer o meu trabalho que
eu ganho mais.
Sexta-feira é o dia das roupas de passeio, as
tagarelas. Sempre que são estendidas, não calam

45
a boca. Parece que não se viram por meses. Por
outro lado, me deixam informado, mas o ruim é
que elas falam tanto que esquecem de se secarem.
Para isso, é preciso concentração, e pode ter cer-
teza, elas não têm nem um pingo. Quando chega o
sábado, eu já estou exausto, mas ainda tenho que
aguentar as meias, tão chatas que chegam a feder
mesmo lavadas. Não conseguem ficar um minuto
sem reclamar. Eu entendo que a vida delas não é
fácil, mas pelo menos existe talco de pé, né? Aos
domingos, eu tiro meu dia de folga, mas mesmo
assim, não compensa a rotina maçante.
Até que o clima mudou, e eu fiquei uma se-
mana inteirinha na chuva e sozinho. Mas pelo
menos tive minha sonhada folga, o que tanto que-
ria. Na segunda-feira seguinte, o sol raiou como
nunca, e as roupas acumuladas da semana pas-
sada foram lavadas todas de uma vez, e eu fiquei
sobrecarregado. Eram as camisetas preguiçosas,
os casacos grossos, as calças jeans debochadas, as
roupas de passeio tagarelas e as meias chatas que,
juntas, começaram a fazer um grande barulho. Eu
não aguentei, enlouqueci, e decidi dar um basta
nessa confusão. Arrebentei as minhas cinco cor-
das, e as roupas caíram no chão.

46
O falso acampamento
sombrio

Fernanda Vieira Paza

Era o último dia de acampamento de verão,


e os monitores organizaram uma grande ginca-
na para os acampantes. Eles dividiram todos em
equipes e os instruíram a encontrar pistas espa-
lhadas pela floresta para vencer a competição. Os
grupos se espalharam pela floresta, animados
para encontrar as pistas. Mas, conforme a noite
caía, algo estranho começou a acontecer.
As pistas levavam para lugares cada vez
mais sombrios e isolados, e as criaturas da flo-
resta pareciam mais ameaçadoras. Uma equipe
encontrou um caderno com anotações assusta-
doras sobre um culto que adorava uma entidade
sobrenatural. Outra equipe encontrou uma trilha
de sangue que levava a uma cabana abandonada
na floresta. Eles estavam apavorados, mas não
queriam perder a competição.
De repente, a equipe de Lucas, que estava
em último lugar, encontrou uma pista que os le-
vou a um cemitério abandonado na floresta. Eles
encontraram um pergaminho velho com uma
mensagem escrita: ‘Para vencer, vocês devem
enfrentar seus medos.’ Lucas e sua equipe sabiam
que essa seria a última pista e decidiram encarar
o desafio.

47
Eles entraram no cemitério, iluminando o
caminho com suas lanternas. Mas logo percebe-
ram que estavam sendo perseguidos por criaturas
sinistras. Eles correram para fora do cemitério,
mas a porta estava trancada. Eles se abraçaram,
preparando-se para o pior, quando de repente
as criaturas desapareceram. Eles ficaram assus-
tados, mas sabiam que haviam enfrentado seus
medos e venceram a competição.
Mais tarde, descobriram que a equipe de
monitores tinha organizado tudo para criar uma
gincana assustadora para o último dia de acam-
pamento. Embora tenham passado por um gran-
de susto, Lucas e seus amigos sempre se lembra-
riam dessa aventura sombria e se orgulhariam de
terem enfrentado seus medos juntos.

48
Não-me-esqueças, meu
amor

Gabriel Gilbran Grippa

Nos campos verdes, que lentamente aban-


donavam as cores do outono, havia um pequeno
chalé que abrigava um casal que se amava pro-
fundamente: Pietro e Cecília. Ambos cultivavam
interesse pela música clássica, pela natureza e
pela literatura. No entanto, para a tristeza dos
dois, Pietro sofria de uma doença crônica termi-
nal, que debilitava seu movimento e sua visão.
Cecília possuía um livro que herdara de sua
avó, intitulado “A Linguagem das Flores”. Sema-
nalmente, ela apresentava uma espécie diferente
para seu marido, contando sua história e signi-
ficado. Cecília também fazia esforços para com-
prar as flores descritas, permitindo que Pietro as
sentisse através do tato. Ora o puro lírio, outrora
o vaidoso narciso, até mesmo as raras orquídeas
fantasmas.
No dia que antecedia a mudança de estação,
Cecília relatou sobre uma rara flor tão azul quanto
o céu, chamada “Não-me-esqueças”. A história
conta que um cavaleiro e sua amada caminhavam
quando ele notou uma pequena flor nas margens
de um rio turbulento. O jovem apaixonado decide
colhê-la como presente para seu amor. Entretan-
to, em um breve suspiro, o cavaleiro tropeça e cai

49
no rio, impedido de se salvar das fortes corren-
tezas por sua pesada armadura de aço, dedicando
suas últimas palavras à sua amada. Pietro adorou
a história, questionando se um dia teria a opor-
tunidade de sentir a pequena flor em suas mãos.
Ao anoitecer, quando o casal estava em
sua cama, Pietro disse algo tão inusitado quanto
emocionante: “Não-me-esqueças, meu amor”,
enquanto tocava, com esforço, sua mão trêmula
na de sua amada. Sorrindo, ambos dormiram pa-
cificamente.
No amanhecer do primeiro dia de primave-
ra, Cecília voltava para casa após comprar frutas
na feira local, quando se deparou com um campo
florido de Não-me-esqueças. Estranhando a pai-
sagem, uma vez que a flor era considerada míti-
ca de tão rara, ela colheu uma das flores antes de
entrar na casa, para mostrá-la a Pietro. Ao cha-
má-lo e não obter resposta, Cecília foi até o quar-
to verificar, encontrando-o totalmente imóvel.
Pietro havia morrido naquele dia. Enquanto se-
gurava a pequena flor, Cecília caiu em lágrimas,
lembrando-se dos momentos felizes com Pietro.
A “Não-me-esqueças” simboliza o amor verda-
deiro e eterno que termina em tragédia.

50
Companheiros

Gabriel Neves Nogarolli

Anne, uma garotinha corajosa e aventu-


reira, estava em busca de uma flor mágica que
poderia curar sua avó doente, que se encontrava
acamada. Determinada, adentrou a floresta escu-
ra com seu fiel cachorrinho Max a seu lado. Logo,
Anne deparou-se com árvores retorcidas e uma
densa neblina que a envolvia, obscurecendo sua
visão. Ela ouvia sons estranhos e sentia a umidade
do ar. Max farejava o caminho, mas até ele parecia
inquieto.
A noite chegou rapidamente, e Anne acen-
deu uma tocha para iluminar o caminho. Estava
exausta, mas sua determinação a impedia de de-
sistir. Foi quando ouviu um rosnado sinistro vin-
do das sombras. Um lobo apareceu, bloqueando
sua passagem. Anne recuou, mas sabia que não
poderia voltar atrás. O lobo gigantesco correu em
sua direção, totalmente faminto. Sem saber como
reagir, ela decidiu jogar sua tocha no chão da flo-
resta, que rapidamente começou a se alastrar por
toda parte, impedindo a passagem do lobo e a sua
própria.
Os companheiros seguiram vagando, sendo
ignorados por todos os monstros horríveis es-
condidos naquela floresta. No final de uma colina,

51
avistaram uma flor reluzente de cristal. Anne se
viu maravilhada e correu em disparada com Max
em direção a um grande campo florido e ensola-
rado. Ao chegar ao final da colina e recolher a flor,
depararam-se com um caminho íngreme que se-
guia até a casa de sua avó.
Antes que fosse tarde demais, Anne e Max
correram rapidamente em direção à casa. Ao che-
gar lá, sua avó não estava mais na cama. Ao olhar
pela janela, Anne conseguiu ver sua avó do lado de
fora. Ela foi acolhida por sua avó com um abraço
aconchegante, e ambas seguiram de mãos dadas
por um caminho tortuoso. Max ficou para trás e,
ao olhar em direção ao horizonte, percebeu que
elas haviam desaparecido para sempre.

52
O Fantasma da
madrasta

Gabriel Ribeiro Felski Pereira

Uma garota chamada Katrynah tinha mui-


tos problemas e sofria de transtorno bipolar
desde criança. Infelizmente, seus pais não en-
tendiam sua condição e a tratavam de forma ne-
gligente e indiferente. Sua madrasta, em particu-
lar, era cruel com ela, constantemente abusando
e humilhando-a. Ela tentou encontrar ajuda, mas
ninguém parecia se importar. Seu pai, em vez de
intervir, apenas se afastava e permitia que a ma-
drasta continuasse com seus incessantes maus-
-tratos. Katrynah sentia que não tinha ninguém
em quem pudesse confiar, e sua saúde mental
piorava a cada dia.
Em uma noite, Katrynah teve uma crise de
bipolaridade e começou a ter visões perturbado-
ras, sempre sentindo uma presença sinistra em
sua casa. No meio da madrugada, ela acordou
apavorada ao escutar barulhos sinistros e sussur-
ros incessantes. Por um instante, tudo ficou quie-
to, e a única coisa que ela conseguia prestar aten-
ção era em uma sombra que se movia em direção
a ela. Ela percebeu que era a madrasta, com uma
faca de cozinha na mão. A madrasta começou a
atacá-la, e ela, em um surto de sobrevivência, pe-
gou a faca e a esfaqueou até a morte. Mas isso não

53
acabou com o terror de Katrynah.
A partir daquele dia, ela começou a ter vi-
sões da madrasta morta, assombrando-a inces-
santemente. Ela se sentia culpada pelo que havia
feito, mas não sabia como se livrar da presença
maligna que a aterrorizava. Katrynah, então, aca-
bou sendo internada em um hospital psiquiátrico,
onde passou o resto de sua vida em um estado ca-
tatônico, assombrada pelo fantasma de sua ma-
drasta e pelos demônios de sua própria mente.

54
De novo

Gabriela Couto Mello

Do oeste, eu sentia uma leve brisa chegar


aos meus cabelos, fazendo-os dançar em meio
àquele desafio. O que eu estou fazendo da minha
vida? Será que eu realmente deveria fazer isso?
Arriscar minha vida, embarcar nessa loucura que
certamente não faz parte do meu estilo, apenas
por causa de uma aposta tola?
Todos esses pensamentos rodeavam minha
mente, como se fossem uma auréola girando e gi-
rando, enquanto eu olhava para cima e para bai-
xo daquela imensa montanha que estava prestes
a escalar. Bem, se eu desistisse, ninguém ficaria
sabendo, afinal, vim sozinha e nenhum daqueles
tolos que me desafiaram teve a coragem de me
acompanhar.
Respirei fundo, acompanhando o soprar
das folhas que se moviam de um lado para o ou-
tro, e comecei. Um passo de cada vez. Por dentro,
eu sentia uma sensação de felicidade, sabendo
que estava realizando um sonho e me sentindo
capaz e forte, mas por fora, tudo o que transpare-
cia eram minhas pernas trêmulas de medo.
Meu pai me disse algo que ecoava em minha
mente naquela manhã:
— Não esqueça de aproveitar o momento,

55
minha filha. Certifique-se de fazer isso por você
mesma, sem esperar a aprovação dos outros,
porque hoje em dia as pessoas não dão valor às
nossas conquistas. Se você for movida apenas por
essa aposta, sem realmente aproveitar o momen-
to, tudo será em vão. — Ele riu com um toque de
tristeza.
A última vez que realmente me desconectei
do piloto automático, nem consigo me lembrar.
— Ai! - resmunguei quando um galho qual-
quer me atingiu...
— Ei, você aí em cima! Falta muito para
chegar? — gritei imediatamente ao avistar um pé
lá no topo da montanha, que inclusive usava belos
tênis esportivos semelhantes aos meus.
Mas não recebi resposta, talvez ela não te-
nha me ouvido. Meu coração batia aceleradamen-
te quando finalmente percebi que estava quase lá.
Apenas mais uma esticada de pernas... Alívio, era
o que eu sentia. Finalmente, parecia que nunca
chegaria ao fim.
Assim que firmei meus pés no chão, escor-
reguei em algum maldito galho, e ele saiu voando
montanha abaixo. Por um único segundo, fechei
meus olhos, sentindo todo o cansaço tomar conta
do meu corpo. Quando os abri, vi a mesma árvore
contra a qual estava apoiada antes de começar a
escalada. Onde estou? O que está acontecendo?
Percebi que estava de volta ao começo. No
início da escalada. Como se tudo o que eu tivesse
feito não valesse a pena. De novo.

56
O segredo

Gabriela Regina Bazzo Barcellos

E então, quando abri meus olhos, as pessoas


próximas já não estavam mais lá. A sensação não
era de falta e sim de impossibilidade de explicar
o que havia acontecido. Apenas Puby, um velho
amigo de infância, estava presente - um labra-
dor babão que dispunha a colocar qualquer coisa
em sua boca. Fui tentar tirar algo dele, uma gulo-
seima indevida talvez, mas ele pressentiu minha
intenção e saiu correndo, se divertindo com meu
desespero ao perceber o que ele tinha na boca.
Meus pés pareciam pesados e eu não conseguia
me locomover. Talvez tudo isso fizesse algum
sentido: a casa vazia, o que Puby tinha na boca,
a pouca luz que lá habitava, a névoa era a única
coisa que preenchia aquele espaço.
Há algum tempo ando observando este lu-
gar em diferentes momentos do dia. Pela manhã,
o silêncio incômodo, o cheiro do café que não foi
coado, o barulho da água corrente sem ninguém
estar escovando os dentes, o despertador tocava,
mas ninguém precisava acordar. Mas à noite tudo
mudava, a luxúria invadia o espaço, gritos, risos,
bebida e pessoas conhecidas apareciam, jazz, ne-
groni e paetês. Puby alegrava os visitantes sempre
com a fofura de um labrador idoso, e abocanhava

57
pedaços de carpaccio gentilmente oferecido pelo
convidado. Eu nunca me lembro o que acontecia
no restante das noitadas, apenas com a vaga lem-
brança de adormecer e acordar no dia seguinte.
Sinto o pelo de Puby nos meus dedos e saio
da inércia de meus pensamentos, lembro de olhar
o que ele tinha na boca nesse dia, o terror assola
minha mente, uma orelha com brincos, quem te-
ria feito isso? E então, quando abro meus olhos,
vejo grades.

58
Três amores

Gabriele Aparecida De Melo

Alguns dizem que na vida existem três


amores. O primeiro, geralmente, é aquele amor
de adolescência, cheio de paixão, que te ensina a
querer, mas também é cheio de ilusão. O segundo
é aquele que te magoa, te magoa muito. Você ama,
mas no fundo você sabe que não é para ti. Também
é aquele que te ensina, aquele que te amadurece.
E existe o terceiro, que é aquele sem expectativa
nenhuma, aquele que te surpreende e geralmente
é esse que te ensina o verdadeiro amor.
Eu tive meu primeiro amor, o nome dela é
Vitória. Ela foi minha paixão de escola. Achei que
era o amor da minha vida e que viveria um roman-
ce adolescente igual ao dos livros, mas por ser tão
imatura eu a perdi. Foi a única parte igual aos li-
vros. Eu amei a Vitória com todo meu coração e
pensei que nunca mais amaria assim, até que meu
segundo amor apareceu, Bianca. Ela morava per-
to da minha casa, porém não nos víamos com fre-
quência, mas eu sabia que a amava e sabia que ela
me amava também. Me arrependo de nunca tê-la
dito isso, pois podíamos ter mais, podíamos ter
sido algo a mais, porém o meu medo me conteve.
Antes mesmo de entender meus sentimentos ou
o significado daquela frase “Diga antes que seja

59
tarde”, ela se foi. Bianca se foi para não voltar.
Agora cá estou eu, dentro do meu quarto,
escrevendo sobre meus antigos amores. E meu
terceiro amor? Nunca chegou, pelo menos não em
uma forma física. Me dei conta de que não preciso
de alguém que me complete ou de algo como uma
“alma gêmea”, mas sim de mim. Percebi que meu
maior amor sou eu. É claro que sinto falta delas,
entretanto ninguém me amaria mais do que eu.

60
Todo dia

Gabrieli da Rosa Back

Em um repentino sopro, abro meus olhos e


me deparo com meu abajur aceso e minha poltro-
na no lado oposto da cama, o que não faz sentido.
Não me lembro se havia deixado as coisas assim
ou se eu as movi na noite passada. Acredito que
talvez isso seja algo que eu devesse lembrar, mas
decido ignorar. São coisas banais que não devem
ser lembradas.
Desço até minha cozinha e vejo que há louça
suja em minha pia, mas não consigo me lembrar
de ter deixado comida tailandesa no lixo e com
certeza isso explicaria o cheiro podre que sobe do
lixo. Sento-me à mesa e sei que algo não está cer-
to hoje. De repente, vejo meu gato pular da janela
do meu apartamento.
Em um repentino sopro, abro meus olhos
e vejo o abajur aceso e minha poltrona no lado
oposto da cama. Isto não faz sentido, não me lem-
bro de ter acendido ou mudado minha poltrona.
Vou descer para tomar café e, na escada, já sinto
um odor de comida podre vindo do lixo, mas não
me lembro de ter comido comida tailandesa. Sen-
to-me para tomar café e algo me diz que aconte-
cerá algo terrível. Antes que eu pudesse pegá-lo,
ele pula da minha janela.

61
Abro meus olhos e o abajur está aceso e mi-
nha poltrona no lugar errado. Desço já sabendo o
cheiro que me espera. Algo em mim fala que devo
me sentar na mesa para tomar café, mas antes
que eu mesma soubesse, eu estava com o gato
na mão, o segurando para não pular da janela do
apartamento. Mas como eu sabia disso?
— Calma, está tudo bem, Theodor, vai ficar
tudo bem... tem algo errado, não é, amigo?!
Em um instante estou com ele na mão e
no outro estou abrindo meus olhos e vendo meu
abajur aceso, mas minha poltrona no lado certo.
Seria todo dia a mesma coisa. Mas que droga está
acontecendo?!

62
O começo do fim

Geórgia Liziê da Silva

O orvalho se misturava com o suor frio que


escorria em minha testa. Será que me livrei da-
quela criatura? Pensei.
Reduzi meus passos ao avistar a silhueta de
uma casa, mas em alerta. Não se sabe qual vai ser
a próxima atrocidade que virá me perseguir no-
vamente.
Parei em frente à porta e bati. Me deparei
com uma bela moça, estranhamente familiar.
Seus traços eram delicados e joviais, mas parte de
seu pescoço se decompunha e se tornava um pe-
daço de carne escuro e inchado.
— Senhorita, estou vagando pela floresta
há horas e, se não for pedir muito, poderia me dar
algo para matar a fome?
— Quanta modéstia, Elliot. Meu rosto su-
miu de sua memória em menos de um ano?
Congelei ao ouvir aquelas palavras. Minha
pulsação estava cada vez mais forte conforme as
lembranças vinham à tona. A mulher que uma vez
fez meu coração bater aceleradamente, agora o
paralisou. “Maxine” era a única coisa que ecoava
em minha mente.
— Agora estás recordando, não é? — insi-
nua a jovem, percebendo minha feição alterando

63
de dúvida para pavor.
— Como você... nunca imaginei te encon-
trar aqui — soltei as palavras presas à minha gar-
ganta.
— Estou te esperando desde o dia em que
decidiu brutalmente rasgar meu pescoço e o que
sobrou de mim com a faca ritualística de seu pai.
Flashbacks daquela noite voltam à minha
memória. A noite em que destruí completamente
nossas vidas.
— Você não sabe como eu estava ansiosa
para que seu transtorno se agravasse e te levasse
à beira da morte. Este é o seu destino final, seu
inferno. Aqui pagarás por tudo o que fizeste e não
escaparás. Este é o começo do seu fim, Elliot —
anunciou a ruiva, implacavelmente.
A delicada Maxine, que fez minha alma
dançar alegremente, agora a condena impetuo-
samente ao mais profundo inferno.

64
Para os céus eu vou

Gustavo Pieczykolan Dias

Em um mundo onde a inovação é a única


forma de sobreviver, para ser útil na sociedade e
não ser considerado um peso morto, algo preci-
sa ser inventado e inovado. Milhares de pessoas
acabam morrendo por não ter conseguido “ser-
vir” para o avanço da sociedade, e eu não quero
ser uma delas! Eu consigo fazer algo novo! Quero
ser útil para a sociedade, produzir o avanço com
minhas próprias mãos é meu único papel.
Com isso, mais uma segunda-feira passa
em um piscar de olhos. Papéis e mais papéis des-
pejados no chão com ideias inúteis que não leva-
ram a nada. Olhando para o vazio me encontro,
apenas tentando pensar em algo. A comida já está
acabando, preciso conseguir algo logo.
Me pego pensando “no que a humanidade
mais precisa nesse momento que já não exista?”
Já que os essenciais já foram inventados por ou-
tros. Algo novo e ousado, seria meu objetivo, mas,
o que seria? Talvez pudesse ser algo para facilitar
a vida das pessoas. Em que meio eu consigo faci-
litar? Comida? Não, não sei cozinhar. Eletrônicos?
Não sou boa em mexer com isso. Ferramentas? Se
eu já tenho tudo o que preciso, nada mais irá fal-
tar. Transporte? Com o que eu poderia melhorar.

