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CAPÍTULO

Há muito tempo, é uma memória perdida...


Os anjos não foram feitos para morrer.
As palavras ecoaram continuamente na mente de Sharine enquanto
estava no local do enterro de seu amado Raan. Ela não sabia o que ele
queria porque ninguém da espécie anjo se preparava para a morte, então
escolheu seu lugar de descanso de acordo com tudo que aprendeu sobre
ele em suas cinco décadas juntos.
Tão pouco tempo.
Ela pensava que ele, mais velho, mais sábio e gentil, estaria ao seu
lado por uma eternidade. Seu mentor na arte que era uma chama líquida
em seu sangue se tornou seu amante com uma facilidade que parecia
escrita nas estrelas, os dois mais que contentes com a vida juntos. Ela e
Raan passavam horas sob o sol, sozinhos com suas telas, seus
pensamentos e suas tintas, mas ao mesmo tempo juntos.
Os anjos não foram feitos para morrer.
Seus dedos tremiam, gelados e sem sangue enquanto os esfregava
sobre a pequena escultura que Raan amava tanto que nunca se separou
dela, a peça favorita agora marcava a localização nesta parte das
montanhas do Refúgio, varrida pelo vento, onde seu Raan descansava em
eterno descanso.
A princípio, quando acordou ao seu lado naquela manhã que ainda
parecia uma miragem de pesadelo, pensou que ele havia decidido
dormir, aquele profundo descanso de imortais que não desejavam mais
fazer parte do mundo. Era uma coisa feita com intenção, e sua primeira
resposta foi uma punhalada de dor.
Ela pediu a ele tantas vezes para nunca fazer isso. Estava
preocupada porque sendo muito mais velho que ela, ele iria querer
dormir e ela iria querer ficar acordada e ele simplesmente a deixaria.
Mas Raan deu sua risada calorosa e calmante e lhe disse para não se
preocupar.
— Passarinho — disse ele —, por que eu dormiria agora quando
finalmente te encontrei?
Então ela ficou magoada e zangada com a promessa aparentemente
quebrada. Então tocou sua mão porque, mesmo com raiva dele, ainda o
amava. Sua mão, talentosa e forte, estava gelada.
Sua respiração quebrou como estalactites em seus pulmões, seu
sangue congelou.
Nenhum anjo no sono era tão frio. Sharine sabia disso em primeira
mão – era uma caloura meio adulta de oitenta e cinco anos quando
sentou como sentinela ao lado de seus pais quando escolheram
adormecer. Ela observou a ascensão e queda de seus peitos até o ponto
final de êxtase, esperando que mudassem de ideia e não a deixassem
sozinha, mas não o fizeram.
— Você ficará bem, Sharine. — A voz de sua mãe era firme, mas
seus olhos estavam cansados. — Você é adulta agora.
— Veremos você na próxima vez que acordarmos — acrescentou
seu pai com um tapinha na mão, mas podia dizer que ele já havia partido,
pensando no descanso que ansiava por anos intermináveis.
Mas muito depois de terem mergulhado profundamente no sono,
estavam quentes. Cinquenta anos depois, quando foi ao abrigo
subterrâneo secreto deles para garantir que ninguém perturbou seu
descanso, ainda estavam aquecidos. Então sabia que os anjos em Sono
não ficavam frios, não tinham sangue frio e azul.
Não precisava dos suspiros de choque dos curandeiros para
confirmar a verdade.
Seu amante gentil e talentoso se foi.
Morto durante a noite, deitado ao lado de Sharine.
Algo tão raro entre os anjos que nenhum dos curandeiros presentes
jamais experimentou algo parecido. Tiveram que consultar livros
empoeirados, conversar com anjos e arcanjos mais velhos, até que
finalmente encontraram alguém que se lembrou de outro caso há dois
milênios. Os anjos eram imortais... mas às vezes, os incidentes eram tão
raros que eram esquecidos entre uma vida e a seguinte, um anjo
simplesmente... parava.
Como se um longo relógio finalmente tivesse parado.
Os curandeiros disseram a ela tudo isso, mas ainda não entendia.
Raan era velho, mas longe de ser o mais velho deles. Muitos anjos com o
dobro ou mesmo o triplo de sua idade caminhavam na terra. Mas foi
Raan quem parou. Parou enquanto estava deitado na cama ao seu lado,
sua vida escapulindo enquanto ela dormia despreocupada ao lado dele.
Ele sufocou para respirar? Ele procurou sua ajuda?
As perguntas a torturavam enquanto a neve cobria suas bochechas,
picando sua pele. A viu pousar suavemente sobre a escultura. E se
perguntou se, nos séculos que viriam, ele seria lembrado por alguém
além dela. Ele foi um grande escultor e pintor, mas recluso, não um
homem com muitos amigos. Então, talvez fosse sua arte a ser lembrada, e
ela pensou que ele gostaria que esse fosse seu legado.
Um soluço a atravessou, caiu de joelhos no chão pedregoso. — Os
anjos não foram feitos para morrer — sussurrou, mas não havia ninguém
para ouvi-la.
O vento arrancou as palavras de sua boca e as esmagou contra o
topo da montanha. Suas asas – asas que Raan chamava de um presente
de luz índigo – espalharam-se na neve e na pedra, ficaram frias e
dormentes, e seus joelhos congelaram na posição, mas ela ainda não se
levantou. Parte dela continuava esperando que ele acordasse e dissesse
que tudo foi um terrível erro.
Ela tinha apenas cento e sessenta anos e o amor de sua vida estava
frio e morto. Naquele instante, os ventos uivando ao seu redor, não
conseguia imaginar uma dor mais terrível.
Sozinha na neve que caía, ela lamentou.
Os anjos não foram feitos para morrer.

CAPÍTULO 2

Três mil e quinhentos anos atrás...


Senhor, eu dei à luz um filho forte e com tal voz que mantém todo o
Refúgio acordado! Ele não vai recuar de ninguém, este meu filho.
Minha filha mais velha diz que tem meus olhos e meu
temperamento. As gêmeas já acreditam que ele seguirá seus caminhos de
guerreiro enquanto Euphenia é a única que pode fazê-lo dormir quando
está determinado a ficar acordado e rugir seu grito de guerra.
Seu pai está surpreso por ter ajudado a criar uma criança assim.
Digo a ele que vai passar e ele será um bom pai. Ele tem uma paciência
que me falta – mas este meu menino não terá medo nem mesmo da mãe,
disso eu sei.
Vou chamá-lo de Titus.

– Carta da Primeira General Avelina ao Arcanjo Alexandre

CAPÍTULO 3

Um mês atrás...

Ele não conseguia lembrar seu nome.


Seus pulmões lutaram para sugar o ar, sua visão turvou... suas asas
pesadas e inúteis em suas costas. Ainda assim, ele se arrastou para
frente, saindo do inferno e na direção da luz do sol.
Seus olhos pousaram no dorso da mão, em sua pele antes branca
como o gelo. Pele que ele mimava, protegia e examinava com cuidado no
espelho todos os dias. Pele que destacava o intenso tom topázio de seus
olhos. Pele que agora estava manchada de verde.
Ele precisava sair.
Ele precisava encontrar um curador.
Mas estava tão fraco. Como iria...
Estendendo uma mão esquelética com velocidade de réptil, agarrou
a pequena criatura que escapou em seu caminho, teve seus dentes
afundados em seu pequeno corpo peludo antes que sua mente consciente
pudesse processar a decisão. A cauda sem pelo da criatura chicoteou em
pânico, mas tinha pouco sangue e morreu logo.
Jogando a criatura de lado, limpou a boca com as costas da mão... e
sentiu um jorro de energia. Então, ele era um vampiro agora? Não, não
podia ser. Os híbridos de anjo-vampiro existiam apenas em contos
contados por mortais. Imortais entendiam a verdade fundamental de que
vampiros e anjos não eram biologicamente compatíveis... mas que ele
ganhou energia com o sangue da criatura era indiscutível.
Sua cabeça se sacudiu em direção ao pequeno cadáver.
Novamente, o agarrou sem pensar. Desta vez, quando mordeu, foi
para comer a carne crua, cuspindo apenas o pelo eriçado. Uma pequena
parte de sua mente, uma mente que já foi de um cortesão urbano na
corte de um arcanjo, gritou e balbuciou, mas era um som distante e
desbotado. Não podia resistir à onda de energia atingindo sua corrente
sanguínea.
Agora sabia voar novamente.
Como impedir o rastejar de verde sob sua pele, fétido e debilitante.
Como limpar sua mente para que pudesse pensar.
Quanto à tosse que sacudia seu corpo e o escarro verde-escuro que
não conseguia parar de cuspir, tudo iria se curar. Só precisava de
combustível suficiente. Suficiente carne suculenta e vermelha, gotejando
vida.
Cuspindo o rabo indigesto e mastigável com outra tosse, ele
rastejou, suas unhas em forma de garras criando sulcos na pedra e a
carne desprendendo de suas pernas para deixar um rastro líquido.
Presas naquela lama estavam penas lindas e únicas, um marrom escuro
com filamentos de topázio.

CAPÍTULO 4
Nos Dias de Hoje

Sharine estava no telhado plano e sem grades de sua nova casa nas
areias do Marrocos, e olhou para os edifícios dourados pelos raios do sol
poente. A luz tinha uma qualidade quase derretida, um tipo perfeito de
riqueza que aparecia apenas ao pôr do sol. Como se a própria estrela
derretesse e fosse derramada sobre a paisagem por um pintor
benevolente.
Os vampiros e mortais que andavam nas ruas abaixo estavam
ocupados com seus negócios, preparando-se para o mercado noturno ou
voltando para casa após um dia de trabalho, mas de vez em quando, um
dos habitantes da cidade pensava em olhar para cima e a veriam. Era um
orgulho para ela que as crianças sorrissem e levantassem a mão numa
saudação entusiasmada. Os mais velhos se curvariam com respeito.
Essas mesmas pessoas fugiam com medo e cautela quando ela
chegou a este lugar. Danificados pela supervisão de um anjo que se
importou mais com poder e crueldade do que com a valiosa
responsabilidade que lhe foi dada – cuidar dos tesouros mais preciosos
da espécie angelical. No entanto, Lumia, o repositório de arte angelical e
tesouros, seria um lugar frio e solitário sem a vida próspera deste
assentamento adjacente. Para Sharine isso tornava a cidade e seu povo
tesouros tão raros e belos quanto aqueles protegidos pelas paredes de
Lumia.
Abrindo suas asas, segurou o alongamento exuberante por um
minuto inteiro antes de puxá-las lentamente de volta ao alinhamento
contra sua coluna. Teve o cuidado de garantir o controle muscular com
precisão. Era um exercício de fortalecimento que ela ignorou por muito
tempo, a disciplina perdida no caleidoscópio quebrado que era ela
mesma.
Grandes partes do último meio milênio – mais ou menos algumas
décadas – eram imagens estilhaçadas e confusas na paisagem de sua
mente, vistas através de um filtro que estava quebrado e rachado. Ela
nunca voltaria àqueles anos. Nunca voltaria a época em que seu filho
travesso e sorridente se tornou um homem corajoso e poderoso.
A chama quente da raiva em seu intestino chamejou novamente,
queimando seu sangue.
— Lady Sharine.
Ela virou a cabeça para encontrar o olhar de Trace. Com seus lindos
olhos verdes meia-noite e sua pele de luar, a voz lânguida de um poeta e
seu cabelo um preto sedoso, o vampiro esguio a lembrava de seu filho.
Não a coloração, que era única para cada um deles. Mas, como Trace, seu
menino brincalhão causava mais que uma palpitação no coração
daqueles suscetíveis a tais encantos em sua corte.
Muitos, muitos se mostraram suscetíveis.
— O que tem para mim, jovem? — perguntou ela com um sorriso
afetuoso.
Trace balançou a cabeça, seus traços angulares criando sombras
contra suas bochechas; nenhuma suavidade em Trace, mas ainda havia
beleza. — Já disse, minha senhora — disse ele —, sou um homem
totalmente maduro, não um menino. — Palavras severas, mas seu olhar
tinha igual afeto.
— E como eu disse — respondeu ela —, quando você tem a idade
da terra e as estrelas combinadas, todo mundo é um jovem. — Até
Raphael, o arcanjo que uma vez foi um garotinho enérgico que ela levou
para seu estúdio para que pudesse se exaurir jogando tinta em telas, suas
mãozinhas se tornando pequenos selos pegajosos – até mesmo ele
aceitava que sempre seria uma criança aos seus olhos.
Ela se perguntou o que teria acontecido com suas pinturas
exuberantes; tinha certeza que devia tê-las armazenado no Refúgio, mas
essas memórias estavam escondidas além dos caminhos mentais
emaranhados da louca fragmentada que se tornou após a crueldade
premeditada e inexplicável de Aegaeon.
Houve indelicadeza, e então houve o que Aegaeon fez.
Suspirando, Trace estendeu um envelope. Feito de papel grosso e
cremoso,e selado com o selo de cera do Cadre, tinha uma sensação de
presságio, como se as notícias internas estivessem imbuídas com o poder
dos arcanjos que governavam o mundo.
— Um mensageiro deixou isso um momento atrás — disse Trace
numa voz que seduziu muitas donzelas. — Um vampiro — elaborou,
antes que ela pudesse perguntar por que o mensageiro não pousou no
telhado ao seu lado.
Pegando-o, ela disse: — Como foram suas rondas? — Trace estava
com ela há apenas um mês, enviado por Raphael depois que vários
membros de sua corte tiveram que retornar para suas bases – anjos e
vampiros, juniores e seniores, foram ajudar seu povo a lidar com a
devastação causada pela tentativa de Lijuan de se tornar a governante do
mundo.
A guerra terminou há um mês, mas ninguém teve tempo para
descansar, para se curar.
Não foram apenas os terríveis danos às cidades, vilas e aldeias, nem
as hordas cambaleantes de renascidos. Nas últimas duas semanas, um
número muito maior do que a média de vampiros começou a se render à
sede de sangue assassina.
Trace foi claro em seu julgamento sobre aqueles vampiros. —
Nenhuma tentativa de se autodisciplinar — disse ele, sua voz fria e sem
piedade. — A fome de sangue vive em todos nós – ela sussurra e bajula
nas horas do crepúsculo, procurando devorar – mas aprendi a
estrangular esses sussurros há muito tempo.
Muitos vampiros não fizeram nada do tipo, e agora com tantos
anjos poderosos feridos ou mortos, e os sobreviventes distraídos no
rescaldo da guerra, o desejo de se alimentar estava oprimindo o senso de
razão ou consciência. As ruas da cidade ameaçavam ficar vermelhas de
sangue, o ar úmido como ferro.
O território de Raphael não estava em melhor posição que qualquer
outro quando se tratava da onda de vampiros assassinos – e era muito
pior se levasse em consideração a destruição da guerra. Nova York foi
golpeada na batalha cataclísmica dos arcanjos, suas torres, que tocavam
o céu, quebradas e destruídas. Ele não podia perder nenhum de seus
funcionários seniores altamente treinados, mas mesmo assim enviou
Trace. Porque Raphael era tanto filho de Sharine quanto Illium.
— Está tudo bem — disse Trace a ela, suave como sempre em sua
camisa preta feita sob medida e calça preta, seus sapatos engraxados e
improvavelmente livres de areia ou poeira. — As bases que você
implementou são boas e fortes.
Esse era o maior elogio que ele podia fazer a ela – e sabia que,
apesar de todos os seus modos lúdicos e sofisticados, ele falava a
absoluta verdade. Não havia flerte em seus olhos, nenhuma tentativa de
lisonjear. Neste momento, Trace era um soldado dando um relatório ao
seu senhor.
Quando ela inclinou a cabeça, ele se curvou e saiu.
Com o envelope na mão, ela soltou um suspiro silencioso enquanto
olhava para o sol poente mais uma vez. Algum dia se acostumaria com
essa deferência daqueles ao seu redor? Não que fosse algo inesperado.
Ela era, como acabava de fazer questão de contar a Trace, velha no
grande esquema das coisas, uma Antiga em muitos aspectos. Mas por
dentro...
Não, isso era tolice. A menina que era há muito se foi, e a menina
que um dia foi o passarinho de Raan, a mulher chamada Sharine por seus
amigos, se tornou a Colibri. Pelo menos começou a reclamar seu nome,
para que ninguém em sua pequena e feliz corte a chamasse de outra
coisa, exceto Lady Sharine.
Deslizando um dedo sob o selo de cera, o quebrou. Dentro do
envelope havia uma carta do Cadre. Ela franziu a testa enquanto lia as
palavras escritas com uma letra forte que ela reconheceu. Raphael
escreveu isso, mas não fez isso como o menino que ela cuidou uma vez,
ou o homem em quem pensava com amor materno. Não, escreveu isso
como o Arcanjo de Nova York.
Depois de ler até o fim, abaixou a mão, carta e envelope numa das
mãos, e olhou sem ver o deslumbrante vermelho alaranjado do céu. Isso,
ela não esperava. Mas, enquanto pensava nisso sob a luz do sol poente,
fazia um sentido desesperador.
Grande parte do mundo estava um caos após o horror combinado
de Lijuan e Charisemnon. Milhões estavam mortos, mais de um arcanjo
perdido ou em cura. Sono tão profundo que ninguém sabia quando ou se
voltariam. A maioria do resto da espécie angelical não sabia o que
aconteceu com Michaela, Astaad e os outros, mas Raphael disse a Sharine
tudo que ela desejou saber.
Entendeu que ela nunca o trairia.
Todos aqueles anos nos quais se perdeu nos caminhos tortuosos do
caleidoscópio foi Raphael quem cuidou de seu filho – e do outro garoto
que sempre fez parte de sua vida. Illium e Aodhan, chamas gêmeas de seu
coração. Um, o filho de sangue, o outro um filho da arte. Ela o ensinou
como Raan uma vez a ensinou.
Tristeza floresceu em seu coração pela lembrança daquele rosto
amado, aquelas mãos talentosas, mas era uma tristeza desbotada para
monocromático por eras... embora tenha mantido vigília sobre o túmulo
de Raan desde que sua mente se despedaçou, seu coração dolorido pelo
passado no qual estava segura, era amada e cheia de sonhos.
As memórias deram a ela um lugar seguro para se esconder.
Mas Sharine estava farta de se esconder, farta de viver em sua
mente. Era hora de enfrentar a verdade. E a primeira verdade era que
embora chorasse por Raan até o dia em que morresse, não conseguia
mais se lembrar da dor penetrante e bela que foi seu amor juvenil por
ele. Se tivessem envelhecido juntos, seria diferente... Mas não adiantava
viver no e se.
Não adiantava viver em qualquer lugar, exceto no presente.
Ela endireitou a mandíbula, com raiva novamente, desta vez de si
mesma. Caliane, sabia, ficaria furiosa com a direção de seus
pensamentos; sua amiga acreditava firmemente que Sharine não era a
culpada.
— Aegaeon sabia exatamente o que estava fazendo — disse Caliane
logo depois que Aegaeon acordou de seu sono, seu tom tão inflexível
quanto sua coluna. — Sabia o que você passou, as cicatrizes que essas
experiências deixaram, e ainda assim fez algo tão insuportavelmente
cruel que nunca vou perdoá-lo por isso. Ele pegou seu maior pesadelo e o
fez ganhar vida.
Uma escuridão sombria em seu rosto, ela balançou a cabeça. —
Não, Sharine. Nunca se culpe pelas fraturas que criaram em sua psique.
Mas Sharine se culpava. Ela se culpava por não ser forte o
suficiente. Culpou-se por sua dor cega depois de Raan... e pelos gritos
mentais que ecoaram dentro dela por anos depois que entrou no lugar do
Sono de seus pais e encontrou seus corpos enrugados e mortos, com o
sangue seco nas veias. Foram embora enquanto dormiam.
Quatro décadas depois do forte e talentoso Raan.
Embora os anjos não devessem morrer, exceto em batalha.
Apenas Sharine, de toda sua espécie, enterrou três pessoas que
fecharam os olhos para descansar... e nunca mais acordaram. Amante,
mãe, pai, todos jaziam frios e há muito apodrecidos em seus túmulos,
suas vozes perdidas do mundo.
É você, uma pequena parte cruel começou a sussurrar na calada da
noite, quando todo o resto estava quieto. Todo mundo que você ama
morre. Ninguém te suporta. Ninguém quer estar vivo num mundo onde
você existe.
Aquela voz feia a insultou e insultou, até que viveu em terror depois
de se apaixonar por Aegaeon. Esse terror cresceu em magnitudes com o
nascimento de seu filho. Ela era como uma bugiganga de vidro com
rachaduras de teia de aranha que ninguém podia ver. E no final, ela
quebrou, o pensamento e a razão estilhaçando a seus pés.
Sim, ela se culpava.
Era o maior dos presentes que, depois de tudo isso, seu filho ainda
a amava.
Pensando nele, olhou para a carta novamente. Ele ficaria orgulhoso
dela se fizesse isso, orgulhoso dela por ter a força e a coragem. E ela o
faria. O decepcionou por muito tempo. Era hora de Illium ter motivos
para orgulhosamente chamá-la de sua mãe.
O último dos raios de sol acariciando suas asas cruzou o telhado
para entrar no edifício. Então caminhou para a sala bem equipada,
brilhante com tecnologia, a qual não compreendia totalmente. No
entanto, aprendeu a utilidade de tais coisas desde que saiu totalmente do
caleidoscópio. Agora pediu a um de seus fiéis para fazer uma ligação para
Raphael.
Ela atendeu a chamada na privacidade da suíte do escritório que
era seu. Uma velha escrivaninha branca com pernas curvas, tecidos
suaves em seus móveis, flores frescas, pinturas nas paredes, esta era uma
sala muito mais suave da que aparecia na tela da parede à sua frente.
O escritório de Raphael se inclinava mais para o vidro e aço,
semelhante à sua cidade. Não conseguia ver nenhuma das luzes
cintilantes de Manhattan em volta dele, mas o que via eram as prateleiras
que continham tesouros únicos – incluindo uma pena do mais puro azul
que atingiu uma pontada de necessidade em seu coração.
— Lady Sharine.
— Você parece cansado, Raphael. — Linhas de tensão, músculos
nodosos nos ombros, sombras fracas sob o impressionante azul de seus
olhos. Tantas vezes ela pintou aquele azul – primeiro numa tentativa de
capturar os olhos da arcanjo que era sua melhor amiga, então os olhos do
filho de Caliane – sempre levava uma eternidade para acertar a cor.
Safiras esmagadas, cobalto derretido, o céu da montanha ao meio-dia,
tudo isso e muito mais vivia nos olhos de Raphael e Caliane.
Como artista, a cor era um de seus maiores desafios e maiores
alegrias.
Ele passou a mão pelo cabelo. — Será uma longa jornada para
todos nós antes de podermos descansar.
Sharine sentiu o desejo de ser sua mãe; não sabia se o desejo
passaria. Ele era apenas um jovem quando Caliane trilhou o caminho da
loucura, e embora Sharine fosse uma criatura frágil, as rachaduras de
teia de aranha crescendo ano a ano, ela estava lá. Após encontrar seu
corpo quebrado num campo longe da civilização, o cobriu com a sombra
de suas asas e afastou o cabelo emaranhado de seu rosto, e o segurou.
Ele foi um jovem tão determinado, mas muito ferido por dentro.
Vê-lo agora, forte, vibrante e amado ferozmente por uma mulher
que era tudo que Sharine poderia desejar para ele, se tivesse a
imaginação para considerar que alguém como a consorte de Raphael
poderia existir, fez seu coração florescer, a fez acreditar na felicidade e
em mudar seu destino.
Caliane nunca contou ao seu filho, mas no nascimento de Raphael,
alguns dos mais amargos velhos sussurraram que esta era uma criança
destinada à loucura e à decomposição, que sua mãe era uma Antiga há
muito tempo. Tão estranho que tal preconceito pudesse existir numa
raça de imortais, mas sempre houve aqueles que buscavam a escuridão
em tudo.
Esses mesmos sussurravam que Sharine era o prenúncio da morte.
O filho de Caliane acalmou todos eles. Era uma personificação
brilhante do melhor deles, uma razão crítica pela qual o mundo não
estava hoje se afogando em sangue e morte. Não a única razão,
entretanto. — Onde está Elena? — Seus dedos se curvaram em sua palma
com a memória das facas que segurou sob a tutela de Elena.
— No parque com sua melhor amiga, Sara, e a filha de Sara — disse
Raphael, seu rosto se iluminando de uma forma que nunca acontecia com
ninguém. — Decidimos que todos nós poderíamos tirar uma hora longe
da árdua tarefa de colocar a cidade em ordem. Destrói o espírito ver
nossa casa em ruínas.
Sharine não podia imaginar a devastação de ver uma cidade
querida destruída e queimada, mas uma coisa sabia – a cidade de
Raphael era um lugar com um coração valente. Ela se levantaria
novamente, torres reluzentes de metal e vidro que tocariam o céu, seus
rios limpos dos escombros e sangue da batalha, e a terra queimada
rejuvenescida.
— O que fará com sua hora, meu garoto? — disse ela, ansiosa para
afastar uma mecha rebelde de cabelo do olho dele.
Um sorriso repentino e deslumbrante. — Vou voar com Illium.
Planejamos encontrar Jason quando ele voltar para casa.
— Estou surpresa que saiba que ele está por perto. Seu mestre
espião costuma entrar e sair das cidades como fumaça. — Ela sabia
muito bem que Jason esteve perto de Lumia nos meses anteriores à
guerra, mas só descobriu isso depois do fato.
O Cadre confiava nela, mas isso não significava que não estava sob
vigilância. Uma decisão com a qual não tinha argumentos. Ninguém viu o
que estava diante dela, e o mal prosperara. Simplesmente porque ela não
tinha intenção de fazer o mesmo não significava que a próxima pessoa a
ter essa responsabilidade seria tão confiável.
Raphael riu, fazendo-a sorrir, isso a lembrou de sua risada alegre
de infância enquanto se banhava em tintas. — Sou da opinião que Jason
se permitiu ser visto. Ele sabe que nos preocupamos com ele quando está
além de nossa ajuda – e então, às vezes, nos joga um osso.
Balançando a cabeça para esses jogos dos jovens, Sharine disse: —
Recebi sua carta.
Olhos azuis surpreendentes segurando os seus, o riso ainda
persistente neles. Mas suas palavras quando vieram eram de um arcanjo.
— O que acha do nosso pedido, Lady Sharine?
— Tem certeza de que sou eu que você deseja para essa tarefa?
Estou longe de ser uma guerreira.
Expressão irônica, Raphael disse, — Titus requer certo manuseio.
— Um puxão de lábios. — Ele é um guerreiro e um arcanjo que respeito
além de muitos outros, mas gosta de fazer o que quer.
Sharine interpretou isso como significando que certos imortais
ameaçavam deixar o serviço do Arcanjo da África. — Está dizendo que
sou a intermediária? — Ela ergueu uma sobrancelha. — O arcanjo Titus
dirigiu uma corte bem-sucedida por muitos anos.
Sharine nunca teve nada a ver com ele, seus caminhos
simplesmente não se cruzaram ao longo dos anos. Ele era milênios mais
jovem que ela, por exemplo, e sua vida era a arte, enquanto a dele era o
caminho de um guerreiro. Mas aqueles das forças de Lumia que serviam
sob ele falavam do arcanjo nos mais altos termos.
— Temo que vá além disso — admitiu Raphael. — Seu povo é fiel
ao sangue, mas vários guerreiros destacados para ele de outros
territórios desistiram. — Sua mandíbula era de granito agora. — Aqueles
que não conhecem Titus veem seu temperamento irritadiço atual como
um insulto – e não têm o bom senso de entender que ele precisa de cada
corpo que pudermos reunir.
Oh, agora ela entendeu. Alguns dos mais velhos e poderosos
esperavam modos doces e palavras delicadas mesmo em circunstâncias
exigentes. — Estou surpresa que você acredite que posso lidar com ele.
— A comunidade angélica há muito a tratava com luvas de pelica. Como
se fosse um vaso delicado e rachado.
— Não quero insultar, Lady Sharine, mas não temos outra opção. —
Palavras sombrias. — Fiz uma temporada de uma semana na África há
meio mês, e é do território de Titus que Jason agora retorna. Venom
também está voltando da África para casa.
Venom, Sharine lembrou, era o vampiro jovem, mas poderoso, com
olhos de víbora. — Você manteve os laços de amizade.
— Foi além disso. Era um dever do Cadre – a África seria derrotada
de outra forma. — Mãos nos quadris, suas asas seguras com controle
rígido. — Alexandre cruzou a fronteira para ajudar ao mesmo tempo.
Acreditamos que três arcanjos trabalhando juntos podem eliminar o
suficiente dos renascidos para que Titus e seu povo possam então limpar
o resto, mas a situação é catastrófica.
— Recebi notícias de que a infecção está se espalhando
rapidamente. — Lumia estava isolada, mas não isolada do mundo
externo. Mais ainda com a chegada de Trace – o vampiro era
extremamente bom em manter linhas de informação.
— Sim – e a cepa na África parece ser mais forte e mais virulenta
que no resto do mundo. Charisemnon deve ter colaborado com Lijuan
para criar um inimigo mais nocivo. É uma pequena misericórdia que a
cepa permaneça confinada à África, mas deixa Titus numa posição nada
invejável.
Abrindo suas asas, ele as puxou de volta. — Se eu pudesse, me
mudaria para a África até que apagássemos o perigo, mas meu território
estágravemente danificado – muito pior que inicialmente acreditávamos.
E então há os vampiros que se entregaram à sede de sangue assassina.
Devo ficar em casa e preciso do meu povo mais forte aqui. Os outros
territórios estão praticamente na mesma posição.
Nada disso respondia à questão de por que o Cadre acreditava que
Sharine podia lidar com o arcanjo de temperamento explosivo. Muitos
diriam que ela quebraria sob tal pressão. Sharine sabia que não faria isso
– estava com muita raiva para quebrar, a fúria uma forja que estava
temperando suas rachaduras em cicatrizes endurecidas.
Caliane tinha outra teoria. — Acredito que seu tempo no que você
chama de caleidoscópio foi uma tentativa desesperada de sua mente de
lhe dar espaço para curar feridas que nunca cicatrizaram da primeira
vez. Os feios que zombaram de você após a morte de seus pais, causaram
danos catastróficos dentro de você num momento em que já era uma
criatura ferida e sangrando.
Olhos azuis vívidos cheios de raiva. — O reaparecimento repentino
de Aegaeon apenas acelerou seu retorno à realidade – mas não muito.
Você já estava no meio do caminho para casa; não poderia dirigir Lumia
de outra forma.
Sharine começava a acreditar que Caliane estava certa nisso. Ela
não poderia dirigir Lumia se permanecesse na paisagem fragmentada de
sua mente – suas memórias sozinhas comprovavam isso. Ela podia
detalhar todos os dias do ano passado. Algumas bordas borradas no
início, mas nada esquecido ou perdido.
Nada disso explicava por que estava sendo convidada a se juntar a
Titus. — Não tenho os poderes dos seus Sete, muito menos o poder de
enfrentar um arcanjo.
Raphael olhou para ela com cuidado. — Minha mãe uma vez me
disse para olhar para Illium com cuidado se quisesse ver a raiz de seu
poder – eu não entendi então, mas agora me pergunto de quem ele
herdou sua fidelidade, seu cabelo, seu coração... e sua velocidade.
Uma agitação no fundo de sua mente, o rangido de memórias há
muito enterradas. — É por isso que Raan me chamava de Colibri. — Era
um murmúrio mais para ela do que para Raphael, memórias
envelhecidas suspirando ao despertar.
Você é tão rápida, meu passarinho. O sol em seus olhos, a cor em sua
pele, a luz dos pés – e a velocidade de um beija-flor. Nunca poderia te pegar
se tentasse voar para longe.
Ela esqueceu a gênese de seu outro nome até este exato momento,
esqueceu que era uma carícia amorosa de Raan. Esqueceu que ele fez
uma pintura dela em voo, suas asas e corpo criando listras coloridas no
céu, assim como o pequeno pássaro adornado com joias.
— Lady Sharine? — A voz de Raphael, interrompendo seus
pensamentos, lembrando-a novamente do agora, do aqui – mas sem
impaciência.
A mãe do menino de olhos azuis era uma Antiga; ele entendia que
as memórias demoravam a se desenrolar nas mentes dos mais velhos.
Meadas emaranhadas com nós e, no caso de Sharine, muitos fios
cortados, que eram o repositório da memória imortal.
— Aceito a tarefa — disse, com a sensação de dar um passo em
direção ao futuro. — Vou me preparar para me juntar a Titus.

CAPÍTULO 5

Titus rugiu para o céu sem estrelas enquanto despachava outro


monstro voraz nascido daqueles furúnculos pútridos da história do
mundo, Lijuan e Charisemnon, virando a cabeça no último momento para
que o sangue fétido não atingisse seu rosto. Estava farto disso, mas não
podia fazer nada a respeito do cheiro repulsivo do sangue.
O renascido caiu, ele retomou sua conversa com sua treinadora de
tropa, Tanae. — O resto do Cadre está me enviando a Colibri! — Saiu um
grito de descrença.
— Você já disse. Quatro vezes. — Fios de cabelo vermelhos escuros
grudados em suas bochechas por uma combinação de sangue e suor,
Tanae despachou outro renascido, então enxugou sua lâmina na
escuridão já molhada de suas calças.
Suas asas eram um horror de sangue e massa cerebral de meia hora
atrás, quando ela se transformou num dervixe giratório para eliminar um
ninho de renascidos. — Você é um do Cadre, senhor. Não precisa aceitar
nada que não queira.
Ele olhou para ela. — A Colibri — disse ele, deliberadamente
separando as duas palavras que compunham o nome da maior artista
viva da espécie angelical. — Deseja que eu faça inimigos de todo o nosso
povo?
Todos amavam a Colibri. Até mesmo Titus a amava – de uma forma
distante. Não a conhecia como pessoa. Apenas a conhecia. Que era um
presente para os anjos, que sua bondade era lendária, que nunca teve um
inimigo em sua vida. E, claro, que deu à luz à Illium, um jovem anjo que
Titus gostava muito.
Tanae, que tinha pouca relação com seu próprio filho e não era uma
mulher de grandes emoções, revirou os olhos de um cinza claro. — Ela
não é uma guerreira e estamos no meio de uma infestação de renascidos.
Ninguém ficará surpreso se você – respeitosamente – rejeitar a oferta.
Titus teve que se virar e cuidar de outros três renascidos podres
antes que pudesse responder. — Ninguém mais virá — resmungou. —
Assustei todos aqueles que poderiam estar livres para se juntar a nós, e
agora nenhum guerreiro sobrou.
— Eu disse para você não gritar com o último — disse Tanae num
tom firme depois de cortar uma cabeça de renascido que apresentava um
globo ocular esmagado pendurado para fora de sua órbita. — Ele era
competente.
— Ele era um fígado de lírio! — rugiu Titus. — Que guerreiro foge
de um grito bem forte? Você não corre.
— Isso é porque fiquei surda depois de todos esses anos ao seu
lado. — Olhando ao redor do campo e vendo apenas corpos se
dissolvendo, ela deslizou sua espada numa bainha de coxa.
A dissolução era uma coisa nova que os renascidos começaram a
fazer após a morte de Lijuan. A bagunça gelatinosa resultante tinha um
fedor tão nojento que o segundo de Titus, Tzadiq, reuniu uma tripulação
civil cujo único trabalho era cavar buracos profundos usando grandes
máquinas de terraplenagem e, em seguida, raspar dentro todos aqueles
corpos dissolvidos.
Era um luxo, considerando tudo o mais que estava acontecendo,
mas era um luxo pelo qual seu povo lhe agradecia, do contrário suas
casas estariam cheias do odor de carne em decomposição e ninguém
poderia comer.
E comida era um prazer que Titus apreciava.
Quanto a saber se a gosma gelatinosa envenenaria a terra, Titus
tinha planos de limpar os túmulos um por um usando o poder
arcangélico – mas não podia fazer isso e lutar contra os renascidos ao
mesmo tempo. Isso teria que ser feito no final. Nesse ínterim, os buracos
eram revestidos com um material criado para impedir que
contaminantes escapassem para o solo, com seus cientistas monitorando
a situação.
— Você não me mostra nenhum respeito — disse ele a Tanae. — Eu
deveria banir você.
— Tenho uma oferta permanente de três outras cortes.
Se ele não gostasse tanto dela, iria bani-la, pensou com um
resmungo interior. Mas se havia uma coisa que Titus sabia, era que os
bajuladores que se curvavam e raspavam em volta de um arcanjo não
faziam nada além de apodrecer. Olhe para Lijuan – todos aqueles
cortesãos bajuladores e um líder outrora competente a transformaram
numa mulher que pensava que morte era vida.
Tanae podia ter uma língua afiada e não ter tempo para massagear
o ego de ninguém, mas também era leal até os ossos. Embora ele às vezes
se perguntasse como seu companheiro, Tzadiq, lidava com ela. Um
homem gostava de um pouco de suavidade em sua amante.
Não que Titus estivesse entendendo isso no momento. Embora
apreciasse muito os prazeres da carne, não tinha tempo ou inclinação
para acalmar e suavizar as criaturas bonitas e frágeis a quem costumava
fazer companhia.
— Eu terei que organizar, entretê-la. — Saiu um gemido impróprio
de um arcanjo, mas querida glória, a ideia disso!
— Talvez ela seja mais útil do que acreditamos — disse Tanae com
sua praticidade habitual. — Ela tem, por todas as contas, feito um
trabalho estelar em sua supervisão de Lumia. Não pode argumentar que
sua casa está um caos e que tem uma mão firme no leme.
— Isso porque qualquer um que consegue levantar uma espada
está lutando contra os renascidos, os outros estão cavando buracos para
enterrar a gosma resultante e eu enviei os vulneráveis a refúgios
seguros. — Esses refúgios seguros eram principalmente as ilhas na costa
da África. — Ela não terá nada para fazer a não ser sentar e se insultar
por não ser mimada como uma dama.
Titus não esperava isso de Rafael – depois de sua estadia brutal e
exaustiva ajudando na África, o filhote sabia muito bem do que Titus
precisava. Ele categoricamente não precisava de uma frágil artista
famosa por sua existência num plano superior, rastejando entre
renascidos, guerra e sangue.
Não havia nenhum plano superior aqui. Apenas morte, decadência
e devastação.
— Talvez os outros não tivessem escolha — admitiu com um
suspiro alto. — Perdemos muitas pessoas boas. — Milhares de
guerreiros morreram nas batalhas e, embora Titus agora tivesse controle
sobre o que restava das forças de Charisemnon, não podia confiar neles.
Sabendo que um lutador ressentido podia fazer muito mais mal que
bem, ofereceu àquelas tropas a escolha de partir para outro território se
assim desejassem. Apenas um número minúsculo o aceitou e os outros
deixaram a África: todas as pessoas que ocupavam cargos importantes na
corte de Charisemnon.
Boa viagem.
A podridão nas terras de seu inimigo era profunda e veio de cima.
Aqueles que permaneceram provavelmente ficaram porque
enfrentariam a mesma falta de boas-vindas fora da África. A comunidade
angélica sabia que os lutadores mais abaixo na hierarquia não tinham
controle sobre as ações de seu arcanjo, então ninguém iria evitá-los
externamente, mas o simples fato era que cada anjo tinha uma escolha.
Esses anjos – e vampiros – fizeram a escolha de seguir ordens,
mesmo quando essas ordens eram imperdoáveis. Essa decisão iria
maculá-los por séculos – como responderiam a ela, como eles agiriam
agora, esse seria o legado deles. No momento, no entanto, Titus
comandava muitos guerreiros taciturnos que não queria perto de seu
povo.
Alguns ele deixou no comando de várias cidades do norte – era
inútil enviar seu próprio povo para fazer a tarefa quando os
comandantes de Charisemnon já tinham experiência no trabalho e
conheciam intimamente essas cidades.
Não era como se mesmo o mais taciturno e hostil ousasse fomentar
uma rebelião contra um arcanjo. Ninguém, exceto um suicida iria ouvi-
los. O pior que podiam fazer era falhar deliberadamente em seus deveres
como comandantes da cidade; e o mestre-espião de Titus tinha agentes
suficientes espalhados pelas cidades para garantir que logo ouviriam
falar de tal coisa.
Quanto ao restante dos guerreiros, pediu a Tzadiq que os situasse
nas seções mais isoladas do território. Poderiam ser úteis e limpar a
infecção renascida naquela área enquanto mantinham o veneno de seu
ódio longe de sua corte.
— Isso é bom — disse Tanae em resposta ao seu reconhecimento
da falta de opções do Cadre. — Você está sendo positivo. Não é isso que
suas irmãs sugeriram?
Titus queria parar e bater a cabeça contra a superfície dura mais
próxima. Não era suficiente que tivesse que lidar com as sementes
perversas deixadas por um portador de doenças. Não, também precisava
de quatro irmãs mais velhas, todas as quais escolheram estar despertas
no mundo, e todas consideravam que era da sua conta aconselhá-lo.
Realmente, um irmão muito mais novo precisava desenvolver uma
grande voz para se defender.
Era de se admirar que sua voz agora estivesse tão alta que
assustava e insultava os outros? Isso era outra coisa. — Se sou tão
apavorante, por que minhas irmãs não demonstram medo?
Tanae chegou mais perto de sorrir do que nunca. — Titus, sei que
cortaria minha cabeça na batalha se eu fosse contra você, mas se eu fosse
alguém que você olhasse primeiro como uma mulher e tudo o mais
depois, você não levantaria um dedo para colocar um hematoma na
minha pele. Cada mulher no mundo sabe disso.
Titus rosnou para ela, mas não teve resposta. Ele não acreditava em
prejudicar aqueles que não se colocavam à frente na batalha. Isso se
aplicava independentemente do gênero, mas sim, tinha uma queda
especial pelas mulheres. Mas no instante que uma mulher pegava uma
espada, ia de mulher a guerreira. Uma guerreira era um jogo justo. Uma
mulher deveria ser protegida.
Ainda assim, embora duas de suas irmãs fossem guerreiras, não
encontrou Zuri e Nala naquele campo. As via como um irmão às irmãs.
Assim, por mais que isso o irritasse, nunca faria mal a elas. Mesmo
quando constantemente lhe enviavam sugestões de estratégias de
batalha contra os renascidos. Como se não estivesse em seu quarto
milênio! Como se não fosse um arcanjo que acabou de derrotar outro
arcanjo!
Da última vez, ameaçou dizer a Alexander que estavam sendo
negligentes em seus deveres se continuassem a persegui-lo. Certamente
ele escreveu, vocês não teriam tanto tempo em suas mãos se estivessem
realmente fazendo as tarefas atribuídas.
As gêmeas ficaram em silêncio. Isso duraria cerca de cinco minutos.
Suas irmãs não sabiam o significado da derrota.
— Venha — disse ele a Tanae —, devemos limpar o próximo campo
para que as barreiras possam ser erguidas. — Era assim que faziam isso
– seção por seção, com equipes de mortais e jovens vampiros
encarregados de mover cada barreira para fora à medida que mais terras
eram limpas da infecção renascida.
Funcionava, mas o progresso era lento. Seria glacial se não fosse
pela ajuda de Raphael e Alexander. Os dois ajudaram Titus a limpar
completamente a área ao redor do próspero centro de comércio que era
a cidade de Narja. O fato de ter se tornado sua cidadela de batalha foi um
acidente de localização – Charisemnon era um vizinho amigo quando
Titus assumiu como Arcanjo da África do Sul pela primeira vez, e Narja
nasceu naturalmente, resultado do comércio entre os dois lados da
África.
As batalhas aconteceram muito tempo depois e, a essa altura, o
povo de Narja estava decidido a se agachar para apoiar a cidadela que
ficava numa elevação no centro da cidade. Ajudou o fato de que a cidade
não estava realmente bem na fronteira e, portanto, protegida do pior dos
combates.
Nada podia tê-lo protegido da praga dos renascidos, no entanto.
Charisemnon, aquele filho bastardo de um asno doente, havia– enquanto
agia como aliado – silenciosamente colocado suas tropas terrestres para
pastorear as criaturas infecciosas ao longo da fronteira. Os renascidos
devastaram o povo de Titus, uma onda pútrida de morte e horrível
ressurreição.
Mesmo com Titus, Raphael e Alexandre em jogo, tiveram que lutar
com intensidade brutal para apagar a ameaça de Narja. Seja o que for que
Charisemnon e/ou sua parceira megalomaníaca fizeram aos renascidos,
a linhagem na África era ainda mais cruel e virulenta que no resto do
mundo.
Esses novos renascidos caçavam em bandos e pareciam ter uma
inteligência rudimentar que remontava aos primeiros renascidos que
Lijuan criou; muitas das criaturas aprenderam a cavar tocas nas quais se
escondiam durante as horas brilhantes da luz do dia, rastejando apenas
ao anoitecer para começar seus ataques.
E, ao contrário da taxa de transmissão em outras partes do mundo,
aqui, contanto que a cabeça da vítima não fosse arrancada, parecia ser
cem por cento. Morrer por mãos renascidas era retornar renascido. Isso
não era nem de longe o pior de tudo – se um vampiro ou mortal fosse
arranhado ou mordido por um renascido levava a uma infecção feia,com
uma taxa de mortalidade de cinquenta por cento.
O Arcanjo da Morte e o Arcanjo da Doença criaram um híbrido
horrível. Mas a repulsiva melhoria era a razão de todos os mortos no
território de Titus agora serem cremados – esses renascidos tinham a
capacidade de transmitir a infecção aos mortos que ainda tinham um
fragmento de carne em seus ossos. As criaturas cavavam sepulturas,
retiravam cadáveres, alimentavam-se deles, mas se restasse alguma
carne depois, os mortos renasceriam.
Uma vila inteira foi massacrada por seus mortos na guerra recém-
enterrados horas depois que Titus deixou o continente para lutar contra
Lijuan. Agora, as pessoas em toda esta terra passavam as horas do dia
desenterrando seus mortos enquanto as lágrimas escorriam de seus
rostos e seus corações se partiam; cada corpo era tratado com respeito,
mas não havia escolha – seus mortos precisavam ir para o caldeirão
purificador do fogo.
— Charisemnon e Lijuan deviam ter um plano para espalhar essa
nova linhagem — disse Tzadiq a ele após perceberem o horror que
enfrentavam, a cabeça raspada de seu segundo brilhando no adiamento
do sol do amanhecer. — Por que acha que esse plano empacou na África?
— Nunca saberemos com certeza — respondeu Titus, com as costas
encharcadas de suor depois de mais uma noite lutando contra os
renascidos —, mas se tivesse que apostar, diria que tudo que
Charisemnon fez para misturar sua doença com a morte dela, isso lhe
custou. — A doença era um dom que afetava os dois lados. — Ele
provavelmente não conseguiu manter o ritmo projetado.
Mas o arcanjo formado de pestilência e vaidade fez muito.
Muito mais que o suficiente para lidar – mas uma preocupação
persistente assombrava Titus. Quando entrou na corte da fronteira
interna de Charisemnon após seu retorno de Nova York, foi para
encontrar uma série de corpos decompostos. Ninguém esteve dentro dos
prédios da corte nesse ínterim, tanto as forças dele quanto as de
Charisemnon travavam uma batalha desesperada contra os renascidos.
As criaturas ficaram furiosas com a morte do seu mestre.
Só mais tarde, após interrogar vários membros importantes da
corte inimiga, soube que Charisemnon fechou a corte interna para todos,
exceto alguns poucos favorecidos. Os outros cortesãos temeram que
tivessem decaído em favor de seu arcanjo. Descobriu-se, pelo que Titus
descobriu, que os poucos favorecidos na verdade eram os poucos
azarados.
Para os vampiros, Titus acreditava que seu soberano os infectou
acidentalmente com uma doença ou os usou como cobaias. Era possível
que os anjos fossem jogados para os vampiros como alimento de
sacrifício, mas era igualmente possível que a decomposição ocultasse o
que poderiam ser indícios de doença. Era a última perspectiva que
assombrava Titus – porque os anjos não deveriam ser vulneráveis a
doenças.
Era uma lei escrita em pedra.
Tão imutável quanto o vento e o céu.
Ou era antes de Charisemnon.
Então Tzadiq descobriu a pior coisa: uma trilha esverdeada preta e
pegajosa ao longo do corredor que levava para fora da sala dos mortos
em decomposição... Uma forma que não podia ser nada além de um anjo.
Nenhum outro ser no mundo podia ter feito esse padrão específico.
Apenas um anjo cujas asas estavam se arrastando ao longo da pedra
enquanto se arrastava e se arrastava pelo corredor.
Desnecessário dizer que Titus estava lidando com problemas sérios
e mortais.
A Colibri não tinha exatamente nenhuma habilidade útil quando se
tratava das tarefas sombrias que estavam por vir.
Ele queria gemer de novo. Ainda tinha alguém em sua equipe que
pudesse arrumar um quarto para ela?
Isso seria um desastre absoluto.

CAPÍTULO 6
A primeira ação de Sharine foi considerar o bem-estar de Lumia e
seu município conectado. Para isso, reuniu os membros de sua equipe
atual que usavam o manto de liderança: Trace, Tanicia e Farah.
A mais velha das três, Tanicia, seu cabelo preto delicadamente
trançado na frente, mas um halo atrás, disse: — Não hesitaremos em
manter as regras que estabeleceu, Lady Sharine. — Sua voz era rouca,
seu olhar resoluto, e suas asas de um vermelho alaranjado outonal
profundo contra a pele do marrom mais escuro. — Não permitiremos
que nenhuma mancha caia sobre sua honra.
Ela não deveria ter favoritos, Sharine pensou, mas Tanicia era uma
das suas. Uma guerreira por completo, mas com coração. Sharine a viu
colocar doces nas mãos dos jovens que corriam atrás dela nas ruas,
querendo tocar em suas asas, mas muito bem ensinados por seus pais
para ousar.
— Tenho fé em vocês — assegurou aos três, para que não
acreditassem que estava questionando sua lealdade ou compromisso. —
Mas estamos em número reduzido – e agora vão me perder por um
tempo. Devemos ter contingências no lugar, caso os vampiros na área
comecem a agir. — Como Raphael a lembrou, a sede de sangue sempre
foi uma ameaça, especialmente na ausência de supervisão arcangélica.
Com Elijah, o Arcanjo da América do Sul, assim como Caliane no
sono curativo de anshara, o Cadre tinha apenas sete membros agora, um
deles Suyin, recém-ascendida e encontrando seus pés. Acrescente o fato
de que Neha, a Arcanjo da Índia, despertou do anshara uma semana
atrás, e o Cadre estava estendido até o limite.
Como resultado, anjos poderosos que podiam manter a coleira do
medo eram muito mais necessários que na ordem normal das coisas.
Sharine não era mortal ou uma executora. Mas, desde que assumiu sua
posição aqui, aprendeu que tinha a capacidade de tirar o melhor dos
outros, incluindo esquadrões de guerreiros.
Esses esquadrões seguravam a coleira por ela.
— Já falamos sobre isso — disse Tanicia, olhando para Trace e
Farah. — Vários vampiros desta região foram chamados para lutar no
exército do Arcanjo Charisemnon.
— Sim. — Tristeza teceu através de seu sangue por todas as
pessoas vampíricas, angelicais e mortais, que nunca mais voltariam, seus
corpos destruídos pela guerra. Aqueles atribuídos a Lumia no momento
vieram até ela antes de sua partida, certificando-se de que ela sabia que
estava prestes a perdê-los do complemento de Lumia e por quê.
Sharine não tinha inveja de nenhum deles. A guerra não atingiu
esta área isolada – Charisemnon se direcionara para a metade sul do
continente, com a luta ocorrendo principalmente na fronteira norte/sul.
— O arcanjo não apenas se lembrou de seus soldados, ele convocou
civis que eram tecnicamente seu povo, embora vivessem dentro de
nossas fronteiras — lembrou Tanicia a Sharine. — Por mais triste que
seja, isso significa que atualmente temos uma população muito pequena
de vampiros civis. Devemos ser capazes de manter a paz por semanas ou
mais – você construiu uma base sólida sobre a qual podemos nos apoiar.
— Os idiotas sabem se comportar — falou Trace lentamente. —
Todo mundo vai colocá-los na linha – e não serão gentis com isso.
Ninguém, mortal ou imortal, deseja perdê-la como Guardiã e, para esse
fim, garantirão que o Cadre não tenha motivos para questionar sua
liderança.
Oh, ela gostava dele. Gostava de todo seu povo. Farah, tão quieta e
sábia em seus conselhos. Trace, erudito e sedosamente perigoso. A
batalhadora Tanicia, que estava ao lado de Sharine desde o início,
quando Sharine não estava certa do que fazia aqui. A única razão pela
qual aceitou a posição foi porque Illium pegou suas mãos e disse: —
Essas pessoas estão feridas, mãe. Você entende a dor e sabe como ser
gentil. É disso que precisam.
Ele podia ser tão sábio às vezes, seu menino de asas azuis que
estava se tornando mais poderoso a cada vez que ela se virava. No
entanto, sempre se lembraria dele como o bebê desajeitado que
cambaleou na primeira vez que saiu da porta da cozinha, direto para a
queda íngreme de tirar o fôlego do lado de fora.
Ela teve o coração na garganta a cada segundo doloroso, mas não
foi atrás dele. Seu pai observava de baixo... e bem, Aegaeon ainda era um
bom pai, mesmo que já tivesse perdido o interesse por ela como mulher.
Ele pegaria seu menino pequeno e encantado se ele tivesse enrolado suas
asas e caído.
Mas ele não o fez. Seu bebê voou.
E deu asas a Sharine quando ela estava mais quebrada, trazendo-a
para este lugar onde era considerada alguém a quem se recorrer, uma
pessoa em quem confiar. — Tenho confiança em sua capacidade de lidar
com qualquer coisa que surja na minha ausência — disse ela aos seus
três superiores, e viu suas espinhas se alongarem, seus rostos ganharem
luz interior.
— Vou me preparar esta noite e voar para a corte de Titus na
manhã seguinte. — Ela ergueu a mão quando os olhos de Tanicia
brilharam, seus lábios se separando. — Raphael se ofereceu para
arranjar uma carona numa dessas engenhocas de metal voadoras, mas
não sou tão moderna. — A ideia de ficar presa dentro de um tubo de
metal não era sua ideia de voo. — Também quero fazer um levantamento
da paisagem.
Tanicia franziu a testa e Farah deu um passo de um pé para o outro.
Surpreendentemente, foi Trace quem inclinou a cabeça em derrota. —
Desejo-lhe uma boa viagem, Lady Sharine.

O amanhecer veio numa carícia rosa e amarela clara no céu cinza


crepuscular.
As donzelas de Sharine argumentaram por enviar suas coisas por
terra, mas Sharine não tinha intenção de arriscar seu povo por vaidade.
Suportou seu silêncio perturbado enquanto deixava claro que carregaria
o que precisava numa pequena mochila que caberia perfeitamente entre
suas asas. — Ninguém deve enviar mais nada atrás de mim.
Elas tinham rostos tão ansiosos, ombros tão curvados, mas
aceitaram sua palavra. Agora, ela verificou duas vezes a mochila que
encheu na noite anterior. Ela teve uma mochila quando jovem, mas esta
foi um presente de Aodhan. E Aodhan sendo Aodhan, enquanto a mochila
era de um marrom dourado adequado para o calor do Marrocos, quando
examinada mais de perto, provava ser padronizada com um desenho da
mesma cor. Mesmo nas coisas mais simples, seu protegido não conseguia
parar de fazer arte.
Ela parou para pensar sobre o que poderia precisar e o que poderia
pedir emprestado. Titus era um homem que tinha muitas guerreiras e
pessoal feminino e, embora fosse menor, não era tão pequena a ponto de
dificultar o empréstimo de roupas ou sapatos. No final, a mochila acabou
sendo um peso que ela podia carregar facilmente por toda a viagem.
Quanto às roupas dela para esta viagem... Sempre usou vestidos de
vários tipos – padrões simples sem enfeites, bem como peças mais
complexas. Mesmo com o último, no entanto, não era fã de realces
pesados, preferindo tecidos e cortes bonitos. Ainda assim, desde que
assumiu sua posição em Lumia, passou a apreciar a versatilidade
oferecida pelas roupas usadas por seus guerreiros.
Agora, vestiu uma calça marrom que abraçava suas pernas, e uma
túnica na altura da coxa em cinza-azulado com mangas três quartos. A
túnica trazia um debrum prateado nas mangas e nas pontas.
Um presente da Arcanjo da Índia quando Sharine aceitou o posto
em Lumia, o tecido da calça e da túnica incluía fios sutis cintilantes. Além
disso, o bordado era imperfeito – o tipo de imperfeito que combinava
com o toque personalizado de um artesão. Tudo isso cantava o amor de
Sharine pela cor, pela arte.
Depois de se vestir, foi até o espelho e considerou a queda de seu
cabelo. Ela se acostumou a usar o preto com pontas douradas dele na
maior parte, mas hoje ela pegou uma escova de cabelo e passou pelas
mechas, em seguida, teceu o cabelo numa trança que amarrou com um
laço preto simples.
Riu do rosto que a olhou de volta – com o cabelo assim, e vestida
com simplicidade, parecia jovem e esperançosa.
A imortalidade deixava sua marca, mas nem sempre no rosto ou no
corpo.
As marcas de Sharine eram todas internas. Seu rosto era o da jovem
que ela foi. Uma mulher que estava com medo e ansiosa a maior parte do
tempo, uma garota que gostaria de poder voltar e tranquilizar.
Com o cabelo pronto, foi se sentar num banquinho perto das portas
que davam para sua varanda e calçou as meias, depois as botas. Sua
preferência era permanecer com as sandálias amarradas com cordões
até a panturrilha, mas Titus estava atualmente tendo que lidar com
hordas de renascidos. Sharine precisava de calçados que não se
tornassem um risco caso ela acabasse numa briga.
A luz do sol do amanhecer caiu em suas asas quando ela se sentou
amarrando as botas e olhou para o lado, imaginando como capturaria
aquele rendilhado de luz numa tela. Caindo nas pinceladas, nos tons de
tinta e como misturaria cada um com precisa perfeição.
A parte principal de suas penas seria fácil – o índigo intenso era
familiar e uma cor que pintava com frequência quando Raan a fazia
praticar retratos fazendo o seu próprio, mas com aquele tom de
champanhe espalhado por todos os filamentos, estava tão cheio de luz
que era quase impossível capturar. Além disso, a textura do sol estava
alterando ainda mais o...
— Sharine — murmurou, deliberadamente quebrando seu olhar e
voltando sua atenção para suas botas. Esta era uma verdade que não
compartilhara com ninguém, nem mesmo com Caliane. Os fragmentos
quebrados de si mesma não se curaram totalmente – de vez em quando,
sua mente tentava voltar para aquela paisagem destruída onde tudo era
suave e nebuloso e ela não precisava pensar na dor.
Foi tão fácil viver dentro de seu abraço, fazer sua arte e não
enfrentar uma vida que deixou cicatrizes tão profundas que nunca
poderiam ser removidas ou apagadas. Ela foi uma covarde e era hora de
admitir isso. Caliane podia não ver dessa forma, mas Caliane não teve um
filho que precisou cuidar de sua própria mãe.
Com o coração doendo, não pôde evitar pegar o dispositivo que
Illium deu a ela da última vez que visitou Lumia. Não, não da última vez,
foi na anterior. Ele veio sozinho então, e a importunou até que ela se
sentou com ele para aprender como usar este dispositivo.
— Chama-se telefone — disse a ela. — Uma pequena versão da tela
que você usa para falar com Raphael e a Arcanjo Caliane.
Sharine nunca se preocupou muito com tecnologia – mesmo com a
tecnologia da época em que nasceu. Estava muito mais interessada em
descobrir como capturar todos os tons do mundo. Mas, desejando ser
indulgente com seu filho e contente em apenas estar com ele, sentou e
ouviu.
Hoje, revirou suas memórias num esforço para lembrar o que ele
tentou ensiná-la. Não havia prestado atenção suficiente no momento,
ainda parcialmente perdida no caleidoscópio, então sua retenção não foi
tão acentuada como de costume.
Mas Sharine estava farta de desistir.
A mandíbula travada, tocou diferentes partes da tela, ativando
coisas até que o dispositivo começou a parecer familiar finalmente.
Mesmo desbotada e nebulosa, sua memória era uma de suas maiores
vantagens, a razão pela qual podia pintar tão fiel à vida.
Com os dentes mordendo o lábio, criou uma mensagem: meu filho,
você está acordado? Eu falaria com você. Não parecia bonito, mas serviria.
Ela mandou. Não sabia que horas eram na cidade dele, e não sabia quais
responsabilidades estavam sobre seus ombros, mas sabia que ele devia
estar muito ocupado.
No entanto, o telefone começou a zumbir em sua mão um momento
depois, um retrato estático de Illium aparecendo na tela. Ela olhou
freneticamente para as opções disponíveis, sem saber em que parte
tocar. Pensando que o vermelho era quase universalmente a cor do aviso,
decidiu tocar no verde. E o rosto vivo de seu menino apareceu na tela.
Estava suado, as pontas negras de seu cabelo azulado úmido contra
um fundo escuro iluminado pelas luzes nas janelas de um prédio atrás
dele, e tinha o sorriso mais enorme no rosto. — Mãe, você mesma fez
isso?
Endireitando os ombros, ela disse: — Claro. Não deve duvidar de
sua mãe.
Sua risada fez seus lábios se curvarem, tudo dentro dela
repentinamente quente e feliz. Ele era tão lindo, seu filho. Com seus olhos
dourados e sua pele beijada pela luz do sol, e suas asas de um
surpreendente azul prateado. Mas a coisa mais linda sobre Illium era seu
coração. Ele amava tão ferozmente, seu filho. E lamentava tão
profundamente que era pura devastação.
— Estou indo para o território de Titus — disse a ele. — Serei
capaz de usar este dispositivo lá?
Ele assentiu. — Configurei para que possa usar em qualquer lugar.
Se quiser, posso dar seu número de contato para Raphael e Elena, e
qualquer outra pessoa com quem queira manter contato.
— Sim, eu gostaria disso. — Ela não mais se isolaria de maneiras
grandes e pequenas. — Ensine-me como recuperar o número e o darei ao
meu pessoal também. — Era certo que teria acesso a toda a tecnologia de
Titus enquanto estivesse em sua corte, mas Sharine estava descobrindo
que não estava feliz em depender de outras pessoas.
Illium a ensinou como navegar no telefone, em seguida, lembrou-a
de que deveria carregá-lo com energia elétrica, como fazia todos os dias
desde que ele lhe deu o dispositivo. Depois, ela observou seu rosto, os
ângulos mais finos do que o normal. — Fale-me da sua cidade.
— As pessoas dizem que tivemos sorte. — Ele passou a mão pelo
cabelo. — É verdade que não temos que nos preocupar com o flagelo de
renascidos como tantos outros territórios, mas isso é apenas por causa
de quanto da cidade foi destruída. A própria terra está gravemente
chamuscada em alguns lugares...
Abaixando a cabeça, a voz tensa quando falou em seguida. — Havia
tantos mortos, mãe. — Com os olhos dourados úmidos e brilhantes ele
desviou o olhar por um segundo antes de encontrar seu olhar
novamente. — Tantos ataúdes para voar para o Refúgio, tantos túmulos
para cavar, tantos amigos para lamentar cujos corpos tiveram que ser
incinerados depois do que Lijuan fez a eles.
Os músculos de seus ombros contraíram, sua mandíbula
trabalhando. — Tivemos que higienizar efetivamente toda a cidade antes
que os vulneráveis pudessem voltar. Além de uma pequena pausa
oferecida pela brilhante chuva que caiu durante a ascensão de Suyin, o
cheiro dos cadáveres podres do exército de olhos negros de Lijuan não
saiu. Por um tempo, até Raphael se preocupou que teríamos que queimar
a cidade inteira e recomeçar.
Sharine queria alcançá-lo e abraçá-lo, mas tudo que podia fazer era
ouvir.
— Muitos dos nossos se foram, incluindo a Legião — disse a ela. —
Está muito silencioso na cidade. É estranho dizer isso quando a Legião
mal falava, mas estavam sempre por perto – sentados no topo de
edifícios como gárgulas ou voando em pequenos grupos, ou apenas se
reunindo em varandas. Sinto falta deles. Todos nós sentimos falta deles.
Sharine realmente não entendia quem e o que a Legião era, mas
entendia a perda de amigos. A guerra não era gentil e não discriminava.
— Pelo que ouvi, seus amigos deram sua energia para que um grande
mal pudesse ser derrotado. Eles se foram com honra. — Tal coisa não
faria diferença para ela caso seu filho tivesse morrido na guerra, mas
sabia que importava.
Illium assentiu. Pelo arco de suas asas acima dos ombros, ela podia
dizer que as segurava com seu controle muscular usual, embora suas
penas permanecessem macias e felpudas. Como eram quando suas penas
cresceram pela primeira vez. Aquelas penas de bebê eram um azul-
celeste manchado, tão delicadas e arejadas que se preocupava em
danificá-las cada vez que lhe dava banho.
— Como estão suas asas? — Ele perdeu ambas durante a guerra,
mas estava fazendo com que voltassem a crescer num ritmo que a
aterrorizava pelo que isso significava para seus níveis de poder.
O pai de seu doce menino era um arcanjo. Um Antigo. Nem toda
criança que tinha um pai arcangélico acabava sendo do Cadre, mas isso
parecia uma certeza para Illium. Ele tinha apenas pouco mais de
quinhentos anos de idade, e já havia aqueles no mundo que pensavam
que ele deveria ter o controle de um território.
Ela sabia que ele recebeu muitas ofertas, mas ficou com Raphael
por um profundo senso de lealdade e amor – e porque era inteligente o
suficiente para saber que não estava pronto. Mas às vezes, o poder não
dava escolha aos seus detentores. Se Illium ascendesse...
Não, não pensaria nisso. Seu filho seria dilacerado pelas forças da
ascensão caso ascendesse muito jovem. Ela ainda conseguia se lembrar
de como foi difícil para Raphael – e ele tinha mil anos de idade. Ela estava
com medo que o filho amado de Caliane morresse, simplesmente se
fragmentasse num milhão de pedaços com o poder que corria em suas
veias.
Quando ele pousou, seus olhos eram de fogo azul, sua pele
estalando com um raio – e suas asas em chamas de uma forma que a
lembrou da queda de fogo de Nadiel. Ela estava distante do local da
batalha onde Caliane executou seu verdadeiro amor, mas viu as belas
asas de Nadiel se dobrarem, viu o fogo devorá-lo enquanto ele caía – uma
estrela que queimou muito brilhante e se consumiu.

CAPÍTULO 7

Na pequena tela do telefone, seu filho abriu as asas para que ela
pudesse ver o progresso de sua cura. — Chegando lá — disse ele. —
Enquanto isso, estou trabalhando no terreno. Isso mantém meus
músculos condicionados e também ajuda com a força das asas, porque
estou constantemente mudando esses músculos quando levanto, dobro
ou viro.
Falaram de outras coisas no tempo que se seguiu, coisas que
poderiam ser faladas entre uma mãe e seu filho. Num ponto, ela disse: —
Como está Aodhan? — O melhor amigo de Illium esteve tantas vezes em
sua casa quando criança que se sentia com direito à preocupação
materna.
Illium fez uma careta. — Bem.
Sharine, uma vez fora dos últimos vestígios da névoa na qual viveu
por tanto tempo, sentiu uma mudança visceral na relação entre seu filho
e seu amigo; se perguntou se deveria dizer algo.
Amizades tão profundas eram raras na vida de um anjo e deveriam
ser apreciadas. A raiva e a amargura podiam destruir o que há de mais
precioso. Mas, lembrou, mesmo enquanto lutavam, eles cuidavam um do
outro. Os dois tiveram muitos anos de amizade e lealdade entre eles para
permitir que isso se quebrasse – mas ficaria de olho em ambos,
garantiria que a teimosia não levasse o melhor deles.
— Dê-lhe saudações minhas e dê meu número a ele. Eu falaria com
ele também.
— Eu irei — prometeu Illium, embora ainda estivesse carrancudo.
— Você terá cuidado, mãe. — Era uma ordem silenciosa, mas mesmo
assim uma ordem.
Ela permitiu, pois sabia que era reflexo depois de tantos séculos
tendo que cuidar dela, de ter que ser a mãe. Havia tantas saudades da
vida de seu filho, tanta dor que ela não entendia. Nunca mais o
decepcionaria.
— Eu prometo tomar todo cuidado — disse a ele, seu coração
doendo. — Sei que lidarei com criaturas perigosas no território de Titus.
— A última coisa que os guerreiros já cansados precisavam era de
distração cuidando de um anjo sem bom senso. — Usará este dispositivo
novamente para falar comigo?
— Eu vou ligar. — Ele sorriu, um brilho nos olhos. — Me pergunto
como Titus lidará com você.
— Ele é um arcanjo e eu sou um anjo velho e experiente que pode
ajudá-lo. Vamos trabalhar bem juntos.
A risada de seu filho tinha uma alegria que a fez estreitar os olhos,
mas permitiu sua travessura, profundamente contente em ver a alegria
enchê-lo até a borda mais uma vez.

Sharine não viu nada digno de nota na primeira hora que voou além
de Lumia. Isso não era surpreendente – embora as terras de Lumia
parassem bem antes da marca de uma hora, suas tropas voavam tão
longe regularmente para ficar em forma de luta e manter sua resistência.
No esquema normal das coisas, sabiam que nunca deveriam
interferir com o povo de Charisemnon, mas Sharine tomou a decisão de
violar essa regra quando os renascidos começaram a se espalhar pela
África – ordenou que seus guerreiros eliminassem silenciosamente
quaisquer ameaças renascidas que vissem. As criaturas cambaleantes
que alcançaram este extremo norte eram em pequeno número e logo
despachadas.
Charisemnon estava muito focado em sua batalha com Titus para
prestar atenção.
As verdadeiras cicatrizes apareceram cerca de meia hora além
desse perímetro. Uma pequena aldeia estava meio em ruínas, uma
grande área central queimada com vigas enegrecidas e telhados
destruídos. Querendo entender o que aconteceu ali, ela fez um círculo
cuidadoso acima do silêncio mortal para garantir que não cairia no
perigo.
Só quando teve certeza de que não viu nenhum movimento,
nenhuma indicação de qualquer coisa vivendo abaixo, desceu no centro
da estrada longa e larga que parecia ser o coração da aldeia. Sua posição
dava-lhe uma excelente visão em todas as direções; localizaria
rapidamente qualquer renascido que pudesse correr em sua direção.
No entanto, as únicas coisas que se moviam na paisagem
carbonizada eram pedaços de tecido que poderiam ser cortinas,
pequenas bandeiras ao vento fraco. Talvez esta vila tenha sido vítima da
batalha entre os dois arcanjos. Mas não, não podia ser. Os combates
ocorreram longe daqui, perto do que foi a fronteira norte/sul.
Então viu a lata vermelha caindo no chão, reconheceu que era o
mesmo tipo de lata que viu as pessoas de sua cidade usar para
transportar combustível. Assim que começou a procurar, viu as outras
latas. Muitas rolaram para longe de qualquer que fosse sua posição
original, provavelmente empurradas ou apagadas pela tempestade de
fogo, mas não havia como esconder sua natureza generalizada.
O combustível foi cuidadosamente dispersado para incendiar este
lugar.
Com um arrepio no sangue, se dirigiu para um grande edifício
enegrecido que poderia ter funcionado uma vez como escola ou salão
comunitário. Tomou muito cuidado; não desejava se tornar uma vítima
dos renascidos. Podia ser velha e, portanto, difícil de matar, mas não
sobreviveria à decapitação – e, de acordo com Tanicia, atualizações
recentes da fronteira tinham as criaturas caçando em matilhas.
Novamente, entretanto, ouviu apenas um silêncio penetrante em
sua intensidade.
Não sabia o que esperava quando olhou através da abertura
estreita criada pela parede quebrada e meio caída do grande edifício...
mas não eram ossos. Muitos ossos. O horror a atingiu ao pensar em todos
os que morreram ali dentro; imaginando se deveria tentar encontrar
uma maneira de se aprofundar mais, desenterrar mais respostas, olhou
para baixo.
Bem lá dentro, sombreado pela forma como a parede havia caído,
estava uma mão que de alguma forma se tornou mumificada pelo
inferno, a pele de um tom brilhante e não natural e a carne há muito
derretida. Como um pedaço de carne defumado por muito tempo. Seus
dedos tinham unhas afiadas em forma de garras enegrecidas pela
fumaça. Ela franziu o cenho. Talvez fosse simplesmente sua perspectiva,
mas as garras pareciam estranhamente alongadas.
Mas não, não era perspectiva, porque mesmo quando ela se
contorceu na lacuna para olhar o mais de perto possível de sua estranha
posição, a sensação de dimensões estranhas permaneceu. Os ossos do
dedo e da mão deste indivíduo estavam... esticados. Como uma aranha.
Esta não era a mão de um vampiro. Até onde sabia, os renascidos
também não se pareciam com isso. Tinham as proporções corretas dos
mortais de quem foram criados. Felizmente, a África não teve que lidar
com os mortos de olhos negros que Lijuan fez de seu povo. De qualquer
modo, aqueles de olhos negros morreram com sua soberana. No entanto,
era possível que os renascidos tivessem começado a sofrer mutação. Se
todos dentro do salão eram como este, então talvez o incêndio tenha sido
um ato de autoproteção.
Lembrando-se de algo que Illium disse a ela, deu um passo atrás
para fora da lacuna, em seguida, recuperou o dispositivo que ele deu a
ela. O telefone. Ele disse a ela que podia gravar imagens. Dada a atenção
incerta que prestou na época, levou cinco longos minutos para descobrir
como, mas então pegou um cuidadoso conjunto de imagens e gravações
para mostrar a Titus.
Podia ser que ele já tivesse visto cadáveres semelhantes muitas
vezes, mas isso não era motivo para ela não estar vigilante. Recolocando
o telefone com segurança no bolso com zíper da mochila, ela caminhou
ao redor do prédio para ver se conseguia entrar sem pisar nos ossos, e
finalmente encontrou um caminho.
A maioria dos ossos que viu perto daquela área eram quebradiços e
desarticulados – nenhum dedo com garras como o anterior. E não havia
como chegar ao corpo original sem quebrar paredes. Ela tomou a decisão
de deixá-lo. Este lugar estava desolado e esquecido. Ninguém iria
perturbá-lo nesse ínterim.
O silêncio assustador da vila sussurrou atrás dela enquanto
caminhava para uma área vazia, então abriu suas asas e decolou. O vento
criado por suas asas agitou a poeira no chão e por um momento teve
quase certeza de ter visto um movimento. Mas quando olhou novamente,
foi para ver um pedaço amassado de papel descartado parando de rolar.
Não, lá.
Uma hiena listrada, magra e de pés leves, rondava nas sombras.
A preocupação presava em seu sangue, e não querendo abandonar
quaisquer sobreviventes à fome ou ao ataque de predadores naturais
encorajados, fez outra varredura na aldeia, indo baixo o suficiente para
localizar qualquer sinal de vida. Nada. Sem respirações no ar. Sem mãos
procurando ajuda. Por fim, continuou a voar, acompanhada por um
solitário peneireiro cinzento que interrompeu o voo ao avistar uma
presa nos campos que passavam. Ela viu mais danos enquanto
continuava, mais assentamentos abandonados, mas nada como aquele
primeiro.
Então começou a ver os lugares onde as pessoas ainda viviam – as
cidades estavam muito silenciosas, com grupos tensos de guardas alados
e baseados em terra nas fronteiras, muitos segurando armas pesadas que
ela não reconhecia. Muito poucas pessoas se moviam nas ruas, e os danos
causados pelo fogo eram faixas pretas na paisagem ao redor de cada
cidade.
Como se seu povo tivesse protegido sua casa com uma fortaleza de
fogo.
Mais de um guarda a avistou ao longo do caminho, mas foi na
segunda cidade que sobrevoou que um guerreiro endurecido pela
batalha com o que parecia ser um braço quebrado voou para falar com
ela. — Lady Colibri — disse ele ao alcançá-la, a pele escura de seu rosto
marcada por manchas rosadas onde sua pele foi queimada ou retalhada
por garras renascidas. — A paisagem não é segura.
Elena de Raphael sem dúvida ficaria irritada por ser cercada por
tanto cuidado protetor, mas Elena era uma guerreira por completo e
mereceu suas listras. Para este comandante angelical, Sharine
permanecia como a Colibri quebrada. Ele tinha o direito de questionar se
ela trazia mais problemas para sua cidade, se ele teria que oferecer-lhe
uma escolta agora.
— Estou ciente — disse ela com gentileza consciente, tendo
percebido as linhas de dor ao redor de seus olhos. Simplesmente porque
anjos curavam mais rápido que mortais não significava que a cura não
doía. — Eu voo para Titus e estou tomando cuidado para não pousar em
nenhum lugar, exceto trechos vazios de terra que oferecem visibilidade
total.
Um alívio da tensão em seus ombros. — Não pouse depois de
escurecer, a menos que seja numa cidade ou vila com planos de proteção.
É quando as criaturas estão mais ativas – embora, por favor, não deixe
que isso a torne complacente à luz do sol. Quando eles estão com fome o
suficiente, não se importam em ser pegos na luz.
— Agradeço a informação. — Ela observou sua cidade novamente.
— Vocês são poucos. — Uma sensação de vazio permeava a paisagem.
— Perdemos muitos na guerra. — Palavras planas e cansadas. —
Outros caíram para os renascidos.
Sharine sabia, sem perguntar, que este guerreiro nunca
menosprezaria seu antigo arcanjo, mas ouviu a raiva em seu tom. — Você
deseja que eu dê alguma notícia para Titus?
Quando ele hesitou, ela disse: — Ele é seu arcanjo agora. As
inimizades do passado não importam, pois tais inimizades são apenas
para o Cadre.
Ele procurou seu rosto. — Mesmo para os soldados e pessoas de
um arcanjo inimigo que buscou aniquilar sua terra?
— Quando os titãs lutam, não prestam atenção aos peixinhos. —
Um fato simples e brutal da vida.
— Sim. — Ele curvou a cabeça antes de dar a ela um relatório que
ela prometeu transmitir.
Então, depois de assegurar a ele que não precisava de uma escolta,
ela voou além da borda chamuscada da cidade e além. Se as cidades
causaram sua preocupação, os assentamentos rurais isolados
devastaram.
Casas inteiras eram pilhas de entulho enegrecido e campos
agrícolas estéreis.
Os abutres se alimentavam dos restos de animais domésticos
mortos, enquanto os leopardos rondavam mortalmente perto de uma
população que ficava fraca e incapaz de se defender. O gato caçador
esperaria pelas horas da noite para atacar, mas que ele estivesse tão
longe de seu território selvagem normal disse a ela que os renascidos –
com seu desejo de destruir todas as criaturas vivas – causaram danos
significativos ao ecossistema.
Numa vila, os mortais e aqueles poucos vampiros que não foram
chamados para a batalha olharam para cima com olhos cansados que se
arregalaram quando ela mudou seu caminho e veio para a terra. Sujas,
linhas de exaustão esculpidas em seus rostos magros, as pessoas se
curvaram profundamente para ela. — Senhora — disseram. — Estamos
honrados.
Ela não sabia se diziam isso porque sentiam ou simplesmente
porque era esperado. Não importava para ela. Não estava aqui para ser
elogiada ou festejada. — Titus sabe do estado de vocês? — perguntou,
vendo os ossos empurrando contra a pele dourada escura de uma
criança que se escondia atrás de sua mãe.
A aldeã que falou primeiro, uma velha que parecia ser a mais velha,
engoliu em seco. — Não preocuparíamos o arcanjo com nossos pequenos
problemas. Não quando os comedores dos vivos vagam pela paisagem.
Sharine podia entender sua reticência, mas como com o guerreiro
angelical, tinha a sensação de que havia mais nisso. Essas pessoas
pertenceram a outro arcanjo durante suas vidas inteiras, e
provavelmente também acreditavam que Titus invejaria sua lealdade
anterior.
Isso não era possível – e não tinha nada a ver com o próprio Titus.
Na verdade, os humanos raramente apareciam nos pensamentos
dos arcanjos. Ninguém do Cadre culparia mais os humanos pelo
comportamento de seu arcanjo do que culparia um gato de estimação.
Um pensamento duro, mas era assim com muitos dos mais poderosos de
sua espécie.
Raphael era diferente, mas apenas porque tinha uma consorte que
já foi humana – uma consorte que se recusava a esquecer de sua
humanidade, mesmo enquanto caminhava no mundo dos imortais. Sem
Elena, Sharine não acreditava que nem mesmo Raphael veria mortais e
jovens vampiros como qualquer coisa além de peças descartáveis num
tabuleiro de xadrez.
Sharine era a mesma... e sempre diferente. Mesmo que não se
importasse muito com os mortais, sua vida estava no plano imortal e
entre seus pares. Mas diferente disso, quando encontrava mortais, os
tratava simplesmente como uma espécie de vida curta, nem mais nem
menos digna do que a espécie de anjos.
Suas crenças mudaram desde que assumiu a supervisão de Lumia.
Agora conhecia os humanos como indivíduos. Agora esperava o sorriso
tímido e torto de Kareem, o dono da barraca que sempre lhe oferecia chá
de menta fresco. Agora tinha um favorito entre as crianças inocentes e
travessas que a seguiam nas ruas. Agora começou a entender por que seu
filho chorou tanto quando perdeu sua amante humana.
Essas memórias estavam emaranhadas em sua mente, mas se
lembrava de sua tristeza. Tristeza tão profunda e verdadeira que
penetrou em sua loucura com a eficácia de uma lâmina afiada. Seu filho
não era naturalmente um ser triste, sua risada a trilha sonora de sua
infância para ela. Então percebeu quando ele parou de rir, quando parou
de receber aquele brilho nos olhos que significava travessura e
brincadeira. Ele retornou eventualmente, mas alterado de uma forma
sutil.
Sua perda deixou uma cicatriz que viveria para sempre em seu
coração.
Ela pensou que o abraçara então, embalara nos braços como fazia
quando era um bebê. Esperava que fosse uma memória verdadeira e não
uma invenção de sua mente quebrada. Gostava de pensar que esteve lá
para ele não apenas naquela época, mas em outros eventos sombrios em
sua vida.
Seu coraçãozinho se partiu pela primeira vez quando seu pai os
deixou. Embora a mente de Sharine tenha se partido no momento da
crueldade calculada de Aegaeon – não porque ele partiu, mas por causa
de como – ainda retinha fragmentos de memória daquela época. Uma das
mais fortes foi apertar o filho pequeno e murmurar para ele que tudo
ficaria bem.
Mas não ficou tudo bem. Ela não era forte o suficiente. Que seu filho
a amasse ainda era o maior presente de sua vida. Frequentemente, os
filhos se esforçavam para ser como seus pais, mas Sharine se esforçava
para ser como seu filho: um anjo honrado e gentil que via os mortais e
nunca os considerava inferiores.
— Vou falar com Titus — prometeu aos aldeões. — Ele não é um
arcanjo que faria seu povo morrer de fome. Nesse ínterim, vou pedir ao
meu pessoal para trazer comida para vocês. — Lumia e o município
tinham seus próprios campos de cultivo e áreas de armazenamento
interno, e escaparam de todo perigo.
Pediria a Farah para liderar as gotas de misericórdia, para
distribuir o quanto fosse seguro, sem colocar o município em risco. Os
imortais podiam sobreviver por muito tempo sem comida, mas os
mortais tinham muito menos margem de manobra. — Não se
desesperem. Nossa terra passou por uma guerra devastadora, mas vai
crescer mais forte e se tornar uma bela joia mais uma vez.
Com os olhos brilhantes, as pessoas curvaram-se profundamente,
dizendo: — Obrigado, senhora.
Isso a perturbou, a esperança brilhante naqueles olhos. Eles não
sabiam a quem se curvavam. Não tinham conhecimento das fraturas
dentro dela. E não ouviam o medo que sussurrava constantemente em
seu ouvido: Você está quebrada. Você é louca. Você falhará. E você cairá.
CAPÍTULO 8

Avelina, seu filho te dá orgulho. Quase crescido, mas não teme um


arcanjo. Sabia que ele me desafiou para um duelo?
Faço minha reivindicação agora – ele virá para minha corte depois
de atingir a maioridade. Vou garantir que seu Titus seja ensinado pelo
melhor dos melhores enquanto cresce em seu espírito guerreiro, como eu
fiz com as gêmeas. E se eu fizer minha tarefa direito, ele vai querer ficar
comigo nos próximos anos. Teria muita sorte de ter você e seus filhos ao
meu lado na batalha.

