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CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
Um mês atrás...
CAPÍTULO 4
Nos Dias de Hoje
Sharine estava no telhado plano e sem grades de sua nova casa nas
areias do Marrocos, e olhou para os edifícios dourados pelos raios do sol
poente. A luz tinha uma qualidade quase derretida, um tipo perfeito de
riqueza que aparecia apenas ao pôr do sol. Como se a própria estrela
derretesse e fosse derramada sobre a paisagem por um pintor
benevolente.
Os vampiros e mortais que andavam nas ruas abaixo estavam
ocupados com seus negócios, preparando-se para o mercado noturno ou
voltando para casa após um dia de trabalho, mas de vez em quando, um
dos habitantes da cidade pensava em olhar para cima e a veriam. Era um
orgulho para ela que as crianças sorrissem e levantassem a mão numa
saudação entusiasmada. Os mais velhos se curvariam com respeito.
Essas mesmas pessoas fugiam com medo e cautela quando ela
chegou a este lugar. Danificados pela supervisão de um anjo que se
importou mais com poder e crueldade do que com a valiosa
responsabilidade que lhe foi dada – cuidar dos tesouros mais preciosos
da espécie angelical. No entanto, Lumia, o repositório de arte angelical e
tesouros, seria um lugar frio e solitário sem a vida próspera deste
assentamento adjacente. Para Sharine isso tornava a cidade e seu povo
tesouros tão raros e belos quanto aqueles protegidos pelas paredes de
Lumia.
Abrindo suas asas, segurou o alongamento exuberante por um
minuto inteiro antes de puxá-las lentamente de volta ao alinhamento
contra sua coluna. Teve o cuidado de garantir o controle muscular com
precisão. Era um exercício de fortalecimento que ela ignorou por muito
tempo, a disciplina perdida no caleidoscópio quebrado que era ela
mesma.
Grandes partes do último meio milênio – mais ou menos algumas
décadas – eram imagens estilhaçadas e confusas na paisagem de sua
mente, vistas através de um filtro que estava quebrado e rachado. Ela
nunca voltaria àqueles anos. Nunca voltaria a época em que seu filho
travesso e sorridente se tornou um homem corajoso e poderoso.
A chama quente da raiva em seu intestino chamejou novamente,
queimando seu sangue.
— Lady Sharine.
Ela virou a cabeça para encontrar o olhar de Trace. Com seus lindos
olhos verdes meia-noite e sua pele de luar, a voz lânguida de um poeta e
seu cabelo um preto sedoso, o vampiro esguio a lembrava de seu filho.
Não a coloração, que era única para cada um deles. Mas, como Trace, seu
menino brincalhão causava mais que uma palpitação no coração
daqueles suscetíveis a tais encantos em sua corte.
Muitos, muitos se mostraram suscetíveis.
— O que tem para mim, jovem? — perguntou ela com um sorriso
afetuoso.
Trace balançou a cabeça, seus traços angulares criando sombras
contra suas bochechas; nenhuma suavidade em Trace, mas ainda havia
beleza. — Já disse, minha senhora — disse ele —, sou um homem
totalmente maduro, não um menino. — Palavras severas, mas seu olhar
tinha igual afeto.
— E como eu disse — respondeu ela —, quando você tem a idade
da terra e as estrelas combinadas, todo mundo é um jovem. — Até
Raphael, o arcanjo que uma vez foi um garotinho enérgico que ela levou
para seu estúdio para que pudesse se exaurir jogando tinta em telas, suas
mãozinhas se tornando pequenos selos pegajosos – até mesmo ele
aceitava que sempre seria uma criança aos seus olhos.
Ela se perguntou o que teria acontecido com suas pinturas
exuberantes; tinha certeza que devia tê-las armazenado no Refúgio, mas
essas memórias estavam escondidas além dos caminhos mentais
emaranhados da louca fragmentada que se tornou após a crueldade
premeditada e inexplicável de Aegaeon.
Houve indelicadeza, e então houve o que Aegaeon fez.
Suspirando, Trace estendeu um envelope. Feito de papel grosso e
cremoso,e selado com o selo de cera do Cadre, tinha uma sensação de
presságio, como se as notícias internas estivessem imbuídas com o poder
dos arcanjos que governavam o mundo.
— Um mensageiro deixou isso um momento atrás — disse Trace
numa voz que seduziu muitas donzelas. — Um vampiro — elaborou,
antes que ela pudesse perguntar por que o mensageiro não pousou no
telhado ao seu lado.
Pegando-o, ela disse: — Como foram suas rondas? — Trace estava
com ela há apenas um mês, enviado por Raphael depois que vários
membros de sua corte tiveram que retornar para suas bases – anjos e
vampiros, juniores e seniores, foram ajudar seu povo a lidar com a
devastação causada pela tentativa de Lijuan de se tornar a governante do
mundo.
A guerra terminou há um mês, mas ninguém teve tempo para
descansar, para se curar.
Não foram apenas os terríveis danos às cidades, vilas e aldeias, nem
as hordas cambaleantes de renascidos. Nas últimas duas semanas, um
número muito maior do que a média de vampiros começou a se render à
sede de sangue assassina.
Trace foi claro em seu julgamento sobre aqueles vampiros. —
Nenhuma tentativa de se autodisciplinar — disse ele, sua voz fria e sem
piedade. — A fome de sangue vive em todos nós – ela sussurra e bajula
nas horas do crepúsculo, procurando devorar – mas aprendi a
estrangular esses sussurros há muito tempo.
Muitos vampiros não fizeram nada do tipo, e agora com tantos
anjos poderosos feridos ou mortos, e os sobreviventes distraídos no
rescaldo da guerra, o desejo de se alimentar estava oprimindo o senso de
razão ou consciência. As ruas da cidade ameaçavam ficar vermelhas de
sangue, o ar úmido como ferro.
O território de Raphael não estava em melhor posição que qualquer
outro quando se tratava da onda de vampiros assassinos – e era muito
pior se levasse em consideração a destruição da guerra. Nova York foi
golpeada na batalha cataclísmica dos arcanjos, suas torres, que tocavam
o céu, quebradas e destruídas. Ele não podia perder nenhum de seus
funcionários seniores altamente treinados, mas mesmo assim enviou
Trace. Porque Raphael era tanto filho de Sharine quanto Illium.
— Está tudo bem — disse Trace a ela, suave como sempre em sua
camisa preta feita sob medida e calça preta, seus sapatos engraxados e
improvavelmente livres de areia ou poeira. — As bases que você
implementou são boas e fortes.
Esse era o maior elogio que ele podia fazer a ela – e sabia que,
apesar de todos os seus modos lúdicos e sofisticados, ele falava a
absoluta verdade. Não havia flerte em seus olhos, nenhuma tentativa de
lisonjear. Neste momento, Trace era um soldado dando um relatório ao
seu senhor.
Quando ela inclinou a cabeça, ele se curvou e saiu.
Com o envelope na mão, ela soltou um suspiro silencioso enquanto
olhava para o sol poente mais uma vez. Algum dia se acostumaria com
essa deferência daqueles ao seu redor? Não que fosse algo inesperado.
Ela era, como acabava de fazer questão de contar a Trace, velha no
grande esquema das coisas, uma Antiga em muitos aspectos. Mas por
dentro...
Não, isso era tolice. A menina que era há muito se foi, e a menina
que um dia foi o passarinho de Raan, a mulher chamada Sharine por seus
amigos, se tornou a Colibri. Pelo menos começou a reclamar seu nome,
para que ninguém em sua pequena e feliz corte a chamasse de outra
coisa, exceto Lady Sharine.
Deslizando um dedo sob o selo de cera, o quebrou. Dentro do
envelope havia uma carta do Cadre. Ela franziu a testa enquanto lia as
palavras escritas com uma letra forte que ela reconheceu. Raphael
escreveu isso, mas não fez isso como o menino que ela cuidou uma vez,
ou o homem em quem pensava com amor materno. Não, escreveu isso
como o Arcanjo de Nova York.
Depois de ler até o fim, abaixou a mão, carta e envelope numa das
mãos, e olhou sem ver o deslumbrante vermelho alaranjado do céu. Isso,
ela não esperava. Mas, enquanto pensava nisso sob a luz do sol poente,
fazia um sentido desesperador.
Grande parte do mundo estava um caos após o horror combinado
de Lijuan e Charisemnon. Milhões estavam mortos, mais de um arcanjo
perdido ou em cura. Sono tão profundo que ninguém sabia quando ou se
voltariam. A maioria do resto da espécie angelical não sabia o que
aconteceu com Michaela, Astaad e os outros, mas Raphael disse a Sharine
tudo que ela desejou saber.
Entendeu que ela nunca o trairia.
Todos aqueles anos nos quais se perdeu nos caminhos tortuosos do
caleidoscópio foi Raphael quem cuidou de seu filho – e do outro garoto
que sempre fez parte de sua vida. Illium e Aodhan, chamas gêmeas de seu
coração. Um, o filho de sangue, o outro um filho da arte. Ela o ensinou
como Raan uma vez a ensinou.
Tristeza floresceu em seu coração pela lembrança daquele rosto
amado, aquelas mãos talentosas, mas era uma tristeza desbotada para
monocromático por eras... embora tenha mantido vigília sobre o túmulo
de Raan desde que sua mente se despedaçou, seu coração dolorido pelo
passado no qual estava segura, era amada e cheia de sonhos.
As memórias deram a ela um lugar seguro para se esconder.
Mas Sharine estava farta de se esconder, farta de viver em sua
mente. Era hora de enfrentar a verdade. E a primeira verdade era que
embora chorasse por Raan até o dia em que morresse, não conseguia
mais se lembrar da dor penetrante e bela que foi seu amor juvenil por
ele. Se tivessem envelhecido juntos, seria diferente... Mas não adiantava
viver no e se.
Não adiantava viver em qualquer lugar, exceto no presente.
Ela endireitou a mandíbula, com raiva novamente, desta vez de si
mesma. Caliane, sabia, ficaria furiosa com a direção de seus
pensamentos; sua amiga acreditava firmemente que Sharine não era a
culpada.
— Aegaeon sabia exatamente o que estava fazendo — disse Caliane
logo depois que Aegaeon acordou de seu sono, seu tom tão inflexível
quanto sua coluna. — Sabia o que você passou, as cicatrizes que essas
experiências deixaram, e ainda assim fez algo tão insuportavelmente
cruel que nunca vou perdoá-lo por isso. Ele pegou seu maior pesadelo e o
fez ganhar vida.
Uma escuridão sombria em seu rosto, ela balançou a cabeça. —
Não, Sharine. Nunca se culpe pelas fraturas que criaram em sua psique.
Mas Sharine se culpava. Ela se culpava por não ser forte o
suficiente. Culpou-se por sua dor cega depois de Raan... e pelos gritos
mentais que ecoaram dentro dela por anos depois que entrou no lugar do
Sono de seus pais e encontrou seus corpos enrugados e mortos, com o
sangue seco nas veias. Foram embora enquanto dormiam.
Quatro décadas depois do forte e talentoso Raan.
Embora os anjos não devessem morrer, exceto em batalha.
Apenas Sharine, de toda sua espécie, enterrou três pessoas que
fecharam os olhos para descansar... e nunca mais acordaram. Amante,
mãe, pai, todos jaziam frios e há muito apodrecidos em seus túmulos,
suas vozes perdidas do mundo.
É você, uma pequena parte cruel começou a sussurrar na calada da
noite, quando todo o resto estava quieto. Todo mundo que você ama
morre. Ninguém te suporta. Ninguém quer estar vivo num mundo onde
você existe.
Aquela voz feia a insultou e insultou, até que viveu em terror depois
de se apaixonar por Aegaeon. Esse terror cresceu em magnitudes com o
nascimento de seu filho. Ela era como uma bugiganga de vidro com
rachaduras de teia de aranha que ninguém podia ver. E no final, ela
quebrou, o pensamento e a razão estilhaçando a seus pés.
Sim, ela se culpava.
Era o maior dos presentes que, depois de tudo isso, seu filho ainda
a amava.
Pensando nele, olhou para a carta novamente. Ele ficaria orgulhoso
dela se fizesse isso, orgulhoso dela por ter a força e a coragem. E ela o
faria. O decepcionou por muito tempo. Era hora de Illium ter motivos
para orgulhosamente chamá-la de sua mãe.
O último dos raios de sol acariciando suas asas cruzou o telhado
para entrar no edifício. Então caminhou para a sala bem equipada,
brilhante com tecnologia, a qual não compreendia totalmente. No
entanto, aprendeu a utilidade de tais coisas desde que saiu totalmente do
caleidoscópio. Agora pediu a um de seus fiéis para fazer uma ligação para
Raphael.
Ela atendeu a chamada na privacidade da suíte do escritório que
era seu. Uma velha escrivaninha branca com pernas curvas, tecidos
suaves em seus móveis, flores frescas, pinturas nas paredes, esta era uma
sala muito mais suave da que aparecia na tela da parede à sua frente.
O escritório de Raphael se inclinava mais para o vidro e aço,
semelhante à sua cidade. Não conseguia ver nenhuma das luzes
cintilantes de Manhattan em volta dele, mas o que via eram as prateleiras
que continham tesouros únicos – incluindo uma pena do mais puro azul
que atingiu uma pontada de necessidade em seu coração.
— Lady Sharine.
— Você parece cansado, Raphael. — Linhas de tensão, músculos
nodosos nos ombros, sombras fracas sob o impressionante azul de seus
olhos. Tantas vezes ela pintou aquele azul – primeiro numa tentativa de
capturar os olhos da arcanjo que era sua melhor amiga, então os olhos do
filho de Caliane – sempre levava uma eternidade para acertar a cor.
Safiras esmagadas, cobalto derretido, o céu da montanha ao meio-dia,
tudo isso e muito mais vivia nos olhos de Raphael e Caliane.
Como artista, a cor era um de seus maiores desafios e maiores
alegrias.
Ele passou a mão pelo cabelo. — Será uma longa jornada para
todos nós antes de podermos descansar.
Sharine sentiu o desejo de ser sua mãe; não sabia se o desejo
passaria. Ele era apenas um jovem quando Caliane trilhou o caminho da
loucura, e embora Sharine fosse uma criatura frágil, as rachaduras de
teia de aranha crescendo ano a ano, ela estava lá. Após encontrar seu
corpo quebrado num campo longe da civilização, o cobriu com a sombra
de suas asas e afastou o cabelo emaranhado de seu rosto, e o segurou.
Ele foi um jovem tão determinado, mas muito ferido por dentro.
Vê-lo agora, forte, vibrante e amado ferozmente por uma mulher
que era tudo que Sharine poderia desejar para ele, se tivesse a
imaginação para considerar que alguém como a consorte de Raphael
poderia existir, fez seu coração florescer, a fez acreditar na felicidade e
em mudar seu destino.
Caliane nunca contou ao seu filho, mas no nascimento de Raphael,
alguns dos mais amargos velhos sussurraram que esta era uma criança
destinada à loucura e à decomposição, que sua mãe era uma Antiga há
muito tempo. Tão estranho que tal preconceito pudesse existir numa
raça de imortais, mas sempre houve aqueles que buscavam a escuridão
em tudo.
Esses mesmos sussurravam que Sharine era o prenúncio da morte.
O filho de Caliane acalmou todos eles. Era uma personificação
brilhante do melhor deles, uma razão crítica pela qual o mundo não
estava hoje se afogando em sangue e morte. Não a única razão,
entretanto. — Onde está Elena? — Seus dedos se curvaram em sua palma
com a memória das facas que segurou sob a tutela de Elena.
— No parque com sua melhor amiga, Sara, e a filha de Sara — disse
Raphael, seu rosto se iluminando de uma forma que nunca acontecia com
ninguém. — Decidimos que todos nós poderíamos tirar uma hora longe
da árdua tarefa de colocar a cidade em ordem. Destrói o espírito ver
nossa casa em ruínas.
Sharine não podia imaginar a devastação de ver uma cidade
querida destruída e queimada, mas uma coisa sabia – a cidade de
Raphael era um lugar com um coração valente. Ela se levantaria
novamente, torres reluzentes de metal e vidro que tocariam o céu, seus
rios limpos dos escombros e sangue da batalha, e a terra queimada
rejuvenescida.
— O que fará com sua hora, meu garoto? — disse ela, ansiosa para
afastar uma mecha rebelde de cabelo do olho dele.
Um sorriso repentino e deslumbrante. — Vou voar com Illium.
Planejamos encontrar Jason quando ele voltar para casa.
— Estou surpresa que saiba que ele está por perto. Seu mestre
espião costuma entrar e sair das cidades como fumaça. — Ela sabia
muito bem que Jason esteve perto de Lumia nos meses anteriores à
guerra, mas só descobriu isso depois do fato.
O Cadre confiava nela, mas isso não significava que não estava sob
vigilância. Uma decisão com a qual não tinha argumentos. Ninguém viu o
que estava diante dela, e o mal prosperara. Simplesmente porque ela não
tinha intenção de fazer o mesmo não significava que a próxima pessoa a
ter essa responsabilidade seria tão confiável.
Raphael riu, fazendo-a sorrir, isso a lembrou de sua risada alegre
de infância enquanto se banhava em tintas. — Sou da opinião que Jason
se permitiu ser visto. Ele sabe que nos preocupamos com ele quando está
além de nossa ajuda – e então, às vezes, nos joga um osso.
Balançando a cabeça para esses jogos dos jovens, Sharine disse: —
Recebi sua carta.
Olhos azuis surpreendentes segurando os seus, o riso ainda
persistente neles. Mas suas palavras quando vieram eram de um arcanjo.
— O que acha do nosso pedido, Lady Sharine?
— Tem certeza de que sou eu que você deseja para essa tarefa?
Estou longe de ser uma guerreira.
Expressão irônica, Raphael disse, — Titus requer certo manuseio.
— Um puxão de lábios. — Ele é um guerreiro e um arcanjo que respeito
além de muitos outros, mas gosta de fazer o que quer.
