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Sumário

PRÓLOGO
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Epílogo
NOTA DA AUTORA
O mistério e a ação se combinam perfeitamente com uma grande história de amor, cintilante
e apaixonada. Assim como suas irmãs, Arabella Caulfield está presa a uma antiga profecia
que obriga as três órfãs a se casarem com príncipes. Só assim conseguiriam fugir de um destino
infeliz. Arabella tem agora doze dias para chegar a um remoto castelo francês e encontrar seu
príncipe.
Para alcançar seu objetivo, a irmã do meio deverá cumprir alguns requisitos como
comportar-se como uma dama e não fazer acordos com um capitão arrogante e
indubitavelmente irresistível. Não enfrentar junto dele os ladrões… nem permitir que ele a
beije até fazê-la perder o controle. E, sobretudo, não aceitar sua proposta de casamento. Mas a
valente e decidida Arabella não é uma dama qualquer. E Luc Westfall tampouco um capitão
comum. O novo duque de Lycombe precisa de um herdeiro para vencer uma conspiração que
poderia destruir sua família. E parece que finalmente conheceu a mulher perfeita para
consegui-lo. Poderia seduzir sua dama e convertê-la em duquesa?
Para
Marcia Abercrombie, Anne Brophy, Meg Huliston, Mary Brophy Marcus e Barbara
Tetzlaff, minhas irmãs de coração.
E para Noah Redstone Brophy, um herói de carne e osso.
Bem-aventurados os que têm fome,
porque serão saciados.
PRÓLOGO
As Órfãs
Em uma feira em algum lugar da Cornualha. Abril de 1804.
Três jovens irmãs, sem título nem fortuna, aguardavam sob o brilho de um
lustre, sentadas a uma mesa forrada com veludo negro.
Encima da mesa havia um anel perfeito para um príncipe azul.
Escondida atrás de um véu de cor escura, a adivinha não observava as palmas
das mãos de suas clientes, tampouco suas sobrancelhas, nem sequer seus olhos,
e sim o anel, um foco brilhante de ouro e rubis irradiando luz entre as sombras
de tudo que o rodeava naquela tenda.
– Não têm mãe.
A voz da cigana era intensa, mas tão inglesa como a das garotas.
– Somos órfãs.
Arabella, a irmã do meio, se inclinou para adiante e pôs uma mecha de cabelo
acobreado por trás da orelha, com a delicadeza de um caracol. Só tinha doze
anos e já era uma beleza: tinha lábios vermelhos como morangos, as bochechas
rosadas e os olhos brilhantes. Tinha aspecto de princesa de contos de fadas e era
igualmente encantadora, embora qualquer bom contador de histórias devesse
admitir que não era nada dócil.
– Todo o povoado sabe que não temos mãe.
Sua irmã mais velha, Eleanor, franziu o cenho por debaixo de uma trança
dourada presa em um coque. Eleanor era uma rata de biblioteca e franzia o
cenho frequentemente.
– Nosso barco naufragou e papai nos tirou do orfanato. Ele nos acolheu e
evitou que acabássemos nesses asilos que dão abrigo em troca de trabalho.
Com a sinceridade própria das crianças, Ravenna explicou essa história que
não recordava, mas que tantas vezes lhe haviam contado. Quando lhes ocorreu
aquilo, ela só tinha oito anos. Se mexeu inquieta sobre a suavidade do tapete e o
tecido da saia se enrolou nos sapatos. Uma diminuta cara canina de cor negra
apareceu entre as pregas de musselina.
Arabella se inclinou para a frente.
– Por que olha o anel tão fixamente, avó? O que diz?
– Ela não é nossa avó – sussurrou Ravenna para Eleanor com um tom
bastante alto. Quando falou, seus cachos negros balançaram. – Nós não
sabemos quem é nossa avó. Nem sequer sabemos quem são nossos verdadeiros
pais.
– É um título respeitoso – murmurou-lhe Eleanor, mas o desassossego
apareceu em seus olhos quando alternou o olhar entre Arabella e a adivinha.
– Esse anel é a chave de seus destinos – disse a mulher passando a mão por
cima da mesa com os olhos fechados.
Eleanor franziu o cenho com mais força.
Arabella se inclinou para diante com impaciência.
– É a chave de nossa verdadeira identidade? Pertence a nosso verdadeiro pai?
A cigana se balançou de um lado a outro. Fazia isso com suavidade, como os
talos da cevada mexidos por uma brisa suave. Arabella aguardou um pouco;
estava impaciente. Passou anos esperando essa resposta. Cada segundo que
passava parecia um castigo.
Do outro lado das paredes da tenda se escutavam os sons da feira: música,
canções, risadas, os gritos dos vendedores de comida, relinchos dos cavalos no
estábulo, os balidos das cabras que estavam à venda. A feira se instalava desde
sempre naquele remoto lugar da Cornualha. Chegava a cada ano, quando os
ciganos vinham para passar as estações quentes em uma ladeira da fazenda que o
proprietário local tinha a pouca distância do povoado. Até esse dia, as irmãs
nunca haviam ido para que lhes lessem a sorte. O reverendo sempre lhes havia
advertido para que não o fizessem. Era um estudioso e um homem de Deus, e
lhes dizia que essas coisas não eram mais do que superstições às que não deviam
dar atenção. Mas sempre oferecia sua caridade aos viajantes. Não deixava de
repetir que ele era um homem pobre, mas que Deus dizia que devia
compartilhar o pouco que tivesse com os mais necessitados, como havia feito
com as três garotas que havia salvo da indigência há cinco anos.
– O anel nos dirá quem somos? – Perguntou Arabella.
A adivinha tinha uma expressão áspera e deslumbrante ao mesmo tempo.
Tinha as bochechas salpicadas pelas marcas da varíola, mas possuía umas
sobrancelhas elegantes e muita beleza em seu nariz robusto e seus olhos escuros.
– Este anel… – entoou a cigana – pertence a um príncipe.
– Um príncipe! – Surpreendeu-se Ravenna.
– Um príncipe? – Eleanor franziu o cenho.
– É… é o nosso pai? – Arabella reteve o fôlego.
As pulseiras que a mulher usava na munheca tilintaram quando negou com o
dedo.
– O legítimo dono deste anel não tem o mesmo sangue que vocês.
Arabella deixou cair os ombros, mas levantou seu delicado queixo.
– Mamãe o deu a Eleanor antes de embarcarmos para a Inglaterra. Por que
ela o teria, se é de um príncipe? Ela não era uma princesa.
Na realidade, e se as suspeitas do reverendo eram certas, não podia estar mais
longe de sê-lo.
A adivinha voltou a fechar os olhos.
– Não estou falando do passado, menina, mas do futuro.
Eleanor lançou um olhar desesperado para Arabella.
Esta a ignorou e mordeu o lábio.
– E o que nós temos a ver com esse príncipe?
– Uma de vocês… – A voz da mulher se apagou enquanto voltava a estender
a mão sobre o anel como os dedos separados. De repente abriu seus olhos
negros. – Uma de vocês se casará com esse príncipe. E no dia que se celebre
esse casamento, conhecerão o segredo de seu passado.
– Uma de nós se casará com um príncipe? – Disse Eleanor com evidente
incredulidade.
Arabella segurou a mão de sua irmã para apaziguá-la. Ela já havia se dado
conta de que a adivinha era uma especialista em narrativas dramáticas. Mas suas
palavras eram muito maravilhosas.
– Quem é? Quem é esse príncipe, avó?
A mulher afastou a mão do anel e o deixou brilhar à pálida luz da tenda.
– Isso terão que descobrir vocês.
O calor se apoderou da garganta de Arabella e foi seguido de uma comichão.
Não eram lágrimas, ela não chorava com facilidade, mas incerteza. Sabia que a
adivinha dizia a verdade.
Eleanor se levantou.
Vamos, Ravenna. – Fitou de esguelha a cigana. – Papai está nos esperando
em casa.
Ravenna pegou seu cachorro e cruzou as portas da tenda com Eleanor.
Arabella meteu a mão no bolso e deixou três peniques sobre a mesa,
justamente ao lado do anel. Era tudo o que tinha economizado.
A mulher lhe lançou um repentino olhar receoso.
– Guarde seu dinheiro, pequena. Não o quero.
– Mas…
A cigana a segurou pela munheca.
– Quem conhece a existência deste anel?
– Ninguém. Sabia-o nossa mãe e nossa babá, mas nunca voltamos a ver nossa
mãe e a babá se afogou quando o barco afundou. O mantemos escondido.
– E deve seguir fazendo-o. – Apertou-lhe os dedos. – Nenhum homem deve
conhecer a existência deste anel, só o príncipe.
– Nosso príncipe?
Arabella tremia um pouco.
A cigana assentiu. Soltou a mão da garota e a observou enquanto recolhia o
anel e as moedas e os metia no bolso.
– Obrigada – disse.
A cigana assentiu e lhe fez um gesto para que saísse da tenda.
Arabella afastou a porta de tecido, mas se sentia incômoda e olhou por cima
do ombro. O rosto da cigana havia se tornado cinza e tinha a pele enrugada.
Tinha um brilho selvagem nos olhos.
– Senhora…
– Vá, pequena – disse com aspereza enquanto voltava a pôr o véu. – Vá
buscar seu príncipe.
Arabella se encontrou com suas irmãs junto ao grande carvalho que havia ao
lado dos estábulos. A feira levava mais de um século reunindo-se ao redor
daquela árvore. A esbelta Eleanor aguardava de pé. Ao longe se viam seus
dourados tons pálidos sob a gloriosa luz brilhante da primavera. Ravenna estava
sentada na grama e cuidava de seu filhote da mesma forma que outras meninas
cuidavam de suas bonecas. Por detrás de Arabella, a música dos violinos e das
trompas se mesclava ao ar cálido, e adiante dela, os gritos dos vendedores de
cavalos fechando seus negócios se mesclavam com o odor dos animais e da
poeira.
– Acredito nela.
– Sabia que acreditaria. – Eleanor deixou escapar um suspiro. – É o que quer
crer, Bella.
– Pois sim.
Eleanor não entenderia. O reverendo admirava sua rapidez mental e seu
amor pelos livros. Mas a cigana não mentia.
– Que eu tenha vontade de acreditar não significa que o que disse não seja
certo.
– São superstições.
– Só o diz porque é o que o reverendo fala.
– Pois eu acredito que é fantástico que vamos nos converter em princesas.
Ravenna passou o dedo pelo rabo do filhote.
– Todas não – disse Arabella. – Só a que se case com um príncipe.
– Papai não acreditará.
Arabella voltou a segurar sua irmã pela mão.
– Não devemos lhe dizer. Ele não entenderia.
– Não direi nada.
Eleanor a fitou com delicadeza. Estava muito confortável dando a mão a
Arabella. Por mais céptica que fosse, não podia ser severa com sua irmã.