–Carta do Arcanjo Alexandre a Primeira General Avelina

CAPÍTULO 9

Titus acabava de chegar do campo, o sol do amanhecer se erguendo


numa glória vermelho-alaranjada, quando uma de suas sentinelas
mandou a mensagem de que Lady Sharine havia – finalmente – sido
avistada na fronteira da cidade.
Gemendo, olhou para suas roupas manchadas de sangue e sujeira,
pensou em suas espadas que precisavam ser limpas e simplesmente
ergueu as mãos. Realmente não fazia sentido tentar se arrumar – seria
mais um insulto se não aparecesse para recebê-la quando estava na
cidadela e não lutando contra os renascidos.
Caminhando pelas portas enormes que fluíam de sua área de estar
pessoal – portas que mantinha abertas na maioria das vezes – pisou em
sua varanda e saiu correndo. No enorme pátio abaixo, seu povo labutava,
exausto, mas dedicado. Alguns estavam entrando, alguns saindo,
enquanto outra seção tratava dos animais.
Ainda outro grupo separava as armas que foram trazidas
danificadas ou quebradas pelas equipes em campo. Ao lado deles
trabalhavam os mecânicos, cuja tarefa era manter os veículos pesados
das tropas vampíricas mantidos e prontos para receber golpe após golpe
dos renascidos.
As criaturas apodrecidas ontem tiveram sucesso em agir juntas
para derrubar um dos veículos, mas os vampiros lutadores sobreviveram
porque o veículo foi construído como um tanque. Também ajudou o fato
de terem lança-chamas à mão para fritar qualquer renascido que
tentasse rastejar pelo vidro rachado do para-brisa.
O outro vidro, todo ele endurecido, resistiu.
O murmúrio monótono de vozes, o bater das armas e o ruído dos
motores, o som dos cavalos, era uma música familiar que significava casa.
Mas não podia descansar esta manhã, não podia compartilhar uma
caneca de cerveja com seu povo ou apenas sentar no pátio e limpar as
armas para terminar uma noite de batalha contra os renascidos.
Gemendo novamente com o que o esperava, angulou suas asas e se
dirigiu para além da agitação de sua cidade e na direção da fronteira
norte.
O céu brilhava ao seu redor; vermelho, rosa e tons deslumbrantes
de laranja. Amava essa paisagem e amava as cores do céu. Ele era o
arcanjo da África Austral há cerca de mil e seiscentos anos, e jurava que
cada nascer e pôr do sol era diferente, era único.
No entanto, apesar do show de glória, ainda viu o brilho de uma cor
muito diferente à distância, o índigo das asas distintas da Colibri
acariciadas pela luz – como se o próprio sol estivesse apaixonado por sua
beleza etérea.
Asas batendo forte porque não havia brisa hoje, nenhuma térmica
para montar, rapidamente fechou a distância entre eles. Quanto antes a
alcançasse, mais cedo poderia se livrar das formalidades e tomar o banho
que tanto desejava. Mas seu sorriso forçado de boas-vindas se
transformou numa carranca negra quando se pôs a pairar educadamente
a uma curta distância.
Ela não usava seu vestido habitual e seu cabelo não estava apenas
coberto de poeira, mas numa trança que caía sobre um ombro. Ela
estava, na verdade, de calças pretas e uma túnica marrom claro não
muito diferente de sua própria vestimenta – embora ele já tivesse
acabado com a túnica.
E enquanto as tiras que cruzavam seu peito eram parte do chicote
da espada, um punho visível sobre o ombro esquerdo, o outro sobre o
direito, parecia que as tiras dela estavam presas a algum tipo de mochila.
A Colibri estava de calça e carregando uma mochila.
Ele piscou.
Se não a conhecesse melhor, teria pensado que era uma jovem anjo
saindo para o dia. Talvez até mesmo uma guerreira, embora fosse um
pouco magra demais para conseguir isso, nenhum músculo real nela.
Como a maioria dos seres bonitos que escolhiam chamar de corte gentil,
e ele via com o coração terno de sua fortaleza guerreira.
— Lady Colibri! — estrondou, então estremeceu, porque disse a si
mesmo para usar sua voz adequada. A última coisa que precisava era que
ela pegasse os vapores e caísse do céu. Isso seria maravilhoso. Então
Raphael ficaria com raiva dele porque conseguiu insultar e machucar a
mãe de um dos Sete queridos de Raphael, e sem dúvida o resto da
espécie de anjo pensaria que ele era um ogro.
Mas a Colibri não caiu do céu como um pequeno pássaro assustado.
Em vez disso, veio pairar na frente dele, um sorriso suave curvando seus
lábios. Ocorreu-lhe naquele instante que ela era linda, incrivelmente
linda. Ignorando esse pensamento errôneo porque se tratava da Colibri e
não uma mulher, se curvou ligeiramente.
Sim, ele era um arcanjo, mas a Colibri existia fora da hierarquia dos
anjos, no que lhe dizia respeito. Viu seu trabalho, ficou absorvido por ele
a ponto de caçar uma peça para seus próprios aposentos. A pessoa que
criou tal transcendência, a pessoa que tinha dentro de si tal graça,
deveria ser tratada com o máximo respeito.
— Arcanjo Titus — disse ela com uma reverência própria. — Vejo
que cheguei num momento ruim.
Ele estremeceu por dentro, imaginando o nível de insulto que ela
recebeu. — Acabei de chegar da batalha — disse ele. — Os renascidos
tomaram conta dessa paisagem. Charisemnon, aquele pedaço pestilento
de... er, carne podre — substituiu em vez de excremento —, trabalhou
com Lijuan para criar uma variedade mais forte e inteligente antes de
morrer.
— Sim, ouvi muitos relatos desse tipo em minha jornada aqui —
disse ela numa voz tão rica em textura que parecia uma carícia tátil. Titus
tinha uma queda por música e arte e ela era a personificação de ambas.
Uma pena que também era a Colibri e todo o mundo angelical ficaria
insultado além do reparo se a convidasse para compartilhar seus
cobertores.
Ele estava insultado além do reparo em nome dela por seus
próprios pensamentos baixos. A Colibri estava acima de tudo isso, e ele
era – qual a palavra que uma de suas irmãs usou alguns séculos atrás? –
sim, era um canalha por até mesmo pensar nela de uma forma tão carnal.
— Vi muito durante meu voo — disse ela. — Eu compartilharia essa
informação com você. Acho que você e seu povo não tiveram a chance de
fazer um levantamento completo das bordas rurais do território de
Charisemnon.
Titus deu um pequeno aceno de cabeça. — Eu ficaria grato por
qualquer nova informação. — Ele não esperava muito em termos de
detalhes marciais, pois a Colibri provavelmente se concentrou no mérito
artístico de várias coisas, mas, ainda assim, talvez tenha obtido uma ou
duas informações relevantes por acidente. — Bem-vinda à minha corte,
Lady Colibri.
Seu rosto estava tenso, mas sua voz permaneceu como um veludo
puro quando ela disse: — Vai se tornar cansativo se formos
constantemente formais um com o outro. Por favor, me chame de
Sharine, e se não discordar, eu vou chamá-lo de Titus.
Titus quase fez uma careta antes de se controlar, seus ombros
arqueando. Não parecia certo chamá-la de qualquer coisa além de Lady
Colibri, mas faria a tentativa, já que essa era sua preferência. Quanto a
ele, ela podia chamá-lo do que quisesse. A Colibri tinha esses direitos.
— Como preferir, La... Sharine. — Ele sacudiu a tensão em seus
ombros. — Se me seguir, eu a levarei à minha cidadela. Vamos sentar e
fazer uma refeição juntos, embora receie que tenha que esperar até
depois de eu tomar banho. — Ele queria dar um tapa em si mesmo – o
que pensava que estava fazendo, falando sobre tomar banho para uma
mulher tão culta e refinada?
— Isso é bom — murmurou ela enquanto caíam em voo lado a lado.
— Estou empoeirada da minha longa jornada e também preciso me
limpar.
Exalando porque funcionou melhor do que esperava, ele disse: —
Esperávamos você dois dias atrás. — Ele ficou preocupado o suficiente
quando ela não chegou alguns dias depois de deixar Lumia que ele
contatou Raphael para perguntar se Illium ouviu falar de sua mãe. — Seu
filho me garantiu que você estava segura e a caminho. De outra forma eu
teria enviado meu povo para procurar por você.
— Eu deveria ter mandado uma mensagem. — Um pedido de
desculpas cortês em seu tom. — Decidi fazer vários desvios para
verificar a situação dos assentamentos em ambos os lados da minha rota
principal. Vi algumas coisas perturbadoras e não queria me apressar aqui
quando poderia trazer informações úteis em vez disso.
Com sulcos se formando em sua testa, Titus olhou de lado para a
Colibri antes de desviar o olhar rapidamente. Não queria que ela o
pegasse olhando para ela, mas essa mulher não estava se comportando
como a Colibri de quem ele ouviu falar. Todos na espécie angelical
sabiam que a grande e talentosa artista passava mais tempo num mundo
criado por ela mesma do que no mundo real.
A mulher que falava com ele, no entanto, parecia mais um de seus
agentes de inteligência. Fria. Calma. Recolhida. A única diferença
significativa era a riqueza de sua voz, os tons cheios de uma profunda
emoção. Mas, comportamento estranho ou não, não podia ser uma
impostora.
Havia apenas um indivíduo em toda a espécie angelical que possuía
asas de índigo com pinceladas de luz e olhos de uma tonalidade tão clara
e dourada que eram como pedaços capturados dos primeiros raios do
amanhecer. Certamente era a Colibri.
— Não vi tanta atividade em todo meu voo aqui — disse ela
enquanto voavam para mais perto da cidadela.
Narja movimentava-se ao redor daquela fortaleza de pedra e luz,
seu povo escolhendo viver perto de seu arcanjo. Era uma fonte de
orgulho para Titus que as pessoas que governava viessem em sua
direção em vez de irem para fora. Mesmo aqueles baseados em outras
partes do território tendiam a se agrupar em torno dos anjos seniores da
área. Era muito diferente da forma como as terras de seu inimigo morto
estavam dispostas – o povo de Charisemnon não se abraçava perto de
sua liderança.
— Qualquer pessoa incapaz de ajudar com o flagelo dos renascidos
está ajudando na reconstrução — disse Titus com considerável orgulho.
— Quer isso signifique segurar um pincel na hora que podem sair da
enfermaria ou agir como professores de arte, mesmo que seus próprios
membros estejam despedaçados. Minha cidade sofreu danos
consideráveis na guerra, por estar perto da fronteira. — O fogo escarlate
queimou seu sangue com a memória de como permitiu que Charisemnon
se aproximasse demais. A cobra que era seu inimigo usou a máscara de
aliado, escolhendo astúcia em vez de honra. A morte foi boa demais para
ele, mas era toda a satisfação que Titus teria.
— Não sabia que sua cidade tinha tanto vidro e aço. Isso me lembra
da casa do meu filho, exceto pela falta de torres que raspam o céu.
— Narja se levanta contra qualquer uma das tentações de Nova
York — disse ele, com o peito estufado. — Temos muito mais espaços
verdes, e quanto às torres, isso é consequência de ser uma cidade
fronteiriça. Quanto mais alto for o edifício, maior será o alvo. — Como
resultado, os edifícios da cidade foram construídos para não fornecer
linhas de visão fáceis para o inimigo, já que as estradas eram projetadas
para serem confusas aos olhos de cima.
Percebendo que os músculos das asas da Colibri começaram a cair,
ele sutilmente diminuiu a velocidade. — Meu único arrependimento é
que não veja minha cidade em toda sua glória. — Ele ajudou fisicamente
a construir a cidadela que era o centro dela, e até cavou um ou dois
jardins que normalmente seriam coloridos.
— É um lugar com coração, isso eu posso dizer
independentemente. — Inclinando seu corpo para abranger outra parte
da cidade dele, ela disse: — Está ciente que sua capacidade de mover a
terra criou fendas enormes na terra que continuam a se infiltrar mais
para dentro? Num vilarejo, fui informada que a garganta que se aproxima
deles avançou quinze centímetros por dia – tamanha velocidade os faz
lutar para se mudar.
Ele fez uma careta, pois não gostava de pensar em mortais com
medo e sozinhos por causa do resultado de uma guerra imortal. Era uma
realidade brutal quando os arcanjos lutavam, mas nunca esteve em paz
com tal consequência; sua mãe o ensinou que o forte protege o fraco.
— Meus estudiosos têm estudado o avanço e me dizem que deve
parar logo, pois a energia da Terra acaba. — Seu poder da Cascata para
causar tremores de terra o ajudou a derrotar seu inimigo, mas como com
todos os dons arcangélicos nascidos daquela confluência imprevisível de
tempo e poder, tinha mais de uma faceta.
Não estava certo de que reteria a habilidade quando a Cascata
terminasse repentinamente, levando consigo muito do que ela concedia.
No final, descobriu-se que ainda podia afetar a Terra, mas com um
décimo da capacidade que possuía durante o pico da Cascata. Dado o que
ouvia sobre os outros no Cadre e os poderes com os quais emergiram da
Cascata, era uma troca justa. Todos perderam algo e retiveram algo.
— Essa é uma boa notícia — disse Colibri. — Estou feliz que
continue a dar espaço para seus alunos trabalharem. Deve ser tentador
arrastá-los para a batalha contra os renascidos.
Ele decidiu não se ofender, pois havia um grão de verdade em sua
suposição. — Sou Cadre há tempo suficiente para aprender a pensar no
futuro. Bem, sei que a maior arma dos meus alunos é seu cérebro
coletivo e não suas espadas. Todos, menos uma – Ozias é uma guerreira-
erudita e é minha espiã mestre, sua tarefa reunir informações sobre o
estado do território. Mas ela é apenas um anjo fazendo uma tarefa
gigantesca. Agradeço a informação que você me trouxe. — Embora
inesperado, era de uma mulher conhecida por sua tendência de viver
num mundo de sonhos.
— Você luta uma batalha difícil, Titus. Ofereço toda a assistência
que posso.
Vendo o cair crescente em suas asas, ele optou por não lhe dar uma
visão geral da cidadela. — Vamos pousar na varanda de fora da sua suíte
— disse ele. — É perto da minha, então pode me acessar a qualquer
momento se precisar. — Isso não era bem verdade. Estaria em campo
com mais frequência que não. Mas parecia o tipo de coisa que um arcanjo
deveria pelo menos dizer quando a Colibri ficava em sua casa.
Não era nada que já teve que considerar. Com toda a gentil corte
enviada para a segurança antes do início da guerra, não tinha mais
ninguém suave e doce em sua equipe para lidar com essas coisas. Elia,
vampira de seiscentos anos e mãe adotiva – por escolha – das crianças
órfãs que viviam na corte de Titus, sem dúvida teria administrado tudo
com uma alegria sorridente, Titus não sabia do trabalho envolvido.
Não era um completo estúpido nessas coisas, entretanto – havia
uma razão para ele ter oferecido a Elia uma posição como cortesã sênior.
Ela podia ter um tipo de coração e tendência a se vestir com roupas da
moda e ao mesmo tempo colocar enormes quantidades de cores
cosméticas em seu rosto, mas também fazia seu mordomo merecer seu
salário quando se tratava de hóspedes problemáticos ou sensíveis.
No entanto, seu mordomo estava usando o braço da espada contra
os renascidos, e Elia estava numa ilha próxima à costa com seus
protegidos; teve que tirar pessoas de outras funções para preparar as
coisas para sua convidada.
A única coisa positiva?
Os membros de sua equipe ficaram tão honrados com a visita da
Colibri que não se importaram em dobrar os turnos para arrumar uma
suíte para ela sem abandonar suas tarefas habituais – seja consertar
armas ou alimentar as tropas ou um milhão de outras tarefas críticas.
Depois de pousar na varanda e garantir que a claramente exausta
Colibri descesse com segurança, afastou as cortinas transparentes das
portas abertas – para ver móveis femininos suaves e curvos e vasos
cheios de flores frescas. Graças à engenhosidade de seu povo; ele não
tinha absolutamente nenhuma ideia de onde encontraram aquelas flores.
— Espero que isso sirva — disse ele modestamente depois que os
dois entraram – mas a modéstia era para mostrar; estava muito
consciente de que seu povo se saiu bem e merecia todos os elogios que
ela faria.
Com a expressão tensa, ela olhou ao redor. — Não esperava que se
desse a esse trabalho. — Um tom em sua voz que, em qualquer outra
mulher, ele teria descrito como irritação. Mas essa era a Colibri. Talvez
estivesse descontente com algum pequeno elemento do quarto.
Tendo conhecido mulheres contrariadas mais do que suficientes ao
longo de sua vida, começando com sua mãe e irmãs, Titus decidiu deixar
tudo em paz e não perguntou o que estava errado. — Minha equipe está
honrada com sua presença e deseja recebê-la.
As feições se suavizaram, ela inclinou a cabeça. — Estou
profundamente grata por seus cuidados.
— Certamente passarei isso adiante. — Titus não era homem de
roubar elogios que não lhe cabiam. — Fiz questão de lembrá-los de
montar um estúdio de arte para você — disse com orgulho justificável, e
apontou para cima. — Encontrará escadas logo além da meia parede à
direita – no final da escalada há uma sala cheia de luz com um cavalete e
material de arte. — Ele não fazia ideia de onde seu pessoal obteve essas
coisas também.
Quando a Colibri não disse nada em resposta ao seu gesto
magnânimo, decidiu se despedir. Podia ser que esse fosse um daqueles
momentos em que ela existia fora do tempo. Apesar... para um ser etéreo,
sua mandíbula parecia estranhamente rígida e ele podia jurar que seus
ombros estavam contraídos.
Não, deveria estar imaginando; a Colibri estava além dessas coisas.
Além da raiva, além das queixas mesquinhas. A Colibri era um ser
especial e gentil, um ser que precisava de cuidados e devia ser tratado
como se fosse um pássaro frágil e quebrado.

CAPÍTULO 10

Sharine olhou para as costas de Titus enquanto ele saía do quarto,


fechando a porta atrás de si. Foi bom ele ter ido embora, porque de outra
forma ela poderia ter cedido ao desejo de pegar o pequeno vaso na mesa
ao lado dela e jogá-lo na cabeça dele. E o que exatamente isso teria
alcançado? Nada.
Titus – um guerreiro cansado da batalha constante – não fez nada
além de ser gentil e tratá-la como ele sem dúvida acreditava que ela
esperava ser tratada. Como uma artista frágil que precisava de beleza e
suavidade ao seu redor e que não podia enfrentar a dura realidade.
Bem, não foi isso que você foi durante séculos?
Foi um tapa forte e pungente de uma parte dela que despertou
quando ela acordou, uma parte que era brutalmente honesta e não tinha
tempo para autopiedade ou raiva mal direcionada.
Sharine estremeceu.
Como podia esperar que Titus a tratasse como qualquer coisa,
exceto uma borboleta delicada e quebrável quando isso era tudo que ela
mostrou ao mundo?
Ela e o Arcanjo da África não se conheceram quando ela ainda era
ela mesma – e mesmo então, estava um pouco fora do tempo, um pássaro
ferido que nunca encontrou suas asas. Esta Sharine, esta que era agora,
uma mulher madura moldada pela perda, mágoa, dor, raiva e um amor
feroz por seu filho, era alguém que a própria Sharine ainda estava
começando a conhecer. Não podia esperar que Titus adivinhasse seu
novo estado de ser.
Ainda assim, fez uma careta para o sofá de veludo curvilíneo, os
buquês de flores exuberantes e – quando abriu o guarda-roupa – os
vestidos esvoaçantes e soberbamente pouco práticos. Não apenas um
membro de sua equipe sobrecarregada perdeu tempo em reunir tudo
isso, estava claro que ninguém – desde o arcanjo até seu membro mais
jovem da equipe – esperava que ela sujasse as mãos.
O povo de Titus estava pronto para assumir outro fardo num
momento que precisava de toda ajuda que pudesse obter. Fazendo um
som baixo em sua garganta que a assustou com sua natureza selvagem,
chutou a porta do guarda-roupa e ficou satisfeita com o som alto. Então
tirou sua mochila e removeu as peças de roupa de dentro dela.
Felizmente, parou perto de um riacho na noite anterior. Ela
precisava de um tempo sozinha e, por isso, ficou longe de qualquer
assentamento, mas não foi tola. Escolheu uma área com uma paisagem
aberta onde nada nem ninguém poderia se esgueirar sobre ela. Enquanto
estava lá, não dormiu, porque havia dormido na noite anterior e um anjo
de sua idade não precisava de tanto sono quanto os jovens. Em vez disso,
simplesmente descansou suas asas e fez algumas pequenas tarefas.
Incluindo lavar seu segundo conjunto de roupas.
Isso a lembrou de quando deixou sua casa familiar. A maioria dos
jovens era expulso do ninho aos cem anos de idade. Em termos mortais,
os anjos tinham cerca de dezoito anos em maturidade e crescimento,
prontos para começar o treinamento, mais estudos ou para explorar.
Os pais de Sharine pediram que ela abrisse as asas quando tivesse
oitenta anos de idade. — Estamos velhos, criança — disseram a ela. —
Queremos ter certeza de que você está estabelecida no mundo antes de
nos rendermos ao Sono que sussurra para nós todas as noites.
Naquela época, Sharine teve medo – e também vergonha de sua
necessidade deles ficarem acordados. Hoje, sentia uma explosão quente
de raiva. Estava mais velha do que eles e nunca, nem em um milhão de
anos, entraria no sono enquanto seu filho estivesse numa idade que
precisasse dela.
Não foi isso que você fez quando entrou no caleidoscópio?
Estremecendo com as palavras cortantes da mesma parte de sua
psique que lhe dera o tapa anterior, encolheu os ombros para afastar a
onda de vergonha que a ameaçava. Tudo que isso faria seria aleijá-la,
torná-la inútil. Não, o tempo da vergonha passou; precisava caminhar
para o futuro – e fazer com que as pessoas a vissem. Vissem Sharine, e
não a Colibri.
Após tirar a roupa suja, entrou na câmara de banho. Era tão
exuberante quanto tudo o mais na suíte, completa com sabonetes
perfumados, toalhas felpudas e outras extravagâncias. Ela ouviu falar que
Titus gostava de arte e coisas bonitas e suaves – mulheres inclusive. Pela
aparência dele agora, no entanto, não se importava com nada disso.
Parecia exatamente o que era – um guerreiro que tinha pouco tempo
para enfeites enquanto seu território era invadido por perversos
renascidos.
Com os dentes cerrados, tomou banho rapidamente e então ficou
irritada consigo mesma por pegar automaticamente o frasco de loção
depois. Mas esse era um hábito muito arraigado para evitar e uma vez
que seu povo fez o esforço de cuidar dela com tanto cuidado, lambuzou o
corpo com o creme sedoso perfumado suavemente com uma flor que ela
não conseguia nomear, antes de ir para o quarto e vestir sua túnica cinza-
azulada e calça marrom-escura.
Depois de lavar o cabelo na noite anterior, simplesmente escovou-o
e puxou-o atrás num rabo apertado. Mais uma vez, quando se olhou no
espelho, viu uma jovem de rosto renovado olhando para ela. Apenas seus
olhos a denunciavam. Eram velhos, falando sobre a vida que viveu... e não
viveu.
Com força, se virou, a sua mão indo para seu pulso direito, onde
usava uma pulseira que Illium enviou para ela de Nova York. Era feita de
platina, cada um dos elos finos, mas fortes; o coração pendurado numa
extremidade não trazia o nome dela, mas o dele. Isso a fez rir, porque é
claro que seu menino travesso faria isso. Ela usava o presente com
orgulho, o nome de seu filho, o amor de seu filho.
Ela deliberadamente não subiu para a sala de arte. Era um ato de
força de vontade da parte dela. Talvez Titus tenha feito um favor a ela
afinal – colocou a droga de sua escolha ao alcance e agora ela teria que
resistir à tentação cada vez que estivesse nesta suíte, construindo assim
sua força de vontade.
Ela falou com Keir, um curandeiro angelical, não muito antes de
chegar a Lumia, bem quando começou a encontrar o caminho para sair
do caleidoscópio. Foi Caliane quem a incentivou a fazer isso. — Se eu
fosse gravemente ferida em batalha— disse sua amiga —, procuraria um
curandeiro e não me incomodaria em fazer isso. Uma ferida da mente
não é diferente.
Keir arranjou tempo para passar quase uma semana inteira com
ela. Por alguma razão, ela se viu contando tudo isso ao curandeiro esguio
e de olhos calmos, cavando bem fundo no que Caliane denominou sua
ferida.
— As ações de Aegaeon impactaram em traumas brutais do
passado — disse Keir com seu jeito gentil, este homem que era um dos
poucos na espécie de anjo não muito mais alto do que sua própria altura
diminuta. — Cada evento em nossa vida deixa uma marca – no seu caso,
dois eventos críticos deixaram profundas fraturas na mesma parte de
sua psique. Essas fraturas se agravaram quando Aegaeon decidiu tomar
uma atitude que eu, como homem, como curador, como amante, não
posso compreender.
Keir não exibia emoções intensas – pelo menos para seus pacientes.
Ele tendia a ser um refúgio de calma. Mas seus olhos castanhos tinham
uma riqueza de escuridão quando disse: — Você se retirou para o que
conhecia melhor para se curar. Não pode se culpar por essa ação
instintiva.
Sharine aceitou que Aegaeon agiu com vingança injustificada. Até
hoje, não sabia o porquê – tão vulnerável quanto era então, ao encanto de
um tipo que nunca experimentou em sua existência principalmente
solitária e tranquila. Aegaeon a dominou; ela queria desesperadamente
se agarrar a ele – ela e os fantasmas que a assombravam – mas na
verdade, ela não o fez.
Ele manteve seu harém, manteve sua vida longe dela e de Illium no
Refúgio.
Sharine não tentou cortar suas asas, não tentou alterar o âmago de
sua natureza, contente com as migalhas de afeto que ele jogou em seu
caminho.
Quão tola ela foi, quão faminta por conexão.
Mas tudo isso chegava a uma única conclusão: ele não tinha
nenhuma razão para atacar. Não apenas ela, mas seu filho. O filho deles.
Esqueça o que ele fez com ela, não teria custado nada a ele ir até Illium e
o abraçar num adeus. Levaria apenas uma fração de seu tempo para
dizer ao filho que seu pai iria dormir por um período, mas que o amava e
voltaria.
Essas coisas importavam para uma criança, importavam
profundamente.
Por quebrar o pequeno e brilhante coração de menino lindo deles,
Sharine nunca o perdoaria. Nunca. Mesmo que vivesse até o fim dos
tempos e além.
Ninguém machucava seu filho.
Com a mão fechada ao lado do corpo, as unhas cravadas na pele,
abriu a porta da suíte e saiu para o corredor. Esse corredor era largo e
caía num grande núcleo central. Caminhando até a borda sem corrimão,
olhou abaixo e percebeu que estava cerca de três andares numa enorme
cidadela construída de pedra cinza que era tanto marcial quanto dura – e
adorável.
Finos veios de minerais entrelaçavam-se nos tijolos de pedra e cada
pedaço de pedra tinha gradações de cor que chamaram sua atenção e a
fizeram passar a mão no pilar de suporte mais próximo. Estava mais
quente do que esperava, a pedra lisa por todo o tempo que esteve aqui,
todos os guerreiros e outros que colocaram suas mãos contra ela.
Poderia ser um lugar frio, mas a pedra tinha um coração brilhante,
e contra as paredes do núcleo central pendiam tapeçarias exuberantes
com a vida desta terra. Enormes obras de arte que podia ver por horas,
levando em conta detalhe por detalhe. Mas isso era apenas o começo.
Acima dela curvava-se um teto suavemente inclinado no qual foi pintado
um céu noturno cintilando com as estrelas que ela veria se olhasse para
cima após o anoitecer.
Cada estrela, ela percebeu de repente, era uma deslumbrante pedra
preciosa tornada minúscula pela distância.
Abaixo dela, entretanto, havia um zumbido de movimento
constante.
O povo de Titus andava de um lado para o outro e cruzava o que
parecia ser um tapete enorme nas cores do pôr do sol que poderia ter
vindo do Marrocos. Talvez durante um período anterior à tensão bélica
entre Titus e Charisemnon. A maioria dos que viu usava roupas de
guerreiro desgastadas e ensanguentadas, incluindo mais de um anjo em
armadura completa e leve que não os impediria no céu.
Mas também avistou um anjo e dois vampiros que pareciam estar
com libré de equipe doméstica, as cores ouro rico e marrom mais escuro.
As cores de Titus. Estavam correndo, seus rostos quentes e o suor
umedecendo seus cabelos.
Sharine teve a terrível sensação de que era por causa dela.
— Você está pronta! — A forte explosão de som não a assustou;
ouviu a porta de Titus abrir e fechar.
Irritada pelo tom dele e sem vontade de esconder, ela disse: —
Você parece surpreso.
Ele parecia surpreso, todo ombros largos e músculos grossos sob
uma calça marrom que abraçava suas coxas, e uma camisa branca com
um colarinho arredondado e uma abertura que ia até o esterno, a
tatuagem dourada que ela viu antes agora escondida.
Ele dobrou as mangas da camisa para revelar antebraços
fortemente musculosos, sua pele de um marrom escuro com uma riqueza
de profundidade. Asas de mel dourado e creme arqueadas sobre seus
ombros, seu controle uma classe mestre em disciplina de guerreiro.
Gotículas de água brilhavam em seus cachos pretos bem cortados.
Ele era um homem lindo. Mas Sharine não tinha tempo para
homens bonitos. Um deles arruinou sua vida. Sim, ela tinha um belo
homem como filho e um homem igualmente belo como protegido, mas
isso não vinha ao caso. Aodhan e Illium – e sim, Raphael, também –
ocupavam uma esfera diferente em sua mente. Os viu como bebês, beijou
seus joelhos esfolados, sorriu sob seu afeto exuberante.
Qualquer outro homem bonito no mundo poderia pular no coração
derretido de um vulcão e não se importaria. Isso se aplicava
especialmente ao belo arcanjo que pensava que Sharine era um
ornamento, quebrável e inútil na batalha desesperada de seu território
pela sobrevivência.
— Sei que as damas da minha corte costumam demorar — arriscou
Titus por fim, sua voz moderada para um volume mais baixo que a
irritava – a achava tão fraca que não conseguia suportar sua voz?
Foi então que suas palavras penetraram: ...as damas da minha
corte...
Ela não ouviu falar que ele mantinha um harém, mas não seria
surpresa ela estar errada. — Onde estão suas garotas?
— Em uma ilha segura. — Ele suspirou. — Toda a corte gentil
implora para voltar para casa, mas não é seguro – e aqueles da corte
gentil não ficariam felizes aqui.
Irritada com a ideia das mulheres serem banidas como se fossem
crianças, ela disse: — Ouvi dizer que as mulheres do harém de Astaad
estão ajudando seu povo depois da guerra. A sua corte gentil não pode
ajudar da mesma forma?
Jogando a cabeça atrás, Titus riu, o som ecoando pelo espaço, tão
grande e alegre. Ela se viu paralisada por ele por um longo momento.
Balançando a cabeça com força no instante que percebeu o que estava
fazendo, ela olhou mais uma vez para o andar de baixo. As pessoas
estavam sorrindo agora, suas bochechas enrugadas e seus passos mais
leves.
Como se seu calor e felicidade fossem contagiosos.
— A corte gentil não é feita apenas de mulheres – e ninguém,
exceto uma dentro dela, é guerreiro ou administrador — disse Titus
quando finalmente parou de rir, então arruinou o bem que havia
conquistado ao acrescentar: — Elia é uma mulher de brilho, mas seu
dever é para com as crianças da corte. O resto de seus irmãos são
criaturas mimadas que desmaiam ao ver sangue – e morrem com uma
bainha rasgada.
Sharine mal se impediu de revirar os olhos. — Oh — disse ela
suavemente.
Suas sobrancelhas se juntaram, o ônix de seus olhos ficando ainda
mais escuro. — Oh? — Saiu um grunhido profundo, suas asas abrindo e
fechando.
Ela sorriu, um calor em seu sangue que a forçou a empurrá-lo. —
Onde vamos comer? Estou com fome depois da minha longa jornada.
As asas de Titus... estremeceram. Essa era a única palavra que podia
usar para descrever o movimento minúsculo que ondulou através de
suas asas firmemente seguradas. — Claro, Lady Sharine — disse ele num
tom abertamente formal, sua voz modulada num tom mais baixo.
Olhos estreitados, Sharine, no entanto, manteve o silêncio quando
ele saiu da borda do corredor, usando suas asas para iniciar uma descida
controlada ao nível do solo. Quando ela o seguiu, se viu alvo de muitos
sorrisos e reverências, fez o possível para devolver todos.
Nenhuma dessas pessoas tinha que sofrer seu mau humor
simplesmente porque seu arcanjo era um... o que um dos jovens em sua
corte murmurou recentemente? Ah sim, um idiota. Sharine não sabia a
definição dessa palavra, mas se significava o que parecia, então era a
escolha perfeita de palavra para descrever seu anfitrião.
— Se você me acompanhar. — O cheiro de Titus era limpo e fresco
ao lado dela enquanto a conduzia por um grande e ornamentado
corredor decorado com artefatos e armas antigas, e para uma espaçosa
sala inundada pelo sol da manhã como resultado das enormes portas
atualmente abertas para o ar exterior.
— Vou fechar se você quiser — disse Titus naquele mesmo tom –
áspero – formal. — Acho que gosto dos sons do pátio, mas eles podem
ser opressores para alguém acostumado a climas mais calmos.
Ela teve vontade de dizer a ele que tinha uma faca. Foi um presente
da Elena de Raphael, que ela encontrou em sua mesa de cabeceira depois
que Elena deixou Lumia antes da guerra. Com ela havia uma nota: Ficaria
honrada se aceitasse este presente como uma memória da diversão que
tivemos esfaqueando aqueles alvos. Além disso, deve manter a prática de
esfaqueamento – você tem um raro equilíbrio natural ao lançar a lâmina.
Sharine ficou encantada com o presente e a missiva – e manteve a
prática. Até Tanicia comentou sobre sua precisão. Não era uma guerreira,
mas era precisa o suficiente para ensinar a certo arcanjo uma lição sobre
assumir qualquer coisa quando se tratava de Sharine. — Isso é bom —
disse ela, deixando a faca amarrada à coxa, onde descobriu que gostava
de usá-la.
Caminhando para as portas centrais, saiu para a borda do pátio
central e para o calor da manhã. Estava frio dentro da cidadela,
provavelmente por causa da pedra com a qual foi construída, pesada e
sólida. Do lado de fora, as cores eram tons de ouro-sol e marrom ativo,
junto com um toque de verde exuberante dos produtos frescos num
grande carrinho.
Um pequeno veículo especializado operado por uma jovem
transportava a carroça carregada para o que Sharine presumiu serem as
cozinhas. Ela também viu esses veículos em Nova York, tirando paletes
de caminhões, mas não conseguia se lembrar de seus nomes agora.
A maior parte do pátio era um espaço aberto, para ser usado pelos
guerreiros de Titus e outros funcionários, e provavelmente como o local
central para as festas lendárias que Tanicia mencionou que Titus era
conhecido por organizar em tempos melhores. Mas um canto abrigava os
estábulos e também havia várias árvores plantadas à esquerda, criando
um refúgio sombrio onde pessoas cansadas se sentavam para descansar
e gatos esguios andavam atrás de animais de estimação.
O movimento era constante, guerreiros angelicais pousando ou
decolando enquanto vampiros – e possivelmente mortais – guerreiros
entravam e saíam em veículos robustos, como os usados por alguns de
seu próprio povo. Todos e cada um dos lutadores saíam para o campo
eriçados com armas, desde espadas a dispositivos modernos não
identificáveis.
A última vez que esteve num lugar tão ativo, foi na Torre de
Raphael.
Consciente do corpo musculoso de Titus ao seu lado, ia perguntar a
ele sobre o progresso da erradicação dos renascidos, quando um anjo
feminino com cabelo ruivo escuro e asas de dois tons – cinza escuro no
topo e branco embaixo – pousou à direita de Titus. — Senhor — disse ela
com uma reverência. — Lady Colibri.
— Esta é minha treinadora de tropas, Tanae — disse Titus, mas sua
atenção estava obviamente na guerreira. — O que aconteceu?
— Recebi um relatório de um ninho que podemos ter perdido
dentro do perímetro e fui verificar – as criaturas estavam se escondendo
numa adega abandonada.
Titus soltou um suspiro. — Quantos?
— Dez. Levei um esquadrão comigo e pudemos limpar o porão.
Mas, senhor, as criaturas pareciam ter enviado um de sua espécie como
isca. Acredito que queriam que o avistássemos, sua intenção era lançar
uma emboscada mortal.

CAPÍTULO 11

— Não sabia que os renascidos eram tão inteligentes — disse


Sharine, chocada pela ideia que os seres comedores de carne eram
capazes de pensar e planejar em tão alto grau.
— Apenas na África — grunhiu Titus. — Lijuan e Charisemnon
estavam em processo de criação de uma nova linhagem mais cruel. Uma
inteligência feral é parte disso – e parece que alguns grupos de
renascidos podem possuir mais do que outros.
Suas próximas palavras foram dirigidas à sua treinadora de tropa.
— Preciso ir lá fora e caçar pelo panorama? — perguntou Titus à mulher
cujas feições pareceram estranhamente familiares a Sharine.
Sharine a pintou? Não conseguia lembrar. Mas a chama do cabelo, a
forma dos olhos, as asas de duas cores, ela já viu isso antes. Estava na
ponta da língua.
— Não, o lodo estava contido no porão, então usamos fogo para
destruí-lo.
— Então, aproveite para descansar. — Titus deu um tapa no ombro
da mulher. — Acabei de receber um relatório de Ozias de que ela está
vendo mais movimento diurno dos renascidos. Em breve estaremos
lutando a cada hora do dia.
Uma reverência de cabeça antes de Tanae decolar... e foi então, no
lampejo de asas cinzentas e brancas, que Sharine encontrou sua
resposta. — Galen — murmurou ela, seus olhos se enchendo com a
imagem de um guerreiro angelical com cabelo ruivo cortado bem curto e
olhos verdes peridoto, suas asas cinza com estrias brancas visíveis
apenas em voo.
— Filho de Tanae e do meu segundo Tzadiq — disse Titus a ela. —
Galen era um comandante em minhas forças antes que aquele filhote do
Raphael o roubasse. — Sem humor nessas palavras, mas sua expressão
sombria não tinha nada a ver com a deserção de Galen.
— É isso que estamos enfrentando — disse ele quase para si
mesmo. — Uma onda interminável de infecção, mutação e morte.
Charisemnon e Lijuan lançaram algo monstruoso em nosso mundo.
Naquele momento, ele era Titus, Arcanjo da África e membro do
Cadre, a responsabilidade um peso em seus ombros largos. — Se as
criaturas estão se tornando mais inteligentes...
Um forte aceno de cabeça. — Acha que poderíamos nos comunicar
com eles? — Linhas profundas delimitando sua boca, ele disse: — Nós
tentamos. Não tenho nenhum desejo de exterminar as pessoas se elas
simplesmente têm o azar de estar infectadas com uma doença. — Seus
músculos se contraíram sob a pele quando cruzou os braços. — Mas a
inteligência do renascido não é nem mesmo a de um leopardo caçador. O
leopardo está à espera da presa, atacando e pegando sua refeição.
Como se soubesse que seus irmãos felinos maiores estavam em
discussão, um gato com uma pelagem amarelo-laranja escuro e manchas
pretas, suas orelhas pontudas, se aproximou para esfregar a cabeça na
bota de Titus. Abaixando-se, as calças esticando-se sobre as coxas, ele
coçou o gato atrás das orelhas.
— Mas o leopardo caça para comer — continuou —, e para
proteger seu território. Os renascidos? Seu único propósito é espalhar a
morte – em nenhum mundo os renascidos podem existir com qualquer
outra espécie; as criaturas maltratam e matam qualquer ser vivo que
cruze seu caminho, incluindo animais. — Ele olhou para cima, seus olhos
ônix mantendo-a prisioneira. — Os renascidos são preenchidos com o
desejo assassino de sua criadora original.
Lijuan, Arcanjo dos Mortos... e uma mulher que procurou subjugar
o mundo inteiro.
Levantando-se num movimento fluido, Titus disse: — Vamos comer
para que eu possa voltar às minhas tarefas. — Sua voz era de um arcanjo
dando uma ordem.
Sharine simpatizou com ele até então, mas agora seus dedos se
contraíram mais uma vez para sua lâmina. Certamente começou a
entender por que as paredes internas da Torre de Nova York tinham
buracos que só poderiam ser explicados por facas batendo nelas. Devia
ser muito gratificante para Elena jogar tais lâminas na cabeça de Raphael
quando ele agia como um idiota.
Mas Raphael nunca ousaria falar com Elena tão preventivamente –
ele a respeitava como uma companheira guerreira. Enquanto isso, Titus
considerava Sharine um pássaro quebrado que deveria cuidar. — Não
gostaria de reter você — disse ela com uma voz que pingava mel. — Por
favor, pegue o que precisa e fique à vontade para voar.
O olhar que ele deu a ela foi uma carranca misturada com pura
confusão. Uma expressão extraordinária para testemunhar na beleza
áspera de seu rosto, mas que rapidamente deu lugar a um sorriso
calmante. — Deve estar cansada da viagem. — Palavras suaves, o volume
natural de sua voz irritantemente modulado. — Venha, um pouco de
comida será exatamente o que você precisa.
Ele a estava tratando como um cavalo rebelde. Ela o acalmaria em
um minuto.
Com a coluna tensa, ela rejeitou sua oferta de ajuda e se sentou à
mesa, suas asas caindo graciosamente para cada lado do encosto da
cadeira especialmente projetada. A mesa à frente deles estava posta com
pratos suntuosos – uma refeição complicada demais para uma cidadela
que estava lutando uma batalha mortal – e simplesmente acendeu um
fogo sob seu temperamento já fervendo.
Então Titus falou. — Temo que meu cozinheiro tenha ficado tão
animado com a perspectiva de uma refeição formal depois de semanas
simplesmente alimentando a todos o mais rápido possível que parece
que deixou isso subir à cabeça. — Uma risada alta e quente fluindo sobre
ela como água. — Ah, bem, vamos comer fartamente esta manhã, assim
como qualquer outra pessoa na cidadela que conseguir pegar um prato
cheio deste banquete.
Com o temperamento morrendo pelo calor do comentário, Sharine
estendeu o prato quando ele ergueu uma colher como se fosse servi-la de
um prato. Ele colocou uma porção enorme no prato dela. — Não sou um
elefante — murmurou ela, e de repente estava agudamente ciente de sua
irritação óbvia – realmente não era típico ser tão indelicada, mas algo em
Titus a incomodava.
— Bem. — Ele pegou seu prato. — Vamos trocar de prato. Eu teria
funcionários aqui, pois estão ansiosos para atendê-la, mas achei que
deveríamos conversar em particular esta manhã. Posso remediar isso
com um único grito.
Olhando para ele, ela pegou seu prato enquanto entregava o dela.
Então se levantou e levantou a tampa de um prato de vegetais. — Como
nenhum de nós perdeu os dois braços, acho que somos capazes de servir
a nós mesmos e um ao outro. — Ela colocou uma porção no prato dele,
assim como no dela. — Illium me disse que você foi ferido na batalha
contra Charisemnon. Você se curou?
— Claro que sim — resmungou ele, mas permitiu que ela colocasse
mais comida em seu prato. — Sou um arcanjo.
O prato de Sharine estava mais do que cheio, mas como Titus tinha
o dobro do seu tamanho e gastava uma enorme quantidade de energia
diariamente, o serviu mais antes de se sentar. Começaram a comer em
silêncio, embora estivesse ciente de Titus lançando olhares desconfiados
para ela.
Isso a agradou.
Ninguém desconfiava da Colibri. Era feita para ser leve, gentil, doce
e sem nenhuma ameaça. Tudo isso fazia parte de sua natureza, era
verdade. Mas Sharine também fazia parte da Colibri e, há muito tempo,
Sharine era muito mais do que uma artista com a cabeça nas nuvens.
Foi há muito tempo, eras antes de Titus existir, mesmo como um
cisco no universo, mas as memórias começaram a despertar com seu
retorno ao mundo real. Ela se lembrou de coisas que outros esqueceram
ou nunca souberam... exceto Caliane.
— Se lembra de Akhia-Solay? — perguntou Caliane a ela numa de
suas conversas finais antes de sua amiga partir para lutar contra Lijuan.
— Me pergunto se ele acordará nessa Cascata.
Sharine não tinha nenhuma memória pessoal do Antigo
Adormecido então, o véu ainda estava se apagando, mas veio a ela
enquanto voava pela paisagem africana, o longo voo cutucando
memórias soltas de outros voos.
Uma vez, depois de Raan e muito, muito antes de Aegaeon – tanto
tempo que Akhia-Solay era um mito até mesmo para a maioria dos anjos
– Sharine voou com um general como historiadora de batalha de seu
exército, a artista que fez esboços frenéticos para adicionar às histórias
dos anjos. Ela também – ela olhou para sua mão, presa nos fragmentos de
memória. Em algum momento, ela enfrentou um combatente inimigo... e
ela...
— Não está satisfeita com a refeição? — A grande voz de Titus a
trouxe de volta ao presente, o passado desaparecendo onde pertencia,
exceto pelos ecos de conhecimento que deixou atrás.
— O quê? — Olhando para seu prato, viu que havia parado de
comer. — Não, não mesmo. É tudo delicioso. Devo cumprimentar seu
chef.
— Cozinheiro — corrigiu Titus. — Ele insiste que vai parar
imediatamente se alguém se atrever a chamá-lo de chef.
— Vou tomar cuidado para não irritá-lo. — Ela prestou atenção ao
que estava comendo, saboreando os sabores, texturas e aromas. Comida
era outra coisa que ela permitiu que desaparecesse de sua vida em seu
tempo no nevoeiro. Ela comeu, mas não provou nada, sua mente se
distanciando.
Só depois de limpar o prato, olhou para Titus novamente. Ele
estava sorrindo para ela. Esse sorriso era... devastador. Não admira que
muitos de seus guerreiros suspirassem ao falar sobre ele. Embora ele
parecesse ter apenas mulheres como amantes, isso não impedia que
todos ansiassem por ele. Na verdade, a adulação de certa forma explicava
sua alta opinião sobre si mesmo.
— Aqui. — Ele estendeu um prato que ela gostou particularmente.
Ela não percebeu que ele estava prestando muita atenção. —
Obrigada — disse ela, um toque de calor sob sua pele. — Estou cheia por
enquanto.
Largando o prato, Titus recostou-se na cadeira e passou as mãos na
cabeça. Ele parecia prestes a dizer algo, quando um guerreiro com asas
cobertas de poeira que poderiam ter sido brancas quando limpas caiu do
lado de fora das portas e gritou: — Senhor! Maciço ninho de renascidos
avistado logo além das novas barreiras! Estão acordados e subindo!
Titus se moveu tão rápido que ela teria pensado que seria
impossível para um homem tão grande se não visse isso acontecer. Ele
estava do lado de fora e decolando antes mesmo que ela tivesse se
levantado da cadeira. Com o coração trovejando, correu atrás dele para
ver vários esquadrões decolarem, todos indo para o sul. Veículos pesados
pintados em cores de camuflagem saíram do pátio ao mesmo tempo.
Quando um jovem e esguio guerreiro caiu ao seu lado, sua pele de
ébano, seus olhos de um castanho claro, seu cabelo enrolado em gomos
decorados com contas de madeira, e suas asas uma extensão de preto
polvilhado com verde, ela disse: — Você não vai com os esquadrões?
— Serei seu guia aqui, minha senhora Colibri — disse ele com uma
reverência profunda e, embora tentasse esconder sua tristeza, era muito
jovem – pouco mais de cem, se pudesse julgar – para ter sucesso. — Sou
Obren, o mais novo membro das forças do senhor.
E então ele recebeu a tarefa nada invejável de ser babá de Sharine.
— Me chame de Lady Sharine — disse ela antes de tudo; preferia apenas
Sharine, mas sabia que a criança morreria no local se ela o sugerisse.
Ele já parecia um pouco verde por ter que dizer seu nome
verdadeiro. — Lady Sharine — resmungou ele finalmente.
— Existe algum perigo se eu voar atrás dos esquadrões? — Ela não
queria ser uma distração, mas embora estivesse cansada, não estava tão
cansada a ponto de não poder passar algum tempo no ar para ver em
primeira mão o que estava acontecendo. Não havia voado todo esse
caminho para sentar e não fazer nada, e a primeira coisa que precisava
era informação.
Só então poderia saber o que podia fazer para ajudar.
A cabeça do menino se ergueu, sua boca se abriu antes que a
fechasse. — Minha senhora, o senhor foi muito firme em sua ordem para
que permanecesse dentro dos limites da cidadela.
Decidindo que realmente chutaria Titus na primeira oportunidade,
Sharine sorriu... e ficou bastante satisfeita ao ver Obren piscar. Parecia
que o aço crescendo dentro dela apareceu em seu rosto. — Titus não é
meu senhor — apontou com gentileza consciente, pois não era culpa do
jovem que seu arcanjo fosse um estúpido. — Você pode vir comigo ou
ficarei feliz em ir sozinha. — Ambos sabiam que ele nunca tentaria detê-
la fisicamente.
Engolindo em seco, ele se mexeu. — Se... se ficar no ar a uma altura
além do alcance dos renascidos, então não posso ver o risco. — Outra
engolida. — As criaturas dilaceraram os anjos quando esses anjos são
feridos e caíam num ninho. A nova variante funciona em matilhas e
enxame tão rápidos que se um anjo está sozinho quando cai...
Sharine tocou o ombro do menino, dominada pelo afeto maternal.
— Vou tomar cuidado. Não tenho nenhum desejo de distrair os lutadores
ou sofrer tal tortura em mãos renascidas.
Com o rosto contraído, mas sabendo claramente que não tinha
escolha, o menino disse: — Vou levá-la ao local certo.
— Direi a Titus que esta foi minha decisão — assegurou Sharine.
Um olhar taciturno. — Oh, o arcanjo não vai me culpar. Ele acha que
ainda sou um bebê, ainda vacilante nas pernas.
Escondendo o sorriso, ela disse: — Vamos voar.
Decolaram juntos e Sharine viu imediatamente que ela não
precisava de um guia. A poeira voou para o ar a alguma distância além
dos limites da cidade enquanto as forças de Titus enfrentavam os
renascidos. Enquanto voava mais perto, também entendeu por que havia
tanta poeira – grandes extensões de grama, árvores e outras plantas
eram destruídas pelo fogo angelical.
Hoje, os lutadores alados estavam em sua maioria ficando acima,
atirando nos renascidos usando o inato poder angelical – ou armas que
lançavam fogo. Ah, essas eram as mesmas armas que ela viu nas cidades
em seu caminho para cá. Os lutadores vampíricos ainda não chegaram ao
local, mas avistou vários pares de asas angelicais no chão.
Incluindo o ouro-mel e creme de Titus.
Com o coração disparado, não entendeu por que ele pousou em
perigo até que o viu lançar um raio de energia num buraco de uma
pequena encosta – uma saliência nua na paisagem. O poder explodiu na
encosta, jogando fora pedaços de carne renascida de revirar o estômago
ao longo do caminho. Foi quando percebeu que o uso da palavra ninho
era deliberado e específico. Essas criaturas estavam se aglomerando sob
a terra.
— Túneis! — gritou Obren, apontando para uma onda de poder
viajando ao longo do caminho que Sharine voou. Como se fosse uma toca.
Rugindo, Titus ergueu as mãos em punhos.
O solo resistiu e depois rachou, expondo uma grande depressão
recheada de renascidos. Alguns estavam mortos, mas muitos ainda
estavam vivos, seus olhos vermelhos e suas garras se fechando enquanto
lutavam para escapar.
O sangue esfriando, Sharine se virou para Obren. — Quão longe
esses túneis vão?
A voz de seu jovem guia estava trêmula quando disse: — Isso, nós
não vimos antes, Lady Sharine. Eles fazem ninhos, mas nunca antes
criaram tocas. Isso pode passar por baixo das barreiras que construímos
para proteger as zonas desmatadas, todo o caminho de volta para a
cidade.
Compreendendo seu terror, Sharine pensou rapidamente. — Titus
e os esquadrões estão ocupados lidando com os renascidos aqui. — Este
ninho parecia ser enorme. — Vamos voltarà cidade e ver se podemos
detectar um possível perigo. Também podemos alertar as equipes
vampíricas, bem como os guardas deixados nas barreiras.
Obren se juntou a ela, um jovem soldado acostumado a receber
ordens de um veterano.
Sharine não era uma batedora, mas tinha o olhar de um artista e
esse olho capturou a barreira levemente desalinhada a nordeste. Voando
lá em asas pesadas, encontrou uma guerreira angelical perplexa no céu.
— Minha senhora — começou a outra mulher —, há alguma coisa que
eu...
— Os renascidos estão cavando sob a terra. — Sharine apontou
para baixo. — E esta barreira não está mais nivelada com o solo.
A guerreira, para seu crédito, entrou em alerta imediato. — Terei
que solicitar assistência e mover a linha de guarda de volta até que ela
chegue. — Linhas brilhando em seus olhos, seus lábios pressionados com
força. — Não temos ninguém na fronteira que possa perfurar a terra com
seu poder e não acho que as armas em mãos farão isso.
Você se lembra de Akhia-Solay?
A memória sussurrou, os dedos de Sharine se curvando para
dentro. O poder, envelhecido, potente e rígido pelo desuso, aqueceu-se
em suas veias. Sua palma brilhava como champanhe.
— Diga às suas tropas terrestres para se afastarem da barreira.
Com a boca aberta, a anjo guerreira olhou para a mão de Sharine –
então rapidamente entrou em ação, gritando para seu povo evacuar a
zona de perigo. Sharine esperou até que eles estivessem longe o
suficiente, então liberou o poder.
O buraco resultante era apenas uma fração do tamanho do de Titus,
mas era o suficiente para revelar o túnel abaixo. O guarda da fronteira e
seu povo atiraram nos renascidos lá dentro, todos disparando as armas
que lançavam chamas.
Sharine, entretanto, olhou para a mão dela.
Obren fazia o mesmo. — Não sabia que você podia fazer isso. —
Saiu um sussurro. — Disseram-me que a Colibri era uma artista.
— Eu havia esquecido — murmurou ela, sua mente usando as
meadas de memória desvendadas para viajar de volta à gênese de
Sharine.

CAPÍTULO 12
Eras Passadas

— Papa! Papa! Olha o que eu sei fazer. — A luz disparou dos


pequenos dedos de Sharine para quebrar uma das pedras que cobriam a
encosta da montanha coberta de flores silvestres. — Veja!
As sobrancelhas negras se uniram sobre os olhos, seu pai se
agachou para tocar a pedra. Ele recuou o dedo com um silvo, a ponta
vermelha. Com o rosto abatido, Sharine pressionou os lábios suavemente
nele. — Eu o beijo para melhorar — disse ela, tendo aprendido isso com
a mãe de sua amiga que morava na montanha próxima.
Seu pai não sorriu, apenas pegou as mãos dela e olhou para as
palmas dela. Mas não havia nada lá agora, nenhum indício do lindo fogo.
— Está dentro de mim — disse a ele, saltando em seus pés. — Todo
efervescente e quente.
Seu pai não era como o pai de sua amiga, que ria e a levava para
passear nas costas. O pai de Sharine era velho de um jeito que fazia seus
ossos doer. Ela era muito jovem para saber como colocar isso em
palavras, mas sentia o peso da idade dele como uma nuvem negra
pairando no horizonte. Sabia que ele a amava – sentia isso também – mas
não era do mesmo modo que outros pais amavam seus filhos.
— Precisamos voar para casa, para sua mãe — disse ele em sua voz
profunda, seus olhos da mesma sombra de sol que os dela, mas com
listras castanhas.
Sharine queria brincar mais nesta encosta da montanha, com o sol
brilhando tão forte que as flores silvestres pareciam brilhar, mas sabia
que não adiantava discutir ou arrastar os pés. A última vez que tentou,
seu pai a deixou sozinha até que ela recobrasse o juízo e voou para casa.
Podia ser divertido brincar sozinha aqui, mas então sentiria falta dele e
da mamãe e iria para casa e eles ficariam desapontados com seu
comportamento.
Suspirando, ela voou. Não podia voar tão suave ou tão reta quanto
seu papai, mas podia ficar no ar todo o caminho para casa agora. Antes,
costumava cair ou ter que descansar. Mas suas asas ficaram mais fortes
no ano passado, embora ainda estivesse ofegante, com seu coração
batendo forte, quando pousou no pátio de pedra de sua casa.
— Mamãe! — gritou enquanto corria para dentro, animada para
compartilhar seu novo truque.
— Sharine, querida, quantas vezes já disse para não correr? — As
palavras da mamãe eram suaves, o sorriso que enviou para Sharine era
gentil... e cansado. A mãe de Sharine estava sempre cansada. Era assim
que ela era – Sharine não tinha nenhuma lembrança de uma época em
que sua mãe não estava à beira da exaustão.
— Desculpe — disse ela com um sorriso e diminuiu a velocidade. —
Mostrei meu fogo ao papai. Posso comer um pouco?
O olhar azul-celeste de sua mãe foi para seu pai, seu cabelo dourado
ondulando e o roxo claro de suas asas inquietas, mas eles não falaram até
Sharine fazer seu lanche e sair. Mas ela era má e voltou na ponta dos pés
para perto da janela para que pudesse ouvir. Sabia que não deveria, que
era ruim ouvir outras pessoas, mas ninguém nunca tinha conversas
interessantes perto dela e não era mais um bebê.
— O fogo dela? — murmurou mamãe em sua voz rouca e suave.
— Sim. — Os tons mais profundos do papai. — Está mostrando
sinais de uma habilidade ofensiva. Pode ser que nossa filha esteja
destinada a ser uma guerreira.
— Não posso acreditar, não com a forma como ela se perde em sua
arte. — A mãe de Sharine parecia sorrir, e isso era bom. — É provável
que seja um resquício da minha mãe. Ela serviu Qin até que decidisse
dormir.
— Mas tão jovem? — murmurou papai, o som de suas asas
movendo-se enquanto as abria e fechava de modo familiar e
reconfortante. — Habilidades ofensivas não aparecem em crianças por
uma razão. Ela pode machucar um amigo ou companheiro de brincadeira
sem intenção.
Uma pausa antes de sua mãe dizer: — Sim, você está certo nisso.
Teremos que ensiná-la a nunca usar suas habilidades. Pelo menos até
ficar mais velha. — Um cansaço sem fim em cada palavra. — Não sei se
vou conseguir, meu amor. Ansiava por um filho quando era jovem e cheia
de vida, apenas para o destino me abençoar quando não vejo mais nada
de interessante no mundo, exceto você e nossa filha.
Sharine se afastou deliberadamente da janela e foi até o jardim de
flores de sua mãe para começar a arrancar as ervas daninhas. — Eles não
deveriam falar assim. — Com os olhos úmidos e quentes, ela arrancou
uma erva daninha. — Eu odeio isso. Eu odeio.
Ela tinha idade suficiente para entender que falavam sobre o Sono.
Não um sono normal. Sono que durava séculos e séculos. Isso a assustou.
Os anjos não eram como as crianças mortais sobre as quais ouviram
falar, mas nunca conheceu – os anjos demoravam muito para crescer. E
se mamãe e papai a deixassem quando ainda era meio adulta? O que faria
então? Ela ficaria sozinha.
Talvez se ouvisse e se comportasse melhor, ficassem mais tempo.
— Não usarei o fogo — prometeu às flores num sussurro úmido e
trêmulo. — Serei boa. Serei a melhor menina.

CAPÍTULO 13

Titus estava preocupado o suficiente sobre onde as tocas poderiam


levar que deixou seu mestre de armas Orios encarregado da seção
principal do ninho e voltou para expor outras rotas ocultas. A primeira
área suspeita, entretanto, já estava desenterrada.
O fogo fervia dentro dos túneis, os renascidos certamente
incinerados.
— Quem fez isto? — perguntou ele com uma pontada de alegria,
imaginando se um de seus anjos mais velhos recebeu um novo poder.
O suor escorrendo de seu rosto com o calor do lança-chamas,
Marifa se virou para ele e disse: — A Colibri.
Os dois se encararam por um longo segundo antes que a outra anjo
dissesse: — Pela minha honra, senhor. Foi ela. Ela parecia tão surpresa
quanto eu, mas abriu o buraco para nós.
Decidindo que aquele mistério em particular poderia esperar, Titus
deixou o capitão do esquadrão com ele e foi na direção oposta, para onde
pudesse ver asas de luz índigo. Parecia que o Cadre enviou a ele muito
mais ajuda do que acreditava. Isso, ou um sósia assumiu o controle do
corpo da Colibri.
Levou horas para limparem toda a toca interconectada, mas o
trabalho ainda não havia sido feito. Ele e seu povo – e a poderosa
impostora com asas caídas que se parecia com a Colibri– tiveram que
voltar em todas as outras seções desmatadas para garantir que não
tivessem perdido uma toca que poderia renascer numa erupção de
pesadelo.
Não era como se pudesse simplesmente abrir a terra – uma cidade
inteira estava assentada naquela terra.
— Teremos que estar vigilantes — disse ele ao seu povo enquanto
se reuniam nas muralhas da cidadela, suados e sujos e com mais de uma
faixa de carne podre renascida ou sangue em suas roupas e corpos.
Ele teve sorte hoje, não perdeu nenhum deles, mortal, vampiro ou
anjo, para as criaturas cruéis. — Alerte a população sobre o perigo e diga
para eles gritarem por um guerreiro caso ouçam algo abaixo de suas
casas – tranquilize-os de que não ficaremos zangados com alarmes falsos,
não importa quantos.
— Poderíamos posicionar sensores terrestres ao redor da cidadela
e da cidade — disse um vampiro de duzentos anos que tinha um grande
interesse nas tecnologias da época.
— Vá, fale com Tzadiq, comece.
A Colibri voltou para a cidadela com eles, mas ficou na margem do
grupo e permaneceu em silêncio até que ele se dispersasse. Só então ela
se aproximou de Titus, suas asas caídas até as pontas se arrastarem no
chão.
— Ainda não falei com você de tudo que vi na minha jornada. —
Sem cansaço em sua voz, mas viu naquelas asas e na tensão em seu rosto.
— Quem eu devo consultar sobre os assentamentos que precisam
desesperadamente de assistência?
— Tzadiq cuidará disso — disse Titus, não feliz em saber que
tantas pessoas estavam sofrendo. — Mas agora, gostaria de falar sobre
seu poder.
Ela acenou, como se ele não fosse um arcanjo e ela pudesse desafiá-
lo impunemente. — Tenho algo muito mais interessante para você –
pensei que os renascidos deviam ter começado a sofrer mutação, mas
agora que vi os que estão aqui, começo a questionar minha conclusão.
Enquanto ele ainda estava pasmo com seu completo desrespeito
por sua autoridade, ela puxou um telefone do bolso e tocou a tela. —
Aqui, veja as fotos em movimento que tirei.
Pego entre o desejo de rosnar para ela para respeitar sua
autoridade e um fascínio enraizado na confusão, Titus percebeu que sua
atenção foi capturada pelas imagens na tela. A gravação mostrava a mão
do que ele pensava ser um renascido. Estava gravemente queimada, mas
a mão era alongada de uma forma que revirou seu estômago, era tão
estranha... e lá.
Ele agarrou seu pulso sem pensar, vagamente notando a
inesperada força tênsil de seus ossos. — Pode me mostrar de novo?
— Acredito que sim, mas preciso das duas mãos.
O calor queimou sua pele. — Me desculpe. — Titus não tinha o
hábito de agarrar mulheres sem permissão.
— Não importa — murmurou ela, seu foco em tocar no dispositivo.
Mais uma vez, tratando-o como um cachorrinho errante que deu
um passo em falso, ao invés do arcanjo de um continente inteiro.
Com o peito roncando, ia apontar que não era um cachorrinho e
nunca seria, mas ela sorriu sem aviso – e a beleza marcante da luz em sua
expressão o derrubou.
— Consegui — disse ela com orgulho aberto, e estendeu o telefone
novamente.
Titus teve que se esforçar para prestar atenção. — Observe comigo,
concentre-se nos dedos. — Ele precisava saber se ela também viu.
Um segundo depois, ela respirou fundo. — Mexeu. — Horror em
cada sílaba. — Isso deveria ser impossível. Os corpos estavam tão
queimados que nada poderia ter sobrevivido – e os renascidos são
suscetíveis ao fogo.
— É possível que este renascido fosse um vampiro antes de ser
transformado e conseguisse sobreviver por um período de tempo
considerável. — Esses sempre foram os mais desagradáveis de matar. —
Mas ainda não deveria estar dando sinais de vida, dada a intensidade do
fogo. — O resto da gravação ofereceu evidências de um incêndio
violento. — A que distância fica este assentamento? — Ele não podia
ignorar o sinal de uma tensão ainda mais robusta.
Quando ela disse a ele a localização, ele fez cálculos rápidos em sua
cabeça. Não podia enviar um representante para isso –precisava ver a
descoberta dela por si mesmo, mas também não podia deixar seu povo
com pouca mão de obra. Ainda assim, se voasse em velocidade
arcangélica... — Pode me dar as coordenadas exatas para a aldeia?
Seu rosto caiu, o sorriso desaparecendo. — Não sei como dar essas
coordenadas.
— Seu dispositivo pode ter notado isso. — Ele estendeu a mão
mentalmente para Obren, ciente de que o jovem era um aficionado por
tecnologia. — Obren se juntará a nós em breve para verificar.
Mas o menino balançou a cabeça após verificar o dispositivo, suas
tranças amarradas na nuca com um pedaço fino de barbante. — Sinto
muito, senhor, parece que a localização foi desligada.
— Posso ter feito isso enquanto tentava usar o dispositivo. — O
tom da Colibri foi apologético. — Eu sinto muito.
Titus ordenou que Obren voltasse às suas funções. — Nesse caso —
começou.
Mas a Colibri já estava falando. — Posso levar você diretamente a
ele.
— Você vai me atrasar — disse Titus sem rodeios, e se preparou
para um acesso de raiva feminina. — Não posso perder tempo, agora não.
— Sim — concordou Colibri num tom baixo. — Mas acho que
mesmo um arcanjo não deveria correr tanto perigo sozinho. E como
ainda não fui designada para uma tarefa específica, levar-me junto não
deixará nenhum buraco em suas defesas.
Titus não acreditava que era invencível porque era um arcanjo. Até
os arcanjos podiam se machucar. No momento, um inimigo não precisava
matá-lo para causar danos catastróficos em seu território. Se atirassem
um míssil contra ele, explodindo seu corpo em pedaços, tirariam uma
grande parte de suas forças ofensivas pelo tempo que levasse para seu
corpo se unir.
Não acreditava que qualquer um do Cadre atualmente tivesse
tempo ou energia para lançar tal ataque, mas alguns dos lacaios de
Charisemnon ainda poderiam agir por lealdade estúpida. E, como provou
hoje, Colibri tinha algum poder. O suficiente para assustar qualquer um
que pensasse que estava se aproximando de um Titus cansado e exausto.
— Um bom ponto estratégico — disse ele. — Pode estar pronta
para voar em quatro horas? — Isso lhe daria tempo para organizar suas
forças – e para ela descansar algumas horas. Suas asas caíram ainda
mais.
Um aceno de cabeça da Colibri. — Devo dizer a você, minha
resistência não é como a sua.
— Vou carregá-la quando se cansar, se me permitir. — Ele saiu
afetado. — Sem querer insultar.
— Nenhum insulto. — Seus olhos eram intensos, mas de alguma
forma... perdidos. Não, isso não estava certo. Quando a viu à distância ao
longo dos anos, ele a achou um fantasma adorável, uma mulher com
tantas fraturas em sua psique que só sobreviveu se dissociando do
mundo.
Isso era diferente; ela não se retirou do mundo. Em vez disso, era
como se olhasse para dentro, procurando por algo que esqueceu. Isso
não era nem um pouco incomum em anjos mais velhos. Até mesmo Titus
se via fazendo isso de vez em quando, e tinha apenas três mil e
quinhentos anos em comparação com...
Foi então que percebeu que não fazia ideia da idade da Colibri.
Sabia que era uma contemporânea de Caliane – e a mãe de Raphael era
uma conhecida Antiga. Ainda assim, quando olhava para a Colibri, não
sentia a idade, a história pressionando seus ossos.
Sua presença era radiante, cheia de uma luz inesperada.
— Está tudo bem? — Ele tentou moderar sua voz fora do volume
estrondoso de costume.
Linhas sulcando sua testa, ela pareceu voltar à realidade. — O que
há de errado com sua voz? Está ficando doente?
Titus queria jogar a cabeça para atrás e apenas rugir para o céu. Por
que as mulheres eram a ruína de sua existência? Ele as amava, isso era
verdade. Mas também o levavam à distração. — Minha voz está boa —
resmungou. — Estava tentando um tom que não explodisse seus
tímpanos. De acordo com todos aqueles guerreiros emprestados que
abandonaram meu serviço, eu grito demais.
Ela inclinou a cabeça um pouco para o lado. — Não me lembro de
ter feito essa reclamação. — Palavras arqueadas, nenhuma indicação de
nada além de uma mulher confiante e forte.
— Meu povo parece achar minha voz muito boa também, mas
outros são fracos e com pele de lírio. — Era uma luva que acabava de
lançar, empurrado até a borda por ela... Não sabia o que havia em Colibri
que o irritava, e isso apenas aumentava a irritação.
A borda de sua boca se ergueu ligeiramente, seus olhos
extraordinários se enchendo de uma efervescência que podia jurar que
era uma risada. — Eu concordo com você — disse ela naquela voz
melíflua rica em camadas tonais. — Você é um arcanjo lutando contra um
flagelo mortal. Aqueles que esperam que você perca tempo atendendo às
suas necessidades deveriam ter vergonha de se chamar de guerreiros.
Ele olhou para ela, sem saber se estava zombando dele ou não.
Independentemente disso, não havia nada que pudesse fazer a respeito.
Ela era a Colibri. A comunidade angélica o repudiaria se colocasse um
dedo nela. Não que ele fosse. Mas era o princípio da coisa. — Sou um
arcanjo — explodiu. — Eu sou a lei neste território.
Ela se curvou profunda e precisa. — Claro.
Ele se sentiu como se tivesse levado um carinho na cabeça, como
uma mãe indulgente faria com uma criança pequena que estava se
inflando. Rosnando no peito, decidiu seguir o conselho de um antigo
treinador e dar um passo atrás.
O adversário que enfrentava não era simples; para vencer esta
guerra, teria que ser astuto e furtivo. Nenhum dos quais era exatamente
seu ponto forte, mas se mudasse astúcia para estratégia... sim, isso fazia
mais sentido. — Por favor, aproveite esta oportunidade para descansar
suas asas. Voamos quando o sol estiver alto no céu.
Era a pausa mais longa que podia dar a ela. Usaria o tempo para
informar Tzadiq, Orios, Tanae e os outros de sua corte sênior – incluindo
Ozias; sua espiã mestre estava voltando para Narja, perto o suficiente
agora para que pudesse alcançá-la com sua mente. Resumindo, o pessoal
de Titus deveria prosseguir com o processo de erradicação. Não podiam
parar por um único dia. Não com a disseminação rápida da infecção.
Mesmo com seus muitos soldados espalhados por todo o território,
não podiam proteger todas as aldeias e todas as vilas e todas as cidades.
Pessoas estavam morrendo. As pessoas estavam sendo tomadas pelos
renascidos e transformadas numa abominação podre de vida. Os pais
precisavam matar as mães antes que um ente querido espancado se
tornasse uma criatura de pesadelo. As crianças estavam ficando órfãs em
todo seu território... se é que os pequenos sobreviveriam.
Esta guerra era mais dolorosa que qualquer outra que ele já havia
travado.
CAPÍTULO 14

Senhor, eu vou voar para me juntar à sua corte na primavera, uma


temporada depois do meu centésimo aniversário. Você me dá uma grande
honra em me aceitar em seu exército.
Sei que parte disso é por causa do seu respeito por minha mãe, mas
provarei meu valor a você nos anos que virão, até que não pense em mim
como o filho da sua primeira general, mas apenas como Titus.