Sharine interpretou isso como significando que certos imortais
ameaçavam deixar o serviço do Arcanjo da África. — Está dizendo que
sou a intermediária? — Ela ergueu uma sobrancelha. — O arcanjo Titus
dirigiu uma corte bem-sucedida por muitos anos.
Sharine nunca teve nada a ver com ele, seus caminhos
simplesmente não se cruzaram ao longo dos anos. Ele era milênios mais
jovem que ela, por exemplo, e sua vida era a arte, enquanto a dele era o
caminho de um guerreiro. Mas aqueles das forças de Lumia que serviam
sob ele falavam do arcanjo nos mais altos termos.
— Temo que vá além disso — admitiu Raphael. — Seu povo é fiel
ao sangue, mas vários guerreiros destacados para ele de outros
territórios desistiram. — Sua mandíbula era de granito agora. — Aqueles
que não conhecem Titus veem seu temperamento irritadiço atual como
um insulto – e não têm o bom senso de entender que ele precisa de cada
corpo que pudermos reunir.
Oh, agora ela entendeu. Alguns dos mais velhos e poderosos
esperavam modos doces e palavras delicadas mesmo em circunstâncias
exigentes. — Estou surpresa que você acredite que posso lidar com ele.
— A comunidade angélica há muito a tratava com luvas de pelica. Como
se fosse um vaso delicado e rachado.
— Não quero insultar, Lady Sharine, mas não temos outra opção. —
Palavras sombrias. — Fiz uma temporada de uma semana na África há
meio mês, e é do território de Titus que Jason agora retorna. Venom
também está voltando da África para casa.
Venom, Sharine lembrou, era o vampiro jovem, mas poderoso, com
olhos de víbora. — Você manteve os laços de amizade.
— Foi além disso. Era um dever do Cadre – a África seria derrotada
de outra forma. — Mãos nos quadris, suas asas seguras com controle
rígido. — Alexandre cruzou a fronteira para ajudar ao mesmo tempo.
Acreditamos que três arcanjos trabalhando juntos podem eliminar o
suficiente dos renascidos para que Titus e seu povo possam então limpar
o resto, mas a situação é catastrófica.
— Recebi notícias de que a infecção está se espalhando
rapidamente. — Lumia estava isolada, mas não isolada do mundo
externo. Mais ainda com a chegada de Trace – o vampiro era
extremamente bom em manter linhas de informação.
— Sim – e a cepa na África parece ser mais forte e mais virulenta
que no resto do mundo. Charisemnon deve ter colaborado com Lijuan
para criar um inimigo mais nocivo. É uma pequena misericórdia que a
cepa permaneça confinada à África, mas deixa Titus numa posição nada
invejável.
Abrindo suas asas, ele as puxou de volta. — Se eu pudesse, me
mudaria para a África até que apagássemos o perigo, mas meu território
estágravemente danificado – muito pior que inicialmente acreditávamos.
E então há os vampiros que se entregaram à sede de sangue assassina.
Devo ficar em casa e preciso do meu povo mais forte aqui. Os outros
territórios estão praticamente na mesma posição.
Nada disso respondia à questão de por que o Cadre acreditava que
Sharine podia lidar com o arcanjo de temperamento explosivo. Muitos
diriam que ela quebraria sob tal pressão. Sharine sabia que não faria isso
– estava com muita raiva para quebrar, a fúria uma forja que estava
temperando suas rachaduras em cicatrizes endurecidas.
Caliane tinha outra teoria. — Acredito que seu tempo no que você
chama de caleidoscópio foi uma tentativa desesperada de sua mente de
lhe dar espaço para curar feridas que nunca cicatrizaram da primeira
vez. Os feios que zombaram de você após a morte de seus pais, causaram
danos catastróficos dentro de você num momento em que já era uma
criatura ferida e sangrando.
Olhos azuis vívidos cheios de raiva. — O reaparecimento repentino
de Aegaeon apenas acelerou seu retorno à realidade – mas não muito.
Você já estava no meio do caminho para casa; não poderia dirigir Lumia
de outra forma.
Sharine começava a acreditar que Caliane estava certa nisso. Ela
não poderia dirigir Lumia se permanecesse na paisagem fragmentada de
sua mente – suas memórias sozinhas comprovavam isso. Ela podia
detalhar todos os dias do ano passado. Algumas bordas borradas no
início, mas nada esquecido ou perdido.
Nada disso explicava por que estava sendo convidada a se juntar a
Titus. — Não tenho os poderes dos seus Sete, muito menos o poder de
enfrentar um arcanjo.
Raphael olhou para ela com cuidado. — Minha mãe uma vez me
disse para olhar para Illium com cuidado se quisesse ver a raiz de seu
poder – eu não entendi então, mas agora me pergunto de quem ele
herdou sua fidelidade, seu cabelo, seu coração... e sua velocidade.
Uma agitação no fundo de sua mente, o rangido de memórias há
muito enterradas. — É por isso que Raan me chamava de Colibri. — Era
um murmúrio mais para ela do que para Raphael, memórias
envelhecidas suspirando ao despertar.
Você é tão rápida, meu passarinho. O sol em seus olhos, a cor em sua
pele, a luz dos pés – e a velocidade de um beija-flor. Nunca poderia te pegar
se tentasse voar para longe.
Ela esqueceu a gênese de seu outro nome até este exato momento,
esqueceu que era uma carícia amorosa de Raan. Esqueceu que ele fez
uma pintura dela em voo, suas asas e corpo criando listras coloridas no
céu, assim como o pequeno pássaro adornado com joias.
— Lady Sharine? — A voz de Raphael, interrompendo seus
pensamentos, lembrando-a novamente do agora, do aqui – mas sem
impaciência.
A mãe do menino de olhos azuis era uma Antiga; ele entendia que
as memórias demoravam a se desenrolar nas mentes dos mais velhos.
Meadas emaranhadas com nós e, no caso de Sharine, muitos fios
cortados, que eram o repositório da memória imortal.
— Aceito a tarefa — disse, com a sensação de dar um passo em
direção ao futuro. — Vou me preparar para me juntar a Titus.
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
A primeira ação de Sharine foi considerar o bem-estar de Lumia e
seu município conectado. Para isso, reuniu os membros de sua equipe
atual que usavam o manto de liderança: Trace, Tanicia e Farah.
A mais velha das três, Tanicia, seu cabelo preto delicadamente
trançado na frente, mas um halo atrás, disse: — Não hesitaremos em
manter as regras que estabeleceu, Lady Sharine. — Sua voz era rouca,
seu olhar resoluto, e suas asas de um vermelho alaranjado outonal
profundo contra a pele do marrom mais escuro. — Não permitiremos
que nenhuma mancha caia sobre sua honra.
Ela não deveria ter favoritos, Sharine pensou, mas Tanicia era uma
das suas. Uma guerreira por completo, mas com coração. Sharine a viu
colocar doces nas mãos dos jovens que corriam atrás dela nas ruas,
querendo tocar em suas asas, mas muito bem ensinados por seus pais
para ousar.
— Tenho fé em vocês — assegurou aos três, para que não
acreditassem que estava questionando sua lealdade ou compromisso. —
Mas estamos em número reduzido – e agora vão me perder por um
tempo. Devemos ter contingências no lugar, caso os vampiros na área
comecem a agir. — Como Raphael a lembrou, a sede de sangue sempre
foi uma ameaça, especialmente na ausência de supervisão arcangélica.
Com Elijah, o Arcanjo da América do Sul, assim como Caliane no
sono curativo de anshara, o Cadre tinha apenas sete membros agora, um
deles Suyin, recém-ascendida e encontrando seus pés. Acrescente o fato
de que Neha, a Arcanjo da Índia, despertou do anshara uma semana
atrás, e o Cadre estava estendido até o limite.
Como resultado, anjos poderosos que podiam manter a coleira do
medo eram muito mais necessários que na ordem normal das coisas.
Sharine não era mortal ou uma executora. Mas, desde que assumiu sua
posição aqui, aprendeu que tinha a capacidade de tirar o melhor dos
outros, incluindo esquadrões de guerreiros.
Esses esquadrões seguravam a coleira por ela.
— Já falamos sobre isso — disse Tanicia, olhando para Trace e
Farah. — Vários vampiros desta região foram chamados para lutar no
exército do Arcanjo Charisemnon.
— Sim. — Tristeza teceu através de seu sangue por todas as
pessoas vampíricas, angelicais e mortais, que nunca mais voltariam, seus
corpos destruídos pela guerra. Aqueles atribuídos a Lumia no momento
vieram até ela antes de sua partida, certificando-se de que ela sabia que
estava prestes a perdê-los do complemento de Lumia e por quê.
Sharine não tinha inveja de nenhum deles. A guerra não atingiu
esta área isolada – Charisemnon se direcionara para a metade sul do
continente, com a luta ocorrendo principalmente na fronteira norte/sul.
— O arcanjo não apenas se lembrou de seus soldados, ele convocou
civis que eram tecnicamente seu povo, embora vivessem dentro de
nossas fronteiras — lembrou Tanicia a Sharine. — Por mais triste que
seja, isso significa que atualmente temos uma população muito pequena
de vampiros civis. Devemos ser capazes de manter a paz por semanas ou
mais – você construiu uma base sólida sobre a qual podemos nos apoiar.
— Os idiotas sabem se comportar — falou Trace lentamente. —
Todo mundo vai colocá-los na linha – e não serão gentis com isso.
Ninguém, mortal ou imortal, deseja perdê-la como Guardiã e, para esse
fim, garantirão que o Cadre não tenha motivos para questionar sua
liderança.
Oh, ela gostava dele. Gostava de todo seu povo. Farah, tão quieta e
sábia em seus conselhos. Trace, erudito e sedosamente perigoso. A
batalhadora Tanicia, que estava ao lado de Sharine desde o início,
quando Sharine não estava certa do que fazia aqui. A única razão pela
qual aceitou a posição foi porque Illium pegou suas mãos e disse: —
Essas pessoas estão feridas, mãe. Você entende a dor e sabe como ser
gentil. É disso que precisam.
Ele podia ser tão sábio às vezes, seu menino de asas azuis que
estava se tornando mais poderoso a cada vez que ela se virava. No
entanto, sempre se lembraria dele como o bebê desajeitado que
cambaleou na primeira vez que saiu da porta da cozinha, direto para a
queda íngreme de tirar o fôlego do lado de fora.
Ela teve o coração na garganta a cada segundo doloroso, mas não
foi atrás dele. Seu pai observava de baixo... e bem, Aegaeon ainda era um
bom pai, mesmo que já tivesse perdido o interesse por ela como mulher.
Ele pegaria seu menino pequeno e encantado se ele tivesse enrolado suas
asas e caído.
Mas ele não o fez. Seu bebê voou.
E deu asas a Sharine quando ela estava mais quebrada, trazendo-a
para este lugar onde era considerada alguém a quem se recorrer, uma
pessoa em quem confiar. — Tenho confiança em sua capacidade de lidar
com qualquer coisa que surja na minha ausência — disse ela aos seus
três superiores, e viu suas espinhas se alongarem, seus rostos ganharem
luz interior.
— Vou me preparar esta noite e voar para a corte de Titus na
manhã seguinte. — Ela ergueu a mão quando os olhos de Tanicia
brilharam, seus lábios se separando. — Raphael se ofereceu para
arranjar uma carona numa dessas engenhocas de metal voadoras, mas
não sou tão moderna. — A ideia de ficar presa dentro de um tubo de
metal não era sua ideia de voo. — Também quero fazer um levantamento
da paisagem.
Tanicia franziu a testa e Farah deu um passo de um pé para o outro.
Surpreendentemente, foi Trace quem inclinou a cabeça em derrota. —
Desejo-lhe uma boa viagem, Lady Sharine.
CAPÍTULO 7
Na pequena tela do telefone, seu filho abriu as asas para que ela
pudesse ver o progresso de sua cura. — Chegando lá — disse ele. —
Enquanto isso, estou trabalhando no terreno. Isso mantém meus
músculos condicionados e também ajuda com a força das asas, porque
estou constantemente mudando esses músculos quando levanto, dobro
ou viro.
Falaram de outras coisas no tempo que se seguiu, coisas que
poderiam ser faladas entre uma mãe e seu filho. Num ponto, ela disse: —
Como está Aodhan? — O melhor amigo de Illium esteve tantas vezes em
sua casa quando criança que se sentia com direito à preocupação
materna.
Illium fez uma careta. — Bem.
Sharine, uma vez fora dos últimos vestígios da névoa na qual viveu
por tanto tempo, sentiu uma mudança visceral na relação entre seu filho
e seu amigo; se perguntou se deveria dizer algo.
Amizades tão profundas eram raras na vida de um anjo e deveriam
ser apreciadas. A raiva e a amargura podiam destruir o que há de mais
precioso. Mas, lembrou, mesmo enquanto lutavam, eles cuidavam um do
outro. Os dois tiveram muitos anos de amizade e lealdade entre eles para
permitir que isso se quebrasse – mas ficaria de olho em ambos,
garantiria que a teimosia não levasse o melhor deles.
— Dê-lhe saudações minhas e dê meu número a ele. Eu falaria com
ele também.
— Eu irei — prometeu Illium, embora ainda estivesse carrancudo.
— Você terá cuidado, mãe. — Era uma ordem silenciosa, mas mesmo
assim uma ordem.
Ela permitiu, pois sabia que era reflexo depois de tantos séculos
tendo que cuidar dela, de ter que ser a mãe. Havia tantas saudades da
vida de seu filho, tanta dor que ela não entendia. Nunca mais o
decepcionaria.
— Eu prometo tomar todo cuidado — disse a ele, seu coração
doendo. — Sei que lidarei com criaturas perigosas no território de Titus.
— A última coisa que os guerreiros já cansados precisavam era de
distração cuidando de um anjo sem bom senso. — Usará este dispositivo
novamente para falar comigo?
— Eu vou ligar. — Ele sorriu, um brilho nos olhos. — Me pergunto
como Titus lidará com você.
— Ele é um arcanjo e eu sou um anjo velho e experiente que pode
ajudá-lo. Vamos trabalhar bem juntos.
A risada de seu filho tinha uma alegria que a fez estreitar os olhos,
mas permitiu sua travessura, profundamente contente em ver a alegria
enchê-lo até a borda mais uma vez.
Sharine não viu nada digno de nota na primeira hora que voou além
de Lumia. Isso não era surpreendente – embora as terras de Lumia
parassem bem antes da marca de uma hora, suas tropas voavam tão
longe regularmente para ficar em forma de luta e manter sua resistência.
No esquema normal das coisas, sabiam que nunca deveriam
interferir com o povo de Charisemnon, mas Sharine tomou a decisão de
violar essa regra quando os renascidos começaram a se espalhar pela
África – ordenou que seus guerreiros eliminassem silenciosamente
quaisquer ameaças renascidas que vissem. As criaturas cambaleantes
que alcançaram este extremo norte eram em pequeno número e logo
despachadas.
Charisemnon estava muito focado em sua batalha com Titus para
prestar atenção.
As verdadeiras cicatrizes apareceram cerca de meia hora além
desse perímetro. Uma pequena aldeia estava meio em ruínas, uma
grande área central queimada com vigas enegrecidas e telhados
destruídos. Querendo entender o que aconteceu ali, ela fez um círculo
cuidadoso acima do silêncio mortal para garantir que não cairia no
perigo.
Só quando teve certeza de que não viu nenhum movimento,
nenhuma indicação de qualquer coisa vivendo abaixo, desceu no centro
da estrada longa e larga que parecia ser o coração da aldeia. Sua posição
dava-lhe uma excelente visão em todas as direções; localizaria
rapidamente qualquer renascido que pudesse correr em sua direção.
No entanto, as únicas coisas que se moviam na paisagem
carbonizada eram pedaços de tecido que poderiam ser cortinas,
pequenas bandeiras ao vento fraco. Talvez esta vila tenha sido vítima da
batalha entre os dois arcanjos. Mas não, não podia ser. Os combates
ocorreram longe daqui, perto do que foi a fronteira norte/sul.
Então viu a lata vermelha caindo no chão, reconheceu que era o
mesmo tipo de lata que viu as pessoas de sua cidade usar para
transportar combustível. Assim que começou a procurar, viu as outras
latas. Muitas rolaram para longe de qualquer que fosse sua posição
original, provavelmente empurradas ou apagadas pela tempestade de
fogo, mas não havia como esconder sua natureza generalizada.
O combustível foi cuidadosamente dispersado para incendiar este
lugar.
Com um arrepio no sangue, se dirigiu para um grande edifício
enegrecido que poderia ter funcionado uma vez como escola ou salão
comunitário. Tomou muito cuidado; não desejava se tornar uma vítima
dos renascidos. Podia ser velha e, portanto, difícil de matar, mas não
sobreviveria à decapitação – e, de acordo com Tanicia, atualizações
recentes da fronteira tinham as criaturas caçando em matilhas.
Novamente, entretanto, ouviu apenas um silêncio penetrante em
sua intensidade.
Não sabia o que esperava quando olhou através da abertura
estreita criada pela parede quebrada e meio caída do grande edifício...
mas não eram ossos. Muitos ossos. O horror a atingiu ao pensar em todos
os que morreram ali dentro; imaginando se deveria tentar encontrar
uma maneira de se aprofundar mais, desenterrar mais respostas, olhou
para baixo.
Bem lá dentro, sombreado pela forma como a parede havia caído,
estava uma mão que de alguma forma se tornou mumificada pelo
inferno, a pele de um tom brilhante e não natural e a carne há muito
derretida. Como um pedaço de carne defumado por muito tempo. Seus
dedos tinham unhas afiadas em forma de garras enegrecidas pela
fumaça. Ela franziu o cenho. Talvez fosse simplesmente sua perspectiva,
mas as garras pareciam estranhamente alongadas.
Mas não, não era perspectiva, porque mesmo quando ela se
contorceu na lacuna para olhar o mais de perto possível de sua estranha
posição, a sensação de dimensões estranhas permaneceu. Os ossos do
dedo e da mão deste indivíduo estavam... esticados. Como uma aranha.