65
Já possuímos automóveis suficientes para andar
por aí.
Mas, de repente, barulhos e mais barulhos
consigo escutar, de pessoas gritando por causa do
trânsito, perto da minha residência. Indignada,
falei comigo mesma:
— Que merda, eles não conseguem fazer
menos barulho?
Até que, simplesmente, tudo fez sentido.
Qual seria a melhor forma de diminuir esse trân-
sito? Se não existisse mais trânsito, não existiria
mais esses barulhos e gritos que tanto me atrapa-
lham para pensar.
Diminuir os automóveis não seria uma ideia
ideal. Ninguém iria apoiar essa ideia já que todos
adoram possuir um. Nem criar novas vias seria
possível, já que isso nem seria original e já que
possuímos muitos habitantes com muitas casas.
Qual seria o lugar mais livre que temos para
desbravar? Os céus! Lógico! Como é que eu demo-
rei tanto para pensar nisso antes? Talvez eu até
consiga construir algum meio de transporte pelos
céus!
Não acho que alguém teria pensado nisso,
todos já ficaram acostumados com o transpor-
te atual, que é apenas no chão. Temos que parar
de ficar atrelado nesse pensamento que limita a
gente, afinal, o céu é o limite. Se eu conseguir au-
mentar a área de transporte para os céus, tudo se-
ria simplesmente muito mais fácil!
Preciso me organizar. Eu acho que em pelo
menos uma semana já consigo desenhar a planta
do projeto. Preciso começar o mais cedo possível!

66
Desfilar

Gustavo Storino Kremer de Souza

Em poucos minutos entraremos em ação.


Ela está passando mal de tanta ansiedade, en-
quanto eu me sinto morto. Como sempre, meu
coração para de bater, consequência do meu san-
gue frio, é claro.
“A Humana Mais Linda da Existência” e...
um jacaré do papo amarelo qualquer. Ninguém
contava que fosse essa a dupla perfeita para subir
nas passarelas do maior desfile do mundo. Poucos
conseguiram tamanho feito, mas cá estamos!
Ela está linda, seja pelo vestido verde
musgo que rasteja até suas finas canelas, ou pelas
argolas de ouro nas orelhas que refletem a luz do
camarim nos meus olhos. Uma deusa.
É lembrar do suor e sangue derramados,
tudo em prol de pisar na abertura da Solaris Plaza
Fashion Week. Agora, tantos holofotes, a luz do
palco transformou a noite escura em dia de sol.
É o meu dia de brilhar, o nosso dia. “A noite das
nossas vidas, Sra. Miranda!”
Desfilar. Eis a caminhada lenta na métrica
da batida que ecoa ao fundo desse cenário divino.
Ela e eu, por 30 segundos. Quem me dera se fosse
eterno. O coração volta a palpitar, sinto a alegria
genuína, calor no peito. Olho para cima e a vejo

67
arrepiar um sorriso, explodindo em simpatia. Mi-
randa só não tinha os dentes mais perfeitos pois
esses eram os meus. Seu diferencial? Todas as
modelos exibem feição séria, já a humana não. Ela
fez a pura leveza, até o milésimo final. Ao descer
do último degrau, desligaram-se todas as luzes. A
noite voltou à tona, mas refém dos aplausos.
“Acabou, Sra. Miranda”. Nós enfim con-
seguimos! Alternar do maior evento da década
para o nosso apartamento apertado foi rápido.
Vi a musa da noite receber infinitas ligações te-
lefônicas a parabenizando, derramar lágrimas de
vitória. Enfim, sua atenção dirige-se a mim. Mas
ao sentir seu toque sedoso, percebi que se tratava
de uma despedida. Sem poder pronunciar minhas
últimas palavras, a vejo guardar-me no armário
velho.
Me vi reduzido, melancolicamente, de es-
trela do desfile a um par de botas cano alto. Couro
de jacaré, número 37.

68
A sobrevivência do
amor

Hallana Cezimbra Fossile

Léo me convidou para jantar, disse que ti-


nha algo importante para me contar, porém es-
tamos no restaurante faz meia hora, sem muita
conversa, mas com muita troca de olhares que
parecem lamentavelmente dizer “sinto muito”
antecipadamente, fazendo uma dor dentro de
mim aumentar cada vez mais. Até tentamos es-
perar a comida, porém não conseguimos ignorar
o enorme elefante na sala.
— Fala comigo! A gente jurou ser aberto um
com o outro. — Solto um suspiro longo.
— Eu vou falar, mas tenho medo de te ma-
goar — sussurra Léo.

— Só irá fazer isso se não falar o que está te


deixando tão nervoso — respondo, pegando em
sua mão. Como se fosse uma chave, ao meu toque
ele começa a falar, fazendo com que meu corpo se
enrijeça.
— Faz pouco tempo que estamos juntos,
mas desde que você chegou eu mudei e pela pri-
meira vez me permiti confiar e me abrir de verda-
de — declara Léo, nervoso.
— Você está terminando comigo? — O in-
terrompo, com meu coração acelerado.

69
— NÃO! Mas eu fui convocado para jogar na
Austrália, por dois anos — gagueja Léo.
Meu corpo se congela por inteiro, fico sem
reação e percebo o pesar em seu rosto. Tento me
recompor, mas sinto meu olho marejar. Mesmo
assim, dou-lhe um sorriso desajeitado, porque
apesar do sentimento de desamparo, fico extre-
mamente feliz em vê-lo conquistando seus so-
nhos, mas nunca imaginei que isso tivesse que
acontecer tão longe de mim. E eu sei que não será
bom para nenhum de nós um relacionamento à
distância. Ficamos conversando até o restaurante
fechar, depois de muitos abraços e lágrimas. Per-
cebi que não teríamos um “felizes para sempre”
como eu acreditava.

70
Tempo invisível e o
envelope azul cobalto

Helena Alves Alonso

Aya era assombrada por alguns pingos de


tinta.
O momento em que a ponta de sua caneta
traçara as curvas de uma letra pela última vez a
perseguia do acordar ao dormir. Desde aquele dia,
múltiplas vezes ela tentara escrever – e, múlti-
plas vezes, falhara. As palavras simplesmente não
vinham. Ela era uma escritora que não escrevia.
Aya sabia a resposta daquele dilema. Sabia,
e por isso encontrava-se estendendo a mão para
abrir a gaveta de sua escrivaninha todas as tar-
des. Nela, havia um único item: um envelope azul
cobalto. A carta nele contida detinha poder sobre
os pensamentos e destino de Aya. Se ela apenas a
enviasse...
O ciclo não parava de se repetir. Aya não
conseguia escrever, pensava na carta e abria a ga-
veta. Agonizava... E voltava à estaca zero, nunca
desprendendo-se das obsessões que a atormen-
tavam.
Numa tarde, Aya abriu a gaveta como sem-
pre fazia. Porém, ao invés das frustrações e fami-
liares arrependimentos, algo diferente atraiu a
atenção da autora. As extremidades do envelope
estavam puídas. Puídas! Quanto tempo se pas-

71
sara, exatamente? Quando foi que o papel novo e
reluzente que Aya escolheu com tanto cuidado se
tornara amarelado e farelento? Mais importan-
te ainda: por que ela só se dava conta disso agora?
Estivera Aya tão absorta em suas insanidades a
ponto de perder a passagem de uma década?
Antes que se arrependesse, com a mente to-
mada por um crescente e atordoante horror, Aya
rasgou o envelope azul cobalto e... Não havia carta
alguma. O coração dela despencou.
Aya revirou pilhas de anotações, arrancou
cadernos de suas prateleiras e bagunçou o estú-
dio até, finalmente, encontrar um bloco de notas
meio amassado no fundo de um armário.
A carta nunca passara do rascunho. Ao fim
da página, lia-se: Quero que saib
Aya sequer terminara a curva do “a” e, mui-
to menos, pingara o ponto final.

72
Talvez em outra vida

Helena Regis S. P. Da Silva

Eu não aguentava mais as pressões do tra-


balho e do dia a dia, então decidi tirar um tempo
pra mim, viajando pra praia de Ibitubá, pensando
em apenas relaxar.
Quando cheguei, fiquei impressionado com
a beleza do lugar.
Coloquei minha cadeira na areia e fui logo
dar um mergulho no mar. Foi nesse momento que
eu esbarrei em alguém.
— Desculpa, eu não tinha te visto - falei.
— Tudo bem, não tem problema - disse a
moça, que se apresentou como Amanda.
— O que você está fazendo no mar uma hora
dessas?
A moça hesitou por um instante e seus olhos
pareciam tristes. Logo percebi que havia algo de
errado.
— Aconteceu alguma coisa? - questionei.
Ela não respondeu. Parecia carregar o mun-
do nas costas, percebi isso em seus olhos.
Conversamos, mas ela não parecia muito
disposta a falar.
— Estou hospedado naquele hotel (aponto
o local), se quiser aparecer por lá, meu quarto é
o 31.

73
— Quem sabe, talvez eu apareça...
Quando ela finalmente se despediu, percebi
o quanto era linda... olhos verdes, cabelos doura-
dos e sorriso encantador.
Passei o dia na praia, mas não conseguia
parar de pensar naquela moça misteriosa. À noi-
te, eu esperava que ela aparecesse, mas as horas
foram passando e nada. Quando ouvi uma batida
na porta, fui rapidamente abrir e vi um policial.
— Você é o Jorge Moraes, amigo da Amanda
Mendes?
— Sim, acredito que sim. O que está acon-
tecendo?
— Sua amiga se suicidou, faz aproximada-
mente uma hora. Ela deixou um recado pra você
- disse o policial, entregando-lhe um papel.
Não conseguia acreditar naquilo. A moça
que eu havia conhecido na praia, tão jovem, ha-
via tirado a própria vida. Li o papel e então per-
cebi que ela havia pedido ajuda, mas eu não tinha
entendido.
Senti uma culpa imensa. Me arrependi de
não ter prestado mais atenção. Talvez se eu tives-
se, ela ainda estaria viva.

74
A geladeira

Henry Gabriel Americano Gavrois

Em um escritório no coração da cidade, os


funcionários trabalhavam duro durante todo o
dia, mas havia algo estranho no ar. Um medo
crescente pairava sobre eles, como se algo terrível
estivesse prestes a acontecer.
Um dia, a geladeira do escritório começou
a emitir um som estranho. Os funcionários ini-
cialmente ignoraram, mas a geladeira continuou
a emitir um som cada vez mais alto e inquietan-
te. Finalmente, um funcionário decidiu verificar
o que estava acontecendo e abriu a porta da gela-
deira. Foi nesse momento que ele viu: uma escu-
ridão cósmica se estendia além das prateleiras de
comida. Uma força terrível emanava da geladeira,
sugando-o para dentro do vazio do universo.
Os outros funcionários correram para aju-
dá-lo, mas quando chegaram perto da geladeira,
ela se abriu como um portal para o abismo. Um
tentáculo enorme saiu de dentro da geladeira e
agarrou um dos funcionários, arrastando-o para
dentro da escuridão.
Os outros tentaram fugir, mas a porta do
escritório estava trancada. A única saída era pela
janela. Eles pularam, um por um, para a seguran-
ça da rua abaixo.

75
Olhando para cima, eles viram a geladei-
ra do escritório brilhando com uma luz cósmica.
Eles sabiam que tinham testemunhado algo terrí-
vel, uma força que nunca deveria ter sido liberada
neste mundo.
Desde então, o escritório foi abandonado e
a geladeira permaneceu intocada. Mas, em noites
de céu limpo, algumas pessoas dizem que ainda
podem ouvir o som estranho vindo de dentro do
escritório, um som que nunca deve ser ignorado.

76
Sem rastros

Inaê de Mattos da Silva Tamanaha

Nessas férias, os melhores amigos, Miguel


e Helena, decidiram se aventurar alugando uma
casa em uma ilha distante, querendo se divertir
muito nesse verão. Chegando lá, se depararam
com uma casa meio antiga e velha, diferente das
fotos do anúncio.
— Tem certeza de que é aqui? — disse He-
lena, meio desconfiada.
— Claro que sim, é o mesmo número do
anúncio — disse Miguel.
Então, eles entraram, passaram o dia arru-
mando suas coisas, limpando a casa normalmen-
te. Ao escurecer, nenhuma luz da casa funcionava.
Acharam algumas velas e acenderam. Passou um
tempo e eles começaram a ouvir alguns sons es-
tranhos, mas acharam que era na casa ao lado. A
cada minuto que passava, os sons e os ruídos fi-
cavam mais altos. Começaram a suspeitar e foram
ver do que se tratava. Eles foram chegando cada
vez mais perto dos barulhos e perceberam que,
além dos sons serem do porão, na realidade era
alguém sussurrando.
— Você está ouvindo isso? — sussurrou
Helena, com uma face assustada.
— Sim. — respondeu Miguel, com um olhar

77
tranquilo. — Vou descobrir se é isso mesmo que
estamos pensando.
— Está louco?! Não irei deixar você ir até lá
sem nenhuma proteção — disse Helena.
— Eu não preciso de nada, apenas de uma
vela — disse Miguel.
Assim, Helena entregou a única vela que
eles haviam levado e Miguel desceu até lá. Com
passos lentos, o som estava ficando mais alto e
tenebroso.
— Oi?! Tem alguém aqui? — disse Miguel,
meio assustado.
E de repente tudo ficou em silêncio, e Miguel
só pôde ouvir Helena perguntando se estava tudo
bem, mas não teve tempo de dizer uma palavra,
apenas um grito de socorro. Após Helena ouvir o
grito, ficou muito assustada, mas também preo-
cupada com seu melhor amigo. Então ela desceu
até lá e não conseguia ver nada, só uma sombra
que parecia tudo, menos seu amigo. Foi aí que ela
percebeu que já era tarde demais.

78
As chamas vão te guiar

Isadora Alves

Em uma aldeiazinha afastada de qualquer


outro tipo de civilização, morava Mabila, a meni-
na dos cabelos ruivos. A garota foi criada pela avó
e nunca chegou a conhecer sua mãe, pois segundo
sua avó, sua mãe tinha falecido durante o trabalho
de parto.
Havia uma história que circulava entre as
famílias sobre uma mulher que foi expulsa da al-
deia por conta de magia negra: seus cabelos cria-
ram vida e seus olhos mudaram de cor... Mudaram
para um tom de roxo. Todas as quartas, as pessoas
se reuniam para contar essas histórias. Essa era a
história favorita da menina, por mais que todos ali
possuíssem um medo absurdo do conto ser real-
mente verdadeiro e da bela moça voltar com sede
de vingança. Acompanhando o final da contação
de histórias, vinha a noite. Mabila voltou para casa
com um grande entusiasmo, pois, no dia seguinte,
iria completar 12 anos e se deitou com a lenda na
cabeça.
Na manhã seguinte, a garota, com resquícios
de lerdeza pós sono, esfregava seus olhos e ia em
direção à pia do banheiro jogar uma água gelada
em seu rosto. Quando se levantou para se olhar no
espelho, soltou um grito de pavor ao perceber que

79
seus cabelos estavam se mexendo e que a íris de um
de seus olhos tinha mudado de coloração, estava
roxa. Saiu correndo de sua casa e foi chorando em
direção à floresta.
A garota, sem saber o que fazer, sentou-se
debaixo de uma árvore e chorou compulsivamente.
Se sentindo confusa, assustada e perdida, Mabila
sentiu seu cabelo a cutucar e levantou a cabeça. Na
sua frente, havia um caminho de mini chamas de
fogo roxa, a guiando para algum lugar. Por algum
motivo, ela sentia que precisava seguir aquilo, e,
então, ela foi.
Mabila agora se deparava com uma casinha
no meio da floresta e a única coisa que passava
em sua cabeça era “por que elas me guiaram até
aqui?”. Ela deu 3 toques na porta e uma mulher de
olhos roxos atendeu. Na hora, a menina congelou,
pois sabia que a tal mulher era a moça que ela tanto
escutava nas histórias.
— Filha? — disse a mulher. Mabila desmaiou.
A menina, durante lapsos de lucidez, escutou
a mulher desabafando ao seu lado.
— Oh, meu pobre bebê, eu não queria que
isso tivesse sido passado a você. Quando eu tinha 12
anos, isso aconteceu comigo também... Você deve
estar tão assustada... Mamãe vai dar um jeito nisso.
A garota retoma a consciência já em sua casa.
Levanta-se assustada e com as memórias bagun-
çadas.
“Use isso, vai ajudar. Caso queira me pro-
curar, siga as chamas que elas irão te guiar. Você
nunca esteve sozinha. Beijos, mamãe.” Havia esse
bilhete, lentes de contato e um lenço para seus ca-
belos em sua cômoda. Ali então, a menina desceu
as escadas e deu um forte abraço em sua avó. Mes-
mo sem falar nada, as duas já estavam cientes do
assunto que estava por vir.

80
O noivo

Isadora da Luz

Noiva, é a minha situação... Amor, paixão,


felicidade, é a minha vida ao lado de quem há dois
meses atrás, me quis pro resto da vida. O raio de
sol vindo da janela iluminava o rosto adormeci-
do do meu noivo, e me lembrou que hoje é dia de
provar o vestido. Rapidamente me arrumo e sigo
para a loja. Lá, espero meia hora sentada. A recep-
cionista assumiu que eu tinha desmarcado o meu
horário, deve ser uma baita de uma irresponsável,
folgada...
— Vamos lá?! – Atrapalhando os xinga-
mentos mentais, me chama.
— Vamos, meu amor – A falsidade...
Apesar do atraso, saio de lá radiante. Meu
noivo vai amar esse vestido! Passeando pela rua,
um carro vermelho passa, e com ele vem uma
dor de cabeça intensa, chego a sentar na calçada.
Quando levanto a cabeça, avisto meu noivo vindo
em minha direção.
— O que houve? - pergunta ele, preocupa-
do.
— Tontura. O que faz aqui?
— Vim comprar nosso café da manhã, ué.
— Ah, verdade.
— Vamos pra casa, vem cá... – Ele me le-

81
vanta e entrelaça nossas mãos, me guiando.
Mais tarde no dia, vou lavar a louça en-
quanto ele descansa antes de ir trabalhar, e en-
tre talheres e copos, a anta aqui corta o dedo. E
não só isso, aquela droga de dor de cabeça volta,
enquanto o sangue escorre entre os meus dedos.
Chamo meu noivo e ele não responde, percebo
que ele não está em casa, achando estranho, vou
ao banheiro para tratar do corte.
Já estava tarde, e nada dele chegar. Ele nun-
ca demorou tanto... Fui esperar pela janela quan-
do avisto meu noivo no meio da rua. No impul-
so, desço rapidamente, e na calçada, fico frente a
frente com ele.
— O que está fazendo? – pergunto.
— Nina, acorda!
— Am?
— Já passamos por isso, Nina, me deixa ir...
— O qu...
E antes que eu pudesse responder, um car-
ro vermelho passa por cima dele, sem mais nem
menos. Ninguém faz nada, ninguém se importa. E
quando percebo, já perdi todos os meus sentidos,
tudo escurece, tudo muda, e só consigo ouvir as
batidas de um coração em um monitor cardíaco,
parando...

82
Entre os ladrilhos do
banheiro

Isadora Pandini da Silva

Primeiro dia:
Estava no teto hoje. Primeira vez que o vejo,
creio que o outro morador se mudou. Tomou ba-
nho apático e quieto, parece ser mais frio que a
água gelada por conta da falta do gás.

Segundo dia:
Hoje escolhi observá-lo da parede. Tomou
novamente seu banho gelado.

Terceiro dia:
Ele veio hoje, parece um tanto quanto in-
quieto. Havia um pouco de sangue, acho que se
machucou. Tomou seu banho gelado.

Quarto dia:
Mesmo ele sendo quieto, não me expulsou
daqui. Ele está sendo uma boa visita, vem aqui
todo dia e mantém o banheiro úmido para meus
filhotes. Obrigada, moço.

Oitavo dia:
Como todos os dias desde sua chegada, to-
mou seu banho gelado.

83
Nono dia:
Hoje ele não apareceu, mas o ouvi brigando
com um homem. Ouvi também móveis quebrando
e parece que algo pesado caiu.