– Carta de Titus para o Arcanjo Alexandre

CAPÍTULO 15

Sharine descansou antes de mais nada; pouco mais de três horas de


sono a rejuvenesceram consideravelmente. Depois, juntou os itens de
que precisava para esta jornada. Não seria muito. Tratava-se de
velocidade e do que ela precisava para acompanhar Titus.
Foi por este último motivo que parou um atormentado membro da
equipe e pediu que a levassem até a cozinha.
De olhos arregalados, o indivíduo com pele lisa em tom de creme
rico, cabeça raspada e a mais nua impressão de seios contra o uniforme
marrom e dourado da corte, disse: — Minha senhora. Posso trazer
qualquer coisa para você...
— Será mais rápido se eu mesma puder falar com o cozinheiro —
disse ela. — Mas agradeço por seu cuidado.
Uma engolida em seco, mas a membro da equipe, mesmo assim,
não protestou mais e a levou a uma enorme cozinha cheia de calor e luz,
e a agitação energética daqueles que trabalhavam para preparar comida
suficiente para abastecer este enorme exército.
Ao avistá-la antes de seus asseclas, o claro rei deste espaço – um
homem de altura média e musculoso – correu. — Minha dama. — Ele se
curvou sobre a mão dela, seu cabelo preto firmemente trançado em
fileiras perfeitas contra seu couro cabeludo e sua pele num tom claro de
marrom. — Você me faz uma grande honra.
— Você é um colega artista e gostaria de falar sobre seus pratos
divinos — disse ela, porque era verdade. — Hoje, no entanto, venho
pedir algo mais simples. — Ela disse a ele o que precisava. — Se demorar
muito do seu tempo, posso me adaptar.
Seu rosto se iluminou, seus ricos olhos castanhos brilhando em
botões num rosto que era naturalmente rechonchudo e provavelmente
permaneceria assim por toda a vida, independentemente dos efeitos
contínuos do vampirismo. Alguns mortais pareciam ter uma presença tão
forte que dominava de qualquer maneira. O segundo de Raphael, Dmitri,
caía naquela categoria.
— Não, não é nada difícil — disse o cozinheiro. — Mantemos um
estoque de barras preparadas para nossos guerreiros que não
conseguem parar para uma refeição completa. — Correndo para o que
parecia ser um depósito frio, voltou com as mãos cheias de barras que
continham altos níveis de energia. — Quantas você precisa?
— Isso é mais do que suficiente. — Aceitando os punhados, ela
levou um momento para olhar ao redor da cozinha. — Deve estar
cansado, pois este tem sido um esforço contínuo. — Mesmo os anjos mais
poderosos precisavam de reposição constante quando gastavam tanta
energia diariamente – incluindo na cura de feridas.
— O que importa estar um pouco cansado se o que faço nos ajuda a
lutar contra a feiura do flagelo? — Suas presas brilharam enquanto
falava, os seus ombros enquadrados com orgulho justificável.
Sharine não perguntou como um vampiro, um ser cujo sistema não
podia processar nada além de pequenas quantidades de comida, acabou
cozinhando para um arcanjo, apenas sorriu para ele. — Sim, você e seu
pessoal fornecem o combustível para este grande motor.
Ele estava radiante quando ela saiu.
Uma vez de volta ao seu quarto, colocou as barras em sua pequena
mochila, então ficou lá por um segundo e pela primeira vez, pensou no
que fez com a toca, como a expôs com seu poder. Sua mão formigou.
Olhando abaixo, viu uma sombra da energia champanhe que irrompeu
dela.
Agitou-se profundamente dentro dela, tão potente que roubou seu
fôlego, mas ainda apenas meio acordada. Uma energia que ficou sem uso
por tanto tempo que ficou mais escura e densa a cada século que passou.
Do que era capaz? Já fazia uma eternidade desde que se permitiu
soltar as rédeas. Primeiro, estrangulou seu poder num esforço vão para
manter seus pais, então caiu no esquecimento de sua arte, exceto nas
poucas ocasiões em que foi forçada a usá-lo, como naquele antigo campo
de batalha. Então ela... esqueceu.
Um jovem como Obren não entenderia como uma pessoa podia
esquecer um elemento central de sua natureza, mas enquanto a memória
angelical era infinita em muitos aspectos, isso não significava que sempre
poderia acessar o que foi armazenado há muito tempo. Um anjo da idade
de Sharine, especialmente um cuja mente carregou fraturas por tanto
tempo, podia esquecer muitas vidas, muitos pedaços de sua existência.
A compreensão a assombrava enquanto saía para encontrar Titus
para sua jornada até o assentamento abandonado.
A responsabilidade colocava um pesado manto sobre seus ombros.
Ele não falou enquanto decolavam, e nem ela, sua mente ocupada
com uma miríade de flashes de memória enquanto tentava localizar o
momento em que esqueceu o poder que vivia em suas veias.
O conhecimento foi perdido muito antes de dar à luz Illium, seu
bebê que se tornou um homem perigosamente poderoso. E nunca soube
disso com Aegaeon, também. Mas o tempo entre sua infância e antes
desse ponto crítico em sua vida era uma eternidade que se espalhou pelo
horizonte.
Com a cabeça doendo pela futilidade disso, finalmente parou de
puxar os fios da memória. Isso podia esperar. Agora, deveria cuidar das
costas de Titus, garantir que não fosse pego de surpresa por nada. Ele
voava a esquerda dela e ligeiramente à frente, suas asas poderosas
enquanto ela cavalgava a corrente de ar criada em seu rastro.
Oh.
Ele estava fazendo isso de propósito. O homem podia ser um idiota
que pensava que ela desmaiaria com sua voz alta, mas também era um
guerreiro honrado e inteligente. Esse era um dos poucos fatos que sabia
sobre ele. Todas as informações dela sobre Titus vinham de comentários
feitos por aqueles que serviram em Lumia, e algumas palavras de
passagem de Illium.
Ele era amado por seu povo.
Era amado pelas mulheres.
Era um homem de honra e verdade.
Era um guerreiro que não mostrava misericórdia contra o mal.
Não era um erudito e sua corte não era erudita – mas Sharine não
considerava mais esse boato em particular. Não depois de ouvi-lo falar
de guerreiros-eruditos e, ao voltar das cozinhas, avistar várias pessoas
trabalhando numa grande biblioteca.
As sobrancelhas franzidas e os ombros arqueados, os estudiosos
pareciam tão cansados quanto os guerreiros e os empregados
domésticos. Sem dúvida, foram designados para a tarefa de ver se havia
outra maneira mais rápida de impedir os renascidos.
Por último, mas não menos importante, era a informação de que,
embora Titus gostasse de mulheres – altas e baixas, esbeltas e
voluptuosas, de pele clara ou morena – nunca chegou perto de tomar
uma consorte.
Este último parecia ser um motivo de orgulho entre seu povo, como
se Titus vagando como uma mosca botando seus ovos em todas as
superfícies possíveis fosse a epítome da masculinidade. Sharine bufou
para si mesma. Sua mãe ficaria horrorizada com o som deselegante, mas
sua mãe partiu há muito tempo, virando pó.
O povo de Aegaeon também se orgulhava da virilidade de seu
arcanjo e da incapacidade de comprometer seu coração. Olhando atrás,
não viu virilidade, mas fraqueza. Não era necessária nenhuma grande
habilidade para tomar amante após amante se alguém fosse um arcanjo.
Só o poder era um afrodisíaco.
Oh, o encanto do Arcanjo Titus é verdadeiro...Suspiro.
Ouviu palavras semelhantes mais de uma vez daqueles que
passaram por Lumia. Cada mulher apaixonada colocou as mãos sobre o
coração e falou sobre como era fácil derreter nos braços dele, como ele
era lindo quando sorria e como era atencioso como amante. Sharine não
pensou que estava prestando atenção na hora, mas, graças à sua maldita
memória seletiva, agora se lembrava de cada pedaço.
Pelo que viu, no entanto, o encanto de Titus consistia em ser um
arcanjo. Ela não viu nenhum sinal de qualquer outro talento na forma
como lidava com as mulheres. Era um martelo cego e todos pareciam
prontos para cair nisso.
Seriamente.
Se isso fosse tudo que alguém precisava para ser considerado
encantador, ela tinha um castelo numa nuvem para vendê-los.
Ela bufou novamente.
*

Titus olhou para a direita e ligeiramente atrás. Podia jurar que a


Colibri simplesmente bufou, mas certamente não. Ela era uma criatura
muito refinada e delicada para bufar.
Embora também o estivesse examinando como se ele fosse um
inseto sob um microscópio. Havia uma razão pela qual não passava
muito tempo com os estudiosos de sua corte – ele os respeitava como
respeitava todos que tinham habilidades que ele não possuía – mas na
metade do tempo, sentia como se o seu maior desejo fosse separá-lo para
descobrir como ele funcionava.
Era o suficiente para arrepiar os cabelos da nuca de um arcanjo.
Decidindo não perguntar se havia algum problema, porque há
muito tempo aprendeu aquela lição sobre mulheres e cutucar ninhos de
vespas, se concentrou em seu entorno. Seu coração se partiu ao ver a
devastação nas áreas próximas à fronteira, os campos não cultivados e as
aldeias incendiadas mais longe.
Ainda não haviam atingido a primeira grande cidade do lado norte.
A maior parte dos danos na fronteira aconteceu durante sua
batalha com Charisemnon, mas conforme voavam, viu que a situação
piorou significativamente desde sua rápida corrida de reconhecimento
depois que assumiu o território de seu inimigo. Também se alinhava com
o relatório atualizado que Ozias lhe deu, sua espiã mestre tendo
alcançado Narja pouco antes dele voar.
O norte existe em terror, senhor. A fome é uma ameaça pairando. Não
são apenas os renascidos os responsáveis por este último – as pragas de
gafanhotos durante a Cascata causaram danos muito piores lá do que no
sul.
Pelo que pude descobrir, é porque Charisemnon já havia recrutado
um grande número de mortais jovens e fortes para suas forças. As fazendas
tinham pouca mão-de-obra para proteger suas lavouras ou replantar. Ter
que lutar contra os renascidos foi a gota d'água – na cidade ou no campo,
as pessoas estão quase destruídas.
Não caiu bem para Titus. Este era seu povo agora e esta era sua
terra para cuidar.
— Como ele pôde fazer isso? — Ele se pegou dizendo em voz alta.
— Como pode causar tamanha destruição ao seu próprio povo e não se
importar? — Os renascidos eram de Lijuan, então além de conduzi-los
para o sul, Charisemnon não tinha controle sobre eles; mesmo se tivesse
sobrevivido, alguns teriam escapado e devastado o norte.
Uma fazenda abandonada estava lá embaixo, seus campos solitários
e esquecidos, as janelas da casa principal destruídas. Sabia que os
renascidos passaram por aqui em horda – podia localizar as marcas
deixadas na terra onde as criaturas arrastaram os corpos, sabia que
ninguém sobreviveu.
— Alguns não pensam em seu povo. — A bela voz da Colibri, uma
carícia exuberante. — O poder é tudo que importa. Os humanos, para
eles, nada mais são que peças descartáveis no tabuleiro de xadrez da
política imortal.
Titus apertou a mandíbula, pensando em todas as vozes que
desapareceram desta paisagem. Mesmo a visão de uma manada de
gazelas com finos chifres curvos e casacos marrom-avermelhados
pastando pacificamente num campo verde com grama não conseguiu
controlar sua raiva; nunca perdoaria Charisemnon pelo que fez, o veneno
nocivo que ajudou a liberar sem se importar com as consequências.
— Gostaria de não tê-lo matado tão rapidamente. Tive que fazer
isso, para que pudesse me juntar à batalha contra Lijuan, mas gostaria de
tê-lo aqui para que pudesse rasgá-lo e deixá-lo um torso sem membros
que eu pudesse então torturar por uma resposta para este veneno. —
Titus não era um homem que acreditava na tortura – melhor lutar cara a
cara com seus inimigos, honra com honra, mas Charisemnon não tinha
honra. Você não podia argumentar com alguém como ele.
A Colibri não recuou com suas palavras brutais. — O que dizem os
cientistas e acadêmicos? — perguntou ela. — Meu foco durante a guerra
era manter meus deveres com Lumia e proteger o repositório de arte
angelical. Como resultado, não participei de nenhuma conversa mais
ampla sobre os efeitos posteriores da guerra – tudo que sei, ouvi de
outras pessoas.
Titus presumiu que isso incluía Raphael e, claro, Illium. — Há
poucas palavras sobre uma vacina para o que estão chamando de
infecção renascida – e isso se refere apenas aos renascidos originais
criados por Lijuan. Temos ainda menos conhecimento da variante
alterada por Charisemnon.
Seus ombros se contraíram quando sobrevoou outra cidade
abandonada, seus edifícios queimados pelo fogo e seus jardins
abandonados. — Meu inimigo era um arcanjo, apesar de todos os seus
defeitos. E era um arcanjo sobrecarregado pela Cascata.
— Seja o que for que criou, não pode ser simplesmente entendido.
É uma coisa de poder – os cientistas dizem que as células dos renascidos
da África funcionam com uma espécie de energia viscosa de fome.
Quando testam as células com gotas de sangue, as células são vorazes,
nunca se satisfazem – e são mais infecciosas que qualquer outra coisa
neste planeta.
Um arrepio percorreu sua pele como da primeira vez que ouviu o
relatório. — Com os renascidos comuns, os mortais estão condenados,
não importa a intervenção, mas agora temos dados para dizer que
muitos vampiros fortes se recuperaram após um ataque não letal. Aqui,
mesmo os vampiros que cortam um braço ou uma perna que foi
arrancada por um dos renascidos...
Titus balançou a cabeça, a garganta seca. — Perdi muitos do meu
povo. É por isso que ordenei minhas tropas vampíricas, bem como os
Caçadores da Sociedade e mercenários mortais, para lutar de dentro de
seus veículos, com armas de distância. — Qualquer luta de contato
próximo deveria ser feita por um anjo.
— Seu povo tem uma coragem incrível.
Titus não precisava dessas palavras – conhecia essa verdade
profundamente. Mas era bom ouvir o reconhecimento. — Raphael me
disse algo quando veio me ajudar. — O filhote cumpriu sua palavra,
dando a Titus muito de seu tempo. Titus sabia que Raphael voltaria
quando pudesse. — Uma verdade que ele aprendeu com os lutadores da
Legião que viveram em seu território por tanto tempo.
Aqueles lutadores deram suas vidas para que o Cadre pudesse
derrotar Lijuan, e por isso, Titus os honrava.
— Bem? — Uma demanda nítida. — Planeja me contar?
Carrancudo, olhou para ela. — O que há de errado com você? —
Saiu uma explosão de som. — Não está agindo como a doce e amável
Colibri!
A resposta dela foi um olhar furioso que teria arrancado a pele de
seus ossos se não fosse o filho da Primeira General Avelina e irmão de
Euphenia, Zuri, Nala e Charo. — Já disse a você — enunciou com os
dentes cerrados —, meu nome é Sharine. Ficaria muito satisfeita se você
se dignasse a usá-lo.
Talvez estivesse sofrendo com o trauma da guerra. Ela era uma
criatura efêmera. Ter tanta devastação em sua porta sem dúvida causou
danos que emergiam como esse comportamento estranho e antagônico.
— Sharine — disse ele com seu sorriso mais encantador.
A resposta dela foi uma exibição de dentes que o deixou feliz por
não estar ao alcance do braço. — O que Raphael te disse? — retrucou.
Afrontado, se afastou dela por longas batidas de asas. Até que se
acalmou o suficiente para voltar a voar ao lado dela e apenas à frente o
suficiente para facilitar sua jornada. Ela não parecia nem um pouco
envergonhada por tê-lo afastado.
Em vez disso, ela ergueu uma sobrancelha quando ele olhou para
ela e disse: — Está se sentindo melhor?
O peito de Titus retumbou. Se ela não fosse a Colibri... — De acordo
com a Legião, houve outra grande guerra em nossa história.
A informação não era surpresa para Titus. Uma raça de imortais,
muitos deles poderosos, nem sempre podiam viver em paz. — Durante
aquela guerra, um arcanjo lançou um veneno que infectou todos os anjos.
Nosso povo dormiu por uma eternidade na esperança que nossos corpos
imortais encontrassem uma resposta para o veneno enquanto
dormíamos, mas o veneno ainda fazia parte de nossa carne quando
acordamos.
O horror da história faria Titus não acreditar se não tivesse
sobrevivido à praga de Charisemnon. — Nesse ínterim, todo um novo
povo nasceu – os mortais. De acordo com a Legião, os anjos descobriram
de alguma forma que, ao purgar nosso veneno nos mortais, poderíamos
manter nossa saúde e sanidade.
— Está falando sobre o nascimento dos vampiros? — disse Colibri.
Não, não a Colibri. A Colibri era uma criatura gentil, vaga e doce. Esta era
Sharine. Linguagem afiada, olhos claros e armada com um olhar ácido.
Ele não deveria estar tão fascinado por ela. Provavelmente era ruim
para sua saúde.
— Sim, foi isso que a Legião sugeriu. — A toxina que se acumulava
em corpos angelicais ao longo do tempo, iniciando uma lenta descida
numa horrível loucura assassina, era o maior segredo de sua raça. Era
sua única fraqueza e tornava os mortais muito mais importantes para os
anjos do que os mortais jamais poderiam imaginar.
— Vou perguntar mais a Raphael sobre isso.
— Acha que eu minto para você? — rugiu ele, suas asas brilhando
com poder.
CAPÍTULO 16

Ela realmente revirou os olhos para ele. Revirou os olhos para o


Arcanjo da África. — Não, — disse ela — simplesmente gostaria de ter
certeza de que temos todos os detalhes, para que possamos ver se há
algo a ser aprendido com isso.
Titus ia resmungar uma resposta, quando uma manada de búfalos
abaixo chamou sua atenção. As criaturas grandes e agressivas com
casacos escuros se moviam de maneira errática, batendo suas cabeças
umas contra as outras e arranhando a terra. Mais de um conjunto de
chifres incrivelmente grossos brilharam vermelhos com sangue.
Ele voou mais baixo. — Não se aproxime o suficiente para eles
fazerem contato! — gritou para Colibri; não acreditava que as criaturas
fossem sencientes de forma alguma, mas havia uma energia feroz nelas.
Pairando alguns metros acima, fora do alcance de suas investidas,
se viu olhando para olhos avermelhados e bocas babando. Foi quando viu
gargantas rasgadas, estômagos estripados e membros faltando que
fizeram com que alguns dos animais se arrastassem para a luta.
O frio se infiltrou em seus ossos. — Eles renasceram — disse ele a
Sharine quando ela veio pairar ao lado dele.
Nada e ninguém além dos renascidos tinha aquele olhar vicioso em
particular – uma espécie de voracidade que nada podia aplacar. Uma
fome que era infinita e ainda pior que a sede de sangue que tomava conta
dos vampiros em muitos territórios. A teoria de Titus sobre por que a
África foi poupada desse flagelo era que até mesmo os vampiros tinham
medo dos renascidos.
Isso, e qualquer vampiro que saísse da porra da linha logo seria
eliminado por seus companheiros. Ninguém sensato queria promover ou
criar uma distração da batalha que estava ocorrendo no continente.
Sharine respirou fundo. — Não sabia que podia ser transmitido aos
animais.
— Nem eu — disse ele, seu poder vivo em sua mão. — Ninguém
mais relatou nada parecido. — Ele não tinha provas ainda, mas sabia que
isso era obra de Charisemnon; qualquer que fosse o veneno que criou, no
entanto, hibridizou os renascidos com sua doença, e isso significava que
o horror agora podia saltar entre as espécies.
— Doce misericórdia. — A adorável voz de Sharine estava tão fria
quanto seu sangue. — Lijuan e Charisemnon teriam transformado nosso
mundo inteiro numa paródia da vida.
— Devo acabar com esses búfalos, mas vou precisar pegar uma
amostra para meus estudiosos e cientistas. — Ele franziu a testa. — Não
tenho nada para preservar e carregar uma amostra.
— Crie um buraco na terra — sugeriu Sharine. — Despeje algum
alimento dentro. Contanto que o buraco não seja raso, a criatura não será
capaz de escalar para fora.
Era uma ideia inteligente. Havia apenas um problema. — Não estão
mais pastando na grama. — Ele apontou para os pedaços de carne que
um búfalo arrancou do flanco de outro.
— Esses horrores. — A expressão de Sharine estava aberta, sua
famosa bondade e coração em primeiro plano – mas não havia nada de
frágil nela. — Terá que deixar um animal morto lá com o renascido, pois
seus cientistas precisam de uma amostra viva para estudar – se a
infecção derreter a carne do renascido, você pode acabar sem nenhuma
amostra.
Os renascidos tendiam a ser atraídos por carne viva, mas Titus não
prenderia duas criaturas enlouquecidas juntas para que uma pudesse
comer a outra. Havia algumas linhas que ele não cruzaria. — Uma
criatura viva deve sobreviver se eu criar o buraco sob a sombra.
Mandarei uma mensagem ao meu povo assim que encontrar um batedor.
Titus podia falar mentalmente com seu pessoal sênior a alguma
distância, mas eles voaram além de seu alcance máximo. A fala mental
nunca foi uma de suas habilidades mais fortes, independentemente, e
talvez fosse a razão pela qual reteve tantas de suas habilidades nascidas
na Cascata. Para equilibrar a expansão do poder no Cadre.
— Espere. — A voz de Sharine estava ofegante... perturbada? —
Sou uma tola. Podemos usar o telefone – tenho um número que se
conecta à sua corte.
— Eu não lido com isso. — Titus examinou as criaturas abaixo para
ver qual podia cortar mais facilmente do rebanho e do curral.
— Cuidado, Titus — disse ela —, para que não se transforme num
monumento de si mesmo – preso na pedra e no passado.
Enquanto a observava tocar os dedos na tela do dispositivo, ele
mastigou suas palavras, calor em seu sangue. Ele era quem era e não
discutia consigo mesmo.
Titus! Pare de ser tão teimoso.
A voz de sua irmã mais velha, um eco da infância – ou
possivelmente do ano passado. Phenie ainda o repreendia de vez em
quando. Ela também fez um grande esforço para trazer sua fruta favorita
do Refúgio e, quando era criança, nunca teve má vontade com o jovem
que cambaleava atrás dela, ansioso por meter o nariz em seus negócios.
Venha, Titus, vamos visitar o Mestre Carvari. É possível que você
tenha habilidades musicais inexploradas.
Para grande horror de Phenie, o único interesse de Titus nos
instrumentos era como usá-los como armas, caso fosse necessário. No
entanto, nunca o impediu de estar sob os pés, nem mesmo quando ele
passou um ano inteiro com ela enquanto sua mãe liderava as tropas de
Alexandre na batalha.
Titus há muito se esqueceu do que poderia ser aquela batalha ou
contra quem, mas se lembrava de sentar na parede de pedra do lado de
fora da casa de Phenie, ouvindo-a tocar harpa – e esperando em feliz
expectativa quando ela inevitavelmente chamaria seu nome.
— É hora do lanche, Titus! Corra para casa ou comerei tudo!
A memória fez seus lábios se curvarem. Talvez, em homenagem a
Phenie, admitisse que Sharine estivesse certa em sua reprovação. O
dispositivo em sua mão garantiria que seus cientistas pudessem partir
em alta velocidade.
Não que diria a Sharine que concordava com ela – ela o atingiu
como o tipo de mulher que diria, Eu te avisei, e ele já ouviu o suficiente na
infância, muito obrigado.
Principalmente de Charo. A mais jovem de suas irmãs era uma
inveterada bisbilhoteira.
— Aqui. — Sharine entregou o dispositivo que parecia frágil e
quebrável em sua mão. — Toquei no botão que deve conectá-lo à sua
corte.
Foi seu mordomo quem atendeu a chamada. — Sim — explodiu
Titus. — Preciso que busque Tzadiq, Tanae, Orios ou Ozias. — Yash era
brilhante no comando da casa, mas seria melhor dar esta informação
específica a alguém que garantisse que os estudiosos e cientistas não
fossem comidos por um búfalo louco.
— Senhor. — Uma resposta atordoada, mas o homem se recuperou
rapidamente. — Vou buscar Orios imediatamente; vi o mestre de armas
agora mesmo.
Olhando abaixo, Titus viu que três das criaturas conseguiram
derrubar uma quarta, agora estavam se banqueteando em sua carne
ainda rosada. Isso significava que a infecção era recente. Incapaz de ficar
parado e assistir qualquer ser se contorcer em agonia, Titus enviou um
raio de poder que apagou todos os quatro da existência. O resto da
manada gritou de uma forma que era estranhamente não natural –
búfalo não fazia aquele som – mas eles não se espalharam.
Em vez disso, se viraram e olharam para ele, tentando pular de uma
forma que era impossível para seus corpos desajeitados.
Orios atendeu. — Senhor, quando Yash me disse que era você na
linha eu achei que ele havia levado um golpe na cabeça! — A voz do
mestre das armas era tão profunda e ressonante quanto a de Titus. —
Que calamidade se abateu sobre nós agora?
De todas as pessoas em sua corte, Orios era aquele de quem Titus
era o mais próximo. Talvez porque Orios estivesse com ele desde o início;
a única razão pela qual não era o segundo de Titus era porque preferia os
deveres de um mestre de armas.
Não tenho paciência para a política que vem com ser o segundo, ele
disse quando Titus levantou a questão logo após sua ascensão. Você
precisa de um segundo com um pouco mais de astúcia e charme, um que
suavize suas arestas quando se trata de lidar com os segundos dos outros
no Cadre. Deve promover Tzadiq – ele é um excelente general, mas será um
segundo brilhante.
Orios estava certo em seu conselho, e agora Titus tinha um segundo
inteligente e urbano em quem confiava para defender a honra de Titus –
embora não insultasse a todos na vizinhança. — Alcançou os animais,
meu amigo — disse ele a Orios, depois explicou os detalhes.
— Vou enviar uma equipe de ciências com uma escolta — disse
Orios a ele, seu tom sombrio. — Os estudiosos se tornaram mais práticos
desde a guerra, mas não confio neles fora sem proteção.
Nem Titus; estudiosos imortais às vezes podiam viver em seu
próprio planeta. — Deixo isso em suas mãos competentes. — Depois de
encerrar a conversa, devolveu o telefone a Sharine e começou a criar a
prisão de barro para o búfalo escolhido.
Feito isso, apagou o resto dos animais infectados da existência, seu
poder deixando outra cicatriz na paisagem de seu território. Doía seu
coração ver isso, mas precisava ser feito.
Eles não viram nenhuma outra criatura não natural nas horas que
se passaram, mas enquanto as cidades pareciam bem o suficiente – se
caladas e tensas – os danos às vilas e fazendas que passavam se
tornavam cada vez piores. — Lumia?
Embora não tivesse falado nas últimas duas horas, Sharine
entendeu o que ele perguntava. — Estávamos seguros – os renascidos
nunca chegaram tão longe. — Ela indicou abaixo. — Pelo que vi em
minha jornada anterior, esta é a seção mais atingida deste lado da
fronteira.
Titus percebeu o dano. — Charisemnon estava brincando com fogo
pensando que poderia controlar os renascidos. — Apenas Lijuan tinha
essa habilidade.
— Ele também deixou seu povo indefeso contra eles — disse
Sharine, seu tom cheio de vidro cortado, brilhante e sangrento. — Fui
informada de que ele recrutou não apenas anjos e vampiros, mas mortais
fortes em suas tropas – incluindo pessoas de fazendas e vilas.
— Minha mestre espiã confirmou isso. — Titus ainda tinha
dificuldade em entender o porquê disso. — Agricultores e trabalhadores
de campo? — Ninguém teria chance numa batalha entre imortais. Não
era o mesmo de quando Caçadores da Sociedade ou mercenários se
juntavam – eles eram altamente treinados e tomavam a decisão por sua
própria vontade.
A Sociedade Africana desertou para o lado de Titus assim que a
perfídia e o mal de Charisemnon se tornaram claros, e lutaram com
coragem, coração e habilidade. A Sociedade sofreu perdas, mas
aproximadamente na mesma porcentagem que o resto das forças de
Titus. Ninguém jamais consideraria um caçador uma presa fácil.
Bem diferente dos pobres mortais assustados convocados por
Charisemnon.
— Entendo agora por que tantos moradores incendiaram suas
casas – não teriam nenhuma chance um a um. Foi uma escolha
inteligente liderar ou conduzir os monstros para dentro de uma casa e
depois transformá-la numa pira funerária.
— A única escolha, eu acho. — Os olhos de Sharine estavam suaves
de tristeza. — Mesmo que os deixasse sem casa.
— Essas pessoas mostraram mais coragem do que a extremidade
traseira de asno que se autodenominava seu arcanjo.
Foi na próxima aldeia maltratada, mas ainda viva, com tochas
acesas marcando seus limites, que tomou uma decisão. — Vou pousar.
Essas pessoas precisam entender que agora sou seu soberano e enviarei
ajuda. — Sempre esteve em seus planos, mas não percebi a
profundidade da devastação nesta área.
Titus foi um idiota; acreditava que seu inimigo teria protegido seu
próprio povo, não os aleijado. Com tantas presas disponíveis, alguns
renascidos teriam rapidamente se transformado em muitos. — Presumi
que aquele saco de pus vazando teria pelo menos colocado uma
retaguarda cuja tarefa era eliminar qualquer renascido que fugisse para
o norte.
— As suposições são inimigas da coerência — disse Sharine.
Em outras palavras, você é um idiota.
— Nunca teria atacado meu próprio povo! — Saiu um trovão no ar
que fez os aldeões assustados sacudirem a cabeça para cima.
Sharine olhou para ele por um longo momento antes de inclinar a
cabeça. — Aceito isso. Sua honra o fez esperar muito de alguém que não
tinha honra. Lembre-se disso, Titus. — Uma intensidade feroz nela. —
Lembre-se de que há pessoas neste mundo que vão cruzar todas as
linhas e não se sentirão culpadas por isso.
Ele testemunhou essa feiura com Lijuan. A Arcanjo da Morte usou
crianças para seus próprios fins. Isso não era para ser suportado. E, no
entanto, ele cometeu esse erro, deixou o norte por muito tempo
abandonado. Sim, Sharine estava certa em castigá-lo. Ele foi tolo e essas
pessoas pagaram por isso.
Aterrissando no centro da vila, a poeira girando ao redor dele
enquanto dobrava suas asas, esperou até que ela caísse também antes de
pegar os aldeões. Não permitiria que ninguém dissesse que não cuidou
da Colibri enquanto estava sob seus cuidados – não que ela parecesse
querer ou mesmo precisar de sua preocupação.
Ninguém o avisou que ela era tão contraditória.
Todos os anjos mentiram para ele por uma eternidade? Certamente
isso era impossível.
— Bem — murmurou ela, pois no tempo desde o pouso, cada
aldeão vestido esfarrapadamente à vista havia caído no chão, seus rostos
pressionados na terra e suas mãos palma com palma na frente numa
pose de súplica que o perturbou no nível mais profundo.
Ele governava com mão firme, mas nunca procurou desfazer ou
humilhar ninguém, pois essas pessoas eram mães e pais, anciãos e
curandeiros com seu próprio orgulho e honra. Mas as pessoas à sua
frente não eram como as dele... embora pertencessem a ele agora.
Charisemnon, ele se lembrou, de alguma forma convenceu sua
população que levar suas filhas pequenas para sua cama era uma honra e
não uma perversão. A memória causou uma sensação de arrepio em sua
pele e sua voz era áspera quando disse: — Levantem-se! Quero falar com
seus rostos, não com suas bundas!
Choramingos sussurraram no ar, mas vários cidadãos trêmulos se
levantaram. Pelo menos alguns deles tinham alguma estrutura. Ao lado
dele, Sharine podia muito bem ser feita de ferro, de tão rígida que estava.
Sem dúvida teria palavras duras para ele quando estivessem sozinhos,
mas isso estava além do ridículo. — Por que tem tantos prédios
queimados na aldeia? — perguntou ele, querendo confirmar sua teoria.
Foi um homem velho e enrugado, com a barba inesperadamente
exuberante, quem respondeu, com a mão trêmula na bengala e os ossos
quase estalando. Mesmo assim, ele falou e, por isso, Titus olhou para ele
com respeito. — Os podres vieram — disse o velho em sua voz
sussurrante. — Pegaram alguns dos nossos e sabíamos que ninguém
poderia ser salvo.
Seu pomo de Adão balançou. — O último a ser atacado, ele viu o
que aconteceu com seus vizinhos e amigos, e antes que sua mente se
perdesse, ele se usou como isca para conduzi-los para uma das casas. —
Água escorreu de seus olhos. — Conseguimos trancar a porta e incendiar
a casa, salvando os que não estavam contaminados. E assim aprendemos
como matar os podres.
Titus pensou ter visto e ouvido falar de todos os horrores, menos
isso... — Alguém de seu pessoal sempre agiu como isca a partir de então?
O aceno brusco do palestrante foi seguido por um soluço abafado
da multidão, que rapidamente se acalmou. Um ser com o coração partido
pela perda de um ente querido.
— Os velhos fazem isso — murmurou o orador. — Eu sou o
próximo.
No entanto, ele estava aqui, a coluna curvada, mas a coragem
destemida. Na verdade, era um homem a ser respeitado, assim como
todos aqueles que vieram antes dele. — Quantas pessoas você perdeu?
— perguntou ele, já calculando como podia redistribuir tropas para
ajudar neste lado da antiga fronteira. — Tanto para os apodrecidos
quanto para o projeto de guerra.
A resposta o abalou; se estava certo em seus cálculos, a aldeia
perdeu pelo menos metade de sua população. Os sobreviventes tinham
uma espécie de resignação vítrea em seus rostos, seus corpos frágeis e
emaciados.
E... não viu crianças.
Isso era uma impossibilidade. Em todas as aldeias que já havia
pousado, viu o rosto curioso de uma ou duas crianças olhando para ele
por trás de uma porta ou de cima da escada. Eram inevitavelmente
curiosos, sorrisos esculpindo seus rostos e a energia saltando por seus
corpos. Um coração ousado se aproximava dele de vez em quando e
então Titus dizia à criança para vir se juntar à sua fortaleza quando
crescesse.
Nenhum pequeno coração batia em sua vizinhança hoje, a falta de
vozes agudas e olhos brilhantes uma dor aguda. — Os renascidos
levaram suas crianças?
Pelo medo que esculpiu o rosto do velho, ele de repente percebeu
que era algo completamente diferente. E se perguntou o que mais seu
inimigo tirou de seu próprio povo. Ele exigiu suas crianças? Para qual
propósito?
Seu estômago embrulhou. Era possível que Charisemnon tivesse, de
alguma forma, sido capaz de fazer o que Lijuan fez, e transformado os
membros mais vulneráveis de sua sociedade numa fusão horrível de
vampiro e renascido? Se sim, onde estavam?
CAPÍTULO 17

— Eu sou seu arcanjo — disse Titus do fundo de seu peito, então


seu tom vibrou em seus ossos. — Não precisam esconder seus filhos de
mim. — Era muito mais duro do que pretendia, mas precisava saber se os
moradores estavam escondendo crianças infectadas.
Por mais feio que fosse de se considerar, aquelas crianças já
estavam mortas, seu único objetivo era infectar cada vez mais até que
não restasse ninguém verdadeiramente vivo no mundo.
Os ossos do velho pareciam prontos para cair aos pés.
— Fique quieto — murmurou Sharine para ele, muito baixo para
qualquer outra pessoa ouvir. — Eu cuido disso.
Ele ficou tão surpreso com sua ousadia que ficou mudo. Ela deu um
passo à frente. — Estamos numa longa jornada — disse ela em sua voz
tão exuberante e rica em textura. — Não queremos nada de vocês além
de água e um lugar para descansar por um ou dois minutos. Sabem bem
que não podem esconder nada de um arcanjo. É melhor que sejam
honestos.
Novas lágrimas rolaram pelo rosto do velho enquanto ele
murmurava palavras para uma das mulheres próximas. Ela também
estava chorando, mas foi até uma porta próxima e a abriu, estendendo a
mão. Uma pequena mão apertou a dela e então saiu um garotinho com
sua própria mão segurando a de outra garota – e assim por diante, até
que uma fileira de cinco pequeninos ficou na frente de Titus.
Ao contrário da maioria das crianças que ficavam cara a cara com
um anjo, esses bebês não demonstraram admiração, apenas um medo
terrível que o destruiu. Não sabia o que fazer, olhou para Sharine em
busca de uma resposta. Sorrindo, ela caiu de joelhos, com as asas abertas
na terra atrás.
— Meu filho se parecia com você quando era mais novo —
murmurou ela para um determinado menino. — Sempre com sujeira nos
joelhos e arranhões nas bochechas. Ele partia numa aventura após a
outra.
Embora a criança não tenha respondido, Sharine continuou falando
com sua voz gentil e calorosa de amor até que aquele rostinho finalmente
se contraiu num sorriso. Enquanto Titus observava, Sharine acabou
sentada no chão com um círculo de crianças à sua frente, todos
extasiados com suas histórias.
Quando ela enfiou a mão na mochila e removeu as barras
energéticas que trouxe para si, entregando-as às crianças, elas pegaram a
comida com mãozinhas agradecidas. Logo, a menor de todas, uma garota
de talvez dois anos com um rosto magro e enormes olhos brilhantes,
estava sentada em seu colo.
Impressionado com a magia dela, Titus pensou em como podia
fazer o mesmo com os adultos. Mas ele não era como Sharine. E então fez
o que era natural para ele. — Gostaria de falar com você — disse ele ao
ancião que falou primeiro. — Você é, eu acho, o chefe desta aldeia.
Dois machos mais jovens começaram a dar um passo à frente, o
medo protetor envolvendo seus músculos, mas o mais velho balançou a
cabeça. — Eu irei, meu senhor Arcanjo. — Palavras sem fôlego, sua pele
perdendo sangue. — Até que eu vá embora, esse dever e qualquer
punição que tivermos de receber são meus.
Titus viu que estava dando tudo errado; olhou para Sharine mais
uma vez. A mente dela tocou a dele – não sabia que ela podia fazer isso,
mas como estava começando a aprender, havia muito que não sabia
sobre Sharine. Ela era um ser muito velho, e simplesmente porque
preferia viver num mundo de arte não tinha influência em seus níveis de
poder.
O mundo – e Titus –deveriam ter prestado atenção à maior pista
que existia: Illium. O filho de Sharine já estava sendo considerado um
futuro arcanjo, embora mal tivesse passado dos quinhentos anos de
idade. Por que todos assumiram que tal poder vinha apenas do sangue de
seu pai? Mesmo Raphael, filho de dois arcanjos, não foi tão violentamente
poderoso numa idade tão jovem.
Por que ninguém jamais considerou quais dons Sharine legou ao
seu filho?
Peça chá, disse ela em sua mente.
Eu não bebo chá, disse ele, depois de parar um momento para lidar
com a música de sua voz; era ainda mais exuberante a nível mental. Vão
pensar que sou louco se eu pedir chá.
Um estreitamento de seus olhos. Então peça cerveja, vossa senhoria
arcangélica. As últimas palavras não poderiam ser mais sarcásticas se ela
tivesse tentado.
Mas como ela parecia saber o que estava fazendo, ele olhou para os
jovens assustados e zangados que tentaram se levantar e disse: — Traga-
nos cerveja! — Então voltou sua atenção para o velho. — Você e eu
precisamos discutir o futuro desta aldeia agora que sou seu arcanjo.
O terror se abateu sobre os aldeões, prendendo os músculos aos
ossos e transformando seu sangue em gelo.
Querendo gemer, olhou impotente para Sharine. Isso nunca
aconteceu com seu próprio povo – confiavam nele. Teria que parar de
esquecer que Charisemnon ensinou seu povo a temer em vez de confiar.
Sharine deu um suspiro mental. As pessoas ficam me dizendo que
você é charmoso. CHARME.
Olhar para ela parecia uma ideia maravilhosa, exceto que sabia que
seu rosto poderia parecer assustador quando estava de mau humor, e
isso provavelmente faria com que os aterrorizados aldeões morressem
no local. Decidiu abrir um sorriso. — Devo avisar que matei aquele
furúnculo purulento, aquele excremento de cachorro, aquele insulto ao
Cadre que era seu arcanjo anterior.
ESSAé a sua ideia de charme?
Ignorando o comentário incrédulo, ele continuou: — Não sei o que
ele disse a vocês sobre mim; ouçam a verdade de meus próprios lábios –
eu o desprezava e tudo que ele representava. As únicas pessoas que têm
que temer represálias de minha parte são seus bajuladores e executores.
Esses, Titus não perdoaria, não importa o quê. Ao contrário desses
aldeões, os outros eram poderosos o suficiente para ter uma escolha –
mesmo que essa escolha fosse morrer com honra ou desertar para o
território de outro arcanjo. Ele estava bem ali na fronteira e protegeu
desertores anteriores. Não, nunca confiou nesses desertores, mas não os
prejudicou.
— Todos os outros — acrescentou ele, garantindo que sua voz
fosse transmitida —, especialmente os mortais que ele tratou como
presas, estão a salvo da minha ira.
Ira? Você precisava usar a palavra ira?
Foi preciso esforço para manter o sorriso preso no rosto.
Precisamos ter uma conversa sobre seu respeito pelos arcanjos.
Tive um filho com um, foi a resposta contida. Esse desperdício de
células imortais veste suas calças da mesma forma que qualquer outro
homem.
Felizmente, o chefe deu a Titus um sorriso trêmulo naquele
instante e Titus teve uma desculpa para voltar sua mente para outros
assuntos. — Está disposto a conversar? — perguntou ele, para ter
certeza de que o homem não estremeceria o tempo todo – não tinha
tempo para persuadir com palavras, precisava de informações
rapidamente.
— Sim. — Um firme – e ruidoso– acordo. — Se não se importa que
eu diga, meu senhor Arcanjo, estou feliz que tenha uma voz forte. Mal
consigo ouvir todos os outros – eles apenas sussurram e murmuram, e o
que há de bom nisso?
— Exatamente! — Titus ia dar um tapinha nas costas dele, só no
último minuto percebendo que provavelmente iria quebrá-lo; ainda fez
isso, apenas reteve a maior parte de seu poder.
Enquanto isso, dois aldeões montaram uma mesa um pouco abaixo
das crianças, agora colocaram um par de cadeiras lá. Nenhuma das duas
era adequada para as asas de um anjo, então Titus simplesmente virou
uma para o lado errado e montou nela.
O chefe se acomodou em frente a ele e esperou até que um dos
jovens servisse a cerveja antes de dizer: — Meu filho.
— Você está justificadamente orgulhoso — disse Titus, embora não
soubesse nada sobre o jovem. Veja, ele disse para seu próprio fantasma
pessoal. Posso ser educado e charmoso.
O bufo mental dela foi ainda mais alto desta vez.
Decidindo ignorá-la – deixá-la ver o que estava perdendo – voltou
sua atenção totalmente para o chefe. — Diga-me o que preciso saber. —
Então, por algum motivo que não entendeu, abriu um link mental com
Sharine para que ela pudesse ouvir a conversa.
Ser capaz de convidar outros para ouvir o que fazia não era uma
habilidade possuída por muitos, e só ganhou a capacidade na segunda
metade de seu reinado, mas era útil quando utilizada. Evitava repetir
informações.
Sharine não protestou contra o link.
— Preciso me atualizar com meu novo território. — Titus não tinha
nenhum desejo real de governar o norte da África; ao contrário de
alguns, não tinha fome de grandes áreas de território. Estava bastante
contente com sua metade do continente – era espaço suficiente para
acomodar seu poder como arcanjo e lhe permitia cuidar de seu povo
como desejasse.
Mas se tivesse que ter todo o continente sob sua asa por enquanto,
então faria um bom trabalho. — Você parece o tipo de pessoa que saberia
tudo que há para saber sobre esta aldeia e os arredores.
— Eu mantenho meus olhos abertos – mesmo que não possa ouvir
muito bem. — A risada do velho pareceu tirar o resto da tensão dos
moradores. O grupo finalmente começou a se dissipar – enviando olhares
admirados para seu arcanjo enquanto o faziam.
Titus permitiu que suas asas se abrissem, permitiu que os mortais
admirassem suas penas.
Nem um pouco óbvio.
Ele se perguntou por que abriu o canal, mas não o fechou. Vejo
minúsculas mãos mortais em suas asas, resmungou ele de volta. Os anjos
não permitem que qualquer um toque em suas asas.
Não é qualquer um –são bebês, foi a resposta afiada.
Por alguma razão bizarra, ficou tentado a sorrir; talvez tenha
comido cogumelos sem saber que estavam causando estragos em sua
mente. — Diga-me o que viu — disse ele ao chefe.
— Coisas sombrias. — A tristeza percorreu as costuras de seu rosto
envelhecido. — Não éramos um vilarejo rico antes de tudo começar, mas
éramos mais do que capazes de cuidar de nós mesmos e mandar nossos
jovens espertos para estudar na cidade. Então, suponho que éramos ricos
de certa forma. Muita comida, o suficiente para dar o dízimo ao arcanjo e
ainda...
— Dízimo? — Titus sabia que tais coisas aconteciam, mas a maioria
dos arcanjos tinha riqueza e poder mais do que suficiente para não se
incomodar – ou mesmo se tivessem, talvez porque preferissem apoiar
seu povo de outras maneiras, era uma quantidade menor. Com tantas
pessoas em cada território, um minúsculo alqueire de qualquer coisa
somava milhares de libras.
Titus não era fazendeiro, então sua corte apenas comprava
suprimentos daqueles que eram; isso mantinha seu povo prosperando
por suas colheitas compradas em bom valor para suas regiões de origem,
e significava que sua corte podia se concentrar em outros assuntos.
Mesmo agora, com ou sem ameaça de renascidos, pagava pelos
suprimentos – com seu povo sob instruções estritas de comprar apenas o
excedente, nunca o que o fazendeiro precisasse para sua própria família,
ou o que o assentamento precisasse para si mesmo.
O resto, Yash estava sendo enviado para territórios que não
lidavam com o flagelo dos renascidos. Ele se perguntou se Sharine sabia
que Yash recentemente comprou o excesso de azeitonas produzido pela
cidade de Lumia. Mas isso não era problema para hoje.
— Metade de nossa colheita. — O ancião engoliu em seco e pareceu
se recompor. — Sentimos muito, meu senhor Arcanjo. A maior parte de
nossa colheita foi destruída pelos renascidos. Nós podemos te dar o que...
Titus acenou para a próxima pergunta. — Não peço dízimo, embora
peça que todos aqueles que têm terras férteis continuem a plantar
quando puderem. Nem sempre podemos contar com fontes externas. —
Não era uma questão de orgulho, mas de praticidade. — A cadeia de
abastecimento nem sempre é garantida.
— Sim. Sim. Claro que é assim. — O chefe sorriu para Titus, mais
uma vez de bom humor. — Então, estávamos todos comendo bem e
vivendo nossas vidas. Então veio o mal. Os podres.
— Os renascidos?
— Sim, é assim que os mais jovens os chamam. Mas para mim, são
as trevas. — Ele tossiu, o som áspero e forte, um estertor em seu peito. —
Recebemos um pequeno aviso da chegada deles, pois colocamos
batedores nas árvores e gritaram que a escuridão estava chegando.
Um brilho úmido em seus olhos. — Mas calculamos mal a
velocidade das criaturas. Vieram muito rápido. — Seus ombros caíram.
— Perdemos os batedores. Nossos rapazes mais rápidos correram para
casa com a garganta ensanguentada e começaram a mudar diante de
nossos olhos...
Um longo momento em que ele engoliu em seco repetidamente. —
Sabe o resto, meu senhor Arcanjo. Depois que as queimadas começaram,
choramos por nossos perdidos enquanto as chamas lambiam o céu
noturno. Um era meu neto primogênito. Perdi minha nora mais velha no
próximo ataque.
Titus não conseguia imaginar a profundidade da dor desse homem.
Aqueles que viam os mortais como fracos e sem coragem nunca falaram
com alguém que experimentou uma perda como esta, uma perda rara
entre os anjos.
— Então as cabras começaram a ficar doentes, sua carne ficando
verde escura — disse o mais velho após um gole de cerveja, embora sua
voz permanecesse áspera. — Perdemos metade delas. Todos nós
estávamos com muito medo de comer a carne, então foi para o lixo. —
Ele tossiu. — O resto parece saudável, mas as estamos mantendo sob
vigilância constante.
— Quando foi isso? — perguntou Titus. — Os animais se
transformando?
— Cerca de três dias atrás? — O chefe coçou a cabeça e se virou
para gritar a pergunta para o filho.
— Três dias atrás — respondeu o homem.
— Sim, parece certo. — O chefe voltou para Titus. — Parece um
tempo infinito, mas se passaram apenas alguns dias.
— Como isso começou? — Ele precisava ter certeza de que não
estava no ar.
— Uma mordida — foi a resposta. — Suspeitamos que uma das
cabras tenha entrado em pânico e deu de cara com as que estavam
podres e foi aí que ela se infectou. Em seguida, atacou algumas outras
antes de percebermos o que estava acontecendo.
Titus conteve a expiração. Contível, ele disse a Sharine. Se
eliminarmos os renascidos, eliminamos o risco para os animais ao mesmo
tempo.
Pergunte se ele percebeu se os pássaros foram afetados. Eles têm aves
domésticas aqui, então ele não teria que olhar para o céu.
O significado de sua pergunta era uma flecha no fundo de seu
coração. Os anjos eram diferentes de quaisquer outras criaturas vivas
neste planeta – mas os pássaros eram os que mais se aproximavam. Não
em sua genética, mas no simples fato de viverem tanto tempo no céu.
— Algum dos seus animais não foi afetado pela doença? —
perguntou ele em vez de falar especificamente sobre pássaros. Não
podemos permitir que os humanos nos vejam como fracos ou vulneráveis,
ele lembrou a Sharine, que não era um arcanjo e não podia esperar que
considerasse essas coisas imediatamente.
Cada membro do Cadre sabia que se os humanos começassem a ver
os anjos como vulneráveis, poderiam enfiar na cabeça a rebelião contra o
governo imortal, e isso só podia ter um fim: a aniquilação dos mortais.
Os anjos precisavam de mortais, mas não precisavam de muitos
mortais.
Certos grupos de anjos eram conhecidos por murmurar que a raça
mortal precisava ser abatida ou ter sua população estritamente
controlada: Eles são insetos, pragas, exceto para um único uso. Encaixe-os
num canto do globo e envie cargas conforme necessário. Os mortais não
precisam infestar o planeta inteiro.
CAPÍTULO 18

Felizmente, a maioria dos anjos não vivia à margem do genocídio.


Mas a razão por trás da tolerância nem sempre era uma coisa gentil. Um
velho anjo disse sem rodeios a Titus: — Os humanos nascem e morrem
num ritmo tão rápido, surtos regulares de doenças devastando grandes
áreas de sua população ou vampiros movidos pela sede de sangue
matando vilas inteiras, que seu crescimento não é realmente um
problema.
No início, Titus acreditava que os fanáticos que defendiam o
genocídio parcial não consideravam que quanto menos humanos, menos
vampiros. E muitos dos mesmos velhos confiavam em vampiros para
quase tudo em termos de funcionamento de suas famílias, e qualquer
trabalho pesado necessário. Mas descobriu que haviam considerado isso.
Foi Uram quem contou esse fato a Titus cerca de cinco anos antes
de sua morte. — Os obstinados falam de fazendas humanas para
alimentar e manter os vampiros no mundo, com apenas um número
limitado de novos vampiros criados a cada ano – para substituir
qualquer um que esteja perdido. Mortais cultivados para o sangue teriam
seus cérebros intencionalmente atrofiados para que se tornassem
verdadeiro gado, enquanto qualquer toxina angelical extra seria injetada
no referido gado, que seria executado antes que a transição fosse
concluída.
O arcanjo de olhos verdes riu. — Quem eles acham que vai limpar o
gado, alimentá-lo e dar-lhe banho? Ou talvez estejam em enormes
fazendas com seus corpos permanentemente ligados a máquinas de
coleta de sangue. Isso se a transferência de toxina funcionar com todas as
mudanças – nossa espécie nunca foi capaz de explicar o porquê dos
mortais salvarem nossa sanidade.
Uram fez toda a ideia parecer ridícula... mas não ficou revoltado,
enquanto Titus teve que lutar contra o crescente em sua garganta. Às
vezes, se perguntava se isso foi um sinal precoce da loucura de Uram,
mas, novamente, muitos dos anjos mais velhos pensavam pouco em
discutir os humanos com tamanha falta de empatia.
Em frente a ele, o chefe franziu a testa. — As cabras foram as
primeiras — murmurou para si mesmo.
Enquanto Titus ouvia com paciência forçada, o macho mais velho
passou por vários animais da aldeia, incluindo cães e gatos domésticos.
— As galinhas! — Ele sorriu. — Sem estranhezas com nossas galinhas. E
também os gatos.
— Nós comemos algumas das galinhas desde então e não foram
afetadas, então acho que elas devem ser mantidas em segurança por
estarem em seu galinheiro. Quanto aos gatos, são muito rápidos e bons
em escalar, então provavelmente escaparam de ser arranhados pelos
apodrecidos. Também deve ser dito que os gatos fazem o que querem.
Jogando a cabeça atrás, Titus riu. — Os gatos são como as mulheres
— disse ele depois de sua alegria. — Imprevisíveis e capazes tanto de
silvar e arranhar como ronronar.
O chefe gargalhou, mas a voz de Sharine estava fria em sua cabeça.
Estou surpresa que Tanae não tenha matado você enquanto dormia.
Tanae não é uma mulher. Ela é uma guerreira.
Ah, tudo está claro agora. Você faz tanto sentido. O tom de sua voz o
declarava um imbecil.
Adicionando isso à sua lista de infrações contra um arcanjo, Titus
voltou a sua conversa com o chefe. — Notou alguma diferença entre o
primeiro ataque dos renascidos e os que vieram depois?
— Nós sobrevivemos a três pesadelos, e cada grupo de podres era
mais rápido — disse o mais velho sem hesitar. — Meu filho e os outros
jovens dizem que também parecem caçar mais em grupo. Uma matilha.
Ele passou a mão pela barba grisalha. — Muitos de nós também
acreditamos que seus rostos e corpos também mudaram, embora seja
difícil dizer com certeza – os vi apenas em vislumbres fugazes enquanto
lutávamos com fogo.
O chefe indicou as tochas flamejantes que Titus viu de cima. — É
por isso que alimentamos religiosamente essas chamas – para que não
cheguem perto. — Outra tosse seca antes de retornar ao assunto em
questão. — Os primeiros apodrecidos pareciam humanos, exceto pela
loucura. Os que vieram depois... havia algo retorcido em seus corpos e
andavam de uma maneira que acho difícil de descrever.
Ele passou a mão no antebraço oposto. — Minha pele é do marrom
escuro do solo mais rico, assim como a sua – se me permite a ousadia de
nos comparar até mesmo desta forma. A pele da minha esposa é mais
escura ainda, um ébano reluzente que voltou em nosso terceiro neto
mimado e amado. — Uma sugestão de sorriso. — Mas você vê que temos
pessoas do norte em nossa aldeia, e até mesmo Pieter, que se casou com
nossa Sarra; ele tem pele branca que queima antes de alterar sua
tonalidade.
Desta vez, a tosse do chefe fez Titus empurrar a cerveja do outro
homem para ele. Após tomar um gole, e embora sua voz continuasse
rouca, o outro homem disse: — Então ouça quando digo que conheço os
matizes mortais. A pele dos apodrecidos escureceu, mas não de uma
forma que a carne comum possa fazer.
Mastigando o lábio inferior, as sobrancelhas grossas se juntando, o
chefe olhou sem ver a mesa. — Eles mudaram de cor da mesma forma
que um pedaço de fruta quando apodrece por dentro, um tom
esverdeado abaixo da casca, a escuridão que espalha uma contusão
doentia.
— Eu entendo exatamente. — Titus terminou sua cerveja,
precisando do gosto para lavar a feiura do que o chefe estava
descrevendo. — Há mais alguma coisa que eu deva saber?
— Eu disse a você tudo que podia pensar em dizer, mas se permitir,
meu senhor Arcanjo...
— Pode me chamar de Arcanjo ou Arcanjo Titus. Não precisa
adicionar mais nada. — Tais acréscimos não passavam de afetações.
Lady Sharine era uma deferência boa e apropriada, mas cada membro do
Cadre já tinha um título. Arcanjo por si só era o título mais poderoso do
mundo.
Alguns, como Caliane, aceitavam Senhora– ou Senhor– como um
título alternativo, mas ele nunca ouviu falar de ninguém no Cadre usando
dois títulos juntos. Com certeza Charisemnon escolheu outro método
para alimentar sua vaidade.
— Arcanjo Titus — disse o chefe solenemente. — Se permitir, eu
farei uma pergunta.
— Pergunte, mas a pergunta deve ser rápida. — Ele baixou a
caneca. — Devo partir em breve, mas voltarei para falar com você no
futuro, depois de resolvermos os problemas mais significativos em mãos.
— Titus esperava que o velho conseguisse chegar à próxima conversa,
mas sabia muito bem que as chamas mortais se apagavam com uma fúria
rápida que o queimou em mais de uma ocasião.
Havia uma razão pela qual Titus tentava não se tornar muito
próximo dos mortais; fez amigos mortais em sua juventude... e os
lamentava até hoje. Aqueles que viam os mortais como gado nunca
dançaram perto de suas pequenas e brilhantes luzes e foram
chamuscados no rescaldo. Quebrou seu coração pensar em amigos
perdidos, dons perdidos para sempre, mentes deslumbrantes
silenciadas.
O chefe respirou fundo, parecia segurá-la antes de exalar
suavemente em sua pergunta. — Quantas de nossas filhas deseja como
dízimo?
A raiva era um trovão tão violento em suas veias que estava prestes
a jogar a cabeça paratrás e rugir para o céu quando uma voz fria, nítida e
adorável falou em sua mente: Não aterrorize essas pessoas quando você e
seu alardeado charme fez uma incursão em sua confiança. Foi preciso uma
coragem incrível para ele fazer essa pergunta. Não é um insulto a você,
mas um insulto para quem está diante de você.
Titus foi tão pego de surpresa pelo tom de sua voz – ninguém falava
com ele assim, nem mesmo sua mãe ou irmãs – que sua raiva se
transformou num insulto em brasa. Faria bem em lembrar que sou um
arcanjo, Sharine.
Nunca me esqueço, foi a resposta inabalável. Mas, como mencionei,
tive um filho com um. Tire as armaduras externas e ele ainda terá as
mesmas partes que qualquer outro homem. Exatamente. Como. Você.
Não temos as mesmas partes, disse ele, loucamente, com raiva num
nível tão profundo que raramente vinha à tona. Nunca me compare com
esse...ele se interrompeu, sem saber que insulto seria bom o suficiente.
Não sabia tudo que Aegaeon fez para Sharine; o que sabia o fazia franzir
os lábios. Que homem honrado escolheria deixar seu filho para trás,
escolheria partir um coração pequeno e valente?
Titus, Titus! Olha, eu posso voar bem agora!
Illium não se lembraria de ter conhecido Titus quando criança, mas
Titus se lembrava do menino pequeno e destemido de asas azuis que
cruzava maliciosamente o território do Refúgio de Aegaeon para o de
Titus numa base regular. Ele gostara da coragem e bravura do pequeno,
pensava que Aegaeon era um homem sortudo por ter um filho assim.
— Arcanjo, eu não queria irritá-lo. — O chefe era um marrom claro
de como seu sangue correu para seus pés – um feito e tanto com a pele
tão escura quanto a deles.
Titus se recusou a olhar para Sharine. — Não estou zangado com
você — disse ele, todos os músculos de seu corpo travados numa dureza
de pedra. — Estou com raiva daquela mancha de mijo na terra que você
uma vez chamou de arcanjo. — Não estava disposto a conter seus socos;
não era como se a humanidade já não soubesse da inimizade entre ele e
Charisemnon.
— Não quero suas filhas ou suas mulheres – qualquer um que
deseje se candidatar a um cargo em minha cidadela por sua própria
vontade é bem-vindo a fazê-lo, uma vez que sua aldeia não precise mais
de ajuda para sobreviver. — Ele esmagou o metal de sua caneca, mal
notando o dano. — Não preciso nem quero que meninas esquentem
minha cama. Tenho muitas mulheres fazendo fila para fazer o mesmo.
Pare. Pare. Sua modéstia oprime.
Na verdade, ela foi enviada para atormentá-lo. Não é bravata ou
presunção quando é a verdade.
Para o chefe, ele disse: — Isso responde à sua pergunta?
Os olhos do chefe estavam úmidos e brilhando quando ele se
levantou com Titus. Uma vez lá, se curvou tão profundamente que Titus
temeu que ele tombasse. O instinto o fez estender a mão para pegar o
ombro do homem, e dizer: — Não há necessidade disso. Nós
compartilhamos cerveja. Você viveu até ter uma barba grisalha e
aprendeu sabedoria com isso.
Embora este homem tivesse apenas uma fração da idade de Titus,
as vidas humanas se moviam numa velocidade diferente, então havia
coisas que o chefe entendia que Titus não entendia e não entenderia por
muitas eras.
Isso o fez se perguntar o que Sharine experimentou durante sua
longa vida imortal, as lições que aprendeu... os hematomas que
carregava.
Ela veio ficar ao lado dele naquele instante, uma expressão em seu
rosto que ele não conseguia compreender. Já que não fazer perguntas
não ajudava em nada a mantê-la amena e contente, decidiu que podia
muito bem pedir que ela explicasse – e o faria, uma vez que estivessem
sozinhos. O que aconteceria em breve, decolando assim que acabassem
as despedidas.
Titus deixou Sharine ir primeiro para que não fosse golpeada pela
corrente de ar criada por suas asas mais poderosas. — O que? — disse
ele uma vez que estavam de volta na rota de voo. — Cresci uma segunda
cabeça?
— Não, — disse elaapós um olhar penetrante — digamos que estou
surpresa pela sua capacidade para certos tipos de compreensão.
No que diz respeito aos elogios indiretos, foi um dos melhores já
infligidos a Titus; até mesmo Nala teria dificuldadede melhorá-lo, e sua
irmã era famosa por seu humor ácido. Nala não falava muito, mas
quando o fazia, causava impacto. — Como acha que cuido do meu
território? Sendo um bruto imprudente?
— Tal curso de ação certamente parece ter funcionado para
Charisemnon.
Titus ia responder e então calou a boca. Ela estava certa.
Charisemnon governou com força bruta na maior parte do tempo – mas
isso não era tudo dele.
— Por mais que eu quisesse que ele fosse lembrado como um idiota
perverso, ele tinha um tipo de astúcia que jamais possuirei. — Uma
verdade simples. — Charisemnon podia manipular seu povo de
maneiras que considero difíceis de compreender. Embora ele tenha
levado seus filhos, suas filhas muito inocentes e jovens para estarem na
cama de um homem, eles o reverenciavam.
— Mesmo na aldeia do chefe, haverá alguns que pensam nele como
o tipo certo de arcanjo, em mim como muito rude e não refinado em
comparação com sua sofisticação. Os horrores da guerra e dos
renascidos rasgaram o véu da maioria dos olhos, mas por que demorou
tanto? Por que, por uma parte tão longa de seu reinado, ele foi adorado
como um deus?
— Porque eles não tinham escolha. — A voz de Sharine correu
sobre ele como água, sedosa e fria ao mesmo tempo. — Ele era um ser de
poder devastador – assim como você é um ser de poder devastador; eles
não tinham nenhuma via de recurso. Ou viviam sob seu governo e
encontravam uma maneira de racionalizá-lo ou morriam, provavelmente
torturados e quebrados.
— Isso não é verdade! — Titus ficou furioso. — Eles poderiam ter
cruzado a fronteira para mim.
— Deixando para trás tudo que sempre conheceram? Deixando
suas famílias? O tempo todo sem saber se você era diferente?
Nada frio ou nervoso em seu tom desta vez, uma profundidade de
conhecimento comovente. — Para os mortais, os arcanjos são todos um e
o mesmo. O Cadre está muito acima da existência mortal para entendê-
los verdadeiramente.
— Você é quase uma Antiga — disse Titus, sem saber por que
ninguém nunca se referia a ela como tal – talvez fosse a sensação de
frescor brilhante que se apegava a ela. — Não está mais próxima dos
mortais do que eu.
— Antes de Lumia, eu estava ainda mais longe. — Palavras
surpreendentes, suaves e pesadas. — Perdida nos caminhos
fragmentados da minha mente.
Titus tinha tantas perguntas, mas não fez nenhum movimento para
seguir essa linha. Ninguém se tornava como ela, a menos que fosse uma
dor terrível. Não esfregaria aquela dor crua de novo, não importa o
quanto ela o irritasse.
— Desde que me mudei para Lumia, no entanto, e me estabeleci na
cidade adjacente — continuou—, passei a ver os mortais não como uma
massa sem rosto, mas como indivíduos. Sei que alguns são engraçados e
doces. Outros são corajosos.
— Outros ainda têm escuridão em seus corações. E sei que fora de
Lumia, a maioria dos mortais nunca esteve em contato próximo com um
anjo. A ideia de falar com um arcanjo... Está além da compreensão deles.
Sharine sabia que estava sendo dura com Titus; a verdade era que
ela não conseguia evitar. Era simplesmente porque ele a lembrava tanto
de Aegaeon. Seu ex-amante tinha a mesma confiança, a mesma
arrogância com ele.
Embora começasse a pensar que Titus tinha um coração muito
maior. Grande o suficiente para governar este continente e trazê-lo de
volta da beira da ruína. Era tentador admirá-lo por suas linhas morais
claras e recusa em se aquecer em seu poder, mas Sharine não estava
prestes a cair no impulso.
Especialmente quando já se sentia suscetível a seus sorrisos
devastadores. Não, a última coisa que Sharine precisava era começar a
admirar o Arcanjo da África. O grande, impetuoso e belo Titus usaria
qualquer admiração para pisar nela. Não porque fosse cruel, mas porque
era Titus.

CAPÍTULO 19

Avelina, seu Titus me desafiou a escalar uma montanha – e o maldito


filhotinho me bateu! Para amenizar minha honra mortalmente ferida, o
desafiei a descer no escuro. É bom que ele não conheça aquele terreno tão
bem quanto eu, caso contrário, teria me batido de novo, sem remorso.
Agradeço por me confiar o presente de seu filho. A cada século que
passo com ele sob meu comando, ele se torna menos um adolescente e mais
um homem que considero um amigo. É estranho para alguém tão velho
quanto eu ter um amigo jovem, mas acho que o teria considerado um
amigo, não importa em que ponto da vida o tenha conhecido.
Logo chegará a hora em que ele deixará minha corte. É inevitável. Ele
deve aprender mais sobre o mundo, aprender mais sobre si mesmo. Mas
sempre terei um lugar para ele no meu exército.
Aproveite sua estada com Euphenia. Diga à criança que ela me deve
um concerto.

– Carta do Arcanjo Alexandre a Primeira General Avelina

CAPÍTULO 20

Depois de voar por mais dez minutos, Sharine disse: — O que você
tem contra Aegaeon? — Ela ficou surpresa com a profundidade da raiva
de Titus quando fez a comparação entre um arcanjo e outro.
Titus lançou-lhe um olhar mais sombrio que qualquer outro que ela
já viu em seu rosto. — Tenho irmãs, sabe disso?
Sharine franziu a testa. Talvez soubesse disso uma vez, mas se sim,
não conseguia colocar seus dedos mentais no conhecimento. — São mais
velhas do que você? — perguntou ela em vez de responder.
— A mais nova tinha mil anos quando nasci. Minha irmã mais velha
tem agora cerca de oito mil anos.
— É uma mãe que você compartilha ou um pai, ou ambos?
— Zuri e Nala são gêmeas, portanto compartilham os pais. Nós, os
outros cinco, estamos ligados pela nossa mãe, Avelina. Minhas irmãs —
murmurou —, também estão ligadas por seu temperamento irritante
compartilhado.
— Sua mãe é muito fértil. — Sharine sentiu a pontada de inveja e
admiração, pois tal fertilidade não era frequentemente encontrada em
sua espécie.
— Ela também adora crianças e é brilhante em criá-los para serem
anjos fortes e honrados – tenho certeza de que teria outro irmão agora,
se a primeira general não decidisse adormecer um milênio após meu
nascimento. Na verdade, minha mãe teria que espancar os homens com
um pedaço de pau se não fosse tão formidável que eles não ousassem
atacá-la sem permissão.
Seu orgulho por sua mãe era aberto, assim como sua afeição
exasperada por suas irmãs. Mais uma vez, o coração dela ameaçou se
abrir para ele, este homem tão direto sobre seus amores e ódios. Com
Titus, nada estava escondido, nada era um jogo sutil. Apesar de tudo que
ela disse a si mesma, ele não era nada como Aegaeon, exceto pelo fato de
ambos serem arcanjos.
Isso tornava Titus muito mais perigoso para ela do que imaginava.
— Minhas irmãs são igualmente desejadas — disse ele, com uma
careta que só um irmão poderia fazer. — Aegaeon fez uma jogada para
Charo, a estudiosa entre nós. Muito espirituosa com seus amigos, mas
tímida com outros. Ele a machucou.
A potente simplicidade dessa declaração atingiu duramente. — Sim,
ele é esse tipo de homem. — Alguém que parecia não ter nenhuma
empatia tão evidente como o filho de Sharine. — Ele me machucou
também.
— É por isso que estava perdida? — perguntou Titus, então fez um
som resmungão. — Todos os anjos dizem que a Colibri está perdida em
seu próprio mundo, mas, infelizmente para mim, você parece estar bem
presente e consciente em meu mundo.
Seus lábios se contraíram, sua diversão uma surpresa para si
mesma. Mas seu resmungo foi tímido, na melhor das hipóteses... e isso
era uma surpresa. — Não fragmentei porque ele me deixou —
esclareceu, pois a ideia de Titus vê-la como frágil era insuportável. — Eu
tinha um filho pequeno que amava com todas as partes de mim. Illium
era minha razão de ser.
— Então o que? — perguntou Titus em seu volume normal.
— Por que acha que tem o direito de me fazer essa pergunta?
Ele encolheu os ombros. — Como vou descobrir alguma coisa se
não perguntar? Não é como se eu estivesse segurando seus pés contra o
fogo para forçá-la a responder.
Era tão Titus falando que ela sentiu o riso estourar as costuras de
seu ser, um prazer tão divertido como não sentia há muito, muito tempo.
Ela ria com o filho às vezes, mas isso era diferente, um momento entre
mãe e filho. Isso, rir com Titus, parecia uma coisa adulta que reforçava
seu sentimento de integridade.
Ele estava olhando para ela quando prendeu a respiração e olhou
para ele, seus olhos atordoados. — Sósia — disse ele finalmente, o
estrondo de sua voz rouca. — É a única explicação.
Rindo novamente, ela enxugou as lágrimas... e teve que lutar contra
o desejo de voar e puxar seus lábios carrancudos num sorriso. Um
impulso infantil para uma velha imortal, mas Sharine não se sentia velha
naquele momento. Talvez fosse porque este martelo cego de arcanjo dera
a ela o dom do riso, e talvez fosse porque era a hora, mas ela disse a ele a
verdade.
— Para entender por que minha mente se partiu — disse ela —,
deve entender minha história. — Um único olhar e sabia que tinha toda a
atenção dele – embora ele continuasse a esquadrinhar a paisagem
enquanto voavam. — Eu amei um homem chamado Raan no início da
minha existência. Já havia passado da minha maioridade uma década e
ele tinha milhares de anos quando nos apaixonamos.
Titus rosnou parecido com um dos leões que vagavam por suas
terras. — Ele não deveria ter colocado as mãos em você.
A raiva era um chicote em sua voz quando ela o esclareceu. —
Mesmo com o dom da retrospectiva, posso dizer que não houve coerção,
nem manipulação. Algumas almas são feitas apenas para se encontrar e
se entrelaçar.
Um silêncio teimoso de Titus antes que ele soltasse um suspiro. —
Me tornei amigo de Alexander quando era um filhote de cerca de
duzentos anos. Ainda somos amigos, embora ele seja um velho arrogante.
Demorou um segundo. — Está falando do Arcanjo Alexandre? —
Caliane o chamava de Alex, mas a amizade deles sempre foi uma amizade
profunda, bem diferente da de Sharine com Caliane.
Quando Titus assentiu, ela balançou a cabeça. — Você me
surpreende, Titus. — Não era mentira; Alexandre era um Antigo, seria
um Antigo durante a juventude de Titus, e ainda assim ela podia ver
porque o arcanjo havia gostado do jovem guerreiro indubitavelmente
impetuoso que Titus fora.
— Minhas desculpas ao seu Raan — disse ele. — Se você diz que ele
era um bom homem, ele era um bom homem.
Isso a abalou, o quanto essa confiança significava para ela. Titus, ela
sabia, não considerava honra levianamente. Engolindo em seco contra a
onda de emoção, desviou o olhar de seu perfil bonito e continuou. —
Passamos meio século felizes juntos. Então Raan morreu.
Titus parou de voar, mergulhando uma fração no céu antes de
voltar a pairar. — Batalha?
— Não, acordei uma manhã e ele estava morto ao meu lado. — Ela
podia falar essas palavras agora e sentir apenas uma tristeza distante;
mas sempre lembraria e amaria Raan, mas não estava mais presa nas
gavinhas pegajosas que o passado exalava.
Titus começou a voar novamente, mas ficou em silêncio por um
bom tempo. Ela deu-lhe tempo para digerir a notícia, ciente de que era
uma grande coisa para um imortal aceitar que a morte pudesse vir sobre
eles, silenciosa e invisível. Não importava que as mortes de Raan e de
seus pais fossem as últimas que soube em eras de sua existência – que a
possibilidade de existir era uma história de terror para os anjos.
— Não sei como entender isso — disse ele por fim.
Ela gostava dele ainda mais por sua honestidade. — Levei muito
tempo, mas, Titus, há mais. Deseja ouvir? — Agora que ela abriu a porta,
descobriu que queria falar sobre isso. Apenas outra pessoa conhecia toda
sua história, e Caliane ainda estava no anshara.
— Sim. — A resposta de Titus foi firme. — Eu ouviria tudo.
— Meus pais entraram no Sono quando eu tinha 85 anos de...
— O QUE? — Foi um estrondo tão alto que ela meio que esperava
que o céu se abrisse. — Seus pais deixaram uma criança sozinha?!
— Eu dificilmente era uma criança. — Mas era uma criança
assustada que passou a vida inteira tentando se apegar a pais que nunca
estiveram presentes. — Mas essa não é a história.
— Não sei se meu coração aguenta mais — disse ele, com raiva,
mas vibrante em seu tom. — Quando seus pais acordarem, certifique-se
de que não esteja por perto. Minha fúria certamente queimaria a carne
deles até os ossos.
— Meus pais estão mortos — disse ela suavemente, essa dor ainda
mais desbotada que a dor da morte de Raan, por aquele adeus de quando
era criança, sem nunca saber se os veria novamente. — Fui verificar o
local de sono deles quando tinha dois séculos de idade e descobri que
seus corpos eram apenas ossos, sua carne pó.