Esta não era a mão de um vampiro. Até onde sabia, os renascidos
também não se pareciam com isso. Tinham as proporções corretas dos
mortais de quem foram criados. Felizmente, a África não teve que lidar
com os mortos de olhos negros que Lijuan fez de seu povo. De qualquer
modo, aqueles de olhos negros morreram com sua soberana. No entanto,
era possível que os renascidos tivessem começado a sofrer mutação. Se
todos dentro do salão eram como este, então talvez o incêndio tenha sido
um ato de autoproteção.
Lembrando-se de algo que Illium disse a ela, deu um passo atrás
para fora da lacuna, em seguida, recuperou o dispositivo que ele deu a
ela. O telefone. Ele disse a ela que podia gravar imagens. Dada a atenção
incerta que prestou na época, levou cinco longos minutos para descobrir
como, mas então pegou um cuidadoso conjunto de imagens e gravações
para mostrar a Titus.
Podia ser que ele já tivesse visto cadáveres semelhantes muitas
vezes, mas isso não era motivo para ela não estar vigilante. Recolocando
o telefone com segurança no bolso com zíper da mochila, ela caminhou
ao redor do prédio para ver se conseguia entrar sem pisar nos ossos, e
finalmente encontrou um caminho.
A maioria dos ossos que viu perto daquela área eram quebradiços e
desarticulados – nenhum dedo com garras como o anterior. E não havia
como chegar ao corpo original sem quebrar paredes. Ela tomou a decisão
de deixá-lo. Este lugar estava desolado e esquecido. Ninguém iria
perturbá-lo nesse ínterim.
O silêncio assustador da vila sussurrou atrás dela enquanto
caminhava para uma área vazia, então abriu suas asas e decolou. O vento
criado por suas asas agitou a poeira no chão e por um momento teve
quase certeza de ter visto um movimento. Mas quando olhou novamente,
foi para ver um pedaço amassado de papel descartado parando de rolar.
Não, lá.
Uma hiena listrada, magra e de pés leves, rondava nas sombras.
A preocupação presava em seu sangue, e não querendo abandonar
quaisquer sobreviventes à fome ou ao ataque de predadores naturais
encorajados, fez outra varredura na aldeia, indo baixo o suficiente para
localizar qualquer sinal de vida. Nada. Sem respirações no ar. Sem mãos
procurando ajuda. Por fim, continuou a voar, acompanhada por um
solitário peneireiro cinzento que interrompeu o voo ao avistar uma
presa nos campos que passavam. Ela viu mais danos enquanto
continuava, mais assentamentos abandonados, mas nada como aquele
primeiro.
Então começou a ver os lugares onde as pessoas ainda viviam – as
cidades estavam muito silenciosas, com grupos tensos de guardas alados
e baseados em terra nas fronteiras, muitos segurando armas pesadas que
ela não reconhecia. Muito poucas pessoas se moviam nas ruas, e os danos
causados pelo fogo eram faixas pretas na paisagem ao redor de cada
cidade.
Como se seu povo tivesse protegido sua casa com uma fortaleza de
fogo.
Mais de um guarda a avistou ao longo do caminho, mas foi na
segunda cidade que sobrevoou que um guerreiro endurecido pela
batalha com o que parecia ser um braço quebrado voou para falar com
ela. — Lady Colibri — disse ele ao alcançá-la, a pele escura de seu rosto
marcada por manchas rosadas onde sua pele foi queimada ou retalhada
por garras renascidas. — A paisagem não é segura.
Elena de Raphael sem dúvida ficaria irritada por ser cercada por
tanto cuidado protetor, mas Elena era uma guerreira por completo e
mereceu suas listras. Para este comandante angelical, Sharine
permanecia como a Colibri quebrada. Ele tinha o direito de questionar se
ela trazia mais problemas para sua cidade, se ele teria que oferecer-lhe
uma escolta agora.
— Estou ciente — disse ela com gentileza consciente, tendo
percebido as linhas de dor ao redor de seus olhos. Simplesmente porque
anjos curavam mais rápido que mortais não significava que a cura não
doía. — Eu voo para Titus e estou tomando cuidado para não pousar em
nenhum lugar, exceto trechos vazios de terra que oferecem visibilidade
total.
Um alívio da tensão em seus ombros. — Não pouse depois de
escurecer, a menos que seja numa cidade ou vila com planos de proteção.
É quando as criaturas estão mais ativas – embora, por favor, não deixe
que isso a torne complacente à luz do sol. Quando eles estão com fome o
suficiente, não se importam em ser pegos na luz.
— Agradeço a informação. — Ela observou sua cidade novamente.
— Vocês são poucos. — Uma sensação de vazio permeava a paisagem.
— Perdemos muitos na guerra. — Palavras planas e cansadas. —
Outros caíram para os renascidos.
Sharine sabia, sem perguntar, que este guerreiro nunca
menosprezaria seu antigo arcanjo, mas ouviu a raiva em seu tom. — Você
deseja que eu dê alguma notícia para Titus?
Quando ele hesitou, ela disse: — Ele é seu arcanjo agora. As
inimizades do passado não importam, pois tais inimizades são apenas
para o Cadre.
Ele procurou seu rosto. — Mesmo para os soldados e pessoas de
um arcanjo inimigo que buscou aniquilar sua terra?
— Quando os titãs lutam, não prestam atenção aos peixinhos. —
Um fato simples e brutal da vida.
— Sim. — Ele curvou a cabeça antes de dar a ela um relatório que
ela prometeu transmitir.
Então, depois de assegurar a ele que não precisava de uma escolta,
ela voou além da borda chamuscada da cidade e além. Se as cidades
causaram sua preocupação, os assentamentos rurais isolados
devastaram.
Casas inteiras eram pilhas de entulho enegrecido e campos
agrícolas estéreis.
Os abutres se alimentavam dos restos de animais domésticos
mortos, enquanto os leopardos rondavam mortalmente perto de uma
população que ficava fraca e incapaz de se defender. O gato caçador
esperaria pelas horas da noite para atacar, mas que ele estivesse tão
longe de seu território selvagem normal disse a ela que os renascidos –
com seu desejo de destruir todas as criaturas vivas – causaram danos
significativos ao ecossistema.
Numa vila, os mortais e aqueles poucos vampiros que não foram
chamados para a batalha olharam para cima com olhos cansados que se
arregalaram quando ela mudou seu caminho e veio para a terra. Sujas,
linhas de exaustão esculpidas em seus rostos magros, as pessoas se
curvaram profundamente para ela. — Senhora — disseram. — Estamos
honrados.
Ela não sabia se diziam isso porque sentiam ou simplesmente
porque era esperado. Não importava para ela. Não estava aqui para ser
elogiada ou festejada. — Titus sabe do estado de vocês? — perguntou,
vendo os ossos empurrando contra a pele dourada escura de uma
criança que se escondia atrás de sua mãe.
A aldeã que falou primeiro, uma velha que parecia ser a mais velha,
engoliu em seco. — Não preocuparíamos o arcanjo com nossos pequenos
problemas. Não quando os comedores dos vivos vagam pela paisagem.
Sharine podia entender sua reticência, mas como com o guerreiro
angelical, tinha a sensação de que havia mais nisso. Essas pessoas
pertenceram a outro arcanjo durante suas vidas inteiras, e
provavelmente também acreditavam que Titus invejaria sua lealdade
anterior.
Isso não era possível – e não tinha nada a ver com o próprio Titus.
Na verdade, os humanos raramente apareciam nos pensamentos
dos arcanjos. Ninguém do Cadre culparia mais os humanos pelo
comportamento de seu arcanjo do que culparia um gato de estimação.
Um pensamento duro, mas era assim com muitos dos mais poderosos de
sua espécie.
Raphael era diferente, mas apenas porque tinha uma consorte que
já foi humana – uma consorte que se recusava a esquecer de sua
humanidade, mesmo enquanto caminhava no mundo dos imortais. Sem
Elena, Sharine não acreditava que nem mesmo Raphael veria mortais e
jovens vampiros como qualquer coisa além de peças descartáveis num
tabuleiro de xadrez.
Sharine era a mesma... e sempre diferente. Mesmo que não se
importasse muito com os mortais, sua vida estava no plano imortal e
entre seus pares. Mas diferente disso, quando encontrava mortais, os
tratava simplesmente como uma espécie de vida curta, nem mais nem
menos digna do que a espécie de anjos.
Suas crenças mudaram desde que assumiu a supervisão de Lumia.
Agora conhecia os humanos como indivíduos. Agora esperava o sorriso
tímido e torto de Kareem, o dono da barraca que sempre lhe oferecia chá
de menta fresco. Agora tinha um favorito entre as crianças inocentes e
travessas que a seguiam nas ruas. Agora começou a entender por que seu
filho chorou tanto quando perdeu sua amante humana.
Essas memórias estavam emaranhadas em sua mente, mas se
lembrava de sua tristeza. Tristeza tão profunda e verdadeira que
penetrou em sua loucura com a eficácia de uma lâmina afiada. Seu filho
não era naturalmente um ser triste, sua risada a trilha sonora de sua
infância para ela. Então percebeu quando ele parou de rir, quando parou
de receber aquele brilho nos olhos que significava travessura e
brincadeira. Ele retornou eventualmente, mas alterado de uma forma
sutil.
Sua perda deixou uma cicatriz que viveria para sempre em seu
coração.
Ela pensou que o abraçara então, embalara nos braços como fazia
quando era um bebê. Esperava que fosse uma memória verdadeira e não
uma invenção de sua mente quebrada. Gostava de pensar que esteve lá
para ele não apenas naquela época, mas em outros eventos sombrios em
sua vida.
Seu coraçãozinho se partiu pela primeira vez quando seu pai os
deixou. Embora a mente de Sharine tenha se partido no momento da
crueldade calculada de Aegaeon – não porque ele partiu, mas por causa
de como – ainda retinha fragmentos de memória daquela época. Uma das
mais fortes foi apertar o filho pequeno e murmurar para ele que tudo
ficaria bem.
Mas não ficou tudo bem. Ela não era forte o suficiente. Que seu filho
a amasse ainda era o maior presente de sua vida. Frequentemente, os
filhos se esforçavam para ser como seus pais, mas Sharine se esforçava
para ser como seu filho: um anjo honrado e gentil que via os mortais e
nunca os considerava inferiores.
— Vou falar com Titus — prometeu aos aldeões. — Ele não é um
arcanjo que faria seu povo morrer de fome. Nesse ínterim, vou pedir ao
meu pessoal para trazer comida para vocês. — Lumia e o município
tinham seus próprios campos de cultivo e áreas de armazenamento
interno, e escaparam de todo perigo.
Pediria a Farah para liderar as gotas de misericórdia, para
distribuir o quanto fosse seguro, sem colocar o município em risco. Os
imortais podiam sobreviver por muito tempo sem comida, mas os
mortais tinham muito menos margem de manobra. — Não se
desesperem. Nossa terra passou por uma guerra devastadora, mas vai
crescer mais forte e se tornar uma bela joia mais uma vez.
Com os olhos brilhantes, as pessoas curvaram-se profundamente,
dizendo: — Obrigado, senhora.
Isso a perturbou, a esperança brilhante naqueles olhos. Eles não
sabiam a quem se curvavam. Não tinham conhecimento das fraturas
dentro dela. E não ouviam o medo que sussurrava constantemente em
seu ouvido: Você está quebrada. Você é louca. Você falhará. E você cairá.
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
Eras Passadas
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
Depois de voar por mais dez minutos, Sharine disse: — O que você
tem contra Aegaeon? — Ela ficou surpresa com a profundidade da raiva
de Titus quando fez a comparação entre um arcanjo e outro.
Titus lançou-lhe um olhar mais sombrio que qualquer outro que ela
já viu em seu rosto. — Tenho irmãs, sabe disso?
Sharine franziu a testa. Talvez soubesse disso uma vez, mas se sim,
não conseguia colocar seus dedos mentais no conhecimento. — São mais
velhas do que você? — perguntou ela em vez de responder.
— A mais nova tinha mil anos quando nasci. Minha irmã mais velha
tem agora cerca de oito mil anos.
— É uma mãe que você compartilha ou um pai, ou ambos?
— Zuri e Nala são gêmeas, portanto compartilham os pais. Nós, os
outros cinco, estamos ligados pela nossa mãe, Avelina. Minhas irmãs —
murmurou —, também estão ligadas por seu temperamento irritante
compartilhado.
— Sua mãe é muito fértil. — Sharine sentiu a pontada de inveja e
admiração, pois tal fertilidade não era frequentemente encontrada em
sua espécie.
— Ela também adora crianças e é brilhante em criá-los para serem
anjos fortes e honrados – tenho certeza de que teria outro irmão agora,
se a primeira general não decidisse adormecer um milênio após meu
nascimento. Na verdade, minha mãe teria que espancar os homens com
um pedaço de pau se não fosse tão formidável que eles não ousassem
atacá-la sem permissão.
Seu orgulho por sua mãe era aberto, assim como sua afeição
exasperada por suas irmãs. Mais uma vez, o coração dela ameaçou se
abrir para ele, este homem tão direto sobre seus amores e ódios. Com
Titus, nada estava escondido, nada era um jogo sutil. Apesar de tudo que
ela disse a si mesma, ele não era nada como Aegaeon, exceto pelo fato de
ambos serem arcanjos.
Isso tornava Titus muito mais perigoso para ela do que imaginava.
— Minhas irmãs são igualmente desejadas — disse ele, com uma
careta que só um irmão poderia fazer. — Aegaeon fez uma jogada para
Charo, a estudiosa entre nós. Muito espirituosa com seus amigos, mas
tímida com outros. Ele a machucou.
A potente simplicidade dessa declaração atingiu duramente. — Sim,
ele é esse tipo de homem. — Alguém que parecia não ter nenhuma
empatia tão evidente como o filho de Sharine. — Ele me machucou
também.
— É por isso que estava perdida? — perguntou Titus, então fez um
som resmungão. — Todos os anjos dizem que a Colibri está perdida em
seu próprio mundo, mas, infelizmente para mim, você parece estar bem
presente e consciente em meu mundo.
Seus lábios se contraíram, sua diversão uma surpresa para si
mesma. Mas seu resmungo foi tímido, na melhor das hipóteses... e isso
era uma surpresa. — Não fragmentei porque ele me deixou —
esclareceu, pois a ideia de Titus vê-la como frágil era insuportável. — Eu
tinha um filho pequeno que amava com todas as partes de mim. Illium
era minha razão de ser.
— Então o que? — perguntou Titus em seu volume normal.
— Por que acha que tem o direito de me fazer essa pergunta?
Ele encolheu os ombros. — Como vou descobrir alguma coisa se
não perguntar? Não é como se eu estivesse segurando seus pés contra o
fogo para forçá-la a responder.
Era tão Titus falando que ela sentiu o riso estourar as costuras de
seu ser, um prazer tão divertido como não sentia há muito, muito tempo.
Ela ria com o filho às vezes, mas isso era diferente, um momento entre
mãe e filho. Isso, rir com Titus, parecia uma coisa adulta que reforçava
seu sentimento de integridade.
Ele estava olhando para ela quando prendeu a respiração e olhou
para ele, seus olhos atordoados. — Sósia — disse ele finalmente, o
estrondo de sua voz rouca. — É a única explicação.
Rindo novamente, ela enxugou as lágrimas... e teve que lutar contra
o desejo de voar e puxar seus lábios carrancudos num sorriso. Um
impulso infantil para uma velha imortal, mas Sharine não se sentia velha
naquele momento. Talvez fosse porque este martelo cego de arcanjo dera
a ela o dom do riso, e talvez fosse porque era a hora, mas ela disse a ele a
verdade.
— Para entender por que minha mente se partiu — disse ela —,
deve entender minha história. — Um único olhar e sabia que tinha toda a
atenção dele – embora ele continuasse a esquadrinhar a paisagem
enquanto voavam. — Eu amei um homem chamado Raan no início da
minha existência. Já havia passado da minha maioridade uma década e
ele tinha milhares de anos quando nos apaixonamos.
Titus rosnou parecido com um dos leões que vagavam por suas
terras. — Ele não deveria ter colocado as mãos em você.
A raiva era um chicote em sua voz quando ela o esclareceu. —
Mesmo com o dom da retrospectiva, posso dizer que não houve coerção,
nem manipulação. Algumas almas são feitas apenas para se encontrar e
se entrelaçar.
Um silêncio teimoso de Titus antes que ele soltasse um suspiro. —
Me tornei amigo de Alexander quando era um filhote de cerca de
duzentos anos. Ainda somos amigos, embora ele seja um velho arrogante.
Demorou um segundo. — Está falando do Arcanjo Alexandre? —
Caliane o chamava de Alex, mas a amizade deles sempre foi uma amizade
profunda, bem diferente da de Sharine com Caliane.
Quando Titus assentiu, ela balançou a cabeça. — Você me
surpreende, Titus. — Não era mentira; Alexandre era um Antigo, seria
um Antigo durante a juventude de Titus, e ainda assim ela podia ver
porque o arcanjo havia gostado do jovem guerreiro indubitavelmente
impetuoso que Titus fora.
— Minhas desculpas ao seu Raan — disse ele. — Se você diz que ele
era um bom homem, ele era um bom homem.
Isso a abalou, o quanto essa confiança significava para ela. Titus, ela
sabia, não considerava honra levianamente. Engolindo em seco contra a
onda de emoção, desviou o olhar de seu perfil bonito e continuou. —
Passamos meio século felizes juntos. Então Raan morreu.
Titus parou de voar, mergulhando uma fração no céu antes de
voltar a pairar. — Batalha?
— Não, acordei uma manhã e ele estava morto ao meu lado. — Ela
podia falar essas palavras agora e sentir apenas uma tristeza distante;
mas sempre lembraria e amaria Raan, mas não estava mais presa nas
gavinhas pegajosas que o passado exalava.