Décimo dia:
Seu banho foi demorado hoje, tinha gritos
e muito sangue. Deve ter se acidentado. Ele é um
bom cidadão.

Décimo segundo dia:


Ele apareceu novamente, parece sujo de
terra e mais cansado do que estava na última vez.

Décimo terceiro dia:


Vi pela janela algumas luzes coloridas, uma
linda mistura de cores quentes e frias. Pena que
logo depois teve briga de novo. Acho que bateram
nele.

Décimo quarto dia:


Hoje ele não estava, não ouvi nem ruídos
pela casa.

Décimo quinto dia:


Não o vi novamente. Vi flashes brancos, ouvi
vozes, mas nenhuma dele. Havia muitas pessoas
estranhas por aqui.

Décimo sexto dia:


Morri com o forte cheiro de formol. Espero
que ele esteja bem.

84
Um coração valente

João Augusto de Oliveira

Era uma vila isolada na Groenlândia, cerca-


da por uma imensa floresta. Mas havia algo es-
tranho acontecendo ali. Toda noite, os morado-
res ouviam barulhos assustadores que vinham
da floresta e sentiam uma presença sinistra. Eles
ficavam com medo e evitavam sair depois do es-
curecer. Logo, a cidade inteira estava tomada pelo
pânico e as pessoas começaram a inventar histó-
rias para explicar o mistério.
Um jovem chamado Lucas, um aventureiro
corajoso, não acreditou na conversa do prefeito e
decidiu investigar o que estava acontecendo. Ele
entrou na floresta preparado, já que treinava há
meses para esse momento. Levou consigo uma
lanterna e começou a seguir os sons estranhos.
Depois de muitas horas de caminhada, ele encon-
trou uma caverna escondida e decidiu entrar.
Lá dentro, um lugar escuro e repugnante,
ele encontrou vários restos mortais de animais.
Enquanto passava a lanterna pelas paredes, ele
sentiu uma respiração vindo de trás, uma criatura
misteriosa e assustadora, um animal que parecia
uma mistura de lobo com urso. Esse animal pu-
lou em Lucas e arranhou sua face com suas garras
afiadas. No chão e desesperado, ele estica a mão

85
para tentar alcançar um pedaço de osso que estava
ao lado dele. Usando a ponta do dedo, puxou para
perto e usou como uma arma, fincando na barriga
do bicho. Lucas estava ensanguentado e com uma
cicatriz na face que nunca irá abandoná-lo.
Ele, cansado, saiu da caverna. Ao chegar na
vila, foi recebido com admiração pelos morado-
res. Após contar o que ocorreu, a felicidade tomou
conta de todos.
Na semana seguinte, Lucas se recuperou e
decidiu seguir seu sonho de se tornar um caçador.
Sua coragem possibilitou que os moradores an-
dem com liberdade ao sair nas ruas, com a prote-
ção do grandioso caçador Lucas.

86
Parabéns pra você

João Pedro Tobias Felipes

Era finalmente o dia em que eu poderia ser,


pelo menos uma vez esse ano, a protagonista da
noite. Era o meu aniversário de 15 anos.
Estava tudo indo muito bem, afinal era uma
grande festa, ou seja, muitas coisas poderiam
dar errado, mas não. Graças ao bom Deus, estava
dando tudo certo.
Cumprimentei todos que haviam entra-
do na festa. Apertei mão a mão e abracei corpo a
corpo cada um dos convidados e agradecia a to-
dos por estarem ali naquele momento importante
pra mim. Porém, no meio da festa vi um casal de
idosos. Eram as coisas mais fofas do mundo. Es-
tavam abraçados e dançando uma música lenta,
só que eu não me lembrava de ter cumprimentado
eles e nem convidado aquele casal.
No dia seguinte, fui perguntar aos meus pais
sobre o ocorrido da última noite. Descrevi como
os dois eram e como dançavam. Minha mãe pa-
recia um pouco surpresa e em estado de choque,
mas ignorei e continuei contando o que vi. Em se-
guida, perguntei para eles se tinham visto esses
dois idosos na festa, e os dois falaram que não.
Como até então não tinha descoberto quem
eram os dois, fui olhar o álbum de fotos da nossa

87
família. Aí veio a surpresa. Aquele casal que vi na
minha festa era muito parecido com meus faleci-
dos avós, se não iguais.
Como eram avós por parte de mãe, fui per-
guntar a ela sobre, e ela me disse que, antes de eu
nascer, meus avós falaram a ela que iriam dançar
juntos na minha festa de 15 anos. Porém, eles in-
felizmente faleceram antes mesmo que eu tivesse
a chance de conhecê-los, mas hoje essa história é
um pouco diferente.

88
Seu Valdo, Feijão e a
árvore no fim da rua

Johanna Frischknecht Coelho

— Bom dia, Seu Valdo! Olá, Feijão!


Roberto, o porteiro, acena sorrindo de sua
mesinha. Feijão, o gato ruivo, logo se aproxima
para receber cafuné do homem, que o faz com
agrado.
— Bom dia, amigo! — Cumprimenta de
volta.
— Seu Valdo, tem um tempinho? Tava que-
rendo conversar algo com o senhor. — Sorri o
porteiro — O senhor pinta quadros, não? Bem, tá
aceitando encomendas?
— Olha, Beto, nunca pintei para vender.
Mas o que você gostaria que eu pintasse, especi-
ficamente? Talvez eu possa abrir uma exceção, há
uma primeira vez para tudo.
— Minha esposa queria uma pintura pra
colocar na sala, uma pintura da árvore no final da
rua. Meio específico, não? Mas soube que a árvore
é muito importante pro pessoal que cresceu aqui
no bairro. Ela costumava passar a tarde ali com
suas amigas.
— Bem que eu sempre pensei que aquele lu-
gar daria um bom quadro! — O senhor concorda,
sorrindo — Bem, vou passear com Feijão e posso
passar lá, fazer uns rascunhos e te trazer, pode

89
ser?
O porteiro acena com a cabeça e agradece.
Se demora no passeio, não só por Seu Val-
do e Feijão serem ambos senhores de idade, mas
também para aproveitar as paisagens e cumpri-
mentar os vizinhos. Quando chegam na árvore, se
senta no banco ao lado e tira do bolso um bloco de
notas e uma caneta.
Passado um tempo, Feijão sobe na árvo-
re, instigado com a animação dos passarinhos. A
árvore não era muito alta, porém forte e antiga.
“Ela também brincava ali”, pensou, se lembran-
do de sua amada. Deixou de lado seus rabiscos e
se aproximou de Feijão, deitado num galho baixo.
— Você sente sua falta também, né amigo?
— Acaricia o gato, que ronrona em resposta.
E então viu: Gravadas no tronco, alto sufi-
ciente para que tivesse de inclinar a cabeça para
ver, as iniciais “V+L”, contornadas por um cora-
ção malfeito. “Valdo e Laura”, pensou automati-
camente. Sentiu as lágrimas quentes molharem
suas bochechas, ainda perseguido pela saudade
que ela deixara.
Suspirou e, abraçado com Feijão, deixou o
lugar. Empolgado, e muito mais inspirado, para
começar a pintura.

90
Revivendo o passado

José Mariano Da Silva Néto

Era uma manhã fria de terça-feira, Livio


estava passeando pelo Colégio Adventista. O cli-
ma nublado junto ao local vazio culminava em um
ambiente melancólico. Livio vagava pelos corre-
dores, contemplava as salas vazias, ele fazia parte
daquele lugar. Embora o tempo tenha sido cruel,
na essência, tudo continuava igual. Livio não sa-
bia o porquê estava ali, muito menos como havia
conseguido entrar, sendo que já não era mais es-
tudante do local. Apesar do medo de ser encon-
trado “invadindo” sua própria casa, ele se encon-
trava tranquilo, apreciava cada momento. Para
ele, aquele lugar era como um museu, cada lugar
tinha a sua arte e, em sua mente, havia a descri-
ção de cada uma. A mesa de ping-pong, onde se
reuniam todos os garotos do 7º ano, a quadra com
grades de arame, onde cortou a mão e uma garota
do ensino médio lhe dissera que sangue tem gosto
de ferro, a sala de robótica, tão acolhedora quanto
comida de vó. Passara horas lá dentro.
Ele podia descrever cada lugar. Conseguia
ver as crianças correndo no parquinho, escutar os
burburinhos do intervalo, sabia encontrar a co-
leção completa de “Diário de um banana” na bi-
blioteca. Por mais que a nostalgia lhe libertasse

91
das correntes da preocupação, chegando a esque-
cer que não fazia mais parte daquilo, algo o in-
comodava. Dentro dele, memórias que ele mesmo
reprimia gritavam, o agitavam por dentro, como
se um furacão ventasse em suas entranhas. Era
ela, a pessoa que ele queria esquecer.
Ele jurou esquecê-la, a pessoa que ele tanto
amou e que, por sua ignorância, perdeu, que por
tantas vezes desejou consertar tudo, porém nun-
ca o fez. Tudo naquele colégio lembrava dela. Li-
vio não conseguiu contê-las e as memórias volta-
ram, todos os abraços, toda a implicância e todas
as zombarias, a forma como ela e só ela o deixava
sem jeito. Ele sabia que estava fadado a conviver
com este arrependimento para sempre.
Então, escorrendo lágrimas de seu rosto,
Livio rumava em direção à saída, tomando a ideia
de ir ali como estúpida. Perdido em seus pensa-
mentos, esbarra abruptamente em uma garota,
fazendo o som da batida ecoar.
— Livio?!

92
A corrida

Julia Barbosa Dorneles

— Boa sorte, Diego — diz Lucas, colocando


seus cabelos loiros e sedosos para trás.
Lucas e eu estamos empatados no número
de vitórias em corridas que disputamos juntos.
Hoje será a definição do melhor piloto.
— Que o melhor piloto vença — digo, colo-
cando o capacete sem desviar o meu olhar do seu.
Finalmente, o grande dia chegou. Duran-
te todo o ano, treinei para essa corrida, para essa
pista, para essa final. Estou muito ansioso, ner-
voso, sinto minhas veias pulsarem fortemente no
meu braço e na minha cabeça. Parece que a qual-
quer momento elas vão explodir como um vulcão
entrando em erupção e jogando lava para todo o
lado. Vejo meu carro parado na cabine da equipe,
é como se eu fosse fazer a minha primeira corri-
da novamente. Não é a minha primeira final, mas
por ser uma das pistas mais perigosas da histó-
ria do campeonato, torna tudo mais complicado e
com a sensação de ser novo nisso tudo.
Ouço um forte ronco vindo da minha es-
querda. Desvio o olhar do meu carro para a cabine
adversária, uniformes vermelhos cor de sangue.
Lucas, meu maior adversário, chegando com seu
carro fortemente equipado. Trocamos olhares

93
por 5 segundos até anunciarem para os pilotos se
prepararem para a corrida.
Os carros estão aquecendo o motor, cada
um na sua devida posição. Estou logo atrás de Lu-
cas, somos os dois últimos dos 25 pilotos.
Vermelho, laranja e...
Um barulho agonizante começa a tocar, um
som insuportável que me faz querer arrancar mi-
nhas orelhas. Olho para os lados com a visão tur-
va. Não vejo nada. Sinto minha respiração fican-
do fraca, como se estivessem me sufocando. Meu
corpo parece estar cada vez mais pesado e quente,
sinto que vou derreter. Isso não pode acontecer,
não agora, não na última etapa dos Jogos do Lim-
bo, ela não pode me levar agora.
Vejo um borrão se aproximando. É ela. De-
pois que ela ficou cara a cara comigo, eu posso
te dar uma certeza... que essa foi a minha última
corrida da morte.

94
A quadra 3

Júlia da Cunha Diniz

Estava em meu quinto dia de intercâmbio


na Coreia do Sul com os atletas de taekwondo. O
clima estava frio dentro e fora do ônibus em que
a equipe estava, e parecia que o ar quente que
exalava cheiro de Gelol só piorava a situação. Em
meus lábios secos, havia rachaduras. Ao passar a
língua para umedecê-los, senti um gosto de san-
gue misturado com manteiga de cacau, simples-
mente horrível. Estávamos saindo da cidade de
Incheon a caminho de Seul, local da competição.
O clima dentro daquele ônibus estava divertido,
pois estávamos rindo e jogando Uno, mas, por
outro lado, bem caótico. Os barulhos de mastiga-
ção daqueles que não precisavam perder peso se
misturavam com os dos estômagos dos que não
podiam nem beber água. Alguns até chorando es-
tavam.
— Parem de “mimimi”, porra! Se alguém
estiver acima do peso, eu faço ir correndo atrás
do ônibus até lá! — disse meu mestre, bravo com
a situação.
— Ninguém mandou vocês não chegarem
no peso antes de virmos, então CHEGA! — gritou
ele.
— É, vida de atleta tem seu lado bom, mas

95
pode ser bem tóxica às vezes — sussurrei.
Finalmente consegui avistar nosso destino,
no qual ficava de olho de cinco em cinco minu-
tos no Google Maps. Saí do ônibus tremendo de
frio misturado com ansiedade e fui correndo para
o alojamento. Enquanto estava me preparando
para a primeira luta, ainda com aquele gosto in-
suportável de sangue em minha boca (dessa vez
sem manteiga de cacau) que só me deixava mais
nervosa e me trazia uma sensação de perigo, es-
cutava minha música favorita do Shawn Mendes
para dar uma animada. A minha era a primeira
luta da equipe! Que azar do cão! Saí do vestiário
e vi meu nome em caixa alta no telão da quadra
3. Aquela era a hora de colocar tudo o que treinei
por dez anos em prática. Enquanto andava até lá,
sentia cada pedacinho do meu corpo tremer. Subi
no tatame e encarei minha rival. Ela era maior do
que eu estava esperando, tinha o rosto todo tatu-
ado e me dava muito medo, mas eu não podia de-
monstrar, mesmo com aquela vontade imensa de
vomitar. O tremelique que incluía até os dentes e
aquele gosto de sangue forte que vinha dos meus
lábios há horas se intensificaram.
— Sijag! — gritou o árbitro, dando sinal de
início à luta.
Aquela era a luta decisiva mais importante
da minha vida, e minha adversária era uma das
melhores lutadoras do mundo. Ficamos em po-
sição, até que as duas começaram a chutar. Pas-
saram-se sessenta minutos e estávamos em-
patadas. Era tudo ou nada. Entre as centenas de
chutes que demos uma na outra, senti algo muito
forte acertando minha mandíbula. A partir dali,
era como se tudo estivesse em câmera lenta e
meu cérebro permanecesse rodopiando sem pa-
rar, já não estava mais em mim. Conseguia ver

96
pequenos takes dos socorristas à minha volta,
como se aquilo tudo fosse um sonho. A única coi-
sa que sentia era como se estivesse flutuando nas
nuvens com aquele maldito gosto de sangue em
minha boca, que não saía por nada nesse mundo.
Será que vou poder terminar a luta? O que exata-
mente estava acontecendo comigo? Acredito que
minha maior rival era eu mesma.

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O vinho da descoberta

Julia Ieda Corrêa

Em uma sexta-feira treze exaustiva, Laura


chegou em casa, tomou vinho, deitou-se no seu
sofá branco e avistou um paletó sobre a mesa de
centro da sala. Apesar de ela sempre ver roupas
do seu marido jogadas pela casa, aquele paletó
intrigou Laura, como se ele aquecesse não so-
mente um corpo, mas sim uma alma pedindo so-
corro. Então, a doce mulher reparou o relevo no
bolso esquerdo da roupa e achou um pequeno pa-
pel com endereço desconhecido. Laura imediata-
mente pegou a sua bolsa, chave do carro e saiu em
busca do destino incógnito.
As ruas escuras, vazias e silenciosas eram
atordoadas pelo farol e angústia da moça. Após
um longo trajeto, Laura chegou no endereço. Era
um terreno abandonado, sem casa, pessoas e ha-
via somente lixo. Ela sentiu-se constrangida por
não confiar no seu parceiro, cogitar a hipótese de
uma traição e sair de casa em busca de uma res-
posta, pois seu relacionamento estava devasta-
dor. Sendo assim, Laura ligou o carro, foi rumo
a sua moradia e no meio do caminho parou para
comprar mais uma garrafa de vinho.
Chegou em casa, abriu a garrafa de vinho,
deitou no sofá e percebeu uma mancha bordô.

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Entretanto, a mulher não se lembrava de ter der-
ramado vinho, muito menos no seu ilustre sofá
branco, mas ignorou o esquecimento, até por-
que depois de algumas taças de vinho é comum
esquecer uma simples ação estabanada. Em se-
guida, ela foi até a cozinha buscar o pano para
limpar, ouviu um barulho, assustada olhou para
trás e viu seu marido, porém, ele estava diferente.
Antes mesmo de alguma palavra soar da boca de
Laura, uma desconhecida saiu do quarto do casal.
A desconhecida estava ensanguentada e foi nesse
momento que Laura entendeu a mancha bordô.
Não era apenas vinho, mas sim sangue. O deses-
perador silêncio foi baleado por uma arma calibre
38 e Laura sentiu um líquido quente escorrer pelo
seu pescoço.

100
Unidos

Júlia Machado Francioni

Corpo branco-acinzentado, com pequenas


manchas de coloração verde musgo, que se apa-
gam depois de tanto tempo. Sou quase todo for-
mado por cálcio, duro e quebradiço, exceto pelas
partes em que me faço almado. Diferentemente
da superfície, totalmente vívida, à qual me anexo,
não sou extenso e não sou único. E, apesar de meu
nome, Viator, descender de “viajante”, posso lhe
afirmar que assim não me possuo.
Admito, conheço todos os minuciosos deta-
lhes do sul da África, não por vontade ou admi-
ração, mas pela liberdade não ser algo inerente a
mim. Não tenho continente, mas meu limite ain-
da é o litoral, nem possuo nadadeiras ou formas
de mobilidade, mas ainda assim, continuo sendo
descolado a todo instante da minha vida. Minhas
opiniões são invalidadas a todo momento. E no
fim, continuo sendo uma insignificante Craca,
perto dela, uma imensa Jubarte.
A vida de cônjuge complicou-se com o pas-
sar do tempo. As mil e uma maneiras de me des-
vencilhar dela pairam na minha cabeça a todo ins-
tante. E não há sequer um minuto de minha vida
em que eu não pense na tranquilidade que trará a
solidão. A baleia, por outro lado, nunca pareceu se

101
atentar a isso, pelo menos nunca demonstrou no-
tar minha presença, mas de certo modo, também
não a nega.
Ainda assim, este não é meu lar, meu lar se
abriga longe daqui, é mais calmo, manso e liberto.
Já com ela, me vejo em tumulto metade do tempo.
E, se sequer me movimento, minha sobrevivência
há de ser sempre da conta dela. É cogitando me
soltar que observo um escape perfeito. Sem chan-
ces de haver falhas, e minha única opção restante.
A jubarte calmamente passa por uma es-
treita e longa via, formada inteiramente de co-
rais, pálidos, mas ainda vivos e afiados. Para mi-
nha sorte, localizo-me perto de suas guelras, na
lateral. E cada vez mais, o objetivo fica ao meu al-
cance. Nem mesmo tenho que aguardar muito até
que, acidentalmente, uma pancada forte me faça
bater de frente com um deles. Meu corpo, que an-
tes grudado, agora afunda, solto pela imensidão
do mar.
Percebo então que não consigo sair da mi-
nha rota ou tentar aderir a um novo ser. A turbu-
lência para de vez, e por todo o meu caminho até
o chão, me faz falta o agito. O que antes me fazia
preso, agora me ata a um novo destino. A morte é
inevitável, e agora, é também solitária.

102
O dia após a morte da
vovó

Julia Michels Duarte

Bom dia. Hoje, sem pontos de exclamação.


O motivo da felicidade no final da frase de bom
dia não está mais aqui para me alegrar. Levanto
e espreguiço. A roupa de cama está úmida, meu
pijama com desenhos relacionados à masculini-
dade, todos em tons de azul, também molhado,
corpo suado. Que noite.
No caminho do banheiro, percebo estar so-
zinho na casa. O sol das 8 toma conta do aparta-
mento no sexto andar. Aquela luz me obriga a es-
fregar os olhos.
Em cima da cama, um álbum de fotos. A
curiosidade e o ambiente ensolarado após uma
noite tortuosa de tempestade dizem para folhear
aquele álbum. Isso vai me machucar, mas eu ain-
da sinto algo? Sentado na cama do outro quarto
com todas as cortinas, a luz do sol caía leve sobre
as fotos.
Fotos, momentos, lembranças. Sensações
como aquela não irão mais voltar. Tudo já se per-
deu, as coisas nunca mais serão as mesmas.
No dia após a morte dela, ainda sinto seu
cheiro, mas não a vejo. Tenho medo de me es-
quecer de você. No meio do álbum, uma carta, um
poema escrito por você. Sua letra inconfundível

103
é quase indecifrável. A mensagem dela era para
mim.
“Você tem que se forçar a gostar de chá.”
Era a última frase. Você se foi cedo demais para
me ensinar a gostar desse líquido desagradável.
Toques na porta. Minha mãe chegou sem eu
nem reparar.
— Você está aí ainda? — suspirou e sorriu.
— Ela está em um lugar melhor agora.
Aquelas palavras pesaram, chegando até a
embrulhar meu estômago. Como ela superou tão
rápido a morte da própria mãe? É muito recente
para se superar, não faz nem 24 horas que ela se
foi.
Minha mãe se dirige em minha direção,
vendo-me com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Já faz 3 anos, meu amor.
Meu pijama azul não me serve mais, mas
essa dor cresce acompanhando meu corpo.