Quando estavam no orfanato e Arabella recebia alguns açoites, – ou coisas
piores – rezava cada noite para ser tão inteligente e ponderada como era sua
irmã mais velha. Mas Deus nunca escutou suas preces.
– Não o diremos ao reverendo – disse Arabella. – Entendeu isso Ravenna?
– É claro. Não sou boba. Papai nunca aprovaria que uma de nós se
convertesse em princesa. Ele gosta de ser pobre. Está convencido de que isso o
aproxima mais de Deus.
O filhote saltou de seu colo e correu em direção ao estábulo dos cavalos. A
menina se levantou de um pulo e saiu atrás dele.
– Gostaria de poder falar disso com papai – disse Eleanor. – É o homem
mais inteligente da Cornualha.
– A adivinha disse que não devíamos fazê-lo.
– A adivinha é uma cigana.
– Você diz isso como se o reverendo não fosse um grande amigo dos
ciganos.
– E um bom homem, do contrário não teria acolhido três meninas, sendo,
como é, um homem pobre.
Mas Eleanor sabia tão bem como Arabella qual era o motivo pelo qual o
havia feito. Só três meses antes de que as encontrasse quase mortas de fome no
orfanato e de descobrir que iam mandar Eleanor para trabalhar, a febre lhe havia
arrebatado a mulher e as filhas gêmeas. Necessitava-as para curar seu coração,
necessitava-as tanto como elas a ele.
– Já não teremos que nos preocupar muito tempo mais com a pobreza, Ellie.
– Arabella pegou o anel do bolso e a joia refletiu o brilho do sol do meio dia
como o fogo. – Já sei o que tenho que fazer. Dentro de cinco anos, quando
tenha dezessete…
– Tali!
– Um sorriso iluminou o rosto de Ravenna. Na esquina do estábulo dos
cavalos havia um garoto vestido com velhas roupas surradas.
Eleanor se pôs tensa.
Arabella sussurrou:
– Só o príncipe pode vê-lo.
E voltou a meter o anel no bolso.
Ravenna recolheu o filhote e correu até o garoto enquanto ele se aproximava
dela em grandes passadas. Sua pele morena brilhava cálida sob a luz do sol que
passava por entre os ramos do enorme carvalho. Não tinha mais de quatorze
anos e era um saco de ossos desalinhados com as bochechas afundadas, mas
tinha olhos negros como o alcatrão, nos quais brilhava uma desconfiança
imprópria de sua juventude.
– Olá, pirralha.
Puxou a trança de Ravenna, mas por debaixo da mecha de rebelde cabelo
negro que lhe caía sobre a testa, fitou de esguelho sua irmã mais velha.
Eleanor cruzou os braços e se interessou de repente pelas copas das árvores.
O garoto franziu o cenho.
– Olha, Tali. – Ravenna lhe colocou o filhote debaixo do queixo. – Papai me
presenteou com ele pelo meu aniversário.
O garoto coçou uma das orelhas peludas do animal.
– Como se chama?
– Besta, talvez? – Murmurou Eleanor. – Oh, espera, esse nome já tem dono.
O garoto deixou de acariciar o cachorro e se pôs tenso.
– O reverendo me pediu que as avise; é hora de cear.
Logo deu meia volta e voltou ao estábulo dos cavalos sem acrescentar nem
uma só palavra.
O olhar de Eleanor o seguiu com receio por debaixo do cenho franzido.
– Parece que não come.
– Pode ser que não tenha comida suficiente. Não tem nem mãe nem pai –
disse Ravenna.
– Quem quer que fossem os pais de Taliesin, devem ter sido muito bonitos –
disse Arabella passando o dedo pelo cabelo.
Recordava muito poucas coisas de sua mãe, exceto seu cabelo, que era do
mesmo dourado avermelhado que o seu, seu suave e apertado abraço e seu
cheiro de cana de açúcar e rum. Eleanor recordava pouco mais, e só conservava
na memória uma imagem borrada de seu pai, um homem alto e louro que vestia
uniforme.
Arabella estava segura de que a adivinha não lhe havia dito tudo. Por aí, no
entanto, havia um homem que não tinha nem ideia de que suas filhas
continuavam com vida. Um homem que podia lhes dizer por que sua mãe as
havia metido em um navio.
A resposta, a tinha esse príncipe.
Arabella mordeu o lábio, mas a determinação lhe iluminou os olhos.
– Algum dia uma de nós se casará com um príncipe. É o destino.
– Deveria ser Eleanor porque é a mais velha. – Ravenna levantou o filhote e
lhe acariciou o estômago. – Logo você poderá casar com Tali, Bella. Sempre me
trás rãs do reservatório, e me encantaria que fosse nosso irmão.
– Não – disse Arabella. – Taliesin está apaixonado por Eleanor…
– Isso não é verdade. Odeia-me e eu o acho desprezível.
– … e eu espero me casar melhor.
Apertou os dentes com firmeza, como o faria qualquer homem que tivesse o
dobro da idade.
– Com um cavalheiro? – Perguntou Ravenna.
– Ainda mais.
– Com um duque?
– Um duque não é suficiente. – Voltou a pegar o anel do bolso e seu peso lhe
deixou uma marca na mão. – Casarei com um príncipe. Conseguirei que
voltemos para casa.
Capítulo 1
O pirata
Plymouth, agosto de 1817
Lucien Westfall, antigo comandante do HMS Victory, conde de Rallis, e
herdeiro do duque de Lycombe, estava sentado em uma esquina da taverna. Já
fazia muito tempo que havia aprendido que com a esquina às suas costas podia
perceber o perigo aproximando-se de qualquer direção. E nesse momento a
esquina lhe proporcionava as vantagens derivadas de ter um campo de visão
limitado.
Nessa ocasião, o campo de visão limitado continha uma paisagem
especialmente interessante.
– Parece um falcão, garoto. – Gavin Stewart, médico de bordo e sacerdote,
levantou sua caneca de cerveja. – Essa garota continua olhando para você?
– Não. Está fitando a você. Na realidade, o está fulminado com o olhar. –
Luc pegou da mesa a carta do administrador das propriedades de seu tio,
dobrou as páginas e as meteu em seu colete. – Creio que quer que vá embora.
– Quer você. Como todas. É pela cicatriz. – Gavin se recostou na cadeira e
coçou as costeletas, negras e ralas. – As mulheres gostam dos homens perigosos.
– Se isso for verdade, está condenado a uma vida solitária, velho amigo.
Embora eu suponha que já o estava de qualquer modo.
– Ossos do ofício, pelos votos – disse o sacerdote rindo com alegria. – É
bonita?
– É possível. – Fitava-o interessada com olhos bonitos, brilhantes mesmo à
luz das lamparinas que iluminavam a taverna. Tinha o nariz bonito e a boca
também. – Apesar de poder ser uma professora. – Levava um lenço que lhe
cobria o cabelo por completo, e a capa fechada até o pescoço. Por debaixo
aparecia um pescoço branco e longo. – Está tão coberta como uma virgem.
– A mãe de nosso Deus era uma virgem, rapaz – repreendeu-o Gavin. E
acrescentou: – E onde está a diversão quando não tem que se esforçar para
conseguir o tesouro?
Luc elevou uma sobrancelha.
– Que tempos aqueles, não, padre?
Gavin soltou uma boa gargalhada.
– Acredito que sim. – Tinha um peito largo como seus antepassados
escoceses, e Luc sempre havia relaxado escutando-o rir. – E desde quando você
sabe tanto sobre professoras?
Desde que com onze anos Luc escapou da propriedade onde seu tutor
retinha a ele e a seu irmão mais novo, e topou com uma escola particular para
senhoritas. A diretora, após uma suave reprimenda, devolveu-o a sua casa, onde
recebeu um castigo que não teria imaginado nem no pior de seus pesadelos.
Luc não acreditou no sermão de seu tutor sobre os diabos da tentação que se
encontravam na carne feminina. E depois dos primeiros meses deixou de
acreditar em tudo o que dizia o reverendo Absalom Fletcher. Os homens maus
costumam mentir. No dia seguinte, voltou a escapar e correu até a escola com a
esperança de encontrar novamente a diretora passeando, e o repetiu no dia
seguinte, e no seguinte. Ia em busca de uma aliada. Ou só de um refúgio. E cada
vez que o fazia, os criados voltavam a arrastá-lo de volta para a casa de seu
tutor, onde o castigo que recebia por ter desobedecido era mais severo que o do
dia anterior.
O garoto os recebia com lágrimas silenciosas, carregadas de desafio, que
corriam sobre suas bochechas. Até que Absalom descobriu sua verdadeira
debilidade. E então Luc deixou de desobedecer. Então se converteu no modelo
de comportamento exemplar.
– Conheço as mulheres – queixou-se Luc. – E esse é o problema.
Deu um trago no whisky. Queimava, e ele gostava que queimasse. Cada vez
que ela o fitava, tinha um pressentimento desagradável.
Observava a concorrida taverna do cais com movimentos seguros e diretos, e
levantava o queixo como se fosse a rainha e estivesse em plena inspeção real.
Era evidente que não costumava frequentar essa classe de estabelecimentos.
Gavin deixou a caneca vazia na mesa.
– Deixá-lo-ei aos cuidados da dama. – Levantou seu maltratado corpo da
cadeira. Ainda não havia completado os cinquenta, mas já estava cansado do
mar ao que havia se entregado pelo bem de Luc, fazia já onze anos. – Suponho
que não quer desfrutar de umas pequenas férias nesse seu castelo quando
deixemos a tripulação em Saint-Nazaire? Ou ir visitar o pilantra de seu irmão?
– Não há tempo. O grão não viajará sozinho até Portugal.
Luc tentou tergiversar, mas Gavin o entendia. A fome do ano anterior ainda
assolava algumas regiões. O povo morria de fome. Não podiam deixar de
trabalhar para sair de férias.
E simplesmente necessitava estar no mar.
– O grão. Claro – disse Gavin, e saiu da taverna.
Luc bebeu o resto do whisky e esperou. Conhecia muito bem as mulheres,
conhecia-as de todas as classes, e aquela nem sequer estava se incomodando em
fingir desinteresse.
Abriu caminho entre a escandalosa multidão com cuidado de não tocar em
ninguém enquanto avançava. Até que não se deteve diante dele do outro lado da
mesa, não pôde ver-lhe bem os olhos: azuis, brilhantes e receosos. A mão com a
que agarrava a capa sobre o peito era delicada, mas as veias que se adivinhavam
sob sua pele pálida eram fortes.
– É o homem a quem chamam de Pirata.
Não era uma pergunta. É claro que não era.
– Ah, sim?
Elevou uma sobrancelha.
– Disseram-me que devia procurar um homem moreno com uma cicatriz no
olho direito, um lenço de listras negras e um olho esquerdo de cor verde. Como
está sentado na sombra, não me ficou muito clara a cor de seu olho. Mas tem
uma cicatriz e tem o olho direito tapado.
– Pode ser que eu não seja o único homem de Plymouth que encaixe com
essa descrição.