Titus começou a voar novamente, mas ficou em silêncio por um
bom tempo. Ela deu-lhe tempo para digerir a notícia, ciente de que era
uma grande coisa para um imortal aceitar que a morte pudesse vir sobre
eles, silenciosa e invisível. Não importava que as mortes de Raan e de
seus pais fossem as últimas que soube em eras de sua existência – que a
possibilidade de existir era uma história de terror para os anjos.
— Não sei como entender isso — disse ele por fim.
Ela gostava dele ainda mais por sua honestidade. — Levei muito
tempo, mas, Titus, há mais. Deseja ouvir? — Agora que ela abriu a porta,
descobriu que queria falar sobre isso. Apenas outra pessoa conhecia toda
sua história, e Caliane ainda estava no anshara.
— Sim. — A resposta de Titus foi firme. — Eu ouviria tudo.
— Meus pais entraram no Sono quando eu tinha 85 anos de...
— O QUE? — Foi um estrondo tão alto que ela meio que esperava
que o céu se abrisse. — Seus pais deixaram uma criança sozinha?!
— Eu dificilmente era uma criança. — Mas era uma criança
assustada que passou a vida inteira tentando se apegar a pais que nunca
estiveram presentes. — Mas essa não é a história.
— Não sei se meu coração aguenta mais — disse ele, com raiva,
mas vibrante em seu tom. — Quando seus pais acordarem, certifique-se
de que não esteja por perto. Minha fúria certamente queimaria a carne
deles até os ossos.
— Meus pais estão mortos — disse ela suavemente, essa dor ainda
mais desbotada que a dor da morte de Raan, por aquele adeus de quando
era criança, sem nunca saber se os veria novamente. — Fui verificar o
local de sono deles quando tinha dois séculos de idade e descobri que
seus corpos eram apenas ossos, sua carne pó.
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 23
Titus sabia que deveria manter distância de Sharine enquanto
voavam depois que o fogo estava apagado. Ela estava claramente de mau
humor. Mas ele estava tão fascinado pelas contradições dela e tão ciente
do dom que recebera para salvaguardar que se manteve a uma curta
distância.
Não que ela se parecesse com a mítica Colibri. Ela parecia o anjo
franco e confiante que cravou uma lâmina no olho de um renascido. A
maior parte das calças dela escapou de ser respingada de sangue, mas
não estavam imaculadas em qualquer medida. Mas as calças estavam
longe o suficiente do nariz para que pudesse ignorar o fedor. Suas botas,
ela conseguiu limpar usando a grama; ele fez o mesmo.
Ele se recusou a se concentrar em seu top branco justo, embora
tivesse visto muitas de suas guerreiras lutando com muito menos. Não
tantos séculos antes, a grande maioria delas lutava com nada além de
tinta em seus peitos e fúria em seus corações. Não era a falta de
cobertura que o incomodava, mas sim a falta de cobertura sobre Sharine.
A grande artista enviada pelo Cadre a Titus não era para ser uma
mulher de carne e osso que tinha excelente pontaria com uma lâmina,
seios que caíam ligeiramente sobre o decote de sua blusa e pele que
brilhava com suor. Ela também não deveria ter uma cintura curvada e
quadris que alargavam apenas o suficiente para que um homem
considerasse como caberiam em suas palmas.
E não era o corpo dela apenas que estava lhe causando problemas.
Ela puxou o cabelo atrás num rabo que pegava a luz com cada
mudança no vento, cada ângulo de suas asas. O preto sedoso com ponta
dourada natural – um dourado que brilhava aqui e ali em outras partes
dos fios – era incrivelmente bonito. Tão bonito quanto suas asas.
Ninguém no mundo se parecia com Sharine. Mas também não era uma
questão de beleza. Muitos, muitos anjos eram incrivelmente bonitos,
assim como um número igual de vampiros.
Muitas mulheres em sua corte podiam ficar ao lado de Sharine e
não ser consideradas como de menor beleza. No entanto, Sharine
brilharia de qualquer maneira. Ela tinha em si uma luz radiante que
atraía outras pessoas – a mesma luz rara existia em seu filho. E Titus
tinha uma queda pelo jovem Illium. O jovem era um pouco imprudente às
vezes, mas Titus não era exatamente menos quando jovem.
A coisa mais importante era que como Titus foi leal a Alexandre,
Illium era leal a Raphael. Ele também era um guerreiro que lutava com
inteligência feroz, razão pela qual era um comandante de esquadrão. E
onde quer que fosse, o anjo de asas azuis atraía outros, a chama dentro
dele uma coisa linda e brilhante.
Essa chama veio de sua mãe. Certamente não veio de Aegaeon.
Ele rosnou no fundo de seu peito, querendo chutas aquele traseiro,
mas, infelizmente, suas mãos estavam amarradas nessa conta. Em
primeiro lugar, Charo nunca o perdoaria por trazer à tona a dor do bebê
que perdeu no rescaldo da rejeição impiedosa de Aegaeon, e em segundo
lugar, o mundo precisava de cada arcanjo que pudesse ter.
Foi o último pensamento que o lembrou de uma pergunta que
pretendia fazer – ou talvez apenas quisesse uma desculpa para falar com
Sharine. — Recebeu alguma palavra da corte de Suyin além dos
relatórios que ela mesma fez ao Cadre? — A mais nova arcanjo do mundo
era escrupulosa ao fazer esses relatórios, consciente de que todos os
outros precisavam saber como estava lidando com a devastação em seu
território.
Todos eram honestos dessa forma e, sempre que possível,
ajudavam uns aos outros. Titus, por exemplo, usou sua habilidade
nascida da Cascata para criar um desfiladeiro profundo entre seu
território e o de Alexandre para que ninguém pudesse atravessar a pé.
Embora Alexandre fosse conhecido como o Arcanjo da Pérsia, seu
território na verdade começava do outro lado do istmo que conectava a
África à Ásia, até que Titus quebrou o elo usando seu poder.
A falta de uma ponte de terra significava que os dois não
precisavam se preocupar com incursões do outro lado, e podiam se
preocupar com os perigos já presentes em seu território.
Com o tempo, seus dois povos encontrariam uma maneira de
atravessar a divisão, mas por enquanto, a única maneira de ir de um lado
para o outro era voando ou pelo mar. Nenhum dos quais os renascidos
podiam fazer – felizmente, o horror dos lutadores angelicais de olhos
negros e mortos de Lijuan terminou com ela, sua energia a única coisa
que os mantinha funcionando num simulacro de pesadelo de vida.
A infecção dos renascidos não podia se estabelecer no sangue
angelical.
Riscos de verde-preto na pedra, em forma de asas arrastando.
Frio ao se lembrar do que viu na fortaleza de Charisemnon, Titus
esperava que estivesse errado, que o padrão fosse algo diferente –talvez
dois vampiros renascidos rastejando juntos. Porque se o céu também se
tornasse um lugar de guerra contra as crianças vorazes de Lijuan...
— Presumo que esteja perguntando sobre Suyin por causa de
Aodhan?
— Ele é o melhor amigo do seu filho. — O guerreiro-artista também
foi destacado para Suyin.
— Ele também é leal ao arcanjo a quem foi destacado — foi a
resposta contida. — Embora seja apenas uma posição temporária, ele a
trata com toda a honra.
— Não esperava nada menos de um dos Sete de Raphael. — O
filhote que já foi um adolescente no exército de Titus, como Titus foi no
de Alexandre, fez bem em se cercar de tal lealdade – e isso se estendeu a
sua consorte.
Uma pontada no coração, poderosa e profunda.
De vez em quando, Titus olhava para Elena e Raphael, bem como
para Elijah e Hannah, e se perguntava como seria ter uma consorte que
caminhava com ele através dos tempos de imortalidade. Nunca, no
entanto, chegou perto de forjar um vínculo profundo com qualquer
mulher.
Alguns podiam dizer que ele era o verdadeiro filho de sangue de
sua mãe, que nunca se estabeleceria, e talvez fosse verdade... mas Phenie
também tinha o sangue de Avelina, e estava com seu amante por dois
milênios e contando. Até mesmo Charo, tímida depois de Aegaeon, se
estabeleceu numa domesticidade calorosa com não um, mas três
homens.
A primeira general ficaria imensamente orgulhosa de sua filha mais
nova.
Os tons ricos de Sharine invadiram seus pensamentos pensativos –
e inquietantes. — Mas — disse ela —, Aodhan falou comigo sobre seus
próprios sentimentos e oprimindo tudo o mais é um sentimento de
tristeza.
— Lijuan quebrou o coração de uma civilização antiga. Muitos dos
tesouros da China se foram, destruídos durante o horror da névoa negra
que assassinou. Mas o maior tesouro perdido é a população. Todas
aquelas mentes e corações, seus dons e habilidades apagados da
existência.
Titus tentou imaginar, falhou. — Mesmo depois da destruição de
Pequim, — uma destruição causada na esteira do esforço do Cadre para
conter a ânsia de poder de Lijuan — estou acostumado a pensar na China
como um lugar de profunda história e cultura, com uma população
próspera.
— Da última vez que conversamos, — disse Sharine — Aodhan
falou sobre como é assustador sobrevoar cidades que deveriam estar
fervilhando de iniciativa e esperança e, ainda assim, permanecem em
silêncio, esperando que seu povo volte para casa. Pessoas que morreram
há muito tempo.
— Antes, Lijuan era outra anjo. — Um anjo com quem nunca teve
uma amizade, mas um anjo que respeitava. — Mil anos atrás, não
conseguia imaginá-la fazendo o que fez. O jovem Aodhan está bem?
— Ele diz que está, mas a criança sente profundamente. Sei que é
difícil para ele ver tantas evidências de morte repetidamente. — Um tom
de voz que ouviu em sua mãe mais de uma vez... e, no entanto, o tom
maternal não fez nada para diluir sua resposta a ela.
Sharine nunca falou com ele com aquele tom de voz; não o via como
criança – e ele a teria desafiado a tentar se tivesse dado essa indicação.
Titus não era filho de ninguém, exceto da primeira general.
— Aodhan também está longe de seu próprio povo — disse Titus,
tendo ouvido o suficiente sobre o anjo para saber que não era um
homem que confiava em muitos. — Há alguém por perto com quem ele
possa baixar a guarda? — Seria impossível com Suyin agora – ela
precisava muito de Aodhan para que ele ficasse vulnerável de alguma
forma com ela.
— Todo guerreiro deve abaixar sua espada às vezes — acrescentou
Titus. — Nem mesmo um arcanjo pode continuar dia após dia após dia
sem trégua. — Foi uma lição que aprendeu no colo de sua mãe – o valor
de bons camaradas, amigos e família. Suas irmãs o levaram à loucura,
mas era a elas que ia quando queria ser apenas o acariciado,
atormentado e amado Titus por uma ou duas horas.
— Disse a ele que deveria voar até o território de Caliane para fazer
uma pausa — respondeu Sharine. — Mesmo que não esteja com amigos
íntimos, estará com guerreiros que conhece de sua vida normal, e será,
como você diz, um alívio do pesado dever que está sobre seus ombros.
— Acho que Suyin sente o mesmo peso. — Seu rosto estava magro
e tenso durante a última reunião do Cadre. — Mas ela não pode deixar
seu território, nem mesmo para respirar.
— Espero que esteja construindo uma estrutura de apoio em torno
de si mesma. — A voz de Sharine permaneceu feroz e maternal. —
Aodhan é muito leal para seguir meu conselho e ir para as terras de
Caliane para um descanso, mas não pode ficar para sempre – ele é crítico
para a própria torre de Raphael.
— Alguém perguntou a ele se estaria sujeito a uma transferência
permanente? Ser o segundo de um arcanjo é uma posição que muitos
cobiçam.
Uma pausa antes de Sharine dizer: — Você deve entender – para
Aodhan, os Sete e Raphael são uma família, os laços entre eles estão
muito além da carne, osso e sangue. É uma coisa elementar. Embora ele
sirva a Arcanjo Suyin de todo o coração, sempre voltará para casa no
final.
Sharine suspirou. — Suyin, aquela pobre criança. Deve ser difícil
para ela saber em quem confiar, especialmente depois de ser mantida em
cativeiro por Lijuan por tanto tempo. Ela não pode confiar em ninguém
da antiga corte, pois não tem como saber se as pessoas com quem fala
estiveram envolvidas em seu cativeiro.
— Suyin não é uma criança. — Ela era mais velha que Titus.
Risos que caíram como uma chuva brilhante contra seus sentidos.
— Todos vocês são crianças para mim.
Ele jurou que viu um brilho em seus olhos, estava quase certo de
que o estava provocando. Inacreditável na Colibri... mas não em Sharine.
Decidindo ser a parte madura nesta conversa, respondeu ao seu
comentário anterior. — Tanto quanto o Cadre foi capaz de confirmar,
todos os leais a Lijuan morreram com ela – Suyin não tem que temer a
sabotagem interna. — Ele torceu o lábio. — Realmente não consigo ver
Lijuan deixando ninguém para trás, não quando desejava reunir uma
força do tamanho de uma pequena nação.
Sharine navegou numa corrente térmica por um tempo, suas asas
começando a mergulhar contra os profundos vermelhos e laranjas do céu
do início da noite, mas ainda não a ponto de ser perigoso. Titus apenas a
observou; ela era adorável em voo, uma criatura graciosa e cheia de joias
semelhante ao pássaro cujo nome carregava.
O fogo faiscou no dourado em seu cabelo.
Ele fez uma careta pelo lembrete oportuno de que este mesmo anjo
podia arrancar sua pele de seus ossos apenas com a língua... mas o
lembrete não fez nada para suavizar a tensão em seu corpo, o calor em
seu sangue.
— Gostaria de acreditar na mesma coisa — disse ela ao retornar
para ele —, mas não acha que Lijuan pode ter deixado atrás um pequeno
grupo, encarregado de recuperar seus restos mortais caso ela caísse?
Eles seriam instruídos a colocá-la num lugar seguro onde pudesse se
regenerar.
— Se ela fez isso, foi uma esperança tola. — Titus não fez nenhum
esforço para esconder seu desgosto; ele perdeu todo o respeito por
Lijuan quando ela começou a tratar seu povo como dispensável. — Ela
está morta de uma forma que significa que nunca mais se levantará. Mas
não tenha medo – eu fico alerta, assim como Raphael.
Ele pensava que Neha também estava prestando muita atenção
agora que saiu do anshara, e Caliane sem dúvida faria o mesmo. Titus
sentia falta do conselho sábio e da percepção aguda de Elijah, mas o
Arcanjo da América do Sul ainda estava se curando, sua consorte ao seu
lado.
Quanto a Alexandre, estava fisicamente bem, mas Titus conhecia o
Antigo muito bem para não entender que estava ferido por dentro. Tinha
a ver com Zanaya, outra arcanjo que poderia nunca mais se levantar, suas
feridas tão graves. Não que Alexander fosse falar sobre o assunto; Titus
tentou trazer isso à tona e foi firmemente rejeitado.
Quando se tratava de Lijuan, Alexandre entrou tarde demais no
antigo Cadre para ter o conhecimento necessário de sua corte, mas Titus
sabia que Alexandre o apoiaria se Titus fizesse uma chamada sobre o
assunto. Os dois podiam ser amigos, mas nem sempre estavam na mesma
página quando se tratava de negócios do Cadre, mas sobre este assunto,
estavam totalmente de acordo. — Não permitiremos que uma víbora se
infiltre na corte de Suyin.
— Você é protetor com ela.
— Ela ascendeu num momento terrível. Ao contrário do resto de
nós, não tem um tempo de relativa paz para crescer em sua força. —
Titus teve uns bons quatro séculos antes de Charisemnon começar a
mostrar sua bunda na fronteira. — A única misericórdia em tudo isso é
que, com o mundo inteiro em caos, ela não precisa se preocupar com os
desafios territoriais.
A escuridão começou a tocar o horizonte à distância, e agora se
espalhava sobre eles, batida de asa a batida, respiração a respiração. Até
que finalmente Sharine disse: — Não posso ir mais longe sem descansar.
Titus estava feliz com as habilidades de sobrevivência que ganhou
por ter quatro irmãs; outro homem podia não ter segurado a língua
quando notou pela primeira vez o mergulho em suas asas. — Eu carrego
você. — Mantendo os olhos escrupulosamente longe do peito dela, ele
estendeu os braços.
Ele meio que esperava uma discussão, mas ela voou para pairar
logo acima dele. — Se me soltar — murmurou ela —, fermentarei o
sangue renascido e, em seguida, despejarei a mistura imunda resultante
sobre cada centímetro de seu quarto de dormir.
— Então, vou dormir do lado de fora — retrucou, irritado com a
falta de confiança dela. — Sou um arcanjo, Sharine. Não deixo as coisas
caírem.
— Como é ser tão arrogante? — perguntou ela pensativamente. —
Você passa pelo menos uma hora por dia imaginando todas as maneiras
em que é maravilhoso?
— Você deseja vir ou não? Ou pode pousar e eu pego você no
caminho de volta. — Ambos sabiam que ele não cumpriria sua ameaça –
não estava prestes a deixá-la à mercê dos renascidos que se arrastavam
pela paisagem. Mas um homem tem um limite.
Dobrando suas asas, ela caiu – direto em seus braços.
Só depois que ela colocou um braço em volta do seu pescoço, suas
asas pressionadas firmemente contra seu corpo para reduzir o arrasto,
ele percebeu que isso tornaria as coisas extremamente difíceis. Porque
agora, não só tinha o seu calor suave pressionado contra ele, podia ver o
decote dela, os montes arredondados de seus seios. Se isso não bastasse,
cada parte dela que estava nua esfregava contra sua própria pele nua.
A Colibri. A Colibri. A Colibri, ele cantou silenciosamente. Esta não
era uma mulher. Esta era a Colibri. Uma grande artista. Um tesouro da
espécie angelical.
— O que suas miríades de amantes acham de serem conveniências
fugazes?