104
Meu grande amigo

Julia Nagel

Próximo ao crepúsculo, meu futuro grande


(bem grande) amigo passava pelo mesmo cami-
nho já trilhado, onde a mata se iniciava e ia de en-
contro ao caminho de chão duro, ressecado, cin-
zento e escaldante que raramente era usado por
seus parentes distantes, menores, mais fracos e
sem graça. Da minha toca, eu ouvia suas vibra-
ções crescentes projetadas no chão, que anuncia-
vam sua chegada. Ele ficava pouco, como se sem-
pre tivesse pressa ou fugisse, sendo uma versão
diferente, mais robusta, rápida e pesada desses
parentes.
Eu estava determinado a conquistar sua
amizade, uma vez que todas as interações foram
falhas. Embora fizesse muito barulho ao cor-
rer, eu só o ouvi falar uma única vez. Imagine só
que grande honra para esse pequeno tatu ter um
enorme amigo imbatível a quem eu poderia ca-
rinhosamente saudar diariamente, antes de me
recolher para dormir.
Já havia gastado muitos dias esperando-o
passar para tentar decifrar melhor o que ele era
ou com quem se parecia, chegando à conclusão
de que sua aparência era semelhante à minha. Ele
também possuía uma carapaça, porém a dele pa-

105
recia bem mais forte, escura e brilhante, além de
cobrir mais seu corpo. Depois de notar isso, me
senti feliz e ainda mais encorajado em tentar me
comunicar.
Dias após esses fatos, decidi entrar em seu
caminho, de maneira segura, claro. Já que sempre
seguia seu caminho de maneira meticulosamente
igual, eu não sabia como ele iria reagir e eu não
queria irritar meu futuro amigo. Tinha a impres-
são de que ele corria infinitamente.
Ao sentir sua chegada, subi em cima do ca-
minho traçado por onde ele corria, aguardando
nosso encontro. E de longe avistei-o, meu futuro
gigante amigo, vindo a toda velocidade. Minhas
expectativas foram se esvaindo ao mesmo tem-
po em que a ansiedade vinha. Me frustrei quando
sua velocidade não diminuiu e não houve sinal de
apresentações de sua parte. Até que aquele sopro
gritante e amigável e uma grande nuvem foram
emitidos. Saí rapidamente (e muito feliz) de seu
caminho com uma corridinha, antes de ser atin-
gido, e me pus a comemorar. Ele finalmente falou
comigo, mesmo que tenha sido uma das raras ve-
zes.

106
O muro verde

Júlia Schaffer Campelo

Atravessei a rua, olhei o relógio: 19:37. Me


deparei com ele, me encarando, me falando como
eu era incapaz de atravessá-lo. O muro verde do
cemitério, sempre lá.
Atravessei a rua, olhei o relógio: 19:37. Pas-
sei sem olhá-lo dessa vez, não agora, não hoje.
Sentia o peso da minha mochila me puxar pra
baixo, cada passo era uma vitória. Não agora, não
hoje.
Atravessei a rua, olhei o relógio: 21:30. Es-
tava atrasada, eu nunca me atraso. Mas hoje foi
diferente. Cinco minutos antes do meu horário
de sair, meu chefe pediu para arrumar a papelada
dele. Eu sou radialista.
Como sempre, lá estava o muro verde. Um
dos muros que eu nunca conseguiria ultrapassar.
Sempre lá, um desejo sendo contido em nome da
normalidade, uma incógnita. Senti algo se apro-
ximando de mim, algo reconfortante. Uma onda
de luz ardente me conectando ao cemitério. Eu
entrei. Com certeza, o passo mais sincero de toda
minha vida. “Meu Deus, Alice, o que você tá fa-
zendo nesse lugar?” Minha mente pensou, mas
eu não sabia. Eu estava procurando algo? Ou só
curiosa? Que tipo de pessoa mórbida tem curiosi-

107
dade para entrar aqui? Eu, aparentemente.
21:45. O ar era gélido e cheirava a crisânte-
mos. Tantas histórias acabadas aqui, tantos finais
ruins. Um túmulo me chamou atenção: Lia Schä-
ffer. “Se você não luta por nada, pelo que cairá?”
“Pelo que você cairá, Alice? Se é que és sig-
nificante ao ponto de alguém te derrubar”. Uma
voz cruzou minha alma e escorreu o resto pra
longe.
— Não cairei, não antes de ser alguém! —
disse, quase rindo. Minha voz interna até parecia
real hoje.
— Já não és alguém? Digo, comes, bebes e
andas. Não seria isso um alguém? — disse a fi-
gura esbranquiçada sorridente saindo do túmulo
com os dizeres.
Corri o mais rápido que pude. Três segun-
dos depois eu estava em casa, sem fôlego algum.
Eu estava louca, entrando sorrateiramente em
cemitérios e falando com mulheres mortas.
O peso venceu; a mochila naturalmente pe-
sada, o fracasso, a rotina, o medo, a parede de
vidro que me separa deles e agora a loucura. Eles
venceram. Eu me sentei no chão da pequena sala.
É por isso que eu cairei, fardo de nunca ter sido
alguém.
Atravessei a rua, olhei o relógio: 19:37. Sem
mais muros verdes, eu mudei de caminho. Mas a
mochila pesada continuava lá.

108
Amor e amizade na
mesma pessoa

Kailani Clementino

Era uma vez uma garota chamada Larissa


que tinha um melhor amigo chamado Guilherme.
Eles cresceram juntos, compartilhando muitas
aventuras e momentos felizes. Larissa nunca ha-
via pensado em Guilherme de uma maneira ro-
mântica antes, mas tudo mudou quando eles en-
traram na adolescência.
Lari começou a notar Gui de uma forma di-
ferente. Ela não conseguia deixar de pensar nele
e sentir um frio na barriga sempre que estavam
juntos. Ela se perguntou se estava se apaixonando
por ele.
Mas ela tinha medo de arruinar sua amiza-
de com Guilherme, então tentou esconder seus
sentimentos. Ela se convenceu de que era melhor
manter tudo em segredo e tentar ignorar seus
sentimentos.
No entanto, Lari não conseguiu resistir por
muito tempo. Ficava em seu quarto vendo fotos
e vídeos deles juntos e pensando em seus senti-
mentos por ele. Ela finalmente decidiu contar a
Guilherme como se sentia. Ela ficou nervosa en-
quanto falava com ele, temendo que ele não sen-
tisse o mesmo. Mas, para sua surpresa, Gui disse
que também tinha sentimentos por ela.

109
Larissa ficou radiante de felicidade. Ela
nunca se sentira tão feliz e completa antes. Gui
era seu melhor amigo, mas agora ele era muito
mais do que isso. Eles começaram a namorar e
Lari sentiu que o mundo inteiro parecia mais bri-
lhante e cheio de possibilidades.
No entanto, a relação deles mudou. Eles se
tornaram mais tímidos e reservados em torno um
do outro, e Lari, que sempre foi tão ela mesma e
não fazia esforço pra agradar seu melhor amigo,
sentiu que havia perdido um pouco de sua cone-
xão com Guilherme. Eles tentaram trabalhar nis-
so, mas acabaram se separando alguns meses de-
pois.
Larissa ficou triste por um tempo, mas ela
sabia que tinha feito a coisa certa ao dizer a Gui-
lherme como se sentia. Ela sempre seria grata
pela amizade que compartilhavam, mesmo que
não pudessem ser um casal. E ela sabia que, um
dia, encontraria alguém que a amasse do jeito que
ela merecia.
Eles sempre foram tão próximos e se deram
tão bem, mas o sentimento estragou tudo. Guar-
davam as coisas para si mesmos, para não mago-
ar um ao outro e acabar sendo chato, e aos poucos
foram se afastando e perdendo o brilho. É uma
pena, mas é só mais uma história de amor entre
milhões.

110
O encanamento

Lara Isabelle Lui Feltraco

Em meio a calçadas irregulares e grandes


casarões antigos, chegam na pequena cidade Pe-
dro e Larissa, um casal que veio com objetivo de
cursar a faculdade. Larissa gostou de uma casa
mais afastada, pertencente a uma família rica,
herdeiros da coroa real espanhola, porém a fa-
mília foi dada como desaparecida há mais de 50
anos. Ao longo do tempo, a casa, antes nobre com
madeira cara e móveis luxuosos, perdeu seu va-
lor e foi vendida ao casal pela metade do preço.
Depois de muita conversa, decidiram ficar com
a casa e se mudaram no mesmo dia, porém uma
coisa chamava atenção: uma grande infiltração
na parede da cozinha.
Larissa, animada, falou: “Nada que um bom
encanador não resolva, né!?”
Pedro, meio desconfiado, respondeu: “Sim,
mas fiquei pensando sobre a família, como po-
dem todos estarem desaparecidos até hoje.”
Durante a noite, a casa era barulhenta como
uma orquestra, mas com o tempo o casal se acos-
tumou e, aos poucos, foram se instalando com-
pletamente. Algo que incomodava muito, princi-
palmente Pedro, era a infiltração na cozinha, que
tinha um forte cheiro e uma grande mancha na

111
parede da casa. Na mesma semana foi encontra-
do um encanador conhecido na cidade para final-
mente arrumá-la. Meio preocupado, o encanador
falou:
— Vamos precisar quebrar a parede...
— Desde que você tire essa coisa horrível da
parede, pode fazer o que precisar!
Conforme o encanador quebrava a pare-
de, o cheiro aumentava e Larissa estava cada vez
mais agitada, confusa, e Pedro estava na mesma.
Decidiram terminar a mudança para se distrair,
quando em um momento escutam um grito. Era o
encanador. Foram correndo ver o que aconteceu e
se deparam com toda família desaparecida, todos
mortos dentro da parede da própria casa. Aqui-
lo foi assustador... Larissa foi correndo chamar a
polícia e em questão de minutos, o achado da an-
tiga família estava sendo comentado por todo o
país. Pedro e Larissa receberam milhares de pro-
postas de compra para a casa. Além da família que
fazia parte da história da Argentina, pertences
raros como moedas e roupas também interessa-
vam o governo e museus argentinos. Quem diria
que uma grande infiltração causaria tanto alvo-
roço na vida do casal.

112
Debate da minha vida

Larissa Kangerski Lana

— Já falei que odeio você?


— Muitas vezes — respondeu Jack, depois
de dar um péssimo argumento na minha aula de
Debate.
Amo essas aulas. Quero ser uma advogada.
Defender e rebater são minhas melhores quali-
dades. O sino da escola bateu aliviado por ser a
última aula da semana. Estava caminhando pelo
corredor quando esse moleque insuportável veio
me atormentar de novo falando alguma coisa que
eu só ignorei.
Fui a uma festa sexta-feira, estava feliz. Tão
feliz que fiz decisões sem pensar. Encontrei Jack,
começamos a conversar de uma forma civiliza-
da, algo que nunca ocorreu. Entre beijos e bebidas
muita coisa aconteceu.
— Estou grávida! — Meu desespero estava
bem nítido a qualquer um que me olhasse.
Havia se passado dois meses daquela festa.
Faltei muitas aulas por estar enjoada, mas essa
possibilidade era a última que queria acreditar.
Aquela aula em que falei que odiava Jack debate-
mos sobre aborto. Dei muitos argumentos contra.
Ele, por sua vez, me chamou de idiota, disse que
sou sem empatia e nunca me coloquei no lugar

113
de uma mulher passando por essa situação. Bom,
agora me coloquei. Literalmente.
Hoje na aula contei para Jack e pela pri-
meira vez concordamos em algo: não saber o
que fazer. Sinto minha carreira de advogada indo
pro ralo. Não quero construir uma família ago-
ra, ainda mais com alguém que eu não gosto. Por
outro lado, sentirei uma culpa eterna se abando-
nar a criança que sinto estar crescendo dentro de
mim. Entrei em um grande debate e minha vida
que está em jogo. A conclusão desses argumen-
tos, gerados por mim mesma, vai afetar o futuro
de outras pessoas também. Que comece a batalha.

114
Mudanças

Laura Patissi Vegini

Por dois meses, eu e Ben nos falávamos todo


dia. Tentei ficar feliz porque ao menos tínhamos
aquilo. Mas como cada dia terminava sem ele ao
meu lado, a raiva em mim cresceu. Minha raiva
pela minha mãe aumentou por ela fazer a gente se
mudar para o outro lado do mundo, mas também
reconhecia que ser mãe solo nos Estados Unidos
não estava sendo fácil. Mas ainda sim meu lugar
era nos Estados Unidos.
Eu amava Ben, era um sentimento que eu
nunca havia sentido antes, sempre quando eu o
via, ou quando ele me abraçava, borboletas apa-
reciam em meu estômago. Não conseguia ima-
ginar uma vida sem ele, sem seu sorriso e suas
piadas. Seu jeito doce me encantava, aqueles cin-
co anos de namoro com ele foram os mais felizes
da minha vida, eu sabia que podia contar com ele
para tudo.
Então, um dia Ben não respondeu minhas
mensagens. Ele desapareceu da minha vida. Por
três anos ele me deixou sozinha em outro conti-
nente, imaginando o que eu tinha feito de errado.
Até eu voltar aos Estados Unidos e vê-lo de novo.
Parecia que nada tinha mudado, que ainda está-
vamos juntos e que nunca havíamos nos separa-

115
do.
Cansada, depois de uma semana, fui até sua
casa tirar todas as minhas dúvidas, acabar com
todos aqueles pensamentos e sentimentos de
culpa, mesmo sem ter feito nada.
No caminho para sua casa comecei a ques-
tionar se aquilo era realmente uma boa ideia. Ha-
via passado três anos, eu também mudei, não sa-
bia se eu seguia minha vida ou iria atrás dele.
Mas quando eu vi suas flores favoritas sen-
do vendidas em uma floricultura, tive certeza de
que estava fazendo a coisa certa, afinal, eu o ama-
va e precisava dele de novo.
Comprei suas flores e segui o caminho até
sua casa. Na frente dela estava sua família, todos
vestidos de preto e com semblantes tristes. Esta-
vam de luto, mas por quem?
A mãe de Ben me viu e veio me abraçar pe-
dindo desculpas. E então ela me disse:
— O Ben estava muito doente, ele não que-
ria te prender e nem magoar você, por isso ele se
afastou de todos nos últimos três anos.
— Como assim? Onde ele está agora? —
perguntei, eu estava em choque.
— Ele faleceu esta manhã, Lina. — sua mãe
disse, chorando.
Depois de ouvir isso, algo dentro de mim
morreu naquele dia.

116
A caçada de Jorge

Leon Krischnegg Da Silva

Jorge sempre sonhou em capturar um orni-


torrinco, um animal raro e exótico que ele ouviu
falar em um programa de televisão sobre a vida
selvagem. Ele tinha passado meses planejando
sua viagem à Austrália, comprando todo o equi-
pamento necessário para a caça. Finalmente, ele
estava pronto para a aventura.
Ele passou dias percorrendo os pântanos
e rios da Austrália, procurando pelo ornitorrin-
co. Mas o animal parecia estar sempre um pas-
so à frente dele. Jorge estava ficando frustrado e
exausto. Ele não tinha ideia de como capturar o
animal, mas estava determinado a não desistir.
Um dia, Jorge decidiu montar uma armadi-
lha para o ornitorrinco. Ele construiu uma jaula
com frutas e peixes como isca. Ele esperou pa-
cientemente, mas o ornitorrinco nunca apareceu.
Ele decidiu esperar mais um pouco, mas acabou
adormecendo.
Quando ele acordou, ele viu uma cena ina-
creditável. O ornitorrinco havia entrado na arma-
dilha e estava sentado dentro da jaula, comendo
a comida. Mas, para surpresa de Jorge, o animal
havia vestido uma jaqueta e óculos escuros!
O ornitorrinco começou a falar com Jorge

117
em inglês perfeito:
— Desculpe-me, amigo, mas eu não pos-
so ser capturado. Tenho uma reunião importante
hoje à tarde, e não quero me atrasar.
Jorge ficou perplexo, sem saber o que dizer.
O ornitorrinco agradeceu a comida e saiu da jaula,
deixando Jorge sozinho e confuso. Jorge percebeu
que ele havia passado todos esses dias procuran-
do por um animal que era muito mais inteligente
do que ele imaginava.
Ele riu de si mesmo e decidiu desistir da caça
ao ornitorrinco. Jorge voltou para casa com uma
nova perspectiva e a lembrança de um encontro
muito estranho com um animal ainda mais estra-
nho.

118
Sinfonia do abismo
azul

Leonardo José De Santana

Lilly acordou repentinamente no meio da


noite, como se uma tempestade tivesse invadido
seus sonhos. Ela ouviu vozes estranhas na sala,
como ondas batendo na praia, e seu coração foi
tomado por uma torrente de medo. Ela tentou
afugentar o pesadelo, mas o silêncio profundo
da sala a trouxe de volta à realidade. Lilly decidiu
navegar no escuro e investigar a origem daquela
tempestade.
Do outro lado do corredor, Lilly percebeu
que a luz da cozinha brilhava como uma estre-
la solitária no horizonte. Há algo lá. Seu coração
batia mais rápido e o mar mental estava agitado.
Lilly procura manter a calma e se aproxima cau-
telosamente, como um navio tentando não afun-
dar em um oceano agitado. Quando ela chegou à
porta, viu um homem desconhecido se esgueirar
em suas gavetas como um tubarão em busca de
uma presa.
Lilly gritou, como um farol avisando dos
perigos da deriva, e o homem virou-se para en-
cará-la. Ele era alto e magro, com uma aparên-
cia sólida como uma rocha. Estúpida, sem saber o
que fazer, tentando escapar, como um rato ten-
tando escapar de um gato grande e perigoso, foi

119
facilmente apanhado pelo homem. Ele agarrou o
braço dela, como um marinheiro agarrando uma
corda em uma tempestade, e arrastou-a de volta
para a cozinha.
O homem a apertou contra a parede e sus-
surrou em seu ouvido:
— Fique quieta e faça o que eu digo. Se você
não quer se machucar, não tente nada estúpido.
Lilly começou a tremer, como num furacão.
Seu coração batia descompassado, como se esti-
vesse sendo arrastado pela corrente. Não sabia o
que o homem queria, mas sabia que corria perigo,
como um barco em águas traiçoeiras.
— O que você quer de mim? — ela pergun-
tou, tentando manter a voz firme, como um farol
ainda sinalizando por socorro. O homem zombou,
como um tubarão atacando sua presa.
— Quero seu dinheiro, suas joias, qualquer
coisa de valor para você. Se você fizer algo errado,
eu vou matar você.
Lilly fechou os olhos e respirou fundo, como
se estivesse se preparando para sobreviver. Ela
precisa manter a calma e encontrar a saída, como
um barco tentando escapar de um vórtice mortal.
Ela vira seu pescoço lentamente até uma janela
com uma brecha aberta e fria, ela precisa escapar.
Lilly, então, chuta as genitálias do homem e tenta
escapar.
Ou o peixe sai do aquário, ou o tubarão exe-
cuta a presa.

120
Histórias que deixei de
contar

Letícia Blenke Dos Santos

23/02/1963:
Diariamente, o jovem escritor Miguel vai
para a calçada de sua casa. E quando seus ágeis
olhos pousam sobre alguém, ideias surgem com
tanta rapidez que acaba sendo difícil acompanhar
o ritmo de suas ideias com o virar de páginas de
seu bloquinho.
Então, a garotinha que ele vê regularmente
começa a andar em sua direção. Quando chega, o
faz uma pergunta:
— Moço, o que é tão interessante que você
não para de anotar nesse bloquinho?
— Exercício. Gosto de criar histórias para as
pessoas que passam por aqui. — Miguel afirma.
— Só observo e crio. Por exemplo, aquela senhora
passa por aqui todas as quartas às 9:30 da manhã.
Eu a chamo de Neuza, ela tem 65 anos e está indo
para seu curso de crochê. Tá vendo aquele rapazi-
nho? Ele se chama Pablo, tem 12 anos e está sem-
pre atrasado para o futebol porque seu pai sempre
sai tarde do trabalho.
A garotinha o encara e logo em seguida diz:
— Então se você cria histórias para quem
passa por aqui, qual é a minha história?
— Por que eu contaria? A parte instigante é

121
criar histórias mirabolantes com a consciência de
que alguém que me inspirou não irá descobrir. É
um segredo que eu guardo de um estranho.
— Justo — diz a garotinha — Quem sabe
um dia você publica uma dessas histórias!
A garota solta uma leve risada e sai saltitan-
do de volta para casa. E Miguel continuou ali, ob-
servando o mundo acontecer ao seu redor.