Então se elevaram duas sobrancelhas. A curva de seu nariz era impoluta, não
tinha nem uma só mancha na pele, que brilhava à luz tênue que passava pela
janela que Luc tinha às costas.
– Já não existem piratas – disse. – Só marinheiros pobres que regressaram da
guerra com pernas de pau e tampões nos olhos. É estúpido e provavelmente
também desrespeitoso que se faça chamar assim.
– Eu não me faço chamar de forma alguma.
Nem capitão Westfall, nem herdeiro do duque de Lycombe. E em qualquer
caso, a última opção era muito improvável. A tia de Luc, a jovem duquesa,
nunca havia conseguido dar à luz qualquer filho, apesar de o ter tentado em
cinco ocasiões. Mas isso não significava que o sexto não pudesse sobreviver. Por
isso, no ano que havia transcorrido desde que deixou a marinha para perseguir
metas mais nobres, só o conheciam como capitão Andrew da escuna mercante
Retribution. Uma vida simples e sem complicações familiares, que servia bem a
seu propósito.
O Pirata era um apelido estúpido que sua tripulação lhe havia posto.
– Então, qual é seu verdadeiro nome, senhor? – Perguntou.
– Andrew.
– Como está, capitão Andrew?
Pensou que ia lhe fazer uma reverência. Mas não o fez. O que fez foi
estender-lhe a mão para que a estreitasse. Não usava anel. Então não era uma
viúva da guerra, essa guerra que havia mantido seu irmão Christos escondido a
salvo na França, afastado do alcance de sua família.
Não aceitou a mão que lhe estendia.
– O que quer de mim, senhorita, além de, pelo visto, ensinar-me sobre os
perigos da guerra?
– Seus modos são deploráveis. Pode ser que seja um pirata afinal de contas.
Pareceu falar sério enquanto mordia o lábio. O inferior era da mesma com
que os morangos.
Delicioso.
Fazia muito tempo que Luc não degustava lábios tão doces como esses.
– Suponho que estou diante de uma expert em boas maneiras – disse ele com
evidente desinteresse.
– Na realidade, sim. Mas isso carece de importância. Necessito viajar ao porto
de Saint-Nazaire na França, e me disseram que seu barco parte para lá, saindo
desse porto amanhã mesmo. E também… – Observou-o devagar, começou por
seu rosto e foi baixando por seus ombros e seu peito até que um ligeiro rubor
subiu por suas bochechas. – Disseram que é o capitão mais adequado para levar
uma dama.
– Ah, sim? Quem lhe disse isso?
– Todo mundo. O capitão do porto, o homem da loja que há do outro lado
da rua, o garçom desse estabelecimento. – Virou os olhos. – Não é um
contrabandista, não é? Entendi que, apesar de que a guerra tenha acabado, ainda
existem em alguns portos.
– Não neste porto. – Pelo menos ultimamente. – E acredita na palavra do
capitão do porto, do lojista e do garçom?
A jovem franziu o cenho.
– Sim. – Fez uma pausa e pareceu encaixar seus estreitos ombros. – Me
levará a Saint-Nazaire?
– Não.
Voltou a levantar a mandíbula dessa forma que provocava essa estranha
sensação no peito de Luc.
– É porque sou uma mulher e o senhor não permite mulheres a bordo? Ouvi
dizer que é um pensamento comum entre os piratas.
– Senhorita, eu não sou…
– Se não é um pirata, por que cobre o olho dessa forma? É um artifício para
assustar as mulheres indefesas, ou é que só pôde realmente encontrar tecido
desse tamanho e largura?
“Bruxa de língua viperina”. Não podia estar ridicularizando-o. Ou flertando.
Não parecia próprio daquela correta professora de escola.
– Como imagino que deixa bem claro a cicatriz, o que vê não é um disfarce,
senhorita…
– Caulfield. De Londres. Até há pouco trabalhava para uma dama e um
cavalheiro de considerável posição. – Seus olhos voltaram a resvalar por seu
peito. – A quem não creio que o senhor conheça. De qualquer forma,
contrataram-me como preceptora de comportamento para sua filha, que é…
– Uma preceptora de comportamento?
– Interromper uma dama é o cúmulo da má educação, capitão Andrew.
– Acredito.
– O quê?
– Que a senhorita é uma preceptora.
Os olhos dela brilharam, magníficos, grandes e expressivos olhos da cor do
céu em um dia ensolarado.
– Uma preceptora de comportamento – disse – é a pessoa que se encarrega
de ensinar a uma jovenzinha de bom berço os modos adequados e a regras
sociais necessárias para entrar na sociedade, além de guiá-la no processo durante
sua primeira temporada na cidade. Mas não creio que o senhor saiba algo sobre
modos e regras sociais. Não é assim, capitão?
Oh. “Não”. Por mais magníficos que fossem seus olhos, a última coisa de
que necessitava a bordo era uma professora virginal; necessitava-o tanto como
de uma espada apontada para seu olho esquerdo.
Levantou-se.
– Escute, senhorita quem quer que seja, meu barco não é um transporte
público.
– E que tipo de barco é?
– Uma embarcação mercantil.
– E que tipo de mercadoria transporta?
– Grãos. – Para pessoas que não podem se permitir tais mercadorias. – Verá,
agora, não tenho tempo para interrogatórios. Tenho que supervisionar um barco
e prepará-lo, para poder zarpar amanhã.
Ela elevou o queixo dessa forma tão aborrecida e rodeou uma cadeira para
lhe cortar o caminho.
– Seu cenho franzido não me assusta, capitão.
– Não pretendia nem lhe assustar e nem franzir o cenho. É por culpa desse
inconveniente artifício.
Deu uma batidinha na bochecha e deu um passo para ela.
Ela ficou quieta, mas pareceu vibrar sobre as pontas dos pés. Era muito
pequena, apesar de lhe chegar ao queixo e, no entanto, mantinha-se reta e
decidida.
Não pôde conter um sorriso.
– Por mais que fique na ponta dos dedos não vai me parecer mais alta, sabe?
Não me sinto intimidado.
Ela apoiou os calcanhares no chão.
– Pode ser que goste de fingir uma má reputação com esse disfarce de pirata.
– E voltamos a essa acusação de pirataria. – Negou com a cabeça. – Já se terá
dado conta de que não tenho nenhum gancho no pulso nem há um papagaio
sobre meu ombro, não? E já tenho toda má reputação que quero, sem ter que
representar nenhum papel.
Os herdeiros do ducado costumavam tê-la, inclusive Luc, apesar de estar tão
distanciado de seu tio. Mas a última carta que havia recebido do administrador
de seu tio parecia desesperada. A fortuna de Combe estava em perigo. E por
mais que quisesse ajudar, Luc não tinha nenhuma autoridade para mudar as
coisas. Ainda não era o duque. E devido ao interessante estado de sua jovem tia,
talvez não chegasse a sê-lo nunca.
Cruzou o pouco espaço que restava entre eles.
– Quanto ao outro, eu desfruto das diversões tipicamente masculinas.
Permitiu-se dar-lhe uma lenta conferida. Ia coberta como uma freira, mas
tinha os lábios carnosos e olhos… Realmente magníficos. Impressionantes.
Estavam cheios de emoção e inteligência, coisa que não tinha nenhuma
necessidade de encontrar em uma mulher.
– Nesse caso – disse ela. Os magníficos olhos fitaram-no diretamente. –
Diga-me o preço que deveria pagar para que me leve a Saint-Nazaire, e lhe darei
o dobro.
Observou a capa e o pescoço da garota. Bonitos, sim. Estava claro que havia
recebido uma boa educação. Era possível que fosse uma preceptora de
jovenzinhas que entravam na sociedade. Mas nesse momento estava sozinha e
lhe suplicava ajuda para abandonar Plymouth.
Suspeito.
– Não pode dobrar meu preço.
– Diga-o e o farei.
Deu-lhe um preço bastante alto para levá-la a qualquer porto da costa bretã e
trazê-la de volta três vezes.
As bochechas da jovem ficaram um pouco pálidas. Então voltou a levantar o
queixo. Naquela taverna mal iluminada cheia de marinheiros escabrosos, parecia
uma arvorezinha em um pântano, e igualmente desafiante.
– Pagá-lo-ei.
– Ah, sim? – Era provável que Luc estivesse desfrutando mais do que deveria
daquela situação. – Com quê, pequena professora?
Ela virou os olhos.
– Já lhe disse que sou uma preceptora. E muito boa. As famílias mais
influentes de Londres me procuram. Tenho fundos suficientes.
Luc deslizou a mão pela prega da capa que tinha no pescoço com um rápido
movimento e a puxou até que a abriu.
Ela procurou de segurar o tecido.
– Mas quê…?
Agarrou-a pela munheca com a outra mão. Usava um vestido cinza. A parte
do corpete e o ombro que deixou descoberto ao tirar a capa era muito simples,
mas era feita com tecido de boa qualidade e muito bem costurado. E escondido
sob o tecido da gola aparecia um pequeno volume redondo.
– Pelo visto não tem nada de pequena professora de escola – disse.
– Já lhe disse isso.
A voz lhe tremeu pela primeira vez.
– Pois realmente parece uma preceptora. – Excetuando-se esses olhos
espetaculares. – É uma lástima.
Quando a garota inspirou fundo, seus peitos incharam e pressionaram o
antebraço com suavidade, coisa que provocou uma reação viril nele que lhe
pareceu desalentadoramente alheia e muito prazerosa ao mesmo tempo.
– Meus superiores preferem que me vista com modéstia para que não chame
a atenção de homens perseguidores – disse. – É dessa classe de homens,
capitão?
Seus lábios de morango se moviam lindamente. Queria ver essa língua afiada
que tinha. Se fosse tão tentadora como seus lábios, talvez acabasse aceitando-a a
bordo, no fim das contas.
– Ultimamente não – disse. – Mas estou aberto à inspiração.
A jovem apertou seus lábios de morango.
– Capitão, tanto faz o que pense de mim. A única coisa que quero é que me
permita comprar uma passagem para viajar em seu barco.
– Não quero seu ouro, pequena preceptora.
– E então, que tipo de pagamento aceitaria?
Deixou escapar um frustrado suspiro pelo nariz, mas sua garganta fez um
lindo movimento nervoso. Deus, era realmente formosa. Nem sequer sua
indignação podia disfarçar o puro azul das flores de verão, suas pestanas
morenas, o delicado movimento de suas narinas, o suave inchaço de seus lábios,
tão acetinados como as pérolas de rio escocesas, e a curva de porcelana de seu
pescoço. E seu cheiro… o assanhava. Cheirava como as doces rosas das Índias e
a lavanda da Provence, como as camas de quatro postes de Paris e a
reconfortante visão do peito de uma mulher vestida com sedas e rendas;
definitivamente, cheirava a tudo que contradizia sua modesta aparência e que
houvesse naquela cidade portuária.