CAPÍTULO 24
*
Titus não encontrou nenhum sinal de outro anjo, embora ele e
Sharine procurassem por toda a aldeia duas vezes, olhando sob cada
pedra e em cada armário e edifício externo. Era possível que seus
cientistas descobrissem mais quando vasculhassem a pira funerária
improvisada, pois não desejava pisar nela e possivelmente destruir
outros ossos finos de asas, mas por enquanto podia confirmar a presença
de um único anjo renascido.
— Se o mundo tiver sorte, — disse ele, sabendo que não seria tão
simples — este anjo provará ser aquele que rastejou para longe da corte
de meu nêmesis para morrer sem infectar outros.
O tom de champanhe dos olhos de Sharine ficou assombrado
quando seu olhar encontrou o dele. — Ouviu alguma coisa sugerindo que
outros anjos caíram nessa infecção?
— Não, mas não conheço essa metade do território tão bem quanto
o meu. — Ele mal teve chance de recuperar o fôlego, muito menos de
fazer um tour intensivo por sua nova região territorial. — É possível que
os infectados estejam se escondendo – vimos que a nova safra de
renascidos tem instinto de sobrevivência. Esse instinto pode ser ainda
mais forte em anjos renascidos, se assumirmos que a força de nosso
sistema imunológico significa que a infecção não progride tão rápido
quanto em mortais e vampiros.
Respirando fundo, Sharine disse: — Um anjo pode saber o que está
se tornando, saber que não deveria existir.
O terror se agitando em seu intestino, Titus esfregou o rosto. — Por
enquanto, vamos informar meu pessoal usando seu telefone e depois
voltar para casa. Se este anjo estava se movendo quando você pousou,
não foi nada além de um espasmo persistente – está muito morto, e
preciso voltar para erradicar a ameaça no sul. Especialmente se houver
uma pequena chance de termos que lidar com anjos infectados nos
próximos dias ou semanas.
— Posso pedir a parte do complemento da guarda de Lumia para
ficar de guarda nos céus até que seus cientistas aterrissem.
Titus considerou isso; não queria expor Lumia ou sua guarda ao
risco, mas também não podia arriscar que este corpo fosse perturbado
pelos renascidos ou por animais. — Diga a eles para ficarem nos céus —
disse a Sharine. — Quando precisarem pousar para descansar, devem
fazê-lo em áreas abertas onde os renascidos não podem chegar
sorrateiramente. Lumia não sofrerá nenhum dano com este
destacamento?
— Não é muito mais longe do que as sentinelas normalmente voam
– mesmo que alguém tenha olhos cobiçosos em Lumia neste momento de
caos, não notarão nenhuma diferença em sua rotina. — Depois de ligar
para seu segundo, ela começou a tirar fotos para garantir.
Deixando-a quando tinha certeza de que nenhum perigo espreitava
aqui, ele decidiu dar uma olhada final pela aldeia na pequena chance de
descobrir algo mais sobre o anjo infectado. Foi da última vez que deu
uma olhada no armazém que pisou em algo que estalou. Era um
envelope.
Pegando-o, viu que estava coberto de poeira, exceto por um canto
que tinha a marca parcial de sua bota. Escritas na frente estavam as
palavras: Para nosso senhor Arcanjo Charisemnon.
Titus cerrou os dentes. Em vez de abrir o envelope, o levou para
onde Sharine acabava de fotografar a cena da morte. — Os aldeões
parecem ter deixado uma nota.
Quando ela disse: — Devo ler em voz alta? — Ele estendeu o
envelope. A missiva dentro não podia conter boas notícias; tudo que ele
podia fazer para suavizar o golpe era ouvi-la em seus tons ricos e
complexos com textura. — É um idioma que você conhece?
Ela verificou. — Sim.
— Meu senhor Arcanjo — começou ela, depois de abrir o pedaço de
papel branco dobrado dentro do envelope. — Não sabemos se esta
missiva chegará a você, mas temos esperança. Estamos num estado terrível
– perdemos muitos de nossos jovens e fortes, e os monstros que vagam pela
terra destruíram nossas plantações e mataram nossos animais. Não temos
comida suficiente, nem mão-de-obra para cultivar mais antes de ficarmos
sem suprimentos.
— Depois de muito pensar e porque sabemos que não muitos anjos
voam por aqui, tomamos a decisão de caminhar até a vila mais próxima na
esperança de encontrar um porto seguro. Levamos conosco informações
para você. No entanto, também deixamos isso aqui, pois há uma grande
chance de não conseguirmos. As criaturas contaminadas com seu desejo
por carne aparecem cada vez mais. Nós sabemos que você, Arcanjo, está
lutando contra eles e isso tem prioridade.
Titus não conseguiu conter um grunhido diante da confiança,
inocente e pura, que essas pessoas mostravam na destruição traidora do
espaço arcangélico chamado Charisemnon. Em vez disso, sua bota
transformou o rosto do arcanjo em pó depois que pisou no envelope
deixado para trás em uma esperança traída.
Sharine respirou fundo antes de continuar. — Queremos dizer que
hoje tivemos que lutar contra um anjo que estava doente com a
contaminação. No início, quando vimos asas no céu, ficamos tão gratos que
caímos de alegria no chão. Pensamos em enviar uma mensagem pedindo
suprimentos suficientes para nos ajudar a superar o pior. Mas então o anjo
pousou e vimos que ele não estava bem.
— Nós não o atacamos. Por favor, saiba disso. Nós o recebemos como
um convidado de honra, como nós faríamos com qualquer anjo. Mesmo que
seus dentes fossem afiados nas pontas, suas mãos frias e úmidas, e uma
podridão verde estivesse se espalhando sob sua pele. Acreditamos que
estava doente por causa de um ferimento sofrido em batalha, que logo
lutaria contra ele.
— Só por esse conhecimento — murmurou Titus —, Charisemnon
os teria executado um e todos. — Nenhum mortal jamais poderia ver os
anjos como vulneráveis. — Se o Cadre ficar ciente disso, a única escolha
será a morte, ou apagar suas memórias. — Este último era uma coisa
terrível, uma intrusão e uma violação, mas Titus concordava com aqueles
que diziam que era melhor do que um massacre em massa.
Olhos brilhando com uma umidade que ela não permitiu que caísse,
Sharine continuou. — No início, o anjo falou conosco e sua voz era
perturbadora em sua intensidade áspera. Mas isso durou apenas alguns
minutos. Então, rosnando como um cachorro selvagem, ele puxou uma das
mulheres da vila para perto e arrancou sua cabeça, banhando-se em seu
sangue antes de abrir seu peito para se alimentar dos órgãos internos.
Com os dedos tremendo no papel, Sharine o abaixou por um
momento. — Já ouvi falar desse tipo de comportamento.
— Vampiros que cedem à sede de sangue agem assim; os caçadores
muitas vezes os encontram com os rostos cobertos de sangue, as mentes
bêbadas e os corpos fracos pela indulgência. — Ele se aproximou o
suficiente para que sua asa se sobrepusesse à dela. Ela não se afastou ou
o repreendeu pela intimidade. — Posso ler o resto da carta.
— Não. Eu vou terminar. — Outra longa respiração. — Faço isso
pelas pessoas corajosas e amedrontadas que pensaram em deixar isso
para trás, para avisar os outros. — Exalando, ela continuou a ler. — O
anjo parecia bêbado depois, suas ações descoordenadas, então nós
aproveitamos a oportunidade para nos defender.
— Muitos dos nossos fortes já estavam mortos até então, então não
podíamos lutar com ele com honra. Jogamos combustível nele e o
incendiamos. Esperamos que você tenha misericórdia de nós, meu senhor
Arcanjo. Não queríamos causar-lhe dor ou matá-lo sem misericórdia, mas
não tínhamos outra maneira de impedi-lo.
— Depois que ele caiu no chão, usamos um cutelo de cozinha para
remover o crânio da coluna; acreditamos que talvez os anjos possam se
recuperar disso, então deixamos sua cabeça ao lado de seu corpo. Esse
corpo, colocamos com os outros, amigos e inimigos, que jaziam em
decomposição ao nosso redor. Então, acendemos o fogo usando o pouco
combustível que tínhamos.
Pelo menos isso explicava por que o fogo não queimou toda a
aldeia; não tinha combustível suficiente para começar.
— O fogo era a única maneira que podíamos pensar em purificar o
sangue dos contaminados e despedir-nos dos nossos — leu Sharine. —
Fizemos uma oração pelos perdidos e então começamos nossos
preparativos para partir.
— Esperamos que nos encontre na próxima aldeia. Encontra-se a
norte-noroeste em linha reta, uma caminhada de meio dia para um jovem
ou uma jovem. Para nós, isso demorará um dia ou mais. Não temos mais
veículos funcionando e temos muitos feridos, crianças e idosos.
Agradecemos por lutar por nós e esperamos que nossa carta o ajude a
salvar outras pessoas desse horror. E se não conseguirmos, por favor, avise
de nossa passagem para as duas cidades abaixo, onde muitos de nós temos
família e amigos que vão contar aos outros que fomos embora.
Sharine chorava agora, suas lágrimas quietas e de partir o coração.
— Está assinado com o que presumo ser o nome desta vila. Abaixo está
uma descrição do anjo: alto, com pele branca nas poucas áreas onde não
era verde-preto, cachos negros e uma marca na bochecha esquerda que
parecia um raio.
Titus soltou um suspiro. — Skarde, um cortesão de Charisemnon –
e um homem que diziam ser um de seus melhores agentes de
inteligência. — A cicatriz não cicatrizou depois de uma década porque foi
originalmente feita por Charisemnon num acesso de temperamento – o
arranhão mais básico de fogo arcangélico.
Dobrando a carta com cuidado, Sharine a recolocou no envelope.
Permaneceram num momento de silêncio pelos mortos e perdidos.
Quando olhou para ele e disse: — Vamos norte-noroeste? — Ele não
disse a ela que não havia esperança. Ele assentiu; estava além de sua
capacidade abandonar pessoas que pensavam nos outros em seus
momentos mais terríveis.
Primeiro, porém, fizeram uma segunda ligação para seus cientistas
e estudiosos, dando-lhes mais informações. Um dos cientistas pediu a
Titus que pegasse uma amostra de qualquer carne que pudessem
encontrar, bem como algum osso como uma contingência contra um
desastre que pudesse tornar o corpo inacessível.
Ele ainda falava ao telefone quando Sharine se moveu para atender
ao pedido. Tirando a mochila, pegou o pacote em que guardava as barras
energéticas que deu às crianças; o usou para recolher um pequeno osso
de asa, então apertou sua mandíbula e usou sua lâmina de arremesso
para cortar um pedaço de pele mumificada.
Soltando-a no pacote com o osso, o lacrou antes de enfiá-lo no
fundo da mochila e puxou a mochila. Quando olhou em volta procurando
algo para limpar sua lâmina, ele a tirou dela e a limpou nas calças. Mais
uma mancha não fazia diferença.
Aceitando a lâmina de volta quando ele terminou de falar com seu
povo, a deslizou para dentro da bainha da coxa. Dois minutos depois,
alçaram voo num silêncio sombrio, seus olhos procurando ossos na terra.
Meio dia de caminhada não era tão longe voando mesmo em baixa
velocidade e o sol ainda não estava alto no céu quando chegaram a uma
aldeia que parecia viva, fumaça saindo das chaminés e movimento nas
ruas. Ossos em grande quantidade que viram em sua jornada aqui, mas
nenhum era humano.
A aterrissagem deles causou medo, frio e temor a ondular pela vila,
as pessoas caindo com seus rostos pressionados na terra, mas Titus
estava pronto para isso desta vez. — Levantem! — ordenou e, assim que
o fizeram, ergueu a carta. — Venho da aldeia de Dojah. Algum dos
sobreviventes conseguiu chegar aqui?
Uma garota magra com rosto cansado, a pele castanho-clara e os
cabelos trançados contra o crânio, deu um passo à frente. — Meu senhor
Arcanjo. — A voz dela tremeu. — Dez de nós conseguimos. Dois
morreram depois, seus ferimentos terríveis. Dos remanescentes, há um
mais velho do que eu, mas ele luta contra a febre depois de nossa jornada
aqui e não está lúcido. Os outros são crianças, salvos pelas ações
corajosas dos outros, mas feridos em seus corações.
— Sabe o que está escrito nesta carta? — perguntou ele, se
esforçando para manter a voz suave e sabendo que falhou quando ela se
encolheu.
— N-não. — Uma resposta sussurrante. — Minha avó foi quem
escreveu, mas ela se foi. — Lágrimas lavaram suas bochechas.
Sharine se moveu para colocar sua mão na da jovem, murmurando
para ela até que a admiração substituiu o terror em sua expressão e ela
encontrou sua voz novamente. — Vou contar tudo que sei, Arcanjo Titus.
— O fato de ter se dirigido a ele como ele preferia lhe disse que Sharine
disse algo sobre o assunto.
Agradeço a você, Sharine. Ele achava enfurecedor lidar com o terror
cego dessas pessoas, mesmo sabendo que não tinha nada a ver com ele.
Os lindos olhos de Sharine encontraram os dele. Um dia, eles
conhecerão você. Até então, deve ser forte o suficiente para suportar o
medo deles. Sei que tem ombros para carregar esse peso.
Deveria tê-lo abalado, o quanto sua fé nele significava para ele, mas
se estabeleceu em seus ossos como se sempre tivesse existido. — Venha,
— disse ele à jovem — nós três falaremos ao longe debaixo da árvore.
Uma vez lá, separados dos outros na aldeia por um trecho de
pastagem pisoteada, pediu que contasse tudo que sabia. Tudo que ela
disse combinava com a carta. Incluindo que, independentemente da
severidade de sua voz, o anjo falava palavras inteligíveis e racionais
quando pousou pela primeira vez.
— Mas a pele dele parecia um hematoma em quase tudo, —
acrescentou ela — e descascava em alguns lugares, enrugada em outros.
Seus dedos eram em forma de gancho, suas unhas pareciam garras, e
parecia que sua língua estava apodrecendo verde, seus lábios muito
carnudos e vermelhos.
Quando Titus perguntou a quem ela falou sobre o anjo, seus olhos
ficaram muito grandes. — Nossos anfitriões — sussurrou. — Não
queríamos que ficassem surpresos se isso acontecesse aqui.
O sangue de Titus se transformou em gelo negro: toda a vila sabia
sobre o anjo doente.
As pessoas a quem deram abrigo seguro os condenaram à morte.
CAPÍTULO 27
*
Titus contatou o Cadre assim que ele e Sharine voltaram para a
cidadela.
Podia dizer que ela estava exausta após a velocidade brutal do voo
de volta – mesmo o fato de carregá-la não podia amenizar o impacto. Ela
se enrolou numa bola tão pequena quanto possível para reduzir o
arrasto, e agora lentamente esticou seus membros sob uma tarde pesada
e sombria, sacudindo a vida de volta para suas asas, braços e pernas. —
Quero um banho mais do que qualquer coisa.
Titus também. Mas isso devia ser feito primeiro.
— Gostaria de participar da reunião? — Ele se pegou perguntando
quando deveria mandá-la descansar.
Ela o encarou por um momento. — Sim. — Sua expressão era
inescrutável.
— Só preciso fazer uma parada para colocar meu peitoral. —
Dourado, ele se curvava sobre seus ombros e trazia o emblema de um sol
no centro, raios de poder saindo dele.
Mas o peitoral não era uma coisa de vaidade. Nem era uma
armadura de guerreiro no sentido mais estrito, pois um arcanjo não
precisava disso – qualquer coisa que o derrubasse não seria
interrompida por um escudo de metal. Não, este era um símbolo de
poder e hoje, precisava do simbolismo.
Sharine esperou silenciosamente enquanto ele o colocava, então
deu um aceno rápido. — Seu rosto está coberto de sujeira e suor, assim
como seus braços. Parece exatamente o que é – um arcanjo lutando uma
batalha.
Calor se espalhando dentro dele, ele a conduziu primeiro ao seu
especialista técnico mais antigo e pediu que ela entregasse o telefone por
um minuto para que as fotografias relevantes pudessem ser copiadas.
Feito isso, entraram numa grande sala montada com telas que o
conectariam ao resto do Cadre. — Terá que ficar fora da vista das
câmeras. — Ele apontou os dispositivos que transmitiriam seu rosto para
os outros. — Você não é uma consorte e, portanto, tem automaticamente
o direito de comparecer.
— Eu entendo — disse ela, mas havia uma carranca em seu rosto.
— Qual delas mostrará o rosto de Aegaeon? Devo me preparar para não
quebrá-la em pedaços.
Assustado, ele jogou a cabeça paratrás e riu, seu peito se
expandindo e a luz inundando suas veias para empurrar o peso e a
escuridão. — Infelizmente, não há uma ordem específica — disse ele. —
Depende simplesmente de quem responde quando. — Ele sorriu para
ela. — apenas terá que ser forte, Shari da faca de arremesso.
CAPÍTULO 29
Quando Titus puxou sua cadeira para ela, se assustou ao ver uma
carranca desfigurar seu sorriso. Percebeu seu desconforto e incerteza?
Esperava ser uma convidada melhor que isso – mas Titus, ela estava
aprendendo, tinha mais sensibilidade do que a maioria do mundo
imaginava; nunca esqueceria sua luta interna enquanto se preparava
para limpar as mentes dos moradores.
— Vejo que devemos estar esfomeados. — A mesa estava cheia de
pratos sobre pratos, todos fumegantes e aromáticos, mas não foi por isso
que fez o comentário – descobriu que não gostava quando Titus ficava
quieto, e como ele parecia incapaz de resistir a responder ao sarcasmo
ou palavras secas da parte dela, ela usaria isso para quebrar seu humor.
— Eu te disse, estou com fome – e tenho um cozinheiro que assinou
contrato para alimentar a corte de um arcanjo, mas agora está
administrando as refeições da tropa. O homem não consegue se conter —
resmungou e pegou um prato. — Experimente isso. Vai gostar.