??/??/2023:
O jovem criativo que habitava aquele cor-
po se foi junto do dia em que foi reconhecido que
lembranças iriam fugir das gavetas de sua mente,
para sempre.
Os dias passam e ele continua estagnado em
um mesmo ponto: a calçada em frente à sua casa.
O homem que vemos agora não vê as horas
passarem e acaba esquecendo o propósito de es-
tar ali. A cadeira em que ele se senta criou longas
raízes no asfalto e seu oportuno bloquinho se en-
contra em branco, apenas com rabiscos feitos em
momentos de pouca lucidez que ainda lhe resta.
E sua vida se torna apenas uma história,
sendo observada e esquecida por ele e todos à sua
volta.

122
O chalé

Letícia Rodrigues Lucindo

Naquele dia frio, tocando “Dreams Become


Real” de Kevin MacLeod na vitrola, o vento so-
prava com uma intensidade que dava arrepios.
As árvores se retorciam e as folhas balançavam
fortemente. Naquela noite, a lua escondia-se, e a
única luz era do chalé dos Allans no meio daquela
floresta. O casal tinha se mudado há uns seis me-
ses. A princípio, eles acharam tudo muito diverti-
do. Porém, com o passar dos dias, Barry começou
a sentir uma presença estranha que o deixava an-
gustiado.
Por mais que o vento soprasse e a música
tocasse, o silêncio da floresta era endurecedor e
pesado. Enquanto isso, na sala de estar, Barry to-
mava um chá e, pela janela, observava as árvores
balançando. Ao mesmo tempo, olhava para sua
esposa, que dormia na poltrona do outro lado da
sala.
De repente, a música falhou. Um vulto emer-
giu da terra, saindo do meio dos galhos das árvo-
res. Ele se movia lentamente e com uma intenção
maligna, se aproximava. Tocava “Thrilling” de
Victor Butzelaar. Barry sentiu um calafrio e seu
coração acelerou novamente.
Uma voz sussurrou em seu ouvido. Era a voz

123
doce de alguém que já estava morto há um bom
tempo, mas que ainda não tinha encontrado sua
paz. Barry estava com medo e paralisado. Mas sua
esposa não estava lá para confortá-lo, ela não es-
tava dormindo, ela sequer estava no chalé.
Lia estava em sua frente, do outro lado da
janela, sussurrando em seu ouvido. O vulto era
ela, Lia, seu amor. Saía todas as noites de trás
daqueles galhos, onde tinha sido assassinada,
morta pelo seu amor. Alta e esquelética, seis me-
ses atrás, buscava vingança contra ele, seu amor,
Barry.

124
A menina que engolia
o choro

Luana Dellandrea Da Costa

Em uma pequena casa, morava uma garo-


ta com uma boca muito grande. A garotinha era
muito pequena, mas dentro de si carregava tantas
lágrimas engolidas que se tornou difícil para ela
andar, pois seu corpo estava muito pesado. A ga-
rota queria tanto chorar todos os dias e lamentar
por estar sozinha, mas fazia tanto tempo que não
chorava que acabou se esquecendo de como cho-
rar.
Certo dia, a garotinha implorou aos céus que
a ensinassem a chorar. No mesmo instante, a ja-
nela de seu quarto se abriu suavemente, deixan-
do a brisa da noite entrar junto com uma mulher
misteriosa. A garotinha se assustou e se encolheu
no canto de seu pequeno quarto.
— Achei que queria minha ajuda — falou a
mulher.
— A senhora pode me ajudar? — pergun-
tou, aflita.
A moça com longos cabelos pretos sorriu e
acenou em afirmação. Em um piscar de olhos, a
boca da garotinha desapareceu.
— Agora podes chorar à vontade, não have-
rá mais boca para engolir suas lágrimas.
A menina, assustada, desatou a chorar.

125
Quando percebeu que as gotas que escorriam de
seus olhos não eram engolidas por sua boca gran-
de, chorou ainda mais de alegria e, quando acabou
suas lágrimas, percebeu que seu corpo já não pe-
sava tanto. A mulher sorriu e devolveu uma boca
menor para a garotinha.
— Chore, mas não até secar por dentro — a
bruxa disse e saiu pela janela.

126
Espectro de medo

Luana Firmo Pereira Pinto

Marcela estava sozinha em casa. Era uma


noite cheia de escuridão e uma tempestade en-
volvia seus ouvidos. Algo parecia estar errado, por
mais que ela tentasse ignorar o som do vento ui-
vante lá fora, enrolando-se em seu cobertor. Um
arrepio subiu pela sua espinha e, de um momento
para o outro, ela passou a sentir que alguém a es-
tava observando.
De repente, um grito esganiçado ressoou
pelo ar, e Marcela saltou da cama com o susto.
Ela correu em direção à saída, mas a porta esta-
va trancada. Ela havia ficado presa dentro de sua
própria casa, com algo aterrorizante lá fora a se
encarar.
Ao ouvir passos pesados no corredor, a por-
ta do quarto se abriu lentamente, rangendo. Ela
prendeu a respiração quando um espectro negro
surgiu na porta, uma sombra fantasmagórica es-
cura, que parecia não ter forma ou rosto.
Marcela gritou, buscando socorro, porém
o espectro continuou avançando, pairando sobre
ela, que logo se encolheu em um canto, esperan-
do por sua morte. A sombra a cercou, e ela sentiu
uma sensação de vazio que percorreu todo o seu
corpo.

127
Em um instante, a sombra desapareceu em
um breu, e Marcela se viu só em seu quarto. Ela
buscou algo que explicasse o que havia aconte-
cido, mas não havia nada que esclarecesse aque-
la situação. Marcela não conseguia digerir o que
ocorreu, mas ela sabia que algo inédito tinha
acontecido naquela noite.
A partir desse momento, Marcela passou a
buscar alguma companhia nas noites escuras de
sua vida. Ela ficou perturbada pela lembrança da
sombra por semanas, mas nunca mais foi visi-
tada por tal. Alguma parte de seu corpo indicava
que a sombra ainda estava lá, esperando no breu,
pronta para voltar a qualquer momento. E aque-
la visita ficou marcada em suas lembranças para
sempre, a terrível noite em que seu mundo foi in-
vadido por algum fantasma do passado.

128
Vinho na parede

Luana Gonçalves Malaquias

Não é possível que me submeti a esse tipo


de coisa por tanto tempo. Tom é um boçal, e eu
não quero ficar nem mais um minuto em sua casa.
Depois de segundos eternos em silêncio, enca-
rando a mancha de vinho em seu papel de parede
bege, decido que o melhor a fazer é pegar minhas
coisas e ir embora.
Já no carro, a cena em que eu estava minu-
tos antes se repetia em minha mente sem parar,
fazendo com que minha consciência se tornasse
um lugar cansativo e angustiante. Lembrava sem
parar de Tom gritando comigo e me xingando,
mas o que mais me marcou foi a cena da garrafa
de Frontera sendo estilhaçada ao entrar em con-
tato com a parede e a mancha bordô se instalan-
do. Essa mancha. Ela não para de passar em mi-
nha cabeça.
Ao chegar em casa, tiro meus saltos e abro
uma garrafa de whisky. A única coisa que vai me
fazer esquecer os acontecimentos de hoje e talvez
me dar sossego pra dormir é a boa e velha dose de
whisky Blue Label.
Após algumas doses de whisky, escuto ba-
tidas na porta que mais parecem estar em mi-
nha consciência do que na porta de fato. Vou até

129
a porta e, quando a abro, não há ninguém. Olho
para os lados, mas nenhum sinal de nada. Até que
olho para baixo, e me deparo com uma mancha de
sangue, do exato formato de meu salto, em dire-
ção ao interior de minha casa.
Entro em pânico instantaneamente quando
percebo o que fiz, como um lapso de consciên-
cia. Aquele sangue de meus sapatos, que agora eu
percebia em meus braços, era o sangue de Tom.

130
O vazio

Lucas Fernandes Nunes

Augusto estava sentado em sua nave, pron-


to para decolar em direção à Estação Espacial In-
ternacional. Ele estava animado para finalmente
realizar seu sonho de se tornar um astronauta e
explorar o espaço. Verificar se tudo estava em or-
dem era um ritual necessário e ele certificou-se
de que todos os equipamentos estavam em per-
feito funcionamento antes de decolar.
Quando ele chegou à EEI e tentou acoplar
seu módulo à estação, algo deu errado. A conexão
não foi perfeita e Augusto não conseguiu entrar
na estação. Ele tentou várias vezes, mas não teve
sucesso. Ele percebeu que, se continuasse tentan-
do, poderia causar um grande problema e colocar
em risco a vida de todos a bordo.
Augusto começou a refletir sobre sua vida.
Sempre foi uma pessoa apressada, sempre cor-
rendo para atingir seus objetivos sem aproveitar
plenamente o momento presente. Ele também era
bastante introvertido e gostava de passar o tem-
po sozinho, mas agora percebeu o quanto isso o
impedia de aproveitar a vida com outras pessoas.
Percebendo que não conseguiria entrar na
estação espacial, Augusto tomou uma difícil de-
cisão: ficaria em seu módulo, longe de todos, e

131
esperaria que outra nave viesse resgatá-lo. Ele
sabia que não sairia vivo dessa situação, mas não
queria arriscar a vida de seus colegas.
Enquanto esperava, pensou em tudo o que
gostaria de ter feito na vida. Arrependeu-se de
não ter passado mais tempo com a família e ami-
gos, de não ter feito viagens e experiências incrí-
veis. Mas ficou satisfeito por ter tido a coragem
de tomar a difícil decisão de não colocar em risco
a vida de seus colegas.
Então, Augusto infelizmente faleceu sozi-
nho em seu módulo, mas com a consciência tran-
quila de que havia feito a escolha certa. Sua vida
pode não ter sido perfeita, mas ele estava feliz
com o que era capaz de fazer. E assim, seu espíri-
to juntou-se às estrelas, onde sempre quis estar.

132
A cabana

Lucas Vinícius Grippa

Em meio à nevasca, desviado da estrada e


desnorteado pela descoloração alva que me en-
volvia como um borrão, meus pés cediam ao can-
saço de meu corpo, quando o castanho lenhoso
dos caules pareceu abrir os meus olhos. Uma cla-
reira se revelou para mim, a ventania álgida per-
correu por entre meus ossos, atravessando a mi-
nha espinha como um sussurro, conforme seguia
pela trilha de pegadas recentes até uma cabana,
um sentimento de reminiscência se apostava em
mim.
Adentrei a porta entreaberta da pequena
cabana sem receio, o lugar, apesar de abafado e
úmido, era familiar como se eu estivesse conec-
tado. A cabana aparentava ser pequena em seu
exterior, porém, surpreendentemente, o interior
era espaçoso, mas o ar parecia cada vez mais rare-
feito e uma sensação de sufocamento aumentava
a cada passo que dava, explorando cada centíme-
tro daquela cabana, sem uma alma viva ali dentro.
Aos poucos, a neblina em minha mente ha-
via dissipado totalmente, revelando os detalhes
não vistos que eu decidi ignorar inconsciente-
mente. As cores da cabana estavam se ausentan-
do, o abafado se tornando indiferente e a porta

133
fechada se entreabriu novamente, como se eu ti-
vesse me tornado um desconhecido pela cabana,
a familiaridade se tornou estranheza.
Olhei para meus pés e vi neve congelando,
recordando que precisava sair dali o mais rápido
possível, mas não havia como encontrar o cami-
nho para casa. Cansado e sem esperanças, a porta
entreaberta agora estava fechada. Eu estava per-
dido na nevasca e na minha própria mente con-
fusa.

134
O último olhar

Luísa Custódio dos Santos

A bela praia que ali havia era desconcertan-


te, só não tanto quanto ela. Ah, ela estava mais
bela que nunca, naquele longo vestido que tinha
o prazer de tocar seu corpo. Só que rapidamente
a paisagem perdeu seu brilho. Era o noivo de Iara,
Bruno.
Ah, o Bruno, cara de sorte. Conquistou a
mais gata de Ipirapora. Quem dera eu tivesse che-
gado primeiro.
Meu pensamento foi interrompido pela bri-
ga dos noivos. Vi que Iara chorava e o homem saiu
bufando pelos quatro cantos. Corri em direção a
ela.
— Por que estás assim, guria? Não precisas
chorar por causa desse qualquer aí — indaguei
furiosamente.
— E quem és tu? Não lembro de pedir para
tu me acudir — disse Iara.
— Eric, não lembras? Poxa, estou sempre
aqui por perto, te vejo sempre no rio.
— Estás me perseguindo então... tua sorte é
que não estou com cabeça para isso.
— Ah, não... é que moro por perto.
— Aham, sei, agora vou me embora — em
meio a um sorriso, ela falava.

135
E ela foi. Eu estava quase babando vendo-a
passar com seus longos cabelos enrolados. Faria
de tudo para tê-la. Já era tarde e resolvi ir dormir,
mas não a tirava de minha cabeça. Resolvi dar
uma volta pela margem do rio.
Perambulando no meio do céu estrelado,
me vi indo longe, o pensamento corria livremen-
te, esquecia até dos problemas com a empresa.
Esse tempo longe da cidade me fez bem.
— Estás aí me observando de novo, é? —
Uma sereia falava comigo. Era Iara.
— Vim dar uma volta, mas acabei me dando
bem.
Em meio a aqueles belos olhos, fui me afo-
gando, sentia a dor forte da paixão... na verdade,
acho que era a faca que o noivo enfiara em mim.
Minha última memória foi a mais bela possível,
era ela, só ela.
Foquei na noiva e esqueci que ela tinha noi-
vo.

136
O crime na fazenda da
família Annendberg

Luísa Marchi Gonçalves

Fico feliz pelo casamento da senhorita Lucy.


Ela, sendo uma senhorita doente, finalmente
conseguiu encontrar o amor, mesmo que eu não
vá muito com a cara de seu marido August. Ele
é um homem muito quieto, além de sua família
não poder se comparar com as riquezas da família
Annendberg.
Durante essa semana, a senhorita Lucy vol-
tou para a casa da família, pois seu marido teve
que fazer uma reunião com a família dele, que
mora em outra cidade. Por ser doente, o senhor
August achou que seria melhor Lucy ficar com sua
família.
Estou arrumando o quarto de senhorita
Lucy, pois ela me pediu para tirar os brinquedos
velhos de lá e colocar no sótão. Coloquei tudo em
uma grande caixa. Estou subindo com a caixa de
brinquedos para o sótão e quando estava prestes a
abrir a porta, ouço uma voz estranha dizer:
— Você tem certeza que quer entrar aqui?
— diz uma voz masculina sombria.
Não era para ninguém estar ali. Eu esta-
va com tanto medo que deixei tudo cair no chão
e chamei o pai de Lucy para ver quem estava ali,
mas quando chegou lá não viu ninguém. Tentei

137
argumentar dizendo que a pessoa podia ter fugido
pela janela, mas ninguém acreditou em mim. De-
pois desse rebuliço todo, fui demitida. Eu tenho
certeza que tinha alguém lá, mas agora apenas
me resta procurar outro emprego para viver.

Hoje à noite foram encontrados os corpos de


toda a família Annendberg em sua própria casa. O
assassino não foi encontrado. A porta do porão es-
tava escancarada e a janela quebrada. Foi realmente
uma tragédia. O único herdeiro da família foi o se-
nhor August. Espero que a família Annendberg esteja
em um lugar melhor. Boa noite.

138
Um nome

Luiza Müller

A linha do horizonte acompanhava o ba-


lanço leve das ondas, ao mesmo tempo em que a
brisa do vento levava a areia até os olhos de quem
contemplava a paisagem. O movimento do vento
embaraçava um cabelo desconhecido. Apesar da
vista deslumbrante, algo incomodava.
Havia um pensamento recorrente na men-
te. Ou melhor, um nome. Bruno. Aquilo perseguia
o desconhecido, que já estava irritado. Sentia que
estava à procura de alguém chamado Bruno, que
ele teria algo para ajudar a entender o porquê das
coisas. Por que estava na praia, por que estava à
procura dele, por que não conseguia se ver ou sa-
ber quem é.
Aquilo o consumia. O horizonte não acom-
panhava mais o balanço das ondas, a brisa já não
levava areia aos olhos e o vento não embaraça-
va mais um cabelo desconhecido. Só pensava em
Bruno, onde ele estava.
— Bruno! Bruno! Me diga onde está! Quem
é você? — gritava incansavelmente a alma perdi-
da. — Por que me persegue? O que você tem para
mim?
Com a mente afundando nesses pensamen-
tos, viu algo no final da praia. Era uma pessoa,

139
com certeza.
— Bruno? — perguntou a alma intrigada.
Correu desesperadamente em direção àque-
la pessoa, porém ela se perdeu em meio às tantas
palmeiras que pertenciam àquela praia paradisí-
aca. Apesar de tê-la perdido de vista, a alma não
desistia. Caminhou por horas atrás dela.

140
O fim da era de velas

Luiza Vigorito Schroeder

Em minhas últimas 20 mil noites de ma-


tança, costumo acender 6 velas vermelhas com
fogo branco na entrada da cidade e, lentamente,
espero o tempo escorregar e consumir o fogo que
nas velas acendi.
Sinto o fluido, que dança dentro dos meus
ossos, empurrar minha mão para fora da minha
carne, transformando-a em verdadeiras navalhas
de ossos. Começo pequeno, estourando a cabeça
de 2 homens de rua que brigavam por um espaço
em uma caçamba qualquer. Em seguida, queimo
seus corpos como sinal de aviso, como se estives-
se jogando um incrível esconde-esconde para as
pessoas saberem se estou perto ou não. Mas uma
terceira pessoa me intrigou com seu discurso de
súplica por misericórdia.
— Não, por favor! — grita ajoelhado. —
Quem contará ao mundo teu rosto? Se todos que
o veem não sobrevivem para ter tamanha honra?
Lhe conhecemos única e exclusivamente em li-
vros de história antiga, sobre sua milenar matan-
ça. Permita-me — diz suplicante.
— Tem razão, vá.
E assim ele correu. Eu lancei uma navalha
que atravessou sua caixa torácica, levando parte

141
de seu pulmão para fora, e ele caiu morto. Então,
na poça de seu sangue, vi um brilho de uma igre-
ja qualquer e estremeci de corpo e alma, sentindo
como se algo me guiasse até lá. E lá estava uma
jovem mulher negra, a 3 km de distância da igre-
ja. Seminua, com nítidas cicatrizes de chicote em
suas costas e com um olhar vazio. Me aproximei
dela em passos barulhentos, para que ela me no-
tasse ou reagisse, mas mesmo me ouvindo, per-
maneceu imóvel como se não existisse.
— Olhe para mim — eu disse, levantando
sua cabeça com minha navalha, fazendo com que
ela me encarasse.
Meu corpo estremeceu e meu coração dis-
parou quando a lua sussurrou e o vento assoviou
em meu ouvido que meu tempo havia chegado ao
fim. Seus olhos secos e sem vida confirmaram que
era isso que o que habita em mim procurava e que
eu já não seria mais seu portador. Então, sem ne-
nhuma palavra, recuei sem dar as costas a ela e
me afastei, sabendo que este seria meu último dia.