Titus se virou para olhar para ela, sua mente incapaz de


compreender a profundidade de sua perda. Sua voz radiante estava
quieta de tristeza, mas a tristeza não era uma faca afiada. Não, não seria,
não depois de tantos milênios. — Meu coração se partiria se eu fosse
verificar minha mãe e descobrisse que ela havia partido.
Pensar na primeiro general Avelina que saiu deste mundo num
silêncio poeirento... era tão errado que não suportava imaginar. Assim
que fosse seguro, iria visitar sua mãe, ver se ela estava aquecida e
inteira... como os pais de Sharine nunca mais estariam.
— Meu coração se partiu — disse ela —, mas acho que não da
mesma forma que o seu. — Ela angulou suas asas para aproveitar ainda
mais o rastro que ele estava criando, e ele percebeu que ela estava
cansada. — Meus pais eram anjos velhos, e eu sabia desde a infância que
um dia me deixariam.
Titus simplesmente não conseguia imaginar pais que
abandonariam seu filho vulnerável, mas então, Aegaeon fez o mesmo. —
O abandono de seu filho por Aegaeon? Isso te lembrou da perda de seus
pais?
— Não, as linhas de fratura estavam num lugar diferente. — Uma
mecha de cabelo que escapou de seu rabo de cavalo beijou sua bochecha
antes de voar de volta. — A morte, você vê, era meu maior medo.
Especificamente, as mortes silenciosas e sem testemunhas daqueles que
eu amava.
A pele de Titus ficou fria com uma raiva tão profunda que não tinha
nome. — Ele foi dormir na sua cama. — Para que, quando ela acordasse,
fosse para um anjo imóvel e indiferente. Seu cérebro traumatizado não
teria dado sentido ao único sinal de vida – certo calor da pele.
Para Sharine, Aegaeon pareceria como um morto.
— Seu segundo e três outros de sua corte mais íntima chegaram
uma hora após o amanhecer, para levá-lo ao seu lugar secreto de
descanso. — Fúria em cada sílaba. — Eu choramingava num canto, meu
punho enfiado na boca para abafar meus gritos. Minha mente
balbuciando que todos que eu amava morriam. Repetidamente num loop
infinito, esse era meu único pensamento.
— Depois que acordei pela primeira vez, corri para verificar Illium.
Em meu pânico gritante, esqueci que meu filho estava com seu melhor
amigo naquela noite, e quando vi sua cama vazia, estava convencida de
que ele estava morto e alguém havia levado seu corpo. Naquele
fragmento de tempo, realmente acreditei que meu filho estava morto.
Nenhum tremor em sua voz ao terminar a história. — A única
misericórdia em tudo isso foi que Illium não teve que ver sua mãe
quebrar e seu pai ser carregado para fora de sua casa por um esquadrão
solene em trajes completos.
A mandíbula de Titus se contraiu, sua mão cerrada em punhos
rígidos. — Há muito tempo sei que Aegaeon é um inútil, mas agora sei a
profundidade de sua crueldade. — Se o segundo do arcanjo sabia que
devia vir atrás dele, então Aegaeon planejou isso. A maioria dos arcanjos
adormecia sem aviso e sem ajuda, então seu lugar de descanso seria
secreto; foi uma medida da crueldade de Aegaeon o fato de ter escolhido
permitir que pelo menos quatro de sua corte soubessem de seu local de
descanso para destruir Sharine.
— Nunca soube por que ele fez isso — disse Sharine, e naquele
momento, estava magnífica em sua raiva fria. — Se eu o vir novamente,
vou perguntar a ele – se puder me impedir de primeiro esfaquear seus
olhos.
Titus aprovou sua necessidade sanguinária de vingança.
— Às vezes acho que devo liberar a raiva — disse ela —, que minha
vingança deveria ser apagá-lo de meus pensamentos.
— Pode apagar seu rosto e seus olhos ao invés — murmurou Titus.
— E liberar sua raiva na carne dele. — Ainda não seria o suficiente.
Uma explosão inesperada daquela risada surpreendente que era o
sol caindo numa chuva sobre ele. Ele apertou seu intestino contra a
glória disso. Se a achava bonita antes... bem, se a Colibri era linda,
Sharine com sua língua afiada e risada dourada era extraordinária.
Lutando contra o desejo de tocá-la, este ser fora de seu alcance, ele
disse: — Devo supor que não tem mais sentimentos pelo burro verde-
azulado? — Ele tinha que quebrar o momento, quebrar seu fascínio. —
Se está sofrendo por ele, admita agora para que eu possa te castigar por
seu mau gosto.
— Me castigar? — Sharine não podia acreditar que ele estava
falando sério, mas ele parecia muito solene. — Certamente você tem
alguém em sua corte que ocasionalmente estala a bolha de seu enorme
ego?
Sua resposta foi um trovão de som. Mudando de posição, ele voou
para longe dela. Ela o observou partir sem preocupação, sabendo que ele
não a deixaria para trás. Titus cumpria suas promessas.
Quando ele voltou depois de ficar emburrado por apenas cinco
minutos, foi para dizer: — Como enganou a espécie angelical fazendo-a
pensar que é uma criatura suave e etérea? Você se sentava todas as
noites em sua casa e ria do jogo que jogava?
Encantou-a que, apesar de tudo que ele sabia dela agora, ele a
tratava exatamente da mesma forma. Nenhuma pena ou mesmo uma
sugestão de sentir pena dela. Titus, ao que parecia, não estava vendo a
Colibri, mas Sharine– e queria começar uma briga com ela. Sharine
descobriu que não era avessa a cruzar espadas com o Arcanjo da África.
Era perigosamente estimulante.
— Assim como tenho certeza de que você deve sentar-se em seu
quarto à noite e pensar em palavras cortantes que deixem as mulheres
caindo aos seus pés. — Ela agitou os cílios para ele. — Por favor,
experimente seu encanto preparado em mim. Prometo ser um público
receptivo.
— Você foi enviada por minhas irmãs. — Um olhar horrorizado. —
Elas não podem me atormentar pessoalmente, então enviaram você para
me atormentar por procuração.
Pensar em Titus como um irmão mais novo sitiado a surpreendeu e
intrigou em igual medida. Ela tinha tantas perguntas, mas não havia
tempo para fazê-las porque abaixo deles veio um movimento
espasmódico e não natural que fez seu sangue gelar. — Titus.

CAPÍTULO 21

— Eu vi isso — respondeu ele, toda a irritação desaparecendo de


seu tom e sua atenção uma lâmina.
Alcançando suas costas, desembainhou suas espadas. Ela ia
perguntar a ele por que simplesmente não usava seu fogo para limpar a
terra, mas a resposta estava lá em sua pergunta. A terra já foi devastada
pelas queimadas que seu povo teve que fazer para se proteger. Levaria
tempo para o solo se regenerar, para que qualquer veneno dos corpos
em decomposição dos renascidos se dissipasse.
Muito melhor que Titus derrubasse a horda de escravos com as
armas brilhantes em suas mãos do que criar outra cicatriz na terra.
Fique aqui, ele ordenou enquanto começava a cair do céu. Você não
tem as habilidades para evitar as criaturas de perto.
Ela não se eriçou; a verdade era a verdade. Pelo menos trinta dos
renascidos lutavam sob a luz do fim da tarde. Os seres apodrecidos
estavam reunidos em torno da carcaça dos membros longos de uma
girafa que pareciam ter derrubado. Vou permanecer no ar e fora de
alcance.
Os renascidos deviam estar desesperados para recorrer à
alimentação de um animal. Pela maneira como se moviam, no entanto,
enquanto a carne animal os mantinha funcionais, não os estava
revitalizando de verdade – não tinham o movimento suave dos que se
alimentavam de humanos. Querendo ajudar de uma forma que não a
tornasse uma distração fatal, voou para onde pudesse ver toda a batalha;
dessa forma, podia avisar Titus caso uma criatura estivesse prestes a
atacá-lo.
O poder envolveu sua mão, como se convocado por seu medo por
ele – sim, ele era um arcanjo, mas havia muitos renascidos e podiam
causar danos maciços ao seu corpo, incluindo arrancar suas asas.
Curvando os dedos, segurou o poder com um esforço significativo.
Interviria apenas se parecesse que Titus precisava de ajuda... porque
embora tivesse todo esse poder antigo e rico, tinha pouca experiência
com seu objetivo. Não podia se dar ao luxo de errar com Titus lá
embaixo, seu grande corpo cercado por monstros.

Titus levou o primeiro círculo de renascidos ao pousar nos restos


da carcaça do animal que eles derrubaram. Era bom que suas botas
fossem sólidas, chegassem até a panturrilha e fossem impenetráveis para
o sangue e as vísceras em que estava enquanto varria suas espadas num
movimento de tiro rápido que cortava cabeças renascidas tão
rapidamente que um ainda não havia caído no chão quando outro se
juntava a ele.
Suas asas eram sua maior vulnerabilidade – essa interação de
criaturas apodrecidas e vorazes desenvolveu garras em forma de gancho
e afiadas. Como resultado, ele teve que continuar levantando quando eles
se aproximavam demais, e então descia novamente para decepar suas
cabeças.
Anteriormente, estes renascidos famintos simplesmente
continuariam vindo, máquinas estúpidas movidas pelo desejo de se
alimentar. As novas linhagens pareciam ter ganhado uma aparência de
instinto de autoproteção – mas pelo estado emaciado de seus corpos,
este ninho estava morrendo de fome e, portanto, desesperado demais
para desistir da luta, correr.
Rosnando, assobiando, cuspindo fluido pútrido, continuaram vindo.
Atrás de você!
Ele girou para eliminar aquele que estava prestes a atacar sua asa...
e viu que a criatura já estava caindo, uma lâmina em seu olho. Sorrindo,
arrancou a lâmina e a girou de volta para Sharine, enquanto pisava com a
bota no peito do renascido. Preferia uma decapitação limpa, mas outros
três vinham em sua direção e esmagar seu coração em polpa os impedia
de seguir em frente.
Quando decolou da próxima vez, fez um balanço dos números
restantes. As criaturas gritavam e o agarravam, seus rostos contorcidos
numa caricatura de vida. Adrian, o primeiro renascido que Lijuan exibiu
para o resto do Cadre, era um homem de pele escura e brilhante e olhos
castanhos ricos, e possuía uma mente. Mente o suficiente para entender
que sua deusa o transformou numa abominação.
Titus ainda conseguia se lembrar de como o sangue, escarlate e
úmido, escorreu pela pele branca de Lijuan depois que Adrian afundou
suas presas em seu pescoço num esforço inútil para acabar com o
pesadelo, acabar com sua deusa. Os olhos do homem renascido
continham uma tristeza infinita – e uma dor tão profunda que havia
arranhado os ossos de Titus.
Adrian foi o último renascido verdadeiramente inteligente que
Titus já viu.
Não querendo arriscar outra deserção, Lijuan os transformou em
máquinas estúpidas que só queriam se alimentar. Não importava se uma
pessoa era um estudioso ou guerreiro antes de ser infectada, a infecção
que o trazia de volta dos mortos também apagava todas as evidências de
quem foi em vida.
Por tudo que Titus sabia, algumas dessas pessoas já estiveram em
sua corte. Ele perdeu muitas pessoas boas na batalha contra
Charisemnon e nas batalhas contra os renascidos que se seguiram. Era
igualmente possível que estivessem tão emaciados por terem sido
enterrados há pouco tempo; tempo suficiente para que sua carne
começasse a se decompor, mas fresca o suficiente para que os renascidos
transmitissem seu contágio.
O último podia explicar o terno sujo e manchado de sangue sendo
usado por um dos renascidos.
Qualquer que fosse sua história, Titus não podia ter misericórdia
deles – e sabia que nenhum de seu povo gostaria de existir em tal forma.
Rugindo, suas espadas duplas um borrão, ele desceu. Quando voltou para
respirar desta vez, o suor brilhando em sua pele, foi para a devastação.
Corpos decapitados. Renascidos cortados ao meio. Alguns com todos os
membros decepados. Suas espadas se tornaram navalhas que cortavam e
eliminavam.
Para a direita.
O renascido que Sharine localizou estava usando o queixo para
tentar se arrastar para longe. Dois passos para diminuir a distância entre
eles, então Titus desceu uma lâmina no pescoço da criatura. Ele não
sentiu nenhuma satisfação com o ato; esta não era uma batalha honrosa.
Essas pessoas não tiveram escolha. Para ele, isso era simples
misericórdia. Vê algum outro ainda não decapitado adequadamente?
Sharine voou sobre toda a cena e pairou sobre vários corpos antes
de dizer: — Não. — Aterrissando não muito longe dele, ela segurou as
asas escrupulosamente longe da carne e sangue coagulado que escorria
para o chão. — Teremos que queimar os corpos.
Assentindo, ele limpou as espadas num pedaço de grama limpo e as
deslizou para casa. — Eu cuidarei disso. — Uma única pira faria muito
menos danos ao solo do que se tivesse usado seu poder para limpar toda
a área.
— Será mais rápido se nós dois ajudarmos. — Ela pegou um braço
decepado. — Onde quer construir a fogueira? Estou assumindo que será
em algum lugar perto da massa principal de corpos.
Titus piscou, mas não, ela ainda estava ali, radiante e etérea... e com
um braço decepado apodrecido seguro pelo pulso, enquanto se curvava
para pegar uma cabeça decapitada. — Sim, em cima da carcaça do animal
— disse ele, seus instintos assumindo o controle; quanto mais se
demorassem, maior o risco de atrair outro ninho e mais tempo seu povo
teria que lutar na pior área de infestação sem seu arcanjo.
Sharine não reclamou, mesmo quando suas mãos ficaram
escorregadias com sangue pútrido renascido verde-preto, seu corpo
salpicado com mais do mesmo. Os dois cheirariam a carne em
decomposição pelo resto da viagem, mas não havia como evitar.
— Quanta crueldade — murmurou ela em um ponto, seus olhos
machucados.
Olhando por cima, ele a viu pegando o que parecia ser uma
pequena escultura. E entendeu. Naqueles que vieram do extremo norte,
essas esculturas às vezes eram enfiadas nos bolsos das roupas usadas
pelos mortos, para atuar como guardiãs na jornada além da morte que os
mortais acreditavam aguardar.
Agora, aqueles mortos enterrados com cuidado e amor estavam
sendo profanados.
A mandíbula travada, Titus continuou, mesmo quando viu Sharine
adicionar a escultura à pilha de corpos. Não demorou muito para
completar sua tarefa, a carcaça da girafa no fundo. Depois que juntaram
alguns galhos secos e folhas para atuar como gravetos, usou um pequeno
fragmento de sua energia para acender uma chama. Então assistiram,
porque não deixaria este fogo queimar e se espalhar pela terra.
O calor explodiu em seus rostos, faíscas saltando, mas
permaneceram firmes com suas mãos enegrecidas e pegajosas e roupas
fedorentas. Foi quando percebeu a luz vindo das palmas de Sharine. —
Também gostaria de poder explodi-los todos no esquecimento, mas
devemos cuidar desta terra ou ela se tornará um deserto.
— O que? — Seguindo seu olhar, Sharine olhou para uma mão.
Então, enquanto ele observava, o sangue em sua pele começou a se
cristalizar em pó e cair.
Titus observou fascinado enquanto ela repetia o processo com a
outra mão. — Útil. — Não era uma habilidade pela qual ele desistiria de
suas próprias habilidades, mas seria valiosa em batalha – algo tão
simples como a sujeira podia desmoralizar um exército.
Ainda olhando para as próprias mãos, como se não entendesse o
que fez, ela disse: — Por que não me conheço? — Uma vibração de raiva.
— Quer ver se consegue repetir o processo em outra pessoa? — Ele
empurrou a mão em sua direção – não era estranho aos cheiros e
líquidos da batalha, mas isso não significava que gostava.
Sharine pareceu sair de onde quer que tivesse ido. — Sim, deixe-me
tentar. — Ela pegou a mão dele nas mãos limpas.
A luz brilhou.
Parecia... como uma cócega na palma da mão, o poder mais suave
que já sentiu, mas era paradoxalmente antigo e inebriante. Ele deveria
ter se preocupado com o poder que estava adormecido dentro dela, mas
quando o sangue e outros fluidos se transformaram em pó, percebeu a
suavidade de sua mão, a maneira gentil como o segurava. Como se ele
não fosse tão poderoso que poderia quebrá-la ao meio apenas com sua
força física.
Tudo que pôde fazer foi ficar parado enquanto ela limpava sua
outra mão também.
— Obrigado. — Saiu afetado. — Isso tornará mais fácil voar. Pode
tirar as manchas de nossas roupas também?
Como técnica de distração, foi um sucesso notável. — Não. — Disse
ela após tentar várias vezes. — Pelo menos o sol está quente o suficiente
para assar o cheiro em vez de fazer com que os fluidos apodreçam.
Estremecendo pela ideia, decidiu por outra opção. Depois de
remover o arreio da espada, soltou as fendas das asas de sua túnica,
puxou-a pelo topo da cabeça e jogou-a nas chamas.

Sharine respirou fundo silenciosamente, atingida pela força bruta


da masculinidade de Titus. Pela falta de diferenciação na tonalidade de
sua pele, estar sem camisa não era nada novo para o Arcanjo da África.
Sua pele era lisa e de aparência sedosa, seus músculos flexionando-se
poderosamente enquanto juntava a camisa imunda e a jogava nas
chamas.
A impressionante marca dourada semelhante ao sol em seu peito –
uma marca que emergiu durante o caos da Cascata – era uma coisa bela,
potente, mas estranhamente delicada em linha e composição. Isso serviu
para chamar sua atenção de volta para a beleza crua que era Titus.
Sua boca secou.
Atordoada e chocada por sua resposta visceral, se forçou a desviar
o olhar enquanto ele colocava o cinto da espada de volta. Passou... muito,
muito tempo desde que sentiu a picada da atração física. Nunca foi uma
mulher com forte apetite sexual, mais focada em procurar companhia,
amizade e amor. Para acabar com a solidão que a perseguia desde que
era criança.
Seus pais a deixaram muito antes de irem dormir.
Não que tivesse se tornado celibatária após Aegaeon. Alguma
centelha da Sharine que voou com um exército de batalha permanecia na
Colibri e ela lutou contra a fragmentação de sua mente, tentando se
agarrar aos fragmentos de si mesma que permaneceram. Parte disso
incluiu um esforço tolo para encontrar uma âncora usando seu corpo.
Tola, pois não era uma mulher para quem o físico sempre foi uma
prioridade.
Depois de finalmente perceber a futilidade disso, não sentiu falta de
ser uma criatura sexual, já que sua vida não era desprovida de toque.
Tinha um filho que a abraçava com frequência. Aodhan e Raphael
também estiveram lá por longos períodos. Seus meninos. Cercando-a
com tanto amor e carinho que nunca pensava no carnal, nas
necessidades mais profundas do corpo.
Hoje, no entanto, seu corpo despertou com uma vingança, a
necessidade sexual perfurando-a com força e brutalidade. Por Titus, um
homem ainda mais bonito que Aegaeon. Embora ela ainda não
entendesse os superlativos sobre seu charme. Titus era um martelo
muito cego.
Um fato que demonstrou com bons resultados quando disse: —
Está usando alguma coisa por baixo dessa túnica? Se estiver, sugiro se
livrar da túnica. Os fluidos dos renascidos tendem a ser nojentos ao
extremo, mesmo quando secam – desenvolvem bolor negro.
Sharine hesitou; estava usando uma roupa que Tanicia chamara de
camiseta. Macia e moldada para o corpo de Sharine, o item branco
mantinha seus seios de tamanho médio no lugar, as fendas das asas
presas com pequenos fechos. Mas nunca em sua vida usou algo tão
revelador como blusa.
Ela mudou de pé... e sentiu o cheiro de seu próprio odor.
O estômago ameaçando virar do avesso, ela estendeu a mão para
desfazer as fendas das asas de sua túnica, depois puxou a roupa pela
cabeça e jogou-a nas chamas. — Gostava dessa túnica — murmurou. —
Agora só tenho uma. Todo meu guarda-roupa em sua fortaleza está cheio
de vestidos e batas. — Ela fez uma careta para ele, com o cuidado de
manter os olhos estritamente em seu rosto.
Seu rosto de queixo quadrado, de contornos ásperos e muito
bonito.
— Não me fale de vestidos e roupas — resmungou ele. — Sou um
guerreiro, não sua cômoda.
— E como consegue suas roupas, meu senhor Arcanjo? Por magia?
Ele jogou a cabeça atrás e rugiu para o céu, seus ombros arqueados
e suas mãos cerradas com tanta força quanto sua mandíbula. O som era
um trovão que fez os pássaros voarem das árvores e seus próprios ossos
vibrarem... mas não com medo.
Segurando seu chão, seu coração batendo forte, ela encontrou seu
olhar sem vacilar.
— Eu respeito meu povo. — Seus olhos brilharam. — Isso significa
que os deixo com seus deveres. Meu administrador deve ser capaz de
indicar a pessoa certa para você.
— Obrigada por sua gentileza em compartilhar essa informação —
disse ela, sem saber por que estava tendo tanto prazer em antagonizá-lo
– nunca em toda sua existência se comportou dessa maneira; era
estranhamente estimulante. — Tenho certeza de que não teria
descoberto isso sozinha.
Titus olhou para ela, apenas olhou para ela. — Diga-me a verdade,
começou a beber alguma mistura que transforma uma mulher sã numa
megera? — Era uma pergunta solene e talvez por isso o significado
demorasse um pouco para ser penetrado.
Ela mostrou os dentes para ele, se sentindo... livre. Por tantos anos
esteve enjaulada. Presa dentro das regras de seus pais, então seus
próprios medos, então sua mente quebrada. Pela primeira vez desde que
começou a armazenar memórias, ela não – qual era aquela expressão que
ouviu uma das jovens da cidade dizer? – sim, era isso: não dava a mínima.
E era glorioso.
— Os homens que chamam mulheres fortes de megeras — disse ela
num tom formado por xarope de açúcar e melaço —, costumam ter medo
da força de uma mulher.
— Minha mãe — enuncioucom cuidado —, foi a primeira general
de um arcanjo. Nasci com respeito pela força feminina.
— Se você diz. — Ela limpou a sujeira imaginária de seus braços,
então deu a volta para o outro lado da fogueira. — Vou ficar de olho
neste lado.
Através da cortina de chamas, ele era um homem grande, poderoso
e enfurecido, de pé com as mãos na cintura e o peito nu. Seus olhos a
prenderam no local quando o fogo começou a se extinguir – ou tentou de
qualquer maneira, as sobrancelhas franzidas numa carranca.
Sharine sorriu para ele. Ela sentia zero medo. Durante toda sua
vida, teve medo de uma forma ou de outra, mas era como se tivesse
passado por um incêndio e renascido. Por outro lado, o último não era a
melhor escolha de palavra, especialmente com a pele quente pelo calor
de uma fogueira construída para transformar os renascidos em cinzas.
Mudança de pele, transformação, ressurreição, eram apenas
palavras. O que importava era que estava se tornando alguém novo, uma
mulher que sempre teve o potencial de ser – um anjo de quem seu filho
poderia se orgulhar... e um anjo que podia se olhar no espelho e sorrir.
CAPÍTULO 22

Estou bem, Titus. Mas obrigada, irmãozinho, por se oferecer para


decapitar Aegaeon por mim. Não daria a esse verme a satisfação de bater
em meu irmão até virar uma polpa. Você é um anjo forte, mas ele é um
Antigo e um arcanjo. Não, Aegaeon não merece a dor de alguém de seu
valor.
– Charo, filha da Primeira General Avelina, para Titus, filho da
Primeira General Avelina

CAPÍTULO 23
Titus sabia que deveria manter distância de Sharine enquanto
voavam depois que o fogo estava apagado. Ela estava claramente de mau
humor. Mas ele estava tão fascinado pelas contradições dela e tão ciente
do dom que recebera para salvaguardar que se manteve a uma curta
distância.
Não que ela se parecesse com a mítica Colibri. Ela parecia o anjo
franco e confiante que cravou uma lâmina no olho de um renascido. A
maior parte das calças dela escapou de ser respingada de sangue, mas
não estavam imaculadas em qualquer medida. Mas as calças estavam
longe o suficiente do nariz para que pudesse ignorar o fedor. Suas botas,
ela conseguiu limpar usando a grama; ele fez o mesmo.
Ele se recusou a se concentrar em seu top branco justo, embora
tivesse visto muitas de suas guerreiras lutando com muito menos. Não
tantos séculos antes, a grande maioria delas lutava com nada além de
tinta em seus peitos e fúria em seus corações. Não era a falta de
cobertura que o incomodava, mas sim a falta de cobertura sobre Sharine.
A grande artista enviada pelo Cadre a Titus não era para ser uma
mulher de carne e osso que tinha excelente pontaria com uma lâmina,
seios que caíam ligeiramente sobre o decote de sua blusa e pele que
brilhava com suor. Ela também não deveria ter uma cintura curvada e
quadris que alargavam apenas o suficiente para que um homem
considerasse como caberiam em suas palmas.
E não era o corpo dela apenas que estava lhe causando problemas.
Ela puxou o cabelo atrás num rabo que pegava a luz com cada
mudança no vento, cada ângulo de suas asas. O preto sedoso com ponta
dourada natural – um dourado que brilhava aqui e ali em outras partes
dos fios – era incrivelmente bonito. Tão bonito quanto suas asas.
Ninguém no mundo se parecia com Sharine. Mas também não era uma
questão de beleza. Muitos, muitos anjos eram incrivelmente bonitos,
assim como um número igual de vampiros.
Muitas mulheres em sua corte podiam ficar ao lado de Sharine e
não ser consideradas como de menor beleza. No entanto, Sharine
brilharia de qualquer maneira. Ela tinha em si uma luz radiante que
atraía outras pessoas – a mesma luz rara existia em seu filho. E Titus
tinha uma queda pelo jovem Illium. O jovem era um pouco imprudente às
vezes, mas Titus não era exatamente menos quando jovem.
A coisa mais importante era que como Titus foi leal a Alexandre,
Illium era leal a Raphael. Ele também era um guerreiro que lutava com
inteligência feroz, razão pela qual era um comandante de esquadrão. E
onde quer que fosse, o anjo de asas azuis atraía outros, a chama dentro
dele uma coisa linda e brilhante.
Essa chama veio de sua mãe. Certamente não veio de Aegaeon.
Ele rosnou no fundo de seu peito, querendo chutas aquele traseiro,
mas, infelizmente, suas mãos estavam amarradas nessa conta. Em
primeiro lugar, Charo nunca o perdoaria por trazer à tona a dor do bebê
que perdeu no rescaldo da rejeição impiedosa de Aegaeon, e em segundo
lugar, o mundo precisava de cada arcanjo que pudesse ter.
Foi o último pensamento que o lembrou de uma pergunta que
pretendia fazer – ou talvez apenas quisesse uma desculpa para falar com
Sharine. — Recebeu alguma palavra da corte de Suyin além dos
relatórios que ela mesma fez ao Cadre? — A mais nova arcanjo do mundo
era escrupulosa ao fazer esses relatórios, consciente de que todos os
outros precisavam saber como estava lidando com a devastação em seu
território.
Todos eram honestos dessa forma e, sempre que possível,
ajudavam uns aos outros. Titus, por exemplo, usou sua habilidade
nascida da Cascata para criar um desfiladeiro profundo entre seu
território e o de Alexandre para que ninguém pudesse atravessar a pé.
Embora Alexandre fosse conhecido como o Arcanjo da Pérsia, seu
território na verdade começava do outro lado do istmo que conectava a
África à Ásia, até que Titus quebrou o elo usando seu poder.
A falta de uma ponte de terra significava que os dois não
precisavam se preocupar com incursões do outro lado, e podiam se
preocupar com os perigos já presentes em seu território.
Com o tempo, seus dois povos encontrariam uma maneira de
atravessar a divisão, mas por enquanto, a única maneira de ir de um lado
para o outro era voando ou pelo mar. Nenhum dos quais os renascidos
podiam fazer – felizmente, o horror dos lutadores angelicais de olhos
negros e mortos de Lijuan terminou com ela, sua energia a única coisa
que os mantinha funcionando num simulacro de pesadelo de vida.
A infecção dos renascidos não podia se estabelecer no sangue
angelical.
Riscos de verde-preto na pedra, em forma de asas arrastando.
Frio ao se lembrar do que viu na fortaleza de Charisemnon, Titus
esperava que estivesse errado, que o padrão fosse algo diferente –talvez
dois vampiros renascidos rastejando juntos. Porque se o céu também se
tornasse um lugar de guerra contra as crianças vorazes de Lijuan...
— Presumo que esteja perguntando sobre Suyin por causa de
Aodhan?
— Ele é o melhor amigo do seu filho. — O guerreiro-artista também
foi destacado para Suyin.
— Ele também é leal ao arcanjo a quem foi destacado — foi a
resposta contida. — Embora seja apenas uma posição temporária, ele a
trata com toda a honra.
— Não esperava nada menos de um dos Sete de Raphael. — O
filhote que já foi um adolescente no exército de Titus, como Titus foi no
de Alexandre, fez bem em se cercar de tal lealdade – e isso se estendeu a
sua consorte.
Uma pontada no coração, poderosa e profunda.
De vez em quando, Titus olhava para Elena e Raphael, bem como
para Elijah e Hannah, e se perguntava como seria ter uma consorte que
caminhava com ele através dos tempos de imortalidade. Nunca, no
entanto, chegou perto de forjar um vínculo profundo com qualquer
mulher.
Alguns podiam dizer que ele era o verdadeiro filho de sangue de
sua mãe, que nunca se estabeleceria, e talvez fosse verdade... mas Phenie
também tinha o sangue de Avelina, e estava com seu amante por dois
milênios e contando. Até mesmo Charo, tímida depois de Aegaeon, se
estabeleceu numa domesticidade calorosa com não um, mas três
homens.
A primeira general ficaria imensamente orgulhosa de sua filha mais
nova.
Os tons ricos de Sharine invadiram seus pensamentos pensativos –
e inquietantes. — Mas — disse ela —, Aodhan falou comigo sobre seus
próprios sentimentos e oprimindo tudo o mais é um sentimento de
tristeza.
— Lijuan quebrou o coração de uma civilização antiga. Muitos dos
tesouros da China se foram, destruídos durante o horror da névoa negra
que assassinou. Mas o maior tesouro perdido é a população. Todas
aquelas mentes e corações, seus dons e habilidades apagados da
existência.
Titus tentou imaginar, falhou. — Mesmo depois da destruição de
Pequim, — uma destruição causada na esteira do esforço do Cadre para
conter a ânsia de poder de Lijuan — estou acostumado a pensar na China
como um lugar de profunda história e cultura, com uma população
próspera.
— Da última vez que conversamos, — disse Sharine — Aodhan
falou sobre como é assustador sobrevoar cidades que deveriam estar
fervilhando de iniciativa e esperança e, ainda assim, permanecem em
silêncio, esperando que seu povo volte para casa. Pessoas que morreram
há muito tempo.
— Antes, Lijuan era outra anjo. — Um anjo com quem nunca teve
uma amizade, mas um anjo que respeitava. — Mil anos atrás, não
conseguia imaginá-la fazendo o que fez. O jovem Aodhan está bem?
— Ele diz que está, mas a criança sente profundamente. Sei que é
difícil para ele ver tantas evidências de morte repetidamente. — Um tom
de voz que ouviu em sua mãe mais de uma vez... e, no entanto, o tom
maternal não fez nada para diluir sua resposta a ela.
Sharine nunca falou com ele com aquele tom de voz; não o via como
criança – e ele a teria desafiado a tentar se tivesse dado essa indicação.
Titus não era filho de ninguém, exceto da primeira general.
— Aodhan também está longe de seu próprio povo — disse Titus,
tendo ouvido o suficiente sobre o anjo para saber que não era um
homem que confiava em muitos. — Há alguém por perto com quem ele
possa baixar a guarda? — Seria impossível com Suyin agora – ela
precisava muito de Aodhan para que ele ficasse vulnerável de alguma
forma com ela.
— Todo guerreiro deve abaixar sua espada às vezes — acrescentou
Titus. — Nem mesmo um arcanjo pode continuar dia após dia após dia
sem trégua. — Foi uma lição que aprendeu no colo de sua mãe – o valor
de bons camaradas, amigos e família. Suas irmãs o levaram à loucura,
mas era a elas que ia quando queria ser apenas o acariciado,
atormentado e amado Titus por uma ou duas horas.
— Disse a ele que deveria voar até o território de Caliane para fazer
uma pausa — respondeu Sharine. — Mesmo que não esteja com amigos
íntimos, estará com guerreiros que conhece de sua vida normal, e será,
como você diz, um alívio do pesado dever que está sobre seus ombros.
— Acho que Suyin sente o mesmo peso. — Seu rosto estava magro
e tenso durante a última reunião do Cadre. — Mas ela não pode deixar
seu território, nem mesmo para respirar.
— Espero que esteja construindo uma estrutura de apoio em torno
de si mesma. — A voz de Sharine permaneceu feroz e maternal. —
Aodhan é muito leal para seguir meu conselho e ir para as terras de
Caliane para um descanso, mas não pode ficar para sempre – ele é crítico
para a própria torre de Raphael.
— Alguém perguntou a ele se estaria sujeito a uma transferência
permanente? Ser o segundo de um arcanjo é uma posição que muitos
cobiçam.
Uma pausa antes de Sharine dizer: — Você deve entender – para
Aodhan, os Sete e Raphael são uma família, os laços entre eles estão
muito além da carne, osso e sangue. É uma coisa elementar. Embora ele
sirva a Arcanjo Suyin de todo o coração, sempre voltará para casa no
final.
Sharine suspirou. — Suyin, aquela pobre criança. Deve ser difícil
para ela saber em quem confiar, especialmente depois de ser mantida em
cativeiro por Lijuan por tanto tempo. Ela não pode confiar em ninguém
da antiga corte, pois não tem como saber se as pessoas com quem fala
estiveram envolvidas em seu cativeiro.
— Suyin não é uma criança. — Ela era mais velha que Titus.
Risos que caíram como uma chuva brilhante contra seus sentidos.
— Todos vocês são crianças para mim.
Ele jurou que viu um brilho em seus olhos, estava quase certo de
que o estava provocando. Inacreditável na Colibri... mas não em Sharine.
Decidindo ser a parte madura nesta conversa, respondeu ao seu
comentário anterior. — Tanto quanto o Cadre foi capaz de confirmar,
todos os leais a Lijuan morreram com ela – Suyin não tem que temer a
sabotagem interna. — Ele torceu o lábio. — Realmente não consigo ver
Lijuan deixando ninguém para trás, não quando desejava reunir uma
força do tamanho de uma pequena nação.
Sharine navegou numa corrente térmica por um tempo, suas asas
começando a mergulhar contra os profundos vermelhos e laranjas do céu
do início da noite, mas ainda não a ponto de ser perigoso. Titus apenas a
observou; ela era adorável em voo, uma criatura graciosa e cheia de joias
semelhante ao pássaro cujo nome carregava.
O fogo faiscou no dourado em seu cabelo.
Ele fez uma careta pelo lembrete oportuno de que este mesmo anjo
podia arrancar sua pele de seus ossos apenas com a língua... mas o
lembrete não fez nada para suavizar a tensão em seu corpo, o calor em
seu sangue.
— Gostaria de acreditar na mesma coisa — disse ela ao retornar
para ele —, mas não acha que Lijuan pode ter deixado atrás um pequeno
grupo, encarregado de recuperar seus restos mortais caso ela caísse?
Eles seriam instruídos a colocá-la num lugar seguro onde pudesse se
regenerar.
— Se ela fez isso, foi uma esperança tola. — Titus não fez nenhum
esforço para esconder seu desgosto; ele perdeu todo o respeito por
Lijuan quando ela começou a tratar seu povo como dispensável. — Ela
está morta de uma forma que significa que nunca mais se levantará. Mas
não tenha medo – eu fico alerta, assim como Raphael.
Ele pensava que Neha também estava prestando muita atenção
agora que saiu do anshara, e Caliane sem dúvida faria o mesmo. Titus
sentia falta do conselho sábio e da percepção aguda de Elijah, mas o
Arcanjo da América do Sul ainda estava se curando, sua consorte ao seu
lado.
Quanto a Alexandre, estava fisicamente bem, mas Titus conhecia o
Antigo muito bem para não entender que estava ferido por dentro. Tinha
a ver com Zanaya, outra arcanjo que poderia nunca mais se levantar, suas
feridas tão graves. Não que Alexander fosse falar sobre o assunto; Titus
tentou trazer isso à tona e foi firmemente rejeitado.
Quando se tratava de Lijuan, Alexandre entrou tarde demais no
antigo Cadre para ter o conhecimento necessário de sua corte, mas Titus
sabia que Alexandre o apoiaria se Titus fizesse uma chamada sobre o
assunto. Os dois podiam ser amigos, mas nem sempre estavam na mesma
página quando se tratava de negócios do Cadre, mas sobre este assunto,
estavam totalmente de acordo. — Não permitiremos que uma víbora se
infiltre na corte de Suyin.
— Você é protetor com ela.
— Ela ascendeu num momento terrível. Ao contrário do resto de
nós, não tem um tempo de relativa paz para crescer em sua força. —
Titus teve uns bons quatro séculos antes de Charisemnon começar a
mostrar sua bunda na fronteira. — A única misericórdia em tudo isso é
que, com o mundo inteiro em caos, ela não precisa se preocupar com os
desafios territoriais.
A escuridão começou a tocar o horizonte à distância, e agora se
espalhava sobre eles, batida de asa a batida, respiração a respiração. Até
que finalmente Sharine disse: — Não posso ir mais longe sem descansar.
Titus estava feliz com as habilidades de sobrevivência que ganhou
por ter quatro irmãs; outro homem podia não ter segurado a língua
quando notou pela primeira vez o mergulho em suas asas. — Eu carrego
você. — Mantendo os olhos escrupulosamente longe do peito dela, ele
estendeu os braços.
Ele meio que esperava uma discussão, mas ela voou para pairar
logo acima dele. — Se me soltar — murmurou ela —, fermentarei o
sangue renascido e, em seguida, despejarei a mistura imunda resultante
sobre cada centímetro de seu quarto de dormir.
— Então, vou dormir do lado de fora — retrucou, irritado com a
falta de confiança dela. — Sou um arcanjo, Sharine. Não deixo as coisas
caírem.
— Como é ser tão arrogante? — perguntou ela pensativamente. —
Você passa pelo menos uma hora por dia imaginando todas as maneiras
em que é maravilhoso?
— Você deseja vir ou não? Ou pode pousar e eu pego você no
caminho de volta. — Ambos sabiam que ele não cumpriria sua ameaça –
não estava prestes a deixá-la à mercê dos renascidos que se arrastavam
pela paisagem. Mas um homem tem um limite.
Dobrando suas asas, ela caiu – direto em seus braços.
Só depois que ela colocou um braço em volta do seu pescoço, suas
asas pressionadas firmemente contra seu corpo para reduzir o arrasto,
ele percebeu que isso tornaria as coisas extremamente difíceis. Porque
agora, não só tinha o seu calor suave pressionado contra ele, podia ver o
decote dela, os montes arredondados de seus seios. Se isso não bastasse,
cada parte dela que estava nua esfregava contra sua própria pele nua.
A Colibri. A Colibri. A Colibri, ele cantou silenciosamente. Esta não
era uma mulher. Esta era a Colibri. Uma grande artista. Um tesouro da
espécie angelical.
— O que suas miríades de amantes acham de serem conveniências
fugazes?
CAPÍTULO 24

Um tesouro da espécie angelical.


Mais como uma britadeira perfurando seu cérebro.
— Por que acredita que minhas amantes são conveniências
fugazes? — perguntou ele com uma carranca, porque segurá-la era como
segurar luz e ar; teria que garantir que ela comesse corretamente
enquanto estivesse em sua corte ou ela definharia.
Somente... como uma mulher podia ser tão leve e ter seios tão
macios e quadris tão curvos?
Colibri. Colibri. Não uma mulher com seios, quadris e mamilos. A
COLIBRI. Uma artista. Um tesouro...
— Oh, espere agora, Titus. — Sua respiração sussurrou quente e
suave contra seu pescoço, sua voz rouca e seus lábios exuberantes se
curvaram. — Posso ter estado num posto avançado distante
ultimamente, e posso ter estado bastante louca antes disso, mas nunca
perdi minha audição. A porta giratória de seus dormitórios é bem
conhecida.
Titus não sabia a qual dessas declarações abordar primeiro. No
final, decidiu ir para a mais inesperada. — Por que se importa com a
porta do meu quarto de dormir? — Ele saiu áspero e nervoso, seu pau
crescendo duro em suas calças.
Ele cerrou os dentes e agradeceu aos céus por ela não poder ver sua
excitação de sua posição em seus braços. Excitação! Não podia estar
excitado pela Colibri! Seria como estar excitado por uma grande obra de
arte. Você não deveria tocar em tais obras-primas.
A grande obra de arte mostrou seus dentes para ele. — Oh, não me
importo. — Ela acenou com a mão livre. — Só me preocupo com as
mulheres que você usa e descarta.
— Já chega! — explodiu, certo de que ela tentava irritá-lo de
propósito.
Um estremecimento. — Estou bem aqui, meu senhor Arcanjo. —
Uma mão esfregando sua orelha. — Não há necessidade de tentar
estourar meu tímpano.
Nada a apavorava? — Tem certeza de que não está louca? — Na
verdade, ele tinha certeza de que ela nunca realmente perdeu a sanidade
– apenas se perdeu por um período. — Irritar um arcanjo não é
considerado bom para a saúde.
— É possível — disse ela pensativamente, batendo um dedo em seu
lábio inferior. — Mas acho que não dou a mínima. Não é uma declaração
maravilhosa? Pense nisso. Importar-se tão pouco com uma coisa que
nem mesmo ofereceria excremento por ela!
Ele ficou tão estarrecido pela vulgaridade vindo de sua boca que
parou de voar por um segundo. Ambos caíram. Ele se recuperou
imediatamente, mas ela cravou as unhas em seu pescoço apesar disso. —
Concentrado.
O pênis de Titus engrossou ainda mais, sua pele quente e seu pulso
rápido. — Tratei com respeito cada mulher que compartilhou seu corpo
comigo. Nunca fiz promessas de para sempre. — Isso seria uma mentira
e Titus não mentia. — Qualquer mulher que entre em meus braços
entende que ofereço apenas prazer e carinho.
Estranhamente para a mulher fascinantemente impertinente que
conhecia, Sharine ficou em silêncio. Por tanto tempo que começou a
temer que a tivesse assustado até o silêncio... e isso gelou seu sangue.
Prestes a se desculpar por gritar com ela, embora estivesse falando em
seu tom usual, foi interrompido por ela dizendo: — Sabe o que
acontecerá com o harém de Astaad? Sei que elas têm ajudado seu povo,
mas o que acontecerá com elas a longo prazo?
Ele piscou. — Apesar de estarem de coração partido, não estão
apenas ajudando no solo – elas têm atuado como uma espécie de
conselho consultivo para Qin, auxiliando na transição de poder. Qin
pediu a Mele e às outras para ficarem, mas se não quiserem continuar a
aconselhá-lo além do período de transição, prometeu aposentá-las para
viver longe da corte.
— Acha que ele manterá sua palavra?
Titus hesitou. — Qin raramente fala —disse ele finalmente,
procurando pelas palavras certas para descrever o Antigo. — É como se
ele tivesse meio pé neste mundo, meio em outro. — Naquele segundo
mundo vivia a louca e bela profetisa que Qin amava tão profundamente
que para ele estar neste mundo sem ela era pura dor.
— Que ele não deseja estar acordado não poderia estar mais claro.
— Qin era uma criatura fora do tempo e do lugar, acordado das
profundezas do oceano pela impiedosa Cascata e deixado encalhado na
areia implacável. — Mas ao contrário da postura de Aegaeon, Qin está
calmamente fazendo seu trabalho como um arcanjo. Então, sim, acredito
que ele manterá sua palavra.
Ele aumentou um pouco o aperto, para que pudesse ter mais do
calor de Sharine contra ele. — Além disso, mesmo que eu esteja errado
em minha leitura dele, Mele é muito forte e inteligente para aceitar
qualquer engano ou ficar passiva. Encontrará uma maneira de se
proteger e às outras mulheres do harém.
— Então ela é uma guerreira? Bom.
Titus franziu a testa. Mele não era uma guerreira, não no sentido da
espada e escudo, mas não podia contestar a caracterização – de tudo que
a espiã mestre de Titus conseguiu descobrir através de suas fontes nas
ilhas, a concubina mais amada de Astaad estava protegendo outras
senhoras do harém. Mele sozinha lidou diretamente com Qin, embora
fosse apenas uma vampira e ele um arcanjo.
— Sim — disse ele lentamente. — Mele é uma guerreira que não
carrega uma espada.
Sharine examinou seu rosto. — Fiquei preocupada, — disse ela —
porque vi o que aconteceu com o harém de Aegaeon depois que ele foi
dormir. Uma espécie de selvageria sangrenta enquanto as mulheres
procuravam encontrar posições nas cortes de outros anjos fortes.
Titus curvou o lábio. — Aegaeon fala sobre não querer estar
acordado, mas já começou a formar um novo harém, cheio do tipo de
mulher que ele prefere. Aranhas traidoras e maldosas que comem seus
próprios filhotes. — As palavras mal saíram quando percebeu que havia
colocado todo o pé gigante na boca.
Querendo gemer, ele disse: — Não conto você nesse número.
As unhas que cravaram em seu pescoço desta vez foram
deliberadas. — Isso é bom, porque nunca fiz parte de seu harém. —
Palavras geladas. — Ele me convidou para morar em sua corte mais de
uma vez, mas não podia existir naquela esfera. Não poderia sobreviver lá.
— As últimas palavras foram simples. — Na época, eu era uma criatura
mole, um caranguejo sem casca. Preferia viver no Refúgio com minha
arte e – mais tarde – com meu filho.
Titus teve que lutar contra o desejo de esmagá-la contra ele. —
Acho que não precisa se preocupar com Mele e as outras. São uma família
e tomarão as decisões como uma família.
— Acredita que Astaad levantará? — Sem mais unhas cravando em
seu pescoço... e possivelmente uma pequena carícia das pontas dos dedos
sobre a pele para acalmar a mordida anterior. — Lijuan não sugou parte
de sua força vital?
— Quando era uma criança, — disse ele, pairando sob uma
bandeira de estrelas brilhantes — me contaram a lenda de um arcanjo
que foi cortado em cem pedaços por seu inimigo e então queimado com
fogo de anjo. Mas o inimigo errou um fragmento de seu cérebro. Ele foi
deixado numa fenda da rocha e lá permaneceu por muitos anos. Foi
coberto pela neve e depois pela grama do planalto distante onde ficava
entre as rochas e foi bicado por pássaros, mas não se decompôs e não se
perdeu.
— Então, um dia, um pássaro o pegou, mas perdeu-o no meio da
jornada, deixando cair o pedaço de massa cerebral num enorme
desfiladeiro. Lá ele ficou nas sombras escuras por centenas de anos
enquanto o arcanjo reconstruía lentamente seu corpo, célula por célula, a
ação um instinto, de ordem natural. Pois tudo que precisa para um
arcanjo voltar à vida é um fragmento de uma célula saudável. — Era
também por isso que tinha certeza de que Lijuan nunca retornaria –nada
dela havia permanecido.
— Uma história horrível. — Sharine pressionou a mão livre em seu
peito. — Conte-me o resto.
Ele sorriu, encantado com a mulher imprevisível em seus braços. —
Bem, o arcanjo ficou em silêncio mesmo depois que sua cabeça cresceu,
pois seu torso ainda não estava completo. Ele sabia que permanecia
vulnerável. Então ficou lá em silêncio por mais dezenas de anos – me
disseram que, uma vez que o cérebro e a cabeça se regeneraram, o resto
do corpo não demora tanto.
— Ainda assim, porque não tinha nenhum sustento, exceto os
insetos que voavam em sua boca e a água da chuva que caía sobre ele, ele
se regenerou muito mais devagar do que seria possível com mais
combustível para alimentar o crescimento. Depois de ter os braços, ele se
arrastou até um ponto na garganta que tinha um pequeno riacho, e nesse
riacho viviam criaturas como pequenos sapos que ele podia pegar e
comer.
— Ele também comeu as flores silvestres na beira do riacho e o
musgo que crescia nas rochas sombreadas que eram sua casa. Mesmo
depois de ter todo o seu corpo, permaneceu fraco, então esperou
agachado nas fendas escuras da garganta e caçou qualquer animal que se
aproximasse. Diz-se que levou mais dez anos para recuperar suas forças
a ponto de poder voar para fora da garganta. Uma vez fora, caçou
criaturas maiores até que estava cheio de poder.
Ele fez uma pausa.
A Colibri deu um tapa de leve no ombro dele, a picada de uma
borboleta. — Pare de arrastar isso, me diga o resto!
Ele deu uma risadinha. — Então, Sharine gosta de uma boa história.
— O que Sharine gosta é de esfolar os homens vivos que a
enfurecem.
Sorrindo, ele continuou. — Uma vez que estava cheio de poder, o
arcanjo não tentou reunir sua corte. Sabia quem era leal e quem não era,
e sabia que o procurariam. Primeiro, porém, tinha uma tarefa a cumprir.
Ele perseguiu seu inimigo, e então, quando o inimigo estava sozinho, o
incapacitou cortando sua cabeça.
— Isso parece um pouco anticlimático.
— Sempre interrompe seus contadores de histórias? — perguntou
ele, embora fizesse um julgamento semelhante quando criança.
— Continue, meu senhor contador de histórias. Continue.
Apesar de seu mau comportamento, podia sentir a tensão em seu
corpo e sabia que ela estava no limite, esperando pela próxima parte da
história. — Após decepar a cabeça, o arcanjo incinerou o corpo de seu
inimigo. Então, antes de voltar para a mesma garganta onde viveu todo
aquele tempo, destruiu a boca e a mandíbula de seu inimigo.
— Ele escondeu a cabeça silenciosa num canto sombreado, onde
ninguém jamais a encontraria. Sabia que seu inimigo regeneraria sua
boca, mas ninguém o ouviria quando gritasse. Então, por milênios, o
arcanjo voltava em intervalos regulares para destruir qualquer parte do
corpo de seu inimigo que tivesse se regenerado.
— O inimigo permaneceu para sempre uma cabeça, sentando lá
escorrendo no coto ensanguentado de seu pescoço, gritando no vazio.
Diz-se que ele ainda está lá. Insano além de toda compreensão, uma coisa
não mais sensível.
Ele lançou sua cabeça em direção a Sharine.
Ela gritou.
Titus começou a rir, tremendo tanto de alegria que mal percebeu a
mão dela batendo em seu ombro enquanto o chamava de demônio. —
Achei que estava narrando uma história verdadeira! Quem inventou essa
história horrível?
— Uma das minhas irmãs. — Ainda rindo, ele encontrou seu olhar
caindo para a doce textura dos lábios dela, teve que forçá-lo
conscientemente a se afastar antes que cedesse à tentação e quebrasse
cerca de mil leis não escritas da espécie angelical. — Eu tinha talvez
cinco décadas. — O ponto médio entre criança e adulto. — Passei os
próximos cinco anos procurando em cada desfiladeiro que pude
encontrar a cabeça decapitada do arcanjo insano.
— Nunca se perguntou sobre a identidade do outro? Aquele que
está torturando seu inimigo pela eternidade?
— Eu tinha cinquenta anos. — Um menino pronto para o mistério e
a aventura. — E é uma história muito boa. Charo sempre teve um grande
talento.
Sharine se sentou em seus braços, sua inspiração forte. — Sua irmã
é Charo dos Contos? — Sua boca se abriu com seu aceno. — Como saiu
do mesmo estoque que produziu uma escritora de palavras tão gloriosa?
— Eu sou um presente — respondeu ele.
Ela abriu os lábios para responder, quando sua atenção foi atraída
por outra coisa. Apontando para baixo, ela disse: — Viu isso?
— Sim. — Outro grupo de renascidos, esses se movendo como um
caranguejo, suas cabeças penduradas para frente e seus corpos curvados.
— Esta área está desabitada por muitos quilômetros em todas as
direções, e esses renascidos parecem letárgicos por falta de comida.
Prevejo que os encontraremos no mesmo lugar em nosso retorno.
— Sim — disse Sharine —, você está certo – é mais importante que
desenterremos a estranheza que vi naquela aldeia. — Nenhuma diversão
ou mordida em sua voz agora, simplesmente uma veia profunda de
tristeza. — Porque fazemos isso? Destruir aquilo que amamos?
Os filamentos de ouro em suas penas brilharam a luz das estrelas.
— Charisemnon amava esta paisagem tanto quanto você – ele visitou
Lumia duas vezes durante meu tempo lá, e nós assistimos o pôr do sol
juntos. Falamos sobre os animais, o céu e as cores desta terra, e eu teria
apostado minha vida no fato de que ele era honesto em seu amor.
— Não duvido disso. — A tristeza de Titus era mais complicada,
sangrando com ódio e nojo. — Eu também, uma vez me sentei ao lado
dele – foi há muito tempo, logo depois que me tornei um arcanjo. Nós
compartilhamos uma caneca de cerveja e falamos sobre como éramos
sortudos por ter esta terra como nosso território.
Então, Charisemnon se contentou com sua metade da África, deu as
boas-vindas a Titus como seu vizinho. — Existem diferenças quando
você voa de norte a sul, mas no final, há um sentimento neste continente
que você não encontra em nenhum outro. Ele canta para minha alma e
cantou para a dele.
Titus mal conseguia se lembrar daquele Charisemnon. — Mas a
questão é que ele passou a amar mais o poder – ou talvez essa fome
sempre tenha existido nele. Escolheu o poder e a vaidade ao invés de seu
amor por esta terra e por seu povo. Em busca desse poder envenenou
nossa terra de vida e maravilhas e transformou nosso povo em presa. Por
isso, nunca vou perdoá-lo. Se ele tivesse uma sepultura, eu cuspiria nela.
CAPÍTULO 25

Sharine não discordou do julgamento de Titus, por mais severo que


fosse.
O Arcanjo do Norte da África que ela conheceu estava exausto e
dissoluto de uma forma que era difícil de explicar. Frequentemente se
dizia que o poder corrompia e os arcanjos eram os seres mais poderosos
do mundo – mas os arcanjos também precisavam lidar com uma miríade
de problemas para manter um território saudável, desde manter uma
mão firme sobre os vampiros, até – no nível mais básico – garantir que a
população tinha trabalho e não morreria de fome. Isso nem levava em
consideração a política territorial letal.
Um arcanjo não podia simplesmente permanecer bonito e existir.
Era improvável que Titus pensasse em si mesmo como uma ameaça
agachada sobre os outros membros do Cadre, mas ele era, como eles
também. Poder como o de um arcanjo não dormia. Ele assistia e, por
padrão, os membros do Cadre observavam uns aos outros. Amizades,
amor, lógica podiam impedi-los de fazer uma guerra constante, mas a
ameaça disso sempre aparecia.
Tédio nunca deveria ser uma possibilidade realista para
Charisemnon.
— Sabe o que aconteceu com ele? — perguntou ela. — Eu tinha
pouco a ver com ele antes da minha passagem por Lumia.
— Pelo que ouvi sobre sua juventude, sempre foi arrogante e
acreditava que era melhor do que os outros. No entanto, muitos jovens
acreditam que são.
Prestes a fazer uma piada sobre a própria confiança impetuosa de
Titus, Sharine se lembrou de como ele se sentou com o chefe na aldeia,
como falou com o mortal idoso com paciência para sua sabedoria. Titus
podia acreditar fortemente em si mesmo, mas não desprezava os outros.
Era uma diferença crítica entre os dois arcanjos.
Deveria parar de tentar colocá-lo na mesma caixa de Aegaeon ou
Charisemnon ou de sua laia só porque estava desconfortável pelo fato
dele despertar nela desejos que acreditava estarem mortos e enterrados
há muito tempo. Contra ela, sua pele era como seda, seu calor uma
queimação deliciosa, e a vibração de seu peito quando falava um prazer
cada vez mais familiar.
— O ponto de inflexão — disse Titus, mesmo enquanto suas
bochechas brilhavam —, foi Lijuan.
Outro tipo de calor brilhou nela. — Não pode simplesmente culpar
a outra. — Era preguiçoso e absolvia uma das partes da responsabilidade
numa circunstância em que ambos tiveram a chance de influenciar. —
Digo isso como uma mulher que por tanto tempo culpou Aegaeon pelo
que me tornei. Mas eu... — ela bateu com a mão no peito — fiz escolhas
ao longo do caminho.
Não a fratura inicial. Não foi capaz de evitar isso. Seu cérebro
entrou em choque, sua mente girando. Mas teve momentos de sanidade
no início, momentos que não estava perdida, e até hoje, não sabia se
poderia ter lutado mais para voltar. Ela se rendeu? Escolheu sua prisão?
— Não. — Titus a embalou mais perto, a ação a fazendo prender a
respiração enquanto seu coração batia forte. — O que quero dizer é que
foi semelhante a uma reação explosiva como a que meus cientistas criam
quando misturam duas substâncias inertes.
Sharine franziu a testa. — Acha que teriam permanecido racionais
em vez de monstros famintos por poder se nunca tivessem se conhecido?
— Não posso falar por Lijuan, pois ela já era um anjo de sete
milênios e meio na minha ascensão, mas sinto que conhecia
Charisemnon bem o suficiente para dizer que era um homem que
gostava de luxo e trabalhava o mínimo necessário. Ele não pensaria em
se incitar a planos tão grandiosos de guerra por conta própria.
Os músculos do pescoço e dos ombros de Titus moveram-se
fortemente enquanto os angulava contra o vento para que pudessem
cavalgá-lo, suas asas poderosas acima deles. — Certa vez, um dos meus
estudiosos me contou a história de dois assassinos mortais e usou um
termo que parece caber aqui: folie à deux.
Uma loucura a dois.
— Não sei se concordo com você — disse Sharine. — Já ouvi falar
dos apetites de Charisemnon – alguém como ele sempre desejaria uma
emoção maior, mais satisfação sensorial. Mas... — ela pressionou os
dedos nos lábios de Titus quando ele a interrompeu. — Eu acredito que
há um grão de verdade em sua suposição. Charisemnon e Lijuan
incitaram um ao outro, como as crianças fazem no campo de jogos.
Titus não respondeu, seus olhos fixos nos dela. Seu pulso disparou,
suas bochechas queimaram. Tirando os dedos da curva inesperadamente
macia dos lábios dele, ela fez uma piada para dissipar a tensão que
travava os músculos de ambos... apenas para perceber que estavam
quase na metade do caminho para seu destino.
Titus levou poucas horas para cobrir uma distância enorme. Ela
não percebeu o quão rápido estava voando, ele fez um trabalho tão bom
em protegê-la do vento. Sharine não estava com humor para ser
protegida de nada, mas não podia culpá-lo pelo cuidado que tinha com
ela.
Uma onda de calor em seu estômago, uma dor que era pura
tentação; fazia muito tempo, sussurrou uma parte profundamente
faminta dela. Por que não quebrar seu jejum com tal amante?
Ignorando o pensamento, pois não tinha intenção de se tornar mais
uma nas legiões de admiração de Titus, ela disse: — Precisa descansar?
— Mesmo um arcanjo não podia continuar indefinidamente.
— Ao amanhecer — prometeu. — Não desejo ser coberto por mais
podridão renascida.
Sharine fez uma careta. — De acordo.
Foi assim que voaram durante a noite. Em algum momento, ela
adormeceu nos braços dele, e acordou para encontrá-lo caindo num
gramado. Com a pele quente, ela se sentou. — Me desculpe.
— Não se preocupe — disse ele ao pousar. — Você não roncou.
Sharine teria retrucado, mas ele a colocava no chão e ela gemeu
quando esticou o corpo. Coisas rangeram. Adorável. Titus também se
alongava– e estava glorioso sob o dourado suave da luz do amanhecer. —
Sua tatuagem — se pegou dizendo. — Parece quase viva na luz.
Ele coçou as rugas de seu abdômen. — Um truque de luz. — Olhos
estreitados olhavam além dela. — Droga.
Sharine seguiu seu olhar, percebeu os movimentos rápidos. —
Renascidos.
O deslizamento das espadas deixando as bainhas foi o único aviso
que recebeu antes de Titus decolar. Sharine o seguiu, com as asas doendo
por terem ficado colapsadas em seus braços por tanto tempo. Mas Titus
tinha a situação sob controle e os renascidos logo morreram. Ele usou
uma pequena pulsação de poder para apagar seus corpos, então pousou
novamente.
— Se pudesse, Lady Sharine. — Ele apontou para os respingos de
sangue em seu peito.
A mão de Sharine já estava revestida de poder. Aproximando-se, ela
começou a tirar o sangue e carne dele. Seu foco só escorregou quando ela
estava quase terminando; ela se tornou sombriamente consciente do
calor e do tamanho dele, seu estômago tenso e sua boca seca. Foi tudo o
que pôde fazer para não recuar quando a tarefa foi concluída.
Titus olhou para baixo, sua expressão fechada. — Devíamos voar
novamente.
— Sei que sou mais lenta, mas ajudaria minhas asas se eu pudesse
passar pelo menos uma hora no ar sozinha. — Não ser pressionada
contra ele seria um bônus.
Assentindo, Titus esperou que ela decolasse primeiro.
Quando finalmente acabou nos braços dele novamente, ela tinha
distância suficiente daquele pico de necessidade para ser racional. Não
mentir para si mesma sobre a profundidade da atração não significava
mergulhar de cabeça em uma má decisão. Ela perguntou a ele sobre a
história política entre ele e Charisemnon, ouvindo atentamente.
Mais tarde, ele perguntou a ela sobre sua amizade com Caliane.
Rindo, ela contou a ele histórias de sua longa associação, memórias tão
fortes que sobreviveram aos anos perdidos e muito mais. E percebeu que
não falava por tantas horas consecutivas com outra pessoa... por muito
tempo.
Ele murmurou para ela dormir novamente num ponto. — Seu
corpo precisa disso após seu longo voo anterior.
O desconforto em como era bom ser embalada em seus braços a fez
querer discutir, mas sabia que era tolice. Fechando os olhos, ela
pressionou a bochecha contra a batida constante de seu coração e
dormiu.
Eles continuaram voando.
A noite caiu novamente, as estrelas estilhaçaram como diamantes
no céu.
Foi quando a noite amanheceu em cinza escuro que ela apontou
para uma mancha ao longe, escuridão contra escuridão. — Lá está, o
lugar onde vi a mão mumificada.
Titus não pousou no centro do povoado como ela fez, mas na
extremidade leste. — O amanhecer virá nas próximas duas horas. Acho
que é melhor se esperarmos para examinar suas descobertas à luz do sol.
Sharine não desejava permanecer tanto tempo neste lugar
misterioso e sem vida, mas não podia discordar dele. Assentindo,
alcançou atrás para manipular levemente um de seus ombros. Embora
Titus a tivesse carregado com cuidado, ficar na mesma posição por tanto
tempo levava novamente a uma rigidez previsível.
— Tenho a intenção de caminhar até a fronteira da aldeia — disse
ele no que provavelmente era um tom calmo para ele, e que ela achou
reconfortante.
A voz de Titus era uma manifestação externa de sua honestidade.
— Uma caminhada também ajudaria a aliviar os músculos.
Ela congelou, sem saber até então que ele a observava. Foi preciso
um esforço consciente para manter sua expressão neutra e acompanhar
sua forma maior e mais forte. Titus, por sua vez, manteve uma distância
escrupulosa entre eles enquanto caminhavam, não permitindo que sua
asa roçasse a dela.
Ambos mantiveram os olhos em seus arredores.
Com o céu já ficando grisalho nas bordas, não estava mais escuro
como breu e por isso foi fácil ver os sinais de perturbação quando
dobraram a esquina – era como se as pessoas tivessem travado uma
batalha desesperada contra uma força de ataque.
Titus se agachou para examinar um determinado conjunto de
impressões. — Terei que olhar para isso mais completamente à luz do
dia.
— Espere. — Trazendo o dispositivo de telefone, ela pressionou o
símbolo que Illium mostrou a ela que traria luz. Ele lançou um brilho,
forte e nítido, sobre os rastros. Satisfeita consigo mesma, ela disse: —
Realmente deveria comprar um destes. É muito inteligente – posso ver
por que meu filho adora isso.
A resposta de Titus foi silenciada, seu foco em outro lugar. —
Poderia movê-lo para que a luz incida neste ponto? — Ele indicou a área
relevante com uma mão.
Chamada a atenção, fez o que ele pediu. O feixe de luz atingiu uma
confusão de sujeira e grama que parecia ter calcificado em torno do que
poderia ser sangue ou outros fluidos corporais. — O que você vê? —
Embora Sharine pudesse apontar as diferenças mínimas numa obra de
arte que falava a linguagem das pinceladas do artista, não sabia ler a
terra.
Titus passou os dedos pela seção. — É difícil dizer depois de todo
esse tempo, mas tenho quase certeza de que isso foi feito por asas
arrastando no chão.
Sharine se aproximou, ainda via apenas um vislumbre do que era
claro para ele. — Um anjo que viu os renascidos enxameando a vila e
pousou para ajudar?
— É possível. — Seus ombros largos se moveram enquanto ele se
inclinava para verificar outra área. — Os renascidos poderiam ter
destruído um jovem anjo. — Com a expressão sombria ao se levantar, ele
disse: — Deve preservar a energia do dispositivo. Podemos precisar para
examinar mais essas áreas.
Ele provou estar certo. Pararam mais quatro vezes durante sua
caminhada lenta enquanto o céu clareava no leste e o mundo se tornava
uma espécie de cinza borrado que lembrava a névoa nas montanhas do
Refúgio. Sabia que iria clarear até que o céu ficasse de um azul
deslumbrante, a luz tão brilhante que doía olhar, o calor intenso o
suficiente para cortar, mas por enquanto, o ar permanecia frio, fresco.
— Achei que sentiria falta do verde frio do verão e do branco
gelado do inverno do Refúgio — se viu dizendo. — Mas Lumia se sente
em casa, assim como esta terra.
— Talvez seja porque você é uma mulher diferente daquela que
vivia no Refúgio. — Ela ainda estava refletindo sobre a declaração
perspicaz quando ele disse: — Por que ficou tanto tempo lá? Por que não
se mudou com Illium para Nova York?
Sharine se fez a mesma pergunta, não tinha uma resposta real. —
Disse a mim mesma que fiquei para manter vigília sobre o túmulo de
Raan, que precisava fazer isso para que as pessoas se lembrassem dele,
meu Raan.
Um sorriso sem alegria. — Mas já havia interrompido essas visitas
quando conheci Aegaeon, indo apenas uma vez por ano no aniversário de
sua morte. Por mais difícil que seja de aceitar, acho que fiquei porque era
seguro, com parâmetros definidos. Uma covardia da minha parte.
— Você se julga severamente. — Os olhos escuros de Titus
pousaram nela, o contato reverberando por todo o seu ser. — Até um
javali ferido vai recuar para lamber suas feridas.
Antes que ela pudesse responder, ele viu mais evidências de que
um anjo estava presente durante a luta. Durante, porque a marca de asas
arrastadas foi cozida no solo pelo sol, junto com o sangue e outros
fluidos. Então Sharine viu um indício de... — É uma pena — sussurrou
ela, apontando os pequenos filamentos descoloridos presos na lama seca.
Com a coluna rígida e a voz sombria, Titus disse: — Todas essas
marcas parecem ter sido feitas ao mesmo tempo. Elas se sobrepõem e se
interligam, como acontece quando lutamos em batalha e nossas asas
caem.
Titus se levantou novamente, suas coxas tensas contra o tecido de
sua calça. — O que não consigo entender é por que os moradores
sobreviventes foram embora se você encontrou evidências de que eles
conseguiram queimar os renascidos?
Arrancando o olhar de suas coxas, ela disse: — É possível que
fossem muito poucos e com muito pouca comida para sobreviver aqui. —
Mesmo enquanto dizia isso, se encontrou balançando a cabeça. — Mas se
fosse esse o caso, pensaria que foram em direção a Lumia. É o povoado
mais próximo.
— Teriam que cruzar montanhas — apontou Titus. — Impossível
se tivessem feridos entre seu número.
Embora o amanhecer tenha chegado, trazendo com ele o primeiro
beijo do sol, Sharine esfregou as mãos para cima e para baixo nos braços.
Não tinha nada a ver com a temperatura, no entanto, sua mente se
encheu de representações agonizantemente detalhadas do massacre que
ocorreu aqui. Em horas como essas, ser artista era uma maldição.
— Espero que seja isso. Espero que os sobreviventes tenham
encontrado um porto seguro. — Ela se recusava até mesmo a considerar
que seus ossos branqueados poderiam estar em algum lugar na selva,
longe de segurança.
— Há luz suficiente. — Titus olhou para o céu. — É hora de
examinar o local da queima.
Enquanto ela vigiava, Titus verificou todos os edifícios pelos quais
passaram, mas não encontrou ninguém vivo ou morto.
— Acha que a pira incluía os corpos de seus mortos? — murmurou
ela enquanto se aproximavam dos restos enrugados e enegrecidos do
fogo. — Não apenas os infectados, mas aqueles que caíram em defesa da
aldeia. — Ela não viu túmulos em sua caminhada, nenhum sinal de terra
perturbada como acontecia com um enterro.
— Eu acredito que sim, e não posso culpá-los por sua escolha. — O
tom de Titus era sombrio. — Mesmo se não tivessem conhecimento do
fato de que os renascidos podem infectar os mortos recentemente, é
improvável que tivessem mão-de-obra para cavar várias sepulturas ou os
suprimentos para criar mais de um incêndio.
A garganta de Sharine doeu por essas pessoas que foram forçadas a
fazer escolhas que ninguém deveria fazer. — Eles deveriam saber o
perigo que enfrentariam em campo aberto — disse ela, pensando nas
matilhas de renascidos, cruéis e impiedosos. — Deviam estar realmente
desesperados para sair.
— Meu palpite é que sabiam que ninguém viria e, como você disse,
morrer de fome era uma possibilidade real. — Titus ergueu os olhos. —
Pelos gráficos que encontramos na corte de Charisemnon, este
assentamento não está numa rota de voo angelical normal. Ninguém
teria visto uma placa pedindo ajuda.
Ela tocou o telefone em seu bolso. — Por que não usaram
dispositivos modernos?
— Nós derrubamos a rede em todo o continente durante a batalha.
— A expressão de Titus se torceu. — Isso os deixaria sem meios de
comunicação com o mundo exterior. Então fui parcialmente responsável
por tudo o que aconteceu aqui.
Sharine se encontrou tocando seu antebraço com a mão, o calor
dele inundando sua pele. — Este é o jeito do mundo — disse ela
simplesmente. — Quando os imortais lutam, são os seres mais fracos que
pagam o preço. No entanto, você teve que lutar. Se não o fizesse, as
chances são de que essas pessoas estariam mortas, e a onda de morte
teria continuado inabalável – sabe que seu nêmesis não teria parado.
Titus, com os músculos rígidos, não disse nada. Soltando a mão, ela
continuou ao seu lado... mas sua angústia aberta com as mortes aqui
causou uma rachadura nas paredes que ela ergueu em torno de seu eu
mais íntimo. Este homem, este arcanjo, a surpreendia com a
profundidade de seu coração.
— Estava aqui. — Na frente da parede danificada através da qual
ela viu os ossos.
Titus caminhou até ele. — Espere.
Enquanto ela observava, ele rasgou a parede com cuidado para não
danificar os restos do outro lado. Partes da parede, quase totalmente
queimadas, transformaram-se em pó a seus pés. Ela se perguntou por
que as chamas não envolveram toda a aldeia. Talvez fosse porque os
corpos não tinham queimado o suficiente ou o fogo morreu de alguma
forma.
Aumentando o espaço com concentração metódica, Titus trabalhou
até eliminar a maior parte da parede e estavam olhando para um
crematório improvisado. Pilhas de cinzas testemunhavam a intenção do
incêndio. Mas as chamas não estavam quentes o suficiente e os crânios
rolaram pelo chão, enquanto os ossos longos da coxa, bem como os ossos
dos dedos menores, estavam sob a luz que entrava pela nova abertura.
Ela apontou o que os trouxe aqui, a mão alongada... que ela viu
agora estar presa a um corpo. Não admira que não tenha sido capaz de
ver isso durante sua primeira visita; o corpo estava embaixo de muitos
outros. Titus silenciosamente moveu o outro resto para o lado – com
cuidado, mas com velocidade, para revelar o corpo no fundo.
Não queimou no fogo, simplesmente foi chamuscado de uma forma
que significava que tinha mumificado nesse ínterim.
Não tinha cabeça.
Seus olhos se arregalaram, mas seu horror não tinha nada a ver
com a decapitação. Ela acabava de entender a importância da estrutura
da coluna vertebral do corpo. — Titus.
Titus agachou-se, então pareceu decidir contra isso. Sharine
também não gostaria que suas asas se arrastassem em toda aquela
morte.
— Essas são costas angelicais — confirmou.
Ela se forçou a se aproximar. Não havia como evitar a verdade – sob
a pele, os corpos angelicais eram construídos de forma diferente dos
mortais de maneiras sutis e profundas, porque os anjos tinham asas e,
portanto, musculatura não possuída por aqueles que não podiam voar.
Isso era especialmente verdade quando se tratava das áreas das costas e
do peito.
Mesmo que as asas deste anjo foram queimadas, e nenhum traço
permanecia de qualquer um dos músculos ou penas que uma vez teriam
coberto os ossos, mas que era um anjo era indiscutível.
Suas botas esmagaram algo.
Com o estômago agitado, ergueu o pé imediatamente e olhou para
baixo. Os ossos nos quais ela inadvertidamente se apoiou eram finos e
longos. Não mortais. — Ossos da asa. — Ela se moveu para trás para que
Titus pudesse ver. — Um anjo morreu aqui.
— Não. — Sua mão se fechou ao lado do corpo, sua voz áspera e
profunda. — Um renascido angelical morreu aqui.
CAPÍTULO 26

O gelo estalou seus tentáculos no intestino de Sharine. — Isso é


impossível. Os anjos não são suscetíveis a esta infecção. — Renascidos
podiam machucá-los, mas as criaturas não podiam transformá-los. —
Lijuan criou os renascidos como uma promessa distorcida de
imortalidade, não foi? Os anjos já são imortais, e portanto, imunes.
Ela não sabia se estava lembrando corretamente de sua conversa
com Raphael; aconteceu enquanto sua mente ainda era um
caleidoscópio. Mas estava certa quando se tratava de imunidade
angelical. — Anjos não ficam doentes. — Era um fato da natureza, tão
imutável quanto o vento e o céu.
— Soube da Queda? — Titus cruzou os braços, flexionando os
bíceps. — No território de Raphael?
A bile queimou o fundo de sua garganta. — Sim. Charisemnon fez
com que anjos caíssem do céu.
— Ele foi capaz de criar algo que afetou os anjos – nunca
descobrimos o quê, mas porque recebeu o dom da doença pela Cascata...
Seu coração pulsava em sua boca, o horror do que ele estava
sugerindo a deixou muda. A espécie angélica não tinha como se
recuperar de uma doença devastadora; sua taxa de natalidade era muito
baixa. Uma única infecção podia aniquilar todo seu povo.
Os raios do sol nascente racharam o céu acima de suas cabeças,
banhando todo o local com um terrível brilho dourado.