– Sei cozinhar e limpar – disse. – Se prefere o trabalho ao dinheiro,
trabalharei para ganhar minha passagem a Saint-Nazaire. – Sua voz soava mais
firme. – Mas meu corpo não está à venda, capitão.
Pelo visto, além de ser preceptora também tinha o poder de ler a mente.
– Não o desejo – mentiu.
Deslizou a mão pela borda do tecido que lhe cobria a cabeça. Tinha os olhos
muito abertos, mas continuou imóvel enquanto lhe roçava a suave nuca com os
dedos. Seu cabelo era pura seda contra a pele do capitão, e notou que o coque
que o tecido ocultava era bem pesado. Comprido. Gostava de cabelo comprido.
Enredava-se de formas muito interessantes quando uma mulher se distraía.
– Então…
Separou os lábios. Lábios que pediam beijos a gritos. Não lhe custava
imaginar esses lábios quentes e flexíveis sob os seus. Sobre ele. Tinha certeza de
que todos os cantos do corpo daquela jovem eram suaves e flexíveis. Via isso
em seus olhos brilhantes e na respiração acelerada que lhe apertava o vestido aos
peitos. Ela se esforçava para parecer fria e relaxada, mas essa não era sua
verdadeira natureza.
Sua verdadeira natureza queria sentir as mãos desse homem sobre seu corpo.
Se não, já teria saído da taverna.
– O que quer?
Suas palavras voltavam a soar vacilantes.
– Ah! Não é tão empertigada como parece, cavalheiros – murmurou por
debaixo das risadas ásperas que explodiram na mesa próxima de alguns
marinheiros.
– Que sabe você sobre cavalheiros?
Muito pouco. Só sabia o que viveu na guerra, quando Christos já estava a
salvo no castelo, e ele pôde desfrutar da companhia dos demais oficiais como
nobre que era por nascimento.
– E você é uma expert no tema?
Brincava como os dedos.
– Não. O que é que quer? – Repetiu ela com secura.
– Pode ser que isto?
Meteu o polegar no laço que tinha no pescoço. A jovem ofegou e tentou se
soltar. Ele puxou o laço para cima e o medalhão escapou da gola do vestido.
Não era um medalhão. Era um anel de homem, grosso, de ouro e com um
rubi do tamanho de uma moeda de seis penny que brilhava como sangue.
– Não.
A jovem pousou a mão sobre o anel.
Luc a soltou e deu um passo para trás. Era linda. Mas não parecia a amante
de ninguém. Vestia-se de um modo simples e era muito magra para agradar a
um homem com dinheiro suficiente para gastá-lo com uma amante.
Mas as aparências podiam enganar. Absalom Fletcher parecia um anjo.
– O que é? – Perguntou. – Um presente de um cliente satisfeito?
Ela pareceu recuar.
– Não.
– Tem que ter muito mal gosto para dar seu anel a uma mulher, no lugar de
comprar um para ela. Deveria tê-lo deixado muito antes. Ou não o fez? Onde
vai encontrá-lo?
Voltou a guardá-lo no vestido.
– Vou a uma casa próxima de Saint-Nazaire para ocupar um novo emprego, e
tenho que começar antes de primeiro de setembro. E o que você pensa que faz
mexendo sob o vestido de uma mulher indefesa? Deveria se envergonhar de si
mesmo, capitão.
– Se você é uma mulher indefesa, ainda me resta muito o que aprender sobre
as mulheres.
– Talvez primeiro devesse aprender generosidade e compaixão. Aceitará que
vá a bordo?
Uma cara bonita. Bem-educada. Pedindo ajuda com desespero. A amante
repudiada de um homem rico. Ansiosa para abandonar Plymouth. Teria
roubado o anel?
Não precisava desse tipo de problemas.
– Não – disse. – Outra vez.
Saiu em direção à porta.
Arabella tinha a sensação de ter uma enorme pedra pressionando-lhe os
pulmões. Aquilo não podia acabar dessa forma, não podia acabar rechaçada em
uma sórdida taverna por um homem que parecia um pirata, e tudo porque havia
sido tão tola de perder seu barco.
Mas não teve coração para deixar aqueles meninos sozinhos. O pequeno não
tinha mais que três anos, e seus irmãos se esforçavam em ser valentes, apesar de
assustados como estavam. O mais velho, um garoto moreno e sério, lhe
recordava Taliesin, o pupilo do reverendo, e o mais parecido a um irmão que
havia tido. Ela não podia abandonar esses meninos como fez sua mãe com elas,
inclusive sabendo que, se ficasse com eles, acabaria perdendo o barco.
O barco que devia levá-la até o príncipe.
Não ficaria muito tempo no castelo. A carta de contratação que recebeu dizia
que a família real partiria para o palácio de inverno no dia primeiro de setembro.
Se chegasse depois desse dia, teria que viajar por seus próprios meios.
E como sempre mandava o dinheiro que sobrava para Eleanor, não tinha
fundos para investir em mais viagens. Além do mais, tinha que dar uma
excelente impressão. Seu trabalho consistiria em preparar a princesa para a
temporada em Londres. Então talvez – se tivesse muita sorte e os sonhos se
fizessem realidade – o príncipe chegaria a notá-la. Não seria a primeira vez que
um dos seus chefes a notava e acabava por gostar muito da bonita preceptora.
Não seria o primeiro em absoluto.
No entanto, nessa ocasião, agradeceria as atenções.
Deu meia volta e abriu caminho pela abarrotada taverna seguindo o caminho
aberto pelo capitão. Tinha as costas largas, caminhava com segurança, e os
homens se afastavam à sua passagem.
– Rogo-lhe que reconsidere, capitão – disselhe quando cruzava a porta e saía
à rua. Apertou os punhos para afugentar o medo. – Tenho que chegar ao castelo
antes de primeiro de setembro ou perderei meu trabalho.
Ele se deteve.
– Por que não reservou passagem em um ferry?
– Fiz isso. Mas perdi o barco.
Mordeu o lábio. Era o único mal hábito da infância que não havia sido capaz
de dominar. A diligência pública em que havia viajado desde Londres a havia
deixado fatigada. Mas imaginar a viagem pelo mar era muito pior. Durante as
duas últimas décadas, seus pesadelos estavam povoados por águas revoltas,
relâmpagos e muros de chamas. Havia aguardado em uma esquina do bar da
pousada, esforçando-se para controlar seus tremores, até que anunciaram a saída
de seu barco. Obrigou-se a se pôr em pé e a sair desesperada para averiguar
quem era de uma vez por todas.
E então foi quando encontrou os meninos no jardim da pousada.
– Tive que me ocupar de um assunto importante – respondeu-lhe de forma
evasiva.
As luzes das lamparinas projetavam sombras instáveis no rosto do capitão.
Provavelmente, tinha um rosto muito atraente antes que essa cicatriz o
desfigurasse, com um queixo sólido ensombrecido pela barba incipiente,
costeletas e um único olho verde sob uma fileira de espessos cílios. Seu cabelo
negro lhe acariciava o pescoço e se encaracolava por cima do lenço que levava
preso à cabeça.
– Um assunto mais importante que seu novo trabalho num castelo?
Não acreditava nela.
– Já que pergunta, – disselhe com cautela – antes de partir para a França
tenho que levar três meninos para seu pai.
Fitou-a surpreendido.
– Meninos.
– Sim. – Voltou-se e fez um gesto em direção ao beiral da taverna. Debaixo
havia três pequenos corpos que o observavam com nervosismo encolhidos
contra a parede. – Seu pai os espera do outro lada da cidade. Enquanto tentava
me pôr em contanto com ele, meu barco partiu sem mim – levando sua
bagagem, outro problema em que não podia pensar até que não resolvesse sua
primeira dificuldade. Mas as crueldades cotidianas do orfanato lhe haviam
ensinado a ter recursos, e, trabalhando para debutantes mimadas, havia
aprendido a ser resistente. Estava segura de que o conseguiria.
– Sinto-me aliviado. – O capitão Andrew apertou com força a aba de seu
chapéu e todos os tendões de sua mão ficaram marcados. – Sinto-me aliviado de
saber que cuida de sua progenitura, apesar de abandoná-los.
– Não me entendeu bem, capitão – disse por cima da trepidação de uma
carruagem que passava pela rua. Obrigou-se a falar com a mesma tranquilidade
com que o faria se estivesse sentada em uma elegante casa de Grosvenor Square
recomendando a musselina branca em lugar da seda rosa. – Não são meus
filhos. Encontrei-os no jardim de minha pousada. Sua mãe os abandonou e eu
me ofereci para ajudá-los a encontrar seu pai.
Então o capitão se voltou para os meninos. O sol poente refletiu sobre seus
amplos ombros e projetou reflexos dourados em seu cabelo. Era um homem
desalinhado e volumoso. Não podia dizer que fosse atraente de uma forma
comum, mas desprendia uma beleza áspera e estranhamente fabulosa. Seu olhar
sombrio a fazia se sentir diferente por dentro. Pouco sólida.
Separou os lábios, mas não disse nada, e por um momento pareceu
vulnerável.
Ela inclinou de lado a cabeça e esboçou um pequeno sorriso.
– Posso ver que o surpreendi, capitão. É evidente que agora terá que
reformular as coisas. E enquanto o faz, espero que reconsidere a probabilidade
de que eu possa ser mãe de um menino de doze anos. – Fez uma pausa. – Em
nome de minha vaidade.
O capitão sorriu. Desenhou-se uma simples curva na boca que fazia um bom
efeito em um homem adulto com um par de lábios masculinos devastadores.
– Fui grosseiro. – Cruzou os braços e apoiou o ombro contra o batente da
porta. – Peço desculpas, senhora.
– Embora pelo visto sem nenhuma sinceridade. Rogo-lhe, capitão, me levará
a Saint-Nazaire?
O sorriso desapareceu, coisa que destacou ainda mais a cicatriz que tinha na
bochecha direita. Parecia uma ferida recente. Já fazia um ano e meio que a
guerra havia acabado, mas ele tinha o porte e a atitude autoritária de um
comandante naval.
Não lhe importava que fosse a maior autoridade da Marinha ou que seu
barco fosse uma nau com cem canhões da frota, desde que a levasse o quanto
antes a seu destino.
– Como encontrou a casa de seu pai? – Perguntou.
– Perguntei. Posso ser muito insistente quando me interesso.
– Estou começando a me dar conta. – Separou-se da porta e começou a
caminhar pela rua. – Pode vir.
– Sim?
A jovem fez um sinal aos meninos e se apressou atrás dele.
Fitou-a enquanto tentava seguir suas compridas passadas, e se deteve no
meio da rua. Não parecia lhe importar a passagem de cavalos e outros pedestres,
e ficou diante dela como se toda a avenida lhe pertencesse. O olho brilhava um
pouco. A jovem supôs que seria um reflexo da luz do sol. Era uma imagem
estranha. Parecia estar no comando e confuso ao mesmo tempo.
Apontou um edifício que havia do outro lado da rua.