142
O canto da sereia

Malú Zanon Bulhões

Pedro amava sua vida na praia, sentia que ali


era seu ponto de descanso. Saía todos os finais de
semana para pescar e dessa vez não foi diferen-
te. Chegando à praia, Pedro arrumou suas varas,
deixou sua tarrafa na areia e ajeitou sua cadeira.
Jogou a primeira tarrafa. Recolhendo, percebeu
que tinha um peixe muito grande e ficou todo fe-
liz, mas a cada vez que foi chegando mais perto,
viu que não era apenas um peixe. Incrédulo, Pe-
dro viu que se tratava de uma sereia toda machu-
cada, com cortes profundos espalhados pelo seu
corpo. Sem hesitar, puxou-a para a areia e a tirou
da rede. Percebendo em seus olhos o medo, assim
como ele, Pedro tentou acalmá-la.
— Oi, me chamo Pedro. Qual é o seu nome?
Ela não respondeu.
— Não vou te machucar, prometo — disse
ele tentando transmitir segurança.
Pedro então decidiu que iria levá-la para
casa e cuidar dela.
— Bom, vou te levar para minha casa e lá
cuido de você melhor. Pode ser?
Ela apenas concordou com a cabeça.
Chegando em casa, colocou-a no sofá e foi
pegar uma toalha. Enquanto isso, ele foi pensan-

143
do na loucura que estava fazendo e no possível
perigo a que estava se expondo.
— Me chamo Alana — ela fala com a voz
trêmula.
— Muito prazer, Alana. Vou pegar alguma
coisa para você comer. Enquanto isso, você pode
me contar o que aconteceu? — disse Pedro.
— Aconteceu no momento em que estava
nadando pelo coral para pegar conchas e fazer
mais pulseiras, quando um grupo de mergulha-
dores me viu. Fiquei assustada e tentei fugir, mas
bati nos corais e me machuquei muito. Então de-
cidi vir para cá.
Pedro deu um peixe para ela e foi pegar o kit
de primeiros socorros. Limpou os machucados e
foi guardar as coisas. Nesse meio tempo, quando
Pedro voltou, Alana já estava dormindo. Ele então
decidiu deixá-la descansar.
Ficou andando de um lado para outro pen-
sando no que estava fazendo. Uma criatura que
só via em livros e diziam ser apenas ficção, ago-
ra está dormindo no sofá de sua casa. O que seria
melhor fazer? Apenas falar para ela ir embora? Ou
ficar até melhorar? Ficou nessa dúvida até decidir
pesquisar mais sobre essa criatura. Ele viu que o
costume das sereias é atrair pescadores e cantar o
“canto encantador” que tem o poder de hipnoti-
zá-los e afogá-los no mar. Pedro ficou abismado
e se sentindo muito imprudente de sua parte com
o que estava em sua casa.
— Merda! — disse ele ao perceber que ela
acordou cantarolando.

144
Em casa

Manuela Buchele Batista

Como a falta de afeto pode destruir uma


pessoa, o fato de não ter com quem dividir suas
opiniões, seus pensamentos, principalmente
aqueles que mais te assustam. Como seria não
ter ninguém com quem dividir sua vida? Ou pior,
como é conviver com alguém todos os dias e mes-
mo assim não ter confiança sobre isso? O fato é
que as pessoas se perdem, assim como ela se per-
deu. Naquela noite escura, fria e sem nenhum tipo
de afetividade, sem ter dito uma palavra o dia in-
teiro, ela só pensou, apenas existiu e esperava que
sobrevivesse até o amanhecer. Definitivamente,
não queria queimar sua janta. Era algo que ela es-
tava determinada a não fazer, de forma alguma
poderia estragar aquela refeição.
Por algum tipo de milagre o bebê não cho-
rava e seu marido não reclamava. Talvez tivessem
apenas sentido que hoje não era um bom dia. Ela
não se importava, de qualquer forma, não mais.
A dor de cabeça estava começando a aumentar, o
que não fazia sentido, já que tinha tomado os re-
médios a menos de uma hora. Aquilo deveria pa-
rar, para o seu bem.
Ela costumava pensar que era ruim ficar
sozinha. O fato de ter se mudado para um lugar

145
distante de tudo e todos para poder viver aque-
le amor não ajudava muito. A cada segundo tudo
desmoronava, já não aguentava mais, não queria
mais. Tudo que precisava fazer era uma ligação e
acabaria. Porém, não achava que seria agora que
teria coragem.
Depois de todos esses dias, vivendo as mes-
mas coisas o tempo todo, ela não conhecia mais
outra vida e não sabia se queria conhecer. A luz
da casa não voltava, ela nem se lembrava quan-
do havia ficado tudo escuro. Parou e olhou ao seu
redor. Um par de olhos, um carrinho de bebê, sua
cozinha cheia de velas. Seu filho deveria estar no
quarto nesse momento, mas ela não queria entrar
lá.

146
Habitante de mim

Maria Beatriz Araújo da Silva

Eu a esperava ansiosamente. Não sabia se


ela ficaria por muito tempo, não sabia quando
chegaria e muito menos se chegaria, não sabia o
que traria para mim. Talvez eu estivesse esperan-
do algo que nunca iria chegar.
Era sexta-feira e faltavam duas horas para a
hora mais importante de sexta, 23:59, a hora em
que sexta-feira deixa de ser sexta e vira sábado.
Dez horas da noite. Ela ainda não tinha che-
gado.
Dez e meia da noite. Eu não estava confor-
mada. Já tinha ouvido muitas histórias em que ela
se fazia presente. Me disseram que ela ia aparecer
quando eu precisasse. Alguns me disseram que
ela não chega fazendo escândalo, outros disse-
ram que ela chega fazendo uma explosão. Eu só
precisava que ela chegasse.
Onze horas da noite. Já não aguentava mais
a angústia da espera. Foi então que decidi per-
guntar para minha mãe o porquê de ela ainda não
ter chegado. Minha mãe me respondeu com uma
pergunta: “Todos os bebês choram iguais quando
nascem?” — disse ela enquanto arrumava a cama
para se deitar. Eu não entendi o porquê dessa per-
gunta, mas respondi que não.

147
— Os bebês não choram iguais porque são
diferentes — completei.
Percebi, então, que na verdade ela nasceu
comigo. Ela chegou quando eu cheguei, sua pri-
meira aparição foi no meu nascimento. Ela esta-
va no meu choro, que foi único, sem referência e
sincero, e por isso criativo. A criatividade habita
em mim e, de vez em quando, faz ilustres apari-
ções. Ela não chega, mas aparece.
Onze e meia da noite. Ela apareceu, me
trouxe coisas magníficas e continuou me fazendo
de morada. Ela se fez e se faz presente todos os
dias da minha vida.

148
2054

Maria Clara dos Santos

Assim que Erika acorda, percebe que está


sozinha em um local estranho. O cheiro é como
esgoto que não é limpo faz meses. O silêncio da
cidade era ensurdecedor. Ela saiu da casa e andou
pelas ruas vazias. Não havia ninguém a princípio,
nenhuma voz, nenhum movimento. Parecia que
a cidade não era habitada há anos. O céu era ro-
busto, com uma cor acinzentada; os prédios eram
velhos, e as calçadas eram cobertas por musgo.
Erika começou a explorar a cidade, procu-
rando por sinais de vida. Ela passou pelas casas
vazias, lojas fechadas, sem sinais de qualquer
presença humana. Ela se perguntava se estava em
um daqueles sonhos malucos, mas tudo parecia
tão real, era tudo muito assustador para ela. Erika
consegue finalmente se adaptar e se estabelecer
no local. Após dois meses, sem nenhuma pista e
nenhum sinal de contato com a terra, Erika cria
teorias de que talvez tudo o que estivera naquele
mundo seria algo relacionado a outro planeta ou
talvez até outra constelação.
Então, a moça sai à procura de que suas
teorias estivessem corretas e decide investigar
mais a fundo. Ela anda pela cidade, examinando
cada edifício e cada lugar, até que a moça encon-

149
tra um laboratório abandonado. O local tinha um
forte cheiro de remédio antigo e várias máscaras
velhas jogadas no chão. A moça olha os papéis e
jornais antigos, até que no fundo da sala encontra
um computador cinza. Sua tela tinha um fundo
verde com algumas letras escritas: “terceira pan-
demia global”.

150
Acabo com tudo

Maria Eduarda B. S. e Castro

Acho que estou começando a ficar mal de


novo. Os dias estão se misturando cada vez mais,
minhas lembranças estão ficando cada vez mais
confusas. Está tudo ficando escuro de novo, vou
apagar em breve.
Às vezes eu uso meu celular como distra-
ção. Ele me distrai do mundo, dos pensamentos,
da dor. Fico horas e horas olhando aquela tela va-
zia. Até que chega um momento em que não sinto
nada, não consigo me distrair, e a Internet, que
parece um enorme vasto sem fim, acaba. E tudo
fica sem sentido novamente. E mesmo sabendo
que a página vai atualizar novamente, naquele
momento tudo fica repetido, e não consigo me
distrair. E minhas cicatrizes se abrem novamen-
te, e não tem curativo, ponto ou pomada que cure.
Não consigo lembrar a época em que isso surgiu,
parece que esse sentimento que carrego sempre
esteve comigo. Silêncio. Minha mente fica quieta
e calma. Até que...
— Quero acabar com tudo — o pensamento
ecoa em minha mente.
Constantemente ouço essa voz, ela nunca
vai embora. Então, para me distrair, fico vendo
o que ocorre através da janela da Van. Essa via-

151
gem tem sido cada vez mais longa, parece que o
tempo congelou. Vejo o sol, pela primeira vez ele
está aí, sempre acordo muito cedo e, por conse-
quência, o dia vira noite. E novamente, tudo me
traz para o mesmo pensamento. Quero acabar
com tudo. Percebo que isso não está funcionan-
do, tento revirar meus pensamentos. Hoje acor-
dei atrasada, tive que me arrumar às pressas. Fico
pensando sobre minha aparência por um tempo,
nunca gostei dela. Odeio meu corpo, sempre falo
que vou começar a academia e mudar, mas nun-
ca consigo. Queria acabar com tudo, assim nunca
teria que suportar viver nesse corpo. Tenho que
me distrair.
Uma gota. Uma gota escorre na janela. Chu-
va. Fico me concentrando nela. Ela se acumu-
la com outras gotas presentes na janela, ficando
mais rápida, até que some. Enquanto isso, mais
gotas caem no céu. Sempre gostei de dias chu-
vosos, eles me dão um sentimento de aconche-
go, sinto vontade de voltar pra casa. Queria ir pra
casa, queria arrumar minha vida, queria me arru-
mar. Queria acabar... De repente, a Van para. Che-
gamos. Me levanto e vou até a porta, esperando as
pessoas na minha frente saírem. Estou na esco-
la, último lugar que queria estar. O único pensa-
mento que tenho é de que quero voltar, quero que
acabe o dia, quero acabar com tudo. Tento seguir
em frente mesmo assim, evitando esse constan-
te problema. Escola é o lugar onde mais me sinto
exausta. Todos os trabalhos, provas, tarefas, tudo
me faz sentir tão exausta. Me sinto inútil, que-
brada. E consequentemente, deixa os pensamen-
tos mais intensos.
— Acabe com tudo. Acabe com tudo. Acabe
com tudo.
Tento pensar em outra coisa. Começo a re-

152
parar nas roupas das pessoas, especificamente
garotas. Por mais que não queira, meu cérebro
automaticamente faz a comparação. Fico obceca-
da vendo os corpos delas e desejando que o meu
fosse igual. Eu comi muito ontem, que merda. Eu
nem estava com fome. Odeio isso. Odeio meu cor-
po. Odeio a escola.
Por que eu simplesmente não...
— Acabo com tudo?

153
154
O medalhão

Maria Eduarda Holstein Cordeiro

O mar teimoso insistia em repuxar o velho


barco de volta para o oceano. Mãos experientes
atracaram na prainha aos pés da varanda de ma-
deira, seguindo através da porta o cheiro de café
que exalava da cozinha.
Um sorriso o recebeu com doçura. Percebeu
um brilho diferente nos olhos junto ao sorrir açu-
carado. Notou as flores frescas na xícara velha ao
centro da mesa. Da última vez que a mulher co-
lhera flores, elas vieram acompanhadas da quarta
gravidez e, finalmente, a vizinha acertou em pre-
meditar que seria uma menina.
Havia algo. A ansiedade lhe apossou. Como
era dolorosa a experiência do matrimônio. Ela
perguntou sobre a pesca e o mar, mas em sua
afobação não deixou que respondesse um único
questionamento.
O pescador esforçou-se, mas não desven-
dou o mistério que se escondia nos olhos de ciga-
na da esposa.
Na madrugada, antes de entregar-se aos
mares, foi se despedir e não encontrou o mel do
dia anterior, mas sim o gosto amargo da decepção
em olhos recém acordados.
A observou levantar-se da cama. Nada.

155
Pensou no que poderia ter mudado. Novamente
nada. A dúvida o atormentava.
Agarrado ao leme, desbravou os mares. A
vara arqueou com força, registrando a captura de
um peixe. Quase virou o barco. O pescador, mar-
cado pelo sol e pela idade, puxou. Com toda a sua
força. Mas o peixe não deu descanso. Pensou que
não veria o rosto da mulher novamente.
Arrancou o peixe da água. Caindo sentado,
olhou a criatura diante de si, espantado. Sentindo
o ódio correr-lhe o corpo, talhou o estômago do
animal, encontrando um medalhão antigo e pe-
sado.
Na joia, uma bússola entalhada. O Norte
apontava para a prainha invisível àquela distân-
cia.
Atrás, um número: 30.
ISSO. Resolveu o mistério. Fazia 30 anos de
casados naquele dia. Ele esqueceu. Explicava a
frustração. Desta vez desembarcou na praia pró-
xima à feira, vendeu o medalhão para um meni-
no-músico, em troca do choro da sua viola. Vol-
tou com o garoto para casa e, chegando, pôs-se a
bailar com sua cigana como faziam antes mesmo
da solitária prainha existir.

156
A quinta carta

Maria Eduarda Ramos de Araújo

Nova York, 23 de março de 2024.

“— Essa é minha quinta carta que escre-


vo para você. Sei que não devia estar escrevendo,
porque talvez não queira saber de mim ou do que
faço. Sei que fui um babaca por ir embora sem ter
me despedido de você, mas não iria conseguir
partir se visse você.
Espero que você esteja bem. Enquanto te
escrevo, estou naquela cafeteria onde meu pai
pediu minha mãe em casamento. Entendo por
que ele escolheu esse lugar. Há uma bela vista do
Central Park aqui. Porém, o café é horrível, até
mesmo a maioria das pessoas daqui não são tão
gentis como no Brasil. Mas ainda sim aqui é um
bom lugar. Em apenas um mês conheci os museus
que você vivia falando para eu conhecer, andei de
metrô, participei de uma roda de yoga com algu-
mas idosas, ajudei um garoto a pichar a parede
de um prédio, e tenho que dizer: as pizzas daqui
são melhores do que as do seu tio Jefferson. Se
aquele italiano souber que falei isso, ele me mata.
Comecei a morar com a Ana, ela me lembra você,
doidinha e fascinada pela arte, mas ela ainda não
conseguiu superar seu amor por livros.

157
A faculdade tem sido cansativa, mas fiz
bons amigos, um mais diferente que o outro, e os
professores conseguem me dar medo, principal-
mente o professor Kayn, mas seus quadros de na-
tureza morta são perfeitos. E, junto com essa car-
ta, mandei um livro que roubei de uma biblioteca,
se chama A GRANDE ARTE, tem sido meu prefe-
rido. Já digo que vai odiar o final. Sinto sua falta,
principalmente nas manhãs de domingo, quando
íamos à praia, dos bares que íamos, e das conver-
sas de madrugada. Espero que me responda...

— De Cesar B.”

158
Poltrona 15

Maria Eduarda Reis Simas

São cinco e cinquenta e eu me encontro cor-


rendo desesperadamente no meio do aeroporto.
— Urgh! Por que tão grande??
Meu voo sai às seis horas e eu estou supe-
ratrasado. Esse trânsito de São Paulo como sem-
pre atrasando todo mundo! Quando chego na fila
de embarque, encontro poucas pessoas que estão
atrasadas assim como eu. Estou muito ansiosa
para esta viagem. Sonhei tanto com isso, nada es-
traga a minha energia.
Ao passar pelo embarque, ando em direção
à porta de acesso para a pista. Estava tão distraída
mexendo no meu celular que só sinto algo se cho-
car contra o meu corpo, fazendo com que eu deixe
cair no chão o celular com a tela virada para baixo.
— Olha por onde anda! — falo, enquanto
tiro meu celular do chão.
— Foi mal aí, esquentadinha! Quem não es-
tava olhando era vo... Milena? — diz com a testa
franzida.
Quando escuto aquela voz meu coração ace-
lera.
— Noah? Meu Deus, quanto tempo! — falo
sem graça.
— Digo o mesmo. Parece que você não mu-

159
dou nada mesmo, continua com a língua afiada!
— Que engraçado, e você pelo jeito continua
o mesmo menino atrevido!
— Desculpa também, estava atrasado.
Quando me dei conta, já tinha esbarrado em você.
— Não, tudo bem. Eu estava distraída, mas
foi bom encontrar você! — Saio andando em di-
reção à escada, afobada.
— Ao chegar dentro do avião, encontro mi-
nha poltrona número 15, ao lado da janela. Me ar-
rumo para passar as próximas horas confortável
e aviso meu irmão que estamos prestes a decolar
quando sinto uma sombra ao meu lado. Era Noah!
— Não acredito! — digo, chocada.
— Só pode ser brincadeira! Parece que va-
mos passar a viagem toda juntos.
— Ah, jura? Nem reparei.
— Grossa, que mal humor!
Talvez eu esteja porque encontrei o cara por
quem eu era apaixonada na minha adolescência
inteira e vou passar a viagem ao lado dele? Penso.
Ignoro ele.
Ele percebe e não insiste em conversar co-
migo. O clima fica desconfortável.
Depois de horas no voo e um clima pesado,
finalmente cheguei ao destino final!
Noah sequer olhou na minha cara. Quando o
avião pousou, ele levantou e simplesmente saiu,
quase atropelando todo mundo.
Logo que passei a alfândega, aviso meu ir-
mão que tinha dado tudo certo. Porém, ele me
manda uma bomba em forma de mensagem:
“Maninha, esqueci de te avisar. Sabe o
Noah? Loirinho, meu melhor amigo de infância?
Chegou em Nova York hoje e irá ficar um tempo
no meu apartamento”.

160
A carta

Maria Eloiza Fernandes

Evelyn era uma menina muito tímida e an-


tissocial. Desde criança, ela cresceu sozinha com
sua mãe em uma cidade no interior de São Pau-
lo. Quando completou 18 anos, Evelyn se mudou
para a capital, uma cidade grande e movimenta-
da. Logo que chegou na cidade, começou a fazer
faculdade. Com o seu dia a dia corrido, ela só che-
gava em casa à noite.
Chegando em casa, como todos os dias, ela
confere sua caixa de correspondências. Evelyn fi-
cou perplexa quando abriu sua caixa de correio e
encontrou uma carta anônima endereçada a ela.
Ela não conhecia a letra, mas o remetente parecia
saber tudo sobre sua vida. A carta descrevia de-
talhadamente sua rotina diária, seus medos, suas
inseguranças e até mesmo seus segredos mais
íntimos. Evelyn estava apavorada e intrigada ao
mesmo tempo.
Nos dias seguintes, mais cartas misteriosas
foram entregues. Elas continham informações
ainda mais pessoais sobre sua vida, mas não havia
nenhuma pista sobre a identidade do remetente.
Evelyn passou noites em claro, tentando desco-
brir quem poderia estar enviando essas cartas. Ela
começou a desconfiar de todos ao seu redor.

161
Um dia, Evelyn decidiu investigar por con-
ta própria. Ela analisou cada detalhe das cartas e
percebeu que o remetente parecia ter um conhe-
cimento profundo sobre sua família. Ela passou
horas vasculhando as fotos de sua família e ami-
gos nas redes sociais, procurando por qualquer
conexão possível.
Finalmente, depois de uma semana de in-
vestigação, Evelyn descobriu quem estava por
trás das cartas misteriosas: era seu pai que havia
a abandonado. Seu pai, que nunca fez questão de
vê-la ou simplesmente saber dela, estava tentan-
do chantageá-la com informações pessoais, pe-
dindo dinheiro em troca, caso contrário ele vaza-
ria suas informações.
Evelyn ficou indignada e decepcionada. Ela
confrontou seu pai e exigiu que ele parasse de en-
viar as cartas imediatamente. Seu pai tentou se
desculpar, mas Evelyn estava determinada a cor-
tar todos os laços com ele, antes que a situação
piorasse. Evelyn mudou-se para a sua cidade na-
tal, na casa de sua mãe, para ficar longe do seu pai
tóxico, e assim começou uma nova vida.
Embora aliviada por finalmente ter desco-
berto a verdade, Evelyn ficou abalada pelo fato de
que seu próprio pai tentou chantageá-la e roubá-
-la.