*
Titus não encontrou nenhum sinal de outro anjo, embora ele e
Sharine procurassem por toda a aldeia duas vezes, olhando sob cada
pedra e em cada armário e edifício externo. Era possível que seus
cientistas descobrissem mais quando vasculhassem a pira funerária
improvisada, pois não desejava pisar nela e possivelmente destruir
outros ossos finos de asas, mas por enquanto podia confirmar a presença
de um único anjo renascido.
— Se o mundo tiver sorte, — disse ele, sabendo que não seria tão
simples — este anjo provará ser aquele que rastejou para longe da corte
de meu nêmesis para morrer sem infectar outros.
O tom de champanhe dos olhos de Sharine ficou assombrado
quando seu olhar encontrou o dele. — Ouviu alguma coisa sugerindo que
outros anjos caíram nessa infecção?
— Não, mas não conheço essa metade do território tão bem quanto
o meu. — Ele mal teve chance de recuperar o fôlego, muito menos de
fazer um tour intensivo por sua nova região territorial. — É possível que
os infectados estejam se escondendo – vimos que a nova safra de
renascidos tem instinto de sobrevivência. Esse instinto pode ser ainda
mais forte em anjos renascidos, se assumirmos que a força de nosso
sistema imunológico significa que a infecção não progride tão rápido
quanto em mortais e vampiros.
Respirando fundo, Sharine disse: — Um anjo pode saber o que está
se tornando, saber que não deveria existir.
O terror se agitando em seu intestino, Titus esfregou o rosto. — Por
enquanto, vamos informar meu pessoal usando seu telefone e depois
voltar para casa. Se este anjo estava se movendo quando você pousou,
não foi nada além de um espasmo persistente – está muito morto, e
preciso voltar para erradicar a ameaça no sul. Especialmente se houver
uma pequena chance de termos que lidar com anjos infectados nos
próximos dias ou semanas.
— Posso pedir a parte do complemento da guarda de Lumia para
ficar de guarda nos céus até que seus cientistas aterrissem.
Titus considerou isso; não queria expor Lumia ou sua guarda ao
risco, mas também não podia arriscar que este corpo fosse perturbado
pelos renascidos ou por animais. — Diga a eles para ficarem nos céus —
disse a Sharine. — Quando precisarem pousar para descansar, devem
fazê-lo em áreas abertas onde os renascidos não podem chegar
sorrateiramente. Lumia não sofrerá nenhum dano com este
destacamento?
— Não é muito mais longe do que as sentinelas normalmente voam
– mesmo que alguém tenha olhos cobiçosos em Lumia neste momento de
caos, não notarão nenhuma diferença em sua rotina. — Depois de ligar
para seu segundo, ela começou a tirar fotos para garantir.
Deixando-a quando tinha certeza de que nenhum perigo espreitava
aqui, ele decidiu dar uma olhada final pela aldeia na pequena chance de
descobrir algo mais sobre o anjo infectado. Foi da última vez que deu
uma olhada no armazém que pisou em algo que estalou. Era um
envelope.
Pegando-o, viu que estava coberto de poeira, exceto por um canto
que tinha a marca parcial de sua bota. Escritas na frente estavam as
palavras: Para nosso senhor Arcanjo Charisemnon.
Titus cerrou os dentes. Em vez de abrir o envelope, o levou para
onde Sharine acabava de fotografar a cena da morte. — Os aldeões
parecem ter deixado uma nota.
Quando ela disse: — Devo ler em voz alta? — Ele estendeu o
envelope. A missiva dentro não podia conter boas notícias; tudo que ele
podia fazer para suavizar o golpe era ouvi-la em seus tons ricos e
complexos com textura. — É um idioma que você conhece?
Ela verificou. — Sim.
— Meu senhor Arcanjo — começou ela, depois de abrir o pedaço de
papel branco dobrado dentro do envelope. — Não sabemos se esta
missiva chegará a você, mas temos esperança. Estamos num estado terrível
– perdemos muitos de nossos jovens e fortes, e os monstros que vagam pela
terra destruíram nossas plantações e mataram nossos animais. Não temos
comida suficiente, nem mão-de-obra para cultivar mais antes de ficarmos
sem suprimentos.
— Depois de muito pensar e porque sabemos que não muitos anjos
voam por aqui, tomamos a decisão de caminhar até a vila mais próxima na
esperança de encontrar um porto seguro. Levamos conosco informações
para você. No entanto, também deixamos isso aqui, pois há uma grande
chance de não conseguirmos. As criaturas contaminadas com seu desejo
por carne aparecem cada vez mais. Nós sabemos que você, Arcanjo, está
lutando contra eles e isso tem prioridade.
Titus não conseguiu conter um grunhido diante da confiança,
inocente e pura, que essas pessoas mostravam na destruição traidora do
espaço arcangélico chamado Charisemnon. Em vez disso, sua bota
transformou o rosto do arcanjo em pó depois que pisou no envelope
deixado para trás em uma esperança traída.
Sharine respirou fundo antes de continuar. — Queremos dizer que
hoje tivemos que lutar contra um anjo que estava doente com a
contaminação. No início, quando vimos asas no céu, ficamos tão gratos que
caímos de alegria no chão. Pensamos em enviar uma mensagem pedindo
suprimentos suficientes para nos ajudar a superar o pior. Mas então o anjo
pousou e vimos que ele não estava bem.
— Nós não o atacamos. Por favor, saiba disso. Nós o recebemos como
um convidado de honra, como nós faríamos com qualquer anjo. Mesmo que
seus dentes fossem afiados nas pontas, suas mãos frias e úmidas, e uma
podridão verde estivesse se espalhando sob sua pele. Acreditamos que
estava doente por causa de um ferimento sofrido em batalha, que logo
lutaria contra ele.
— Só por esse conhecimento — murmurou Titus —, Charisemnon
os teria executado um e todos. — Nenhum mortal jamais poderia ver os
anjos como vulneráveis. — Se o Cadre ficar ciente disso, a única escolha
será a morte, ou apagar suas memórias. — Este último era uma coisa
terrível, uma intrusão e uma violação, mas Titus concordava com aqueles
que diziam que era melhor do que um massacre em massa.
Olhos brilhando com uma umidade que ela não permitiu que caísse,
Sharine continuou. — No início, o anjo falou conosco e sua voz era
perturbadora em sua intensidade áspera. Mas isso durou apenas alguns
minutos. Então, rosnando como um cachorro selvagem, ele puxou uma das
mulheres da vila para perto e arrancou sua cabeça, banhando-se em seu
sangue antes de abrir seu peito para se alimentar dos órgãos internos.
Com os dedos tremendo no papel, Sharine o abaixou por um
momento. — Já ouvi falar desse tipo de comportamento.
— Vampiros que cedem à sede de sangue agem assim; os caçadores
muitas vezes os encontram com os rostos cobertos de sangue, as mentes
bêbadas e os corpos fracos pela indulgência. — Ele se aproximou o
suficiente para que sua asa se sobrepusesse à dela. Ela não se afastou ou
o repreendeu pela intimidade. — Posso ler o resto da carta.
— Não. Eu vou terminar. — Outra longa respiração. — Faço isso
pelas pessoas corajosas e amedrontadas que pensaram em deixar isso
para trás, para avisar os outros. — Exalando, ela continuou a ler. — O
anjo parecia bêbado depois, suas ações descoordenadas, então nós
aproveitamos a oportunidade para nos defender.
— Muitos dos nossos fortes já estavam mortos até então, então não
podíamos lutar com ele com honra. Jogamos combustível nele e o
incendiamos. Esperamos que você tenha misericórdia de nós, meu senhor
Arcanjo. Não queríamos causar-lhe dor ou matá-lo sem misericórdia, mas
não tínhamos outra maneira de impedi-lo.
— Depois que ele caiu no chão, usamos um cutelo de cozinha para
remover o crânio da coluna; acreditamos que talvez os anjos possam se
recuperar disso, então deixamos sua cabeça ao lado de seu corpo. Esse
corpo, colocamos com os outros, amigos e inimigos, que jaziam em
decomposição ao nosso redor. Então, acendemos o fogo usando o pouco
combustível que tínhamos.
Pelo menos isso explicava por que o fogo não queimou toda a
aldeia; não tinha combustível suficiente para começar.
— O fogo era a única maneira que podíamos pensar em purificar o
sangue dos contaminados e despedir-nos dos nossos — leu Sharine. —
Fizemos uma oração pelos perdidos e então começamos nossos
preparativos para partir.
— Esperamos que nos encontre na próxima aldeia. Encontra-se a
norte-noroeste em linha reta, uma caminhada de meio dia para um jovem
ou uma jovem. Para nós, isso demorará um dia ou mais. Não temos mais
veículos funcionando e temos muitos feridos, crianças e idosos.
Agradecemos por lutar por nós e esperamos que nossa carta o ajude a
salvar outras pessoas desse horror. E se não conseguirmos, por favor, avise
de nossa passagem para as duas cidades abaixo, onde muitos de nós temos
família e amigos que vão contar aos outros que fomos embora.
Sharine chorava agora, suas lágrimas quietas e de partir o coração.
— Está assinado com o que presumo ser o nome desta vila. Abaixo está
uma descrição do anjo: alto, com pele branca nas poucas áreas onde não
era verde-preto, cachos negros e uma marca na bochecha esquerda que
parecia um raio.
Titus soltou um suspiro. — Skarde, um cortesão de Charisemnon –
e um homem que diziam ser um de seus melhores agentes de
inteligência. — A cicatriz não cicatrizou depois de uma década porque foi
originalmente feita por Charisemnon num acesso de temperamento – o
arranhão mais básico de fogo arcangélico.
Dobrando a carta com cuidado, Sharine a recolocou no envelope.
Permaneceram num momento de silêncio pelos mortos e perdidos.
Quando olhou para ele e disse: — Vamos norte-noroeste? — Ele não
disse a ela que não havia esperança. Ele assentiu; estava além de sua
capacidade abandonar pessoas que pensavam nos outros em seus
momentos mais terríveis.
Primeiro, porém, fizeram uma segunda ligação para seus cientistas
e estudiosos, dando-lhes mais informações. Um dos cientistas pediu a
Titus que pegasse uma amostra de qualquer carne que pudessem
encontrar, bem como algum osso como uma contingência contra um
desastre que pudesse tornar o corpo inacessível.
Ele ainda falava ao telefone quando Sharine se moveu para atender
ao pedido. Tirando a mochila, pegou o pacote em que guardava as barras
energéticas que deu às crianças; o usou para recolher um pequeno osso
de asa, então apertou sua mandíbula e usou sua lâmina de arremesso
para cortar um pedaço de pele mumificada.
Soltando-a no pacote com o osso, o lacrou antes de enfiá-lo no
fundo da mochila e puxou a mochila. Quando olhou em volta procurando
algo para limpar sua lâmina, ele a tirou dela e a limpou nas calças. Mais
uma mancha não fazia diferença.
Aceitando a lâmina de volta quando ele terminou de falar com seu
povo, a deslizou para dentro da bainha da coxa. Dois minutos depois,
alçaram voo num silêncio sombrio, seus olhos procurando ossos na terra.
Meio dia de caminhada não era tão longe voando mesmo em baixa
velocidade e o sol ainda não estava alto no céu quando chegaram a uma
aldeia que parecia viva, fumaça saindo das chaminés e movimento nas
ruas. Ossos em grande quantidade que viram em sua jornada aqui, mas
nenhum era humano.
A aterrissagem deles causou medo, frio e temor a ondular pela vila,
as pessoas caindo com seus rostos pressionados na terra, mas Titus
estava pronto para isso desta vez. — Levantem! — ordenou e, assim que
o fizeram, ergueu a carta. — Venho da aldeia de Dojah. Algum dos
sobreviventes conseguiu chegar aqui?
Uma garota magra com rosto cansado, a pele castanho-clara e os
cabelos trançados contra o crânio, deu um passo à frente. — Meu senhor
Arcanjo. — A voz dela tremeu. — Dez de nós conseguimos. Dois
morreram depois, seus ferimentos terríveis. Dos remanescentes, há um
mais velho do que eu, mas ele luta contra a febre depois de nossa jornada
aqui e não está lúcido. Os outros são crianças, salvos pelas ações
corajosas dos outros, mas feridos em seus corações.
— Sabe o que está escrito nesta carta? — perguntou ele, se
esforçando para manter a voz suave e sabendo que falhou quando ela se
encolheu.
— N-não. — Uma resposta sussurrante. — Minha avó foi quem
escreveu, mas ela se foi. — Lágrimas lavaram suas bochechas.
Sharine se moveu para colocar sua mão na da jovem, murmurando
para ela até que a admiração substituiu o terror em sua expressão e ela
encontrou sua voz novamente. — Vou contar tudo que sei, Arcanjo Titus.
— O fato de ter se dirigido a ele como ele preferia lhe disse que Sharine
disse algo sobre o assunto.
Agradeço a você, Sharine. Ele achava enfurecedor lidar com o terror
cego dessas pessoas, mesmo sabendo que não tinha nada a ver com ele.
Os lindos olhos de Sharine encontraram os dele. Um dia, eles
conhecerão você. Até então, deve ser forte o suficiente para suportar o
medo deles. Sei que tem ombros para carregar esse peso.
Deveria tê-lo abalado, o quanto sua fé nele significava para ele, mas
se estabeleceu em seus ossos como se sempre tivesse existido. — Venha,
— disse ele à jovem — nós três falaremos ao longe debaixo da árvore.
Uma vez lá, separados dos outros na aldeia por um trecho de
pastagem pisoteada, pediu que contasse tudo que sabia. Tudo que ela
disse combinava com a carta. Incluindo que, independentemente da
severidade de sua voz, o anjo falava palavras inteligíveis e racionais
quando pousou pela primeira vez.
— Mas a pele dele parecia um hematoma em quase tudo, —
acrescentou ela — e descascava em alguns lugares, enrugada em outros.
Seus dedos eram em forma de gancho, suas unhas pareciam garras, e
parecia que sua língua estava apodrecendo verde, seus lábios muito
carnudos e vermelhos.
Quando Titus perguntou a quem ela falou sobre o anjo, seus olhos
ficaram muito grandes. — Nossos anfitriões — sussurrou. — Não
queríamos que ficassem surpresos se isso acontecesse aqui.
O sangue de Titus se transformou em gelo negro: toda a vila sabia
sobre o anjo doente.
As pessoas a quem deram abrigo seguro os condenaram à morte.

CAPÍTULO 27

Senhor, eu te agradeço por me permitir servir em sua corte nos


últimos quinhentos anos. Embora eu saia agora para explorar outras
cortes e terras, voltarei frequentemente para desafiá-lo a uma escalada – é
meu dever garantir que você mantenha sua força.
Cuide de minha mãe. Sei que ela é sua primeira general e mais dura
do que jamais serei, mas para mim, é minha mãe. Mas, por favor, nunca
mencione meu pedido a ela. Ela me mataria com seu olhar, então me
reanimaria para me sentar e esfolar vivo com suas palavras.
Jamais esquecerei tudo que me ensinou.

– Carta de Titus para o Arcanjo Alexandre


CAPÍTULO 28

Sharine não disse nada enquanto levavam a jovem de volta para a


aldeia logo depois. Mas uma vez que estavam sozinhos novamente, de
volta à árvore, tocou a mão de Titus, fechando os dedos em torno de seu
punho quando suas asas começaram a brilhar.
— Existem apenas duas opções — grunhiu. — Roubo um pedaço da
memória deles ou acabo com suas vidas. — Sons distantes de vozes de
crianças levantadas durante a brincadeira adicionaram uma parte
dolorosa às suas palavras.
Tendo suas próprias memórias nebulosas de seus anos perdidos,
Sharine tinha uma visão muito pessoal sobre o que significava para uma
pessoa não saber sua história inteira; era uma dor oca de impotência e
perda. — A decisão é terrível. — Ela apertou a mão dele, com o coração
partido e os olhos quentes. — Sempre será terrível, mas tais escolhas
mantêm o equilíbrio do mundo. Algum conhecimento condena os
mortais a uma vida sem liberdade.
— Alexander me contou uma história uma vez — disse Titus, sua
voz soando grossa. — De uma pequena cidade montanhosa no que hoje
é a Itália. As pessoas de lá decidiram se levantar contra a crueldade de
seu anjo governante – ela, o anjo, exterminou toda a população, até o
menor bebê chorão.
Todo o corpo de Sharine ficou rígido. — Por quê? As crianças não
teriam feito mal a ela. — Eles eram os mais inocentes dos inocentes;
mesmo Caliane, em sua insanidade, não fez mal direto aos menores
corações.
— Eu perguntei o mesmo. — Abrindo sua mão fechada, Titus
entrelaçou seus dedos nos dela e ela se agarrou ao seu calor áspero. —
Alexander me disse que era porque ela era cruel além de qualquer senso
de razão. Então ele disse: Digo isso não para defender uma matança em
massa sem sentido, mas para lembrá-lo de que nunca deve permitir que
uma rebelião seja fomentada. Porque no final, isso levará apenas a
sepulturas mortais sem fim.
Ele soltou um suspiro, mas seu peito permaneceu apertado. —
Então sei o que deve ser feito. Parece uma coisa terrível de se fazer para
pessoas que já perderam tanto. — Titus tomou a aldeia novamente, viva
contra a luz do dia. — A única misericórdia é que não saberão o que
perderam.
Titus era velho o suficiente para aprender a apagar memórias com
a precisão de uma alfinetada, e podia fazer isso à distância. Ainda assim,
levou várias horas para apagar todo o conhecimento do anjo infectado da
aldeia.
— É a coragem deles — disse ele a Sharine depois, com uma
tristeza em seus ossos. — A maneira como esses mortais lutaram e como
pensaram nos outros até o fim... É uma coisa de honra, de bravura como
eu elogiaria em qualquer um dos meus guerreiros. No entanto, roubei
deles a memória de seus próprios corações corajosos na luta contra um
anjo que queria apenas matar.
As pupilas de Sharine dilataram, escuras contra o sol de suas íris. —
Mas você sabe. Vai honrá-los em suas memórias, assim como vou honrá-
los em minha arte. — Mudando seu olhar para aquelas palavras
determinadas, ela avaliou a vila à distância. — Depois que for permitido,
contarei a Jessamy, para que ela escreva este capítulo nas histórias
angelicais. A coragem deles não será esquecida.
Ele olhou para a linha tênue de seu perfil, sua pele brilhando com
um leve tom dourado que era etéreo – mas ela era muito real, uma
criatura de carne e osso, sua pele quente e seu aperto firme. Ele não
soltou sua mão, mesmo sabendo que não deveria estar tão familiarizado
com um tesouro da espécie angelical. — Entende que isso ainda não pode
ser falado, nem mesmo aos anjos?
Um aceno de cabeça que chamou sua atenção para a maneira como
ela usava o cabelo; ela poderia ser uma jovem guerreira em sua corte
apenas saindo para o mundo. — Isso espalharia o terror entre nossa
própria espécie e poderia levar a massacres desnecessários.
Ombros magros subindo enquanto ela inspirava. — Existem alguns
entre nós que não pensariam para limpar todo um continente até a terra
nua, a fim de impedir a propagação de uma possível infecção. — Ela
roçou sua asa contra a dele. — Já houve muitas mortes, Titus. Precisamos
encontrar uma maneira de parar isso sem encharcar a terra com mais
sangue.
Titus não discordou de suas palavras. Mas era um arcanjo. — Devo
informar o Cadre. — Não era uma questão de escolha, mas de seu dever
para com o cargo que ocupava. — Assumirei total responsabilidade por
deter o flagelo. Ninguém discutirá com tudo que está acontecendo –
estão ocupados demais lutando contra seus próprios incêndios. — E no
final das contas, ele era a autoridade final neste continente.

*
Titus contatou o Cadre assim que ele e Sharine voltaram para a
cidadela.
Podia dizer que ela estava exausta após a velocidade brutal do voo
de volta – mesmo o fato de carregá-la não podia amenizar o impacto. Ela
se enrolou numa bola tão pequena quanto possível para reduzir o
arrasto, e agora lentamente esticou seus membros sob uma tarde pesada
e sombria, sacudindo a vida de volta para suas asas, braços e pernas. —
Quero um banho mais do que qualquer coisa.
Titus também. Mas isso devia ser feito primeiro.
— Gostaria de participar da reunião? — Ele se pegou perguntando
quando deveria mandá-la descansar.
Ela o encarou por um momento. — Sim. — Sua expressão era
inescrutável.
— Só preciso fazer uma parada para colocar meu peitoral. —
Dourado, ele se curvava sobre seus ombros e trazia o emblema de um sol
no centro, raios de poder saindo dele.
Mas o peitoral não era uma coisa de vaidade. Nem era uma
armadura de guerreiro no sentido mais estrito, pois um arcanjo não
precisava disso – qualquer coisa que o derrubasse não seria
interrompida por um escudo de metal. Não, este era um símbolo de
poder e hoje, precisava do simbolismo.
Sharine esperou silenciosamente enquanto ele o colocava, então
deu um aceno rápido. — Seu rosto está coberto de sujeira e suor, assim
como seus braços. Parece exatamente o que é – um arcanjo lutando uma
batalha.
Calor se espalhando dentro dele, ele a conduziu primeiro ao seu
especialista técnico mais antigo e pediu que ela entregasse o telefone por
um minuto para que as fotografias relevantes pudessem ser copiadas.
Feito isso, entraram numa grande sala montada com telas que o
conectariam ao resto do Cadre. — Terá que ficar fora da vista das
câmeras. — Ele apontou os dispositivos que transmitiriam seu rosto para
os outros. — Você não é uma consorte e, portanto, tem automaticamente
o direito de comparecer.
— Eu entendo — disse ela, mas havia uma carranca em seu rosto.
— Qual delas mostrará o rosto de Aegaeon? Devo me preparar para não
quebrá-la em pedaços.
Assustado, ele jogou a cabeça paratrás e riu, seu peito se
expandindo e a luz inundando suas veias para empurrar o peso e a
escuridão. — Infelizmente, não há uma ordem específica — disse ele. —
Depende simplesmente de quem responde quando. — Ele sorriu para
ela. — apenas terá que ser forte, Shari da faca de arremesso.

Shari da faca de arremesso.


Suas palavras brincalhonas, seu sorriso, o tom de sua voz, tudo isso
atingiu Sharine com força, era verdade... real. Sem nenhum indício de que
usava seu charme alardeado ou arriscava técnicas de sedução. Estava
simplesmente sorrindo para ela, os dois compartilhando um momento de
humor. Ela não estava brincando sobre Aegaeon, mas o sorriso de Titus
fez seus lábios puxarem para cima. — Vou cerrar os dentes e cerrar a
mandíbula.
— Pense apenas que ele ficaria muito satisfeito em ver você perder
o controle, e isso será o suficiente. Acho que ele é esse tipo de anjo, certo?
— Sim — disse ela, e acomodou suas asas ainda apertadas. — Vou
me manter firme. — Palavras que ela ouviu Tanicia usar com um de seus
soldados quando aquele homem chorava por um coração partido. Tanicia
não era a mais gentil dos generais, mas Sharine simpatizou com ela
naquela ocasião – pois o soldado em questão se apaixonava todos os
sábados e chorava por causa de um coração partido todas as quintas-
feiras, ou assim parecia.
— Agora devo fazer isso. — Com o sorriso desaparecendo, Titus se
virou para as telas. Ele mudou sua postura no mesmo movimento. Ele
não era mais o anjo relaxado que a atingiu com aquele sorriso glorioso;
separou os pés, os braços soltos e prontos ao lado do corpo, e as asas
seguras com controle e precisão. Seus músculos carregavam uma tensão
sutil.
Um anjo guerreiro à vontade, mas pronto para assumir uma
postura de ataque em segundos.
A exaustão tornou impossível para ela fazer algo semelhante.
Mandando o orgulho para o inferno, deslizou para se sentar no chão.
Sharine?
Estou bem. Quero me concentrar na discussão, não em meus
músculos doloridos.
Titus concordou. Um momento depois, as telas escuras à sua frente
iluminaram-se por dentro e começaram a mostrar a imagem de uma
ampulheta girando. Ele deve ter enviado um comando mental para o
membro de sua equipe responsável por esta tecnologia.
Enquanto esperava que os outros arcanjos respondessem, Sharine
considerou o fato de que esta era a primeira vez que estaria na presença
de todo o Cadre governante. Ela era uma parte significativa da vida de
Aegaeon, mas ele nunca se preocupou a respeito de apresentá-la aos
outros arcanjos.
Em contraste, Astaad apresentou sua Mele a todos, e ela
frequentemente o acompanhava em eventos formais. Até Sharine a
conhecia, embora tivesse ido a poucas grandes reuniões nas últimas
centenas de anos; ainda se lembrava dos olhos escuros deslumbrantes de
Mele, da inteligência clara e do jeito gracioso de falar. Mas acima de tudo,
se lembrava do orgulho silencioso de Astaad em tê-la ao seu lado.
Quão tola Sharine foi ao não ver os motivos de Aegaeon. Ela sempre
foi para ele um troféu brilhante. Ele nunca amou Sharine, só queria ter a
Colibri. E ela estava tão carente e ferida que aceitou as migalhas de afeto
que ele jogava em seu caminho.
Isso era sobre ela.
Você se julga severamente.
Mesmo com a memória das palavras de Titus reverberando por ela,
a tela no canto superior esquerdo clareou para revelar o rosto de Neha.
Pelo que Sharine podia ver de seu torso, a Rainha da Índia estava vestida
com couros de guerreiro do verde mais escuro, e esses couros estavam
empoeirados, assim como seu rosto. Seu cabelo preto trançado exibia a
mesma pátina de poeira.
— Minhas desculpas pela resposta lenta, Titus. — Palavras tensas.
— Estava no campo ajudando Suyin a limpar os ninhos das vítimas
infantis que Lijuan deixou atrás.
Um estremecimento abalou Sharine.
— Pensei que as crianças já tivessem recebido misericórdia —
explodiu Titus, sua expressão tensa de raiva. — Está dizendo que havia
mais?
Neha assentiu, seus olhos castanhos cansados de uma maneira que
Sharine nunca viu em nenhum arcanjo. — Ou Lijuan os estava mantendo
na reserva ou não responderam à ordem dela quando a deu durante a
guerra. Enfrentaram-se nesse ínterim. Esta é... uma cena difícil.
Sharine não conseguia imaginar o horror do que a arcanjo estava
descrevendo, o pesadelo absoluto de ter que executar crianças que se
tornaram monstruosas sem seu consentimento ou desejo. Usadas como
ferramenta para um arcanjo insano. Não há esperança de cura para essas
crianças?
Não. O tom de resposta de Titus era sombrio. Não há cura para
nada disso.
— Suyin estava suja e ensanguentada a ponto de precisar de um
momento para se lavar. — Uma das amadas cobras de Neha subiu pelo
braço dela, uma joia viva de laranja brilhante. — Como ela não tem um
centro de comunicação funcionando perto desta fronteira, entrará na
discussão de outra sala na minha fortaleza de fronteira.
Mais uma vez, a Arcanjo da Índia e a Arcanjo da China estavam
trabalhando juntas, como fizeram frequentemente ao longo da história.
Mas nunca numa circunstância tão horrível.
Outra tela limpa, desta vez para mostrar o rosto de Alexander,
linhas pressionadas em sua bochecha e os fios dourados de seu cabelo
aparecendo penteados com os dedos. Era o mais natural que Sharine viu
Alexander desde... muito, muito tempo atrás.
Um lampejo de memória que fez seus dedos coçar por um lápis – de
um jovem Alexander sem camisa rindo com uma Caliane igualmente
jovem enquanto pensavam em pular numa cachoeira. Seu cabelo já
estava úmido do spray de água, gotas escorrendo pelo peito, seus
membros mais delgados do que agora. E seus olhos eram... brilhantes,
intocados pela vida.
Ela era tão velha que conheceu Alexandre quando jovem?
Sharine não tinha resposta para isso, o tempo se tornou um
turbilhão sem fim em sua mente. Mas sabia que a memória era
verdadeira; uma memória verdadeira tinha um sabor, uma realidade
texturizada. Perguntaria a Caliane sobre isso quando sua amiga se
levantasse do anshara.
— Titus, terá que desculpar minha aparência. — A voz de
Alexander evidenciou a garra do sono. — Finalmente tive que me render
e deitar.
Como os arcanjos precisavam de menos sono do que os anjos
comuns, ele devia estar à beira do colapso.
As outras telas foram acesas uma após a outra antes que Titus
pudesse responder, e nenhum do Cadre parecia melhor do que o resto. O
cabelo de Suyin estava suavemente molhado e manchas úmidas
marcavam a poeira de suas calças de couro – como se ela tivesse
mergulhado a cabeça numa torneira – enquanto Raphael tinha manchas
do que parecia ser graxa no rosto, e Qin parecia abatido.
Aegaeon estava com o peito nu como Titus estava antes, e naquele
peito havia um redemoinho prateado familiar para Sharine... abaixo de
novas marcas de garras. — Um dos doentes me pegou — murmurou ele
enquanto usava um pano para limpar o sangue com crostas nas pontas, o
azul esverdeado de seu cabelo emaranhado e tão molhado quanto o de
Suyin. — Animais cruéis.
— Sente algum efeito? — perguntou Titus, uma nova rigidez em
seu corpo.
— Uma coceira, mas já está curando — disse Aegaeon sem
preocupação.
Os mais poderosos entre os anjos estavam acostumados a ser
invencíveis, exceto em circunstâncias muito específicas. Essas
circunstâncias sempre envolviam outro arcanjo.
Quando ela olhou para ele, este arcanjo com asas de um verde
profundo com listras azuis selvagens, Sharine sentiu um estrondo
profundo de raiva e uma sensação de alívio. O via agora, sempre o veria.
Aegaeon nunca mais a enganaria, e com essa percepção veio o medo que
ela nem mesmo percebeu que estava carregando.
Estava tão feliz por ele ter deixado nada mais que um pouco de sua
cor e um toque de seu poder para seu filho, tão feliz que deixou a criação
de Illium para ela. Seu filho nunca seria cruel, nunca causaria dor aos
outros de propósito. Illium era mais parecido com Titus do que com
Aegaeon.
Neha foi quem primeiro entendeu o significado das palavras de
Titus. — Sua pergunta para Aegaeon tem algo a ver com o motivo de você
ter convocado uma reunião de emergência quando nenhum de nós tem
tempo de sobra?
— Sim. Descobri evidências de um anjo renascido.
Silêncio.
Foi Raphael quem o quebrou. — Tem certeza? — O azul escaldante
de seus olhos estava preso em Titus; hoje, ele não tinha Elena ao seu
lado, sem dúvida sua consorte na cidade ajudando a lidar com o caos
deixado pela guerra.
Elena e Raphael eram iguais quando se tratava de seu
relacionamento. Um arcanjo e um anjo recém-nascido, mas era verdade.
As vezes que os viu juntos, Sharine nunca viu domínio e submissão, um
alfa e um beta. Juntos, eram simplesmente duas pessoas que se amavam.
Seu olhar foi para Titus, este arcanjo arrogante, bonito e honrado
que valorizava sua opinião o suficiente para convidá-la para este
encontro... e que não se desviou do toque dela quando procurou oferecer
conforto, em vez disso enrolou os dedos nos dela e segurou.

CAPÍTULO 29

— Tão certo quanto posso estar sem os resultados dos meus


cientistas — disse Titus, depois descreveu o local, o corpo queimado do
anjo e a evidência da mão em forma de garra. — Lady Sharine estava
comigo e tirou fotos – estão sendo carregadas nas telas agora.
— O que ela estava fazendo lá? — exigiu Aegaeon, o tom dourado
de sua pele esticado sobre os ossos enquanto se enfurecia. — Disseram-
me que ela é extremamente frágil, sua mente fraturada.
Mesmo com o temperamento de Sharine inflamado, Titus passou a
ignorá-lo.
O temperamento se transformando em humor, ela teve que tapar a
boca com a mão para conter a vontade de rir. Se havia uma coisa que
Aegaeon não suportava era ser ignorado.
Controle-se, Shari. Uma ordem repressiva... dada num tom
divertido.
— Olhe com seus próprios olhos — disse ele em voz alta depois que
todas as fotos estavam disponíveis. — Nenhum de nós precisa de
confirmação científica para saber que esses são ossos de asas angelicais.
Mais silêncio, embora pudesse ver o rosto de Aegaeon ficando
quente por dentro. Aquele rubor vermelho no topo de suas maçãs do
rosto era uma revelação mortal para um temperamento crescente. Tenha
cuidado, Titus, ela avisou. Aegaeon está prestes a explodir.
Se você acredita que estou com medo de um acesso de raiva de um
Antigo trêmulo, não me conhece.
Ela quase bufou de tanto rir dessa vez. Se apenas Aegaeon pudesse
ouvir a si mesmo sendo referido como um Antigo trêmulo. Por outro lado,
eu sou de uma safra semelhante. Como demonstrado de forma tão
pungente por sua memória anterior de Alexandre e Caliane. Ela esqueceu
sua idade; viveu muito tempo, tinha muitas memórias em sua cabeça.
Tudo que sabia era que estava velha, já era velha há muito tempo.
Você não parece velha.
A resposta de Titus foi um beijo derretido. Ela também não se
sentia velha; se sentia estranhamente jovem desde seu novo despertar.
Como se tivesse recebido uma segunda chance de voar alto.
— Eu respeito você, Titus — disse Alexander, e naquele rosto
patrício, Sharine notou novas linhas de dor. — Mas espero que esteja
errado. Se esta doença cruzou a fronteira imortal, então estamos lutando
uma batalha que talvez nunca seremos capazes de vencer.
Raphael estava quieto, mas Sharine viu certa distância em seus
olhos. Pensou que devia estar se lembrando do que a Legião lhe contou –
a história de uma doença que se fixou permanentemente nas células dos
anjos, uma toxina que vivia em cada um deles até hoje.
— Espero estar errado também. — Titus passou a mão pelo cabelo.
— Infelizmente, pelo que descobrimos sobre o que Charisemnon estava
fazendo por trás das portas fechadas de sua corte, nossas esperanças
provavelmente não darão frutos.
Ele abriu suas asas, então as fechou. — Não compartilhei tudo que
descobrimos em sua corte porque todos nós estamos encontrando
horrores. Mas isso é relevante para nossa discussão atual –Charisemnon
estava fazendo experiências com pessoas em sua própria corte.
Especificamente em anjos.
Um assobio de Alexander. — Ele ousou cruzar essa linha?
— Ele a cruzou quando usou seu poder nascido da Cascata para
matar anjos em meu território. — A voz de Raphael era brutal, sem ceder
nada. — Acho que todos podemos concordar que ele não tinha mais
honra nele. Nem Lijuan.
Neha, que estava em desacordo com Raphael por motivos que
Sharine ainda não lembrava, disse: — Nisto nós concordamos. — Com as
mãos nos quadris, ela olhou para Titus. — Você precisa de ajuda?
— Sim. — Suyin falou pela primeira vez, sua voz assombrada e
assustadora, e seus olhos erguidos de obsidiana contra a pele branca
como a neve. — Neha está certa – esta ameaça substitui todas as outras.
Se precisar de nós, nós iremos.
Ninguém levantou a voz em desacordo.
— No momento, só tenho evidências de um único anjo renascido —
disse Titus. — Se isso mudar, enviarei um alerta, mas por enquanto
podem fazer coisas melhores em seus próprios territórios. — Ele mudou
sua atenção para Alexander. — Nossas fronteiras são as mais próximas.
Falarei com você depois que esta reunião terminar.
Alexander deu um breve aceno de cabeça.
— Como estamos todos aqui, todos os sete de nós, — disse Neha
com uma torção de boca — há algum outro assunto para discutir?
Qin, um arcanjo com olhos que ecoavam a beleza de uma aurora, e
asas da sombra de um nascer do sol manchado, o branco passando para
um rosa suave, separou seus lábios. — Parece que, apesar dos melhores
esforços de Astaad – e não estou caluniando sua honra ou coragem, pois
ele lutou bravamente - ele não conseguiu eliminar os insetos venenosos
de seu território.
Seu território.
Era revelador que Qin ainda não houvesse reivindicado a
propriedade das Ilhas do Pacífico. A maioria dos arcanjos não teria
hesitado, mesmo que fosse uma reivindicação temporária. Ele realmente
não faz parte do nosso mundo, não é? Havia algo sobrenatural em Qin,
uma espécie de graça assombrada nele.
Ele não tem escolha a não ser ser, respondeu Titus com uma
franqueza áspera. O Cadre está funcionando com sete agora, um deles um
arcanjo novo em folha. Meus espiões no Pacífico dizem que Qin trabalhou
incansavelmente desde que assumiu o manto de Astaad.
Sharine pensou que era porque Qin só queria voltar a dormir.
Quanto mais rápido limpasse a bagunça deixada pela guerra, mais rápido
podia recuar. Agora, o ébano sedoso de seu cabelo brilhava como
azeviche, suas maçãs do rosto eram cortantes contra sua pele enquanto
continuava a falar.
— São necessárias várias mordidas para matar um vampiro, mas os
mortais são mais suscetíveis. — Dor, tanta dor nele. — Não tenho
escolha. Depois de evacuar os não infectados para um navio de
quarentena, terei que esterilizar três ilhas afetadas.
— Quer dizer uma queima de fogo arcangélico? — Os tons
impetuosos de Aegaeon – mas suas próximas palavras foram de um
arcanjo. — Isso transformará as ilhas num deserto por um longo período.
Tem certeza de que é a única opção possível?
Essa era a coisa com Aegaeon, parte do que a encantou primeiro.
Era um bom arcanjo, que levava suas responsabilidades a sério. Mas essa
honra não se estendeu a um garotinho de asas azuis que o idolatrava.
Não importa quanto tempo ela vivesse, Sharine nunca o perdoaria
por isso. Ele quebrou o coração travesso e risonho de seu menino, e para
quê? Porque não se incomodou em ficar acordado apenas mais algumas
décadas? Décadas não eram nada na vida de um Antigo, meras gotas em
um oceano.
Foi Raphael quem ensinou Illium como levantar uma espada,
Raphael quem deu ao seu filho as lições de vida que deveriam ser
transmitidas por seu pai, Raphael que abraçou Illium com orgulho feroz
quando ele ganhou todas as corridas aladas no Refúgio.
Raphael foi o melhor irmão mais velho que qualquer criança
poderia desejar.
No entanto, Aegaeon teve a ousadia de ficar com raiva porque
Illium se recusou a mudar sua lealdade a Aegaeon? Foi Elena quem disse
a Sharine que Aegaeon tentou recrutar Illium para sua nova corte e foi
rejeitado – a consorte de Raphael fez um péssimo trabalho em esconder
sua satisfação e Sharine foi caridosa com ela.
Illium sabia o valor de sua lealdade e sabia que Aegaeon não
merecia nada disso.
— Espero outra solução. — A voz de Qin era como água, adorável e
sinuosa. — Os cientistas de Astaad continuam trabalhando para
descobrir um remédio menos violento.
— Essa é uma notícia preocupante. — Neha suspirou. — Eu
esperava... — ela balançou a cabeça. — Não podemos ter esperança.
Devemos lidar com a realidade.
Alexander falou no silêncio resultante. — Suyin, como está seu
território?
— Dolorosamente quieto — foi a resposta da mulher que era uma
das maiores arquitetas de toda a espécie angelical, o ponto bonito abaixo
do canto de seu olho esquerdo chamando atenção para a tristeza resoluta
naqueles olhos.
— Pretendo permitir que grandes áreas da paisagem se tornem
selvagens num futuro próximo. Não haverá gente suficiente para manter
os campos, vilas e cidades por muitas gerações. Os números são
catastróficos. — Ela apertou os lábios com força. — Terei que reconstruir
como se fosse um arcanjo que foi dado um território que ninguém jamais
governou – exceto que devo fazê-lo à sombra dos horrores de Lijuan.
Em qualquer outro momento, disse Titus, sua voz ressonante na
mente de Sharine, tais palavras deixariam Suyin pronta para uma
tentativa de aquisição por outro membro do Cadre. Agora, ninguém sabe
quais surpresas Lijuan deixou atrás.
Sharine podia ver a razão por trás da reserva: a China foi governada
por Lijuan por milênios, a própria paisagem impressa com sua marca.
Neha é a única do Cadre a ajudando?
Ela ajuda na fronteira, mas não pousa na própria China. Raphael, no
entanto, passou uma semana inteira com Suyin antes de vir para a África –
e Caliane estará ao seu lado assim que se levantar. Não permitiremos que
Suyin se afogue antes de encontrar suas asas; não podemos perder
qualquer um do Cadre.
— Algum ressurgimento do veneno que Lijuan deixou atrás? — O
tom de Aegaeon fez Sharine revirar os olhos.
Idiota condescendente, Titus disse em sua mente ao mesmo tempo.
Suyin é uma arcanjo, não uma criança que leva tapinhas na cabeça.
Nisso, Titus, estamos absolutamente de acordo.
— Não. — A resposta de Suyin foi firme. — O que quer que ela
tenha feito com a névoa negra fatal, morreu com ela. — Olhos de
obsidiana pousando em Titus. — Acho que você tem a tarefa mais difícil.
Se seu inimigo criou uma maneira de garantir que a doença prosperasse
nos anjos...
A reunião terminou logo depois, deixando Titus e Alexandre
sozinhos. Os dois falaram de precauções para garantir que nenhuma
ameaça sobrevoasse a fronteira. Acabaram de decidir por um pequeno
esquadrão de lutadores alados cujo trabalho seria controlar a área
quando Sharine se lembrou de algo que Illium disse a ela.
Titus, ela disse em seu comprimento de onda mental. Peço
desculpas pela interrupção, mas meu filho me falou de olhos no céu. Você
tem isso?
— Alexander! — Um trovão de som, a vibração reconfortante. — E
os satélites?
Alexander franziu a testa. — Vou perguntar ao meu neto se os olhos
no céu podem observar isso de perto. Não é algo sobre o qual eu tenha
muito conhecimento, filhote.
Ouvindo sua resposta, Sharine se pegou pensando que não era bom
permanecer ignorante sobre os novos métodos. Seu filho adorava este
mundo, estava constantemente lhe contando sobre suas tecnologias e
invenções. Ela aprenderia tudo que ele desejasse ensinar, ela decidiu,
viver no aqui e agora e não no passado.
— Vamos nos falar de novo, avô — disse Titus com um sorriso.
Fazendo um gesto rude do outro lado, Alexandre disse: — Cuidado,
Titus, ou enviarei as gêmeas para uma visita.
— Não tenho medo das minhas irmãs — disse Titus com firmeza.
— Mas, por favor, mantenha-as do seu lado da fronteira, eu imploro. Elas
já me enviam três cartas por semana, cheias de muitos conselhos. — O
afeto em seu tom desmentia suas palavras.
Depois que Alexandre deu uma risada, Titus esperou que a tela
fechasse antes de se virar para ela. — Agradeço Sharine. Essa foi uma
sugestão muito boa e pode nos salvar de perder um esquadrão da linha
de frente — disse ele antes de estender a mão para esfregar as linhas de
sua testa, os ombros mais baixos do que o normal.
Ela ficou chocada ao ver tal vulnerabilidade no grande e impetuoso
Arcanjo da África. Ainda mais porque era uma coisa de profunda
confiança para ele permitir que o visse assim.
— Você precisa dormir — se pegou dizendo, tomada por uma onda
inesperada de ternura. — Voou uma distância incrível num curto período
de tempo, e também não comeu a viagem inteira. Não é bom se forçar ao
extremo e depois entrar em colapso.
Ele olhou para ela, com as mãos nos quadris. — Não sou um bebê,
para ser mandado para a cama.
— Caia de cara, então — murmurou ela enquanto se levantava. —
Eu, pelo menos, vou tomar banho e depois descansar. — Embora tivesse
toda a intenção de expandir seus limites físicos à medida que crescia em
força e resistência, isso não aconteceria durante a noite. O descanso era
uma necessidade.
Abrindo a porta, ela saiu – mas ainda estava perto o suficiente para
ouvir Titus murmurar uma única palavra sob sua respiração: —
Mulheres.
Seus olhos se estreitaram, mas resistiu à tentação de voltar lá –
cansada como estava, ele podia muito bem vencer uma batalha verbal. A
ruiva Tanae dobrou a esquina assim que a porta se fechava. — Minha
dama. — A reverência curta de um guerreiro. — O senhor está dentro?
— Sim. E a reunião foi concluída.
Outra reverência curta, mas respeitosa, antes que Tanae passasse e
entrasse pela porta, sua competência e confiança inconfundíveis.
Sem ter certeza de que entenderia Titus e irritada por estar até
mesmo interessada em tentar, Sharine voltou para seu quarto para fazer
exatamente o que descreveu para o arcanjo teimoso que se recusava a
acreditar que tinha qualquer vulnerabilidade.
Primeiro tirou as roupas sujas, depois lavou a sujeira, a poeira e os
vestígios de renascidos – um arrepio – de seu cabelo. Feito isso, se
esfregou até que sua pele ficasse vermelha de calor e tão limpa que quase
rangia. Seus olhos já estavam fechando quando conseguiu enrolar uma
toalha em volta do cabelo, mas se obrigou a ficar acordada tempo
suficiente para definir um alarme no relógio antigo na mesinha de
cabeceira.
Ela caiu na cama envolta em toalhas e acordou com o sino
estridente que parecia um batimento cardíaco depois. Gemendo, olhou
para fora e viu que enquanto o sol começava a se pôr, ela ainda tinha
tempo para se preparar para os horrores que viriam com as horas da
noite.
Quando desembrulhou a toalha em volta do cabelo, foi para
descobrir que os fios ainda estavam úmidos. Escovando-o, abriu o
guarda-roupa na tentativa de encontrar algo para vestir. Mas nada
mudou desde a última vez que olhou para dentro. Encontrou-se diante de
vestido após vestido, flutuante e bonito.
Não eram itens que teria evitado em outra época ou lugar, mas tais
roupas não eram propícias para lidar com renascidos – e se nada mais,
Sharine planejava voar de guarda sobre os lutadores terrestres e usar
sua habilidade para impedir os renascidos de atacar pelas costas. As
guerras podiam ser travadas em vestidos, mas essas coisas arejadas
voariam e envolveriam sua cabeça enquanto exibiam seu corpo para as
massas.
Fazendo um som baixo em sua garganta, agarrou um vestido ao
acaso e o jogou na cama. Talvez pudesse pedir roupas mais adequadas
antes que a noite caísse e a luta contra os renascidos começasse a sério
mais uma vez. Vestindo um robe por enquanto, decidiu comer algo antes
de se vestir. Notou um pequeno jarro e uma travessa coberta de comida
na sala de estar quando voltou para seu quarto.
A jarra ainda estava lá, mas o prato foi trocado, com a comida
anterior, esperançosamente, utilizada por outros. Tudo isso era
periférico, entretanto; o que chamou sua atenção foi a pilha de roupas
cuidadosamente dobradas que estava no sofá em frente à mesa baixa que
continha a comida e a bebida.
Ela se aproximou com passos curiosos para pegar o primeiro item.
Ela se abriu revelando uma túnica sem mangas em verde escuro
com bordados pretos ao redor da gola arredondada, bem como nas
bainhas. Fendas modestas nas laterais significavam que a túnica caberia
facilmente em seus quadris. Embora limpa, obviamente era usada, mas
não se importou nem um pouco.
Com um sorriso largo, pegou o próximo item. Era outra túnica, esta
com mangas três quartos – o tom era malva que provavelmente não
combinaria com sua tez, mas também não se importou com isso. Tratava-
se de praticidade e ser um ativo, em vez de um passivo.
As calças da pilha eram prosaicas em preto e marrom,
respectivamente. Ela as abraçou com força, não muito orgulhosa para
aceitar presentes dados. Mesmo se fosse Titus a arranjar aqueles
presentes.
Franzindo o cenho, ela, no entanto, levou a roupa para seu quarto e
encontrou uma calcinha limpa. Pelo menos embalou mais lá. Decidindo
vestir a calça preta com a blusa verde escuro, deixou o cabelo solto para
que secasse mais facilmente, mas prendeu um laço de cabelo em volta do
pulso para uso posterior.
A mulher que olhou para ela do espelho tinha o rosto fresco,
nenhum artifício ou idade para ela. — Tolice — disse ela com uma risada
e saiu para a varanda que fluía de seu quarto.
A atividade zumbia no pátio e nos céus, o povo de Titus usando a
hora final de luz para se preparar para a noite. Ela procurou no pátio... e
percebeu que estava procurando por um guerreiro em particular com
ombros largos, pele de ébano e um sorriso que a deixava sem fôlego.
CAPÍTULO 30

Senhor, eu escrevo-lhe da casa da minha filha mais velha. Você e eu


nos despedimos, mas não iria sem esta mensagem final: É minha hora de
dormir, mas meus filhos serão para sempre seus aliados. Chame por eles se
precisar, e eles virão.
Até logo, senhor.

– Carta da Primeira General Avelina ao Arcanjo Alexandre


CAPÍTULO 31

Ruborizando ao perceber que estava procurando por Titus,


Sharine, mesmo assim, não voltou para dentro. Precisava falar com
Tanae ou um comandante vampírico sênior, descobrir a melhor forma de
ajudar.
Foi quando seus olhos encontraram as asas de um anjo que acabava
de pousar, suas penas marrons, mas com pequenos respingos de um azul
selvagem familiar. Ela olhou para o céu novamente; tinha tempo.
Pegando seu telefone, pressionou o número que a ligaria a Illium.
Tocou várias vezes antes dele atender. — Estive levantando
destroços — disse ele, sua voz um pouco ofegante e seu cabelo úmido de
suor empurrado para longe de seu rosto. — Galen diz que fiquei mole,
mas gostaria de vê-lo erguer a parede como acabei de fazer.
Sharine sorriu, acostumada com a brincadeira entre o filho de
Tanae e o dela. Teve a vaga ideia de que foi o mestre de armas que deu ao
seu filho o apelido de Bluebell. — Galen está em Nova York? — Sabia que
ele estava baseado no Refúgio no território de Raphael.
— Raphael chamou todos nós, exceto Aodhan. — Ele olhou para a
direita. — Bárbaro! Minha mãe pergunta por você – embora eu não saiba
por quê!
Olhos verdes claros num rosto de queixo quadrado entraram no
quadro; o cabelo ruivo escuro de Galen caía desgrenhado e espesso em
torno de suas feições. — Lady Sharine — disse ele com um sorriso —, é
bom ver você. — Ele franziu a testa antes que ela pudesse responder e
então se foi numa súbita agitação de asas cinzas e brancas.
— Um anjo perdeu o controle sobre um grande pedaço de
destroços — disse Illium, seu olhar para cima. — Galen está com ele.
— Sua cidade está gravemente ferida. — Sharine percebeu um
pouco disso quando Illium moveu o telefone.
— Sim. — Uma confirmação sombria. — Estamos descobrindo que
algumas das áreas que Raphael teve que queimar são consideradas
venenosas– parece que havia algo especial sobre os insetos que Lijuan
soltou naquela direção, e seu veneno queimou no solo.
A escala absoluta do mal faminto por poder de Lijuan e
Charisemnon continuava a chocá-la. — Há uma solução?
— Nossos cientistas estão trabalhando nisso — disse ele. — Mas,
por enquanto, toda a área está em quarentena. Também estamos tendo
que monitorar constantemente a situação para garantir que nada desse
setor esteja vazando para as águas subterrâneas ou para o rio. Mesmo
morta, sua Loucureza continua a nos assombrar.
Ela não tinha ideia do que loucureza significava, mas, pelo contexto,
adivinhou que deveria se referir a Lijuan. Ouvindo enquanto ele contava
sobre suas outras notícias, notou uma omissão. — Ainda está brigado
com Aodhan? — Não funcionaria. — Sabe agora que a vida não é
garantida, mesmo para um imortal. Não seja tão teimoso.
— Eu não sou o teimoso. — Ele parecia tanto com o garotinho que
ela apoiava em seu quadril quando bebê que ela sorriu.
— Estou bem ciente que Aodhan é igual a você em teimosia. — Suas
memórias de seus anos perdidos continuavam a ser problemáticas, mas
se lembrava de sentar e pintar com Aodhan por horas num momento em
que Aodhan estava envolto em escuridão quebrada. Mesmo no nevoeiro,
sabia que o menino pequeno, quieto e leal que amava estava sofrendo e
ela foi até ele.
— Mas, independentemente de seu humor, — disse ela a Illium —
ele está numa situação muito perigosa – e está longe de casa e daqueles
que mais ama. Diga-me que está cuidando dele.
— Claro que estou —murmurouIllium. — Até mandei para ele um
pacote de casa, cheio de suas coisas favoritas – incluindo um filme de
terror que Elena diz que ama. Mas ele vai me agradecer? Hmph. Ele
provavelmente está compartilhando tudo com Suyin.
Sharine franziu a testa, desacostumada a ouvir tamanha falta de
generosidade na voz de seu filho. — Você não gosta dela?
Um silêncio intenso, seguido por: — Não tem nada a ver com ela.
Outro silêncio, tão tenso que doeu. — Mãe...
A mão dela apertou o telefone quando ele parou; ela queria ficar de
joelhos e implorar para que ele confiasse nela. Implorar para que lhe
dissesse o que forçava sua voz e feria sua alma. Todos aqueles anos em
que esteve perdida, ele foi forçado a confiar em outros e depois apenas
em si mesmo. Ela queria que ele soubesse que estava aqui agora e que
nunca mais o decepcionaria.
— Pode dizer qualquer coisa para mim. — Sua voz saiu áspera,
rouca. — Não ficarei chocada ou consternada. Vou te amar até o fim dos
tempos.
— Ele sempre foi meu melhor amigo — disse Illium finalmente,
algo em sua voz que ela não conseguia ler e o ouro envelhecido de seus
olhos olhando para algum ponto distante. — Esperei tanto tempo que ele
emergisse de seu exílio auto-imposto, mas agora que fez isso, ele abre
suas asas e me deixa para trás.
Colocando uma mão na parede fora de sua suíte, Sharine
cambaleou sob o golpe desconhecido que Illium acabava de desferir.
Aodhan entendia que Illium perdeu não uma, mas ambas as pessoas mais
importantes em sua vida para seus próprios demônios?
Seus olhos ardiam, sua mente caindo em cascata com imagens de
dois garotinhos que eram tão estúpidos quanto ladrões, um levando a
culpa pelo outro, não importava a situação, não importava o que o outro
fizera. — Eu conheço meu filho — disse ela quando pôde falar
novamente, feliz que Illium estava distraído o suficiente para não notar a
pausa. — Ele não é mesquinho e não invejaria que seu amigo encontrasse
a felicidade, então me diga o que realmente machuca você.
Uma respiração trêmula, o vento sua única resposta por longos
momentos. — Olho para trás e me pergunto se ele não sofresse um dano
tão terrível se ainda seria meu amigo. Pergunto-me se ele apenas
permaneceu meu amigo porque ficou gravemente ferido depois... — A
voz rouca, parou novamente por vários segundos.
Quando ele voltou, sua voz era tão baixa que lhe causou dor física, e
ele não olhou para ela. — Eu me pergunto se o homem que sempre
pensei como meu melhor amigo não me considera nada além de um peso
que o amarra a um passado que está tentando esquecer.
Seu coração se partiu por seu filho, que amava tão ferozmente. —
Bastou uma única palavra de sua necessidade para tê-lo voando do
Refúgio a fim de encontrá-lo em Lumia — lembrou a ele. — Ele não
precisava fazer isso.
— É isso mesmo, mãe. — Illium olhou para cima, seus olhos ferozes
e quentes; percebeu que ele estava apertando o corpo inteiro, como
costumava fazer em situações tensas. — Aodhan é leal e paga suas
dívidas, e tenho certeza que acredita que tem uma dívida comigo –
porque esperei tanto tempo, porque nunca desisti dele.
— Não quero uma amizade baseada na obrigação. — Palavras com
raiva e magoadas, seu rosto corou. — Se ele quiser cortar o vínculo entre
nós, gostaria que simplesmente me dissesse em vez de colocar distância
entre nós.
Ela se sentiu perdida. Muitos pedaços de tempo estavam faltando
ou borrados em sua cabeça. Lembrou-se de ter segurado Aodhan nos
anos que ele se trancou na escuridão de sua casa, longe da luz do sol que
o transformava numa estrela cadente contra o céu. Ela se lembrava de
balançá-lo por horas, e lhe dizer que ele conquistaria isso, que brilharia
novamente, mas não importa o quanto tentasse, ela não conseguia
lembrar o que o machucou tanto que se afastou até mesmo de Illium.
Mas uma coisa sabia: — O Aodhan que conheci em Lumia não é
idiota. Não faça a ele o desserviço de acreditar que você o conhece
melhor do que ele mesmo – acho que, pela primeira vez na eternidade,
ele se conhece. — Nisso, ela e Aodhan eram espelhos um do outro.
— E se ele decidir que o homem que está se tornando não quer
nada comigo? — Cruas, as palavras sangraram a dor de Illium.
— Então você vai deixá-lo ir — disse ela calmamente, com a mão
fechada em punho contra o peito e seu olhar travado com o dele. —
Liberdade e amor estão entrelaçados. E você, meu menino de asas azuis,
ama mais profundamente do que qualquer pessoa que já conheci.
Ela quase ouviu a dureza de sua deglutição. Ela desejou que
pudesse estar lá para envolvê-lo em seus braços e em suas asas, como se
lembrava de ter feito por Aodhan. Todo ombros largos e uma altura que
eclipsava a dela, ele ficava tão quieto, tão rígido, mas não a rejeitava.
Murmurando palavras gentis, o embalava perto e o levava para
onde ele pudesse deitar com a cabeça em seu colo e seu corpo
parcialmente sob sua asa. Tanta dor contida naquele corpo grande e
forte, suas próprias asas moles e seu rosto sem expressão. Memória após
memória de ter feito isso pelo menino brilhante que ficou mortalmente
silencioso.
— Até então, — disse ela — ame-o com todas as suas forças.
Aodhan pode um dia quebrar seu coração, mas neste momento crítico
quando está abrindo suas asas, precisa do apoio de um amigo que nunca
o decepcionou. — A angústia torceu por ela ao dar tal conselho, mas
sabia que seu filho nunca se perdoaria se seu amigo precisasse dele e ele
não estivesse lá.
Outro flash de memória, este envolto em névoa. Os ombros de um
Illium adulto caíram e suas asas estavam tão moles quanto as de Aodhan
se tornaram. — Eu tentei tanto, mãe, — soluçou — mas não consegui
encontrá-lo. Por muito tempo, não consegui encontrá-lo. Agora que
temos... — Um estremecimento tão violento que pareceu sacudir seus
ossos. — Não sei se ele voltará para nós. Não sei se vai se curar do que foi
feito a ele.
— Meu lindo menino, — disse ela na onda de memória — você
nunca amou com limites. Não comece agora. Não altere quem é porque
tem medo de perder o que ama.
— Eu gostaria de ser criança de novo, quando seus beijos
costumavam fazer todas as dores melhorarem.
— Irei ver você depois que minha estada no território de Titus
terminar, e Lumia estiver funcionando bem mais uma vez. — Ela o
seguraria então, porque nenhuma criança era velha demais para o amor
de sua mãe.
— Mãe.
— Sim?
— Estou feliz que esteja acordada novamente. Tive saudades de
você.
Ela ficou lá, com o coração doendo depois de encerrar a ligação,
mas ainda não havia terminado. Tinha mais de um menino para verificar.
— Eh-ma. — A voz surpresa de Aodhan enquanto falava o termo
afetuoso com que sempre se dirigia a Sharine. — Você está no telefone!
— Sim — disse ela, sorrindo ao ouvi-lo vivo e bem. — Entrei nesta
nova era. — Pegando o som do vento, ela disse: — Está no ar? — Isso
explicava por que respondeu apenas com a voz, em vez de imagem para
que pudesse falar com ele cara a cara.
— Patrulha noturna — dissea ela. — Há muito silêncio nesta
paisagem, mas sinto uma coceira na nuca, a sensação de que Lijuan nos
deixou mais uma surpresa.
Sharine se endireitou; Aodhan sempre foi intuitivo. — Ouça seus
instintos.
— Eu vou — prometeu. — Inicialmente, não queria ser deixado no
comando da fortaleza enquanto a Arcanjo Suyin ia para a fronteira, mas
agora estou feliz com isso.
— Você tem reforço? — As forças da China foram dizimadas, e com
o país aparentemente sem renascidos, exceto as crianças na fronteira,
não receberam muitas tropas de socorro.
— Um esqueleto de esquadrão. Mas o esquadrão principal de Lady
Caliane está em alerta para ajudar caso seja necessário. — Uma onda de
vento que indicava uma curva. — Como você está, Eh-ma?
— Sobrevivendo a Titus.
Uma risada que ficou silenciosa por muito tempo, seguida por
palavras mais hesitantes. — Falou com Illium?
— Agora mesmo. Ele está bem. — Ela considerou o quanto dizer,
decidiu não interferir, pois estavam crescidos agora. Mas podia dar
conselhos – tal era a prerrogativa materna. — Tenho a impressão de que
vocês dois ainda estão em desacordo.
Um som profundo que ela nunca ouviu Aodhan fazer. Era mais na
casa do leme de Titus. — Ele é a pessoa mais teimosa que conheço.
Seus lábios se curvaram, seu coração doendo menos. Esse não era o
som de um homem tentando se desligar de uma amizade. — Parece que
me lembro de você jurar de alto a baixo e de lado que roubou os
biscoitos, mesmo com o verdadeiro culpado sentado ali com migalhas
por todo o rosto.
Uma risada repentina e deslumbrante. — Você conhece muitos dos
meus segredos. — Ele não disse mais nada sobre o assunto, e ela deixou
passar – ela precisava ser território neutro, então qualquer um deles
poderia falar com ela sem se preocupar com as palavras deles indo mais
longe.
Em vez disso, perguntou como ele estava se saindo tão longe de
casa e ouviu tudo que ele tinha a dizer. Depois, ficou lá na varanda e
preocupada. Se Lijuan deixou para trás um terrível presente final,
Aodhan estava no epicentro dele. Mas, ao contrário de quando era
criança, ela não conseguia puxá-lo de uma situação perigosa.
— Você já se alimentou? — Uma pergunta estrondosa vinda do
pátio.
Com a mão batendo em seu coração, olhou por cima da borda da
varanda para ver um Titus sem camisa parado ali com as mãos nos
quadris, a cabeça inclinada para trás para olhar para ela. Ele parecia
suspeitamente bem descansado, e se o sorriso em seu rosto era alguma
indicação, seu bom humor foi restaurado. Ela não sabia por que achava
isso tão atraente.
— Shari! Estou esperando!
— E estou em posição de deixar cair algo na sua cabeça!
Jogando a cabeça paratrás, ele riu. Suas próximas palavras estavam
em sua mente, sua voz ressonante e bonita. Vou comer. Vai se juntar a
mim ou jogará facas com a língua?
Enquanto ela observava, ele voou para cima e para a direita de sua
varanda. Era lindo em movimento e ela corou quando ele pousou e quase
a pegou olhando. — Sharine?
— Estou indo.
Como o quarto dele ficava bem ao lado do dela e ele deixou a porta
aberta, ela entrou sem bater. Não sabia o que esperava de seus aposentos
privados, mas esta seção de entrada era quente em seu abraço, decorada
com um enorme tapete cor de terra e assentos igualmente grandes e
confortáveis.
Nada tinha pontas afiadas, exceto pelas armas que ele montou nas
paredes. Todas eram únicas, de diferentes épocas e lugares. Ele também
tinha arte nessas paredes, inclinando-se para pinturas que falavam do
coração vibrante desta terra. Ela foi atraída por uma em particular – tinta
em tecido feita nos mesmos tons de terra e pôr do sol que dominavam
esta parte de seus aposentos.
— A apreciação da arte pode esperar. — Titus estava parado na
ampla porta da varanda, os braços cruzados e os lábios curvados. —
Venha, Shari, a comida vai esfriar.
Um único olhar e ela estava em perigo de um afrontamento. Parado
ali assim, com a luz do pátio iluminando seu corpo e sua pele brilhando
com saúde sob a túnica marrom escuro sem mangas que ele vestiu, ele
era a personificação das fantasias que ela tinha quando menina – quando
ainda acreditava na tolice da atração apaixonada e vivia para a emoção
de um coração que batia rapidamente.
Na frente dela, sua expressão se tornou íntima... dando boas-vindas,
e sabia que ele não a rejeitaria se decidisse cruzar a sala e ficar na ponta
dos pés para tocar sua boca na dele, suas mãos niveladas contra as
cristas musculosas de seu peito.
Mesmo quando seu sangue se transformou em mel, sabia que não
era apenas físico, o que se enraizava entre eles. Os dias que passaram
juntos na jornada para o assentamento e de volta, as horas que passaram
conversando, alteraram seu relacionamento num nível fundamental.
— Sempre há tempo para a apreciação da arte — disse ela, mas
caminhou na direção dele –precisava sempre estar consciente de sua
propensão a se esconder dentro da arte. A arte era segura. Arte não
exigia. Arte não olhava para você de uma forma que fazia brasas arderem
em seu estômago. E a arte não te machucava da maneira como as pessoas
te machucavam. — Mas estou com fome.
Titus inclinou seu corpo para que ela pudesse passar, e embora a
porta fosse larga e ele não fizesse nenhuma tentativa de impedi-la, ela se
sentiu golpeada pela parede de força e calor que era seu corpo. Com a
coluna rígida, tomou cuidado para que suas asas não o roçassem ao
passar.
Se precisava se sentir atraída por um homem, por que necessitava
ser alguém tão grande, ousado e bonito? Não se tratava mais de
compará-lo a Aegaeon. Os dois podiam ter semelhanças superficiais, mas
não era tola – ela via o coração de Titus agora, e aquele coração era maior
do que o de Aegaeon jamais seria.
Não, era por causa de Titus, de quem ele era – este homem deixaria
uma marca em sua vida se o deixasse entrar, e Sharine já tinha muitas
cicatrizes dentro. Precisava decidir se valia a pena arriscar outra para
uma fatia fugaz de prazer.
Nunca fiz promessas para sempre. Qualquer mulher que entre em
meus braços entende que ofereço apenas prazer e carinho.
Sharine não queria para sempre, não sabia se alguma vez estaria
num lugar onde pudesse confiar o suficiente para oferecer seu coração.
Por outro lado, no entanto, também não sabia se foi construída para
flertes rápidos.
Como sabe? Perguntou a parte dela que ficava cada vez mais
tagarela ultimamente. Não é como se já tivesse tentado. Arrisque-se, dance
com Titus. Você é forte o suficiente agora para juntar os pedaços – se é que
haverá algum pedaço para juntar em primeiro lugar.
Você não é mais quem era, Sharine. Assuma o risco.
CAPÍTULO 32

Quando Titus puxou sua cadeira para ela, se assustou ao ver uma
carranca desfigurar seu sorriso. Percebeu seu desconforto e incerteza?
Esperava ser uma convidada melhor que isso – mas Titus, ela estava
aprendendo, tinha mais sensibilidade do que a maioria do mundo
imaginava; nunca esqueceria sua luta interna enquanto se preparava
para limpar as mentes dos moradores.
— Vejo que devemos estar esfomeados. — A mesa estava cheia de
pratos sobre pratos, todos fumegantes e aromáticos, mas não foi por isso
que fez o comentário – descobriu que não gostava quando Titus ficava
quieto, e como ele parecia incapaz de resistir a responder ao sarcasmo
ou palavras secas da parte dela, ela usaria isso para quebrar seu humor.
— Eu te disse, estou com fome – e tenho um cozinheiro que assinou
contrato para alimentar a corte de um arcanjo, mas agora está
administrando as refeições da tropa. O homem não consegue se conter —
resmungou e pegou um prato. — Experimente isso. Vai gostar.
Se perguntando se o humor dele resultava de fome, tomou uma
colher. Quando ele olhou para a pequena quantidade em seu prato, ela
revirou os olhos. — Quero provar todos os pratos e não poderei fazer
isso se me empanturrar com o primeiro.
Não parecendo nem um pouco convencido, ele começou a servir
sua própria porção enquanto ela provava a colher. Floresceu uma
variedade de sabores frescos e brilhantes em sua língua. Gemendo
profundamente em sua garganta, olhou para cima. — Não estou dizendo
que estava certo, mas talvez eu devesse ter pegado mais.
Um sorriso deslumbrante quebrando a carranca, ele entregou a
tigela... enquanto prendia a respiração. Ele era lindo, com um calor que a
atraía como uma mariposa por uma chama. E embora ele pudesse voar
de mulher para mulher, era honesto em suas atenções. Não mentia e
fazia falsas promessas.
Qualquer marca que deixasse não seria marcada pela crueldade.
— Você está pensando muito. — Outra colher aromática colocada
em seu prato. — Coma. Você deu sua comida durante nossa jornada, e
estará nos céus novamente assim que a escuridão cair.
Seu estômago escolheu aquele momento para rosnar.
Quando Titus riu, o som foi uma onda crescente de alegria, ela se
viu juntando-se a ele, faíscas de prazer em sua corrente sanguínea. Fazia
muito tempo que riu com tanta felicidade, mas por estar com Titus... sim,
ele a fazia se sentir bem. Ele podia enfurecê-la e irritá-la, mas nunca a
fazia se sentir menos importante ou sem importância.
Comeram em harmonia amigável pelos próximos quinze minutos,
trocando pratos um com o outro, e comendo um pouco daquilo, muito
disso, até que seus estômagos estivessem saciados a ponto da conversa
ser possível. — Você dormiu? — perguntou ela enquanto ele enchia seu
prato.
Ela podia dizer que ele não comia direito há muito tempo – podia
ver na nitidez de suas maçãs do rosto, a magreza sutil de seu torso.
Poderia acontecer assim com os incrivelmente poderosos – uma
mudança física repentina quando queimavam muito intensamente.
E Titus estava correndo nesse ritmo por algum tempo.
Pegando um prato de que ele gostava particularmente, ela o
estendeu. Nunca mais esperaria por qualquer homem, mas era uma
mulher que cuidava de seu povo, e não permitiria que Aegaeon roubasse
essa parte de sua natureza – especialmente dado que Titus a alimentaria
até a borda se permitisse isto.
Rugas se formando em suas bochechas e luz em seus olhos, Titus
aceitou o prato. — Asante, Shari.
Ela não teve problemas em reconhecer o idioma. — De nada.
— Dormi e você estava certa, me sinto muito melhor por isso. —
Uma carranca. — Não diga eu te avisei. Recebo o bastante disso das
minhas irmãs.
— Por que não ouvi mais sobre suas irmãs? — Era verdade que não
prestava muita atenção às fofocas casuais, mas certamente deveria ter
ouvido falar da família de um arcanjo.
— Provavelmente porque são muito mais velhas. — Ele tomou um
longo gole de cerveja. — Suponho que quem não nos conhece acredita
que, com tamanha diferença de idade, não devemos ser próximos. — Um
sorriso. — Como se a primeira general fosse permitir qualquer coisa,
menos total coesão em seu esquadrão familiar pessoal.
Seus lábios se curvaram. — Você é muito orgulhoso de sua mãe.
— Sim. — Ele colocou um pedaço de carne no prato dela. —
Também estou feliz que ela esteja dormindo. Um homem precisa de uma
pausa na maternidade a cada poucos milênios. Claro, com minhas irmãs
assumindo a causa, não tenho tanta certeza se estou melhor.
Fascinada, ela esperou que ele continuasse.
— Uma coisa é certa – sob nenhuma circunstância permitirei que
minha mãe se junte ao meu exército quando ela acordar, embora seja
uma general brilhante homenageada por outros — acrescentou ele, com
a testa escura. — Ela provavelmente me diria que todas as minhas
estratégias estão erradas e também me perguntará por que não estou
usando uma camisa.
Sharine queria rir, mas não estava disposta a quebrar o momento.
— Alexander está pronto para recebê-la de braços abertos a
qualquer momento que ela acordar – e uma vez lá, ela sem dúvida
matará metade de sua corte com sua presença magnética. — Um sorriso
enorme, o sol batendo nele com força brilhante. — Eu herdei meu
charme dela. Nós dois devemos espantar os pretendentes com um
pedaço de pau.
Sharine estreitou os olhos. — Mais uma vez, estou cega pela sua
modéstia.
Seu comentário seco apenas fez seu sorriso se aprofundar... e seu
estômago embrulhar. Porque, oh, ele não se arrependia, era inteligente e
amava. Essa era uma das coisas mais atraentes em Titus. Podia
murmurar sobre suas irmãs e mãe, mas o fato de que as amava era a
chama de uma vela em seu coração que ela quase podia ver.
— Meu pai passava tanto tempo com minha mãe que dorme desde
que eu tinha setecentos anos. — Uma risada. — Antes de ir dormir, ele
me disse que ela o esgotou e foi glorioso. Agora ele deve se recuperar.
Seus lábios se contraíram, ele estava sendo tão conscientemente
perverso.
Com os olhos brilhando para ela, ele se inclinou. — Ela ficou com
ele cerca de setenta e cinco anos. Ficou grávida cinco décadas depois
disso.
Sombras em seu coração, memórias de outro garotinho com pais
que não estavam ligados durante sua infância. — Você cresceu com sua
mãe?
— Minha mãe, meu pai, minhas irmãs, seus amores, todos eles. —
Ele gemeu. — Meu pai comprou uma casa ao lado da minha mãe, e assim
éramos uma família mesmo após não serem mais amantes. — Mais amor
em sua voz, aberta e orgulhosa. — Ele também é um guerreiro, e entre
eles, me ensinaram como empunhar uma espada antes que eu pudesse
voar.
As sombras queimaram sob o calor escaldante de sua voz. —
Certamente, com tal mãe, mais de seus irmãos devem ser guerreiros.
— Nossa mãe sempre nos disse para sermos fiéis à nossa natureza,
para sermos honestos no caminho que escolhemos seguir. — Mais uma
vez, muito amor e respeito em cada palavra. — Zuri e Nala são
comandantes de esquadrão no exército de Alexandre. Você conhece
Charo. Phenie é música.
— Oh! — Ela engasgou. — Phenie? Sua irmã é Phenie? — Uma das
harpistas mais famosos de toda a espécie angélica. — Meu Deus, Titus, o
talento corre forte em sua família.
— Sabe quanta harpa tive que ouvir enquanto crescia? — Seu
gemido vibrou em seus ossos. — Cada vez que ela cuidava de mim, era
harpa, harpa, harpa. Phenie diz que estava tentando acalmar a fera feroz
que era seu irmão mais novo, constantemente pulando nos móveis e
voando dos lustres, e pulando das sacadas.
A risada saiu dela quando ele pegou a caneca de cerveja em seu
cotovelo e, com a cabeça ligeiramente inclinada paratrás, bebeu em
longos goles.
Sua garganta se moveu, os tendões fortes contra sua pele.
Com os dedos dos pés enrolados e o estômago apertado, pegou sua
própria caneca e tomou um gole. Era um fogo potente que queimava suas
entranhas. Mas gostou disso, gostou que clareasse sua mente e a
trouxesse de volta aos seus sentidos. Até o momento que Titus baixou a
caneca e limpou a boca com as costas da mão, ela se controlou.
No entanto, sua voz saiu rouca quando disse: — Acho que gostaria
muito de conhecer suas irmãs.
Titus sabia que todas as quatro a amariam. Não a distante e
admirada Colibri, mas Sharine, como era agora. Brilhante com vida e
energia, e com uma sensualidade sutil, mas inegável, da qual ela parecia
não perceber, mas ele definitivamente notava. A maneira como ela corria
os dedos sobre superfícies de texturas diferentes do veludo à madeira, a
maneira como inspirava cheiros, seus olhos tremulando semicerrados
enquanto se perdia na sensação, e a maneira como às vezes o observava
como se quisesse dar uma mordida nele.
Titus não estava nem um pouco indisposto. Gostaria que seus
dedos de artista traçassem seu corpo e aprendessem suas texturas, ficou
duro com a ideia dela se deliciar com o cheiro dele, e quanto à mordida?
Seguraria suas curvas inferiores e a levantaria para que pudesse dar
aquela mordida diretamente em sua boca.
A mulher era um inferno numa garrafa.
Ninguém olhando para ela podia imaginar que era milênios mais
velha que Titus.
Seu intestino apertou novamente, seus ombros travando. Ele
esqueceu a diferença de idade enquanto comiam juntos, só agora se
lembrando da longa vida que ela viveu. Muito mais longa que a sua. Essas
coisas não importavam entre os anjos depois de alguns milênios de
existência, mas para todos os efeitos, Sharine era uma Antiga.
Uma amada e reverenciada Antiga.
Que o fez se coçar para acariciar a inclinação de suas costas quando
passou por ele na porta, e cuja risada ondulou sobre ele como mãos
acariciando. Seu pênis reagiu à mesma risada e à luz em seus olhos
enquanto ela ouvia suas histórias de família com interesse aberto.
Ela... o compelia.
Titus ficou tenso. Era um homem com fortes apetites carnais, mas
tinha esses apetites sob estrito controle. Embora amasse sua mãe, ele a
via conduzindo homens pelo pau desde que era uma criança – Titus não
tinha nenhum desejo de se tornar parecido com aqueles homens
apaixonados. Nenhuma mulher com quem flertava chegou perto de
exercer tanto controle sobre ele.
Pegando uma uva do prato sobre a mesa, Sharine separou os lábios
para colocá-la dentro, e todo seu corpo zumbiu de necessidade. Estava
quase decidido a estender o braço para esmagar toda a comida no chão,
então levantá-la e colocá-la na mesa para que pudesse se banquetear
com ela.
Com os dentes cerrados, empurrou a cadeira atrás e se levantou. —
Devo voltar para a patrulha. É possível que possamos localizar e eliminar
tocas inteiras de renascidos enquanto estão descansando.
Sharine lançou-lhe um olhar penetrante. — Ouviu de seus cientistas
sobre o anjo renascido?
— Nada conclusivo ainda. — Esticando as asas, ele disse: — Se não
deseja trabalhar em sua arte, pode usar minha biblioteca. — Ele estava
bem ciente de que estava acendendo o pavio de seu temperamento, e
ainda, apesar do perigo que ela representava para ele, não conseguia
parar. Cruzar espadas com Sharine era muito tentador.
Olhos de adaga, exatamente como ele planejava. — É seguro visitar
a corte de Charisemnon?
Abrindo suas asas, ele olhou para sua convidada menos
cooperativa. — Por que gostaria de ir lá? — Ele presumiu que ela
gostaria de sair com um esquadrão – e poderiam usar suas habilidades
no campo.
— Não agora – nas horas de luz — esclareceu. — Quero caçar na
corte de Charisemnon por qualquer coisa que possa ter sido perdida –
notas sobre seus experimentos, outras informações.
Em pé, ela colocou uma das mãos nas costas da cadeira. — Você e
seu povo entraram como guerreiros, para limpar o território inimigo de
perigos. Não estava procurando por notas ou informações sobre uma
doença angélica – e não sou uma especialista em caçar informações.
Tudo dentro dele se rebelou em mandá-la para aquele lugar.
Procurando tempo para pensar, se virou para onde deixou sua
couraça e outra armadura. Ele a vestiu hoje, completo com ombro, pulso
e proteção das costas.
Seus lutadores estavam cansados, seu povo igualmente. Às vezes,
um símbolo importava. Deslizando suas espadas em bainhas cruzadas
em suas costas, tomou uma decisão.
— Se está procurando informações sobre a doença, — disse ele —
provavelmente será em sua fortaleza na fronteira – ele se escondeu lá
por algum tempo antes da guerra. — Sua boca se torceu. — Achei que
estava sendo um bom aliado, preparando-se para a batalha que todos
sabíamos que viria.
— Sim, ele teria mantido suas anotações por perto. — Ela procurou
o rosto de Titus. — Que você não assumiu imediatamente essa desonra
diz muito sobre você, Titus.
Ignorando suas palavras, ele disse: — Não sabemos que feiura polui
o ar da fortaleza fronteiriça de Charisemnon.
— Se for o suficiente para matar um anjo da minha idade — disse
ela com serenidade —, então o mundo está realmente em apuros e seria
melhor se soubéssemos agora.
Titus não queria concordar, mas ela estava certa. Ele deu um breve
aceno de cabeça.