Se perguntando se o humor dele resultava de fome, tomou uma
colher. Quando ele olhou para a pequena quantidade em seu prato, ela
revirou os olhos. — Quero provar todos os pratos e não poderei fazer
isso se me empanturrar com o primeiro.
Não parecendo nem um pouco convencido, ele começou a servir
sua própria porção enquanto ela provava a colher. Floresceu uma
variedade de sabores frescos e brilhantes em sua língua. Gemendo
profundamente em sua garganta, olhou para cima. — Não estou dizendo
que estava certo, mas talvez eu devesse ter pegado mais.
Um sorriso deslumbrante quebrando a carranca, ele entregou a
tigela... enquanto prendia a respiração. Ele era lindo, com um calor que a
atraía como uma mariposa por uma chama. E embora ele pudesse voar
de mulher para mulher, era honesto em suas atenções. Não mentia e
fazia falsas promessas.
Qualquer marca que deixasse não seria marcada pela crueldade.
— Você está pensando muito. — Outra colher aromática colocada
em seu prato. — Coma. Você deu sua comida durante nossa jornada, e
estará nos céus novamente assim que a escuridão cair.
Seu estômago escolheu aquele momento para rosnar.
Quando Titus riu, o som foi uma onda crescente de alegria, ela se
viu juntando-se a ele, faíscas de prazer em sua corrente sanguínea. Fazia
muito tempo que riu com tanta felicidade, mas por estar com Titus... sim,
ele a fazia se sentir bem. Ele podia enfurecê-la e irritá-la, mas nunca a
fazia se sentir menos importante ou sem importância.
Comeram em harmonia amigável pelos próximos quinze minutos,
trocando pratos um com o outro, e comendo um pouco daquilo, muito
disso, até que seus estômagos estivessem saciados a ponto da conversa
ser possível. — Você dormiu? — perguntou ela enquanto ele enchia seu
prato.
Ela podia dizer que ele não comia direito há muito tempo – podia
ver na nitidez de suas maçãs do rosto, a magreza sutil de seu torso.
Poderia acontecer assim com os incrivelmente poderosos – uma
mudança física repentina quando queimavam muito intensamente.
E Titus estava correndo nesse ritmo por algum tempo.
Pegando um prato de que ele gostava particularmente, ela o
estendeu. Nunca mais esperaria por qualquer homem, mas era uma
mulher que cuidava de seu povo, e não permitiria que Aegaeon roubasse
essa parte de sua natureza – especialmente dado que Titus a alimentaria
até a borda se permitisse isto.
Rugas se formando em suas bochechas e luz em seus olhos, Titus
aceitou o prato. — Asante, Shari.
Ela não teve problemas em reconhecer o idioma. — De nada.
— Dormi e você estava certa, me sinto muito melhor por isso. —
Uma carranca. — Não diga eu te avisei. Recebo o bastante disso das
minhas irmãs.
— Por que não ouvi mais sobre suas irmãs? — Era verdade que não
prestava muita atenção às fofocas casuais, mas certamente deveria ter
ouvido falar da família de um arcanjo.
— Provavelmente porque são muito mais velhas. — Ele tomou um
longo gole de cerveja. — Suponho que quem não nos conhece acredita
que, com tamanha diferença de idade, não devemos ser próximos. — Um
sorriso. — Como se a primeira general fosse permitir qualquer coisa,
menos total coesão em seu esquadrão familiar pessoal.
Seus lábios se curvaram. — Você é muito orgulhoso de sua mãe.
— Sim. — Ele colocou um pedaço de carne no prato dela. —
Também estou feliz que ela esteja dormindo. Um homem precisa de uma
pausa na maternidade a cada poucos milênios. Claro, com minhas irmãs
assumindo a causa, não tenho tanta certeza se estou melhor.
Fascinada, ela esperou que ele continuasse.
— Uma coisa é certa – sob nenhuma circunstância permitirei que
minha mãe se junte ao meu exército quando ela acordar, embora seja
uma general brilhante homenageada por outros — acrescentou ele, com
a testa escura. — Ela provavelmente me diria que todas as minhas
estratégias estão erradas e também me perguntará por que não estou
usando uma camisa.
Sharine queria rir, mas não estava disposta a quebrar o momento.
— Alexander está pronto para recebê-la de braços abertos a
qualquer momento que ela acordar – e uma vez lá, ela sem dúvida
matará metade de sua corte com sua presença magnética. — Um sorriso
enorme, o sol batendo nele com força brilhante. — Eu herdei meu
charme dela. Nós dois devemos espantar os pretendentes com um
pedaço de pau.
Sharine estreitou os olhos. — Mais uma vez, estou cega pela sua
modéstia.
Seu comentário seco apenas fez seu sorriso se aprofundar... e seu
estômago embrulhar. Porque, oh, ele não se arrependia, era inteligente e
amava. Essa era uma das coisas mais atraentes em Titus. Podia
murmurar sobre suas irmãs e mãe, mas o fato de que as amava era a
chama de uma vela em seu coração que ela quase podia ver.
— Meu pai passava tanto tempo com minha mãe que dorme desde
que eu tinha setecentos anos. — Uma risada. — Antes de ir dormir, ele
me disse que ela o esgotou e foi glorioso. Agora ele deve se recuperar.
Seus lábios se contraíram, ele estava sendo tão conscientemente
perverso.
Com os olhos brilhando para ela, ele se inclinou. — Ela ficou com
ele cerca de setenta e cinco anos. Ficou grávida cinco décadas depois
disso.
Sombras em seu coração, memórias de outro garotinho com pais
que não estavam ligados durante sua infância. — Você cresceu com sua
mãe?
— Minha mãe, meu pai, minhas irmãs, seus amores, todos eles. —
Ele gemeu. — Meu pai comprou uma casa ao lado da minha mãe, e assim
éramos uma família mesmo após não serem mais amantes. — Mais amor
em sua voz, aberta e orgulhosa. — Ele também é um guerreiro, e entre
eles, me ensinaram como empunhar uma espada antes que eu pudesse
voar.
As sombras queimaram sob o calor escaldante de sua voz. —
Certamente, com tal mãe, mais de seus irmãos devem ser guerreiros.
— Nossa mãe sempre nos disse para sermos fiéis à nossa natureza,
para sermos honestos no caminho que escolhemos seguir. — Mais uma
vez, muito amor e respeito em cada palavra. — Zuri e Nala são
comandantes de esquadrão no exército de Alexandre. Você conhece
Charo. Phenie é música.
— Oh! — Ela engasgou. — Phenie? Sua irmã é Phenie? — Uma das
harpistas mais famosos de toda a espécie angélica. — Meu Deus, Titus, o
talento corre forte em sua família.
— Sabe quanta harpa tive que ouvir enquanto crescia? — Seu
gemido vibrou em seus ossos. — Cada vez que ela cuidava de mim, era
harpa, harpa, harpa. Phenie diz que estava tentando acalmar a fera feroz
que era seu irmão mais novo, constantemente pulando nos móveis e
voando dos lustres, e pulando das sacadas.
A risada saiu dela quando ele pegou a caneca de cerveja em seu
cotovelo e, com a cabeça ligeiramente inclinada paratrás, bebeu em
longos goles.
Sua garganta se moveu, os tendões fortes contra sua pele.
Com os dedos dos pés enrolados e o estômago apertado, pegou sua
própria caneca e tomou um gole. Era um fogo potente que queimava suas
entranhas. Mas gostou disso, gostou que clareasse sua mente e a
trouxesse de volta aos seus sentidos. Até o momento que Titus baixou a
caneca e limpou a boca com as costas da mão, ela se controlou.
No entanto, sua voz saiu rouca quando disse: — Acho que gostaria
muito de conhecer suas irmãs.
Titus sabia que todas as quatro a amariam. Não a distante e
admirada Colibri, mas Sharine, como era agora. Brilhante com vida e
energia, e com uma sensualidade sutil, mas inegável, da qual ela parecia
não perceber, mas ele definitivamente notava. A maneira como ela corria
os dedos sobre superfícies de texturas diferentes do veludo à madeira, a
maneira como inspirava cheiros, seus olhos tremulando semicerrados
enquanto se perdia na sensação, e a maneira como às vezes o observava
como se quisesse dar uma mordida nele.
Titus não estava nem um pouco indisposto. Gostaria que seus
dedos de artista traçassem seu corpo e aprendessem suas texturas, ficou
duro com a ideia dela se deliciar com o cheiro dele, e quanto à mordida?
Seguraria suas curvas inferiores e a levantaria para que pudesse dar
aquela mordida diretamente em sua boca.
A mulher era um inferno numa garrafa.
Ninguém olhando para ela podia imaginar que era milênios mais
velha que Titus.
Seu intestino apertou novamente, seus ombros travando. Ele
esqueceu a diferença de idade enquanto comiam juntos, só agora se
lembrando da longa vida que ela viveu. Muito mais longa que a sua. Essas
coisas não importavam entre os anjos depois de alguns milênios de
existência, mas para todos os efeitos, Sharine era uma Antiga.
Uma amada e reverenciada Antiga.
Que o fez se coçar para acariciar a inclinação de suas costas quando
passou por ele na porta, e cuja risada ondulou sobre ele como mãos
acariciando. Seu pênis reagiu à mesma risada e à luz em seus olhos
enquanto ela ouvia suas histórias de família com interesse aberto.
Ela... o compelia.
Titus ficou tenso. Era um homem com fortes apetites carnais, mas
tinha esses apetites sob estrito controle. Embora amasse sua mãe, ele a
via conduzindo homens pelo pau desde que era uma criança – Titus não
tinha nenhum desejo de se tornar parecido com aqueles homens
apaixonados. Nenhuma mulher com quem flertava chegou perto de
exercer tanto controle sobre ele.
Pegando uma uva do prato sobre a mesa, Sharine separou os lábios
para colocá-la dentro, e todo seu corpo zumbiu de necessidade. Estava
quase decidido a estender o braço para esmagar toda a comida no chão,
então levantá-la e colocá-la na mesa para que pudesse se banquetear
com ela.
Com os dentes cerrados, empurrou a cadeira atrás e se levantou. —
Devo voltar para a patrulha. É possível que possamos localizar e eliminar
tocas inteiras de renascidos enquanto estão descansando.
Sharine lançou-lhe um olhar penetrante. — Ouviu de seus cientistas
sobre o anjo renascido?
— Nada conclusivo ainda. — Esticando as asas, ele disse: — Se não
deseja trabalhar em sua arte, pode usar minha biblioteca. — Ele estava
bem ciente de que estava acendendo o pavio de seu temperamento, e
ainda, apesar do perigo que ela representava para ele, não conseguia
parar. Cruzar espadas com Sharine era muito tentador.
Olhos de adaga, exatamente como ele planejava. — É seguro visitar
a corte de Charisemnon?
Abrindo suas asas, ele olhou para sua convidada menos
cooperativa. — Por que gostaria de ir lá? — Ele presumiu que ela
gostaria de sair com um esquadrão – e poderiam usar suas habilidades
no campo.
— Não agora – nas horas de luz — esclareceu. — Quero caçar na
corte de Charisemnon por qualquer coisa que possa ter sido perdida –
notas sobre seus experimentos, outras informações.
Em pé, ela colocou uma das mãos nas costas da cadeira. — Você e
seu povo entraram como guerreiros, para limpar o território inimigo de
perigos. Não estava procurando por notas ou informações sobre uma
doença angélica – e não sou uma especialista em caçar informações.
Tudo dentro dele se rebelou em mandá-la para aquele lugar.
Procurando tempo para pensar, se virou para onde deixou sua
couraça e outra armadura. Ele a vestiu hoje, completo com ombro, pulso
e proteção das costas.
Seus lutadores estavam cansados, seu povo igualmente. Às vezes,
um símbolo importava. Deslizando suas espadas em bainhas cruzadas
em suas costas, tomou uma decisão.
— Se está procurando informações sobre a doença, — disse ele —
provavelmente será em sua fortaleza na fronteira – ele se escondeu lá
por algum tempo antes da guerra. — Sua boca se torceu. — Achei que
estava sendo um bom aliado, preparando-se para a batalha que todos
sabíamos que viria.
— Sim, ele teria mantido suas anotações por perto. — Ela procurou
o rosto de Titus. — Que você não assumiu imediatamente essa desonra
diz muito sobre você, Titus.
Ignorando suas palavras, ele disse: — Não sabemos que feiura polui
o ar da fortaleza fronteiriça de Charisemnon.
— Se for o suficiente para matar um anjo da minha idade — disse
ela com serenidade —, então o mundo está realmente em apuros e seria
melhor se soubéssemos agora.
Titus não queria concordar, mas ela estava certa. Ele deu um breve
aceno de cabeça.
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
Uma tosse na porta fez com que se virasse para Kiama. Com as
mãos seguras firmemente atrás das costas, estava olhando para qualquer
lugar, menos para os dois quando disse: — Senhor, se não precisa de
mim, vou embora para assumir minhas funções na guarnição – um de
meu povo acabou de cair com uma lesão na asa.
— Renascido?
Ela assentiu. — Ele avistou um solitário rastejando nas sombras de
uma árvore, desceu para tirá-lo – mas um segundo pulou nele de um
esconderijo. Não foi arranhado ou mordido, mas os músculos das asas
precisam de um dia para cicatrizar.
Titus acenou com a permissão para o pedido dela e disse para ela
levar o anjo que estava de guarda no pátio. Estava aqui para cuidar de
Sharine agora. Após a partida de Kiama, se virou para encontrar Sharine
olhando para o livro novamente. Seu longo rabo de cavalo caiu para um
lado, revelando a linha esguia de seu pescoço e a inclinação suave de seus
ombros.
Ninguém que olhasse para ela acreditaria que era feita de titânio e
tinha um temperamento quente o suficiente para colocar o céu em
chamas. E ainda assim ele tentou aquele temperamento curvando-se
para pressionar um beijo no local onde seu pescoço fluía para suas
costas.
Ela estremeceu. — Titus. — Afinal, sem raiva, e seus olhos tinham
um brilho de outro mundo quando seus olhares se encontraram.
Fora de uma Cascata, apenas uma coisa deveria brilhar entre os
anjos – as asas de um arcanjo quando estava prestes a liberar seu poder
mortal. No entanto, seus olhos tinham uma luz que não era do sol. Ele
aceitou isso. Era Sharine, e Sharine fazia suas próprias regras.
Hoje, ela ficou na ponta dos pés e ele se curvou, e se encontraram
num beijo que o fez gemer, as mãos segurando seus quadris. Quando a
ergueu, ela colocou os braços em volta do pescoço dele e o encontrou,
lambida por lambida, gosto por gosto, seu peito pressionado contra o
plano úmido dele. Com o coração disparado e o ar não mais necessário,
ele a apertou e a beijou como um homem faminto.
Seus seios eram do tamanho perfeito para seu corpo e tinham
mamilos que pressionavam contra ele através de sua túnica até que quis
arrancar a túnica e chupar forte, torná-los úmidos e lisos. Mudando as
mãos para suas curvas inferiores, a puxou para cima e ela envolveu as
pernas em sua cintura.
Gemendo, ele se virou para sentá-la na mesa... e a realidade bateu.
— Não aqui — disse ele, quebrando o beijo, sua respiração áspera e
seu peito subindo e descendo num ritmo irregular. — Não na casa do
meu inimigo.
Sharine passou a mão em sua mandíbula, o toque inesperadamente
terno. — Concordo — disse ela, então se inclinou para beijá-lo mais uma
vez.
Ele não queria soltá-la quando ela começou a desdobrar as pernas,
mas forçou seu aperto a diminuir, embora mantivesse as mãos sobre ela
para que deslizasse por seu corpo. Um sorriso foi sua recompensa e ele
ficou satisfeito ao ver que a respiração dela era tão irregular quanto a
dele. Manchas úmidas marcavam o roxo claro de sua túnica.
— Você me faz sentir jovem e imprudente, Titus — disse ela, e
tocou seus lábios em seu peito antes de se afastar.
O local onde o beijou, doeu profundamente.
Sua resposta o apavorou completamente e era homem o suficiente
para admitir isso.
— O que você encontrou? — perguntou ele, sua voz saindo áspera
com o peso das emoções que não queria sentir.
— Deixe-me ler as próprias palavras de Charisemnon – diga-me o
que acha que diz. — Ela ergueu a mão quando ele quis falar, com as
sobrancelhas baixas. — Pare de ficar carrancudo – não estou testando
você de alguma forma. — Palavras afiadas que deveriam ter matado sua
excitação.
Seu pau endureceu ainda mais; claramente seu corpo não estava
interessado em ser racional. — Então do que se trata?
Com os lábios carnudos e rosados pela paixão de seu beijo, ela
disse: — Eu simplesmente não tenho certeza se minhas emoções em
relação ao que Charisemnon fez influenciaram minha interpretação.
— Se procurasse no mundo pela pessoa menos objetiva sobre o
assunto Charisemnon, me encontraria —apontouTitus, as mãos nos
quadris. — Ele é inferior a uma barata em minha opinião. Pelo menos
uma barata não sabe outra coisa.
— Apenas tente — disse ela num bufo de respiração. — Você é um
homem muito inteligente. Pense com a parte estratégica do seu cérebro
que utiliza no campo de batalha.
Sorrindo um pouco – embora não estivesse prestes a mostrar – ele
cruzou os braços e ergueu o queixo. — Leia então, e verei o que ouço.
Sua voz de leitura era lírica e adorável e teve que lutar para prestar
atenção em suas palavras.
— Estou correndo para um grande sucesso na construção de uma
obra-prima com o dom de Lijuan e o meu próprio — ela leu —, um sucesso
que não foi visto entre minha espécie por eras e eras. Lijuan diz que tem
motivos para acreditar que existia outro tão grande quanto eu no início da
nossa existência, que ela tem pergaminhos guardando uma dica da razão
por trás dos vampiros e porque a toxina vive em nós. Se ela estiver certa,
aquele primeiro arquiteto da doença foi realmente terrível e forte.
Movendo-se pela sala porque ficar parado não era seu estado
natural, Titus bufou. — Claro que ele adora o pior de nós.