162
Pânico

Maria Luiza Baião Legal

Ele está aqui! Sinto-o pendurado em meus


ombros, me puxando em direção ao chão. Sinto-
-me como Atlas, carregando o peso do mundo em
minhas costas. Cada passo dado é um grito que se
acumula em minha garganta. Suas enormes mãos
enroladas em meu pescoço me sufocam mais e
mais. Chego ao banheiro e minhas pernas falham.
Olho para o relógio em meu pulso e vejo, 8 horas
e 43 minutos.
Meus olhos caminham desesperados à pro-
cura dela. Meu corpo inteiro arrepia quando sinto
sua respiração em minha bochecha. Lágrimas co-
meçam a escorrer sem parar. No espelho à minha
frente minha imagem está refletida, mas aquela
não sou eu. Não pareço real. A partir de agora não
sinto mais meu corpo, ele não me obedece mais.
A sensação de que a morte está perto me assom-
bra. Não posso morrer ainda, sou nova demais.
Há tantas coisas que não vivi ainda. Minhas mãos
começam a tremer e a suar. Meu coração acelera-
do quase a ponto de explodir. Preciso me acalmar,
preciso respirar.
Inspiro lentamente uma, duas, três vezes.
Na quarta vez ele aperta meu nariz e tampa mi-
nha boca. Não consigo respirar. Começo a sufocar.

163
Seu olhar morto me atinge como se fossem facas.
Ele gosta do que vê. Se diverte fazendo o que faz.
O pouco ar que consigo puxar invade meus pul-
mões. Tento correr, mas meus pés estão fixados
no chão. Começo a enjoar, vou vomitar a qualquer
momento. Minha cabeça começa a latejar, bato
nela com os punhos. Minhas unhas se fincam em
minha pele sem que eu perceba. Feridas se abrem
em meu braço. Quando estou a ponto de me jo-
gar contra a parede, ele percebe que atingi meu
limite, então se cansa e me liberta. Olho em meu
relógio outra vez e vejo, 8 horas e 53 minutos.

164
Boogie

Maria Luíza Jeremias

Olá! É bom saber que se interessou pelo meu


livro, e espero que eu possa te entreter.
Meu nome é Boogie, e, por mais estranho
que seja, sou um animal, especificamente canino.
Desde muito pequeno, descobri ter grande inte-
lecto, o que me faz ter consciência. Por conta de
minha inteligência e decência, pude me apaixo-
nar pela leitura. Sempre tive um sonho de escre-
ver minha história e expressar minhas ideias, mas
o canil só me dava água e comida de aniversário.
Demorou um tempo para que pudessem me dar
um lar. Parece que as pessoas têm mais medo de
cachorros falantes do que do aquecimento global.
Realmente não entendo. Eu lutava para mostrar o
meu grande talento, mas a cada dia que passava,
eu queria desistir.
Depois de muito tempo, chega alguém. Eu
estava tão feliz! “Finalmente alguém se inte-
ressou pela minha habilidade”, eu pensava. Foi
quando ouvi as primeiras palavras da minha dona:
— Qual seria o nome dele, querida?
— Preciso mesmo? “Aff”... tem cara de bi-
cho papão... vamos chamar de Boogie.
É sério!? Depois dessa, até Paçoca seria um
nome legal. Uma garotinha ridícula. Quero que

165
conheçam minha cara Amelie: minha “cuidado-
ra” — e que marquem bem essas aspas, porque
disso ela não tem nada. É extremamente mima-
da e desengonçada, e, quando ela tem chance, ela
bota a culpa em mim quando faz uma idiotice.
Seus pais são extremamente ocupados e não nos
dão muita atenção. Por essa razão, sou eu que te-
nho que lidar com ela todo santo dia.
Ela iria me matar se eu dissesse: mas Ame-
lie é uma bruxa! Se é maldade que você quer, é
com ela que deve falar. Pode amaldiçoar qualquer
um que fique no seu caminho, mas felizmente ela
sempre tem a mim para tudo ir água abaixo. Dis-
cutimos tanto! Mas a culpa não é minha que ela é
um mal para a sociedade.
Hoje mesmo, estava tentando descobrir
onde aquela pirralha tinha enfiado a minha má-
quina de escrever e, sem muita indignação, me
deparo com um grande pentagrama no chão, ve-
las perfumadas e uma foto no meio do ritual. Era
a nossa vizinha Margaret, um anjinho de pessoa,
mas não me admiro que o santo de Amelie não
bateu com o dela. É óbvio: anjo e capeta não se
combinam! E claro que acabei com aquele assas-
sinato. Amelie chega e dá o seu chilique:
— MAS O QUE É ISSO!? O MEU QUARTO!
ESTÁ UMA NOJEIRA!!!
— Que eu esteja certo, o seu quarto é sem-
pre uma nojeira, Dona Amelie.
— Cachorro idiota!
— Não venha me insultar! Onde você botou
a minha maquininha?
— E eu lá com isso? Vem cá, você não fez
essa merda toda por conta daquela sua geringon-
ça não, né? Quantas vezes vou ter que te ensinar
que...
— Que eu devo chorar e quebrar tudo para

166
conseguir o que eu quero? — E assim, Amelie fica
toda embaraçada. Digamos que tenho uma habi-
lidade de pegar no ponto fraco. Ela muda de as-
sunto:
— Aí, Boogie, sua máquina deve estar na
minha estante. Agora vê se me deixa em paz?
— Olha, até que seu quarto nojento dá gran-
de inspiração. Vou ficar aqui para as ideias fluírem
— digo, com outras óbvias intenções. Amelie não
deixou de resmungar, mas assim eu parei com
que o demônio mandasse mais uma alma para o
inferno. Deveriam me declarar como herói.

167
168
Ouço o som de sinos

Maria Luiza Vieira Leandro

Uma galinha bicava meus pomposos cotur-


nos pretos. Mais dez metros e meus sogros pode-
riam ser considerados monges.
Meu divino namorado, sempre tão estiloso,
me apresentava seus pais usando uma jeans lar-
ga e velha e uma blusa vermelha desbotada que
eu nunca tinha visto. Sua mãe escondia seu estilo
atrás de um avental laranja e brega; na barra, ti-
nham fiozinhos com sininhos nas pontas costu-
rados.
A mãe sugeriu uma caçada a esquilos. Era
tradição de família, eu precisava participar. A
mulher alaranjada ficou preparando o almoço.
Seu filho, seu marido e eu entramos na mata.
Ficamos uma hora sem ver um animal se-
quer, até um pobre esquilo aparecer na visão dos
dois “texanos” sedentos por sangue. Teve a sorte
de desviar do primeiro tiro silencioso, mas os dois
me deixaram sozinha para correr atrás do pelu-
dinho. Depois de um tempo caminhando, desisti
e voltei. Andei muito, mas a casa nunca aparecia
entre as árvores. A mata ficou mais densa e toda a
floresta escureceu; eu quase podia ouvir sussur-
ros... Como se as próprias árvores respirassem e
cochichassem para mim.

169
Andei sem rumo por muito tempo. Não sa-
bia onde estava ou que horas eram. Se o almoço
já tinha passado, se já era quase noite ou se ainda
era meio dia. Será que ninguém sentiu minha fal-
ta?
De repente, ouvi alguma coisa, pareciam si-
nos. Mas estava muito longe. Tentei seguir o som,
porém eu não sabia a direção. Aos poucos, o volu-
me foi aumentando. Levei um susto e caí para trás
quando alguns animais pequenos passaram cor-
rendo por mim; pássaros bateram suas asas como
se fugissem de algo. Um silêncio se instalou, nada
se mexia, toda a floresta silenciou, mas eu ain-
da ouvia o som de sinos. Eu podia sentir a tensão
no ar. Meu coração disparou. Corri, desviando das
árvores. Uma perna, depois outra. Mais e mais
rápido. Alguém me seguia! Rápido! Mais rápido!
Estava me alcançando! Agora eu pude jurar que
estava dentro de uma igreja, tão alto era o bater
dos sinos... Algo voou sobre mim e bati o rosto no
chão. Apenas senti a faca rasgando meu corpo. Só
haviam as árvores como testemunhas.
Eu ainda ouvia o som de sinos.

170
O melhor pior
encontro

Maria Vitória dos Santos Lueckmann

Ir a um mercado desses que cheiram a peixe


e que está quase fechando é de longe um dos me-
lhores encontros. Mas quando você mora em uma
cidade tão pequena quanto uma pulga, é o único
lugar aberto que não seja um bordel velho, com
leds vermelhos e um cheiro pior do que o de peixe,
o de testosterona.
Tentava disfarçar o suor das minhas mãos
botando-as no bolso. O meu nervosismo estava
escancarado para quem quisesse ver, o que não
ocorreria já que qualquer um que olhasse em nos-
sa direção só veria o sorriso dela, tal sorriso que
não sei como eu fazia aparecer. Só sei que brilhava
como um Cadillac 1958 após ser polido e encera-
do.
Começamos a caminhar, a cada passo que
eu dava naqueles imensos corredores, me sentia
mais à vontade. A cada risada que ela dava, me
encantava mais. Pra mim, como uma melodia.
Poderia ouvir sua gargalhada pelo resto da minha
vida.
— Que barulho foi esse? — disse ela, en-
quanto sua risada se transformava em uma ex-
pressão de susto.
— Pareceu algo fechando, como se fosse

171
algo de vidro ou... PERA, NÃO! — exclamei e saí
correndo em direção à porta, mas ao chegar já es-
tava trancada.
— Não é possível que em menos de 15 mi-
nutos aqui ficamos presos. — Era visível que es-
tava inconformada através de suas sobrancelhas
perfeitamente desenhadas, que estavam arquea-
das.
— Não querendo cortar sua frustração, MAS
PORRA, A GENTE TEM UM MERCADO INTEI-
RO PRA GENTE! — berrei com a alegria de uma
criança de 5 anos.
Ela deu um enorme sorriso e começou a
correr em direção aos congelados, bebidas e de-
pois, TVs.
E graças a um guarda desatento eu tinha
uma pizza congelada, que já estava aquecida, uma
garrafa de 2L de guaraná ao meu lado, um filme
da Barbie na TV, e uma linda mulher, só faltava
uma coisa...
— Vou pegar cobertores, já volto. — Ela
disse, enquanto se afastava com um sorriso lindo.
Seu celular começou a tocar.
— ESPERA, seu celular... — Bom, eu tentei!
Atendi o celular e...
— Alô?
— Oi, pode passar pra Jú? Diz que é o namo-
rado dela!

172
Um momento nada
convencional

Mariana Baptista

Estava eu naquela missa. Era um total e


profundo silêncio. Padre Josué estava discursan-
do sobre a santidade dos santos.
Juro que não foi intencional, mas justa-
mente diante de um assunto tão sério e profundo,
fui olhar para minha pequena July.
Não por ser a minha filha, mas ela é a coi-
sa mais fofa e engraçada desse mundo. Porém,
como sempre, estava fazendo bagunça naquele
momento sagrado. E eu acabei me empolgando na
risada que dei ao vê-la fazer palhaçada.
“Sim, quem tem um ataque de risada em
uma homilia? Só eu mesmo”, pensei em meus al-
tos pensamentos.
A minha risada não foi normal. Tão aguda
e alta que parecia ser o barulho de uma sirene de
bombeiro. Foram os segundos de maior tensão
da minha vida. Senti ser a pior católica de todas!
Como poderia eu ser tão certinha com os momen-
tos religiosos, rindo por uma bobagem. Quando,
de repente, o senhorzinho do meu lado começou
a rir. Percebi que existem risadas piores que a mi-
nha. As duas mocinhas na minha frente olharam
com um ar de superioridade, como se de fato eu
fosse a pior católica. O restante dos fiéis parou de

173
prestar atenção no padre para olhar para mim.
Justo eu, que era a pessoa mais invisível daquela
igreja.
E como se não fosse pouco euzinha, o se-
nhor e o restante da igreja começaram em pran-
tos a rir.
Se achei a risada do senhorzinho estranha
foi porque não tinha ouvido a do padre, que pa-
recia com a da Peppa Pig. De fato, nunca tinha
presenciado o Pe. Josué rindo, ainda mais rindo
de chorar. O coroinha, de tão chocado que ficou,
chegou a bater sem querer no sino, que assustou
o outro coroinha que estava dormindo.
O padre riu tanto que não conseguia mais
parar, nem água com açúcar serviu para acalmar.
Hoje entendo o que minha mãe dizia: “Se
tem uma coisa muito contagiante é uma risada”.
De fato, aquilo se espalhou mais que o COVID-19.
Aos poucos, fomos nos acalmando. Mesmo
sérios, percebia o sorriso no rosto por trás dos fi-
éis. Padre Josué até citou uma frase de Santa Te-
resa de Calcutá que dizia: “A paz começa com um
sorriso”.

174
A mente criadora

Marina de Mello Sedrez

Ícaro sempre se deixava levar pelas pala-


vras, palavras essas que dominavam o seu co-
tidiano. Ícaro via em tudo uma possibilidade de
criação. Todo tipo de arte era bem-vinda para ali-
viar a mente rápida e inquieta do menino.
Ele começou a perceber que as pessoas com
quem tinha contato o julgavam por ter uma men-
te que nunca parava. Como pode um menino ter
tanto para mostrar ao mundo? Por que ele não
conseguia ser igual aos outros, que tinham uma
cabeça mais calma? Ele tentava achar respostas,
mas essas eram as únicas palavras que nunca
brotavam em sua mente.
Até que um dia, Ícaro percebeu que tinha
perdido algo dentro de si. A sua alegria, sua espe-
rança e sua inspiração tinham ido junto com esse
algo desconhecido. Ele continuava tendo muito
para dizer, muito para criar, mas as palavras co-
meçaram a se acumular dentro do menino que já
não conseguia encontrar uma forma de por para
fora tantos devaneios. E assim, ele mergulhou
dentro do seu próprio ser, totalmente alheio a
tudo em volta. “Tanto tempo querendo ser igual
aos outros. Querendo não expressar tantos senti-
mentos para agora entender que era isso que fazia

175
eu me sentir vivo?”, ele pensava.
As palavras foram sumindo de sua mente,
mas o peso delas continuava em seu corpo, como
se fossem uma prova de que um Ícaro antigo real-
mente tinha deixado de existir. Dia após dia, ele ia
se sentindo mais pesado, mais arrependido, com
mais vontade de criar.
Ícaro, ainda preso em sua mente, permitiu-
-se conhecer a sua própria consciência. Ele per-
cebeu, naquele espaço, caixas brancas que lhe da-
vam a impressão de tanto vazio. “O que será que
tem dentro delas?”, ele pensou enquanto andava
em direção a uma das caixas. Ele a abriu e den-
tro dela encontrou lembranças, lembranças dele
mesmo aproveitando o prazer da solitude, ele co-
nectado com o mundo. E foi aí que ele descobriu
que o que realmente o fazia criar era a própria es-
sência, que havia se perdido com o tempo. Ícaro
tinha entendido o que realmente era: um artista
insaciável.

176
Viagem ao nada

Matheus Felipe Maia

Depois de semanas nessa longa estrada de


dor e desespero, eu gosto de achar que encon-
trei amigos, irmãos nesta jornada, mas encontrei
desespero além de tudo. Acordei com os raios do
sol que em meu rosto vieram. Olhei para todos os
meus amigos e garantindo que todos estivessem
vivos pela manhã.
Retirei as rações da manhã dos barris e servi
para as pessoas. Nisso, percebi que o pouco de co-
mida que nos sobrava não duraria tanto tempo, a
água não passava muito disso. A única pessoa que
eu confiava a saber dessa situação seria Derrek.
Puxei-o de lado e disse:
— Derrek, nós tem que ver o negócio da
água, da comida, se acabar faz o que? Passamo
fome? Morremo? —
— Tu sabe que eu não sei Derris, não sei
quanto tempo mais a gente tem, nem quanto
tempo a gente tem que aguentar, ou a gente arru-
ma mais comida, ou arruma menos gente — Der-
rek respondeu.
— Arrumar menos como? Matano eles por
comida? — Eu disse mais alto que deveria.
Morgan me olhou furioso. Morgan sacou a
arma de seu coldre e apontou para mim, olhando

177
ora Derrek, ora eu. Ele gritou nos mantendo em
distância de um queima-roupa:
— Você acha que pode só matar a gente e
ficar com a comida? A se eu vou deixar —
— Isso é só um mal-entendido Morgan. –
Eu intervi. — Nós não vai matar ninguém —
— Porque tu é um doce de pessoa, num é?
— Ele parou e apontou seu revólver direto para
mim e continuou. — Tu acha que me engana?
Ele pegou a outra arma em seu coldre e deu
para sua esposa, Glinda. Nisso, Will ouviu a grita-
ria e parou a carroça repentinamente, mandando
todos para trás com uma força estrondosa. Arthur
e Morgan caíram no chão com o impacto. Morgan
deixando sua arma cair no chão. Aproveitei minha
oportunidade e corri na direção da arma assim
que recuperei meu equilíbrio e fui como um ani-
mal, lutando por sobrevivência. Nisso, agarrei a
arma e disputei-a com Morgan. A arma disparou
em nosso esforço, acertando Glinda, em seguida
Arthur, depois Will e finalmente Derrek, fazendo
buracos na carroça entre cada tiro. O sangue ago-
ra nas minhas mãos. Ele finalmente conseguiu a
arma e acabou com Morgan, mas não sei se so-
breviver sozinho é o que eu quero. Com isso, me
livrei deste dilema de sobreviventes.

178
Apesar disso eu
gostava dele

Nathália Mafra Casa

Ah, como eu odiava aquele bicho. Sempre


sorridente, a gente vendendo cookies em pleno
sábado de manhã, um horror. Ele queria ser como
eu, que por mais que pequeno, não tinha medo
daquela casa. Prosseguia no devaneio, pensava
que teria que encarar o Martin falando de como
ele queria ter a minha coragem. Não sou corajo-
so como ele pensa, até porque, afinal de contas,
é só uma casa. Quem tem medo de entrar em uma
casa? O Martin, uma zebra enorme com medo de
um simples casarão.
Cada perrengue lhe despertava um impulso
de culpar o quão grande era a casa. Era a maior
casa do bairro? Ela era mesmo tão grande como
ele pensava? Mesmo uma casa inofensiva faria
mal a ele? Só podia ser por causa do pé direito da-
quela casa, deveria ter cerca de 7 metros.
Num sábado de manhã, dia de vender nos-
sos cookies, começou a imaginar a proeza de des-
pistar o meu olhar daquela casa pra outro lugar
que não fosse ela, poderia ser que a vida ficasse
menos amedrontada. Eu sempre achei desneces-
sário aquele medo, era um medo bobo. Então fa-
lei:
— Eu não vou deixar de vender nossos

179
cookies só porque você está com medinho de uma
casa. Eles sempre compram vários. Sem eles nós
não vamos conseguir vender o quanto precisa-
mos.
Martin tornou-se a mim com um olhar de-
plorável, mas concordando com a cabeça. Nós fo-
mos até a casa, precisávamos vender. Martin teve
de tocar a campainha, pois eu não a alcançava.
Esperamos algum tempo, mas ninguém a aten-
dia. Dei um passo para trás, fui chamar o Martin:
— Martin...
Não consegui nem acabar de falar, foi tudo
muito rápido. A porta abriu, o puxou para dentro e
a porta bateu. Naquele instante eu não sabia o que
fazer. Eu que forcei aquela zebra a ir até lá e agora
onde ela foi parar?

180
Durma

Nathaly Vieira

Hoje faz 30 dias que estou presa nesse lu-


gar. Como leões dentro da cela, um lugar escu-
ro. Parece que estou vulnerável todo tempo, uma
presença estranha que consome. Meus pais me
largaram aqui, para uma vida melhor, conhecer
pessoas diferentes. E põe diferente nisso. Uma
menina chamada Liz, de cabelos ruivos, branca
como uma vela, olhos pretos como a escuridão
da noite. Dividimos o mesmo quarto. Por ódio do
destino, fiquei junto com ela. Há boatos que ela
mexe com coisas obscuras e isso fez com que to-
dos se afastassem de mim. Fiquei sozinha como
um lobo solitário.
Já era por volta das 01:20 da manhã, me ro-
lava de um lado pro outro, quando percebo que
Liz não está na cama dela. Quando escuto pas-
sos do lado de fora do quarto, eu a chamo, mas
não responde. Saio do quarto para ir ao banheiro,
sorrateiramente, como morcegos à noite. Abro a
porta do banheiro e uma das cabines faz um baru-
lho. Me aproximo e vejo sangue no chão, um arre-
pio na alma. Respiro e abro a porta da cabine. Para
minha sorte, não havia ninguém. No corredor, a
vejo olhando para a janela, fissurada. Pensei em
chamá-la, mas não tinha coragem. Achei melhor

181
voltar para o quarto. Quando volto, Liz está dor-
mindo. Meu corpo treme. Vou para minha cama e
fico pensativa. Como não era ela? Quem era a pes-
soa? E sangue? Até cair no sono.
Uma ventania barulhenta me acorda. Um
frio gela o quarto. São 3:40 e meu sono some no-
vamente. Liz está dormindo e toda aquela cena
repassa na minha cabeça. E a curiosidade foi
maior. Tive de acordá-la. Eu preciso tirar essa an-
gústia, saber o que aconteceu. Eu tento chamá-la,
mas parece que está em um sono profundo. Tento
sacudi-la, mas ela está congelada e os lábios ro-
xos. Grito por ajuda. Um tempo depois foi dado o
óbito da Liz. Três dias depois, fui convocada, fi-
nalmente, a voltar para minha casa. Fiquei trau-
matizada com tudo que aconteceu. Meus pais me
buscaram. Já era noite, estava sonâmbula de tão
cansada. Então vou para meu quarto, mas quando
abro a porta, na parede está escrito de sangue as
seguintes palavras: “durma, sonhe e descanse”.