– Diga meu nome ao sujeito que encontrará do outro lado dessa porta.
Explique que eu lhe ordenei que a acompanhe à casa dos meninos e que a traga
de volta para sua pousada esta noite.
– Mas… não. – Arabella pegou a saia com as mãos frias. – Não é necessário.
Quero dizer que…
– É um bom homem. Trabalha para mim, e tanto você como os meninos
estarão muito mais seguros cruzando esta cidade em sua companhia. – Voltou a
franzir o cenho. – Se não fizer o que lhe digo, senhorita Caulfield, não a levarei a
Saint-Nazaire em meu barco.
Seu coração se sobressaltou.
– Me levará até lá?
Em seu barco. Pelo mar.
Arabella pensou que devia fazer isso.
O capitão lhe observou a cara e os ombros.
– Vai para a casa de quem, pequena preceptora?
Já não estava debochando. Tinha que ser sincera.
– Vou para Saint-Reveé-des-Beaux. Pertence a um lorde inglês, mas o
príncipe de Sensaire vive ali e me contratou para que dê aulas a sua filha antes
que faça seu debut na sociedade londrinense neste Natal.
– Saint-Revée-des-Beaux – repetiu.
– Conheceo, capitão?
– Um pouco. – Franziu o cenho. – Senhorita Caulfield…
– Sim, capitão?
– Meu barco não é uma embarcação de passageiros. Não terá mais mulheres,
nem boas refeições nem outros entretenimentos. Uma vez a bordo, estará a
minha mercê. Compreende o que digo?
– Eu…
Como tanta gente o havia recomendado, não havia pensado nisso. Havia sido
uma ingênua e deu por sentado que seria um cavalheiro. Mas não era a primeira
vez que um cavalheiro mentia.
– Não tinha escolha.
– Compreendo.
– Zarparemos na aurora. Com ou sem você.
Afastou-se e Arabella deixou escapar um suspiro trêmulo. Esforçou-se para
esboçar um sorriso alegre, deu meia volta e indicou aos meninos que se
aproximassem.
Capítulo 2
O mar
O senhor Miles, o ajudante de camarote do capitão, era uma pessoazinha
arrumada que vestia uma gravata engomada, lapelas de veludo e sapatos com
salto alto. Quando saudou Arabella ao subir a bordo do Retribution, observou
seu vestido como se fosse feito de tecido de saco.
– Não tem bagagem, senhora?
– Meu baú de viagem partiu para Saint-Malo sem mim. Terei que comprar
roupa nova em Saint-Nazaire.
Com um dinheiro que não tinha. Uma vez que tivesse pago ao capitão
Andrew, lhe restariam uma libra e três xelins no bolso, o suficiente para alugar
uma carruagem que a levaria até o castelo. Chegaria com a roupa enrugada e
suja, mas chegaria a tempo.
– A dama é uma preciosidade, senhor Miles. – O dia era cinza e fresco, mas o
sorriso do escocês que se aproximou era amplo e as pregas da pele se enrugaram
ao redor dos olhos. – Gavin Stewart a seu serviço, senhorita Caulfield. Sou o
médico do barco e às vezes capelão, embora seja de credo romano.
– Senhor? – Disse sem compreender o significado do que dizia.
– Padre – corrigiu-a o senhor Miles apertando o alto do nariz. Logo deu meia
volta e avançou pelo convés fazendo repicar seus sapatos e serpenteando por
entre as dezenas de marinheiros que estavam preparando o barco para zarpar.
– Sim, mocinha. Meu pai francês lutou contra os presbiterianos, sabe? Assim
então, nos deu uma educação católica. Mas nunca me importei, e menos ainda
quando há uma moça bonita por perto.
Piscou-lhe o olho.
Ela sorriu.
– Suponho que não costumam levar mulheres a bordo, não?
– Nunca.
Aquela resposta levou toda sua diversão.
– Nunca?
– Nem uma, mocinha. A senhorita deve ser muito persuasiva. – Ofereceu-lhe
o braço. – Permita-me que a acompanhe a seus aposentos. Temos uma semana
de viagem pela frente, no mínimo, e costuma chover. Certamente quererá estar
acomodada até então.
– Chuva?
Deu-lhe umas palmadinhas na mão que tinha apoiada em seu braço.
– Não se preocupe, mocinha. Este é um barco muito forte.
Provavelmente sua mãe pensou o mesmo do barco ao que subiu suas filhas
com destino à Inglaterra.
Arabella cruzou o convés afastando a cara do mar aberto que se estendia ante
o movimentado porto, e se controlou para não se agarrar ao braço do doutor
Stewart como uma menina assustada. Quanto mais se afastava da prancha de
desembarque, mais seu estômago se encolhia.
Os demais tripulantes pareciam tranquilos e ativos. Havia um garoto apoiado
na cabine talhando um pau. Os demais estavam ocupados com cordas, pranchas
e velas; a maioria estava manejando um enorme aparelho que parecia uma polia
para subir a bordo os barris que aguardavam no cais. Cantavam uma canção que
guiava o ritmo de seus pés. Estavam todos tão morenos como o doutor Stewart
e sua vestimenta era muito simples, e todos pareciam rufiões, faltavam-lhes
dentes e tinham costeletas descuidadas. Mas trabalhavam com velocidade
enquanto a brisa que soprava do canal agitava as cordas e as velas. Todos lhe
lançavam olhares rápidos e alguns levavam a mão à aba do chapéu para saudá-la
antes de voltar às suas tarefas. O único que não o fez foi um jovem que em
nenhum momento afastou a atenção da pilha de lonas que costurava com mãos
ossudas.
O doutor Stewart a fez descer por uma escada empinada até o convés onde
havia enormes canhões alinhados: silenciosos guerreiros preparados. Em uma
das extremidades se estendia um corredor estreito que conduzia a pequenos
cômodos com porta de cortina em ambos lados, e a uma porta justamente em
frente.
O senhor Miles abriu a porta.
– Capitão, sua convidada – disse com afetação.
O capitão Andrew estava sentado em uma escrivaninha com o ombro
esquerdo junto a uma janela, a cabeça apoiada na mão e os dedos enterrados no
cabelo. Tinha uma pluma na outra mão, e sobre a mesa aguardavam um tinteiro
e um livro para anotar a contabilidade aberta nas primeiras páginas. O cheiro de
charuto e sal se misturava com os móveis decididamente masculinos: uma mesa,
cadeiras e uma única poltrona. Além da espada pendurada na parede e de uma
espécie de mecanismo de latão, só havia dois quadros em todo o camarote. Em
um se via um barco com a bandeira inglesa, e o outro era um retrato em carvão
em que se via um menino em um canto de um local escuro.
Voltou-se para fitá-la por cima do ombro. As costeletas lhe ensombreciam
mais a mandíbula que na noite anterior.
O capitão franziu o cenho.
Ela levantou o queixo.
– Senhora. – Levantou-se e roçou a viga do teto com a cabeça. – Bom dia –
disse adotando um tom monótono.
Vestia um casaco largo com um colete e um simples lenço amarrado ao
pescoço; levava uma pistola embainhada na faixa da cintura e uma espada
atravessada.
Tinha o cabelo assanhado e uma careta aparecia no canto de sua atraente
boca.
A jovem se aproximou do leão em sua cova.
– Bom dia, capitão. – Estendeu-lhe a mão. – Aqui está a soma que concordei
em lhe pagar.
Luc olhou um momento ao moedeiro que segurava entre os dedos e depois
olhou para o senhor Miles. O ajudante se adiantou e o pegou.
A atenção do capitão voltou a pousar nela.
– Bem-vinda a bordo, senhorita…
– Caulfield.
Arderam-lhe as bochechas. “Cretino”.
– Caulfield – murmurou. – Vejo que já conhece o doutor Stewart. Pelo visto
alguns homens de minha tripulação acreditam que também é um homem
religioso.
– Ah, esse pilantras de Roma – murmurou o escocês com um sorriso.
– Sim, já o conheço – disse sentindo-se confusa e como uma completa idiota
por isso. Ela havia ceado com solteiras endinheiradas, havia vestido filhas de
barões, e havia ensinado futuras condessas a se comportar. Era uma estupidez
que se sentisse acovardada por um rude e bruto capitão mercante, mesmo que a
luz do dia enfatizasse o brilho lupino de seu olho, e parecesse de saber o que ela
estava pensando. – Ofereceu-se para me mostrar meus aposentos.
Fez um gesto em direção a uma porta que tinha à sua direita.
– Por favor.
O senhor Miles se adiantou a toda pressa fazendo bater seus calcanhares pelo
convés, e lhe abriu a porta. O camarote que havia dentro era estreito e se
inclinava em um dos lados devido à curvatura do barco. Os únicos móveis que
havia eram um catre comprido com as extremidades de madeira embutidas na
parede, uma prateleira pequena e quatro cabides.
– É de seu gosto, senhorita Caulfield? – Disse o capitão.
– Mas… é seu dormitório?
– Era. – Esboçou um lento sorriso e seu olho verde esmeralda brilhou
travesso. – Agora que você pagou por ele, é seu.
Deixou resvalar o olhar até seus lábios.
– Mas…
– Já lhe disse que este não era um barco de passageiros, senhorita Caulfield.
Há poucos catres a bordo, e o colchão de meu camarote é o mais cômodo dos
poucos que temos. Não acha, Miles? – Disse sem deixar de fitá-la.
– Absolutamente, capitão – disse o Napoleão inglês.
O doutor Stewart riu.
Estavam se divertindo.
– Não posso… – Havia sido obrigada a aceitar muitas humilhações como
servente, mas aquilo era escandaloso. – Refiro-me a que não seria correto que…
O capitão Andrew elevou as sobrancelhas.
– Não posso privá-la de seu descanso, capitão – disse com firmeza.
– Não se preocupe, mocinha. Dormirá muito bem com a senhorita em sua
cama.
O doutor Stewart não podia se referir ao que ela estava imaginando. Era um
sacerdote, pelo amor de Deus.
O capitão lhe lançou um estranho olhar.
– Cavalheiros, – disse – se é que se pode lhes chamar de cavalheiros, –
acrescentou entre dentes – isto é insuportável, e o sabem tão bem como eu.
O capitão Andrew riu com suavidade. Era um som maravilhoso, profundo,
quente, seguro e agradecido.
A jovem se obrigou a lhe fitar o rosto.
– Capitão?
– Temo, pequena preceptora, que não posso lhe oferecer outra coisa que não
seja uma rede no convés dos canhões junto ao resto da tripulação, ou um catre
de palha com as cabras e as ovelhas que levamos abaixo. Prefere uma dessas
duas opções?
– Está claro que não.
– Ficará em meu camarote, mocinha – disse o doutor Stewart, e saiu em
direção à porta. – A cama não é muito macia e não tem porta. Mas terá a
privacidade de que uma dama necessita.
A jovem deixou escapar um suspiro e passou junto ao capitão para segui-lo.