Mas quando amanheceu depois de uma noite de trabalho brutal


contra renascidos violentos e estridentes, ele disse: — Se esperar até que
eu termine com os retardatários, vou acompanhá-la.
Suada, suja e cansada acima do campo de batalha, uma mulher
pequena com um espírito gigante, ela apertou os lábios. — Vou causar
um problema de segurança indo assim que me limpar? Precisa de mim
no campo nas próximas horas?
Ele podia mentir e ela não saberia de nada diferente, mas Titus não
era mentiroso. — Não, estou enviando a maioria dos esquadrões e
equipes de solo de volta para casa para descansar e recarregar.
— E a corte de Charisemnon? — perguntou ela. — Não desejo
cortar o precioso tempo de descanso de seu pessoal precisando de um
destacamento de segurança.
Novamente, ele não mentiu. — A fortaleza está segura, com um
esquadrão de guarda permanente. — Ele sempre teve a intenção de
investigar mais completamente a base de seu inimigo. — É, entretanto,
capaz de ser nojento. Arrastamos os corpos e jogamos água nos andares
principais, mas não tivemos tempo para uma limpeza mais profunda.
— Não tenho medo de sujeira.
Não, ela não tinha, ele pensou, lembrando como ajudou a empilhar
as carcaças dos renascidos na fogueira. — Vou designar um lutador do
esquadrão de guarda para você no caso de termos perdido alguma coisa.
O povo de Titus varreu a fortaleza de cima abaixo, mas não havia
sentido em se arriscar... especialmente com Sharine, este anjo que estava
causando uma reação nele para a qual não estava pronto. — Não quero
seres angelicais atrás da minha cabeça porque não cuidei da Colibri
enquanto estava sob meus cuidados.
— Não sou uma relíquia a ser escondida. — Estrias de cor em suas
bochechas que a fizeram brilhar. — Nem pertenço a ninguém além de
mim mesma. Não estou sob a guarda de ninguém. — Fogo em seus olhos,
oh, que fogo brilhante.
Isso o escaldou. E o deixou com fome de queimar-se nele.
Queria segurar seu queixo, iniciar um beijo. Ela provavelmente o
apunhalaria com sua lâmina por ousar. Porque esta mulher, ela não era o
tesouro frágil da espécie angelical. Era Sharine, que brigava com ele
enquanto voavam e que lhe ofereceu segundos pratos do que percebeu
que ele mais gostava. Uma mulher que ainda estava pairando frente a
frente com ele, a cabeça inclinada para encontrar seu olhar enquanto ele
olhava para baixo.
Não se lembrava de se mover, não se lembrava dela se movendo,
mas o calor vaporizou o ar entre eles. Era uma loucura, mas mesmo
assim ele abaixou a cabeça e tomou seus lábios num beijo que a devorou.
Sua mão estava segurando a pele sedosa da bochecha dela antes que
percebesse, e bem sentiu o choque da mão dela agarrando seu bíceps; as
unhas dela cravaram em sua carne num aviso de que ela não estava feliz.
Mas ela não encerrou o beijo, mesmo quando ele a puxou para mais
perto e acariciou as curvas inferiores de seu corpo, o outro braço travado
em torno de suas costas e seu pênis rígido empurrando em seu
estômago. Sua cabeça era fumaça, cheia de intoxicação, sua respiração
irregular. E ele ansiava. Mais e mais e mais ainda.

CAPÍTULO 33

Quando ela arrancou a boca e colocou ar entre eles, se encararam,


com o peito arfando.
— Não — disse ela muito firmemente.
A mente turva de uma maneira que não acontecia desde que era um
jovem apenas descobrindo as mulheres, Titus não reagiu. Então a palavra
finalmente penetrou e ele deu um passo automático atrás no ar; ao
contrário de alguns anjos que queimavam com poder, ele não acreditava
que era seu direito tomar qualquer mulher que quisesse.
Foi criado por cinco mulheres muito fortes, todas as quais
respeitava profundamente, e todas viriam atrás dele com lâminas
desembainhadas se desrespeitasse qualquer outra mulher dessa forma.
Sua mãe acordaria de seu sono por puro desgosto.
Não, Titus não forçava mulheres. Nunca.
No entanto, não havia nenhuma regra contra ter certeza de que
estava certo. — Não por hoje? — perguntou ele, porque se fosse, ela
estava certa em parar com isso – não era hora nem lugar. Ele
provavelmente já havia deixado metade de suas tropas em coma por
maltratá-la com tanta familiaridade. — Ou não para sempre? —
Perguntar o último fez seu estômago apertar e a necessidade crua disso o
apavorou, mas perguntou.
Ela cavou seu caminho sob a pele dele, uma rebarba que não
conseguia desalojar... e não queria rejeitar. Certamente, se acreditasse
em tais coisas, diria que ela fez feitiçaria com ele. Mas não acreditava em
tais coisas, então sabia que isso era algo totalmente diferente: uma
combustão entre duas forças opostas que de alguma forma provaram ser
apaixonadamente compatíveis.
A respiração dela, ele ficou satisfeito ao ver, permanecia tão
instável quanto a dele quando disse: — Não por hoje. — Mesmo quando
os lábios dele começaram a se curvar, ela tirou a poeira da túnica e das
calças. — Não tenho nenhum desejo de me amarrar a nenhum homem –
e você deseja permanecer livre de complicações também, certo?
Ele piscou, desconcertado de uma forma que não fazia sentido. —
Sim — disse ele, porque é claro que era assim. — Não estou procurando
uma consorte, mas sim uma amante.
— Então falaremos mais quando o momento não for tão
inoportuno. — Palavras calmas, mas sua respiração permaneceu
irregular.
Titus sabia que ela estava certa. Mas levou um momento para
cruzar com ela e levantar a palma da mão em sua bochecha –
telegrafando sua intenção para que ela pudesse recuar se desejasse.
Ela não disse nada.
Embalando a suavidade da pele que queria beijar centímetro a
centímetro, olhou nos olhos enigmáticos, velhos e jovens ao mesmo
tempo, e disse: — Será um incêndio entre nós, Shari. — Não era gentil
também. — Espero ser queimado.
Ela estendeu a mão com a confiança de uma mulher que se
conhecia e agarrou o arco de sua asa, acariciando com firmeza. O prazer
erótico balançou seu corpo inteiro, seu sangue derreteu. — Então nós
queimaremos — sussurrou ela e baixou a mão. — Fique protegido da
escuridão, Titus. Temos negócios inacabados, você e eu.
O toque dela era uma marca em suas penas e ele meio que esperava
ver as marcas de sua posse quando ela quebrasse o contato, faixas de
champanhe cintilante que reivindicavam um arcanjo. — Sua escolta está
vindo da fortaleza de Charisemnon. — Então, embora a preocupação por
ela roesse seu estômago, saiu sem mais palavras.

Sharine observou o corpo poderoso de Titus cortar o céu do


amanhecer, seu batimento cardíaco trovejando e sua pele quente. O ouro
de sua armadura o transformou num pedaço do sol, a personificação da
força arcangélica. Sentiu uma queda silenciosa em torno dela enquanto
seu povo olhava, atraído por aquele fogo dourado.
O tempo todo teve que lutar contra o desejo de pressionar os dedos
na boca latejante. Nunca compartilhou um beijo assim. As brasas
fumegantes dentro dela explodiram em chamas no instante que sua boca
tocou a dela, envolvendo os dois em asas de fogo.
Queria correr as mãos sobre sua carne musculosa, pressionar os
lábios na seda aquecida de seu corpo, explorá-lo com uma fisicalidade
carnal que parecesse natural, certo. Como se não houvesse nada que
pudesse exigir que ele não desse... e nada que ela não daria para aplacar
sua fome por sua vez.
Obrigando-se a se afastar da força da natureza que era o Arcanjo da
África, voou para a cidadela na maior velocidade que pôde. Ela havia
acabado de comer uma refeição rápida após tomar banho com a mesma
rapidez e se vestir com roupas limpas quando ouviu o sussurro de asas
em sua varanda.
Saindo de seu quarto, encontrou uma guerreira esguia esperando,
seu cabelo era um halo preto escuro ao redor de sua cabeça, suas asas de
um tom de pêssego fresco misturado com fios de ruivo, e sua pele do
marrom dourado de um pigmento que Sharine tinha à mão – misturado
para seu trabalho atual em andamento.
Os olhos da guerreira eram do mesmo castanho e afiados. Lábios
exuberantes forneciam um contraponto suave. Era extraordinariamente
bonita.
— Senhora. — Uma profunda reverência. — Sou Kiama. O senhor
me designou para escoltá-la até a fortaleza da fronteira norte.
— Agradeço — disse Sharine, alcançando a mente de Titus.
Quando ele indicou que a ouviu, ela disse: Kiama tem a categoria
superior para saber o que eu procuro?
Ela comanda a guarnição da fronteira e tem toda a minha confiança.
Seu tom era ressonante, mas distante, sua atenção claramente em outro
lugar. Ela se retirou imediatamente, relutante em distraí-lo se estivesse
lidando com um dos renascidos.
Voltando sua atenção para a jovem – embora juventude fosse um
termo relativo quando você era tão velho quanto Sharine – ela disse: —
Vou à corte de Charisemnon para pesquisar seus laboratórios e qualquer
outro lugar que ele possa ter escondido informações. Temos evidências
de que estava trabalhando numa infecção que poderia ferir mortalmente
os anjos.
As pupilas de Kiama dilataram-se, uma explosão da noite contra o
intenso e adorável marrom. — Compreendo. Vamos voar agora?
— Sim. Vamos precisar de suprimentos?
— Meu esquadrão está estacionado na guarnição da fortaleza – está
totalmente abastecido.
Com isso, as duas decolaram para o céu.
A jornada não foi longa. Dada sua inimizade duradoura, os dois
arcanjos pareciam ter construído suas fortalezas mais fortemente
fortificadas na fronteira um do outro – não podia ver uma da outra, e
nenhuma estava na própria fronteira, mas era uma jornada rápida para
os alados seres.
Como resultado – e apesar de sua longa noite – Sharine não estava
à beira da exaustão quando pousaram no pátio da antiga fortaleza de
Charisemnon. Ao contrário da cidadela de Titus, esta fortaleza, embora
ampla, não tinha cidade ao seu redor. Estava num isolamento magnífico
no verde da paisagem.
A natureza começou a se arrastar lentamente pela estrutura de
pedra, mesmo no curto espaço de tempo desde que foi abandonada. As
trepadeiras se espalhavam pelo telhado e pendiam dos beirais, e pôde
ver que um pássaro havia feito seu ninho na alcova formada por uma
janela da torre. Um pouco mais de tempo e este símbolo de poder imortal
seria absorvido de volta pela paisagem como se nunca tivesse existido.
Folhas secas rangeram sob os pés quando cruzaram o pátio, e ela
avistou os corpos esguios de gatos rondando. Por sua saúde elegante, ou
estavam sendo alimentados – ou estavam fazendo um banquete com os
bichos que logo infestavam qualquer lugar abandonado.
Kiama já havia providenciado para que um de seus homens
entrasse atrás delas e ficasse de guarda do lado de fora no pátio, para o
caso de precisarem de ajuda rápida. — Este é um posto permanente para
você? —perguntou Sharine a ela, curiosa por que Titus afastaria uma
guerreira com olhos tão vigilantes.
Sim, ela mancava e era óbvio que perdeu peso recentemente, mas
isso não significava nada para uma lutadora treinada. Vacilante ou não,
Kiama ainda se movia com uma graça mortal e sem dúvida era um
dervixe em batalha.
— Não, fazemos alongamentos de uma semana. Meu esquadrão
então voltará para lutar ao lado do senhor enquanto outro esquadrão
aproveita para descansar. Verdadeiramente, Lady Sharine, teria
desafiado o próprio senhor se tentasse me enterrar neste posto. — Ela
indicou sua perna. — Do jeito que está, uma semana será apenas o
suficiente para me recuperar da minha lesão – um dos renascidos quase
arrancou minha perna.
Sharine entendia o orgulho da guerreira bem o suficiente para não
oferecer ajuda quando Kiama foi até as portas de metal pesado da
fortaleza. Mesmo aqui, nesta fortaleza de batalha, a porta não era apenas
prática – era esculpida com cenas de batalha, com Charisemnon em plena
glória. A poeira caiu dessas esculturas numa chuva mofada, o metal
gemendo quando Kiama começou a girar as alavancas para ter acesso a
elas.
Um gato curioso, preto como a noite, vagou para observar Kiama
levantar a última alavanca. A porta pareceu tremer e suspirar, mais
poeira caindo e cobrindo o cabelo de Kiama.
Prova suficiente de que ninguém esteve aqui desde que o pessoal
de Titus a fechou. Não era um longo período de tempo em termos
imortais, mas este ambiente era implacável. E a natureza não era uma
amante gentil.
Kiama abriu a porta esquerda, o rangido doloroso do metal pesado
fazendo os minúsculos pelos dos braços de Sharine tremerem em
advertência.
O gato assobiou e se afastou.
— Bem, — disse ela — se os renascidos desejam fazer uma entrada
dramática, agora é a hora.
Kiama, a espada já em mãos, falou duramente. — Se não se importa
com minha impertinência, minha senhora, é muito cedo para tanto
humor.
Envergonhada, Sharine se desculpou imediatamente, então admitiu
a verdade. — Estou falando fora de hora porque sinto um medo visceral,
embora não haja necessidade disso.
Com a expressão tensa, Kiama assentiu. — Ajudei a limpar este
reduto de todas e quaisquer ameaças e sinto o mesmo. O mal se infiltrou
nas paredes deste lugar. A escuridão vive aqui.
Uma declaração tão simples e poderosa que tocou com emoção. —
Você viu um pouco disso? — perguntou ela gentilmente.
— Fiz parte da corte de Charisemnon há duzentos anos. — Virando
a cabeça, cuspiu nos paralelepípedos externos. — Foi uma lealdade da
minha família, servir ao mesmo arcanjo. Minha mãe e meu pai
permaneceram leais a Charisemnon, mesmo enquanto o viam mudando e
se tornando algo muito diferente do arcanjo a quem juraram suas
espadas.
— Gostaria que falasse livremente — disse Sharine quando Kiama
achatou os lábios abruptamente e parou de falar. — Estou perdida do
mundo há muitos anos e meu conhecimento sobre essas coisas é
limitado. Nunca usarei o que disser para caluniá-la para sua família ou
outras pessoas.
Um olhar cuidadoso, a guerreira a avaliando. Sharine gostava de
Titus ainda mais por ter outra mulher tão segura de si em suas forças. Ela
também sentiu um profundo orgulho quando Kiama assentiu, aceitando
a palavra de Sharine... aceitando que ela tinha honra.
— Charisemnon sempre foi um homem que gostou do poder,
gostou da beleza, — disse a jovem comandante — mas as coisas
começaram a se torcer dentro dele em algum momento. Começou a
cruzar linhas que não deveriam ser cruzadas – especialmente por um
arcanjo que tem poder sobre a vida de todos que olham para ele.
As duas entraram, os olhos de Kiama alertas enquanto continuava
sua história. — Não aguentei e me recusei a seguir ordens se essas
ordens fossem para tirar as jovens de suas casas, ou para aplicar a
punição pela falta de dízimo dos pobres. Lutei com minha mãe e meu pai
por isso – e no final fui embora. Era isso ou acabava executada.
Movendo-se para a esquerda, Kiama tocou com os dedos um
interruptor que enchia o saguão de entrada com uma luz suave que se
somava à luz do dia que entrava pelas janelas. Além das portas abertas,
veio um sussurro de asas ao mesmo tempo, o guerreiro do esquadrão de
Kiama chegando para ficar de guarda.
— Meus pais morreram em defesa dele, aquela criatura suja e
degradada — disse Kiama numa voz fria e dura. — Vou odiá-lo até o fim
dos meus dias por roubar o tempo que eu tinha com aqueles que mais
amava.
Como uma mulher que foi traída e que controlou sua própria raiva,
Sharine entendia. Mas como mãe, estava dividida. Esse mesmo instinto
maternal a obrigou a falar. — Sei que se algo assim acontecer comigo,
não gostaria que meu filho vivesse sua vida alimentando o ódio em seu
coração. O ódio envenena, tanto quanto o desejo de poder ou a inveja.
A comandante Kiama olhou para ela, os olhos brilhando. — Com
todo respeito, minha senhora, minhas emoções são minhas.
Sharine sorriu. — Sim, criança. Mas eu sou mãe – infelizmente não
podemos deixar de tentar melhorar as coisas.
Kiama olhou para ela por um longo momento antes de se render a
um leve puxão de seus lábios. — Mesmo quando estávamos em lados
opostos da linha, minha mãe me mandava mensagens ordenando que eu
tivesse certeza de que estava cuidando de todos os ferimentos e que
estava comendo bem.
Sharine riu, mas deixou por isso mesmo. O ódio e a raiva da outra
mulher ainda eram novos, a ferida recente. Levaria tempo para aceitar a
perda e tomar uma decisão sobre como queria viver sua vida. Ela,
entretanto, tinha outra coisa a dizer. — Espero que me permita mais um
momento.
Quando Kiama deu um pequeno aceno de cabeça, ela disse: — O
ódio pode ser um veneno, mas transforme-o em raiva que a incendeia
por dentro e se torna uma força. — Ela exalou. — Minha raiva se tornou
minha resolução. — Não se tratava mais de se vingar de Aegaeon; olhou
atrás e o viu como indigno de tal atenção, de qualquer espaço adicional
em sua cabeça. Essa raiva a levou a ser o melhor que poderia ser – para si
mesma e para o filho.
Ela deu um passo adiante com esse pensamento, na corte de um
arcanjo que escolheu o poder acima de tudo. Ele estava disposto a
sacrificar não apenas aqueles de sua própria espécie, mas mortais e
vampiros também. Ninguém estava a salvo de sua ambição. E para quê?
Governar ao lado da Arcanjo da Morte? Ele não entendera que mais cedo
ou mais tarde Lijuan não teria mais uso para ele?
Esta primeira seção da fortaleza se mostrou relativamente limpa –
um pouco de poeira, algumas teias de aranha, mas os azulejos que
cobriam a entrada, bem como as cortinas nas paredes, não estavam
manchados por sujeira ou sangue.
Ela correu os dedos pelos intrincados nós de uma tapeçaria e se
perguntou como seria a vida daqueles que passaram tanto tempo
criando o que era, sem dúvida, uma obra-prima. Reconheceu este
trabalho como vindo da região perto de Lumia; era feito apenas por
mortais, a tradição tão arraigada que nenhum imortal tentou mudá-la.
O fato dos mortais fazerem tais tapeçarias explicava por que eram
tão valorizados. Era uma questão de tempo e de devoção. Esta grande
peça seria o trabalho de uma vida para vários artesãos. Para esses
artesãos, por sua vez, seria uma coisa de grande orgulho geracional que
seu trabalho estivesse pendurado no corredor da corte de um arcanjo.
Ela continuou a caminhar, sob o amplo teto curvo, com espaço
suficiente para a passagem de vários anjos, e se viu na beira de uma área
submersa que parecia ser um lugar projetado para festas e outras
grandes reuniões. Semelhante ao primeiro nível da casa de Titus, era um
espaço enorme, com um vazio crescente até o teto. Mas onde a área de
reunião de Titus era quadrada e em um nível, esta era redonda com três
degraus que conduziam a ela.
Saliências foram construídas nas paredes, largas o suficiente para
vários anjos usarem como assento. Aqui, nesta área de celebração que
parecia muito barroca e ricamente decorada para uma fortaleza de
fronteira, foi onde encontrou os primeiros sinais do caos. Cadeiras
viradas, tapetes faltando, manchas nas paredes.
— Nós lavamos aquelas paredes. — Kiama apontou para as
manchas. — Mas não há como se livrar das manchas sem começar a
trabalhar com escovas de aço, e tivemos mais problemas iminentes.
Apenas puxamos qualquer coisa que estivesse incrustada, jogamos fora
todos os tapetes ou cortinas que estavam imundos com fluidos corporais
ou cerveja ou quem sabe o que mais. O senhor incinerou tudo isso com
seu poder, e deixamos o resto para depois.
— As chances de ser sangue ou outros fluidos vitais que
mancharam as paredes? — Nesse caso, aquele sangue não poderia ser
deixado por mãos mortais. Algumas manchas eram muito altas. Os
vampiros eram capazes de escalar paredes lisas, mas não viu nenhuma
marca reveladora nessas paredes.
Isso deixava os anjos.

CAPÍTULO 34

A testa de Kiama franziu quando olhou para as manchas. — Não


posso dizer. O que quer que estivesse nas paredes estava muito seco
quando chegamos aqui – poderia ser qualquer coisa, até mesmo comida
que foi jogada na parede e deixada para apodrecer. — Ela fez uma careta.
— O arcanjo Charisemnon era meticuloso quanto à limpeza quando
deixei sua corte, mas não sei se continuou fiel a essas coisas na hora da
batalha.
Sharine continuou pelo espaço, observando as obras de arte –
pinturas, tapetes, esculturas e muito mais – muitas das quais
sobreviveram à violência que parecia ter acontecido aqui. A maior parte
era local do território e isso a fez se perguntar se aquele era o corredor
público.
Poucos arcanjos permitiam que sua população tivesse acesso
aberto a eles, considerando isso uma perda de tempo e recursos, mas
Farah mencionou que Charisemnon abria suas portas regularmente. —
Charisemnon continuou sua tradição de casa aberta enquanto estava
aqui na fronteira?
— Até a véspera da batalha. — Kiama curvou o lábio. — De acordo
com Ozias, a espiã mestre do senhor, era mais um exercício de vaidade
que uma questão de permitir o acesso magnânimo de seu povo.
Como Charisemnon não teria feito nada privado num espaço
comum, Sharine não se demorou.
Depois de sair do corredor público pelas portas dos fundos, se viu
com várias opções. Em frente a ela havia um arco que levava a outro
pátio aberto para o céu, além do qual estava outro edifício ornamentado.
Escadas fluíam à esquerda e direita. — O que recomendaria? —
perguntou ela a sua escolta.
— Do outro lado do pátio, depois para dentro — disse Kiama
imediatamente. — Os espiões de Ozias confirmaram que essa é a área
privada do arcanjo. Pelo que pudemos coletar dos sobreviventes de sua
corte, ele ficou cada vez mais paranoico sobre permitir que qualquer
pessoa, exceto suas pessoas de maior confiança, entrassem nos meses
que antecederam a guerra. Foi também onde encontramos os corpos.
Com o abdômen tenso, Sharine saiu para o pátio coberto de folhas
secas. Quando olhou para cima por hábito, sentiu seu coração parar com
a beleza escaldante acima. O céu estava claro, exceto por nuvens finas de
decoração. Isso encheu seu coração de esperança; esta beleza existiria,
não importa o que fizeram ou não fizeram nesta terra.
— Por que ele não ficou contente com isso? — Kiama apontou para
o céu e para a fortaleza silenciosa e abandonada ao redor deles. — Por
que sempre queria mais? Chamam Titus de arcanjo guerreiro, mas em
todo meu tempo em sua corte, ele nunca escolheu a luta – sempre a
agressão veio deste lado.
Com essas palavras, Kiama avançou para cruzar o pátio. — Vou
primeiro, Lady Sharine.
Sharine não discutiu. A outra mulher era a especialista aqui – e
Sharine tinha o poder de apoiá-la caso o perigo surgisse da escuridão.
Mas tudo que emergiu de dentro do prédio ao lado foi um odor de mofo
com um tom de podridão.
Kiama tossiu na curva do cotovelo para limpar a garganta. —
Infelizmente — disse ela depois —, a única maneira de manter a
segurança com nosso número limitado foi fechar tudo após a limpeza
básica.
— Não gosto do cheiro que sinto abaixo de decomposição. —
Sharine se forçou a respirar fundo num esforço para descobrir o que
fazia seu pescoço formigar e as memórias há muito esquecidas lutarem
para subir à superfície.
Já cheirou algo assim antes.
Flashes agulhando sua memória. Choque de espadas. Asas se
dobrando e caindo. Presas num rosto pálido. Corpos mortais congelados
de medo. — Um mortal, pego no fogo cruzado de uma batalha
arcangélica – sua perna foi amputada. Ele adoeceu com gangrena.—
Memórias vivas agora, do rastejar de verde em sua perna, o odor pútrido.
— Doença, é a contaminação da doença que colore o ar.
— Por que você estava com o mortal? —perguntou Kiama sem
alterar seu foco intenso em seus arredores.
— Eu... — Sharine franziu a testa e voltou atrás na linha. — Eu era
uma artista de guerra... e pensei que era importante tomar nota não
apenas das perdas imortais, mas também dos outros custos da guerra. —
Ela balançou a cabeça. — Fui ingênua, acho, em acreditar que a maioria
dos imortais cuidaria de um mortal agonizante.
No entanto, Sharine estava feliz por ter feito isso, seus dedos se
curvando enquanto se lembrava de segurar a mão do homem febril para
que não ficasse sozinho enquanto escorregava para o fim da morte. Indo
para onde Raan e seus pais já tinham ido. Um lugar de onde não havia
viagem de retorno.
— Aqui, foi aqui que encontramos os mortos. — Kiama parou numa
arcada emoldurada por um conjunto cintilante de pedras preciosas
semipreciosas que cintilavam e brilhavam a luz do sol que vinha das
janelas altas em cada extremidade do hall de entrada.
Além dela, havia um conjunto de pesadas portas duplas.
— Não há janelas dentro — informou a guerreira —, mas este
interruptor trará luz. — Ela o sacudiu com o cotovelo antes de usar seu
corpo para empurrar uma das portas.
Sharine podia jurar que ouviu um leve estalo de som, um selo
quebrando.
Com o peito apertado, entrou para descobrir outra grande área de
reunião, mas o caos aqui era em magnitudes piores. Nenhum tapete
suavizava seus passos e as paredes estavam quase igualmente nuas.
Marcas de queimadura cobriam o chão.
Quando olhou para onde as janelas deveriam estar, encontrou
apenas quadrados escuros fechados com tábuas.
— As placas estavam instaladas quando entramos — disse Kiama
antes que pudesse fazer a pergunta. — Essas marcas de sangue lá
também.
Sharine sentiu um arrepio no sangue. — Uma tentativa de
liberdade?
— Fadada ao fracasso. As janelas têm um forro de ferro bonito, mas
fortes do lado de fora. — Os lindos olhos da guerreira tinham uma razão
fria quando encontraram os de Sharine. — Graças a Ozias, sabemos que a
ferragem foi uma adição feita alguns meses antes da batalha.
Charisemnon, Sharine percebeu, estava construindo uma prisão em
preparação para seus planos de experimentar em seu próprio povo; essa
nunca foi uma decisão rápida. Ligando-se a essa percepção arrepiante,
sua intenção de examinar a parede atrás dela, se viu diante de uma
pintura ampla de uma pequena região numa terra agora chamada Mali.
Era um lugar que visitou há uma eternidade, com Raan ao seu lado.
Choque, um choque repentino de memória.
Era tão jovem e cheia de esperança, feliz e apaixonada, e a pintura
era uma profusão de alegres amarelos, laranjas e até mesmo toques de
rosa. Retratava o sol nascendo sobre um campo em que fazendeiros
trabalhavam e animais pastavam, enquanto dois anjos conversavam com
uma mulher idosa.
Uma cena realmente simples... mas um desses anjos era Raan, então
este era um pedaço de sua história. O outro era a anjo que os hospedava.
Uma colega artista, ela os levou para um assentamento mortal próximo
para mostrar a Raan a origem de uma tinta de tecido específica.
Cheia de emoção e felicidade demais para ficar quieta, Sharine os
deixou conversando e escalou uma colina próxima. Foi quando olhou
para baixo que viu este instantâneo da vida em tons dourados. —
Lembro-me de ter ficado impressionada com a perfeição e harmonia
dessa cena.
Seus dedos queriam traçar as linhas do rosto de Raan, embora ele
fosse reconhecível apenas pelas cores de suas asas. Obrigada, ela queria
dizer. Obrigada por me ensinar que o amor pode ser gentil e suave. Se ele
tivesse vivido, a jovem mulher que era poderia um dia ter voado de seus
braços, mas o faria com amor em seu coração.
— É um trabalho extraordinário, Lady Sharine. — Um toque de
admiração inesperada na voz de Kiama. — O senhor ficou tão zangado
quando o viu aqui; disse que Charisemnon não tinha o direito de exibir
uma obra de tamanha beleza e coração num lugar que transformou numa
câmara de morte. A única misericórdia é que escapou ileso da carnificina.
Sharine olhou, não viu sinais de manchas ou de deterioração física.
— O senhor – todos nós –queríamos voltar para a cidadela —
acrescentou Kiama —, mas não podíamos tirar nada desta sala. O risco
era muito grande.
— Foi a única decisão possível — disse Sharine, calor em seu
coração pelo arcanjo arrogante e contundente que a beijou com tanta
fome apaixonada, e que já sabia que deixaria uma memória que nunca
esqueceria. — Charisemnon deve ter tido essa pintura por muito tempo.
Ela sorriu; nada poderia entorpecer sua alegria com as lembranças
associadas a este trabalho. — Raan, o primeiro homem que amei,
perguntou se podia presentear a amiga que nos hospedou na visita que o
inspirou.
— Embora eu adorasse essa pintura, eu o amava mais. — E então a
deu a ele, para presentear sua amiga. — Ela não era um anjo muito
poderoso e agora dorme, então não posso pedir a ela para confirmar,
mas presumo que Charisemnon a viu em algum momento e ela gostava
dele o suficiente para presentear seu senhor.
— Dói ver seu trabalho num lugar assim?
— Não. Talvez houvesse alguém aqui que precisasse de esperança e
beleza nos tempos mais sombrios. Nesse caso, estou feliz que puderam
olhar acima e ver o nascer do sol.
— Deveria adivinhar que essa seria a sua resposta – ninguém que
não possua um coração poderia pintar com tanta glória. — Ela hesitou
antes de deixar escapar: — Um dia, espero poder comprar uma de suas
peças. — Era uma coisa doce como esta guerreira afiada admitia seu
sonho, com uma excitação sufocada que a fez levantar um pouco na
ponta dos pés.
Sharine viveu uma vida longa e criativa, mas tendia a gravitar em
torno de telas grandes como esta. Algumas eram ainda maiores, cobrindo
paredes inteiras. Seu projeto atual – um segredo escondido num
armazém cheio de luz que Tanicia organizou para ela nos limites de
Lumia – era uma imagem de Raphael, Elena e seus Sete com os
reluzentes arranha-céus de sua cidade.
Pretendia torná-lo um presente para o arcanjo com olhos de um
azul devastador, este filho que não havia gerado. Mas a escala disso
significava que levaria anos para ser concluído. Isso tendia a ser verdade
para a maioria de seu trabalho. A intrincada peça que atualmente estava
pendurada em Lumia levou meio século.
Foi por isso que, embora tivesse uma produção estável durante
grande parte de sua vida, suas peças estavam além do alcance dos anjos
comuns. Não ajudava o fato de que a passagem do tempo e os desastres
naturais danificaram muitas. No momento que completava uma peça,
mais duas podiam estar perdidas ou destruídas ou apenas se tornarem
quebradiças e frágeis devido ao tempo.
— Vou me certificar de que tenha um dos meus — disse ela a
Kiama. — Peço o pagamento na forma de você posar para mim.
— Minha senhora... — Uma respiração ofegante. — Eu não queria...
Sharine apertou seu antebraço. — Calma, criança. Você não só tem
um rosto e uma presença que me dá vontade de desenhá-la, como gosto
de você e dou minha arte a quem gosto. — Ela deu a Raphael uma peça
sobre sua ascensão ao Cadre, e quanto a Illium e Aodhan, fez inúmeros
estudos sobre eles ao longo de sua infância, vários dos quais eles
roubaram com sua permissão risonha.
Ela era rica, supôs. O dinheiro nunca foi realmente a razão pela qual
criava, mas, graças a Raan, tinha uma poderosa estrutura de suporte
financeiro que significava que nunca teria que procurar um patrono. Essa
estrutura de apoio assumiu a forma de dois velhos anjos que se
retiraram da vida, exceto pelo que faziam por ela – não apenas
administravam suas finanças com forte proteção, mas agiam como o
canal através do qual outros podiam adquirir seu trabalho.
Sharine percebeu que ficaram acordados por muito tempo porque
ela estava quebrada e eram muito leais a Raan para abandoná-la. Ela
decidiu ir até eles assim que pudesse, agradecer-lhes de todo o coração e
dizer que podiam deitar para descansar sem se preocupar. Não estava
mais perdida; eles mais que honraram a memória de seu amigo.
Sharine se conhecia bem o suficiente para aceitar que nunca seria a
pessoa certa para gerenciar suas finanças ou a venda de sua arte, mas
sabia como conseguir boas pessoas. Tudo que teria que fazer era
mencionar isso a Raphael e ele enviaria cinco candidatos escrupulosos e
talentosos à sua porta.
Kiama ainda tinha um olhar atordoado em seu rosto enquanto
continuavam, mas apontou os pontos onde encontraram os corpos, sua
postura sempre a de uma guerreira em alerta. — Os mortos incluíam
mortais, vampiros e anjos — disse ela antes de tudo. — Pelo cheiro e a
extensão da decomposição, já estavam mortos há alguns dias antes de
serem encontrados. Mas a decomposição foi...
A outra mulher franziu a testa, linhas esculpidas em sua testa. —
Existe uma maneira da carne apodrecer — disse ela por fim. — As
moscas vêm botar os ovos, depois nascem os vermes. Há uma
progressão. — Ela olhou ao redor da sala novamente, seus olhos
intensos. — Aqui, as coisas eram somente... erradas. Quando tocados,
parecia como se a carne tivesse se liquefeito de dentro, a decomposição
indo de dentro para fora.
Um gole forte. — Cometi o erro de cutucar um dos corpos com
minha espada – não fazia isso para ser cruel, mas porque pensei ter visto
um movimento e queria garantir que não estava me preparando para ser
atacada por um renascido.
— Tive o cuidado de não empurrar com força, mas a pele estourou
como se estivesse tão esticada que tudo que precisava era um
empurrãozinho, e o líquido fluiu para fora do corpo. Um lodo esverdeado
que subiu nas minhas botas e causou um odor tão forte que tivemos que
evacuar o quarto por uma hora.
A respiração da soldado ficou instável. — Antes de evacuarmos, eu
e o guerreiro-estudioso ao meu lado vimos insetos nadando no lodo. Esse
foi o movimento que chamou minha atenção – um enorme ninho de
insetos dentro do corpo. — Com a mão na barriga, ela estremeceu.
Sharine não podia culpá-la. Sua própria pele estava arrepiada.
— Tivemos sorte que o Senhor estava conosco. Ele usou seu fogo de
anjo para cremar o corpo e reduzir os insetos a pó. — Ela indicou uma
das marcas de queimadura que Sharine notou. — Não quero saber o que
aqueles insetos fariam se pudessem se enterrar no corpo de um dos
nossos.
— Alguém pegou amostras para um estudo mais aprofundado?
Um forte aceno de cabeça. — Tudo aconteceu muito rápido.
Estávamos apavorados com a possibilidade dos insetos escaparem. Já
temos uma praga de renascidos, não precisamos de mais nada. E os
insetos estavam se movendo.
Sharine não conseguia imaginar o horror, sabia que teria feito a
mesma ligação. — Ele era o único tão infestado?
— Não tentamos descobrir. Dado o risco da falha de contenção, o
senhor tomou a decisão de incinerar todos os corpos in situ– ele fez o
mesmo com todos os móveis.
Isso explicava as grandes manchas queimadas no chão.
— Era a opção mais segura possível. Se o contágio fosse contido
nesta sala, não queríamos deixá-lo sair. — Um olhar triste para a pintura.
— O senhor não teve coragem de destruí-la, mas acho que jamais será
permitida sair deste lugar.
— Todas as coisas têm um fim, criança. — E ela teve uma chance
inesperada de se despedir. Tristeza pungente entrelaçada com um
sentimento de gratidão quando se virou para olhar para as paredes
novamente. As palavras de Kiama acionaram outra consciência em sua
mente. — Há selos em torno das janelas fechadas com tábuas.
CAPÍTULO 35

— Sim. — A voz da guerreira era sombria. — Um membro vampiro


da equipe de entrada – Sarouk é o nome dele – tirou fotos de todo este
lugar com um telefone. Nossos cientistas olharam as imagens. Dizem que
as placas das janelas são construídas de forma a criar uma vedação
hermética.
Ao redor delas, o ar pulsava com conhecimento oculto.
— A porta é a mesma — disse Kiama. — Nossa equipe de entrada
causou alguns danos, pois tivemos que forçar a abertura, mas agora foi
consertada.
Ah, lá estava a resposta ao estouro do som que ouviu ao entrar. —
Foi esta a sala onde Charisemnon fez seus experimentos?
Kiama balançou a cabeça. — Acreditamos que era mais uma câmara
de contenção, uma galeria onde pudesse acompanhar o progresso da
doença. — Ela apontou para vários círculos escuros nas paredes e no
teto. — Máquinas fotográficas. Ele podia preferir viver como os reis de
antigamente, mas o arcanjo Charisemnon conhecia o valor da tecnologia.
Isso, Sharine não teria esperado. O Charisemnon que conheceu era
severo sobre o mundo moderno e suas conveniências. Apenas mais um
exemplo de sua hipocrisia e mentiras.
— Estamos preocupados com Sarouk e nossos outros guerreiros
vampiros — disse Kiama. — Era possível que houvesse algo no ar que
poderia tê-los infectado, mas ninguém mostrou nenhum efeito. Não
tínhamos razão para nos preocupar com a infecção angelical, então. —
Um olhar para Sharine. — Os contágios aéreos são um risco viável?
— Dado que Charisemnon escolheu usar insetos para transmitir
doenças e fez experiências para tornar os renascidos ainda mais
virulentos, — disse Sharine — não acredito que possuísse a capacidade
de lançar um ataque aerotransportado. Pelo menos não fatal.
Ela não esqueceu a Queda – mas lá, as mortes resultaram de anjos
caindo nas ruas no caminho do tráfego e outros acidentes semelhantes. O
que quer que Charisemnon fez, apenas os empurrou para a
inconsciência, não para a morte – e ouviu Illium dizer que Charisemnon
sofreu terríveis consequências como resultado.
Pelo que sabia sobre Charisemnon e o que descobriu ultimamente,
ela não acreditava que ele correria o risco de ficar tão debilitado uma
segunda vez. Especialmente porque seu objetivo era matar Titus– pois
apenas um arcanjo podia matar outro arcanjo. Daí os insetos e seu uso
dos renascidos de Lijuan como uma base venenosa sobre a qual
construir.
— Charisemnon estava mostrando sinais de doença quando lutou
contra Titus? — perguntou ela, para ter certeza.
O rosto de Kiama era uma imagem de nojo. — Nunca estive perto
dele, mas o senhor disse que seu hálito cheirava a decomposição, como
se estivesse apodrecendo por dentro.
— Mas ele foi capaz de lutar?
— Sim. — A mandíbula de Kiama se contraiu quando levou um
dedo à bochecha. — Ele conseguiu ferir o senhor, estilhaçar seu braço,
danificar parte de seu rosto.
Uma queimadura no sangue de Sharine ao pensar em Titus sendo
ferido por alguém tão indigno. — Então, não acredito que tenha
trabalhado numa doença transmitida pelo ar – disseram-me que estava
acamado e coberto de feridas após a Queda. E isso foi para criar meros
momentos de inconsciência; uma doença transmitida pelo ar poderia
muito bem acabar com ele.
A expressão de Kiama mudou para um escrutínio vigilante. — Você
tem melhores fontes do que muitos espiões, eu acho.
O que ela tinha era um arcanjo que a tratava com o mesmo respeito
que davaà sua mãe, e um filho, bem como um protegido que conhecia seu
soberano, sem má vontade ao passar informações. Também tinha
Caliane. Sua amiga também dizia a Sharine qualquer coisa que desejasse
saber, pois Sharine tinha fé em Caliane por mais tempo do que esses
jovens podiam imaginar. — Sou velha, criança, e valorizo meus amores e
amizades.
Talvez um dia, esta jovem e zangada guerreira também chamasse
Sharine de amiga, mas, por enquanto, a divisão de anos estava entre elas.
Que estranho, quando Kiama provavelmente não era muito mais jovem
do que Titus. Não havia distância com Titus, nenhuma sensação de
abismo formado pela idade.
Agora, Kiama deu um aceno lento. — Espero que esteja certa em
sua suposição sobre as capacidades do Arcanjo Charisemnon, Lady
Sharine. Caso contrário, estamos todos condenados. — Ela deu um passo
para uma área à esquerda. — O vampiro morto aqui, parecia que estava
se atacando. Mordendo os próprios braços, pedaços de carne faltando.
Mudando de posição, apontou em outra direção. — Outro estava
completamente nu e enrolou-se como uma bola por baixo da mesa. Era
como se cada um fosse parte de um experimento diferente, mas por que
foram jogados aqui juntos, não podemos responder, exceto que talvez o
Arcanjo Charisemnon fosse forçado a correr no final.
— E a evidência de que um anjo pode ser infectado? — perguntou
ela, lembrando-se do que Titus disse ao Cadre.
— Se me seguir. — Kiama mostrou-lhe uma porta do outro lado,
certificou-se de que se fechava atrás delas, e a conduziu pelo amplo
corredor à esquerda.
Parando na primeira porta, a abriu para revelar uma grande sala
vazia. — A mobília interna estava muito danificada e a fechadura estava
empenada. Foi como se algo ou alguém a tivesse estourado. O senhor
encontrou um rastro de... Não sei como descrever.
Depois de pensar por um longo momento, ela disse: — Não era
sangue, mas havia sangue misturado com o que parecia ser carne em
decomposição liquefeita. Tinha uma borda esverdeada e pensamos que
os riscos na pedra deste corredor poderiam ser de asas arrastando no
chão, especialmente depois que encontramos uma pena petrificada na
substância. E essas... — apontando para sulcos no chão — parecem ser
marcas de garras.
Ela então indicou um ponto na parede a apenas alguns centímetros
do chão. — Também descobrimos impressões de mãos manchadas neste
nível feitas no mesmo líquido, como se o indivíduo estivesse se
arrastando pelo chão. Mais tarde, encontramos vários corpos além das
paredes da fortaleza, incluindo vários anjos mortos, então esperamos
que quem ou o que quer que tenha escapado estivesse morto.
Um único anjo, Sharine pensou, poderia facilmente ter escapado no
tempo entre a partida de Charisemnon com a maioria de suas forças e a
chegada de Titus. Especialmente se aquele anjo estivesse indo para fora,
passando pelas cidades, para áreas mais rurais. Ainda mais se aquele
anjo tivesse experiência em permanecer invisível.
Este último nem sempre era uma habilidade possuída por
cortesãos, que eram apenas brilho e se mostrar. Mas, dada a história de
Kiama sobre seus pais, a corte de Charisemnon não era preenchida
apenas com os inúteis. Titus também identificou o anjo renascido como
Skarde, um homem que se dizia ser um habilidoso agente de inteligência.
Skarde foi traído por sua fome de carne, mas se o anjo que escapou
desta sala fosse alguém diferente de Skarde, mas da mesma espécie...
Bem, um espião com uma mente funcional poderia se esconder por
muito tempo na paisagem expansiva da África.
Empurrando esse medo de lado, ela disse: — Encontrou algo que se
pareça com um laboratório? —Não estava realmente esperando por um
lugar assim –fosse o que fosse que Charisemnon fez, veio dele, da mesma
coisa que o tornou um arcanjo.
Ele gerou venenos em seu sangue.
— Não, —confirmou Kiama — mas posso mostrar os aposentos
pessoais.
Esses aposentos se mostraram opulentos e abertamente sensuais,
numa extensão muito além de seus gostos pessoais, com muito vermelho
e dourado, muita textura, geralmente muito, mas isso não impediu que os
quartos fossem surpreendentemente bonitos. Mas não... não era uma
surpresa.
Sharine franziu a testa, folheando o livro da memória. Michaela há
muito era chamada de musa dos artistas, mas Charisemnon era
conhecido por ser um patrono das artes. — Uma vez, muito, muito tempo
atrás, — murmurou quase para si mesma — Charisemnon me ofereceu
um palácio em suas terras onde eu poderia viver e trabalhar. Sem
compromisso, exceto que queria ser conhecido como tendo a Colibri
como hóspede em suas terras.
Ela se esqueceu disso até o momento em que estava sobre um
tapete grosso aveludado preto com um desenho em vermelho rubi. —
Fazia muito tempo que não vinha para esta terra, então vim ver se eu
queria aceitar a oferta e nos encontramos para um jantar privado. Ele era
um homem diferente então. — A pessoa que era antes de decidir se
juntar a Lijuan num caminho para a morte, dor e assassinato.
— Não consigo imaginar você sentada na frente dele — disse
Kiama, a voz tensa com uma raiva latejante. — Minha mente
simplesmente se recusa.
Sharine esperava que esta guerreira um dia encontrasse paz, mas
não seria hoje, no espaço de seu inimigo. — Você e o resto do povo de
Titus fizeram uma pesquisa intensiva nesta parte da fortaleza?
Balançando a cabeça, Kiama disse: — Não achamos necessário.
Procurávamos apenas criaturas vivas – de qualquer tamanho – em vez de
documentos ou anotações.
As páginas de seu livro de memórias continuaram a virar.
Charisemnon enviou a ela uma carta com seu convite. — Você tem uma
mão linda — disse a ele quando se conheceram.
Ele sorriu para ela, um homem bonito com cabelos sedosos no tom
de mogno e pele de ouro escuro, seus lábios exuberantes e perfeitos em
sua forma. — Palavras e tinta, eles mantêm nossa história mesmo
enquanto envelhecemos, e as memórias se perdem nos emaranhados de
nossa mente.
Esse homem manteria registros.
Com isso em mente, ela deixou Kiama para vigiar, então começou a
pesquisar metodicamente cada um dos lugares onde um arcanjo, seguro
de sua privacidade, guardaria documentos importantes. Não achou que
ele pensaria em escondê-los – em primeiro lugar, confiava em seu poder
e, em segundo lugar, não tinha motivos para esconder nada das pessoas
em sua corte.
Viram o que ele podia fazer e optaram por ficar com ele.
Livros cobriam as paredes do grande escritório além do quarto e
das áreas de estar. Muito conhecimento; pensaria que parte disso o faria
parar quando começou sua associação com Lijuan e com a morte, mas, no
final, as pessoas escolhem sua identidade, e Charisemnon escolheu uma
vida de trevas.
Uma escada de metal foi construída na moldura das estantes de
livros à esquerda e à direita da sala. Provaram mover-se suavemente ao
longo dos trilhos quando ela as testou.
Ela verificaria cada um dos livros nas prateleiras se necessário, mas
primeiro, ela foi até a mesa de Charisemnon. Na gaveta de cima havia um
caderno com capa de couro. Algo sobre isso lhe pareceu familiar e ela
olhou para as prateleiras – para perceber que esta sala continha a
história de Charisemnon, os diários da memória que ele mantinha ano
após ano, década após década, século após século.
Estava segurando o mais recente.
Ciente de que segurava um tesouro – historiadores angelicais
clamariam para ter acesso a esta sala – cuidou do diário enquanto se
sentava na cadeira ornamentada de Charisemnon. Colocando o livro na
frente dela, o abriu.
As palavras não faziam sentido.
Tentou novamente, trabalhando em todos os idiomas que conhecia.
Estava prestes a desistir e perguntar a Kiama se Titus tinha um linguista
na equipe, quando a voz de Raan sussurrou em sua mente.
Meu passarinho, seu talento para arte tira o meu. Mal posso esperar
para ver você voar.
A linguagem preferida de Raan era tão lírica, tão adorável, nascida
nas margens do Nilo entre um enclave de anjos que fizeram dela seu lar
por séculos. Seu amigo nesta terra falava a mesma língua. Charisemnon
não tinha idade para viver no enclave, mas talvez tenha aprendido com
um pai ou avô.
Sharine não sabia nada sobre sua ascendência, e não se importava
neste momento.
O enclave de Raan desapareceu há muito tempo, a língua raramente
falada, mas Sharine a aprendeu com seu amante e permaneceu dentro
dela. Que demorasse um pouco para girar aquelas engrenagens
enferrujadas era inevitável.
Sim, passarinho. Você tem a habilidade e o coração para isso.
Ele foi um homem tão bom, seu Raan, sempre gentil e suave com
ela.
Sim – e paternal.
Ela estremeceu pelas palavras reveladas de outra parte de sua
psique. Mas era verdade; o relacionamento deles dificilmente foi de
iguais. Mas era um relacionamento que a deixou feliz naquela época e
lugar, e merecia ser homenageado por isso. Raan merecia ser
homenageado por isso.
Sacudindo conscientemente os pensamentos errantes para se
concentrar no aqui e agora, olhou para o diário. O abriu alguns meses
antes do início das hostilidades.
Eles pensam que sou um tolo, que vou amarrar minha lealdade aos
fracos em vez de aliar-me ao mais forte de todos nós.
Não sou o idiota aqui.
Lijuan sairá vitoriosa na guerra que está por vir. Não há dúvida
sobre esse ponto – ela evoluiu muito além do resto do Cadre, e está certa
quando diz que somos imortais e capazes de muito mais do que é permitido
pela atual estrutura de poder.
Por que deveria haver um Cadre de Dez? Por que não pode haver um
Cadre de Dois se esses dois arcanjos são os mais poderosos do mundo? Não
faz sentido compartilhar o poder com os mais fracos entre nós. Os outros,
aqueles que sobreviverem à guerra, servirão ao Cadre de Dois. É como
sempre deveria ter sido.
A última linha estava sublinhada duas vezes, uma visão direta da
mente de Charisemnon. Isso a confundiu um pouco, porque acreditava
que ele não era um arcanjo muito impulsionado a se mexer. Ele
desfrutava de uma vida de comodidade e conforto, mas agora falava de
domínio absoluto.
O que mudou?
Se acomodando, voltou ao início do diário e começou a ler, pois na
gênese da mudança de coração de Charisemnon podia estar a informação
de que precisava sobre uma doença que poderia acabar com os anjos
para sempre.
CAPÍTULO 36

Arcanjo Titus, escrevo-lhe na fé em sua longa amizade com meu pai.


Antes de adormecer, ele me lembrou de que seu vínculo permaneceu
ininterrupto por milênios. Agora, inclino a cabeça e pergunto se essa
amizade pode se estender à orientação do meu filho.
Xander ainda não atingiu a maioridade, mas dá sinais de que se
tornará um guerreiro como seu avô. Seria uma grande honra se você
considerasse colocá-lo sob sua proteção.

– Carta de Rohan, filho do Arcanjo Alexandre, ao Arcanjo Titus

CAPÍTULO 37

Rohan! Vi você correndo nu quando bebê, rindo loucamente o tempo


todo! Parti o pão com você. Por que está me escrevendo uma carta tão
formal?
Envie seu filho. Cuidarei do neto de Alexander como se fosse minha
própria carne e sangue.

– Carta do Arcanjo Titus para Rohan, filho do Arcanjo Alexandre

CAPÍTULO 38

Titus enxugou o suor da testa e olhou para a pilha de corpos


decapitados abaixo. Ele e seu povo seguiram um vagabundo que os levou
a um enorme ninho de renascidos, mas o que o preocupava era que o
ninho já existia. — Esses renascidos vieram de algum lugar. — Havia um
assentamento lá que não tinha mais cidadãos vivos... crianças inclusive.
Quebrou seu coração executar a criança renascida, embora
soubesse que não estavam vivos no verdadeiro sentido da palavra. Eram
abominações cambaleantes da vida, sem razão ou pensamento. Nunca
envelheceriam, nunca entenderiam a fala ou amor ou ternura ou
qualquer coisa além de sua fome voraz por carne.
Permitir que existissem era igual a assassinar as crianças que ainda
escaparam do flagelo. Pois mesmo na hora mais escura, anjos, vampiros e
humanos, todos hesitavam quando se tratava de machucar uma criança,
e nessa hesitação poderia cair uma cidade inteira ou território.
— Eu despachei batedores. — A voz de seu segundo era sombria, o
verde claro de seus olhos na carnificina. — Notou como esses aqui eram
novos? — Quando Tzadiq, com ombros largos e corpo tão grande quanto
o de Titus, pousou ao lado da pilha, Titus fez o mesmo. — Olhe para seus
corpos, a falta de podridão.
Tzadiq estava certo; sob o tom esverdeado que começava no
momento da transição, esses renascidos ostentavam tons de rosa,
marrom e preto de carne comum entre os vivos. Algumas de suas feridas
sangravam tanto vermelho quanto verde-preto.
Ele e seus esquadrões poderiam continuar matando onda após
onda de renascidos, mas se as criaturas se multiplicassem tão
rapidamente, perderia metade das pessoas em seu território antes que
acabassem. No entanto, que outra maneira havia?
— Como estamos no número geral de tropas?
— Não sofremos nenhuma perda hoje, mas nosso pessoal está
exausto. — O tom de Tzadiq era brutalmente honesto. — Vamos começar
a cometer mais e mais erros nos próximos dias.
Titus sabia disso, mas ainda era difícil ouvir isso tão claramente.
Enquanto considerava todas as opções possíveis sobre como descansar
suas tropas, seu olho pousou na seta da besta embutida no olho de uma
criatura renascida, a cabeça do renascido há muito separada de seu
corpo. No eixo do ferrolho havia um símbolo – um pequeno G dourado
num círculo.
— Quão ruim é a situação da Sociedade? — O complemento
africano da Sociedade dos Caçadores, aqueles mortais nascidos – ou
treinados – para caçar vampiros desonestos, se aliaram a Titus e lutavam
com seu exército. Como resultado, também sofreram grandes perdas.
— Não tão ruim quanto esperávamos. — A sujeira manchava a pele
clara e a cabeça raspada de Tzadiq, mas não era tão ruim quanto poderia
ser – pelo menos ele escapou principalmente de ser coberto com fluidos
dos renascidos. — Estão com setenta por cento da capacidade e, desses,
vinte por cento estão gravemente feridos e ainda se recuperando.
Isso significava que – além de um pequeno número comandando as
coisas no topo – cinquenta por cento da Sociedade estava atualmente
lutando contra os renascidos no solo, enquanto os anjos de Titus lutavam
no ar. Ocorreu-lhe que os caçadores, todos treinados em técnicas de
rastreamento e acostumados a trabalhar sozinhos, eram um recurso que
ele podia usar com muito mais sabedoria.
— Saiam daqui — disse ele ao seu segundo, pois a maioria dos
renascidos havia fugido para seus buracos sob a luz brilhante do dia. —
Preciso falar com Njal.
— Ele está no QG da Sociedade hoje — disse Tzadiq.
— Um dia terá que me dizer como sabe tudo que acontece em
Narja.
— Tentáculos, senhor. — Palavras secas, sua expressão sem humor
aparente. — Tenho tentáculos em cada canto, fenda e cova de sangue.
Titus deu um tapa no ombro de seu segundo – Tzadiq era uma das
poucas pessoas que não apenas conseguia receber toda a sua força, mas
também podia devolvê-la na mesma medida. Havia uma razão pela qual
eram parceiros de treino há séculos. — Seu arcanjo agradece por sua
diligência.
Foi quando o rosto de Tzadiq abriu um sorriso, assim como o de
Titus. Porque antes de Senhor e segundo, eram amigos por mais de um
milênio e meio. Titus conheceu Tzadiq antes de seu segundo encontro
com Tanae, antes dos dois terem um filho. Titus não entendia a relação
que Tzadiq e Tanae tinham um com o outro e com sua descendência
guerreira, mas como seu segundo e sua treinadora de tropa, eram
perfeitos em sua dedicação.
Deixando Tzadiq com sua tarefa, Titus dirigiu-se ao QG da
Sociedade, que ficava perto da orla de Narja e, portanto, mais perto dele
neste momento que sua própria cidadela. Situada numa antiga fortaleza
de pedra, possuía uma cobertura plana que permitia um fácil
desembarque. O chefe da Sociedade, os cachos pretos e apertados de seu
cabelo zumbiam perto de seu crânio e sua barba igualmente limpa e
precisa, estava lá esperando para encontrá-lo, algum batedor sem dúvida
avistou sua aproximação e adivinhou seu destino.
— Arcanjo Titus. — Ele fez uma reverência, um homem alto e
esguio vestido com roupas de couro marrom gastas com uma espada
amarrada numa coxa e uma faca pesada na outra – mas, apesar do arco,
não havia nenhum senso de subserviência nele.
O arco que Njal usou era um que Titus poderia receber de um de
seus generais.
Alguns podiam dizer que o mortal estava sendo presunçoso ao agir
como se tivesse um status tão elevado, mas os caçadores escolhiam
pessoas fortes para seus líderes, e Titus os apreciava por isso. Podia falar
com Njal como um guerreiro e saber que sua franqueza seria
correspondida.
— Algum problema? —perguntou o outro homem depois de se
levantar de sua proa, o castanho dourado de seus olhos perfurando o
tom preto-azulado de sua pele.
— Não. — Titus expôs o que desejava que os caçadores fizessem. —
Seus caçadores são um ativo que eu não perderia. Diga-me se este é um
risco muito grande.
— Não quer que eles ataquem os renascidos, apenas que rastreiem
e localizem ninhos para que os anjos possam atacar do ar para eliminar
ninhos inteiros de uma só vez?
Titus concordou. — Se encontrarem renascidos sozinhos, podem se
sentir livres para eliminar os renascidos– desde que tal contato não
represente um perigo para suas próprias vidas. No momento, preciso
menos de lutadores terrestres e mais de informações. — Poucos arcanjos
falariam com um Caçador da Sociedade com tanta franqueza, mas Njal
lutou ao lado de Titus no campo de batalha, decidido e incansável.
Titus sabia que, apesar de suas tentativas de se manter distante das
amizades mortais, Njal era um homem que sentiria falta quando o
caçador deixasse este mundo. — Preciso usar meus recursos de forma
mais estratégica. — Caso contrário, os renascidos continuariam se
alimentando do povo de sua terra, dizimando-a.
— Temos reagido por muito tempo – impulsionados por nossa falta
de números e a forma como os renascidos continuam a se reproduzir. —
Corte um e dois pareciam tomar seu lugar. — Mas, novamente, não há
sentido em fazer isso se eu acabar perdendo um grande número de
lutadores altamente treinados.
— Não seria mais perigoso do que ir atrás de um vampiro sedento
por sangue —respondeu Njal com seu jeito calmo e pensativo. — Não
mandarei caçadores mais novos e menos experientes, mas tenho um
grande complemento de caçadores experientes, mesmo depois das
perdas da guerra.
A dor esculpiu linhas profundas na pele de Njal, sua serenidade
quebrando-se em fragmentos sob o peso dela. — Vou enviá-los em várias
direções, com a maioria indo para o sul, mas um grupo dedicado indo
para o norte.
— Excelente. Não podemos deixar os retardatários no norte para
continuar a procriar, mas instrua os que vão para o norte a não se
envolverem mesmo com renascidos solitários. É possível que
Charisemnon tenha criado uma nova cepa limitada a essa região e não
conhecemos todos os perigos possíveis. Devem relatar quaisquer
avistamentos incomuns diretamente para mim.
Uma pequena mentira, porque não podia contar nem mesmo a Njal
sobre os renascidos angelicais; alguns segredos eram mortais demais
para qualquer mortal. Se um caçador encontrasse um anjo infectado,
Titus encontraria uma solução. De todos os mortais do mundo, os
Caçadores da Sociedade eram os mais acostumados a guardar segredos.
Njal fez uma careta. — Outra nova cepa. Se ao menos o arcanjo
Charisemnon usasse seu poder para criar curas em vez de doenças. —
Ele colocou uma das mãos no punho da espada. — Vou me certificar de
que meus caçadores saibam que seu valor está nas informações que
enviam de volta, não em ações físicas.
— Bom homem. — Titus deu um tapinha no ombro do outro
homem, tomando cuidado com sua força. Njal era muito mais forte do
que seu corpo esguio podia levar um oponente a acreditar, seus
músculos enrijecidos sob a noite impecável de sua pele, mas ainda era
humano para o arcanjo Titus.
— Se seus caçadores do norte cruzarem com outros mortais, peça-
lhes que sejam educados e compartilhe que os incumbi de ajudar na caça
aos renascidos — acrescentou Titus. — Isso ajudará a espalhar a calma
daquele lado da fronteira. Charisemnon deixou seu povo com medo de
mim.
Um olhar penetrante nos olhos que lembrava Titus de um leão. —
Todos os arcanjos criam medo nos mortais. Lutei ao seu lado, Arcanjo,
mas se suas asas começarem a brilhar, eu com certeza conheceria o
terror.
— Sim, mas algum medo é saudável – e outro é paralisante. — Titus
não queria uma população intimidada e trêmula. Desejava que
respeitassem suas regras enquanto continuavam a crescer e prosperar.
— Entendido — disse Njal. — Vou garantir que saibam que, nessa
tarefa, também são embaixadores de seu reinado.
Decolando após um aceno de cabeça, Titus estava ciente do líder da
Sociedade já girando sobre os calcanhares para entrar, e sabia que Njal
despacharia as primeiras equipes dentro de uma hora. O homem liderava
a Sociedade parcialmente porque era muito ordenado e prático. Era
também por isso que sabia que Tzadiq e Njal tomavam uma ou três
bebidas de vez em quando.
Se Titus sentisse falta de Njal quando ele se fosse, Tzadiq o
lamentaria profundamente.
— Por que mantém essa amizade quando sabe que não te causará
nada além de dor no final? — perguntou Titus antes que também
começasse a conhecer Njal como mais do que o líder da Sociedade.
Rosto de queixo quadrado não sujeito a emoções pesadas, Tzadiq
disse baixinho: — A mesma razão pela qual a companheira do meu filho
planta flores, embora sua morte seja inevitável. O coração de Njal, sua
mente, não são menos valiosos por existirem apenas por um momento
no tempo.
Titus pensava assim quando era jovem, mas dor sobre dor de
perder amigos mortais esgotou essa parte dele. Esta guerra, no entanto,
havia quebrado a distância cansada e, embora permanecesse cauteloso,
tornou-se impossível não ver os mortais como indivíduos mais uma vez.
Senhor. O toque mental era forte, pois Tanae tinha uma das maiores
vozes mentais em sua corte.
Tanae, eu estou voando em direção à cidadela. Embora tivesse a
intenção de continuar passando por ela. Precisa de mim para pousar?
Não, mas tenho boas notícias. Sua voz mental tinha um tom jubiloso
que o deixou preocupado por ela; ela era uma treinadora brilhante, mas a
alegria não estava em sua casa do leme. Sete esquadrões de alívio
acabaram de sobrevoar a fronteira, cortesia do Arcanjo Alexandre. Eles
suprimiram a revolta de vampiros do seu lado e, portanto, têm a
capacidade de nos ajudar.
Titus foi pego entre uma explosão de alegria e uma carranca; por
mais que a assistência fosse necessária e o ajudasse a descansar suas
tropas, o protocolo era que Alexandre falasse com ele diretamente sobre
isso primeiro. E por que seu povo simplesmente deixou aqueles
esquadrões passarem em vez de detê-los na fronteira –Oh, queridos
antepassados invisíveis.
Ele esfregou o rosto. Quem está comandando os esquadrões?
Zuri e Nala estão no comando conjunto. Xander faz parte de um dos
esquadrões.
Suas irmãs – e o querido neto de Alexandre, ambos indicadores
claros de amizade que não era de se admirar que tivessem sido expulsos
da fronteira. Claro, Alexander provavelmente também estava rindo
muito ao enviar as gêmeas para assombrá-lo. Ele fez uma careta. Estão
distantes?
Eles podem chegar em três dias, se você desejar, mas Zuri perguntou
se deseja que removam os renascidos enquanto se movem; estão bem
preparados para isso.
Ele se pegou sorrindo ao pensar no semblante feroz de sua irmã e
no amor igualmente feroz, apesar da irritação que estava por vir. Sim. O
norte tem uma infestação – menor que a nossa, mas mortal do mesmo jeito.
Mas diga a ela para enviar três esquadrões para que possamos usá-los
para apoiar nossas próprias tropas deste lado.
Entendido.
Quando Tanae caiu, Titus se permitiu respirar fundo e expirar. Sete
esquadrões de elite extras – porque suas irmãs não comandariam nada
menos – poderiam muito bem virar a maré a seu favor.
Quase em sua cidadela agora, o sol líquido ouro ao seu redor, ele
procurou por outra mente. Ainda está na fortaleza daquele bastardo?
Sim, disse uma voz tão forte quanto a de Tanae, embora com um
timbre e ressonância diferentes.
Titus sobrevoou sua cidadela, continuou avançando.
Com um humor sombrio no momento que pousou no pátio interno
da fortaleza de Charisemnon, primeiro cumprimentou o guarda externo,
em seguida, tirou sua armadura suja e mergulhou a cabeça sob um cano
de água externo escondido num canto. Qualquer lugar onde guerreiros
entrassem e saíssem regularmente tinha essas áreas.
Também usou a água para limpar o suor da metade superior de seu
corpo, bem como qualquer fluido renascido que entrou debaixo de sua
armadura. Suas calças eram uma causa perdida, mas lavou as botas
também. Deixando sua armadura empilhada ordenadamente de um lado,
para coletar mais tarde, contatou Kiama para descobrir a localização
exata de Sharine.
Levou menos de dois minutos para chegar até ela. Os raios do sol
do meio-dia caíam sobre seus cabelos enquanto ela se sentava numa
grande mesa, suas asas fluindo graciosamente de cada lado do encosto da
cadeira. Ela parecia etérea, uma criatura de outro mundo.
Então ergueu a cabeça e ergueu uma sobrancelha. — Está tentando
me atingir com seu olhar penetrante?
Entrando na sala, certo de que ela prendeu a respiração por um
momento antes de falar, ele colocou as mãos nos quadris para que ela
pudesse admirá-lo mais plenamente. Quando ela não caiu ao ver sua
beleza masculina, ele fez uma careta e olhou em volta para todos os
volumes encadernados. — O que meu inimigo escreveu sobre suas
grandes façanhas e feitos heroicos?
Ele odiava que ela parecesse tão à vontade aqui, num lugar onde
raramente se aventurava – tinha uma enorme biblioteca em sua cidadela,
mas era para seus estudiosos e outros de sua equipe interessados em
atividades acadêmicas. Titus sabia que era inteligente, mas nunca se
sentiu em casa no mundo dos livros e da aprendizagem.
— Você o conhecia bem. — O tom de Sharine era seco. — Porque
sim, esta é a história dele.
Espantado, deu uma segunda olhada ao redor da sala, notando as
fileiras e mais fileiras de volumes. No final, sua justiça inata o fez dar um
aceno relutante de reconhecimento. — Charisemnon era um furúnculo
na pata traseira de um porco selvagem raivoso, mas tinha determinação,
certo tipo de garra se conseguiu manter isso por toda a vida. — Ele não
pôde deixar de acrescentar: — Patético que então decidiu gastar sua
força de vontade em fabricar doenças.
— Acho que encontrei algo. — Sussurros de som, suas asas se
acomodando enquanto ela se levantava.
Ele se virou e a observou caminhar em sua direção, uma mulher
pequena feita de luz, mas com uma coluna vertebral que era uma haste
de aço. Esta mulher não se dobraria exceto por sua própria vontade, e
definitivamente não se quebraria. Ela parou tão perto dele que suas asas
quase se tocaram, e estendeu um diário aberto numa seção específica.
Desviando o olhar da suavidade de sua pele, e sua atenção do calor
de seu corpo tão perigosamente perto do dele, olhou para a letra
elegante no livro. Parecia familiar de uma forma vaga. — Qual é o
idioma? — Ele podia falar muitos deles, mas tinha mais conhecimento da
versão falada do que de suas formas escritas.
— Oh, peço desculpas, Titus – estive tão envolvida nisso por horas
que esqueci que é uma língua altamente específica, falada por aqueles
que cresceram num enclave no Nilo.
Titus pensou, então falou uma linha. — É isso?
Um olhar apreciativo em seu rosto quando ela assentiu. — Onde
aprendeu?
Ele revirou os olhos para ela. Seu olhar em resposta foi muito
satisfatório. Agora ela sabia como ele se sentia. — Aquela ferida
purulenta de arcanjo era meu inimigo — disse ele. — É claro que aprendi
todas as línguas em que ele podia dar ordens na área.
Ele pediu a um guerreiro erudito para rastrear um anjo amigo de
Titus que conhecia aquela língua obscura, então estudou com aquele anjo
até que conhecesse a língua de dentro para fora. Também contratou seu
professor para decodificar qualquer documento que seus espiões
pegassem no mesmo idioma – Titus podia ler o idioma, mas era muito
mais lento nisso do que um especialista.
— Sarcasmo não combina com você, meu Senhor Titus.
Sabia que ela usara aquele título apenas para irritá-lo, então disse:
— Sou apenas seu servo, minha senhora Colibri.
Os dois se encararam, mas abaixo da irritação havia um fogo que
fez a pulsação em sua garganta disparar, e seu pênis começar a
endurecer. Ele e Sharine lutariam na cama juntos também... e seria ainda
mais satisfatório do que esta pequena batalha.
Ele ergueu a mão para correr os dedos ao longo da linha fina de sua
mandíbula.
CAPÍTULO 39