182
Um café

Nathaly Vieira

Era um dia frio e chuvoso de outono, e,


como de costume, eu estava indo para o consul-
tório com meu guarda-chuva em uma mão e na
outra levava uma bolsa com meu jaleco impeca-
velmente branco.
Quase chegado no consultório, percebi uma
nova cafeteria na rua. Sem pensar duas vezes, en-
trei para comprar um café e dar uma aquecida no
corpo.
Enquanto estava na fila para fazer meu pe-
dido, ouvi um homem no balcão ao lado pedir
quase a mesma coisa que eu iria pedir. A diferença
era que eu sempre peço com 4 gotas de caramelo e
ele pediu com baunilha. Acabei nem vendo o rosto
do homem. Logo quando peguei meu café, olhei o
relógio e já eram quase oito e quinze.
Saí rapidamente e fui para o consultório.
Chegando lá, coloquei meu jaleco impecavel-
mente branco e caminhei até a sala onde faria o
primeiro clareamento do dia. Enquanto esperava
a nova parceira de sala chegar, degustei meu café.
Senti um aroma de baunilha vindo do cor-
redor, ficando mais forte. Como imaginei, esse
aroma veio até mim. Quando o aroma entrou na
sala, a pessoa que eu menos gostaria de ver se-

183
gurava o café: meu ex-namorado, que não via
há oito anos, porque, segundo ele, roubei o lugar
dele na faculdade e acabamos brigando feio e ter-
minando. Estava ali a passos de distância, me en-
carando com cara de “se soubesse que era assim
eu nem vinha”.
Nos encaramos por alguns segundos e ele
disse:
— Não imaginei que você realmente iria se
formar, Jessica, mas com sorte qualquer um pas-
sa ou até mesmo rouba o lugar de quem merece.
Naquele momento, segurei meu café com
força e lancei um olhar de fúria para Roberto e fa-
lei:
— Se você realmente merecesse, teria pas-
sado no meu lugar, mas não passou.
Nós dois nos encaramos novamente e, com
o copo de café frio em sua mão, Roberto descon-
tou sua amargura do passado no meu jaleco.
Quando vi as gotas de café caírem no meu
jaleco, imediatamente também descontei minha
raiva nele, mas não no jaleco e sim na fuça de Ro-
berto.

184
A pasta “x_.9”

Rodolfo Abel da Silva

Desde que meus pais foram viajar, a vovó


veio cuidar de mim, e, por conta das férias de in-
verno, eu não preciso sair de casa e tô adorando
ficar de bobeira. Ela é muito fofa e sempre vem fi-
car comigo quando necessário.
Era mais um dia normal. Tinha acabado de
almoçar com a vó e fui jogar FIFA quando ela en-
tra na sala como se tivesse saído das sombras e
fala:
— Meu netinho amado, pode formatar o
notebook da vovó, por favor, querido?
— Posso sim, vou só terminar essa partida.
Nunca tinha mexido naquele aparelho e,
enquanto mexia, achei uma pasta esquisitíssima
chamada “x_.9”. Minha curiosidade foi sugada
pelos tentáculos daquele curioso nome e, quando
eu abri, foi como se uma bola chutada pelo Rober-
to Carlos tivesse vindo de encontro ao meu estô-
mago.
Como uma velinha fofa que sempre anda
elegante como um lance do Zidane poderia ter
imensa atrocidade em seu computador? Como
aquela doce senhora que eu conheço desde sem-
pre seria capaz daquilo? Infelizmente, não posso
desver aquilo, mas antes de ligar para a polícia,

185
eu decidi falar com ela. Quando cheguei para fa-
lar com ela, o olhar doce aos poucos se tornou um
olhar sinistro, tão rapidamente quanto um drible
do Messi.
— Pelo amor de Deus, o que aquela pasta tá
fazendo lá, vovó?

186
O casaco

Sofia de Jesus

Maria era insuportável. Por que não pode-


ria ser igual às outras meninas da classe? Vestia
aquele casaco vermelho pesado, deixava pendu-
rado no fundo da sala de aula junto com sua boina
preta. Quando saía ao frio, colocava novamente
o casaco. Todos os dias. Se vai passar a aula sem
casaco, não sei nem por que levá-lo. As outras
meninas usavam blusas de lã delicadas em cores
frias e escuras, com suas saias pregueadas e com-
pridas. Cabelos loiros ou morenos eram prendi-
dos atrás das orelhas, em duas tranças que es-
condiam o comprimento dos fios. Maria preferia
deixar os cachos acobreados caírem nos ombros
e deslizarem pelas costas. Os fios finos desciam
em cascatas de fogo que se enrolavam nas pontas,
me fazendo questionar se quando curtos ficavam
completamente lisos ou se a pequena porcenta-
gem de pontas se cacheava. Fiquei pensando se
quando molhados os fios ainda tinham o brilho
de cobre-ouro, ou se ficavam todos na coloração
escura que fazia o plano de fundo daquele cabe-
lo misto, indeciso. Castanho e discreto, mas com
aqueles fios iluminados cor de moeda antiga, cor
de tostão.
— Pode tirar seu cabelo da minha mesa?

187
Maria se vira, olha para minha mesa, esta-
va vazia. Olha nos meus olhos. Tira. Tentei fazer
com que não parecesse pessoal, porque definiti-
vamente era, mas me sinto um pouco intimidado
pela ideia de ser odiado por ela. Fim da classe. Ela
veste o casaco chamativo, calça as luvas em suas
finas mãos, sai pela porta, pisoteando a bota preta
na neve, indo pelo caminho sem calçada, apres-
sada. Usando movimentos rápidos para fugir do
frio, o pontinho vermelho ia sumindo na imensi-
dão leitosa do inverno europeu.
Me percebo como um bastardo na porta fi-
tando-a se afastando. Esfrego os olhos e volto pra
dentro para buscar minhas coisas. Do lado do meu
casaco, vejo a boina da Maria. Pego. Espero que as
pegadas da Maria não sejam apagadas.

188
Não perturbe os
mortos

Sophia Albarnaz Silveira

Liz sentou-se em um bar desolado no cen-


tro da cidade, com um véu negro cobrindo seu
rosto e seus olhos castanhos cheios de angústia.
Ela olhou ao redor em busca de Albert, um velho
amigo de seu falecido marido. Quando finalmen-
te o viu, um homem alto e bem-vestido de barba
grisalha, Liz se levantou e caminhou até ele.
— Albert, preciso de sua ajuda! — disse Liz
em uma voz baixa e triste. — Eu quero me despe-
dir do meu filho, mas não sei como.
Albert assentiu solenemente e levou Liz até
uma casa velha e abandonada na beira da cidade.
Eles entraram em um salão escuro, onde uma fi-
gura sombria estava parada no centro.
— Abigail, precisamos de sua ajuda! — dis-
se Albert, fazendo uma reverência diante da figu-
ra.
Abigail se aproximou lentamente, seus ca-
belos compridos e negros dançando ao redor de
seu rosto conservado.
— O que vocês desejam? — perguntou ela
em uma voz sussurrante.
— Minha amiga Liz perdeu seu filho em um
acidente trágico e quer se despedir dele — disse
Albert.

189
— Posso ajudá-la — disse Abigail com um
olhar marcante. — Mas é preciso um sacrifício
para se comunicar com os mortos.
Liz hesitou por um instante, mas logo deci-
diu que faria qualquer coisa para ver seu filho no-
vamente. Abigail realizou um ritual misterioso, e
então uma voz estranha ressoou no ar.
— Mamãe, estou aqui — disse a voz do filho
de Liz.
Ao ouvir a voz do seu amado filho, Liz cho-
rou de alegria e desespero ao retirar o véu negro
que repousava sobre seu rosto e revelar sua apa-
rência jovem e bela. Algo aparentava estar erra-
do. Quando ela olhou para Abigail, percebeu que
a figura sombria estava sorrindo maliciosamente.
De repente, Liz desapareceu diante dos
olhos de Albert e Abigail.
— O que acabou de acontecer? — perguntou
Albert com medo.
— Estava na hora de cobrar o sacrifício por
ter se comunicado com o outro lado — disse Abi-
gail, em êxtase.
Em choque e aflito com o que acabara de ou-
vir, Albert caiu em choro ao perceber o que acaba-
ra de acontecer com sua amiga.
Um silêncio havia surgido naquele triste
e sombrio salão. Albert se encontrava sozinho e
atormentado, ansiando por respostas sobre o que
acabara de acontecer com sua amiga, respostas
que só poderão ser respondidas pela bruxa Abi-
gail, que agora se encontra ausente.

190
A receita do mistério

Sophia Passos Guimarães

Estava escuro. Já eram oito horas da noite e


nada de Caio aparecer. Talvez ele tivesse desisti-
do, afinal seria muita loucura invadir uma esco-
la a esse horário. E se tivessem estudantes lá? E
se nossos pais descobrissem? Ah! Se nossos pais
descobrissem com certeza não sobraria nem pó
de Amellie e Caio para contar história. Em meio
à minha onda de pensamentos, um carro branco
com som no volume máximo estaciona. Com cer-
teza era Caio. Ele é o tipo de garoto que não gosta
de passar despercebido.
— Foi mal, Mellie, você sabe como minha
mãe implica quando falo que vou usar o carro.
— Você contou para sua mãe? – disse, da
forma mais indignada que pude.
— Não, nosso segredinho está guardado –
ele disse, caçoando.
Caio ligou o carro e mal posso acreditar que
é real. Eu, Amellie Correia, estava prestes a fazer
a coisa mais radical da minha vida. O trajeto foi
longo e, para piorar, a cara que Caio fazia estava
me deixando cada vez mais nervosa.
— Chegamos – diz ele abrindo a porta do
carro.
— Você tem certeza de que quer fazer isso?

191
Ele assente com a cabeça.
O pavor começa a me subir como água bor-
bulhando em uma chaleira. Então, abrimos o
portão da escola. Corremos até onde precisáva-
mos chegar e lá estava aquilo que procurávamos
há tanto tempo. De uma forma tão simples de ser
acessada. Caio olha para mim, eu olho para ele.
— Talvez essa seja a nossa única chance de
conseguir isso. – Ele estava ofegante por causa da
corrida. – Tenho certeza de que não vai fazer fal-
ta.
— Se não for agora, não vai ser nunca. Pega
logo, Caio!
Ele pegou. Então, tomados pelo desespero,
saímos numa velocidade tão grande que superou
todas as aulas de atletismo em educação física.
Nós dois com aquilo que mais desejamos duran-
te todo o ensino fundamental, em mãos. A grande
obra-prima que faria toda a diferença em nossas
vidas. Provavelmente aquilo marcaria nossas fu-
turas gerações. A receita da merenda das terças-
-feiras. A tão famosa e amada almôndega da tia
Helena.

192
A carne

Stéfany Couto Varela

Era um domingo e eu estava em uma lan-


chonete americana comum. Vi a dona da lancho-
nete chegando de mansinho para abri-la, com
uma expressão cansada. Ela resmungava en-
quanto arrastava a porta central. Clientes de to-
dos os tipos entravam e saíam durante o horário
de funcionamento. Eu observava tudo com muita
calma, não tinha pressa, não havia nenhum lugar
para ir mesmo. Nunca comia em outra lanchone-
te. O rissole de carne dali era o melhor que eu já
tinha provado em minha humilde vida, além de
que era o que cabia no orçamento. Como sempre,
pedi meu prato favorito e logo chegou. Parecia
um manjar dos deuses. A massa parecia feita por
anjos e o recheio era feito de uma carne macia e
suculenta. Comi sem pensar duas vezes. Me sen-
tia satisfeito. Paguei a garçonete enquanto me le-
vantava e logo fui em direção à porta de saída.
No dia seguinte, fiz minha rotina de tomar
meu café da manhã agradável. Quando entrei na
lanchonete, a dona estava agitada e as cortinas
fechadas. Ela olhava constantemente a rua atra-
vés das frestas da persiana. Meu rissole demorou
um pouco mais que o normal para chegar. Me de-
leitei enquanto devorava rapidamente o salgado.

193
Quando cheguei em casa à noite, depois de
um longo dia de trabalho, tomei logo um banho e
coloquei o pijama mais confortável que eu tinha.
Como sempre, liguei a TV, mas antes de mudar
para o meu programa favorito, o rosto da dona da
lanchonete apareceu naquela telinha chuviscada,
era um canal de jornal. Embaixo de sua foto tinha
uma grande faixa branca onde se lia: “Apreendida
mulher canibal que vendia carne de suas vítimas
em lanchonete”. Fiquei paralisado, não conse-
guia acreditar no que acabei de ver, suava frio en-
quanto meu estômago se revirava. Fui cambale-
ando até o banheiro, mas não conseguia vomitar.
Eu sabia que só havia uma coisa que iria melhorar
meu ânimo, então saí de casa. Mais tarde, estava
cozinhando. Coloquei os temperos na panela, fiz
a massa e assistia à TV enquanto cortava aquele
braço humano apetitoso.

194
Sexta-feira, 14 de abril
de 2023

Tales Medeiros Martins

18h bateu o relógio. Com sua roupa do dia


a dia o apertando, sufocando, agarra sua maleta,
pegando o mesmo caminho, vendo os mesmos
rostos tristes e gritos, buzinas, passos para todo
quanto é lado, o céu cinza caindo como um véu de
melancolia... Ele atravessa a rua e entra em casa.
O homem arranca suas roupas e, entran-
do no seu quarto, por fim, com alívio, leva a mão
à estante mais próxima e se joga na poltrona,
abrindo o livro que colore o mundo cinza com
seu azul sereno e pacífico, acompanhado por tra-
ços amarelos brilhando com sua alegria, indo de
encontro com heróis inspiradores como Joana
D’Arc, Rei Arthur e Ulisses, ao mesmo tempo que
passa por misteriosos e assustadores vilões como
Loki, Long John Silver e o Drácula...
Nem reparou e passaram-se dois dias. Às
8h, levantou-se como sempre, botou as rou-
pas não tão apertadas agora e descobriu um sol
agradável, saindo pintando seu caminho cheio de
mesmices com pinceladas azuis e amarelas, co-
lorindo as expressões de quem passava por ele,
levando, nem que apenas um pouquinho, sua paz
e alegria para todos, seguindo sua rotina de sem-
pre... Terça animada, com bons sonhos. Quarta

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tranquila. Quinta tortuosa, cansado já da mesma
coisa, sonhando com um fim e, enfim, a Sexta-
-feira e fim de semana, recarregando sua alma
com o que realmente importa, alegria, e seguindo
esse ciclo inquebrável de bons e maus momentos.
Afinal, isso é viver a vida.

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O mar

Thalita Silva Miranda

A luz da lua refletia em meus olhos espe-


rançosos em busca de compreensão. A brisa das
ondas soprava em meu cabelo trazendo a paz que
eu tanto procurava. Foi ali no vai e vem das on-
das e com os pés na areia que encontrei a porta da
casa que eu não morava.
— Como faço pra morar aqui? Para ter tudo
isso? — digo em tom triste e consciente de que
não gostarei da resposta.
— Não pode morar aqui, filha. Ainda não —
respondeu o mar com sua sabedoria e calma. —
Não entenderiam a sua partida, mas tudo terá seu
tempo. — Os ventos sussurram em meus ouvidos.
Ajoelho inconformada na areia e em pran-
tos desabo na luz do luar.
— Essa é minha casa e quero morar aqui,
quero me molhar e fazer parte das águas, mar!
— exclamo com lágrimas nos olhos como uma
criança que acabara de perder seu brinquedo fa-
vorito.
— Você não precisa estar em casa para que
ela esteja em você, minha filha. Eu serei seu des-
canso, os ventos te protegerão, os trovões lhe fa-
rão justiça, a cachoeira limpará suas feridas e a
rua guiará seus caminhos. — O mar me acalma

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com as suas palavras. — Confie, filha, e caminhe
até encontrar o caminho de casa.
Enxugando as lágrimas me levanto, o mar
se despede me presenteando com um colar de
conchas brancas. Coloco-o e caminho em meu
rumo à saída da praia, esperando ansiosamente
até o momento em que poderei mergulhar e viver
no fundo mar. Até lá, viverei em silêncio, mas es-
perançosa, apenas me contentando com a indes-
critível dor de passear na orla da praia e não poder
passar da porta de areia, somente observando a
grandiosidade da minha casa, o mar.

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Amizade ou o amor?

Thamires Pieritz

Poderia começar alegre dizendo que irei a


um jogo de hóquei com Ester, minha amiga que
é fascinada por esse esporte. Sabia o motivo dela
querer ir. Acha mesmo que é por causa de jogado-
res que perdem dentes para pegar o disco do ta-
manho de um donut? Não mesmo.
Logan, mais conhecido como o enfeitiçador
de “maria-patins”, por ser bonito e exibido, to-
das as garotas se derretem por ele.
Sentadas nas cadeiras no lado do local por
onde eles entram no ringue, quando me dei conta,
minha amiga estava gritando enquanto os joga-
dores entravam no lugar. Olhei para o lado e en-
carei quem eu mais temia: Logan! Senti seu olhar
tocar minha alma, mas percebi algo diferente.
Não me pergunte o que era, não estava entenden-
do.
Começou o jogo e lá estava eu sentada ao
lado da garota que era obcecada por ele, que qua-
se tocou nos meus lábios. Não tinha coragem de
contar para ela, até que ela mesma percebesse que
ele fez um golaço e, em seguida, olhou e apontou
o dedo para mim.
Fiquei sem reação. Virei a cabeça e ela esta-
va com seus olhos fervendo, mas tentou disfarçar

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sorrindo forçada e virou novamente para frente.
Não sabia o que expressar, porém me senti apai-
xonada como nunca antes por um exibido que
passou ao meu lado e depois fez uma dedicatória
de gol.
Após o jogo, ele veio falar comigo. Começa-
mos a conversar e percebi que ele não era como
parecia ser. Era engraçado, gentil, tinha um sor-
riso lindo. Mas de longe vi minha amiga super
brava, como se estivesse saindo faíscas de sua ca-
beça.
A partir daí percebi que teria que escolher
entre uma história de amor e uma amizade se
desfazendo por conta dele. Acho que não posso
mais julgar o livro pela capa!

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Quem será?

Valentine Antoniello Szczecinski

Eu nunca sonho, porém nas poucas vezes


que sonhei, a mesma coisa aconteceu na vida real:
sempre pesadelos com alguém envolvido na mi-
nha vida. Claro que já tentei mudar o destino, mas
nunca consegui. A última vez aconteceu há dois
anos quando vi minha melhor amiga perder o es-
poso dela. Depois disso, passei a me excluir com
medo das pessoas.
Desta vez, o pesadelo foi diferente, apenas
uma imagem: alguém caindo de uma distância
muito grande, talvez um prédio. Acordei com o
susto da queda e a sensação de medo tomou meu
corpo. “Quem será essa mulher?” Fiquei tentan-
do organizar mentalmente todas as mulheres na
minha vida. Me preocupo até com minha vizinha
que falou comigo no elevador ontem.
Ligo para minha mãe. Decidi contar o so-
nho, mesmo sabendo sua opinião. “Você não tem
poderes psíquicos, isso deve ser falta de sair com
pessoas da sua idade ou talvez o excesso de tra-
balho, precisa descansar”. Tento viver “normal-
mente” meu dia. Está tudo indo bem. Jéssica, uma
colega de trabalho, comenta sobre uma festa hoje.
Logo penso nas palavras da minha mãe, penso no
meu sonho e penso ainda mais antes de aceitar ir.

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“E se for ela? E se eu conseguir mudar?”
Quando chego à festa, um pouco atrasada,
Jéssica está completamente bêbada sentada no
parapeito do prédio. Vou apressada com o cora-
ção batendo pela boca. Subo também implorando:
— Precisamos sair daqui, é muito perigoso.
— Ela acena concordando.
Talvez eu tenha subestimado meu poder de
persuasão ou ela esteja passando mal, já que ela
aceita rapidamente. Ajudando-a a descer, meu
coração desacelera. “Consegui mudar o destino”,
mas ela se desequilibra. Vejo a mesma imagem
passando pelos meus olhos. O terror me toma no-
vamente, pois quem está caindo sou eu, já que ela
me empurrou acidentalmente do parapeito.

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