O doutor Stewart negou com a cabeça.
– Já lhe avisei de que não o aceitaria, garoto. Algumas mulheres não aceitam
brincadeiras.
– Assim parece – disse o capitão em voz baixa.
Ela olhou para trás. Luc já não sorria, mas a fitava com a mesma intensidade
com que o fez por um momento quando estavam na rua na noite anterior, como
se não só pudesse adivinhar seus pensamentos, como também seus medos.
Como se fosse um lobo e ela uma ovelha.
O barco zarpou sem nenhuma fanfarra e se separou do cais com um balanço
repentino que afrouxou as pernas de Arabella e a deixou tremendo. O doutor
Stewart a convidou ao convés principal para que pudesse ver como zarpavam.
Ela rechaçou o convite e ficou sentada em seu catre emprestado, agarrando-se a
ambas traves com os olhos fechados, e pensando em suas irmãs: via o brilhante
sorriso de Ravenna e como Eleanor lhe passava o braço por cima do ombro.
Tinha o coração acelerado. As mãos que estavam apoiadas nas traves de madeira
começaram a suar.
Abriu os olhos e estendeu a mão para a janela. Abriu-a. O mar se estendia
ante ela em ondulantes ondas de branco e cinza.
Fechou a janela basculante de um golpe.
Na estante diminuta que estava presa à parede junto ao catre, havia várias
dezenas de livros bem conservados. Pegou o que estava mais próximo, abriu-o e
leu.
Quando o senhor Miles apareceu junto à cortina com sua ceia, tinha o
estômago muito embrulhado para aceitar a comida.
Ao final, acabou dormindo agitada e sonhou com tormentas. Despertou
escutando o constante golpear da chuva sobre o teto. O senhor Miles lhe trouxe
o desjejum. Mas ela o deixou intacto.
O segundo dia que passou no mar foi igualmente aborrecido e igualmente
extenuante. Estava muito nervosa, tinha a pele pegajosa e o estômago
embrulhado. Necessitava de uma distração. Mas não em forma do capitão
selvagem, cuja voz grave e passo decidido escutava de vez em quando através da
parede que seus camarotes compartilhavam.
Arabella não estava acostumada à falta de atividade. Na terceira manhã que
passou a bordo, aventurou-se a sair do camarote do doutor para estirar as
pernas, e procurou um esconderijo onde não pudesse ver nem o capitão nem a
água que a rodeava por todos os lados.
Entretanto, um navio mercante com sessenta e cinco canhões a bordo, apesar
de ser consideravelmente maior do que as casas de Londres nas que havia
trabalhado, era um total desafio na hora de encontrar lugares onde uma mulher
pudesse passear sem que ninguém a percebesse. Depois de se agachar entre dois
barris e se esconder detrás dos canhões para evitar o capitão, encontrou um
aliado. O garoto da cabine a esteve seguindo enquanto explorava os cantos do
navio.
– Se está buscando algum lugar para descansar, senhora, – disselhe – gostará
da cabine do doutor. É quente e seca, embora por estar na proa balance muito
quando há tormenta.
Acompanhou-a até a enfermaria, ficou atrás dela na porta e colocou o gorro.
– Não vai me seguir como tem feito toda a manhã?
O garoto negou com a cabeça.
-Não, senhora. Se não se importa, tirarei um cochilo enquanto está com o
doutor.
– Claro que não. – Riu. – Mas diga-me como se chama para que possa lhe
desejar felizes sonhos.
– Joshua, senhora.
– Felizes sonhos, Joshua.
O doutor Stewart a recebeu e ela se sentou numa poltrona da enfermaria com
um livro no colo. Arabella não era tão erudita como Eleanor, e quando o
estômago não se revolvia, os livros do doutor sobre os tratamentos das doenças
de bordo lhe davam muito sono. Entretanto, esse dia havia encontrado outro
tipo de livro da cabine do capitão, enquanto o senhor Miles lhe servia o
desjejum, um livro um pouco estranho para que o tivesse um homem como ele.
O doutor Stewart havia colocado um enorme baú de madeira sobre a mesa
em que examinava seus pacientes, e estava tirando garrafas de pós e líquidos,
fazendo anotações em um caderno e voltando a colocar as garrafas no baú.
– Não pode estar confortável aqui, mocinha – disselhe. – Este não é o lugar
para que uma dama descanse. Permita-me que peça aos rapazes que lhe instalem
um toldo acima; ali há mais luz e poderá tomar um pouco de ar fresco.
A poltrona de madeira era uma tortura, mas era preferível a ver o mar.
– Na realidade, estou bastante confortável aqui. – Voltou a página do guia de
Debret sobre boas maneiras. – Estou bastante bem.
– Sim, já o vejo.
Sorriu enquanto metia uma garrafa em seu lugar correspondente dentro do
baú.
A jovem se inclinou sobre o livro. Todas as pessoas que a haviam contratado
tinham uma cópia, por isso já havia memorizado cada página. Fechou-o e o
apoiou em seu colo.
– O que tem em sua caixa de remédios?
– O tipo de remédios que se podem necessitar no mar.
– Dei-me conta que duas dessas garrafas tem caveiras e ossos cruzados nas
etiquetas. – “Muito adequando para um capitão pirata”, pensou, sentindo-se
ridícula por ter acreditado que o capitão era um pirata. Mas isso era ridículo. –
Para que necessita de veneno?
– Quando se toma em pequenas doses, o arsênico ajuda a acalmar os nervos.
Mas é para os ratos. É um veneno muito potente.
– Então será melhor que ponha uma fechadura nesse baú. – Voltou a abrir o
livro. – Com um capitão como o seu, é melhor não dar muitas oportunidades de
motim aos passageiros, não acha?
O médico riu. As garrafas tilintaram.
– Ele a intriga, não?
Levantou a cabeça.
– O quê?
Um brilho compreensivo iluminou os olhos do doutor.
– Não seria a primeira, mocinha.
– Doutor?
Havia um marinheiro na porta. Um jovem que não podia ter mais de
dezessete anos segurava o gorro que tinha entre as mãos. Era o marinheiro que
não a tinha fitado quando chegou, nem tampouco o havia feito desde então.
Inclusive evitava seu olhar nesse momento. Tinha o cabelo muito sujo, as
bochechas ossudas e as mãos cobertas de pele morena.
– O que quer, mocinho?
O médico se aproximou dele.
Os olhos afundados do jovem pousaram sobre a caixa de remédios.
– Um dente me dói muito, doutor.
Tinha sotaque inglês, da Cornualha, o mesmo sotaque que o reverendo
Caulfield havia tirado de Arabella depois de passar quatro anos no orfanato.
Repreendeu-a dizendo que uma jovem dama não pode falar como um
camponês. Mas não era um homem duro por natureza, só se irritava quando se
comportava mal. Mas só a repreendia a ela. Para ele a doce e estudiosa Eleanor
nunca fazia nada mal. E como Ravenna sempre andava nos estábulos ou no
bosque, raramente reparava nela. A cabeleira feroz e a cara bonita de Arabella
era a única coisa que o fazia zangar-se.
– Poderia me dar algum remédio? – Pediu o jovem marinheiro ao doutor.
– Talvez tenhamos que retirá-lo, rapazinho.
O marinheiro apertou o gorro na cara.
– Não, senhor. Minha mãe me disse que é melhor voltar para casa com todos
os dentes.
– Com o perdão de sua mãe, rapazinho, se dói terá que tirar ou perderá todo
o osso.
O jovem negou com a cabeça. Deu uma última olhada à caixa de remédios e
desapareceu.
O doutor Stewart encolheu os ombros.
– Alguns não sabem o que melhor lhes convém. – Lançou-lhe um olhar
cúmplice. – Tanto os marinheiros como as preceptoras obstinadas.
Mas Arabella não tinha tempo para suas brincadeiras. Aquele jovem
marinheiro não tinha dor de dente. Havia adivinhado graças ao sexto sentido
que tinha para as pessoas e que a fazia ser tão boa em seu trabalho. Queria algo
que havia dentro da caixa de remédios do doutor Stewart. Algo que não podia
pedir. Havia mentido.
O barco rugiu balançado pelas ondas do mar e Arabella ofegou. O colchão
era uma prancha. Tombada sobre ele, sentia cada balanço da nave, cada onda,
cada volta. Deveria ter aceitado a rede que lhe ofereceram. Os homens da
tripulação dormiam muito bem apesar do mal tempo, enquanto que ela levava já
quatro noites quase sem fechar o olho.
Não havia voltado ao convés principal desde que embarcara, e só havia visto
o capitão de longe. Era o suficiente. O oceano a aterrorizava e o capitão era alto,
imprevisível e desarrumado, e ela só necessitava de seu barco, não de suas
brincadeiras e desse intenso escrutínio que a fazia pensar nele quando não estava
preocupada pelo contínuo balanço que só parecia incomodar a ela e a mais
ninguém.
Em lugar de pensar nele, deveria estar pensando na família real para a qual se
dirigia. Deveria estar fazendo planos para o debut da princesa Jacqueline na
sociedade de Londres. Teria que se concentrar em como chamar a atenção do
príncipe apesar de sua condição de serviçal.
O barco se inclinou e ela se agarrou à borda da cama. O vento ululava. As
paredes rangiam como se fossem se quebrar.
Fechou os olhos com força. Estava exausta. Mas tinha que aguentar. Estava a
um mundo de distância das comodidades. Mas, com sorte, em breve todos os
açoites, as repreensões e as apalpadelas, e mesmo aquele balanço do barco,
seriam pálidas recordações de um passado distante.
Então levaria suas irmãs consigo para que vivessem em sua vida de conto de
fadas. Eleanor poderia deixar de traduzir textos para o reverendo à luz fedorenta
das velas de sebo, e Ravenna poderia montar seu próprio estábulo, um canil ou
até estudar medicina, se assim o desejasse. Voltariam a estar juntas.
Sentia saudades delas. Sentia falta do afeto que compartilhavam, os segredos,
as confidências e os abraços. Havia vivido muito tempo entre desconhecidos e
sempre acabava conhecendo a fundo as mulheres pouco mais jovens que ela
para apresentá-las ao mundo como noivas, para depois ir embora e
desempenhar uma nova tarefa, outra debutante, outro êxito.
Tinha medo de que nunca viesse a oportunidade dela e temia estar
perseguindo um fantasma. Um príncipe teria que estar louco para olhar duas
vezes para uma preceptora. Sua viagem a Saint-Reveé-des-Beaux só a afastaria
mais de sua família. Estaria só em um mundo estrangeiro e passaria o resto de
sua vida vivendo entre pessoas que lhe pagariam em troca de seus
conhecimentos.
E nunca saberia quem era de verdade.
Deu meia volta, mas sua saia se enroscou na manta. Como o camarote não
tinha porta, tinha medo de desnudar-se para dormir. Seu vestido estava um
desastre. O senhor Miles havia se oferecido para passá-lo, mas não tinha nada
para pôr enquanto o fizesse. E tampouco tinha algo que vestir para conhecer o
seu príncipe. Era inútil.