Uma tosse na porta fez com que se virasse para Kiama. Com as
mãos seguras firmemente atrás das costas, estava olhando para qualquer
lugar, menos para os dois quando disse: — Senhor, se não precisa de
mim, vou embora para assumir minhas funções na guarnição – um de
meu povo acabou de cair com uma lesão na asa.
— Renascido?
Ela assentiu. — Ele avistou um solitário rastejando nas sombras de
uma árvore, desceu para tirá-lo – mas um segundo pulou nele de um
esconderijo. Não foi arranhado ou mordido, mas os músculos das asas
precisam de um dia para cicatrizar.
Titus acenou com a permissão para o pedido dela e disse para ela
levar o anjo que estava de guarda no pátio. Estava aqui para cuidar de
Sharine agora. Após a partida de Kiama, se virou para encontrar Sharine
olhando para o livro novamente. Seu longo rabo de cavalo caiu para um
lado, revelando a linha esguia de seu pescoço e a inclinação suave de seus
ombros.
Ninguém que olhasse para ela acreditaria que era feita de titânio e
tinha um temperamento quente o suficiente para colocar o céu em
chamas. E ainda assim ele tentou aquele temperamento curvando-se
para pressionar um beijo no local onde seu pescoço fluía para suas
costas.
Ela estremeceu. — Titus. — Afinal, sem raiva, e seus olhos tinham
um brilho de outro mundo quando seus olhares se encontraram.
Fora de uma Cascata, apenas uma coisa deveria brilhar entre os
anjos – as asas de um arcanjo quando estava prestes a liberar seu poder
mortal. No entanto, seus olhos tinham uma luz que não era do sol. Ele
aceitou isso. Era Sharine, e Sharine fazia suas próprias regras.
Hoje, ela ficou na ponta dos pés e ele se curvou, e se encontraram
num beijo que o fez gemer, as mãos segurando seus quadris. Quando a
ergueu, ela colocou os braços em volta do pescoço dele e o encontrou,
lambida por lambida, gosto por gosto, seu peito pressionado contra o
plano úmido dele. Com o coração disparado e o ar não mais necessário,
ele a apertou e a beijou como um homem faminto.
Seus seios eram do tamanho perfeito para seu corpo e tinham
mamilos que pressionavam contra ele através de sua túnica até que quis
arrancar a túnica e chupar forte, torná-los úmidos e lisos. Mudando as
mãos para suas curvas inferiores, a puxou para cima e ela envolveu as
pernas em sua cintura.
Gemendo, ele se virou para sentá-la na mesa... e a realidade bateu.
— Não aqui — disse ele, quebrando o beijo, sua respiração áspera e
seu peito subindo e descendo num ritmo irregular. — Não na casa do
meu inimigo.
Sharine passou a mão em sua mandíbula, o toque inesperadamente
terno. — Concordo — disse ela, então se inclinou para beijá-lo mais uma
vez.
Ele não queria soltá-la quando ela começou a desdobrar as pernas,
mas forçou seu aperto a diminuir, embora mantivesse as mãos sobre ela
para que deslizasse por seu corpo. Um sorriso foi sua recompensa e ele
ficou satisfeito ao ver que a respiração dela era tão irregular quanto a
dele. Manchas úmidas marcavam o roxo claro de sua túnica.
— Você me faz sentir jovem e imprudente, Titus — disse ela, e
tocou seus lábios em seu peito antes de se afastar.
O local onde o beijou, doeu profundamente.
Sua resposta o apavorou completamente e era homem o suficiente
para admitir isso.
— O que você encontrou? — perguntou ele, sua voz saindo áspera
com o peso das emoções que não queria sentir.
— Deixe-me ler as próprias palavras de Charisemnon – diga-me o
que acha que diz. — Ela ergueu a mão quando ele quis falar, com as
sobrancelhas baixas. — Pare de ficar carrancudo – não estou testando
você de alguma forma. — Palavras afiadas que deveriam ter matado sua
excitação.
Seu pau endureceu ainda mais; claramente seu corpo não estava
interessado em ser racional. — Então do que se trata?
Com os lábios carnudos e rosados pela paixão de seu beijo, ela
disse: — Eu simplesmente não tenho certeza se minhas emoções em
relação ao que Charisemnon fez influenciaram minha interpretação.
— Se procurasse no mundo pela pessoa menos objetiva sobre o
assunto Charisemnon, me encontraria —apontouTitus, as mãos nos
quadris. — Ele é inferior a uma barata em minha opinião. Pelo menos
uma barata não sabe outra coisa.
— Apenas tente — disse ela num bufo de respiração. — Você é um
homem muito inteligente. Pense com a parte estratégica do seu cérebro
que utiliza no campo de batalha.
Sorrindo um pouco – embora não estivesse prestes a mostrar – ele
cruzou os braços e ergueu o queixo. — Leia então, e verei o que ouço.
Sua voz de leitura era lírica e adorável e teve que lutar para prestar
atenção em suas palavras.
— Estou correndo para um grande sucesso na construção de uma
obra-prima com o dom de Lijuan e o meu próprio — ela leu —, um sucesso
que não foi visto entre minha espécie por eras e eras. Lijuan diz que tem
motivos para acreditar que existia outro tão grande quanto eu no início da
nossa existência, que ela tem pergaminhos guardando uma dica da razão
por trás dos vampiros e porque a toxina vive em nós. Se ela estiver certa,
aquele primeiro arquiteto da doença foi realmente terrível e forte.
Movendo-se pela sala porque ficar parado não era seu estado
natural, Titus bufou. — Claro que ele adora o pior de nós.
Ignorando sua interrupção, Sharine continuou. — Mas serei melhor
do que aquele anjo desconhecido. Ele foi esquecido. Ninguém me
esquecerá, porque farei a única coisa que ele não pôde fazer. Ele infectou
anjos, mas não estava no controle. Eu estarei no controle. Vou decidir quem
vive e quem morre. Meu legado será de um poder tão mortal que ninguém
se levantará contra mim. Nem mesmo Lijuan. Ela deve tentar, bem, mas
tenho minhas armas.
Jogando a cabeça atrás, Titus riu longa e fortemente, sua diversão
profundamente real. — Nunca há honra entre os malfeitores. Teriam
comido um ao outro se sobrevivessem à guerra. — A imagem deu-lhe
grande prazer. — Há mais? Ou ele terminou de dar tapinhas nas próprias
costas?
— Tem mais, mas o que ouve nessa parte? — Fechando o livro,
Sharine se virou para lhe olhar enquanto ele caminhava pelo outro lado
da sala. Suas asas eram salpicos de cores brilhantes neste espaço sóbrio,
como se uma borboleta tivesse voado de fora.
— Se a história que a Legião contou a Raphael for verdadeira, então
o arcanjo que criou a toxina nos infectou a todos. — Um ato tão terrível
que existia em suas células até hoje. — Então, o que Carisemnon poderia
fazer que o outro já não tivesse feito?
Sharine não interrompeu, deixando-o andar enquanto ele
trabalhava nas opções em sua mente. Havia apenas uma resposta. — Ele
está falando sobre ser capaz de infectar e salvar pessoas à vontade. —
Quente como sangue, encontrou o olhar de Sharine. — O asno está
falando sobre um antídoto.
— Sim, eu pensei o mesmo. — Colocando o diário sobre a mesa, ela
pegou outro encadernado em couro idêntico. — Este é o diário anterior.
Decidi ler depois de completar o mais recente – tive a sensação de que
ele planejava isso a muito mais tempo do que percebemos, talvez muito
mais tempo do que até mesmo Lijuan estava ciente.
— Há muito tempo achei que ele devia ter um plano de backup que
incluía um lugar para se esconder e se recuperar caso a batalha estivesse
indo contra ele. — Mas Titus não lhe deu essa oportunidade. — Acha que
ele escondeu o antídoto em seu lugar secreto?
— Nada do que li diz que ele tinha o antídoto, apenas que estava
em andamento. — Ela folheou uma seção do diário. — Mas aqui, olhe.
Ela caminhou até ele novamente e, em sua empolgação, não parou
rápido o suficiente. Suas asas se sobrepuseram mais uma vez, o braço
dela roçando seu peito enquanto ela estendia o diário. Uma sensação
estranha floresceu dentro dele ao perceber que ela estava confortável o
suficiente com ele para ficar tão perto dele.
Um beijo apaixonado era uma coisa, um ato realizado enquanto
ambos eram totalmente racionais, outra coisa. Porque, no final das
contas, ele era um arcanjo e não havia nada que ela pudesse fazer se ele
decidisse machucá-la.
— Aqui, você vê?
Desviando o olhar para o que ela indicava na página, ia lembrá-la
que não conseguia ler fluentemente a língua nativa de Charisemnon. Mas
não eram palavras desta vez. Era um diagrama. Uma localização. Mas o
mapa foi desenhado sem marcadores ou cabeçalhos de bússola, feito por
alguém que conhecia a localização e, portanto, não precisava dessas
instruções.
Pegando o diário dela, correu o dedo pela encosta esboçada em
duas páginas. Estrelas pontilhavam o céu, mas essas estrelas não
pareciam estar em qualquer tipo de ordem do mundo real. Um rio ou
riacho corria à distância antes de desaparecer sem aviso – ou foi para o
subsolo naquele ponto, ou Charisemnon não se preocupou em esboçá-lo
totalmente porque não era do interesse dele.
O mais curioso, porém, era que dentro da colina havia uma
residência. Charisemnon a desenhou como uma casa de boneca, com a
frente removida.
Ou este era apenas um plano abandonado, ou construiu uma
fortaleza inteira sob uma montanha.
Bem embaixo do nariz de Titus.
Ele esfregou o queixo. — Devo falar com meu espião mestre. Deixe-
me ver se ela está ao seu alcance.
Senhor, veio a resposta imediata, estou na guarnição. Vim falar com
Tarik antes de começar meu período de sono.
Junte-se a nós no pátio interno, disse Titus. Pode voltar para seu
irmão adotivo em breve. Os dois guerreiros órfãos cresceram juntos na
corte de Titus e seu vínculo era tão forte hoje quanto no dia em que
nasceram.
Virando-se para olhar para o rosto inclinado de Sharine, queria
esfregar o polegar nos lábios dela, roubar outro momento que não tinha
nada a ver com renascidos ou morte. Em vez disso, enrolando os dedos
na palma da mão, disse a ela o que estava acontecendo. Sharine manteve
o diário relevante em mãos enquanto os dois desciam para o pátio
interno.
— Este lugar deve ser protegido — disse ela. — Sei o que pensa de
Charisemnon, mas este repositório de conhecimento valerá muito para
nosso povo.
— Quem sabe que veneno ele pingou nessas páginas —
murmurouTitus —, mas me curvo ao seu maior conhecimento dessas
coisas. — Ele não era tão vingativo com Charisemnon a ponto de privar a
espécie angélica de sua história legítima. — Vou contar aos nossos
historiadores e bibliotecários sobre sua existência depois que as coisas
não forem tão perigosas. Caso contrário, podem tentar voar aqui agora e
não preciso que os não-combatentes ocupem tempo ou recursos.
Um olhar para cima, uma sobrancelha levantada.
Ele revirou os olhos novamente, encantado com o efeito que isso
teve sobre ela. — Caso não tenha notado, você pode disparar parafusos
de energia. Você não é um não combatente.
Sharine ficou quieta – incomumente – até que ele não aguentou
mais. — O que planeja agora? — perguntou ele em suspeita aberta.
Seus cílios piscaram. — Estava pensando que você tem muito mais
facetas do que percebi. — Uma declaração quase afetada, que ele não
sabia como interpretar.
Mas alcançaram o pátio, e sua espiã mestre estava pousando na
frente deles. Um anjo de mais de um metro e oitenta com ossos
marcantes, Ozias não parecia capaz de voar para qualquer lugar sem ser
vista ou observada. No entanto, essa mulher com pele do mais escuro
castanho e cabelo preto selvagemente encaracolado, seus olhos apenas
um tom ligeiramente mais claro, tinha a habilidade de se misturar em
qualquer lugar. Especialmente porque frequentemente usava cores na
faixa marrom-preta e usava maquiagem para suavizar sua estrutura
óssea dramática.
As pessoas não a notavam. Não a viam.
Suas asas eram como as de um falcão, com listras marrons e pretas,
com manchas brancas. Era como se tivesse nascido para se misturar, mas
isso era uma ilusão inteligente. Na batalha, todos os soldados sob o
comando de Ozias olhavam para ela e a encontravam todas às vezes.
— Ozias, — disse ele — esta é Lady Sharine. — A apresentação foi
mais para que sua espiã mestre soubesse como se dirigir a Sharine do
que porque Ozias ainda não estava ciente de sua identidade. — Sharine,
minha espiã mestre, Ozias.
Ozias se curvou na cintura na mais respeitosa das reverências. —
Minha dama. É uma honra conhecê-la.
— Acho que você é como Jason e deve ter estado muitas vezes em
Lumia, um fantasma invisível — disse Sharine, com uma risada em sua
voz.
Ele viu o brilho nos olhos de Ozias enquanto Sharine falava,
entendeu sua batida atordoada de silêncio. A voz de Sharine era linda,
exuberante, com elementos impossíveis de descrever, mas que roçavam
a pele como uma carícia. Titus começava a pensar que era uma espécie
de dom, assim como sua capacidade de causar terremotos.
Porque não foram apenas os arcanjos que a Cascata alterou... e
Sharine viveu em mais de uma Cascata.
— Você me pegou, — disse Ozias, sua voz ficando um pouco rouca.
— Mas espionar você à distância é uma coisa, e conhecê-la pessoalmente
é outra.
Sharine estendeu o diário. — Aqui está o que gostaríamos que você
visse.
Pegando o diário com mãos cuidadosas, Ozias examinou o
diagrama com cuidado.
Quando Titus perguntou se ela viu ou ouviu algo que pudesse
indicar a construção de uma nova fortaleza escondida, ela balançou a
cabeça. — Colocaria em meus relatórios, senhor. — Sem limite em seu
tom; estava ao seu lado por centenas de anos, sabia que sua pergunta não
era um julgamento.
— Nunca vi nada que indicasse tal construção, e nem meu pessoal.
— Ozias não mostrava muita emoção, mas agora franziu a testa. — Mas
seria o cúmulo da arrogância dizer que isso não poderia ser feito. Mesmo
Jason, a quem respeito profundamente, foi incapaz de encontrar o local
onde Lijuan dormia antes dela se levantar, e sei que ele caçava com foco
intenso.
Jason era o espião mestre de Raphael e considerado um dos
melhores do mundo. Titus tentaria roubá-lo, mas seria um esforço inútil
porque Jason era leal ao sangue. Além disso, apesar de sua admiração por
Jason, sua própria espiã mestre não o perdoaria por pelo menos sete
décadas. Ozias mantinha seus rancores com força.
— Mas, — apontou — você tem uma rede muito mais forte no
território de Charisemnon do que Jason tinha na China. — Era uma
questão de logística simples – Titus estava do outro lado da fronteira
com seu inimigo; Ozias tinha agentes duplos que viveram tanto tempo no
norte que eram considerados locais. — É mesmo possível que você não
tenha ouvido nada sobre um projeto tão grande?
Ela olhou para baixo por um segundo, a luz do sol captando os tons
vermelhos ocultos no preto de seu cabelo. Lentamente, ela assentiu. —
Está certo, senhor. Deveria ouvir algo, o que me faz acreditar que o
diagrama é de uma residência histórica –ou foi construído num dos
poucos locais onde um empreendimento tão grande poderia acontecer
sem ninguém falar fora de hora. Não seria aqui.
— De acordo. — Eles não apenas vasculharam todo o complexo da
fortaleza, mas Ozias tinha muitos espiões nesta corte. Uma enorme
fortaleza não poderia funcionar sem todos os tipos de pessoas, incluindo
funcionários de cozinha e limpeza. Charisemnon não era muito bom em
garantir que seus cortesãos soubessem tratar bem esses trabalhadores.
Como resultado, eram os mais fáceis para a espiã mestre de Titus aliciar.
— Sua fortaleza ao norte, — disse Ozias — duas horas a leste de
Lumia, é muito menor. Nunca consegui obter uma fonte dentro daquela
fortaleza, e tínhamos que nos contentar com sobrevoos furtivos ou coisas
avistadas à distância. Fizemos apenas uma verificação superficial lá, para
garantir que não havia nada perigoso lá dentro.
Olhando para cima, os olhos distantes em pensamentos, ela
acrescentou: — O único outro local possível onde uma estrutura
subterrânea poderia ser construída em silêncio é bem na fronteira.
Titus olhou para uma de suas melhores pessoas. — Já dormiu o
suficiente, Ozias? — perguntou ele com preocupação genuína.
Um raro sorriso de uma mulher que uma vez o embebedou debaixo
da mesa com uma bebida letal criada por Charo para todas as pessoas.
Não que Titus tivesse ficado bêbado; o sistema arcangélico era forte
demais para isso. Mas teve que desistir da queima ardente do material
caindo.
— Não estou perdendo a cabeça, senhor — disse ela. — Estou
ciente que era uma das áreas mais vigiadas e protegidas enquanto
Charisemnon estava vivo.
— Então, como acredita que algo tão significativo poderia ser
construído sem o conhecimento de Titus? — A sobrancelha de Sharine
estava franzida.
Titus queria tirar um dedo e esfregar aquelas marcas, mas, ao
mesmo tempo, aceitava que Sharine ganhou suas marcas, suas cicatrizes.
Nunca seria uma mulher que pudesse deixar a salvo e protegida dentro
de sua cidadela... e isso presumindo que ela concordasse em ficar com
ele.
Ficar com ele.
O pensamento o atingiu como um chute no estômago de uma bota
de pedra.
CAPÍTULO 40

Titus ainda estava se recuperando do golpe imprevisto quando


Ozias começou a falar.
— Por causa das constantes batalhas que ocorreram na fronteira –
a grande maioria delas iniciada por Charisemnon, — disse sua mestre-
espiã— os edifícios da guarnição da fronteira sofreram danos
implacáveis. Tudo que seria necessário era que Charisemnon acertasse
deliberadamente um de seus próprios edifícios aparentemente por
acidente. Ninguém prestaria muita atenção a qualquer construção
resultante, era uma visão tão comum.
Arrancando sua mente de volta ao presente, literalmente
empurrando seus outros pensamentos de lado até que tivesse tempo
para processá-los sem pânico, Titus considerou a teoria de Ozias com
cuidado. Não queria dar crédito ao inimigo por nada, mas Charisemnon
nunca foi um tolo. — Se fez isso, foi um sutil ato de gênio. — As palavras
doeram. — Você tinha espiões na fronteira, mas não ouviu nada sobre
isso.
— É exatamente isso, senhor. — Ozias balançou a cabeça. —
Ninguém pensaria em me incomodar com notícias de mais construção.
Mesmo uma estrutura subterrânea não é incomum na fronteira – temos
nossos próprios bunkers. — Essa última informação foi dirigida a
Sharine.
— Tão astuto —murmurou Sharine, sua asa roçando na de Titus...
porque ele se moveu para mais perto.
Titus cruzou os braços. — Se sua suposição estiver correta, Ozias,
não posso acreditar que aquele cachorro cagado de arcanjo me enganou.
— Você fala por mim também, senhor. — Ozias tinha uma
expressão estranha em seu rosto – uma mistura de admiração dolorida e
vergonha horrível, mas se recuperou com coragem. — Se eu fosse o
arcanjo Charisemnon, não manteria a construção em segredo.
— Teria até permitido que o edifício resultante fosse usado para
vários fins de guarnição de fronteira, então lentamente transferiria as
pessoas para fora, exceto, talvez, alguns poucos de confiança. Feito com
suavidade, ninguém pensaria em nada.
— Especialmente, — disse Titus — se o edifício no topo da
estrutura subterrânea fosse danificado novamente e nunca devidamente
reconstruído.
Ozias acenou com a cabeça. — Charisemnon poderia ter dito ao seu
povo para abandonar aquela área frequentemente atingida e colocar
suas energias na construção de um edifício longe de um local tão
perigoso.
Titus apertou a mandíbula, um nervo pulando ao longo de sua
mandíbula. — Me irrita intensamente que você provavelmente está
certa.
— Temo que não possa estar tão irritado quanto eu. É uma
estratégia brilhante. Estou com raiva por não ter pensado em algo
semelhante. Poderíamos ter escavado um túnel para atacar o outro lado.
Titus balançou a cabeça. — Isso teria funcionado apenas uma ou
duas vezes antes deles começarem a fazer o mesmo em retaliação e
terminarmos de volta ao ponto de partida. — Ele colocou as mãos nos
quadris. — Volte para seu irmão adotivo.
Sua espiã mestre olhou para ele, sem piscar. — Senhor, sabe muito
bem que sou incapaz de retornar ao meu irmão sem primeiro descobrir
se nossa teoria está correta.
A risada de Sharine foi gentil, um som que agradou aos ouvidos e
fez Ozias se virar para olhar para ela de uma forma que era... Não apenas
intrigada. Mais que isso. Fascinada e com uma ponta de admiração.
Porque esta era a Colibri e Titus percebeu que a maioria das pessoas
nunca a viu tão viva, tão vibrante, sem névoa nela.
Se ela era adorável e etérea antes, agora estava deslumbrante em
seu brilho, um sol pequeno e brilhante. — Isso é algo que meu filho diria
— disse ela a Ozias. — Posso imaginar Illium parado onde você está
agora, com as mãos nos quadris e as asas se contraindo com impaciência.
Ozias, alguns milhares de anos mais velha que Illium, sorriu
novamente e foi mais profundo, mais real, revelando a beleza que ela
transformava em invisibilidade maçante com tal habilidade. — Tentei
recrutar seu filho uma vez — disse ela.
— Sei que ele nunca deixaria Raphael. —Sharine lançou a Titus e
sua espiã mestre um olhar sombrio. — E eu acreditava que você era
amigo de Raphael.
Titus riu. — É um jogo. — Muito gratificante. — De vez em quando,
um de nós faz uma oferta a um membro da corte do outro que deveria
ser irresistível – mas é um motivo de orgulho para nós que nenhum de
nossos funcionários de alto nível jamais tenha aceitado essas ofertas.
Enquanto Sharine balançava a cabeça, os lábios lutando contra um
sorriso, ele acrescentou: — Para aqueles que são mais jovens, esse
movimento pode ser benéfico. Eu os ensino a serem guerreiros e eles
voltam altamente treinados para Raphael quando ele faz uma contra-
oferta. O filhotinho, por sua vez, ensina meu povo a prosperar num
mundo que muda constantemente, e eles voltam para casa com um
conhecimento que impede minha corte de cair na idade das trevas.
Os dois ficavam muito contentes com essa troca silenciosa e nunca
reconhecida. Como Titus e Alexandre estavam contentes com seu jogo
muito mais aberto e sempre amigável de superioridade. Embora nenhum
deles tivesse tido a chance de desafiar um ao outro para uma aventura
ousada desde o despertar de Alexander.
— Agora, voamos — disse ele. — Vamos descobrir se estamos
atribuindo inteligência demais ao meu inimigo, ou se ele realmente
conseguiu me enganar.
— Espere, devo deixar este diário no escritório. — Sharine girou
nos calcanhares para correr rapidamente para dentro, suas asas um
choque de cor neste lugar sombrio.
Ozias olhou para ele assim que ela se foi, o castanho de seus olhos
incomumente suave. — Lady Sharine não é quem eu acreditava que
fosse... mas continua sendo um tesouro, uma estrela capturada numa
pequena moldura.
Com uma carranca pesada, Titus cruzou os braços. — Está me
dizendo para deixá-la em paz? — Ele tinha toda a certeza de que Ozias
notou exatamente o quão perto esteve de Sharine, viu o roçar de suas
asas, notou a leve umidade de sua túnica e a juntou ao cabelo ainda seco
de Titus e as manchas úmidas em suas calças.
Sem sorriso, sua expressão inexpressiva. — Pelo contrário, senhor.
Estou dizendo que devemos roubá-la para nós mesmos, para que
possamos conspirar para protegê-la daqueles que tentam o mal.
Sorrindo, Titus deu um tapa no ombro de sua espiã mestre, com
cuidado para modular sua força. Ozias era forte, mas não era Tzadiq. No
entanto, mesmo quando Ozias permitiu que um raro sorriso iluminasse
seu rosto, sabia muito bem que Sharine não queria ser protegida. Se ele
fizesse isso, teria que ser furtivo. Não era exatamente a habilidade mais
forte de Titus.
Sua carranca voltou junto com Sharine.
Ela ergueu uma sobrancelha para ele, mas não fez perguntas
enquanto os três decolavam. A viagem não demorou muito, embora Titus
tivesse que se conter para que as outras duas pudessem acompanhá-lo.
Sua mestre espiã contatou-o mente a mente quando estavam prestes a
alcançar este lado da antiga fronteira.
Lady Sharine é muito mais rápida do que eu previa. Ela está
mantendo minha velocidade máxima e não parece cansada.
Titus sabia que ela se cansaria numa corrida mais longa a esta
velocidade, pois ainda não havia acumulado a resistência necessária, mas
sua mestre espiã estava certa sobre seu ritmo. Ele sempre assumiu que o
jovem Illium era tão rápido quanto ele porque tinha um arcanjo como
pai, mas a pista para a verdade real sempre esteve na frente de seus
rostos.
Um pequeno colibri podia se mover em velocidades incríveis em
relação ao seu tamanho – ainda mais rápido que um arcanjo. Um
pequeno fato que percebeu em algum momento de sua vida e que pegou.
No entanto, nunca fez a conexão com a delicada e adorável tesouro dos
anjos.
Aterrissando, Titus dobrou suas asas, olhando para Sharine
enquanto ela pousava junto com Ozias. — Como conseguiu seu apelido?
— perguntou ele, para confirmar sua teoria. — A Colibri?
— Por que está me fazendo essa pergunta agora? — Ela ergueu as
mãos, com as palmas para fora, mas respondeu de qualquer maneira. —
Raan costumava dizer que eu voava como um colibri. Aqui e ali e em
todos os lugares, tão rápida que era uma faixa de cor no céu. — Ela abriu
as asas e dobrou-as de volta com precisão.
— Não sou tão rápida quanto antes — disse ela com uma careta. —
Inquestionavelmente devido à falta de prática da minha parte. Mas posso
sentir os músculos começando a acordar e não vou permitir que atrofiem
novamente.
Eu me sinto muito estúpida hoje. O tom mental de Ozias era
sombrio.
O mundo inteiro se junta a você nisso, Titus garantiu a sua espiã
mestre enquanto pisava fundo numa explosão ridícula de fogo verde em
seu intestino. Ter ciúme de um homem morto há muito tempo o tornaria
um imbecil da mais alta ordem, e já estava sentindo o açoite de ser
enganado por seu inimigo.
— Então — disse ele em voz alta, observando os edifícios da
guarnição abandonados. — Precisamos procurar uma seção que desabou
e foi deixada assim pelo que parece algum tempo, ou uma que seja nova –
no caso de Charisemnon decidir esconder a verdade construindo e
reconstruindo.
Os três decolaram novamente, indo examinar diferentes partes da
guarnição. Titus foi bem alto no céu, para que pudesse ver cada parte
dela; ao mesmo tempo, tentava se lembrar das batalhas travadas.
Charisemnon nunca atacou as tropas no campo de batalha, exceto
quando Titus também estava presente.
Nisso, pelo menos, se apegou às regras não escritas das constantes
batalhas entre eles. Um arcanjo não tentaria dizimar as forças do outro.
Não havia sentido em ganhar uma escaramuça se isso significasse
esmagar anjos que não tinham esperança de se salvar de um arcanjo.
Estranho que Charisemnon honrasse essa linha brilhante quando
cruzou tantas outras, mas como com qualquer criatura com milhares de
anos, foi criado de camadas sobre camadas. O mesmo homem que
escreveu todos aqueles diários que capturaram milênios de sua história e
de seu território também criou insetos que rastejavam sob a pele de
mortal ou vampiro e matavam.
Viu uma série de rachaduras na terra de seu ponto de vista,
evidência de seu poder nascido da Cascata. Um estava tentando se
transformar num pequeno desfiladeiro. Avistando um local provável –
uma construção na borda externa que parecia ter sofrido graves danos e
que foi deixada intacta por tanto tempo que as plantas começaram a
rastejar sobre ela, grama crescendo nos cantos e fendas – voou para
examiná-la com mais cuidado.
Não funcionaria se Charisemnon não conseguisse acessar a
instalação subterrânea, e esta pilha de destroços era apenas isso.
Nenhuma maneira de entrar para o que quer que estivesse além. Os dois
edifícios de cada lado dele, no entanto, permaneceram inteiros, exceto
por alguns danos menores. Hmm...
Teias de aranha beijaram seu rosto quando entrou no prédio à
direita; ouviu asas descendo atrás dele ao mesmo tempo em que afastava
as teias. — Espere lá fora — ordenou a Sharine. — Não tenho certeza da
segurança estrutural deste edifício. — O que parecia ser um dano menor
do lado de fora podia ter um impacto significativo no interior.
— Então por que está entrando? — Uma pergunta afiada. — Isso
poderia facilmente cair em cima de sua cabeça teimosa.
Ele se virou para olhar por cima do ombro, perguntando-se se devia
se sentir insultado, mas não, preocupação genuína marcava suas feições,
seus lábios contraídos e seus olhos escuros. Bem dentro dele, algo
desconhecido se torceu. Ninguém se preocupou tanto com ele por uma
eternidade. Nem mesmo sua mãe ou irmãs, todas as quais
frequentemente se referiam a ele como o bebê da família.
— Sou um do Cadre — lembrou a ela com uma gentileza que vinha
da mesma coisa desconhecida dentro dele. — Um prédio caindo sobre
mim não causará danos que meu corpo não consiga consertar em
questão de minutos. — Levaria muito mais tempo.
— Só tome cuidado — disse ela após uma pausa. — Não quero
passar horas tirando você dos escombros se ficar preso. — Embora as
palavras parecessem ásperas, ela estendeu a mão para fechar a mão
sobre a dele. — Não corra riscos desnecessários.
Pareceu natural abaixar a cabeça e beijar aqueles lábios
preocupados. — Não vou.
Soltando a mão dela com um aperto, entrou no prédio empoeirado,
cujo chão estava coberto com flocos de detritos do teto, e caminhou até
os degraus que podia ver do lado esquerdo. Esses degraus levavam ao
que parecia ser um grande depósito, mas logo descobriu outro conjunto
de degraus além disso.
Descendo esses depois de acender as luzes que piscavam, mas
ainda funcionavam, se viu num espaço cheio de pilhas de caixas
organizadas. Uma espessa camada de poeira cobria os topos – muito
mais espessa do que podia ser explicado pela falta de movimento aqui
desde a guerra.
Ele abriu uma, encontrou armas.
O mestre de armas de Titus há muito tempo trocaria essas caixas
não utilizadas para abrir espaço. A menos, é claro, que Titus dissesse a
ele que as armas precisavam ser mantidas no lugar em preparação para
uma ação específica da qual seu arcanjo o informaria quando fosse a
hora. Ninguém tocaria nelas.
Um guerreiro curioso que abrisse uma caixa encontraria armas -
nada incomum num campo de batalha. O que era incomum era a porta
escondida atrás de um conjunto de caixas bem no fundo. Só a avistou
porque havia rachado a terra sob a infantaria de Charisemnon. A terra se
moveu... e a parede se moveu para revelar as linhas do que de outra
forma seria uma porta oculta.
Invisível. Despercebida.
Algo se espatifou acima, o prédio tremendo ao seu redor. Estava
pensando em seu próximo passo quando ouviu passos, leves e rápidos,
descendo os degraus. — Eu disse para você ficar lá em cima!
Ele não suportaria se aquelas asas de índigo e ouro fossem
quebradas, aquele pequeno corpo esmagado. Não porque ela era a
Colibri, um tesouro da espécie angelical, mas porque era Sharine, que se
preocupava com ele e que tinha um raciocínio rápido e com quem ele
estava descobrindo que podia falar sem nunca ficar entediado.
— O prédio está caindo à sua volta. — Ela caminhou até ele, sem
arrependimento... enquanto o champanhe translúcido de seus olhos o
examinavam em busca de algum ferimento. — E, como Vossa Senhoria
apontou, você é parte do Cadre. Tenho certeza de que pode me proteger
caso algo aconteça. — Então ela estendeu a mão e pegou a mão dele,
puxando. — Venha.
Ele percebeu que ela veio para arrastá-lo para um local seguro.
O espanto o transformou em pedra.
Não simplesmente porque, fisicamente, ela não conseguia arrastá-
lo para lugar nenhum, muito menos subir dois lances de escada. Não,
porque estava preocupada o suficiente com a segurança dele que
desconsiderou o perigo para ela mesma. Era tolice, mas abriu uma veia
dentro dele, uma veia tão profunda que entrelaçou seus dedos nos dela e
disse: — Encontrei uma porta escondida.
Olhos se arregalando, antes que seu olhar seguisse o dele. Quando
ele puxou a mão dela, ela foi com ele. Só para protestar quando ele
colocou o braço em volta dos ombros dela, puxando-a para perto de seu
corpo.
— Se devo protegê-la de um prédio em queda, — resmungou ele —
deve estar apertada comigo. — Seus ossos poderiam sofrer danos muito
maiores, e ele também envolveria suas asas em torno dela, protegendo-a.
— Você está fazendo sentido. É irritante. — Com essas palavras
rabugentas que o fizeram querer sorrir, ela deslizou um braço em volta
de suas costas, apertou a mão contra sua pele nua.
O contato queimou... e era um estranho tipo de conforto.
Com ela em risco, ele caminhou até a porta sem demora. — Fique
perto — ordenou ele, então a soltou para que pudesse usar as duas mãos
para puxar a borda exposta da porta. Ela rangeu, seu mecanismo
emperrou ou deformou como resultado do terremoto.
Uma chuva de poeira quando finalmente arrancou a porta das
dobradiças e a colocou de lado. Sharine tossiu e acenou com a mão na
frente do rosto, a poeira girando na porta tornando difícil ver além até
que se assentasse.
— O cheiro — disse ela com outra tosse. — Decadência e
negligência e um odor mais úmido e fétido.
— Sim, como se algo morresse por dentro.
Usando as costas da mão para limpar a poeira do próprio rosto,
Titus disse a Ozias para ficar lá em cima. Avise-nos se vir algum sinal de
movimento nas rachaduras causadas pelo meu poder. Ele tinha certeza de
que o tremor anterior resultara de tal movimento.
Senhor.
E, para satisfazer sua curiosidade para não morrer de frustração,
você estava certa. Este prédio se conecta ao prédio escondido sob os
escombros ao lado. Com isso, entrou no abrigo subterrâneo escondido,
Sharine ao seu lado, suas asas esfregando uma contra a outra, estavam
tão perto.
Estava escuro como breu além da pouca luz que entrava no espaço
vindo da porta, e o primeiro aviso que teve de que não estavam sozinhos
foi um som de arranhar quando algo correu em sua direção com um
chocalho de correntes.
CAPÍTULO 41

Golpeando sua mão com precisão de guerreiro, envolveu seus


dedos ao redor da garganta do que esperava ser um renascido. Unhas o
agarraram enquanto Sharine envolvia sua mão com seu poder. A luz
fraca inundou a sala... para revelar uma renascida como nunca viu. Suas
asas foram cortadas para que não pudesse voar, seus olhos estavam
avermelhados, sua carne tinha um tom esverdeado.
No entanto, ela não estava apodrecendo, estava viva em algum
sentido bizarro.
Sua raiva pelas ações malévolas de Charisemnon como uma
tempestade,ele ia arrancar a cabeça dela por instinto quando Sharine
colocou a mão em seu antebraço. — Não, Titus, não!
Ele parou no meio do movimento, mesmo quando a renascida se
mexeu fracamente em seu braço, sua força desaparecendo em alta
velocidade. — A criatura é um perigo, e também é cruel permitir que ela
exista em tal estado. — Nenhum anjo jamais escolheria esta vida.
— Veja. — Essa única palavra estava cheia de horror, seu olhar não
estava no rosto da renascida, mas mais abaixo.
Na barriga inchada da criatura.
Seu estômago se revirou tanto que quase vomitou, como faria um
jovem soldado diante das vísceras da batalha pela primeira vez. — Vou
fazer isso rapidamente — prometeu a Sharine. — Não vou prolongar sua
tortura. — Uma coisa como essa estava além do mal. — Mulheres que
estão grávidas quando atacadas não sobrevivem e renascem– eu nunca vi
isso.
Mas ela colocou a mão na dele e apertou. — Você não entende,
Titus? — Seu corpo tremia. — Acho que ela carrega a cura.
Ele olhou para ela, então para a criatura fraca em suas mãos. Havia
pouca carne em seu corpo – não era uma surpresa se estivesse presa
nesta sala desde a morte de Charisemnon; teria apenas a comida que o
outro arcanjo deixou atrás para ela. Essa comida era provavelmente
carne... e embora os renascidos se tornassem mais inteligentes, não eram
nem um pouco inteligentes o suficiente para saber como acumular
alimentos contra a escassez. Seu instinto era devorar.
— Encontre outra fonte de luz — disse ele a Sharine; ele se
concentrou na ação prática porque, de outra forma, o horror o
dominaria. — Deve haver algo mais brilhante aqui se este era o espaço
de trabalho de Charisemnon.
Não demorou muito, o quarto logo foi inundado por uma luz
clinicamente branca. O espaço que se estendia na frente deles era
enorme, mas também aberto o suficiente para que pudesse ver de
relance que não continha nenhum outro renascido.
Um colchão imundo e uma pilha de cobertores estavam num canto,
junto com restrições de ferro que saíam da parede ligeiramente rachada.
Ele olhou para baixo e viu as correntes se arrastando dos tornozelos da
criatura. Embora isso revirasse seu estômago, carregou a agora imóvel
renascida para aquela cama – mesmo as correntes não adicionavam
muito ao seu peso.
Ela sujou parte do colchão, mas ele encontrou um remendo
relativamente limpo para colocá-la.
— Isso deve conter comida. —Sharine apontou para vários
recipientes quebrados perto do colchão. — Oh, doce misericórdia.
Seguindo seu olhar, ele viu um monte de pequenos ossos. Com os
músculos tensos, olhou novamente para a faminta renascida. — Quando
movi a terra, deve ter causado rachaduras suficientes para os ratos
entrarem.
— Ela fez o que precisava fazer para sobreviver — disse Sharine, o
rosto tenso de tristeza.
— Não é ela, Sharine. Ela morreu quando Charisemnon e Lijuan
fizeram isso com ela. —Sharine precisava entender isso, ou hesitaria
contra um renascido na hora errada e acabaria dilacerada. — Esta é uma
criatura criada por um mal monstruoso.
Uma respiração trêmula, mas Sharine assentiu.
Senhor, as rachaduras na terra estão se movendo e vindo em sua
direção.
Titus sentiu o primeiro sussurro de um estrondo sob seus pés, ao
mesmo tempo em que o aviso de Ozias atingia sua mente. O fato dessa
estrutura ainda estar de pé dizia a ele que era sólida e construída para
ser resiliente, mas não podiam contar com isso – não depois de todos os
danos causados pelos terremotos anteriores. — Reúna todos os
documentos que encontrar — disse ele a Sharine. — Eu farei o mesmo –
o corpo desta criatura está mole. Não temos que temer um ataque.
Foi Titus quem encontrou a câmara frigorífica ainda funcional.
Fileiras e mais fileiras de corpos se alinhavam nas paredes, todos
mulheres angelicais. Asas cortadas eram padrão... e alguém havia aberto
o estômago de várias. Pequenas formas retorcidas sem rostos e com pele
de um verde podre estavam empilhadas em outro canto.
Ele fechou a porta quando ouviu Sharine se aproximando. — Você
não deseja ver o que está dentro — disse ele, segurando com força a
maçaneta da porta para impedi-la de tentar abri-la. — Confie em mim.
Como mãe, você não quer ver isso.
Ela olhou para ele por um longo momento antes de inclinar a
cabeça. — Confio no seu julgamento. — Em suas mãos havia vários
cadernos grossos. — Pode pegar uma caixa na sala externa?
Ele a fez vir com ele, não querendo que o prédio caísse em cima
dela enquanto estivesse fora. Após retornar com a caixa, rapidamente a
encheram com todas as anotações de Charisemnon que puderam
encontrar, então Sharine a ergueu em braços que tremiam, mas
seguravam. Ele, por sua vez, envolveu o anjo renascido em vários
cobertores para que ninguém soubesse que era um anjo que ele
segurava, então seguiu Sharine para fora do bunker.
Ele enviaria uma equipe de escavação para cá assim que os
tremores parassem e fosse seguro, mas por enquanto, isso teria que ser o
suficiente.
Ozias pegou a caixa de Sharine no instante em que saíram, seus
olhos se estreitando enquanto observava o fardo de Titus. Mas não fez
nenhuma pergunta, sua fé em Titus superando seu choque. — De volta à
corte de fronteira de Charisemnon?
Titus concordou. Não estava prestes a levar esta infecção para sua
própria corte.
— Espere — disse Sharine. — Posso ter isso? — Ela estava
apontando para o frasco de água que sua espiã mestre havia amarrado
em um lado de sua coxa.
Quando Ozias, com as mãos cheias pela caixa, acenou com a cabeça,
Sharine estendeu a mão para pegá-la. Abrindo o frasco... ela começou a
derramar a água fria e clara sobre as feridas de Titus. Ele podia dizer que
os arranhões já estavam curando, e não sentiu nenhuma sensação de
enjoo, mas a deixou fazer o que precisava – com o sangue lavado, ela
seria capaz de ver as pontas de cura por si mesma.
— Está coçando — murmurou ele, seu olhar em sua cabeça
inclinada e seu coração... suave. — Sabe o que isso significa.
Um aceno forte e firme. — Bom. — Fechando a tampa do frasco
vazio, o segurou enquanto os três decolavam.
Ela voou bem ao lado dele enquanto Ozias ia um pouco à frente, e
falavam enquanto voavam. — Ela parece estar perto do parto ou muito
perto disso.
— Deve me aconselhar sobre isso. Precisamos de uma parteira? —
Não conseguia acreditar que estava perguntando tal coisa, não quando o
que estava crescendo dentro desta criatura morta trazida à vida trôpega
era capaz de ser uma coisa horrível. — Ou posso abrir seu útero depois
de encerrar sua vida e recuperar tudo que germina dentro dele?
O rosto de Sharine ficou branco, seus ossos afiados contra sua pele
enquanto olhava para a anja renascida em seus braços.
— Pense em seu povo — disse ele gentilmente. — Será que algum
deles gostaria de estar neste estado? Gostariam que você prolongasse a
tortura deles? — Foi quando sentiu um movimento contra seu peito,
onde o estômago do anjo renascido estava pressionado.
Um espasmo ondulante.
Nunca esteve em contato tão próximo com uma mulher prestes a
ter um filho, e a ondulação parecia muito grande e forte, mas tinha idade
suficiente para saber o que estava acontecendo. — A decisão foi tomada
– ela está tendo contrações.
— Posso atuar como parteira. — Não seria a primeira vez que
Sharine dava à luz; com a idade, vieram muitas experiências, e ela se
lembrava de ter agido como parteira de emergência para outra anja bem
o suficiente para fazer isso. — É provavelmente melhor se não
trouxermos mais ninguém para isso. Não sabemos o que a mãe ou...
criança, se for uma criança, carrega em seu sangue e outros fluidos
corporais.
Para melhor ou pior, Sharine e Titus já foram expostos. Ozias não
entrou em contato real com a vítima, nem passou um tempo num espaço
fechado com ela. Sharine, em contraste, coçou a mão enquanto estava
dentro daquela sala. Nada além de um pequeno arranhão que já estava
quase curado, mas ainda assim, uma exposição significativa.
Ela ia dizer algo a Titus sobre esse ponto, mas ficou em silêncio
quando seu olhar caiu sobre ele. Estava olhando para a anja renascida
em seus braços, uma dor retorcida em suas feições.
— Eu a reconheço da minha última visita ao Refúgio — disse ele
asperamente. — Duzentos anos no máximo. Quase sem treinamento.
Tão jovem. O coração de Sharine se partiu. Uma criança tão jovem
não deveria estar grávida; era muito raro um anjo tão jovem engravidar.
Provavelmente também teria pais que ainda estavam acordados. Seu
mundo se despedaçaria com essa perda terrível.
Ela e Titus não trocaram mais palavras pelo resto da jornada até a
fortaleza de Charisemnon. Depois de pousar diretamente no pátio
interno, Titus ordenou que Ozias ficasse de guarda e carregou a
renascida para a cama mais próxima. Era um quarto feminino, coberto
com tecidos suaves e enfeites delicados.
Sharine ficou feliz com a maciez da colcha na qual Titus colocou a
mulher moribunda. Sem dúvida, poderiam reanimá-la com uma refeição
de carne, mas tal ato desonraria não apenas quem essa mulher foi, mas o
próprio conceito de vida. Titus estava certo ao dizer que nenhum anjo
escolheria esta existência.
Sharine puxou os cobertores, para que a renascida não ficasse mais
enrolada neles.
Quando Titus arrancou tiras de um daqueles cobertores, ela quis
protestar que a renascida não precisava mais ser amarrada, que a
criatura estava muito fraca – mas sabia que era seu coração falando.
Quem quer que esse ser tenha sido, esse ser se foi. Charisemnon roubou
uma morte digna dela, transformando-a nesta abominação de vida, e
agora ela não era confiável.
Mas ela interveio quando Titus amarrou seus tornozelos na cama.
— Não corro perigo pelos pés dela. E é melhor se ela tiver controle da
parte inferior do corpo.
Titus concordou. — Estarei aqui se ela de alguma forma quebrar
seus laços.
A mulher renascida gritou então, um grito agudo de som que
arrepiou todos os pelos do corpo de Sharine, era tão desumano. Ainda
assim, com o cuidado de manter a mão longe dos dentes afiados da
mulher, acariciou seu cabelo. Esta criança estava morta, seu tormento
estava perto do fim, mas neste instante era uma criatura presa numa
armadilha da qual nunca poderia escapar; Sharine faria com toda a
gentileza que pudesse.
Estranhamente, a carícia pareceu acalmá-la, e quando Sharine
disse: — Empurre! — Ela gritou, mas obedeceu. Os poucos fragmentos de
roupa que ainda grudavam em seu corpo não impediam o nascimento.
Então Sharine continuou dando a ordem – as contrações vinham uma em
cima da outra agora, num ritmo que não era o de um anjo saudável.
O estômago de nenhum anjo já se inchou e rolou dessa maneira. O
corpo de nenhum anjo jorrou um fluido preto esverdeado. E os olhos de
nenhum anjo eram desprovidos de branco, a esclera um mar de
carmesim.
Outro grito, os olhos da anjo renascida encontraram os de Sharine.
Por um momento, Sharine viu sanidade naqueles olhos, viu um
conhecimento do horror e ouviu as palavras sussurradas: — Dê-me
misericórdia. Por favor. — Então a mulher estalou os dentes antes de
gritar de novo e se abater enquanto se debatia nas amarras.
Deslocando-se para baixo na cama, Sharine arregaçou as mangas e
se preparou para agarrar o que quer que fosse que estava para sair, mas
Titus a empurrou gentilmente para o lado. — Você não sabe se o que vai
surgir o fará mordendo e arranhando.
Ela estremeceu, sua imaginação evocando um pesadelo. — Você a
ouviu? — A tristeza engrossou sua voz. — Ela pediu misericórdia. —
Sharine não conseguia imaginar a dor dessa mulher – saber que era uma
criatura doente e moribunda, mas ser incapaz de fazer qualquer coisa
para impedi-la.
Um breve aceno de cabeça. — Ela não deveria estar consciente de
forma alguma. Depois de se elevarem, os renascidos dessa iteração –
mesmo os mais astutos – não têm senso de razão e nem linguagem. Isso
confirma o que nos foi dito sobre o primeiro renascido angelical.
Pegando uma manta do sofá perto da janela, a passou para Titus. —
Para que possa proteger seus braços pelo menos um pouco. — Depois
que ele a pegou, ela voltou para a cabeceira da cama. Embora os olhos da
mulher renascida estivessem agora vermelhos enlouquecidos, sem
nenhum sinal de consciência, sua boca exposta enquanto tentava morder,
Sharine acariciou seu cabelo e murmurou palavras gentis que ela
esperava que tornassem isso um pouco mais fácil.
A gritaria subitamente atingiu um tom que doeu nos ouvidos, vidro
se estilhaçando. O corpo da anjo renascida explodiu num jorro de fluido
escuro, verde-preto escuro quando deu à luz ao que quer que
Charisemnon plantou nela. Sharine apenas olhou por tempo suficiente
para ver que Titus estava seguro. Sua atenção estava na mulher, cuja
respiração se alterou dramaticamente, seu peito latejando.
E embora soubesse que havia uma chance de ser agarrada, Sharine
deslizou uma mão na da anjo renascida. Um aperto fraco em torno dela,
seus olhos fixos nos de Sharine por um momento profundo de pura paz...
então ela deu um último suspiro e ficou imóvel como só um morto fica.
Os renascidos não morriam dessa maneira, mas essa mulher nunca foi
uma renascida comum.
Uma única gota verde-preta rolou de seu olho e desceu por sua
bochecha.
Com as lágrimas queimando sua garganta, Sharine fechou
suavemente as pálpebras da mulher. Por alguma misericórdia,
permaneceram assim. Quando ela se virou para Titus, foi para vê-lo
olhando para o que segurava embalado em seus braços.
— Titus? — A respiração presa em sua garganta, ela se aproximou.
Seu estômago embrulhou – tudo que pôde ver a princípio foi um
pútrido verde-preto. Mas então viu as mãos em punhos acenando com
dedos minúsculos perfeitos, a boca ofegava por ar num rosto que Titus
deve ter limpado, e sentiu um horror ainda mais frio correr por seu
sangue. Suas palavras saíram num sussurro. — É um bebê.
— Verifique os dedos dela. — A voz de Titus era de pedra
esmagada. — Veja se tem garras.
Esfregando suavemente um punho com a ponta da manta, ela
desenrolou aqueles delicados dedos de bebê com cuidado. Então
examinou os pés do bebê. — Nada. Tem as mesmas unhas macias de
qualquer outra criança.
Mudando de posição, ela caminhou rapidamente para a sala de
banho da suíte e encontrou o que parecia ser um conjunto de toalhas não
usadas penduradas num suporte. Umedecendo a toalha macia de mão
com água morna, voltou para o quarto e começou a limpar suavemente a
criança.
Mas não era suficiente; o lodo estava em toda parte e grudava. —
Traga-a para o banheiro. — Indo em frente, encontrou um jarro ao lado
da banheira. Devia ser para os banhistas derramarem água sobre si
mesmos– ou talvez para um servo corporal o fazer.
Ela encheu a jarra com água morna, em seguida, fez Titus se livrar
da manta suja e segurar a criança na pia enquanto derramava a água
sobre a pele da estranhamente quieta bebê, lavando-a até que estivesse
limpa em toda a sua frente. Ao contrário da maioria dos bebês tão jovens,
seus olhos pareciam ser capazes de focar e o bebê a observava com olhos
de um tom estranhamente familiar.
Ouro profundo com lascas de marrom.
A última vez que viu esses olhos, eles estavam num rosto masculino
incrivelmente bonito, seus lábios exuberantes e seu cabelo um mogno
sedoso.
O rosto de um arcanjo.

CAPÍTULO 42

Devo usar minha própria semente.


Essa é a chave. Essa sempre foi a chave.

–Dos diários do Arcanjo Charisemnon


CAPÍTULO 43

Se perguntando se Titus já notou os olhos do bebê, se ele percebeu


a importância, ela disse: — Vire a pequena.
Titus não disse nada, mas suas mãos grandes foram cuidadosas ao
virar o bebê para que suas costas ficassem expostas; Titus fez questão de
apoiar a cabeça da criança. Bastou um jato de água para limpar o
suficiente do lodo e revelar asas. As asas translúcidas e suaves de uma
criança angelical, sem deformidade ou malformação. Ela tomou cuidado
enquanto limpava toda a gosma dessas asas, depois o resto do corpo da
criança.
A pele do bebê era um ouro escuro que lembrava o de seu pai. Era
impossível ver a tonalidade original da pele de sua mãe sob a podridão
renascida, mas provavelmente era semelhante à de Charisemnon para a
criança ecoar tão de perto a sombra.
Somente quando a criança não tinha nenhum vestígio de gosma em
seu corpo minúsculo, ela pegou a toalha maior e estendeu-a sobre o
balcão para que Titus pudesse colocar a criança sobre ela. Com a
pequena ainda estranhamente silenciosa deitada de costas, começou a
limpar a pele. Ela manteve seu toque suave, limpando a água de sua pele
ao invés de esfregar. — Veja se consegue encontrar algum pó. Vai ajudar
a pele dela depois de tudo que passou.
Titus hesitou.
— Ela não pode fazer nada comigo, Titus. Ela não tem dentes, muito
menos garras.
Ele saiu finalmente.
Nesse ínterim, Sharine pegou e embalou a criança em seus braços.
— O que é você, pequenina?
O bebê soluçou... então, jogando a cabeça atrás, gemeu. Chorou
como se estivesse levando uma surra, como se o mundo fizesse a ela o
maior insulto.
— Pelo menos ela tem uma voz forte — disse Titus num tom de
aprovação enquanto entrava com várias latas de pó nas mãos. — Não
sabia qual era a certa.
— Calma, meu doce — murmurou Sharine, embalando a criança –
sem sucesso. Seu rosto ficou vermelho sob o ouro de sua pele, seus
soluços espasmódicos entre os lamentos.
— Hah, ela é teimosa. Dê ela para mim.
Colocando o corpo minúsculo do bebê contra seu ombro, Titus deu
um tapinha nas costas dela com movimentos firmes que não esfregaram
ou desgastaram suas asas frágeis. Uma série de soluços antes que o choro
diminuísse. — Viu? — Titus sorriu com orgulho. — Não é difícil.
Sharine sentiu seus lábios se contraírem. Ele seria insuportável se
não fosse pela pura beleza desta imagem. E não podia culpar o bebê por
se aninhar contra ele. Se Sharine estivesse com vontade de se aconchegar
em qualquer homem, o ombro largo de Titus estaria no topo da lista. —
Vejo que já fez isso antes.
— Muitas crianças chamam minha corte de casa.
Assim que os olhos da criança fecharam, sua pequena forma num
sono farejante, Titus a deitou na toalha novamente e Sharine colocou o
pó nela. Ela massageava aqueles pequenos membros enquanto fazia isso,
da mesma forma que outra mãe mostrou como fazia com Illium quando
ele era um bebê.
A criança ainda estava dormindo quando ela terminou, e Sharine a
envolveu numa nova toalha macia no lugar de um cobertor antes de
carregá-la para fora. Sabia que a criança não conseguia entender nada do
que pudesse ver, mas fez questão de manter o rosto da criança longe do
corpo já decadente de sua mãe.
A anjo renascida derreteu enquanto estavam no banheiro. Fluido
esverdeado vazou de todos os poros dela e, naquele momento, seus
dedos se descongelaram até o osso, sua carne caindo no chão.
— Desejo-lhe paz, criança — disse Sharine antes de sair do quarto.
Titus a seguiu, fechando a porta atrás deles. — Vou deixar o corpo
em vez de incinerá-lo. — Sem sorriso agora, suas feições sombrias. —
Preciso ligar para nossos cientistas para que possam começar os testes.
— Vai ter que contar ao Cadre sobre ela, não é? — disse Sharine,
seus braços protetores ao redor da criança. — Sabe que vão considerá-la
uma ameaça.
— Ela pode significar a morte de cada criança angelical —disse
Titus gentilmente. — Mas daremos a ela uma chance. Vou pedir aos meus
cientistas para testar seu sangue contra a infecção e ver se ela traz
consigo uma cura... ou se ela é uma portadora de rosto doce, projetada
para deslizar sob nossa guarda.
Sharine não resistiu quando ele arrancou a criança de seus braços.
Segurando o pequeno corpo num braço, ele suspirou. — Ela é filha dele.
Então ele notou os olhos afinal. — Sim. Isso faz alguma diferença?
Um sorriso torto. — Só que aquele bundão conseguiu um último
truque. — Inclinando-se, deu um beijo na testa do bebê. — Ela é apenas
um bebê sonhando sonhos inocentes, e se não for uma ameaça, então vou
criá-la como faria com qualquer outra criança órfã em meu território.
Também direi a ela sobre o coração valente de sua mãe, que lutou para
permanecer viva para que sua filha vivesse.
Quando ergueu o braço livre, ela foi para o seu abraço, este homem
quente e forte e com um coração capaz de uma bondade incrível. E
tentava não pensar no que aconteceria se os testes mostrassem que a
criança era portadora, a portadora inconsciente de uma doença
devastadora.

Dois dias depois, Titus podia dizer que Sharine não queria que
ninguém tomasse sangue da criança, mas ela apertou a mandíbula e
cerrou os dentes e observou com olhos de águia até que o ato fosse feito.
Os soluços do bebê logo se transformaram em fungadas depois que
Titus a pegou e deu um tapinha em suas costas, seu pequeno corpo
aninhado em seu ombro. — Você é corajosa. — Era verdade – a criança
chorava como qualquer criança, mas também se recuperava
rapidamente, com os punhos cerrados como se estivesse se recusando
obstinadamente a se render.
Ele sabia que não deveria se apegar a ela, que ainda podia ter que
executá-la – e sabia muito bem que isso o destruiria, mesmo que não
tivesse um vínculo com ela. Mas não conseguia reprimir seus
sentimentos de afeto. Era tão pequena e tão indefesa. Alguns diriam que
isso fazia dela a arma perfeita para aniquilar o mundo.
— Existe alguma palavra? — perguntou Sharine, suor umedecendo
o cabelo em suas têmporas e manchas de substâncias desconhecidas em
sua túnica – ela acabava de fazer um turno cuidando de uma equipe de
solo. — Ela é portadora do vírus?
— Meus cientistas estão tendo dificuldade em entender o que veem
nas células dela – daí a necessidade de coletar mais amostras e confirmar
suas descobertas. — Ele foi franco ao dizer que deveriam ter cuidado
com o sangue que colhiam, para não gastá-lo muito rapidamente. Afinal,
era um bebê, de cujo corpo tiravam as amostras.
A única razão pela qual permitiu isso foi porque teve que dar ao
Cadre uma razão para permitir que esta criança vivesse. Ninguém podia
forçá-lo a executar alguém em seu território – mas se ela fosse a
portadora de uma praga, ele não teria escolha. — Às vezes, ser um
arcanjo não é um presente — rangeu.
Sharine tocou o braço dele com a mão, depois estendeu a mão para
acariciar as costas do bebê. — Eu não invejo você, Titus. Mas sei que tudo
o que fizer, fará com honra. Esta criança terá a melhor chance possível
com você como seu campeão.
Ele deu um beijo na cabeça felpuda do bebê e esperava que pudesse
manter a fé de Sharine.

*
Enquanto os cientistas trabalhavam, vestidos com roupas de
proteção, normalmente usadas apenas por mortais, o bebê continuava a
viver no berçário dentro da corte de Charisemnon. Se fosse portadora,
levá-la para qualquer outro lugar corria o risco de espalhar uma doença.
Então, Titus e Ozias trouxeram tudo que o bebê poderia precisar.
Sharine observou a criança por vários turnos, com Ozias se
oferecendo como voluntária para correr o risco de infecção e intervindo
para que tivessem outra pessoa na rotação que pudesse ficar com a
criança sem equipamento de proteção.
— Nenhuma criança deve passar seus primeiros dias no mundo
sem o conforto do toque — disse a espiã mestre de Titus com firmeza. —
Sei o suficiente sobre babá depois de sobreviver a todas as crianças que
foram criadas em sua corte, senhor, que é improvável que eu mate o bebê
por acidente.
Desnecessário dizer que Ozias era uma babá muito incomum.
A única misericórdia foi que Sharine encontrou a confirmação no
diário de Charisemnon de que a infecção se instalou cedo e visivelmente,
então os três só tiveram um período de suspensão de duas horas após o
contato com a criança. Depois disso, estavam seguros para voltar à luta,
certos de que não iriam inadvertidamente levar a infecção para as tropas
e equipe de Titus.
Na noite do quinto dia desde o nascimento da criança, Titus
apareceu com um jantar para Sharine e encontrou a criança dormindo
em seu berço. Enquanto comiam, sentados lado a lado num sofá, Sharine
pediu uma atualização sobre a situação dos renascidos; sua última
mudança externa foi vinte e quatro horas antes, quando ela, sozinha,
salvou três equipes de solo de serem esmagadas por um ninho
escondido.
Dia após dia, hora após hora, estava ficando cada vez mais
confortável em seu poder e mais capaz de dirigi-lo. Titus tinha a forte
sensação de que ainda só tinham visto a ponta do iceberg –Sharine tinha
muito mais surpresas na manga.
Seu povo superou o choque da Colibri não ser nada do que
esperavam e agora estavam a caminho da adoração total. Kiama durona,
leal e de coração duro costumava rastreá-la para conversar, a cozinheira
apressada de Titus de alguma forma tinha tempo para fazer uma coisinha
para ela a cada dia, e um de seus principais comandantes dos vampiros
ameaçava um motim se Titus não conseguisse mantê-la.
— Não disse nada quando você assustou as outras, — disse India
com um lampejo de presas — mas senhor, certamente eu vou me rebelar
se você perder Lady Sharine.
Amadou, alto e corpulento, outro comandante sênior, assentiu em
solene acordo.
Até mesmo Tanae foi movida a dizer: — Eu gosto dela. — Da sua
treinadora de tropas, isso era um elogio sem limites.
— O esforço de extermínio continua ganhando velocidade agora
que os caçadores estão localizando os ninhos. — Em parte, era por isso
que queria falar com ela. — Já nos distanciamos tanto de nosso ponto de
partida inicial que não faz sentido voar de volta todas as manhãs e depois
voar para frente novamente. Ficarei no campo por algum tempo.
— Precisa de mim para cuidar do bebê em tempo integral?
— Não, você é muito necessária no campo. — As reservas de
Sharine eram profundas, seus raios de poder de intensidade violenta.
Ficou claro ao longo do tempo que estava com eles que ela era mais forte
do que Tzadiq– e o segundo de Titus estava no nível superior de
lutadores não arcangélicos.
— Acha que ela sabe que poderia ter sido uma general? — disse
Tzadiq a ele da última vez que os três estiveram no campo ao mesmo
tempo, o verde claro de seus olhos seguindo Sharine no céu noturno
enquanto ela protegia as tropas vampíricas com fúria e precisão. — As
pessoas a seguem, ela tem o poder marcial e a inteligência de raciocínio
rápido.
— Vou perguntar a ela, — disse Titus — mas pode imaginar um
mundo sem a arte de Sharine?
Tzadiq fez uma pausa para limpar sua espada incrustada de sangue.
— Você está certo, senhor. Temos generais suficientes. Temos apenas
uma Colibri.
Hoje, porém, Titus foi forçado a pedir para ela ser a general e não a
artista. — Preciso que você voe para o norte com o esquadrão de Ozias e
duas equipes de solo, limpando todos os ninhos renascidos conforme
avança. Encontrará as tropas de Alexandre em algum momento, e o
grupo de vocês pode fazer uma varredura final abrangente do norte para
se certificar de que está limpo.
Não queria mandá-la para longe dele, mas era o melhor uso
possível dos recursos. Nala e Zuri também tinham a capacidade de
disparar raios de energia em seu arsenal – adicionar o poder de fogo de
Sharine tornaria a equipe imparável contra o número de renascidos no
norte. — Assim que o norte estiver limpo, não preciso me preocupar com
a reinfecção daquele lado.
Ele fez uma pausa, fez uma careta. — Lembre-se – não dê ouvidos a
nada que minhas irmãs digam sobre mim.
Uma contração de seus lábios, mas seu olhar era solene. — O que
acontecerá com o bebê com nós três saindo?
— Parece que ela encantou um dos cientistas. — Nenhuma
surpresa, já que a bebê sorria em seu sono e chorava, mas raramente. —
Asiah está mais que disposta e feliz em cuidar da criança sem
equipamento de proteção. A pequena estará segura e cuidada enquanto
estivermos fora.
— Asiah... sim, ela é a única dos cientistas que eu confiaria com ela
— murmurou Sharine. — Ela a trata como um bebê, em vez de um
experimento científico. — Olhando para Titus, colocou uma mão em sua
coxa.
O músculo saltou, ficou rígido, seu corpo inteiro focado no calor
dela. — Sharine.
— Cuide-se, Titus. — Saiu um pedido. — Simplesmente porque é
um arcanjo não significa que pode ir para sempre sem descanso. —
Então ela se inclinou e o beijou, e seus músculos abdominais se
contraíram, seu pulso acelerado.
Quebrando o beijo antes que ele pudesse alcançá-la, ela se levantou.
— Verei você quando nossa tarefa terminar.
Titus nunca sentiu dor ao ver uma mulher se afastar dele, mas
estava com um grande hematoma uma hora depois, quando Sharine
decolou para o céu do início da noite com o esquadrão de elite de Ozias.
As equipes de solo partiram antes deles.
Pressionando o punho contra o coração, ele a observou até que
ficou invisível no céu, então decolou para se juntar aos esquadrões do
sul. Levou tudo que tinha para não virar para o norte, em seu rastro, mas
era um arcanjo. Seu primeiro dever era para com seu povo e seu
território. Isso não significava que não olhou por cima do ombro mais
uma vez, na esperança de ver asas de índigo e ouro no céu.

*
Sharine sentiu uma pontada dentro dela enquanto voava para longe
de Titus, e não estava certa se gostava. Ao mesmo tempo, não podia
deixar de procurar sua forma grande e sólida no pátio. Ele usava sua
armadura peitoral e outra armadura da parte superior do corpo, as mãos
nos quadris e as asas seguras com controle primoroso contra sua coluna
– e tinha certeza de que ele estava carrancudo.
Por alguma razão, isso a fez querer sorrir.
Mas então seu esquadrão ganhou altura e ela não conseguia mais
identificá-lo na terra lá embaixo. Sua dor dentro se tornando um nó
pesado e duro, angulou suas asas para o norte e para longe do arcanjo
que entrou em sua vida num momento em que não queria nenhum
homem no sentido romântico.
Anteriormente, ela havia pensado que Titus deixaria uma marca.
Agora sabia que aquela marca seria profunda, dolorosa e doeria por
muito, muito tempo. Mas ainda correria o risco. Não era mais a Sharine
que cresceu assustada e com medo, uma criança que tentou se apegar
aos pais sendo sempre boa; a Sharine que era hoje disparava raios de
suas mãos, cometia erros e aprendia com eles... e corria riscos.
Mesmo quando envolvia um homem tão perigoso para ela quanto
Titus.

Ozias soou o primeiro alerta duas horas depois – porque estavam


acompanhando as tropas terrestres, não percorreram tanta distância
quanto um anjo faria, mas não se tratava de velocidade; tratava-se de
garantir que desenterrassem todos os renascidos na paisagem.
— Caçador da Sociedade marcou aquela colina como o local de um
pequeno ninho! — O comandante do esquadrão disse num tom que seria
levado a todas as tropas aerotransportadas. — Obren, faça um sobrevoo
alto, relate qualquer movimento. Já escureceu, então eles podem ter
saído para caçar e teremos que rastreá-los.
Olhando para baixo, Sharine viu os veículos terrestres
estabelecendo um perímetro, guerreiros vampíricos e mortais saindo
com armas prontas. O comandante terrestre, um vampiro de olhos
sombrios chamado Amadou, estava na linha de frente. As equipes de solo
se autodenominavam limpadores– sua tarefa era eliminar qualquer
renascido que passasse pela barreira angelical.
Até agora, não viram nenhum novo sinal de renascidos angelicais–
embora Titus tenha informado a todos os seus superiores que era uma
possibilidade – então os anjos corriam menos risco de se tornar
renascidos que os vampiros ou mortais. Fazia sentido eles serem a
primeira linha de defesa. E que Sharine fizesse tudo ao seu alcance para
garantir que os renascidos não tivessem chance de prejudicar ninguém
da equipe.
— Comandante. —Obren estava de volta. — Movimento definido na
boca do ninho.
Ozias ergueu a mão e a largou num golpe forte para baixo.
Agindo de acordo com seu plano, Sharine abriu um buraco na
colina, renascidos escalaram para fora e os anjos arrancaram suas
cabeças. A equipe de solo não precisou disparar um único tiro.
O segundo ninho, no entanto, provou ser um...
— Porra, isso é uma porra de desastre!
Sharine não tinha ideia de qual dos vampiros abaixo gritou isso e
ainda menos conhecimento do que significava, mas parecia certo. O
Caçador da Sociedade que localizou este local estava correto ao dizer que
era um grande ninho, mas o que o caçador não percebeu é que era um
labirinto de ninhos interconectados.
Alguns deles estavam por trás das tropas terrestres.
As criaturas enxamearam as tropas terrestres enquanto os
guerreiros angelicais foram pegos numa batalha furiosa contra um
enorme nó de renascidos no centro. Sharine era a única que ainda estava
alta o suficiente para ver o que estava acontecendo, como os renascidos
saíam de tocas por toda parte e atacavam as equipes de solo.
Ela pensou rapidamente. Ozias! Leve seu esquadrão para o ar e para
fora para ajudar as equipes de solo. Cuidarei do núcleo central dos
renascidos.
Ozias estaria em seu direito de questionar Sharine; afinal, Sharine
não era uma estrategista de batalha, mas o esquadrão da mestre da
espionagem decolou quase instantaneamente depois que Sharine fez o
pedido. Permaneceram abaixados enquanto voavam em todas as
direções para ajudar as equipes de solo.
As criaturas do meio gritaram e começaram a correr atrás deles.
Sharine cerrou a mandíbula e começou a explodir seu poder em
ataques precisos –ficou muito melhor nisso desde seu primeiro ataque, o
que parecia uma vida inteira atrás e não demorou muito para criar um
fosso eficaz em torno dos renascidos. As criaturas caíram no buraco que
ela criou e imediatamente começaram a tentar escalar.
Mas sua ação deu às equipes de solo apoio suficiente para que
pudessem se mover e usar suas armas para abater as criaturas. Sharine
ficou no alto, e quando viu um anjo voar baixo demais e um renascido
agarrar sua asa para puxá-lo, acertou um parafuso no renascido que
evaporou sua estrutura.
A paz esteja com você, ela pensou, pois todas essas criaturas já
foram filhos de alguém, com sonhos e esperanças que agora nunca se
concretizariam.
O anjo que caiu limpou a poeira e acenou para ela em
agradecimento.
E a batalha continuou.

CAPÍTULO 44

Titus lutou até perto da exaustão nos dias que se seguiram, indo
cada vez mais longe de Sharine. Em desespero, pediu a Tzadiq que
comprasse um aparelho telefônico para ele e começou a aprender a usá-
lo para poder ver o rosto dela quando falavam.
Seu segundo não respondeu ao pedido, mas seus olhos falavam
muito.
Titus pouco se importava; não era um homem para esconder suas
emoções, mesmo sabendo que o futuro traria rejeição e uma dor terrível.
Sharine deixou claro que não queria estar amarrada a nenhum homem.
Titus não podia culpá-la por sua postura.
Seu coração se retorceu, a dor mais difícil de suportar do que
qualquer ferimento de batalha que já sofreu. Ela voou dentro dele, havia
Sharine, e a ideia de não tê-la lá sempre... era brutal.
— Alguns diriam que você merece isso — disse Tanae com uma
distinta falta de simpatia em seu tom quando se deparou com ele
resmungando imprecações para o telefone quando ele não obedeceu. —
Se apaixonar tanto por uma amante que não vê você como o sol em seu
céu.
Titus olhou para ela. — Vangloriar-se não combina com você,
Tanae.
— Eu disse alguns, senhor. — Seu olhar ficou distante, sua
treinadora de tropa focada numa paisagem secreta interna. — Estou feliz
por você, que finalmente conheceu a profundidade e a paixão de seu
próprio coração e a intensidade com que pode ser sentida.
Ela olhou para o chão, seu cabelo flamejante numa trança. —
Mantive meu coração confinado século após século, meus temores de
velhos inimigos, e agora tenho um filho que é meu orgulho, mas com
quem mal posso falar. Quando o faço, digo todas as coisas erradas e o
vejo se afastar ainda mais de mim.
Atordoado e sem palavras por essa demonstração inesperada e
surpreendente de emoção, Titus observou Tanae em silêncio enquanto
ela passava por ele. Ela nunca foi particularmente maternal com seu
filho, mas esta era a primeira evidência que via de que a distância entre
eles era uma ferida que sangrava.
Talvez, depois que o mundo estivesse se estabelecido em alguma
aparência de sanidade, falasse com Galen, veria se seu ex-protegido
desejava voar para casa para uma visita. Ou isso simplesmente causaria
mais dor para ambas as partes? O fato era que Tanae podia ser uma mãe
difícil – Titus pensava isso mesmo quando Galen era um bebê, faminto
pela aprovação de sua mãe.
Sabia que os cavalheiros gentis e mimados – um grupo particular
de órfãos criados em sua corte – tentaram cuidar do menino, mas Galen
era teimoso e decidido mesmo então. Isso não significava que o corajoso
coração do menino não se machucou cada vez que Tanae negou sua
aprovação. Tzadiq fizera o melhor que podia, mas era mais guerreiro do
que pai. Titus passou mais tempo com o menino do que qualquer um dos
pais, mas mesmo a aprovação de um arcanjo não podia apagar a dor
causada por uma mãe ou pai.
Ele suspirou; podia apreciar Tanae e Tzadiq como guerreiros,
embora discordasse de sua estratégia de criação. Titus foi criado com
uma disciplina temperada por um amor avassalador, e esse era seu
modelo de como lidava com as crianças. Para reter o afeto de uma
criança... não, não podia concordar com isso.
Ele pediria a opinião de Sharine sobre o assunto quando colocasse
esse maldito dispositivo para funcionar e conversassem. Pelo menos
descobriu como enviar uma mensagem.
Seus dedos pareciam muito grandes e gordos na tela elegante do
dispositivo, mas sentia muita falta de Sharine para não perseverar. Ele
escreveu: Quebrei o dispositivo original ao bater com muita força na tela.
A resposta dela foi de puro espanto por ele tentar usar um telefone.
Quando ele finalmente teve sucesso com o dispositivo e perguntou
a ela sobre Tanae e Galen, ela ficou em silêncio, pensando por longos
momentos. — Cometi erros terríveis como mãe, —disse ela, seus olhos
escurecidos com tristeza — mas a única coisa que fiz certo foi amar
Illium ferozmente quando ele era um menino.
— Acho que Tanae tem um caminho muito mais difícil a percorrer –
seu filho é o mestre de armas de um arcanjo, e se estabeleceu com uma
mulher que adora. Não é um menino com um coração mole... mas ela
continua sendo sua mãe. Se ela realmente deseja construir essa ponte,
deve estar disposta a esquecer o orgulho e aceitar que ele poderia
escolher rejeitá-la completamente. Ele tem esse direito.
Com uma expressão pensativa, ela acrescentou: — Fale com ela,
Titus. Se ela se abriu com você, é o mais próximo de um grito de socorro
que ela jamais poderia dar.
Titus não tinha experiência nessas coisas, mas confiava em Sharine,
então da próxima vez que escaparam da batalha ao amanhecer, ele
encontrou Tanae e enquanto limpavam suas armas lado a lado, ele disse:
— Se você morrer, acaba a chance de falar com Galen– e pedir desculpas
como você deseja fazer.
Tanae ficou rígida... mas não se afastou.
No dia seguinte, ela disse: — Não sei o que dizer a ele. Entendo
errado todas às vezes – sou dura e má quando quero ser diferente.
Perdido, Titus perguntou se ela falaria com Sharine. — Ela também
é mãe e entende o que é cometer erros como mãe.
Três dias depois, Tanae disse que sim e Titus passou o bastão.
Conhecia suas habilidades e as de Sharine.
Juntos, formavam uma equipe incrível.
Era bom tê-la ao seu lado dessa forma, ter sua força alinhada e
aumentando a dele. Só podia esperar ter feito a metade do que ela fez por
ele. Porque, pela primeira vez em sua existência, Titus sabia que
precisava de uma mulher – mas tinha a consciência crua de que a
necessidade podia não ser correspondida.
Ele se sentia como um cachorrinho, esperando por cada ligação ou
mensagem dela.
Então, um dia, ela enviou uma mensagem que gelou suas veias.
Titus, encontramos outro anjo infectado.

Sharine deveria esperar isso. O primeiro anjo infectado foi para o


norte por um motivo – de tudo que puderam adivinhar em sua conversa
com o sobrevivente, o anjo manteve um senso limitado de razão até a
quebra final da sanidade. Era seguro presumir que era mais racional no
início.
Como ele fazia parte da corte interna de Charisemnon, também
sabia que a batalha estava acontecendo na outra direção. Enquanto a
fronteira não era mais um fato político, o norte permanecia mais seguro
se quisesse se esconder. Até agora, o povo de Titus se concentrou no lado
mais devastado do sul do continente.
Foi Ozias quem encontrou este anjo infectado, seus olhos afiados
localizando as penas das asas primárias de um anjo deitado do lado de
fora de uma pequena cabana no meio do nada. Na espécie angélica, as
penas primárias não se desprendem da mesma forma regular que as
outras penas. Para a maioria dos anjos, demorava muito para que uma
pena primária danificada voltasse a crescer, e as penas no chão tinham o
mesmo tom de cinza-carvão. Pertenciam a um único anjo. Para um de sua
espécie ter perdido tantas...
— Vou verificar se temos um anjo ferido — disse Ozias, o sol
brilhando contra o lado esquerdo de seu rosto, suas feições expostas
porque ela trançou o cabelo nas laterais antes de puxar o resto dos
cachos num coque apertado. — Todos os outros, fiquem aqui.
Sharine discordou. — Ozias, — disse ela suavemente — há outra
possibilidade.
As pupilas da mestre espiã dilataram antes dela dar um pequeno
aceno de cabeça. — Senhora, ficaria grata por sua ajuda.
As duas pousaram juntas, mas Ozias insistiu em ir primeiro. Dentro
da cabana estava um anjo; estava deitado numa cama encostada a uma
parede do espaço pequeno e escassamente mobiliado. A cama era
estreita e obviamente não foi construída para um corpo angelical, mas o
anjo que estava nela estava além de se importar com isso. Estava corado,
seu corpo quente de febre e seus olhos cegos.
Sob o marrom de sua pele, manchas negras esverdeadas.
Sharine se lembrou de como o aldeão sobrevivente descreveu o
anjo que atacou seu assentamento: sua pele parecia uma contusão e
estava descascando em alguns lugares, enrugada em outros. Seus dedos
eram em forma de gancho, suas unhas pareciam garras, e parecia que sua
língua estava apodrecendo em verde, seus lábios carnudos e vermelhos
demais.
O anjo no berço parecia relativamente saudável em comparação, se
a palavra pudesse ser usada neste contexto – como se a infecção não
tivesse avançado tanto. Apesar disso, ele não demonstrava consciência
da presença delas, um de seus braços pendurado frouxamente deste lado
da cama. Uma asa estava igual, a outra esmagada sob suas costas.
Quando Sharine olhou ao redor da cabana, viu algo que fez sua
última refeição ameaçar subir de seu estômago. — A menos que eu esteja
muito errada, essa era sua fonte de alimento.
Ozias se agachou perto da pilha de ossos e usou sua espada para
cutucar o crânio. — Mortal. — Uma pausa, um olhar mais atento aos
dentes. — Não, vampiro. — Com voz fria, ela disse: — Pelo estado dos
ossos, estão aqui há vários dias. — Ela se levantou. — Não há carne ou
medula.
— A falta de comida pode explicar seu estado atual. — Nenhum
renascido normal pareceria saudável após ser privado de comida por
dias, mas isso era o que havia se tornado claro desde sua primeira
descoberta – anjos infectados não eram renascidos normais. — O diário
de Charisemnon afirma que seu objetivo era criar uma infecção que não
precisasse da morte como ponto de partida.
Sharine leu os diários relevantes repetidamente num esforço para
descobrir o menor dado, e percebeu que para um antídoto ou cura
funcionar, o indivíduo deveria estar vivo em primeiro lugar –Lijuan era a
mais forte deles, e mesmo ela não foi capaz de trazer os mortos de volta à
vida real.
Adicione a isso a informação de que o dom de Charisemnon era
uma doença, e tornava-se ainda mais provável que ele não fosse capaz de
criar renascidos sozinho. Todo o estoque inicial de renascidos foi gerado
por Lijuan. — Nossa única indicação de que ele pode ter tido sucesso é a
anjo grávida.
Os médicos, curandeiros e cientistas de Titus estavam unidos num
ponto: a vida, a vida real, não podia vir de um dos mortos.
Desconsiderando toda a discussão filosófica sobre o ponto, os órgãos
internos do renascido começavam a sofrer uma metamorfose no próprio
momento da ressurreição– vários dos curandeiros mais intrépidos,
incluindo Sira, a líder de toda a equipe, voaram com os esquadrões de
combate e estudaram um renascido fresco o suficiente para ter certeza
de sua conclusão.
A metamorfose incluía a dessecação total de certos órgãos internos
– incluindo o útero. Nenhum renascido que existisse por mais de vinte e
quatro horas poderia carregar uma criança. Nem poderia um pai
renascido, já que esses órgãos também secavam em nada. A última
descoberta aparentemente causou um arrepio nas fileiras de todos os
que possuíam esses órgãos.
— Acha que ele pode estar vivo? — Ozias, Sharine descobriu, era
tão hábil quanto qualquer espião mestre em esconder suas emoções –
mas agora ela comprimiu os lábios e engoliu em seco. — Vou verificar o
sangue dele. Os curandeiros de Sira não teorizaram que poderia
permanecer vermelho até que a infecção se instalasse?
— Sim. — Sharine mudou para se posicionar perto da cabeça do
anjo. — Se ele se levantar para atacar, vou derrubá-lo com meu poder. —
Sharine tinha alma de artista, violência não era seu léxico usual, mas
passou a aceitar que a violência era a única resposta na situação atual –
os renascidos nunca dariam ouvidos à razão, nunca concordariam em
viver em paz lado a lado.
E qualquer que fosse a conexão entre os renascidos de Lijuan e a
doença de Charisemnon, as vítimas de ambos compartilhavam um único
desejo predominante: alimentar-se de carne viva. A equipe de Sira era da
opinião de que Charisemnon usou o sangue dos renascidos como base
para sintetizar ou dar à luz sua doença. Sharine estava propensa a
concordar com eles.
— Pronta, minha senhora?
Ao aceno de Sharine, Ozias deslizou sua espada e tirou uma faca.
Usando a lâmina afiada, fez um pequeno corte na ponta de um dos dedos
do anjo. O anjo não recuou, embora seu peito continuasse subindo e
descendo, seus olhos piscando. O que emergiu do corte minúsculo foi um
fluido verde viscoso com listras pretas.
O cheiro era pútrido e insuportável.
A espiã mestre cambaleou atrás. — Já senti esse fedor antes —
disse Ozias, engasgada. — É de um corpo em decomposição na sepultura.
Sharine voltou a pensar na mãe do bebê; ela tinha um odor tão
desagradável? Não conseguia se lembrar, todo seu ser estava tão focado
em dar paz à pobre criança em seus momentos finais. — Devemos
consultar Sira.
Se este anjo estava vivo – não renascido, simplesmente infectado
com a doença de Charisemnon– então poderia ser crítico para aqueles
que estudavam o bebê e, portanto, para a vida do bebê. — Eles podem
ser capazes de usá-lo para testar se o sangue do bebê é a cura.
Ozias respirou fundo e depois engasgou novamente. — Vamos
conversar lá fora.
Uma vez lá, as duas tomaram grandes goles do ar limpo e cortante e
decidiram ligar para Titus. Era o arcanjo deste território; a decisão final
deveria ser dele. O coração de Sharine apertou ao ver seu rosto
preocupado na tela pequena.
— Sua opinião está alinhada com a de Ozias? — perguntou ele
depois que Ozias contou tudo que sabiam.
Um aperto em seu abdômen, suas palavras ameaçando tirar o ar
dela e não pela primeira vez. Este homem, ele não tinha medo de força,
não tinha medo de usar essa força para garantir os melhores resultados
para seu território – e para seu povo. — Sim — disse ela. — Ele pode ser
a chave para compreender o bebê.
— Vou enviar Sira e sua equipe. — Sua atenção se concentrou em
Sharine quando Ozias foi falar com os três anjos que deixou para trás
para cuidar do anjo infectado. — Sua pele ficou mais dourada, seus ossos
mais afiados.
— Estou ficando mais forte quanto mais eu voo. — Ela não estava
perdendo peso, mas adicionando músculo magro ao seu corpo. — Como
vai no sul?
— Dia após dia — disse ele com praticidade de guerreiro... em
seguida, tocou a tela com os dedos, como se fosse tocá-la.
Ela se viu respondendo da mesma maneira.
Titus encerrou a ligação sem se despedir, uma pequena
peculiaridade dele que a fez se perguntar de um modo que não era bom
para seu coração. Sim, Titus deixaria uma marca nela.
— Lady Sharine! — Ozias chamou de onde instruía os anjos que
deveriam ficar de guarda. — É hora de voar!
Deslizando para longe o telefone, Sharine se ergueu no céu.
Enquanto lutavam nos dias que se seguiram, ela permaneceu no
limite, mas não descobriram nenhum outro sinal de anjos infectados –
até que a comandante de uma grande cidade ao nordeste relatou o
aparecimento de corpos mortais e vampiros massacrados num canto
escuro específico de sua cidade.
Embora a população angelical em geral não soubesse nada sobre a
infecção, a comandante disse: — Ouvi rumores de que meu senhor estava
envolvido em experiências terríveis. Se for verdade, é possível que um de
seus súditos tenha escapado. — Ela engoliu em seco. — Eu sei um pouco
mais – sou uma comandante da cidade, não fazia parte da corte interna.
— Enviei pessoas para caçar o perpetrador, — acrescentou ela —
mas com a proteção da cidade da ameaça dos renascidos, tem sido uma
prioridade baixa. — Exaustão esculpia linhas na nata de sua pele, seu
cabelo dourado uma touca de penas. — Agradeceria mais do que
qualquer ajuda que você pudesse fornecer.
Antes dessa reunião, Ozias informou Sharine sobre a comandante.
— Eryna não é má – é parecida com os pais de Kiama: estupidamente
leal.
Nenhuma aspereza em sua voz, as palavras uma verdade simples.
— Como comandante da cidade, ela é uma das melhores.
Sharine sentiu um profundo sentimento de compaixão por aqueles
como Eryna, que foram decepcionados pela pessoa em quem confiavam
acima de todos os outros. Ela fez o mesmo com Aegaeon? Tão carente e
quebrada que se agarrou ao familiar mesmo quando se tornou doloroso.
— Alexandre despachou vários esquadrões de ajuda — disse Ozias,
e o rosto de Eryna se iluminou visivelmente, sua coluna não estava mais
rígida. — Nesse ínterim, é melhor manter sua vigilância na fronteira
enquanto vemos qual predador vagueia por suas ruas.
Eryna inclinou a cabeça. — Um bom plano. — Então, pela primeira
vez, encontrou o olhar de Sharine com seu próprio azul. — Lady Colibri,
quando pintar esta guerra, fará aqueles de nós que voaram com
Charisemnon nas sombras? Em monstros?
Tanta dor nas perguntas, uma selvageria de arrependimento. —
Acho, criança, que você carrega as sombras dentro. Não preciso criá-las
com tinta.
Torcendo a expressão, Eryna curvou-se na cintura antes de partir
para retomar seus deveres.
— O arrependimento tem um gosto, não é? —murmurou Sharine
para Ozias. — Como o ozônio no ar, mas muito mais pesado e escuro.
— Ela fez uma escolha. — Sem piedade no tom da espiã mestre. —
Todo o povo de Carisemnon fez uma escolha, mas aqueles como Eryna?
Tinham o poder de desertar e ficar contra ele. Em vez disso, ajudaram
Charisemnon com sua busca horrível – mesmo que fosse apenas por não
fazer nada. Posso aceitar que Eryna não é má sem nunca perdoá-la por
sua escolha.
Sharine não podia dizer nada sobre isso. Ozias estava certa.
Algumas escolhas ecoavam no tempo.
— Como vamos caçar o autor dos espancamentos?
— Lady Sharine, sou uma espiã mestre — foi a resposta contida.
Mesmo com as habilidades e contatos subterrâneos de Ozias,
levaram dois dias para rastrear o assassino. Uma anjo infectada, como
temiam. Alguém que estava além de ser salvo. Seu corpo inteiro era de
um verde-preto podre que não era nada natural, suas garras em forma de
gancho. Mas mesmo que a deterioração física não fosse tão ruim, sua
mente se foi. Ela estava louca.
Sua loucura foi parte de como Ozias a rastreou – ela se tornou
descuidada e desprovida de astúcia, querendo apenas se alimentar,
apenas devorar. Deixando cair o corpo de sua atual vítima no chão do
beco, ela se aproximou de Ozias com as garras estendidas, a boca coberta
de sangue.
A espiã mestre estava no ângulo errado para decapitá-la sem sofrer
pelo menos um pequeno ferimento, e Sharine não estava disposta a
arriscar uma infecção como resultado daquelas garras ou dentes.
Uma alfinetada de poder, e destruiu o peito da anjo.
Amassando-se no beco em câmera lenta, a anjo infectada olhou
para Sharine e não havia paz em seus olhos, nada além de fúria e a
necessidade maníaca de devorar. Então ela se foi, mais uma vítima da
ganância e vaidade de um arcanjo.