Ignorando sua interrupção, Sharine continuou. — Mas serei melhor
do que aquele anjo desconhecido. Ele foi esquecido. Ninguém me
esquecerá, porque farei a única coisa que ele não pôde fazer. Ele infectou
anjos, mas não estava no controle. Eu estarei no controle. Vou decidir quem
vive e quem morre. Meu legado será de um poder tão mortal que ninguém
se levantará contra mim. Nem mesmo Lijuan. Ela deve tentar, bem, mas
tenho minhas armas.
Jogando a cabeça atrás, Titus riu longa e fortemente, sua diversão
profundamente real. — Nunca há honra entre os malfeitores. Teriam
comido um ao outro se sobrevivessem à guerra. — A imagem deu-lhe
grande prazer. — Há mais? Ou ele terminou de dar tapinhas nas próprias
costas?
— Tem mais, mas o que ouve nessa parte? — Fechando o livro,
Sharine se virou para lhe olhar enquanto ele caminhava pelo outro lado
da sala. Suas asas eram salpicos de cores brilhantes neste espaço sóbrio,
como se uma borboleta tivesse voado de fora.
— Se a história que a Legião contou a Raphael for verdadeira, então
o arcanjo que criou a toxina nos infectou a todos. — Um ato tão terrível
que existia em suas células até hoje. — Então, o que Carisemnon poderia
fazer que o outro já não tivesse feito?
Sharine não interrompeu, deixando-o andar enquanto ele
trabalhava nas opções em sua mente. Havia apenas uma resposta. — Ele
está falando sobre ser capaz de infectar e salvar pessoas à vontade. —
Quente como sangue, encontrou o olhar de Sharine. — O asno está
falando sobre um antídoto.
— Sim, eu pensei o mesmo. — Colocando o diário sobre a mesa, ela
pegou outro encadernado em couro idêntico. — Este é o diário anterior.
Decidi ler depois de completar o mais recente – tive a sensação de que
ele planejava isso a muito mais tempo do que percebemos, talvez muito
mais tempo do que até mesmo Lijuan estava ciente.
— Há muito tempo achei que ele devia ter um plano de backup que
incluía um lugar para se esconder e se recuperar caso a batalha estivesse
indo contra ele. — Mas Titus não lhe deu essa oportunidade. — Acha que
ele escondeu o antídoto em seu lugar secreto?
— Nada do que li diz que ele tinha o antídoto, apenas que estava
em andamento. — Ela folheou uma seção do diário. — Mas aqui, olhe.
Ela caminhou até ele novamente e, em sua empolgação, não parou
rápido o suficiente. Suas asas se sobrepuseram mais uma vez, o braço
dela roçando seu peito enquanto ela estendia o diário. Uma sensação
estranha floresceu dentro dele ao perceber que ela estava confortável o
suficiente com ele para ficar tão perto dele.
Um beijo apaixonado era uma coisa, um ato realizado enquanto
ambos eram totalmente racionais, outra coisa. Porque, no final das
contas, ele era um arcanjo e não havia nada que ela pudesse fazer se ele
decidisse machucá-la.
— Aqui, você vê?
Desviando o olhar para o que ela indicava na página, ia lembrá-la
que não conseguia ler fluentemente a língua nativa de Charisemnon. Mas
não eram palavras desta vez. Era um diagrama. Uma localização. Mas o
mapa foi desenhado sem marcadores ou cabeçalhos de bússola, feito por
alguém que conhecia a localização e, portanto, não precisava dessas
instruções.
Pegando o diário dela, correu o dedo pela encosta esboçada em
duas páginas. Estrelas pontilhavam o céu, mas essas estrelas não
pareciam estar em qualquer tipo de ordem do mundo real. Um rio ou
riacho corria à distância antes de desaparecer sem aviso – ou foi para o
subsolo naquele ponto, ou Charisemnon não se preocupou em esboçá-lo
totalmente porque não era do interesse dele.
O mais curioso, porém, era que dentro da colina havia uma
residência. Charisemnon a desenhou como uma casa de boneca, com a
frente removida.
Ou este era apenas um plano abandonado, ou construiu uma
fortaleza inteira sob uma montanha.
Bem embaixo do nariz de Titus.
Ele esfregou o queixo. — Devo falar com meu espião mestre. Deixe-
me ver se ela está ao seu alcance.
Senhor, veio a resposta imediata, estou na guarnição. Vim falar com
Tarik antes de começar meu período de sono.
Junte-se a nós no pátio interno, disse Titus. Pode voltar para seu
irmão adotivo em breve. Os dois guerreiros órfãos cresceram juntos na
corte de Titus e seu vínculo era tão forte hoje quanto no dia em que
nasceram.
Virando-se para olhar para o rosto inclinado de Sharine, queria
esfregar o polegar nos lábios dela, roubar outro momento que não tinha
nada a ver com renascidos ou morte. Em vez disso, enrolando os dedos
na palma da mão, disse a ela o que estava acontecendo. Sharine manteve
o diário relevante em mãos enquanto os dois desciam para o pátio
interno.
— Este lugar deve ser protegido — disse ela. — Sei o que pensa de
Charisemnon, mas este repositório de conhecimento valerá muito para
nosso povo.
— Quem sabe que veneno ele pingou nessas páginas —
murmurouTitus —, mas me curvo ao seu maior conhecimento dessas
coisas. — Ele não era tão vingativo com Charisemnon a ponto de privar a
espécie angélica de sua história legítima. — Vou contar aos nossos
historiadores e bibliotecários sobre sua existência depois que as coisas
não forem tão perigosas. Caso contrário, podem tentar voar aqui agora e
não preciso que os não-combatentes ocupem tempo ou recursos.
Um olhar para cima, uma sobrancelha levantada.
Ele revirou os olhos novamente, encantado com o efeito que isso
teve sobre ela. — Caso não tenha notado, você pode disparar parafusos
de energia. Você não é um não combatente.
Sharine ficou quieta – incomumente – até que ele não aguentou
mais. — O que planeja agora? — perguntou ele em suspeita aberta.
Seus cílios piscaram. — Estava pensando que você tem muito mais
facetas do que percebi. — Uma declaração quase afetada, que ele não
sabia como interpretar.
Mas alcançaram o pátio, e sua espiã mestre estava pousando na
frente deles. Um anjo de mais de um metro e oitenta com ossos
marcantes, Ozias não parecia capaz de voar para qualquer lugar sem ser
vista ou observada. No entanto, essa mulher com pele do mais escuro
castanho e cabelo preto selvagemente encaracolado, seus olhos apenas
um tom ligeiramente mais claro, tinha a habilidade de se misturar em
qualquer lugar. Especialmente porque frequentemente usava cores na
faixa marrom-preta e usava maquiagem para suavizar sua estrutura
óssea dramática.
As pessoas não a notavam. Não a viam.
Suas asas eram como as de um falcão, com listras marrons e pretas,
com manchas brancas. Era como se tivesse nascido para se misturar, mas
isso era uma ilusão inteligente. Na batalha, todos os soldados sob o
comando de Ozias olhavam para ela e a encontravam todas às vezes.
— Ozias, — disse ele — esta é Lady Sharine. — A apresentação foi
mais para que sua espiã mestre soubesse como se dirigir a Sharine do
que porque Ozias ainda não estava ciente de sua identidade. — Sharine,
minha espiã mestre, Ozias.
Ozias se curvou na cintura na mais respeitosa das reverências. —
Minha dama. É uma honra conhecê-la.
— Acho que você é como Jason e deve ter estado muitas vezes em
Lumia, um fantasma invisível — disse Sharine, com uma risada em sua
voz.
Ele viu o brilho nos olhos de Ozias enquanto Sharine falava,
entendeu sua batida atordoada de silêncio. A voz de Sharine era linda,
exuberante, com elementos impossíveis de descrever, mas que roçavam
a pele como uma carícia. Titus começava a pensar que era uma espécie
de dom, assim como sua capacidade de causar terremotos.
Porque não foram apenas os arcanjos que a Cascata alterou... e
Sharine viveu em mais de uma Cascata.
— Você me pegou, — disse Ozias, sua voz ficando um pouco rouca.
— Mas espionar você à distância é uma coisa, e conhecê-la pessoalmente
é outra.
Sharine estendeu o diário. — Aqui está o que gostaríamos que você
visse.
Pegando o diário com mãos cuidadosas, Ozias examinou o
diagrama com cuidado.
Quando Titus perguntou se ela viu ou ouviu algo que pudesse
indicar a construção de uma nova fortaleza escondida, ela balançou a
cabeça. — Colocaria em meus relatórios, senhor. — Sem limite em seu
tom; estava ao seu lado por centenas de anos, sabia que sua pergunta não
era um julgamento.
— Nunca vi nada que indicasse tal construção, e nem meu pessoal.
— Ozias não mostrava muita emoção, mas agora franziu a testa. — Mas
seria o cúmulo da arrogância dizer que isso não poderia ser feito. Mesmo
Jason, a quem respeito profundamente, foi incapaz de encontrar o local
onde Lijuan dormia antes dela se levantar, e sei que ele caçava com foco
intenso.
Jason era o espião mestre de Raphael e considerado um dos
melhores do mundo. Titus tentaria roubá-lo, mas seria um esforço inútil
porque Jason era leal ao sangue. Além disso, apesar de sua admiração por
Jason, sua própria espiã mestre não o perdoaria por pelo menos sete
décadas. Ozias mantinha seus rancores com força.
— Mas, — apontou — você tem uma rede muito mais forte no
território de Charisemnon do que Jason tinha na China. — Era uma
questão de logística simples – Titus estava do outro lado da fronteira
com seu inimigo; Ozias tinha agentes duplos que viveram tanto tempo no
norte que eram considerados locais. — É mesmo possível que você não
tenha ouvido nada sobre um projeto tão grande?
Ela olhou para baixo por um segundo, a luz do sol captando os tons
vermelhos ocultos no preto de seu cabelo. Lentamente, ela assentiu. —
Está certo, senhor. Deveria ouvir algo, o que me faz acreditar que o
diagrama é de uma residência histórica –ou foi construído num dos
poucos locais onde um empreendimento tão grande poderia acontecer
sem ninguém falar fora de hora. Não seria aqui.
— De acordo. — Eles não apenas vasculharam todo o complexo da
fortaleza, mas Ozias tinha muitos espiões nesta corte. Uma enorme
fortaleza não poderia funcionar sem todos os tipos de pessoas, incluindo
funcionários de cozinha e limpeza. Charisemnon não era muito bom em
garantir que seus cortesãos soubessem tratar bem esses trabalhadores.
Como resultado, eram os mais fáceis para a espiã mestre de Titus aliciar.
— Sua fortaleza ao norte, — disse Ozias — duas horas a leste de
Lumia, é muito menor. Nunca consegui obter uma fonte dentro daquela
fortaleza, e tínhamos que nos contentar com sobrevoos furtivos ou coisas
avistadas à distância. Fizemos apenas uma verificação superficial lá, para
garantir que não havia nada perigoso lá dentro.
Olhando para cima, os olhos distantes em pensamentos, ela
acrescentou: — O único outro local possível onde uma estrutura
subterrânea poderia ser construída em silêncio é bem na fronteira.
Titus olhou para uma de suas melhores pessoas. — Já dormiu o
suficiente, Ozias? — perguntou ele com preocupação genuína.
Um raro sorriso de uma mulher que uma vez o embebedou debaixo
da mesa com uma bebida letal criada por Charo para todas as pessoas.
Não que Titus tivesse ficado bêbado; o sistema arcangélico era forte
demais para isso. Mas teve que desistir da queima ardente do material
caindo.
— Não estou perdendo a cabeça, senhor — disse ela. — Estou
ciente que era uma das áreas mais vigiadas e protegidas enquanto
Charisemnon estava vivo.
— Então, como acredita que algo tão significativo poderia ser
construído sem o conhecimento de Titus? — A sobrancelha de Sharine
estava franzida.
Titus queria tirar um dedo e esfregar aquelas marcas, mas, ao
mesmo tempo, aceitava que Sharine ganhou suas marcas, suas cicatrizes.
Nunca seria uma mulher que pudesse deixar a salvo e protegida dentro
de sua cidadela... e isso presumindo que ela concordasse em ficar com
ele.
Ficar com ele.
O pensamento o atingiu como um chute no estômago de uma bota
de pedra.
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 42
Dois dias depois, Titus podia dizer que Sharine não queria que
ninguém tomasse sangue da criança, mas ela apertou a mandíbula e
cerrou os dentes e observou com olhos de águia até que o ato fosse feito.
Os soluços do bebê logo se transformaram em fungadas depois que
Titus a pegou e deu um tapinha em suas costas, seu pequeno corpo
aninhado em seu ombro. — Você é corajosa. — Era verdade – a criança
chorava como qualquer criança, mas também se recuperava
rapidamente, com os punhos cerrados como se estivesse se recusando
obstinadamente a se render.
Ele sabia que não deveria se apegar a ela, que ainda podia ter que
executá-la – e sabia muito bem que isso o destruiria, mesmo que não
tivesse um vínculo com ela. Mas não conseguia reprimir seus
sentimentos de afeto. Era tão pequena e tão indefesa. Alguns diriam que
isso fazia dela a arma perfeita para aniquilar o mundo.
— Existe alguma palavra? — perguntou Sharine, suor umedecendo
o cabelo em suas têmporas e manchas de substâncias desconhecidas em
sua túnica – ela acabava de fazer um turno cuidando de uma equipe de
solo. — Ela é portadora do vírus?
— Meus cientistas estão tendo dificuldade em entender o que veem
nas células dela – daí a necessidade de coletar mais amostras e confirmar
suas descobertas. — Ele foi franco ao dizer que deveriam ter cuidado
com o sangue que colhiam, para não gastá-lo muito rapidamente. Afinal,
era um bebê, de cujo corpo tiravam as amostras.
A única razão pela qual permitiu isso foi porque teve que dar ao
Cadre uma razão para permitir que esta criança vivesse. Ninguém podia
forçá-lo a executar alguém em seu território – mas se ela fosse a
portadora de uma praga, ele não teria escolha. — Às vezes, ser um
arcanjo não é um presente — rangeu.
Sharine tocou o braço dele com a mão, depois estendeu a mão para
acariciar as costas do bebê. — Eu não invejo você, Titus. Mas sei que tudo
o que fizer, fará com honra. Esta criança terá a melhor chance possível
com você como seu campeão.
Ele deu um beijo na cabeça felpuda do bebê e esperava que pudesse
manter a fé de Sharine.
*
Enquanto os cientistas trabalhavam, vestidos com roupas de
proteção, normalmente usadas apenas por mortais, o bebê continuava a
viver no berçário dentro da corte de Charisemnon. Se fosse portadora,
levá-la para qualquer outro lugar corria o risco de espalhar uma doença.
Então, Titus e Ozias trouxeram tudo que o bebê poderia precisar.
Sharine observou a criança por vários turnos, com Ozias se
oferecendo como voluntária para correr o risco de infecção e intervindo
para que tivessem outra pessoa na rotação que pudesse ficar com a
criança sem equipamento de proteção.
— Nenhuma criança deve passar seus primeiros dias no mundo
sem o conforto do toque — disse a espiã mestre de Titus com firmeza. —
Sei o suficiente sobre babá depois de sobreviver a todas as crianças que
foram criadas em sua corte, senhor, que é improvável que eu mate o bebê
por acidente.
Desnecessário dizer que Ozias era uma babá muito incomum.
A única misericórdia foi que Sharine encontrou a confirmação no
diário de Charisemnon de que a infecção se instalou cedo e visivelmente,
então os três só tiveram um período de suspensão de duas horas após o
contato com a criança. Depois disso, estavam seguros para voltar à luta,
certos de que não iriam inadvertidamente levar a infecção para as tropas
e equipe de Titus.
Na noite do quinto dia desde o nascimento da criança, Titus
apareceu com um jantar para Sharine e encontrou a criança dormindo
em seu berço. Enquanto comiam, sentados lado a lado num sofá, Sharine
pediu uma atualização sobre a situação dos renascidos; sua última
mudança externa foi vinte e quatro horas antes, quando ela, sozinha,
salvou três equipes de solo de serem esmagadas por um ninho
escondido.
Dia após dia, hora após hora, estava ficando cada vez mais
confortável em seu poder e mais capaz de dirigi-lo. Titus tinha a forte
sensação de que ainda só tinham visto a ponta do iceberg –Sharine tinha
muito mais surpresas na manga.
Seu povo superou o choque da Colibri não ser nada do que
esperavam e agora estavam a caminho da adoração total. Kiama durona,
leal e de coração duro costumava rastreá-la para conversar, a cozinheira
apressada de Titus de alguma forma tinha tempo para fazer uma coisinha
para ela a cada dia, e um de seus principais comandantes dos vampiros
ameaçava um motim se Titus não conseguisse mantê-la.
— Não disse nada quando você assustou as outras, — disse India
com um lampejo de presas — mas senhor, certamente eu vou me rebelar
se você perder Lady Sharine.
Amadou, alto e corpulento, outro comandante sênior, assentiu em
solene acordo.
Até mesmo Tanae foi movida a dizer: — Eu gosto dela. — Da sua
treinadora de tropas, isso era um elogio sem limites.
— O esforço de extermínio continua ganhando velocidade agora
que os caçadores estão localizando os ninhos. — Em parte, era por isso
que queria falar com ela. — Já nos distanciamos tanto de nosso ponto de
partida inicial que não faz sentido voar de volta todas as manhãs e depois
voar para frente novamente. Ficarei no campo por algum tempo.
— Precisa de mim para cuidar do bebê em tempo integral?
— Não, você é muito necessária no campo. — As reservas de
Sharine eram profundas, seus raios de poder de intensidade violenta.
Ficou claro ao longo do tempo que estava com eles que ela era mais forte
do que Tzadiq– e o segundo de Titus estava no nível superior de
lutadores não arcangélicos.