Não. Estava se deixando dominar pelo medo e o cansaço. Não aceitaria a
derrota.
Sentiu-se bem desperta, golpeou a cabeça na cabeceira da cama e gemeu.
Aquilo era insuportável. Não havia suportado anos de açoites, repreensões e
apalpadelas para se render frente ao medo e as dúvidas, e menos ainda nesse
momento, quando já estava tão próxima de seu objetivo.
Engatinhou pela madeira da cama e ficou imóvel naquele incômodo espaço,
preparando-se para um novo balanço do barco. Logo se cobriu bem com a capa
e afastou a porta de cortina.
Estava tudo calmo. A porta do camarote do capitão estava fechada. Na outra
direção, os marinheiros descansavam em redes penduradas entre os enormes
canhões. Só havia uma lanterna acesa junto à escada mais próxima que projetava
um brilho vacilante. Mas o ar trazia algumas gotas de chuva.
Já fazia três dias seguidos que chovia. Supunha que não haveria muitos
marinheiros acima. O doutor Stewart havia dito que não havia risco de
tormenta. E ela necessitava de um pouco de atividade.
Mais ainda, necessitava ser valente.
Cambaleou até as escadas agarrando-se com força às colunas e aos canhões, e
se segurou no corrimão. As gotas de chuva aterrissaram sobre seu punho, mas
apoiou um pé sobre o brilhante degrau e logo no seguinte.
Subiu a escada estreita com o coração encolhido enquanto o vento lhe
açoitava o capuz e a saia.
No convés havia várias poças e o céu era uma espessa massa de escuridão de
onde caía uma constante e suave ducha. O mastreamento tamborilava sacudido
pelo vento. Havia dois marinheiros na proa, iluminada ao longe por dois
brilhantes faróis. Arabella se agarrou ao corrimão com as duas mãos e se
obrigou a fitar as velas. Só haviam aberto meia dúzia, e estavam inchadas pelo
vento.
Percorreu-a um estranho redemoinho de calma.
Afastou uma das mãos do corrimão.
Inspirou fundo muito devagar e sentiu a solidez de seus pés. O barco se
mexeu. Flexionou os joelhos.
Podia fazê-lo.
Afrouxou a outra mão e se soltou.
Não saiu voando e nada a lançou do convés para o mar. Sentia-se leve, tonta,
quase sem gravidade. Voltou a olhar para cima e a chuva lhe salpicou as
bochechas.
Inspirou de novo e deu outro passo. Logo outro. E outro. Não fitou a
escuridão da água que se estendia do outro lado do corrimão, só olhava seus
pés, o trio de barris que tinha ao lado, uma linha que se estendia do corrimão até
à vela, qualquer coisa menos ao mar.
Finalmente alcançou o corrimão principal que rodeava todo o convés. Seus
dedos se curvaram ao seu redor. Era sólido e tranquilizador. Fitou a escuridão.
O Atlântico agitava suas ondas espumosas sob um céu sem estrelas. As
únicas luzes que iluminavam a superfície do mar eram os faróis que havia em
ambas extremidades do barco.
Ficou olhando fixamente sem soltar o corrimão. Há muitos anos, aquele
mesmo oceano havia engolido todos os passageiros que viajavam a bordo de um
barco que sulcava os mares do Caribe à Inglaterra, todos, exceto três meninas
pequenas. Os habitantes da Cornualha disseram que era um milagre. Deus as
havia salvado.
Mas a Deus não havia parecido oportuno salvar sua babá. E seus nomes não
significavam nada para aquela gente, nem tampouco para o distante advogado
de Londres que os conselheiros do povoado contrataram com hesitação para
que encontrasse seu pai. E assim foi como, arrancadas dos horrores do mar, as
três pequenas beneficiárias do milagre acabaram num orfanato onde aprenderam
outro tipo de horrores.
As águas escuras se agitaram. As mãos de Arabella eram puro gelo sobre o
corrimão.
Tinha que dominar a situação. Devia fazê-lo.
Inspirou uma bocada de ar fresco. Depois de ter passado tanto tempo
fechada abaixo, era como estar no céu.
As gotas de chuva aterrissavam em seu capuz e sobre seus ombros. Tinha as
mangas do vestido molhadas e agarradas aos braços. Estremeceu. Mas estava
reta e se sustentava com bastante estabilidade no convés do barco. Ainda não
podia descer. Não até que tivesse vencido todos os seus pesadelos.
Afastou uma mão do corrimão e depois separou a outra da segurança.
Parou de respirar. O pânico se apoderou dela. O convés parecia girar sob
seus pés.
Agarrou-se ao corrimão.
– Não é boa ideia se molhar quando se está em alto mar, senhorita Caulfield
– rugiu a profunda voz do capitão por cima de seu ombro. – Se o sol não sair,
poderia continuar molhada por várias semanas.
Deu meia volta agarrando-se com força ao corrimão com as duas mãos.
Tinha uma postura robusta e o rosto escurecido pela chuva. Vestia um
sobretudo que lhe chegava nas panturrilhas e sua presença projetava uma
silhueta austera recortada pela luz procedente da parte frontal do barco. Na
escuridão parecia mais corpulento que antes, e mais poderoso, perigoso e…
fabuloso.
Era ridículo que pensasse essas coisas. Só era um homem. Mas ela tinha a
cabeça perturbada e ele parecia muito sólido e forte.
– Não havia pensado nisso – admitiu.
– Assim parece. – Parecia observá-la. – Devolveu os meninos a seu pai?
Ela ficou olhando-o.
– Os meninos?
– Em Plymouth. Suponho que se lembre que perdeu o barco por culpa dos
três meninos, não é?
– Claro. – Mas lhe parecia surpreendente que ele também o recordasse. –
Não seja bobo.
Luc fez uma careta que lhe marcou a bochecha ferida e o gesto lhe
ensombreceu ainda mais a cara.
– Tem uma língua muito ágil para ser uma pessoa com tanta necessidade de
ajuda, senhorita Caulfield.
– Sim, a servidão não me ensinou a ser dócil. – O mar aberto trovejou a suas
costas como se fosse um buraco que pudesse engoli-la se inclinasse seu corpo só
um pouco para fora. – Mas seria uma tolice comportar-me de outra forma
diante de um homem que, além de ter debochado de mim, teve a coragem de
me ameaçar.
– Eu a ameacei?
– Sim se me recordo, cumprirá sua ameaça? – Esboçou um pequeno sorriso.
– Capitão Andrew, todos os integrantes de sua tripulação são bons homens?
Preocupava-se com a mentira que aquele jovem havia dito ao doutor na
enfermaria.
Seu olho brilhou na escuridão prateada.
– Acaso esperava o contrário, senhora?
– Não sei. Não sei nada sobre a tripulação deste barco. Nem sobre seu
capitão.
Deu um passo para ela.
– Todos os homens de minha tripulação são bons homens, senhorita
Caulfield. Os melhores, tendo em conta sua posição. – Pousou toda sua atenção
sobre a boca da jovem. – Suspeito que têm muito melhor caráter que eu.
Não deveria ter saído. Por mais medos que tivesse por superar, não deveria
ter permitido esse encontro com ele. Soube-o desde o momento em que ele a
tocou na taverna.
Obrigou-se a fitar-lhe a cicatriz diretamente. Observou o corte franzido, o
furioso tom avermelhado sobre o bronzeado de sua pele e o pedaço de tecido
que lhe cobria o olho. Pensou que sentiria um calafrio de repulsa. Porém não
sentiu. O corpo do capitão, tão próximo do seu, parecia irradiar uma força e
uma vitalidade que não correspondiam ao desorientado desejo que se refletia em
seu olhar cada vez que ele lhe fitava os lábios.
Arabella não era alheia à luxúria dos homens. Conhecia-a muito mais do que
gostaria. E sabia que aquele homem já não brincava.
Capítulo 3
Conhaque
– Vai se lançar sobre mim em pleno convés, capitão? Ou poderá esperar o
suficiente até me arrastar pelo cabelo até seu camarote? Não me diga que é o
tipo de homem capaz de carregar uma mulher sobre o ombro. – Provocou-o
com seus brilhantes olhos. Depois passeou o olhar pelos ombros de Luc. –
Embora suponha que não lhe custará muito esforço.
Nunca teve que se esforçar muito para conseguir os favores de uma dama.
Ele era Lucien Andrew Rallis Westfall, comandante condecorado da Marinha
Real de Sua Majestade, capitão de um invejável barco, para não mencionar que
era proprietário de uma linda propriedade na França, e um homem que estava a
poucos passos de obter um ducado inglês. As mulheres lhe suplicavam que se
deitasse com elas e que as esposasse.
– De preceptora a mulher perdida em só cinco dias.
Esforçou-se para não mover os pés nem as mãos. Ela apertava o capuz da
capa contra as bochechas. Queria ver-lhe toda a cara, afastar a lã e o linho e
tocar sua pele perfeita. Passara cinco dias sonhando com isso.
Havia-a evitado precisamente por esse motivo.
– Não esperava isto de você, senhorita Caulfield – disse.
– Então é muito mais tonto do que pensava, capitão.
– Desafiei homens por insultos mais suaves que esse.
– E o que será, espadas ou pistolas? Não sei utilizar nenhuma das duas coisas,
então pode escolher a que mais lhe agrade.
Percorreu-o uma pontada de diversão e de sensatez. Mas a chuva brilhava
nos olhos da jovem e projetava sombras sutis em sua pele, estava muito
encantadora para que ele se conformasse com a sensatez.
Um homem pode mentir de modo muito convincente se pratica essa arte
com frequência.
Não falava por bravatear, mas com calidez, e com a língua mais clara e afiada
que tinha escutado em uma mulher tão jovem.
– Sabe que…? – Inclinou a cabeça com a esperança de perceber seu cheiro de
rosas e lavanda na brisa. – Há vários dias tento recordar-me a quem a senhorita
me lembra e acabo de descobrir.
– Ah, sim?
Os olhos azuis se abriram em um gesto de pura surpresa.
– Quando era jovem, via a duquesa de Hammershire. Era uma velha bruxa,
com a língua muito ferina, um sublime ar de segurança e uma completa
indiferença pelo efeito que pudesse causar aos demais.
Suas pestanas subiram e baixaram uma vez. Os nós de seus dedos ficaram
brancos sobre o corrimão. Suas palavras a haviam desconcertado. Bom. Quanto
mais a desestabilizava, melhor. Assim estariam em igualdade de condições.
– Não sou indiferente ao efeito que possa causar nos demais – disse.
Ele riu e ela abriu muito os olhos.
– Então admite ter a língua ferina e uma segurança sublime, não é, minha
pequena duquesa?
A jovem estremeceu
– Eu não sou sua pequena coisa nenhuma.