CAPÍTULO 45

Titus estava coberto de sujeira dos renascidos e exausto de uma


noite de luta quando seu telefone tocou. Não queria falar com Sharine em
tal estado, mas também não estava prestes a perder sua ligação.
Mas quando respondeu, não foi o rosto dela que encheu a tela. Dois
idênticos ocuparam seu lugar; as intrusas tinham pele e olhos castanhos
escuros, inclinados nitidamente sobre as maçãs do rosto igualmente
dramáticas, seus cabelos combinando em rabos pretos e lustrosos. A
maior parte do mundo não conseguia diferenciá-las.
Titus não era uma dessas pessoas.
— Zuri, Nala, vejo que não podem deixar de enfiar o nariz no meu
negócio — resmungou, mas seu coração se expandiu ao vê-las vivas e
bem.
— Oh, Titus. —Zuri soprou um beijo para ele. — Sabe que sentiu
nossa falta.
Nala, a mais quieta das duas, apenas sorriu, e foi o sorriso maroto
da irmã que o tirou do Refúgio para que pudessem rastrear um bando de
filhotes de tigre. Zuri, entretanto, o ensinou a montar um garanhão
selvagem. Criaturas com asas não costumavam montar nessas feras, mas
suas irmãs nunca se importaram muito com o modo normal das coisas.
— O que fez com Sharine? —perguntou ele, imaginando o que ela
fez com as gêmeas.
— Pedimos com muita educação se poderíamos usar o telefone
dela para falar com nosso irmão, já que agora você tem um telefone. —
Uma Zuri alegre ergueu outro telefone. — Coloquei seu número no meu
telefone e no telefone de Nala também. Agora não temos que escrever
cartas para você!
Titus meio gemeu, meio riu, enquanto as gêmeas sorriam. — A
limpeza dos renascidos?
— Quase pronto deste lado. Sua bela e perigosa espiã mestre
concorda comigo.
Baixando as sobrancelhas, Titus apontou para Zuri. — Não seduza
Ozias. — Sua irmã herdou a capacidade de sua mãe de transformar
amantes em escravos. — Não quero lidar com uma espiã mestre com o
coração partido.
Nala falou pela primeira vez. — Não sei, Titus. Acho que sua Ozias
pode esmagar Zuri aqui sob a bota dela, e Zuri ficará grata por isso.
Quando Zuri lançou um olhar furioso para sua irmã gêmea, Titus se
viu rindo. Era bom ver suas irmãs, bom falar com elas, bom ouvir suas
brincadeiras. — O menino está com você?
— Xander está olhando com admiração para Lady Sharine. —Zuri
balançou as sobrancelhas. — Cuidado, irmãozinho, ou o jovem Xander
pode roubar sua namorada.
Claro que suas irmãs já descobriram que Sharine era especial para
ele. — Sharine destruirá qualquer homem que se atrever a colocar a mão
nela sem permissão. Ela não pode ser roubada. — Não, sua Shari
decidiria a quem se entregaria... e se ela decidisse dar a ele nada além de
um momento fugaz de eternidade, ele aceitaria.
Não que Titus fosse desistir de lutar para sempre. Não era um
homem que se rendia no primeiro obstáculo. A escolha, entretanto, seria
dela. Sempre. — Relatório — disse ele.
As palavras que Zuri falou agora eram de uma comandante das
forças de um arcanjo. Deu a ele números de ninhos limpos, atualizações
sobre a situação nas regiões periféricas e um resumo dos feridos entre
seus esquadrões. — A infestação renascida no norte não foi nada em
comparação com o que ouvimos do sul — concluiu ela. — Uma semana
no máximo para lidar com os ninhos finais, e devemos estar em Narja.
— Descanse lá e voe até mim — disse ele. — Ainda há muito
trabalho a ser feito na metade inferior da parte sul do continente.
— Fui uma embaixadora surpreendentemente brilhante para você,
irmãozinho — acrescentou Zuri após o relatório formal. — Metade do
continente agora está apaixonado por mim. — Lustrando as unhas no
couro do colete, ela sorriu. — A outra metade está ofegante por causa da
nossa enigmática Nala.
Ele não conseguiu evitar uma gargalhada; amava suas irmãs.
Depois de mais uma conversa familiar, incluindo atualizações sobre
Charo e Phenie, as gêmeas passaram o telefone para Sharine. Como
sempre, a visão dela tirou todo o ar de seus pulmões, mesmo enquanto o
sol inundava sua corrente sanguínea.
Sharine se tornou seu sol, a estrela em torno da qual ele girava.
A compreensão ainda o apavorava diariamente, mas Titus não era
um covarde. — Espero que minhas irmãs não estejam deixando você
louca demais?
— Na verdade, são maravilhosas. — Um sorriso tão profundo que
ele quase podia tocá-lo. — Elas te adoram, sabe. Já ouvi falar de suas
façanhas, Titus. Se não conhecesse você, pensaria que é um deus entre os
homens.
Ele fez uma careta. — Eu sou um deus entre os homens. — Mas
tinha algo muito mais importante em mente. — Zuri me disse que mais
ou menos uma semana e estará de volta a Narja.
Sharine inclinou a cabeça. — Vai aliviar seu coração saber que este
lado do continente respira mais fácil. Encontraram esperança na forte
presença de esquadrões angelicais, bem como na limpeza metódica de
ninhos de renascidos.
— Bom. — Titus queria que seu povo pudesse viver sem medo. —
Devo continuar a lutar no sul nas próximas semanas. — Intestino
cerrado, ele disse: — Será capaz de ficar?
— Não, devo voltar para Lumia. — Sem sorriso agora, os resquícios
da brincadeira eclipsados pela dura realidade. — Está tudo bem por lá
atualmente, mas o mundo é frágil e Lumia é um símbolo. A Comunidade
Angélica precisa ver que tudo permanece estável naquele pequeno
bolsão de civilização.
Titus sabia a resposta dela antes de perguntar; entendia a
responsabilidade que ela carregava em seus ombros esguios. — Então
irei até você. — Uma promessa grosseira. — Depois que isso terminar, eu
irei até você e vamos dançar naquela fogueira.
Seus olhos brilharam por dentro.

Entretanto, o destino mudou seus planos seis dias depois.


A equipe encarregada de descobrir os segredos guardados no corpo
da filha de Charisemnon contatou Titus com a notícia de que haviam
resolvido o enigma de seu sangue. Ciente de que não podia mais justificar
deixar o Cadre no escuro, voou para casa em velocidade e chegou ao pôr
do sol para encontrar os esquadrões do norte se acomodando.
Sharine estava em sua suíte, preparando-se para partir para Lumia
ao amanhecer.
Pegando a mão dela, a manopla ao redor de seu pulso e antebraço
refletindo a luz fraca, ele passou a ponta do polegar sobre sua pele. —
Sira ligou para você? — Titus instruiu a curandeira a compartilhar todo
o conhecimento da criança com Sharine.
Dedos deslizando entre os dele, suas mãos entrelaçadas, ela disse:
— Sim. Desci para a enfermaria de isolamento depois da minha chegada
e tive uma conversa cara a cara, pude ver os resultados. Já teve uma
chance?
— Sim, foi minha primeira parada. — Titus queria muito fechar a
porta de sua suíte, fechar o mundo e apenas beber Sharine, mas não era
Charisemnon para chafurdar em seus próprios desejos quando o destino
do mundo estava em jogo. — Devo convocar uma reunião do Cadre.
Um roçar fugaz de seus dedos em sua mandíbula, então eles
começaram a se mover.
Sharine foi mais uma vez se posicionar num canto da sala de
reuniões, fora da vista das câmeras, mas ele balançou a cabeça. — Fique
comigo. Você é minha testemunha de tudo que aconteceu antes. —
Ninguém ousaria chamá-lo de mentiroso, mas dada a total depravação do
que planejava compartilhar, não havia razão para não adicionar outra
voz à sua. Isso podia parar a onda inevitável de perguntas de descrença.
Na verdade, era tudo uma desculpa; queria Sharine ao lado dele.
Demorou vários minutos para que todo o Cadre respondesse. Cada
um deles tinha rostos desgastados pela exaustão, embora Aegaeon
ficasse ardente com nova energia no instante que pôs os olhos em
Sharine. — Minha senhora — começou.
— Pode chamá-la de Lady Sharine — foi a interjeição gélida de
Titus.
Ele tentou não parecer presunçoso.
— Caliane, minha amiga, — disse Sharine com um calor não oculto
enquanto Aegaeon ainda olhava boquiaberto para ela — é bom ver você.
Olhos de um azul intenso e puro sorriram. — Sharine.
Como Caliane foi a última a participar da reunião, Titus decidiu
começar sem mais demora. — Nosso amigo Charisemnon nos deixou
outro presente.
Enquanto ouviam, seus rostos ficando mais raivosos e tensos
palavra por palavra, ele contou sobre a anjo infectada grávida – e sobre a
criança que ela deu à luz. — O bebê é da linhagem de Charisemnon e é
típica de uma criança angelical em todos os sentidos — disse ele antes
que o mais cabeça quente entre o Cadre pudesse explodir com o fato de
que ele a permitiu viver. — Uma garotinha perfeita.
Caliane colocou os braços ao redor do corpo, sua pele de repente
parecia fina sobre os ossos. — Ela é portadora? A infecção da mãe se
espalhou para a filha?
— Não. A bebê é um milagre. — Um tesouro que Charisemnon não
merecia. — O sangue dela contém a cura para a infecção angelical.
Um rugido de perguntas.
Titus deu tantas respostas quanto pôde, com Sharine respondendo
um número igual.
— Sim, eu estava com o esquadrão que descobriu o anjo vivo
infectado — disse ela depois que Titus disse ao Cadre daquele anjo. —
Ele é o objeto de teste para a cura e está mostrando sinais visíveis de
melhora. Titus e eu somos testemunhas disso.
Titus concordou. — O homem não parece mais como se sua pele
estivesse apodrecendo. Precisará de muito mais tempo antes de ser ele
mesmo, mas os cientistas me disseram que fizeram experimentos de
laboratório para testar a cura contra amostras de seu sangue infectado. A
cura derrota a infecção todas às vezes.
— Sim — disse Sharine, suavemente pegando a narrativa. — Uma
vez limpo da infecção, o sangue testado se mostrou imune a qualquer
tentativa de reintroduzir a doença nele.
Ele podia ver os membros do Cadre – todos, menos Raphael – a
avaliando e reavaliando enquanto ela falava, mas o único em cuja reação
estava interessado era Aegaeon. A bunda de cavalo continuava tentando
chamar sua atenção.
Ela não estava aceitando nada disso.
Oh, respondeu às perguntas de Aegaeon, mas não deu mais nada a
ele. O burro de cabelo azul esverdeado finalmente entendeu a mensagem
e parou de se empurrar para frente – mas Titus sabia que não era tudo.
Sharine estava... radiante em todo seu poder, e o pedaço fumegante
estava percebendo tarde demais o que jogou fora.
Hoje, porém, era sobre um bebê inocente.
— Não podemos começar esta nova era matando uma criança. —
Foi Caliane quem falou. Caliane, que já havia admitido que o massacre
que orquestrou a tornava menos que uma parte imparcial em tais
discussões.
Neha também assentiu. — Tive que matar muitas crianças no
passado recente. É o suficiente. — Seu rosto estava abatido, a exaustão
pesava em seus ombros. — Devemos permitir que esta criança viva –
enquanto mantemos uma vigilância cuidadosa e fazemos testes regulares
para garantir que Charisemnon não escondeu dentro dela outra praga.
Titus já havia considerado que a bebê poderia ser um tesouro e
uma arma. — Proponho que a mantenhamos na corte da fronteira de
Charisemnon por enquanto. Por mais jovem que seja, contanto que tenha
atenção e cuidado, não sentirá falta de outras crianças. — Crianças
angelicais cresciam num ritmo glacial em termos mortais; a equipe de
Sira teria muito tempo para descobrir todas as respostas.
— Ela tem um nome? — A voz baixa de Caliane. — Toda criança
deve ter um nome.
— Zawadi. — Todo esse tempo, numa tentativa tola de manter
distância, não deu um nome à criança, mas sempre soube qual seria – e
sua Shari concordou. Seu segundo nome seria Asmaerah, o nome da
mulher corajosa que foi sua mãe.
— Um presente — murmurou Alexander. — Espero que esteja
certo ao chamá-la assim, meu amigo.
— Você não tem capacidade para criá-la. — Com as mãos nos
quadris, Aegaeon preencheu a tela com ele mesmo. — Não com o mundo
como está.
Palavras verdadeiras – apenas zurradas por um pavão presunçoso.
— Um dos meus já se vinculou à criança e está disposto a assumir o
cargo.
— Ela é jovem e cheia de esperança — acrescentou Sharine. —
Mais importante, a pequena Zawadi está feliz com ela. Titus e eu vamos
supervisionar seu cuidado, de qualquer maneira – ao salvar sua vida,
assumimos a responsabilidade por ela.
— Quando seus cientistas podem enviar a cura para o resto de nós?
— Alexandre passou a mão pelo cabelo, os fios longos demais, de uma
forma que Titus nunca viu antes.
O Antigo não era o mesmo desde que carregou o corpo perdido de
Zanaya para seu lugar de sono. Isso fez Titus acreditar que Zanaya era
para Alexandre o que Sharine se tornou para Titus. Nesse caso, podia
muito bem imaginar a angústia de seu amigo.
— Sim. — Aegaeon, intrometendo-se novamente. — É possível que
a infecção tenha cruzado a fronteira.
— Dentro de uma semana — disse Titus. — É uma prioridade para
a equipe na tarefa.
Soltando os braços, Caliane abriu as asas com um brilho. — Então
terminamos aqui – a menos que algum de vocês tenha um argumento
com a decisão? — Quando ninguém levantou uma objeção, ela disse: — O
Cadre falou.
Os arcanjos começaram a sair. Raphael o fez com um sorriso para
Sharine que alcançou seus olhos. Por um segundo, Titus teve certeza de
ter visto um brilho de luz na marca da Cascata na têmpora de Raphael,
mas não, a marca estava tão escura quanto desde o fim da guerra.
— Ligarei quando estiver em Lumia, — disse o filhote a Sharine— e
podemos conversar mais.
— Você precisa descansar, Raphael. — Repreensão materna. —
Posso ver que não tem comido ou dormido como deveria.
O fato de Raphael ter simplesmente aceitado a repreensão disse a
Titus que havia muito que não sabia sobre a relação entre Sharine e o
membro mais jovem do Cadre. Tanta vida que ela viveu, tantos amores
que nutriu em seu coração.
— Vou me recuperar. — O sorriso de Raphael formou rugas em
suas bochechas. — Minha cidade também. Elena prometeu
voluntariamente organizar uma festa de quarteirão quando Nova York
brilhar novamente.
— Aguardo meu convite! — Titus explodiu, ele se divertiu muito na
última. Mas desta vez, ele ou dançaria nas ruas com Sharine... ou ficaria
em casa, uma confusão de homem com um coração partido.
A imagem deveria tê-lo feito recuar, correr. Era a única coisa que
nunca desejou – ser tão dependente do favor de uma mulher. Mas não
apenas ficou no lugar, se glorificou na exuberante carícia de sua voz
enquanto ela se despedia de Raphael. — Meu amor para vocês dois. Diga
a Elena que uso o presente dela todos os dias.
— Sei que minha consorte ficará feliz em ouvir isso. — Raphael
desligou.
Quando Titus viu Aegaeon pairando a espera, enviou ao seu técnico
um comando mental para acidentalmente cortar a conexão. Por fim,
estava sozinho com a mulher que o arruinou para todos as outras.
Não tinha a porra da ideia do que faria se tudo desse errado.
Virando-se para ela, estendeu a mão. — Estou sujo agora, mas
depois de tomar banho, passará a noite em meus braços? — As próximas
horas seriam as últimas horas livres que teria nas próximas semanas,
talvez meses. — Devo descansar antes de voltar para minhas tropas. Não
faria isso sem você.
Uma mão esguia, mas forte, deslizando na sua, olhos de luz
champanhe brilhando em sua beleza penetrante. — Sim.
Mas não se afastou na porta de sua suíte para esperar por ele
enquanto se banhava. Não, o seguiu para dentro, então muito
deliberadamente trancou a porta. Ele pousou na varanda dela quando
voou para casa, então as portas da varanda já estavam fechadas.
Com o coração trovejando e a respiração apertada, ficou imóvel
enquanto ela se movia em sua direção.
Quando ela baixou as mãos para a manopla esquerda dele, ele a
ergueu e permitiu que a abrisse. Ela a colocou de lado numa mesa
próxima, então voltou para abrir a manopla direita. Ele teve que se
ajoelhar para que ela pudesse remover os protetores de ombro, e
embora ele nunca tivesse se ajoelhado antes para qualquer outra amante,
não parecia errado ajoelhar-se para ela.
Isso, o que vivia entre eles, não era um jogo de poder.
Era algo profundo, verdadeiro e assustador.
Erguendo-se novamente depois que os protetores de ombro foram
embora, ele abriu as asas para que ela pudesse soltar os intrincados
mecanismos da proteção traseira e do peitoral, então ergueu ambos e os
colocou na mesa ao lado das outras peças. Sua próxima ação foi tirar a
camiseta preta. Suas botas e meias, ele já havia abandonado na varanda
dela, estavam muito incrustadas de sangue coagulado.
Isso o deixou vestido apenas com calças surradas de marrom
escuro.
Pegando sua mão, Sharine o levou ao banho que Yash já havia
preparado – seu mordomo, quando não estava no campo, era um
defensor de fazer certas tarefas sozinho. Era uma banheira enorme,
como convinha a um arcanjo e um homem de seu tamanho. O vapor subia
da superfície, a água de um azul-claro leitoso como resultado dos
minerais naturais das fontes de que era alimentada.
Ele olhou para a sujeira de si mesmo e fez uma careta. — Preciso
me lavar primeiro. — Não sendo um homem de forma alguma
desconfortável com seu corpo, ia tirar as calças para poder entrar sob o
grande chuveiro à direita quando um calor repentino queimou suas
bochechas. — Você...?
Uma risada rouca. — Não disse a você que os arcanjos têm as
mesmas partes que qualquer homem?
Ele estava prestes a fazer uma careta para ela quando ela colocou
as mãos na parte inferior da túnica e puxou-a pela cabeça. Ele quase
engoliu a língua. Sharine não estava usando camiseta hoje.
Sustentando o olhar dele, ela abaixou a calça e o pequeno pedaço de
renda e seda que usava por baixo.
Titus estava com dificuldade para respirar, e quando ela disse: —
Depressa — ele pensou que seu peito iria se partir em dois.
Quase tropeçando em si mesmo na pressa de tirar as calças, olhou
para cima a tempo de vê-la desfazer o laço do cabelo. Um rio preto com
pontas douradas desceu por suas costas, quase alcançando a curva de
sua bunda.
Ele engatou na última palavra. Parecia uma maneira altamente
inadequada de pensar na Colibri.
Mas esta não era a Colibri. Esta era Sharine, que entrou sob a água
que caía e deu-lhe um olhar sensual e impaciente. Ele se juntou a ela, sua
mão já em sua bela bunda. Virando-se, ela pegou a toalha simples que ele
preferia aos enfeites que sua equipe ocasionalmente tentava impingir a
ele e o ensaboou.
Então, quando ele jogou a cabeça sob a cascata de água
purificadora, ela passou a toalha sobre cada centímetro dele que podia
alcançar, limpando o sangue e a mancha da morte. Ele estava duro desde
o momento que ela entrou em sua suíte, mas sua ereção era um
comprimento rígido de ferro no momento que ela terminou.
Fechando os dedos ensaboados em torno dele, ela o acariciou.
Ele agarrou seu pulso. — Chega de tortura por agora, Shari.
Uma risada cheia de deleite primitivo e um beijo tão imprudente
que ele agarrou seus quadris e a puxou para cima. Ela imediatamente
envolveu as pernas em volta da cintura dele. Pressionando suas costas
contra o simples ladrilho preto de sua câmara de banho, suas asas com
um brilho de cor, ele estendeu a mão entre suas pernas para dar prazer a
ela... apenas para encontrá-la escorregadia de uma forma que não tinha
nada a ver com água.
Um gemido saiu dele quando quebrou o beijo para olhar para baixo,
observar seus dedos se moverem sobre ela, dentro dela. Ela apertou em
torno de seu dedo, as mãos apertadas em sua cabeça quando ele se
inclinou para chupar um mamilo rosa escuro.
Poderia festejar com ela por dias, meses, anos... para sempre.
Empurrando de lado a necessidade em seu coração e tudo que isso
implicava, trabalhou outro dedo nela. Ela ergueu a cabeça dele. —
Suficiente. — Com o peito arfando, ela o beijou novamente, toda língua e
exigência. — Eu gostaria de você agora, Titus.
Ele não podia negá-la mais do que de repente poderia se tornar um
homem quieto. Afastando-se e saindo da água, se sentou na borda larga
de sua banheira, com ela sentada sobre ele, e então deixou Sharine tomá-
lo. Ele, um arcanjo guerreiro que nunca permitiu que ninguém o tivesse,
permitiu a ela tudo que ela desejava. Ela estava incrivelmente apertada, e
num ponto ele a agarrou pela cintura para diminuir sua descida.
— Sem dor, Shari. — Saiu irregular, o calor pulsante dela apertando
a metade superior de seu pênis confundindo sua mente. — Nunca vou te
causar dor.
— Estou apenas... — uma respiração — um pouco, — outra
respiração — sem prática. — Afastando as mãos dele, ela colocou as dela
sobre os ombros dele e afundou em casa com um grito suave que quase o
fez perder sua semente ali mesmo.
Músculos estremecendo – ele, Titus, tremendo– ficou imóvel como
um leão caçador enquanto ela se ajustava ao seu comprimento e
circunferência. Seu núcleo se contraiu ao seu redor. Isso arrancou um
som primitivo e agressivo dele, mas Sharine não se assustou. Ela deslizou
as mãos pelo peito dele enquanto se inclinava para beijar o centro de sua
tatuagem da Cascata.
Ele jurou que o ouro pulsou.
— Você é a perfeição na forma como é construído — disse ela a ele.
— Mas ainda, tem uma coragem e um coração que me seduz.
Ele queria se orgulhar com a carícia das palavras, mas tinha os
dentes cerrados num esforço para encontrar um pouco de controle.
Pegando sua bunda, apertou, em seguida, deslizou as mãos para segurar
seus seios, brincar com seus mamilos. O champanhe de seus olhos ficou
turvo, seu corpo começando a se mover sobre o dele.
Inclinando a boca em sua garganta, cobriu um seio tenso com a
palma da mão ao mesmo tempo. Sua respiração era quente contra a pele
dela quando disse: — Quero devorar você em um milhão de maneiras. —
Lamber, chupar, provar e guardar. — Quero fazer com que seja
impossível para você esquecer Titus, Arcanjo da África. — Palavras cruas
faladas tão rudemente que ela não podia entendê-las.
— Titus, Titus, Titus. — Pequenas respirações quentes contra ele,
seu corpo se movendo fora de ritmo.
O suor escorria por suas têmporas, seu controle irregular e sujeito
a fraturas. Envolvendo-a em seus braços e asas, tomou sua boca num
beijo intensamente possessivo enquanto ela pressionava as palmas das
mãos em seu peito e pulsava com tanta força ao redor dele que foi a gota
d'água.
Com uma mão em suas doces curvas inferiores empurrou dentro
dela num ritmo que ela correspondia com fúria, sem delicadeza ou
distância etérea para ela. A transpiração pontilhava sua pele e o fogo
sexual queimava em seus olhos. Ela era terrena, real e bonita além de
qualquer comparação. Quando ela suspirou seu nome novamente
quando seu prazer a venceu em ondas que balançaram seu corpo inteiro,
ele se quebrou em mil pedaços que só ela podia juntar novamente.
Titus, o Arcanjo da África, deu seu coração a Sharine, uma vez a
Colibri.
CAPÍTULO 46

Sharine olhou para a carta em sua mão. Mais uma vez, foi Trace
quem a entregou e, mais uma vez, o envelope era de um papel caro e
pesado. Mas isso trazia o selo não do Cadre, mas de Aegaeon.
Ela olhou para o horizonte, em direção ao sul, como fazia todas as
noites ao pôr do sol. Fazia duas semanas desde a última vez que falou
com Titus; ele e suas tropas atingiram um enorme aglomerado de
renascidos que não obedeciam mais à divisão do dia e da noite – estavam
lutando sem parar nos últimos quatorze dias.
Fazia ainda mais tempo desde que se separou dele no céu acima do
coração próspero de Narja. Meses de distância. Sabia que tomou a
decisão certa ao vir para Lumia, já que mesmo entre os anjos, os
símbolos importavam. Era por isso que Titus usava sua armadura e por
que a Torre do Arcanjo de Nova York foi a primeira estrutura a ser
reparada na cidade. Agora, Sharine não era apenas a guardiã de suas
histórias e glórias artísticas, era a personificação da sobrevivência
angelical.
— Não importa o quão horrível seja o mundo, — disse a Arcanjo
Neha a ela apenas uma semana antes — todos nós podemos olhar para
Lumia e saber que nós, como um povo, somos capazes de criar coisas
lindas e extraordinárias. Acredito que quebrará todos nós se Lumia cair.
Seja como for, Sharine lutou contra o desejo de correr para o lado
de Titus, seu arcanjo de grande coração que a amou com tanta paixão
crua em sua noite juntos. Ele deixou uma marca não apenas em seu
corpo, mas em seu coração. Sabia que se preocupar com ele era tolice,
que um arcanjo não podia ser ferido tão facilmente.
No entanto, ela observava os céus.
Porque aqueles céus se estilhaçariam caso Titus caísse. Sabia disso
como sabia que o sol nascia no leste e se punha no oeste.
Quanto ao arcanjo muito menos honrado que lhe enviou uma
carta...
Quebrando o selo, removeu o pedaço de papel dobrado de dentro.
Minha querida senhora, eu sei que está com raiva de mim e tem todos
os motivos para nutrir tal raiva, mas espero que me dê a honra de aceitar
uma visita daqui a catorze dias.
Pretendo chegar à noite, para que possamos fazer uma refeição
juntos e relembrar. Já faz muito tempo, e muitas vezes me encontro perdido
em pensamentos sobre nossa vida juntos – e sobre nosso filho, tão
obstinado e corajoso.
Até então.
Sharine bufou.
— Este é um momento ruim, Lady Sharine?
Ela olhou para o tom suave de Trace, o vampiro tendo retornado
pela porta pela qual saiu recentemente. — Sabia que a arrogância egoísta
tem um cheiro? — Ela levantou a página que segurava. — Esta carta
cheira a isso, caso deseje dar uma cheirada.
— Vou acreditar na sua palavra — disse o patife, com os olhos
dançando. — Vim transmitir um convite – o esquadrão Lumia ficaria
honrado se jantasse com eles esta noite.
— Claro. — Sharine gostava de falar com seus guerreiros, e esta
noite era especial, pois amanhã, três de seus guerreiros iriam embora e
voltariam para casa, para serem substituídos por outros três.
Foi o segundo de um arcanjo que silenciosamente fez o pedido que
três de seus guerreiros seniores pudessem fazer uma trégua, e ela fez um
pedido pessoal de todos os três. Os guerreiros concordaram porque ela
era a Colibri, e agora teriam tempo para curar seus corações enquanto
cuidavam de Lumia.
Ela nunca mais seria o anjo de outrora, mas decidiu não deixar a
Colibri totalmente no passado. Ela trabalhou muito bem e todos os anjos
confiavam nela.
Um presente raro e único que não devia ser desperdiçado.
— Deixo você com o cheiro da arrogância, minha senhora. — Uma
reverência tão suave que parecia poesia.
Sorrindo, ela voltou sua atenção para a carta. Era típico de Aegaeon
fingir pedir permissão, mas na verdade ditar os termos. Sua resposta
imediata foi retribuir com uma rejeição fria, mas então fez uma pausa,
pensou sobre isso. O passado era passado, sim, mas uma pergunta a
atormentava até hoje.
Então aproveitaria a chance para perguntar.
Enfrentaria o homem que era, para ela, a personificação da
crueldade. — Venha, Aegaeon. Acho que é hora de fazer isso.
Foi quando voltava para dentro para se preparar para o jantar com
seu esquadrão que seu telefone tocou. O rosto de Illium preencheu a tela.
— Meu filho — disse ela, seu coração em chamas com amor penetrante.
— Você me surpreende.
— Ha! Não sou o único a distribuir surpresas. — Olhos suspeitos.
— Um passarinho me disse que você e Titus... — ele soltou um suspiro,
os arcos de suas asas se curando mudando contra um fundo que dizia a
ela que estava em sua suíte na Torre. — É verdade?
Sharine sorriu com listras coloridas em suas bochechas. — Ficaria
chocado se fosse?
Olhos de ouro batido conectando-se aos dela, o rubor esquecido. —
Gosto de Titus, mas não quero que você se machuque.
Ainda a protegendo, seu lindo filho que teve que cuidar de sua mãe
por muito tempo. — Estou vivendo agora, Illium — disse ela, gentil
porque ele ganhou tanta gentileza, mesmo quando pisava onde a maioria
das crianças nunca seria permitida. — Não vou me esconder, nem
mesmo da dor. Nunca mais escolherei me esconder quando posso abrir
minhas asas e respirar o ar e, sim, cometer erros e crescer.
Seu filho olhou em seu rosto. — Você está realmente diferente —
disse ele finalmente, com um leve sorriso nos lábios. — Você se lembra
de como uma vez insisti que me pintasse de azul da cabeça aos pés e você
o fez?
— Oh. — Sua mão voou para a boca. — Você era tão pequeno!
Como se lembra?
Um encolher de ombros que a lembrou do menino que ele foi. —
Estava tão animado por ser azul. — Sorriso seguido de sorriso, ele disse:
— Titus sabe quem você é quando você é você?
Bolhas de riso em sua corrente sanguínea. — Oh, sim, não escondi
nada dele. Ele me considera teimosa e irritante ao extremo.
Uma explosão de risadas de Illium que a fez se juntar, era tão
descontroladamente contagiante. Quando os dois se acalmaram, ele
disse: — Acho que cuidarei da minha vida agora e não pensarei muito
sobre o que pode estar fazendo com Titus.
Ela reprimiu o sorriso. — Isso é realmente sábio, do contrário você
pode ter pesadelos.
— Mãe. — Seu tom era severo, mas quando ela lhe perguntou sobre
sua vida, respondeu de bom humor, e encerraram a conversa com
palavras de amor de uma mãe para seu filho e um filho para sua mãe.
Então, é claro, teve que ligar para Aodhan, também, para garantir
que ele estava bem. Ele ouviu rumores de uma possível ligação entre ela
e Titus, e teve o mesmo motivo para perguntar a ela sobre isso. — Não
gostaria que sentisse dor, Eh-ma. — Palavras cheias de emoção, seus
olhos cacos de azul e verde quebrando para fora de uma pupila preta.
Verdadeiramente, pensou depois que a conversa terminou, ela foi
abençoada por ter conhecido dois corações assim desde a infância.
A escuridão pesava no horizonte agora. Sabia que o pior estava por
começar para Titus e seu povo; seu estômago se contraiu como acontecia
todas as noites a esta hora, um medo visceral espesso em seu sangue. —
Fique seguro, Titus. Voe de volta para mim.

Titus vinha lutando contra os renascidos há meses.


Assim, mal pôde acreditar quando chegou o dia em que se viu
parado na ponta sul de seu território, após uma onda de batalha que
devastou ninhos de renascidos após ninhos de renascidos. Os Caçadores
da Sociedade apareceram repetidas vezes, e embora Titus soubesse que
ele e suas tropas não acabaram com o flagelo, agora era uma questão de
ninhos isolados e de caçar um renascido solitário que conseguiu escapar
da caçada.
As criaturas apodrecidas e infecciosas não eram mais uma praga
em suas terras. Seu povo podia mais uma vez cultivar suas terras,
construir suas casas, viver uma vida livre do medo constante.
A primeira coisa que fez – depois de se permitir um rugido de
vitória ecoado por suas tropas – foi reunir todos os comandantes de
campo, entrar com Tzadiq em Narja e traçar um plano para eliminar
aqueles renascidos que escaparam da rede. Tzadiq assumiu o dever de
criar esquadrões especializados que trabalhariam com equipes
igualmente especializadas de vampiros e Caçadores da Sociedade.
Os outros membros da Sociedade voltariam às suas funções
normais porque, infelizmente, a África não era à prova de vampiros
idiotas.
O resto das forças de Titus voltariam suas mentes para ajudar as
pessoas que estavam sobrevivendo com muito pouco. Com a metade
norte do continente declarada limpa muito antes, Tzadiq já havia
redirecionado a força permanente de várias cidades para áreas externas,
sua tarefa ajudar os agricultores a reconstruir, colocar cercas pesadas e
tomar outras proteções necessárias contra qualquer remanescente
renascido.
— Os comandantes de Charisemnon me encararam como se eu
falasse algo louco quando dei a ordem —disse Tzadiq a ele quando
falaram na ocasião. — A ideia de sujar suas mãos com qualquer coisa que
não fosse a glória da batalha parecia estar além deles.
Titus bufou; não se surpreendeu com o fato das tropas de
Charisemnon nada saberem do que era ser parte de um ecossistema em
funcionamento. — Como acreditam que as cidades serão alimentadas se
as fazendas ficarem sem cultivo? Nenhum outro território está numa
posição muito melhor, então não podemos contar com alimentos
importados.
Enquanto os vampiros podiam sobreviver com sangue, os anjos
precisavam comer. E Titus estaria condenado se permitisse que a comida
fosse redirecionada para anjos em vez de mortais. Os últimos morriam
de fome muito mais rápido que os de sua espécie. — Os anjos de
Charisemnon sabem que os imortais não serão os primeiros na fila de
suprimentos de comida?
— Indiquei isso, e a luz raiou para metade deles – mas com o resto,
mostrei a eles o rápido ritmo de reconstrução em Nova York. Uma foto
de Raphael levantando uma parede no lugar pareceu arrancar os olhos
da cara deles.
Titus não ficou nem um pouco irritado por seu segundo ter usado a
imagem de outro arcanjo para inspirar os comandantes. Nova York foi
devastada na guerra, o fogo arcangélico destruindo grandes áreas da
cidade. Se um senso de competição fosse o necessário para chutar seus
traseiros de banha, o usaria.
— Comandante Eryna, — acrescentouTzadiq — ela provou ser uma
das melhores. As regiões sob seu comando voltaram a funcionar, com as
primeiras safras de rápido crescimento prontas para a colheita.
— Também fiquei impressionado com um dos comandantes
vampiros juniores – Khan está no solo numa das cidades mais atingidas
pelos renascidos no norte, e conseguiu organizar equipes mortais e
imortais em equipes eficientes de limpeza e reconstrução. Está fazendo
mais trabalho do que o comandante angelical, mas deixei o anjo no lugar
por agora para dar continuidade.
Titus anotou os nomes, mas sabia que podia contar com Tzadiq
para construir uma lista dos comandantes que poderiam trabalhar sem
supervisão constante; tais anjos e vampiros não tinham preço. Quanto
aos outros, os rebaixaria assim que as coisas começassem a se igualar.
Titus não tinha espaço em seu território para aqueles que subiam
na hierarquia apoiando-se no trabalho árduo dos outros.
Com a reunião de planejamento encerrada, ficou nas rochas acima
da água que quebrava contra a ponta de seu território e sentiu um
orgulho feroz por cada homem, mulher e criança que lutou com coragem
desafiadora para levá-los a este estado. Seu orgulho no Cadre não era
menos intenso.
Nesta época devastadora, esqueceram a política e a vaidade e
agiram como um só.
Neha, exausta e com o coração partido, despachou para seus
lutadores enormes caixas de um vinho feito apenas na Índia. Espero que
isso dê um pouco de alegria às suas tropas, ela escreveu com sua caligrafia
elegante.
Deu, e não esqueceria isso.
O segundo de Elijah enviou caixas igualmente grandes de chocolate
amargo, uma exportação amada do território de Eli. Em vez de usá-lo
como uma indulgência, Tzadiq utilizou o chocolate como alimento de alta
energia para superar os assentamentos que estavam reduzidos ao
mínimo, seus armários vazios e seus campos não arados.
Qin, distante no Pacífico, trabalhou com Raphael e com o povo de
Eli para garantir que parte do globo não desmoronasse e se espatifasse.
Caliane jogou seu peso e poder atrás de Suyin e Neha. Quanto a
Alexandre e Raphael, tanto o velho quanto o filhote sempre teriam a
amizade e o amor de Titus.
Mesmo aquele burro Aegaeon enviou vários esquadrões à África
para ajudar nas duas semanas finais da limpeza dos renascidos. Os lábios
de Titus se curvaram. Desprezava o outro arcanjo como homem e faria
isso por toda a eternidade, mas deveria admitir que Aegaeon cumpria
seu dever como arcanjo.
O próprio território de Titus foi o mais atingido no pós-guerra, e o
resto do Cadre não esperava nada dele, a não ser que parasse o avanço
dos renascidos, mas a África foi muito mais longe. Cada território agora
tinha acesso à cura. Os curandeiros, estudiosos de Titus e criadores de
tais coisas trabalharam dia e noite para acelerar o ritmo de produção.
Quanto ao anjo descoberto por Ozias e Sharine, ele recuperou seus
sentidos... e suas memórias de comer carne viva.
Fisicamente, embora fraco, seu maior problema neste momento era
sua mente. Tendia a vomitar ao ver comida sólida, então os curandeiros o
deixaram com líquidos. Nada que pudesse lembrá-lo de arrancar pedaços
da carne de sua vítima.
— É psicológico, não fisiológico — confirmou Sira. — Está curado,
mas se vai se curar... isso eu não posso prever.
Era um pesadelo imaginar como seria a aparência dos anjos se a
infecção tivesse se espalhado amplamente antes de descobrirem a cura.
Charisemnon podia ter colocado todo seu povo de joelhos, horrorizado
sua respiração.
Mas Charisemnon foi derrotado, seu legado de maldade extinto.
Está feito, ele enviou uma mensagem para Sharine. O resto do
trabalho duro começa.
Arcanjos, um e todos, estavam desgastados até os ossos, e embora a
consorte de Elijah tenha compartilhado a boa notícia de que sua cura
progrediu a ponto dele logo acordar, ainda não tinham ideia de quando
ou se Astaad e Michaela voltariam.
Até agora, Titus não tinha nenhum problema real com vampiros
cedendo à sede de sangue; todos estavam com tanto medo dos
renascidos que não tinham energia para fazer nada além de lutar. Outros
territórios não tiveram tanta sorte.
Razão pela qual, apesar de sua necessidade de ver Sharine, tocá-la,
ouvir sua voz, estabeleceu um ritmo lento e constante em seu voo de
volta para sua cidadela. Queria ter certeza de que era visto, seu poder
notado. Aterrissando em vários locais, foi franco sobre o fato de que os
vampiros que o forçassem a desviar recursos por causa da sede de
sangue ou simples estupidez receberiam a mesma sentença: morte.
— Faça isso conhecido — disse ele ao líder de um grande beijo de
vampiro. — Não tenho paciência e ainda menos inclinação para dizer aos
Caçadores da Sociedade para devolverem vampiros renegados aos seus
mestres para punição. As execuções em campo foram autorizadas em
todos os níveis. — Se um caçador empacasse, um dos comandantes de
Titus faria a tarefa. — Este é o único aviso que você receberá.
O vampiro na frente dele, um tipo quase inútil que se encolheu
atrás das paredes seguras de sua residência durante os últimos meses,
ficou mortalmente pálido, então se curvou. — Senhor, eu vou espalhar a
palavra.
Certo de que viajaria com velocidade de fogo pelo continente, Titus
continuou. Ao chegar à sua cidadela, se banhou adequadamente pela
primeira vez no que pareceu uma eternidade, então vestiu calças
marrons escuras que abraçavam suas coxas – pois Sharine gostava de
suas coxas – e uma túnica branca impecável com gola alta e sem mangas.
Bordado de ouro ao redor da gola e nas pontas da túnica.
Seus olhos caíram sobre a caixinha de veludo que estava na mesa
ao lado de sua cama.
Tzadiq trouxe o item altamente específico que Titus pediu que ele
comprasse. Tirando-o da caixa, o enfiou no bolso da calça com cuidado e
puxou o arreio da espada. Empurrando as espadas nas costas não muito
tempo depois, se olhou no espelho e acenou com a cabeça. Parecia o que
era: um guerreiro em mente para cortejar e conquistar sua dama.
Titus nem pensou em fracasso. Isso o deixaria numa angústia
paralisante.
Seu primeiro passo, entretanto, foi encontrar o segundo.
— É bom ver você, senhor. — Tzadiq apertou os antebraços com
ele, os dois entrando no abraço de guerreiros com tapinhas nas costas.
— Obrigado, Tzadiq. — Não precisava explicar por que –Tzadiq
governou o território enquanto Titus estava no campo; foi um sacrifício
tirá-lo da batalha, e sabia que Tzadiq se irritava por estar na cidadela,
mas seu segundo também entendia o motivo.
Não havia sentido em ganhar a guerra se o território entrasse em
colapso nesse ínterim.
— Há algo que eu deva saber? — Tzadiq o manteve atualizado com
instruções diárias até Titus começar a jornada para casa.
— Uma série de atualizações. — Depois de examinar rapidamente a
lista, Tzadiq correu os olhos por Titus. — Vejo que vai namorar.
— Ela é um tesouro raro. Mas sou um homem raro. Eu vou ganhá-
la. —Era mais uma esperança do que uma certeza; pela primeira vez em
sua existência, sabia que esta era uma batalha particular que poderia
perder e perder muito.
— Desejo-lhe boa sorte, senhor. Lady Sharine seria a consorte mais
gloriosa.
Era um sonho potente e penetrante.
— Concentre-se em cortejá-la primeiro — ordenou a si mesmo ao
deixar a cidadela. — Até que ela não possa ficar sem você. — Afinal, já
sonhava com ela todas as noites, apenas para acordar com uma dolorosa
sensação de perda.
Levou mais tempo do que o normal para voar para Lumia, pois
parou várias vezes neste lado do continente, também – incluindo na
aldeia onde compartilhou hidromel com o chefe no que parecia ser em
outra vida.
Uma vida onde ainda não havia entendido quem Sharine era para
ele. Parecia uma impossibilidade agora, ela estava tão embutida em cada
parte dele.
— Arcanjo! — O chefe estava vivo e bem, com os olhos brilhando e
as pernas plantadas no solo de um terreno recém-revirado. Com as mãos
pressionadas no cabo de uma pá, ele sorriu para Titus. — Você cumpriu
sua promessa. — Um brilho mais úmido em seus olhos e nenhum indício
de tosse em sua voz. — Nossa aldeia não morreu de fome e agora
começamos a crescer novamente.
Essas pequenas vitórias, Titus sabia, eram o solo fértil em que
cresceria a lealdade de toda essa nova seção de seu território. Quando ele
voou, foi sabendo que continuaria a enfrentar bolsões de antipatia
taciturna nos anos que viriam, mas ele era um imortal.
O tempo estava do seu lado.
Parou para lavar a si mesmo e suas roupas na manhã seguinte, e
elas secaram enquanto ele voava; cruzou a fronteira para Lumia ao pôr
do sol, os batedores reconhecendo sua presença enquanto ficavam fora
de seu caminho. Sabia que avisariam Sharine de sua chegada – ele podia
ser o arcanjo deste território, mas não era o Arcanjo de Lumia. Lumia era
sua própria pequena civilização, que pertencia a todos os anjos e
funcionava sob os auspícios do Cadre como um grupo.
Infelizmente, também significava que ninguém lhe deu um aviso
prévio de que outro arcanjo estava prestes a pousar em Lumia. Desde a
íngreme velocidade de descida de Aegaeon, o burro verde-azulado voou
alto acima da camada de nuvens enquanto ele cruzava a fronteira com as
terras de Titus em seu caminho para Lumia. Alto o suficiente para que
ninguém pudesse acusá-lo de invadir o território de Titus.
Seu destino era Lumia, seu alvo Sharine.
As mãos de Titus se fecharam em punhos pesados, suas asas
começando a brilhar.
CAPÍTULO 47

Titus. Uma voz em camadas de sedas e construída de música, de


uma mulher que estava num telhado distante, seu vestido uma criação
flutuante que o lembrava da luz das estrelas. Eu te vejo.
Sua felicidade oculta perfurou a bolha de sua fúria. Shari. Suas asas
brilhando contra o cair da noite. Mas não podia simplesmente admirá-la
e encantá-la como planejou, não com a irritação azul esverdeada no
horizonte. O que o burro está fazendo aqui?
Se quer dizer Aegaeon, ele deseja uma conversa. Ela não se virou
para olhar para a forma em queda do arcanjo que uma vez foi seu
amante. Não o mate. Vou lidar com isso sozinha.
A coluna de Titus parecia que ia se quebrar; não agir como seu
escudo ia contra cada parte de sua natureza. Shari! Saiu uma explosão
mental quando ele queria ter calma e consideração.
Esta batalha é minha, Titus. Metaforicamente seu sangue é meu. Aço
puro temperado.
Sua Shari era uma guerreira, lembrou a si mesmo. Não o tipo de
guerreiro com quem estava acostumado, mas uma guerreira, no entanto.
E a pele de Aegaeon era dela. Mas outra coisa também era verdade: não
poderei me conter se estiver lá no telhado com ele.
Eu sei. Sua postura levará ao derramamento de sangue. Ela abriu as
asas numa exibição deslumbrante que sabia ser uma carícia. Pouse em
outro lugar enquanto faço isso – mas você pode ouvir.
Prestes a discutir antes que ela acrescentasse isso, ele fechou a
boca no momento que ela inverteu sua ligação mental para que ele
pudesse ouvir o que estava acontecendo em sua conversa.
Extraordinário. Levou uma parte de seu reinado como arcanjo antes de
desenvolver essa técnica.
Sharine nunca pararia de surpreendê-lo.
Ela tinha dentro de si facas muito mais letais do que Aegaeon
percebeu.
Sorrindo com uma antecipação súbita e sombria, mudou de curso
para pousar no topo de uma montanha próxima, espalhada por pedras e
estranha grama resistente. Não estava com humor para pessoas.
Também era rápido o suficiente para interceder caso Aegaeon se
esquecesse de si mesmo e ousasse colocar a mão na Sharine de Titus.

O sedoso azul esverdeado do cabelo de Aegaeon era exibido com


perfeição contra o fim do dia, seus olhos igualmente brilhantes contra o
dourado de sua pele. Ele colocou uma armadura prateada na parte
superior do corpo que escondia o redemoinho prateado em seu peito,
mas essa armadura era mais uma decoração que proteção.
Fitas prateadas prendiam seu bíceps e num pulso...
Sharine lutou contra uma carranca. Se tivesse pensado nisso, teria
esperado que a visão da pulseira grossa e pesada fosse um chute no
estômago, mas tudo que sentiu foi uma onda de irritação. Trabalho em
metal não era seu forte, mas passou um mês inteiro trabalhando na peça
porque estava tão apaixonada por seu – então – novo amor.
Se pudesse voltar no tempo... Não, não se esbofetearia. Seria gentil
com a mulher que nunca teve a chance de se curar da primeira fratura
mental antes que a segunda se tornasse uma fragilidade perigosa.
Ela era uma criatura ferida que pensava o melhor das pessoas. Isso
não a deixou fraca. Porque dessa mesma empatia interior veio sua arte.
Isso existia nela até hoje – o que não existiam mais eram as rachaduras
finas que a tornaram suscetível ao encanto superficial de Aegaeon.
— Sharine. —Aegaeon sorriu, dobrando as asas de um intenso
verde escuro com listras de um azul selvagem que a lembrava de Illium.
Seu filho, travesso e amoroso, a quem Aegaeon abandonou.
— Presumo que você seja a razão pela qual Titus alterou o curso?
— Seu sorriso agora cortava sulcos em suas bochechas. — É bom que
você tenha deixado claro para ele que este é um jantar privado – será um
prazer conversar e comer numa intimidade tranquila.
Quando tentou alcançá-la, ela disse: — Posso lançar raios de força
agora —num tom de voz agradável. — Devo separar sua mão de seu
pulso?
Um bufo de risadas masculinas estrondosas ao longo do link mental
de Titus.
Shh. Devo me concentrar, ela repreendeu enquanto o calor de sua
risada enchia seu sangue. Realmente uma intimidade tranquila! Aegaeon
realmente pensava que podia escorregar em insultos maliciosos sobre
Titus e ela permitiria? Idiota.
Os olhos de Aegaeon se estreitaram antes dele deixar cair a mão e
abaixar a cabeça numa leve reverência. — Estou muito ansioso, meu
amor, sei que devo merecer sua consideração novamente. Não posso
tomar nada como garantido.
Sharine não teve problemas em ver a verdade que ele escondia
atrás das palavras bonitas. Por alguma razão, Aegaeon decidiu que
queria de volta os brinquedos que jogou fora como inúteis. Queria seu
filho, que se tornou um homem que qualquer pai teria orgulho de ter ao
seu lado, e queria Sharine. Por quê?
Pela simples razão de que agora ela era desejada por outro?
Então ele disse: — Você é surpreendente. — Olhos tão profundos e
evocativos quanto o oceano o sustentava, a cor tão vibrante que ela
quase podia ouvir as ondas batendo na costa. — Quando vi você na tela,
caí de novo.
Estou prestes a vomitar.
Ignorando o comentário sarcástico de Titus, embora também
estivesse com vontade de rir, ela disse: — Sou a mesma de quando você
partiu.
— Não. Você está... acordada, vibrante e deslumbrante de uma
forma que não consigo descrever. — Abrindo os braços, se espreguiçou.
— Foi uma longa jornada para mim. Não vai me oferecer hidromel e pão?
— Não.
Nuvens negras trovejaram em seus traços bonitos, na mandíbula
quadrada e poderosa, mas então ele inclinou a cabeça pesarosamente. —
Está com tanta raiva de mim, meu bichinho.
— Não, não estou. — A raiva, ela veio a entender, a prendia a ele, e
preferia estar livre, a memória dele como um inseto venenoso esmagado
sob seu calcanhar. — Mas tenho uma pergunta.
Com a testa franzida, Aegaeon disse: — Deseja saber por que
adormeci dessa forma. — Empurrando a mão pela queda espessa de seu
cabelo, ele engoliu em seco. — Verdadeiramente, meu amor, eu me
enfureci comigo mesmo todos os meus anos de sono. Você foi a única
com quem sonhei.
Sua expressão estava dilacerada e irregular, os ombros tensos. —
Eu te amei demais — rosnou. — Até que me assustou até os ossos. Então
escolhi a maneira mais cruel possível de afastá-la. — Palavras ásperas,
seu rosto destroçado de emoção. — Isso me torna um covarde, mas
espero que, com o tempo, você encontre uma maneira de me perdoar e
ver a insanidade de amor que motivou minhas ações.
Sharine olhou para Aegaeon. — É isso? Essa é a melhor desculpa
que pode inventar para ser um idiota colossal?
O queixo de Aegaeon caiu. — Meu bichinho, o que deu em você?
— Diga-me a verdade. — Uma demanda plana. — Por que fez isso?
Por que procurou recriar os dois momentos mais horríveis da minha
existência? Por quê?
Ele olhou para ela como se ela tivesse uma segunda cabeça. — Não
estou mentindo. Sou Aegaeon! Não minto!
Não, simplesmente usava e jogava fora as pessoas quando
terminava. Acha que ele realmente acredita no que está me dizendo? Ela
precisava pedir uma opinião externa, estava tão confusa com esta
estranha reviravolta dos acontecimentos.
A resposta de Titus não foi o nojo que ela esperava. Em vez disso,
depois de uma longa pausa, ele disse, eu acho, Shari, que alguma parte de
você o assustou, pois você é uma mulher com uma luz rara dentro. Não
acredito que Aegaeon possa amar ninguém além de si mesmo, não de
verdade, mas havia algo em você que o fazia querer ser diferente do que
era... e em vez de correr esse risco, escolheu a covardia e a crueldade.
Sharine ouviu uma profundidade desmascarada de sentimento nas
palavras de Titus, mas também ouviu uma clareza dolorosa. — Qual foi o
gatilho? — perguntou a Aegaeon com gentileza consciente, não para ser
gentil, mas porque precisava que ele parasse de tagarelar e lhe desse
uma resposta.
Sua mandíbula se contraiu antes dele se virar e caminhar até o final
do telhado e depois voltar. — Comecei a pensar como seria ter outro
filho e logo comecei a querer — admitiu. — Onde antes, eu poderia
imaginar gerar aquela criança em qualquer uma do meu harém, então via
apenas você.
Todo artifício e vaidade despidos de seu rosto, ele juntou suas
mãos, flexionando-as abertas. Uma vez. Duas vezes. — Nosso filho era
uma delícia, corajoso, selvagem e curioso por sua causa. Você era a razão
da minha alegria.
Sharine acreditou nele. Ele orquestrou um ato de crueldade
inexplicável porque estava fugindo de suas próprias emoções. — Sim —
disse ela finalmente, sua voz suave. — Você foi um covarde.
Ele se encolheu, como se ela acertasse um golpe físico, e ela sabia
que para Aegaeon, suas palavras eram mais cruéis e doloridas do que
qualquer corte de uma lâmina. Mas não terminou. — Não sinto mais
raiva de você, — disse ela — mas também não tenho qualquer
sentimento de amor, afeto ou mesmo interesse.
Seu mundo era agora muito maior do que o dele jamais seria;
superou Aegaeon apesar dele ser um Antigo. Havia uma incrível sensação
de finalidade nesse conhecimento.
— Mas, — acrescentou ela antes que ele pudesse responder — se
fizer alguma coisa para machucar nosso filho, vou encontrar uma
maneira de acabar com você. — Calma absoluta em suas palavras porque
eram a verdade. — Sei que os arcanjos só podem ser mortos por outros
arcanjos, mas se eu for atrás de você, não vou te encontrar cara a cara na
batalha.
— Serei astuta e furtiva em minha vingança, e vou te encontrar
quando acreditar que está seguro. Então vou cortar sua cabeça e colocá-
la numa caverna escura onde ninguém poderá ouvir você gritar, e
voltarei de vez em quando para cortar qualquer parte que tenha
regenerado.
A risada abafada de Titus dentro de sua cabeça não era nada em
comparação com o horror puro no rosto de Aegaeon.
— Você ainda está louca — sussurrou ele. — Pensei que estava
recuperada, mas...
Sharine sorriu.
Um dos seres mais poderosos do mundo deu um passo atrás.
— Estou bastante sã — disse ela no mesmo tom gentil, cheio de
resolução serena. — Também tenho o respeito dos membros do Cadre e
ao servo mais jovem em sua corte. Minha ameaça não é vazia. Traia-me e
passará a eternidade gritando no vazio.
O rosto de Aegaeon ficou vermelho, suas asas começando a brilhar.
— Posso acabar com você aqui e agora.
Shari, eu estou voando para você.
— Sim. — Sharine olhou para Aegaeon sem medo, sabendo que
precisava acabar com isso logo – não tinha nenhum desejo de envolver
Titus em outra batalha. — Se deseja ser um pária evitado por nosso povo
por toda a eternidade. — Ela não era mais a mulher necessitada que se
apaixonou por suas lisonjas; conhecia seu próprio valor e compreendia
que a bondade reverberava no tempo.
— Não se trata de violência ou poder, Aegaeon. — Desta vez, o
sorriso dela continha uma ponta de tristeza. — É sobre duas pessoas que
um dia poderiam ter sido algo, mas nunca mais terão essa chance.
Uma mudança em sua expressão, uma dica do homem que ela viu
algumas vezes durante o relacionamento. O homem que brincou por
horas com seu filho e que olhou para ela com os olhos maravilhados. —
Então, esta será minha penitência. Ver você brilhar e saber que nunca
mais estarei em sua órbita.
Então, para seu espanto absoluto, ele se curvou na cintura numa
reverência que um arcanjo não dava a ninguém. Não balançou nada nela,
mas aceitou que o gesto tinha um significado.
— Adeus, Sharine.
— Adeus, Aegaeon.
Quero enfiar meu punho no rosto dele, veio uma voz masculina
profunda em sua cabeça.
Ele vai gostar, disse Sharine. Isso vai reacender sua crença de que eu
fomento emoções persistentes por ele, fazendo com que você aja com
ciúme. Ela observou as asas de Aegaeon desaparecerem no céu escuro.
Não dê a ele a satisfação.
Um silêncio agourento.
Sharine não disse mais nada. Titus tinha que tomar essa decisão
por si mesmo. Quando pousou no telhado uma boa hora depois, ela
estava pronta para arrancar sua pele com a língua. Ela lidou com a
situação, e de uma forma que sabia que morderia Aegaeon por eras
vindouras.
Rejeição e desinteresse eram duas coisas que seu ex-amante não
suportava.
Primeiro, olhou para Titus de cima abaixo. Parecia não estar muito
desgastado. Cruzando os braços, ela bateu o pé. — O que você fez?
Ele colocou as mãos nos quadris. — Nada. Apenas segui o burro à
distância para garantir que estava realmente saindo do território. — Um
indício definitivo de mau humor misturado com raiva real. — Vou dar
um soco nele um dia, tenha certeza, porque ele vai mostrar sua bunda de
novo. — Olhos escuros pousando nela. — Mas hoje foi a sua vitória. Não
iria agredir um homem quando já estava sangrando muito.
Como ela o achou uma vez sem charme? Lá estava ele, embalado
numa carranca e ainda mais potente por ser tão rude e honesto.
Caminhando até ele, ela arrumou a gola de sua camisa, querendo
apenas estar perto do intenso calor de seu corpo.
Quando ele disse: — Voe comigo — ela abriu as asas.

CAPÍTULO 48

O torno ao redor do peito de Titus ficou cada vez mais


dolorosamente apertado enquanto voavam. Já havia retirado seu
presente; agora queimava um buraco em sua palma. Levando-os para
longe da vila e passando pelos batedores de Lumia, voou em direção a
céus que eram privados e escuros, exceto pela luz das estrelas.
Isso, o que estava prestes a fazer, não precisava de audiência.
Se ela quebrasse seu coração, preferiria suportar o golpe em
particular. Não tinha nada a ver com orgulho e tudo a ver com dor – sabia
que não seria capaz de esconder isso, não o primeiro sentimento. Seu
povo já estava espancado e machucado. Não precisavam ver a devastação
de seu arcanjo.
Quando pousou, estava numa área desabitada por mortais ou
imortais, grama comprida e dourada roçando em suas panturrilhas e a
paisagem um vazio ondulante por todos os lados, até um lago ao longe
que era um pedaço de escuridão fria. Sharine pousou a poucos metros de
distância, onde a grama era mais curta e menos apta a prender em seu
vestido. Ele caminhou até ela através dos fios dourados, para esta mulher
extraordinária que o pegou numa rede que ela não havia jogado.
Mas ele foi pego da mesma forma.
Quando ergueu a mão para segurar seu rosto, ela se inclinou, mas
seus olhos, adoráveis e penetrantes, não se separaram dos dele.
— Senti sua falta — disse ele, as palavras ásperas. — Você fez um
buraco no meu coração e me causa dor quando não está lá para
preenchê-lo.
— Vai passar. — Palavras roucas. — Não foi sempre assim antes?
— Não. — Ele sabia disso no fundo de sua alma. — Nunca tive um
buraco dentro de mim. É permanente e dói.
— E todas as borboletas do mundo? E quanto a todas as outras
amantes que poderia ter?
A resposta foi incrivelmente fácil. — Elas não serão você. — Ele foi
abordado mais de uma vez desde que se separaram, tanto por guerreiras
quanto por civis, todas com um sorriso e com afeto.
Não tinha vontade de dançar com nenhuma delas.
O buraco em seu coração tinha uma forma muito particular e só
podia ser preenchido por uma pessoa. — Vejo-me virando para lhe
contar pensamentos inteligentes, mas você não está lá. Acordo com
vontade de beijar você e, às vezes, até acordo com vontade de ouvir você
me esfolar com sua língua.
Sem risos e sem a sagacidade mordaz com a qual ela destruiu
Aegaeon com tanto sucesso. Um olhar de champanhe que não revelava
nada. — Você me pede para ser sua amante por mais tempo?
Balançando a cabeça, Titus tirou a mão de sua bochecha e se
ajoelhou entre a grama. Seu coração batia forte, sua boca secou, e sua
sensação de estar exatamente onde queria estar era tão ressonante que
parecia que estava ligado ao próprio universo.
— Não, Shari, — disse ele— embora eu seja seu amante no dia que
você desejar, o que peço é que seja minha consorte. — Ele abriu a mão,
na qual estava uma fina corrente de ouro, na extremidade da qual pendia
um pingente feito de âmbar em forma de um colibri voando alto.

... seja minha consorte.


A mente de Sharine se esvaziou de todos os pensamentos, Titus, o
centro de seu universo. Ele era extraordinário, seu Titus, forte e leal e
com um coração tão grande que abrangia todo o seu território.
Também era extremamente honesto.
E acabava de pedir a ela para ser sua consorte.
Ela afundou na grama na frente dele. — Titus. — Pegando seu
rosto, o beijou com toda a paixão – e sim, amor – em seu coração. Ela se
apaixonou por este arcanjo impetuoso e rude, apesar de todos os seus
planos em contrário, e não mentiria para si mesma sobre isso também.
Envolvendo-a em seus braços, ele a apertou, devorando sua boca.
Sem fôlego depois disso, ela balançou a cabeça quando ele abriu um
sorriso que a envolveu em seu amor, e foi colocar o colar em seu pescoço.
— Shari, não pode beijar um homem, então rejeitá-lo. — Angústia
aberta.
— Não é rejeição. — Ela tocou sua mandíbula, incapaz de suportar
ferir o enorme coração que a amava. — Vou usar seu âmbar para que o
mundo saiba que meu coração foi tomado.
O torno ao redor do peito de Titus começou a afrouxar seu aperto
finalmente. — Você me ama? Diga-me então.
Um brilho nos olhos que não deveriam brilhar, sua beleza
incandescente. — Eu te amo, Titus, Arcanjo da África. — Em sua voz
havia tons que nunca ouviu, camadas de amor que o envolveram com
uma intimidade sensual primordial.
— Nunca use essa voz com ninguém, — resmungou ele — ou vai
quebrar meu coração.
Riso, tão sensual e viciante. — Sempre protegerei seu coração, pois
é meu agora. — Uma mão esguia pressionou aquele mesmo órgão, sua
voz inflexível em suas próximas palavras. — Também usará meu âmbar –
uma única peça, embutida em sua couraça.
Titus estufou o peito, as mãos nos quadris dela e um sorriso
curvando seus lábios. — Pode embutir nela quantas peças de âmbar
quiser. — Nunca mudaria sua devoção por ela.
Passando as costas da mão pelo queixo dele, ela disse: — Não estou
pronta para ser sua consorte. — Um dedo pressionou seus lábios. — As
consortes devem estar atentas à política, devem cumprir certos deveres.
Não posso, não só porque cuido de Lumia, mas porque mal acordei. Não
posso ser sua consorte antes de estar completa em mim mesma como
Sharine.
— Shari, se ficar mais radiante, vou queimar em sua luz. — Ele
pressionou sua testa contra a dela. — Mas se precisa de um ou três
milênios para estar oficialmente ao meu lado, que assim seja.
Contanto que ela usasse seu âmbar.
Contanto que o fizesse usar o dela.
— Estou lhe dizendo agora, então não pode me acusar de falsidade
mais tarde, — disse ele, porque nunca mentiria para ela — mas vou
tratá-la como se fosse minha consorte, embora você não tome o título, o
mundo saberá quem você é para mim. — Ele não conseguia esconder;
não foi criado dessa forma.
Sharine examinou seu rosto. — Não vai te machucar se a espécie
angelical questionar por que não aceito o título de Consorte?
— Não. Tudo que me importa é seu amor. — Seu orgulho de ser
amado por ela era algo tão grande que podia suportar sobrancelhas
levantadas sem fim e perguntas incisivas. — Contanto que você seja
minha Shari, e eu seu Titus, serei um arcanjo que se pavoneia como um
galo no poleiro.
Uma risada alegre de seu amor, seu beijo suave, úmido e profundo.
Gemendo, permitiu que ela o puxasse para baixo, de modo que ele
ficasse apoiado sobre ela enquanto ela se deitava na grama.
— Eu aceito suas intenções — disse ela naquela voz privada e
apenas para ele. — Não sei quando ou se estarei pronta para ser sua
consorte, e vou me opor firmemente contra qualquer tentativa de me
fazer preencher esse papel, mas sempre serei sua Shari.
O coração de Titus disparou, alto como um trovão.
Quando foi colocar o colar desta vez, ela levantou a cabeça para
tornar mais fácil para ele. O colibri acomodou-se perfeitamente no oco de
sua garganta. Presunçoso e feliz, ele ergueu o pingente para pressionar
um beijo naquele oco.
Com a mão em seu pescoço, ela murmurou: — Sabe que o âmbar
em seu peitoral terá a forma de um colibri, não é?
Ele gemeu, mas foi indiferente na melhor das hipóteses, seu deleite
era muito óbvio para esconder. Seus olhos dançantes diziam que ela
sabia disso muito bem. Empurrando seu peito até que ele se afastasse,
ela se levantou e estendeu a mão para os colchetes de seu vestido.
Um segundo depois, caiu sobre seus pés numa piscina de luz das
estrelas, seu corpo nu sob o luar, exceto pelo tecido fino que cobria seu
monte. Saindo de seus chinelos, ela segurou seus olhos enquanto
removia a barreira final entre seu olhar e seu corpo.
Então se espreguiçou, uma pequena deusa com curvas suaves e
cabelos que caíam como uma chuva negra e dourada por suas costas,
seus olhos brilhando de uma forma que dizia que era uma criatura rara e
poderosa. Ele não estava ciente de se levantar, não estava ciente de se
despir. Mas sua pele queimou contra a dela quando agarrou seus quadris
e inclinou a cabeça para beijar sua garganta.
Tremendo, ela deslizou os braços ao redor do pescoço dele. —
Dance comigo, Titus.
Ele a cobriu com seu glamour, mesmo quando saltou os dois para o
céu, glamour um presente dos arcanjos. Isso os tornava privados, sem
serem vistos por quaisquer outros olhos enquanto enredavam membros
e asas, beijando, tocando e reivindicando. Ele disse que queimariam
juntos, e queimaram, mas também havia uma alegria luminosa em tudo
isso, uma felicidade tão profunda que se fundia em seus ossos.
As asas de Sharine brilharam com pó de anjo de ouro claro que
revestia sua pele, entrava em sua boca. Ele a salpicou por sua vez, até que
ela brilhasse contra a lua e as estrelas, o brilho de seus olhos ecoado pelo
brilho fraco que emanava de suas asas. Titus agarrou o arco de uma asa,
acariciando com possessividade íntima.
Ela repetiu a carícia nele.
E eles dançaram.
O Arcanjo da África e um anjo tão único que não podia ser
classificada como ninguém além de si mesma: Sharine, Guardiã de Lumia
e Colibri em voo.
Corpos travados contra a noite aveludada, caíram e caíram... nas
águas frias do lago que ondulariam num azul celeste à luz do dia.
Consciente de sua força agora, não os protegeu da água, e foi um choque
de frio contra o calor de seus corpos, mas caíram mais e mais fundo até
que o prazer se tornou a luz do sol explodindo em suas veias.
Titus veio à tona junto com ela, e ela era uma sílfide que tirou o
cabelo do rosto e sorriu para ele. Titus caiu de novo.
Epílogo

Querida Caliane,

O dispositivo de telefone é excelente e fico mais apaixonada por ele a


cada hora que passa, mas os diários de Charisemnon me mostram que vale
a pena dedicar um tempo para seguir os velhos hábitos também. Portanto,
hoje escrevo esta carta que enviarei por correio para onde você pretende
estar nos próximos dias.
Sei que continua ajudando a jovem Suyin e Neha também.
Eu acho, querida amiga, que está certa no que me disse quando
conversamos pela última vez – a Arcanjo da Índia está cansada demais.
Seu coração está despedaçado. Tanto é verdade que Titus me diz que até
sua irmã gêmea depôs as armas; se recusa a lutar contra uma Neha que
não vai, ou não pode, revidar.
Neha cumpre seu dever, isso todos nós vemos, mas acho que quando o
mundo estiver mais são, nós a perderemos para o Sono. Não posso culpá-la,
ou qualquer um de seu povo, que faz essa escolha. Os horrores
desencadeados em sua fronteira nunca deveriam ter existido e serão uma
mancha em nossa história para sempre.
Pelo menos a última das crianças vitimadas foi descoberta e recebeu
misericórdia.
Sei que você também tem muito mais hematomas em seu coração
como resultado desse mesmo mal. Entendo que despertou uma velha dor.
Estou aqui para ajudá-la nas horas do dia e da noite mais profunda. Nunca
hesite em vir aqui, ou em contactar. Por favor, minha amiga, não deixe os
hematomas apodrecerem e se transformarem em feridas.
Sabe que vou segurar suas palavras por perto, não as repetindo para
nenhum outro.
As notícias da África são as mesmas de quando conversamos.
Descobrimos alguns renascidos de vez em quando, mas as pessoas estão
muito melhor situadas para combatê-los, e tanto o norte quanto o sul
sabem que podem convocar as tropas de seus arcanjos. Não surgiram mais
anjos infectados, mas a equipe de cura continua a fabricar e armazenar
mais doses na esperança de que nunca sejam necessárias.
Tenho certeza de que impedimos o mal de Charisemnon aqui, antes
que pudesse começar a se espalhar, mas isso não é motivo para ser
complacente. Você vai querer saber de Zawadi– o bebê é feliz e amado por
sua mãe adotiva. Eu a vejo com frequência, assim como Titus. A pequena
tem mais probabilidade de ser mimada e estragada do que não ter nada na
vida, mas mesmo sabendo disso, continuarei a gostar de mimá-la.
Sua história é bastante sombria. Que seu futuro seja cheio de luz.
Você me perguntou como foi com Titus. Minha amiga, eu nunca
conheci tanto contentamento e alegria. Vive em mim cada momento de
cada dia. Sinto falta dele desesperadamente enquanto está em Narja ou em
outra de suas cidadelas, e ele está aberto ao permitir que eu veja que seu
coração se parte cada vez que ele me deixa.
No entanto, seu orgulho por mim, pelo que conquistei em Lumia...
Não preciso da aprovação de ninguém, não mais, mas há muito a ser dito
sobre um amante que se gaba de mim para qualquer pessoa ao alcance da
voz. Aqui, vou me gabar dele, pois Titus é extraordinário em sua
capacidade de amar. Que coração ele tem, Caliane.
Seu amor é uma alegria que nunca esperei, e é um presente tão
grande quanto meu filho.
Illium começou a chamá-lo de padrasto quando se falam, e Titus
ameaça arrancar suas penas recém-crescidas todas às vezes. Então Illium
ri e meu ser transborda de alegria, que essas duas pessoas cujos nomes
estão escritos em meu coração gostem uma da outra também. Meu filho
ainda é jovem, mas Titus diz que está se tornando um poder.
Sabe como eu me sinto. Preocupo-me com ele. Sempre vou me
preocupar com ele.
Nosso mundo familiar se inclinou para o lado certo depois de ficar
desequilibrado por muito tempo. Illium não precisa mais cuidar de mim.
Por fim, eu cuido dele.
Oh, como poderia me esquecer de contar a você sobre a visita das
irmãs de Titus! Todas as quatro desceram sobre Lumia alguns dias atrás, e
agora entendo por que ele tem uma voz tão direta e modos tão rudes. É um
mecanismo de sobrevivência. Estou feliz em informar que também
sobrevivi à tempestade que é Phenie, Charo, Nala e Zuri.
Eu ri com elas, mas minha risada sumiu no dia anterior, com as
notícias de Suyin. Não posso deixar de concordar quando ela chama isso de
nexo das trevas. Fique segura, minha amiga, e cuide de Aodhan. Também
carrego seus nomes em meu coração. Como não posso impedir você de voar
para ajudar Suyin, não posso impedir Aodhan de ser um anjo leal e
corajoso, nem tentaria.
Mas terei esperança. E vou me preocupar até ouvir de vocês dois.
Com todo o meu amor,
Sharine

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