— Acha que ela sabe que poderia ter sido uma general? — disse
Tzadiq a ele da última vez que os três estiveram no campo ao mesmo
tempo, o verde claro de seus olhos seguindo Sharine no céu noturno
enquanto ela protegia as tropas vampíricas com fúria e precisão. — As
pessoas a seguem, ela tem o poder marcial e a inteligência de raciocínio
rápido.
— Vou perguntar a ela, — disse Titus — mas pode imaginar um
mundo sem a arte de Sharine?
Tzadiq fez uma pausa para limpar sua espada incrustada de sangue.
— Você está certo, senhor. Temos generais suficientes. Temos apenas
uma Colibri.
Hoje, porém, Titus foi forçado a pedir para ela ser a general e não a
artista. — Preciso que você voe para o norte com o esquadrão de Ozias e
duas equipes de solo, limpando todos os ninhos renascidos conforme
avança. Encontrará as tropas de Alexandre em algum momento, e o
grupo de vocês pode fazer uma varredura final abrangente do norte para
se certificar de que está limpo.
Não queria mandá-la para longe dele, mas era o melhor uso
possível dos recursos. Nala e Zuri também tinham a capacidade de
disparar raios de energia em seu arsenal – adicionar o poder de fogo de
Sharine tornaria a equipe imparável contra o número de renascidos no
norte. — Assim que o norte estiver limpo, não preciso me preocupar com
a reinfecção daquele lado.
Ele fez uma pausa, fez uma careta. — Lembre-se – não dê ouvidos a
nada que minhas irmãs digam sobre mim.
Uma contração de seus lábios, mas seu olhar era solene. — O que
acontecerá com o bebê com nós três saindo?
— Parece que ela encantou um dos cientistas. — Nenhuma
surpresa, já que a bebê sorria em seu sono e chorava, mas raramente. —
Asiah está mais que disposta e feliz em cuidar da criança sem
equipamento de proteção. A pequena estará segura e cuidada enquanto
estivermos fora.
— Asiah... sim, ela é a única dos cientistas que eu confiaria com ela
— murmurou Sharine. — Ela a trata como um bebê, em vez de um
experimento científico. — Olhando para Titus, colocou uma mão em sua
coxa.
O músculo saltou, ficou rígido, seu corpo inteiro focado no calor
dela. — Sharine.
— Cuide-se, Titus. — Saiu um pedido. — Simplesmente porque é
um arcanjo não significa que pode ir para sempre sem descanso. —
Então ela se inclinou e o beijou, e seus músculos abdominais se
contraíram, seu pulso acelerado.
Quebrando o beijo antes que ele pudesse alcançá-la, ela se levantou.
— Verei você quando nossa tarefa terminar.
Titus nunca sentiu dor ao ver uma mulher se afastar dele, mas
estava com um grande hematoma uma hora depois, quando Sharine
decolou para o céu do início da noite com o esquadrão de elite de Ozias.
As equipes de solo partiram antes deles.
Pressionando o punho contra o coração, ele a observou até que
ficou invisível no céu, então decolou para se juntar aos esquadrões do
sul. Levou tudo que tinha para não virar para o norte, em seu rastro, mas
era um arcanjo. Seu primeiro dever era para com seu povo e seu
território. Isso não significava que não olhou por cima do ombro mais
uma vez, na esperança de ver asas de índigo e ouro no céu.
*
Sharine sentiu uma pontada dentro dela enquanto voava para longe
de Titus, e não estava certa se gostava. Ao mesmo tempo, não podia
deixar de procurar sua forma grande e sólida no pátio. Ele usava sua
armadura peitoral e outra armadura da parte superior do corpo, as mãos
nos quadris e as asas seguras com controle primoroso contra sua coluna
– e tinha certeza de que ele estava carrancudo.
Por alguma razão, isso a fez querer sorrir.
Mas então seu esquadrão ganhou altura e ela não conseguia mais
identificá-lo na terra lá embaixo. Sua dor dentro se tornando um nó
pesado e duro, angulou suas asas para o norte e para longe do arcanjo
que entrou em sua vida num momento em que não queria nenhum
homem no sentido romântico.
Anteriormente, ela havia pensado que Titus deixaria uma marca.
Agora sabia que aquela marca seria profunda, dolorosa e doeria por
muito, muito tempo. Mas ainda correria o risco. Não era mais a Sharine
que cresceu assustada e com medo, uma criança que tentou se apegar
aos pais sendo sempre boa; a Sharine que era hoje disparava raios de
suas mãos, cometia erros e aprendia com eles... e corria riscos.
Mesmo quando envolvia um homem tão perigoso para ela quanto
Titus.
CAPÍTULO 44
Titus lutou até perto da exaustão nos dias que se seguiram, indo
cada vez mais longe de Sharine. Em desespero, pediu a Tzadiq que
comprasse um aparelho telefônico para ele e começou a aprender a usá-
lo para poder ver o rosto dela quando falavam.
Seu segundo não respondeu ao pedido, mas seus olhos falavam
muito.
Titus pouco se importava; não era um homem para esconder suas
emoções, mesmo sabendo que o futuro traria rejeição e uma dor terrível.
Sharine deixou claro que não queria estar amarrada a nenhum homem.
Titus não podia culpá-la por sua postura.
Seu coração se retorceu, a dor mais difícil de suportar do que
qualquer ferimento de batalha que já sofreu. Ela voou dentro dele, havia
Sharine, e a ideia de não tê-la lá sempre... era brutal.
— Alguns diriam que você merece isso — disse Tanae com uma
distinta falta de simpatia em seu tom quando se deparou com ele
resmungando imprecações para o telefone quando ele não obedeceu. —
Se apaixonar tanto por uma amante que não vê você como o sol em seu
céu.
Titus olhou para ela. — Vangloriar-se não combina com você,
Tanae.
— Eu disse alguns, senhor. — Seu olhar ficou distante, sua
treinadora de tropa focada numa paisagem secreta interna. — Estou feliz
por você, que finalmente conheceu a profundidade e a paixão de seu
próprio coração e a intensidade com que pode ser sentida.
Ela olhou para o chão, seu cabelo flamejante numa trança. —
Mantive meu coração confinado século após século, meus temores de
velhos inimigos, e agora tenho um filho que é meu orgulho, mas com
quem mal posso falar. Quando o faço, digo todas as coisas erradas e o
vejo se afastar ainda mais de mim.
Atordoado e sem palavras por essa demonstração inesperada e
surpreendente de emoção, Titus observou Tanae em silêncio enquanto
ela passava por ele. Ela nunca foi particularmente maternal com seu
filho, mas esta era a primeira evidência que via de que a distância entre
eles era uma ferida que sangrava.
Talvez, depois que o mundo estivesse se estabelecido em alguma
aparência de sanidade, falasse com Galen, veria se seu ex-protegido
desejava voar para casa para uma visita. Ou isso simplesmente causaria
mais dor para ambas as partes? O fato era que Tanae podia ser uma mãe
difícil – Titus pensava isso mesmo quando Galen era um bebê, faminto
pela aprovação de sua mãe.
Sabia que os cavalheiros gentis e mimados – um grupo particular
de órfãos criados em sua corte – tentaram cuidar do menino, mas Galen
era teimoso e decidido mesmo então. Isso não significava que o corajoso
coração do menino não se machucou cada vez que Tanae negou sua
aprovação. Tzadiq fizera o melhor que podia, mas era mais guerreiro do
que pai. Titus passou mais tempo com o menino do que qualquer um dos
pais, mas mesmo a aprovação de um arcanjo não podia apagar a dor
causada por uma mãe ou pai.
Ele suspirou; podia apreciar Tanae e Tzadiq como guerreiros,
embora discordasse de sua estratégia de criação. Titus foi criado com
uma disciplina temperada por um amor avassalador, e esse era seu
modelo de como lidava com as crianças. Para reter o afeto de uma
criança... não, não podia concordar com isso.
Ele pediria a opinião de Sharine sobre o assunto quando colocasse
esse maldito dispositivo para funcionar e conversassem. Pelo menos
descobriu como enviar uma mensagem.
Seus dedos pareciam muito grandes e gordos na tela elegante do
dispositivo, mas sentia muita falta de Sharine para não perseverar. Ele
escreveu: Quebrei o dispositivo original ao bater com muita força na tela.
A resposta dela foi de puro espanto por ele tentar usar um telefone.
Quando ele finalmente teve sucesso com o dispositivo e perguntou
a ela sobre Tanae e Galen, ela ficou em silêncio, pensando por longos
momentos. — Cometi erros terríveis como mãe, —disse ela, seus olhos
escurecidos com tristeza — mas a única coisa que fiz certo foi amar
Illium ferozmente quando ele era um menino.
— Acho que Tanae tem um caminho muito mais difícil a percorrer –
seu filho é o mestre de armas de um arcanjo, e se estabeleceu com uma
mulher que adora. Não é um menino com um coração mole... mas ela
continua sendo sua mãe. Se ela realmente deseja construir essa ponte,
deve estar disposta a esquecer o orgulho e aceitar que ele poderia
escolher rejeitá-la completamente. Ele tem esse direito.
Com uma expressão pensativa, ela acrescentou: — Fale com ela,
Titus. Se ela se abriu com você, é o mais próximo de um grito de socorro
que ela jamais poderia dar.
Titus não tinha experiência nessas coisas, mas confiava em Sharine,
então da próxima vez que escaparam da batalha ao amanhecer, ele
encontrou Tanae e enquanto limpavam suas armas lado a lado, ele disse:
— Se você morrer, acaba a chance de falar com Galen– e pedir desculpas
como você deseja fazer.
Tanae ficou rígida... mas não se afastou.
No dia seguinte, ela disse: — Não sei o que dizer a ele. Entendo
errado todas às vezes – sou dura e má quando quero ser diferente.
Perdido, Titus perguntou se ela falaria com Sharine. — Ela também
é mãe e entende o que é cometer erros como mãe.
Três dias depois, Tanae disse que sim e Titus passou o bastão.
Conhecia suas habilidades e as de Sharine.
Juntos, formavam uma equipe incrível.
Era bom tê-la ao seu lado dessa forma, ter sua força alinhada e
aumentando a dele. Só podia esperar ter feito a metade do que ela fez por
ele. Porque, pela primeira vez em sua existência, Titus sabia que
precisava de uma mulher – mas tinha a consciência crua de que a
necessidade podia não ser correspondida.
Ele se sentia como um cachorrinho, esperando por cada ligação ou
mensagem dela.
Então, um dia, ela enviou uma mensagem que gelou suas veias.
Titus, encontramos outro anjo infectado.
CAPÍTULO 45
Sharine olhou para a carta em sua mão. Mais uma vez, foi Trace
quem a entregou e, mais uma vez, o envelope era de um papel caro e
pesado. Mas isso trazia o selo não do Cadre, mas de Aegaeon.
Ela olhou para o horizonte, em direção ao sul, como fazia todas as
noites ao pôr do sol. Fazia duas semanas desde a última vez que falou
com Titus; ele e suas tropas atingiram um enorme aglomerado de
renascidos que não obedeciam mais à divisão do dia e da noite – estavam
lutando sem parar nos últimos quatorze dias.
Fazia ainda mais tempo desde que se separou dele no céu acima do
coração próspero de Narja. Meses de distância. Sabia que tomou a
decisão certa ao vir para Lumia, já que mesmo entre os anjos, os
símbolos importavam. Era por isso que Titus usava sua armadura e por
que a Torre do Arcanjo de Nova York foi a primeira estrutura a ser
reparada na cidade. Agora, Sharine não era apenas a guardiã de suas
histórias e glórias artísticas, era a personificação da sobrevivência
angelical.
— Não importa o quão horrível seja o mundo, — disse a Arcanjo
Neha a ela apenas uma semana antes — todos nós podemos olhar para
Lumia e saber que nós, como um povo, somos capazes de criar coisas
lindas e extraordinárias. Acredito que quebrará todos nós se Lumia cair.
Seja como for, Sharine lutou contra o desejo de correr para o lado
de Titus, seu arcanjo de grande coração que a amou com tanta paixão
crua em sua noite juntos. Ele deixou uma marca não apenas em seu
corpo, mas em seu coração. Sabia que se preocupar com ele era tolice,
que um arcanjo não podia ser ferido tão facilmente.
No entanto, ela observava os céus.
Porque aqueles céus se estilhaçariam caso Titus caísse. Sabia disso
como sabia que o sol nascia no leste e se punha no oeste.
Quanto ao arcanjo muito menos honrado que lhe enviou uma
carta...
Quebrando o selo, removeu o pedaço de papel dobrado de dentro.
Minha querida senhora, eu sei que está com raiva de mim e tem todos
os motivos para nutrir tal raiva, mas espero que me dê a honra de aceitar
uma visita daqui a catorze dias.
Pretendo chegar à noite, para que possamos fazer uma refeição
juntos e relembrar. Já faz muito tempo, e muitas vezes me encontro perdido
em pensamentos sobre nossa vida juntos – e sobre nosso filho, tão
obstinado e corajoso.
Até então.
Sharine bufou.
— Este é um momento ruim, Lady Sharine?
Ela olhou para o tom suave de Trace, o vampiro tendo retornado
pela porta pela qual saiu recentemente. — Sabia que a arrogância egoísta
tem um cheiro? — Ela levantou a página que segurava. — Esta carta
cheira a isso, caso deseje dar uma cheirada.
— Vou acreditar na sua palavra — disse o patife, com os olhos
dançando. — Vim transmitir um convite – o esquadrão Lumia ficaria
honrado se jantasse com eles esta noite.
— Claro. — Sharine gostava de falar com seus guerreiros, e esta
noite era especial, pois amanhã, três de seus guerreiros iriam embora e
voltariam para casa, para serem substituídos por outros três.
Foi o segundo de um arcanjo que silenciosamente fez o pedido que
três de seus guerreiros seniores pudessem fazer uma trégua, e ela fez um
pedido pessoal de todos os três. Os guerreiros concordaram porque ela
era a Colibri, e agora teriam tempo para curar seus corações enquanto
cuidavam de Lumia.
Ela nunca mais seria o anjo de outrora, mas decidiu não deixar a
Colibri totalmente no passado. Ela trabalhou muito bem e todos os anjos
confiavam nela.
Um presente raro e único que não devia ser desperdiçado.
— Deixo você com o cheiro da arrogância, minha senhora. — Uma
reverência tão suave que parecia poesia.
Sorrindo, ela voltou sua atenção para a carta. Era típico de Aegaeon
fingir pedir permissão, mas na verdade ditar os termos. Sua resposta
imediata foi retribuir com uma rejeição fria, mas então fez uma pausa,
pensou sobre isso. O passado era passado, sim, mas uma pergunta a
atormentava até hoje.
Então aproveitaria a chance para perguntar.
Enfrentaria o homem que era, para ela, a personificação da
crueldade. — Venha, Aegaeon. Acho que é hora de fazer isso.
Foi quando voltava para dentro para se preparar para o jantar com
seu esquadrão que seu telefone tocou. O rosto de Illium preencheu a tela.
— Meu filho — disse ela, seu coração em chamas com amor penetrante.
— Você me surpreende.
— Ha! Não sou o único a distribuir surpresas. — Olhos suspeitos.
— Um passarinho me disse que você e Titus... — ele soltou um suspiro,
os arcos de suas asas se curando mudando contra um fundo que dizia a
ela que estava em sua suíte na Torre. — É verdade?
Sharine sorriu com listras coloridas em suas bochechas. — Ficaria
chocado se fosse?
Olhos de ouro batido conectando-se aos dela, o rubor esquecido. —
Gosto de Titus, mas não quero que você se machuque.
Ainda a protegendo, seu lindo filho que teve que cuidar de sua mãe
por muito tempo. — Estou vivendo agora, Illium — disse ela, gentil
porque ele ganhou tanta gentileza, mesmo quando pisava onde a maioria
das crianças nunca seria permitida. — Não vou me esconder, nem
mesmo da dor. Nunca mais escolherei me esconder quando posso abrir
minhas asas e respirar o ar e, sim, cometer erros e crescer.
Seu filho olhou em seu rosto. — Você está realmente diferente —
disse ele finalmente, com um leve sorriso nos lábios. — Você se lembra
de como uma vez insisti que me pintasse de azul da cabeça aos pés e você
o fez?
— Oh. — Sua mão voou para a boca. — Você era tão pequeno!
Como se lembra?
Um encolher de ombros que a lembrou do menino que ele foi. —
Estava tão animado por ser azul. — Sorriso seguido de sorriso, ele disse:
— Titus sabe quem você é quando você é você?
Bolhas de riso em sua corrente sanguínea. — Oh, sim, não escondi
nada dele. Ele me considera teimosa e irritante ao extremo.
Uma explosão de risadas de Illium que a fez se juntar, era tão
descontroladamente contagiante. Quando os dois se acalmaram, ele
disse: — Acho que cuidarei da minha vida agora e não pensarei muito
sobre o que pode estar fazendo com Titus.
Ela reprimiu o sorriso. — Isso é realmente sábio, do contrário você
pode ter pesadelos.
— Mãe. — Seu tom era severo, mas quando ela lhe perguntou sobre
sua vida, respondeu de bom humor, e encerraram a conversa com
palavras de amor de uma mãe para seu filho e um filho para sua mãe.
Então, é claro, teve que ligar para Aodhan, também, para garantir
que ele estava bem. Ele ouviu rumores de uma possível ligação entre ela
e Titus, e teve o mesmo motivo para perguntar a ela sobre isso. — Não
gostaria que sentisse dor, Eh-ma. — Palavras cheias de emoção, seus
olhos cacos de azul e verde quebrando para fora de uma pupila preta.
Verdadeiramente, pensou depois que a conversa terminou, ela foi
abençoada por ter conhecido dois corações assim desde a infância.
A escuridão pesava no horizonte agora. Sabia que o pior estava por
começar para Titus e seu povo; seu estômago se contraiu como acontecia
todas as noites a esta hora, um medo visceral espesso em seu sangue. —
Fique seguro, Titus. Voe de volta para mim.
CAPÍTULO 48
Querida Caliane,