Deixou resvalar o olhar até seus lábios, que haviam abandonado a cor de
morangos para tingir-se de azul. Os calafrios que tinha não eram de medo.
– Está gelada.
– É a única forma que tenho de dissuadi-lo. Lembre-se que estou em suas
mãos.
Voltou a estremecer.
– Não disse que era fria. Disse que está gelada. A chuva penetrou em sua
roupa?
– Eu… – Seu corpo tremeu por baixo da capa encharcada. – Isso não é de
sua incumbência.
– Mulher, eu não tenho paciência como os tontos. Há quanto tempo está
aqui encima?
– Eu…
Franziu seu delicado cenho, os dentes batiam um no outro.
– Meia hora, capitão – disse a voz do garoto da cabine junto a eles. – Esteve
aqui encima quieta como uma estátua enquanto ficava empapada.
– Obrigada, Joshua. O que está fazendo aqui encima a estas horas da noite?
– Vigiando a senhorita como o senhor pediu, capitão.
Os olhos azuis lançaram um olhar confuso a Luc.
“Estava explorando a inocente ignorância de um garotinho?”
– Meu avô pegou um resfriado e bateu as botas na cama da minha avó – disse
o garoto, e abriu sua pequena boca. – A senhorita também vai bater as botas,
Capitão?
– Não creio que ela permita nada semelhante, Josh.
– Não deveria…
Suas palavras terminaram com um intenso calafrio.
– Joshua, vá em busca do doutor Stewart. Peça-lhe que venha até o meu
camarote.
– Sim, capitão.
O garoto saiu correndo.
– De verdade, capitão, não deveria…
– Não deveria dizer nem uma só palavra mais até que eu lhe dê permissão. –
A segurou pelo cotovelo por cima do tecido da capa. Agarrou-a com força e
segurança. – Agora me permita que a acompanhe até abaixo, senhora.
Ela resistiu, depois soltou o corrimão e deixou que a acompanhasse até a
escada.
Joshua se reuniu com ele embaixo.
– Custou-me um pouco encontrá-lo devido ao tamanho grande do barco,
capitão. Mas o doutor já vem a caminho.
– Perfeito. – Passaram por entre os marinheiros dormindo e chegaram aos
camarotes. – A senhora já está em boas mãos, Joshua – disse com um suave
sussurro. – Já pode ir para a cama.
– Mas, capitão…
– Se amanhã quiser voltar a estar com o timoneiro no comando e o ajudar
com o timão, se deitará em sua rede agora mesmo e dormirá imediatamente.
Não. Não quero ouvir nem mais uma palavra. Vá.
O garoto desapareceu na escuridão do convés.
– Venha, pequena duquesa, siga-me.
Abriu a porta de seu camarote.
Arabella teve outro calafrio e seus dentes começaram a bater.
– C-Chama-me du-duquesa, mas fala com m-mais respeito a Joshua –
murmurou.
– Ele elogiou meu barco.
– Se eu e-elogiar o ma-maravilhoso tamanho de seu… barco, também me
falaria com respeito?
– Mulher de pouco valor. Como pode me insultar com tal falta de delicadeza,
apesar de estar encharcada e congelada? É verdadeiramente extraordinário.
Sentou-a em uma poltrona.
Ela rodeou o corpo com os braços e fechou os olhos sentindo como um
novo calafrio a percorria.
– N-não pretendia ser po-pouco delicada.
– É possível. No momento guardarei minha opinião.
Colocou-lhe uma manta sobre as costas. Arabella abriu os olhos, mas como
estava agachado só lhe via os pés, – que estavam muito bem calçados e fechados
com fivelas de prata – e sob as calças, cuja barra estava confeccionada com
tecido de muito boa qualidade.
– Está ce-certo de que não é um co-contrabandista?
– Bem certo. Acaso há algo no chão que sugira que eu o sou?
– A qualidade de suas calças e sapatos. Há homens que ganharam fortunas
fazendo contrabando durante a guerra con… – Um agonizante calafrio a
percorreu – contra Napoleão – concluiu com um sussurro.
– Ah, sim? Então suponho que escolhi a profissão errada. Ah, doutor
Stewart. Chegou justo a tempo de escutar todos os detalhes sobre a boa
qualidade de meu calçado. Duquesa, aqui tem o curandeiro, ele se encarregará de
averiguar o que acontece com você.
– Vá para o lado, capitão, e deixe que um homem da ciência venha ao resgate.
– Não tem po-por que me resgatar, doutor. – Arabella levantou a cabeça e
abriu os olhos, mas via manchas por todas as partes. – Estou muito be-bem.
– Já vi que está perfeitamente sã, mocinha. Mas o capitão…, bom, é um
homem duro. Certamente me fará saltar pela prancha se não lhe dou uma
olhada. – Colocou uma cadeira diante dela e se sentou. – Agora seja uma boa
garota e me dê a mão.
Ela tirou o braço da capa encharcada e ele o segurou pelo pulso com os
dedos. O capitão havia se deslocado até o outro extremo do camarote e lhes
dava as costas, mas tinha os ombros tensos e parecia a ela que estava escutando-
os. O doutor Stewart pegou seu queixo e lhe examinou os olhos. Sua forma de
tocá-la era completamente impessoal, não como a do capitão.
– Trago outra lamparina, Gavin?
A voz do capitão era rouca. Continuava de costas para eles.
– Não. Já vi o suficiente. – O doutor a soltou e lhe apoiou as palmas das
mãos nos joelhos. – Mocinha, está congelada. Tem que tirar está roupa
encharcada e tomar algo quente ou terá febre.
Arabella levou os braços ao estômago.
– Não tenho mais roupa.
– O senhor Miles encontrará algo que lhe sirva.
O capitão olhou por cima do ombro.
– O que fazia passeando pelo convés sob a chuva em plena noite, duquesa?
– N-não me chame assim.
– Não se incomode, mocinha. Quando mete uma ideia na cabeça, já não
escuta. Nunca o faz.
O capitão estava fitando-a com o cenho franzido, gesto que ensombrecia seu
rosto dramaticamente destroçado.
– O doutor tem razão. Vejamos, senhorita Caulfield, vai permitir que meu
ajudante lhe arrume roupa seca para salvá-la de um destino muito pior, ou
destruirá como uma tola o respeito que começo a sentir por sua coragem e força
no pouco tempo que faz que nos conhecemos?
“Respeitava-a?” Custava acreditar.
A jovem assentiu e rodeou a própria cintura com os braços.
O doutor Stewart deu-lhe uma palmada no ombro.
– Boa garota. – Ficou em pé. – Irei em busca do senhor Miles. Tome um gole
de whisky, e no domingo estará cantando novamente na capela.
Saiu do camarote.
O capitão se sentou na borda de sua escrivaninha ajustando os pés para se
adaptar ao balanço do barco. Cruzou os braços. Havia tirado o sobretudo e só
usava a camisa e a jaqueta. O tecido branco limpo envolvia seus ombros e seus
braços. Havia músculos por debaixo do tecido, muitos; o linho não era o
suficiente para ocultar seus contornos. Ao fitá-lo, Arabella sentiu um incômodo
calor que a percorreu por dentro. Teve a sensação de que a partia em dois e
explodia por cima do frio.
Afastou o olhar de seus músculos.
– Aposto que vai cantar na capela aos domingos, certo, duquesa?
– Eu j-já não creio em De-Deus.
– As coisas estão tão mal assim?
Não lhe respondeu. Não devia se importar com o que pensasse dela. Quanto
pior fosse a opinião que tivesse dela, menos provável seria que se preocupasse
com sua pessoa e se aproximasse com seus enormes músculos indecentes.
A porta do camarote se abriu e o ajudante do comandante entrou com um
monte de roupa sobre o braço.
– A senhora prefere vestir-se sozinha ou que a vistam? – Disse com afetação.
Arabella apertou a manta contra o corpo, levantou-se, pegou a roupa, e se
meteu no camarote do capitão com as pernas trêmulas.
Quando tirou toda a roupa com exceção da camisa interna e envolveu o
cabelo com o pano seco que havia na pilha de roupa, sentiu-se impotente. Mas
não foi capaz de pôr aquela roupa de marinheiro. Deixou-a dobrada, envolveu-
se bem com a manta, e regressou à cabine.
O senhor Miles a recebeu com entusiasmo do outro lado da porta.
– Ficarei encantado em me ocupar de sua roupa, senhorita.
Ela se aferrou a suas peças de roupa.
– I-isso não será…
– Aceite com elegância, senhorita Caulfield – disse o capitão em voz baixa. –
Ou não serei responsável pela nuvem negra de chuva que o mal humor do
senhor Miles deixará cair sobre todo barco.
Deu ao ajudante seu vestido e as anáguas, com o corpete e as meias dentro.
– Voltarei com um chá para sua convidada, capitão.
O ajudante saiu pela porta do camarote e a fechou. Deixou-a sozinha, em
plena noite, vestindo só um camisão e uma manta, e na companhia do homem a
quem estava evitando há cinco dias para não se sentir precisamente como nesse
momento: fraca e fora de controle.
Recuou e se chocou contra uma cadeira. Ele inclinou a cabeça para o lado e
lhe fez um gesto para que se sentasse.
Arabella se sentou. Isso era melhor do que cair.
– Minha escassa variedade de roupas para vestir é uma decepção permanente
para Miles – comentou. – A oportunidade de poder se encarregar da sua o
deixou de bom humor.
– Ele não gosta desse vestido – murmurou.
– Ele disse a você? Que safado.
– Não com essas palavras.
– Tanto faz. Ofendeu-a. Farei que o prendam ao mastro principal e lhe darei
boas chicotadas.
– N-não será capaz.
– Realmente não. Como sabe?
Desconhecia como o sabia, mas apesar de sua arrogância e provocação,
também podia ser atencioso e generoso.
– O-onde está o doutor Stewart? Voltará?
Parecia fitá-la fixamente. Já havia se sentido invadida pelos olhares
predadores de outros homens, mas nunca havia se sentido acariciada.
E nesse momento se sentia acariciada.
Coisa que era impossível e absurda e só demonstrava que estava delirando.
Estremeceu com força e apertou a manta contra o corpo.
O capitão se aproximou de um armário que havia na parede do camarote,
pegou uma chave do bolso e abriu a porta. De seu interior extraiu uma garrafa
com a forma de uma enorme cebola, com uma base larga e o pescoço estreito, e
duas taças. Depois ficou diante dela e se sentou na cadeira que o doutor Stewart
havia deixado livre. Suas pernas eram mais longas que as do escocês e seus
joelhos lhe roçaram a coxa, mas não podia lhe importar. Arabella se convenceu
de que não se importava.
Deixou as taças na mesa e desarrolhou a garrafa.
– O que está fazendo? – Perguntou ela.
Ele encheu uma das taças com o que a ela lhe pareceu extremo cuidado,
depois encheu a outra, e pegou uma das taças para levantá-la.
– Por sua iminente comodidade, duquesa. – Bebeu a taça de um só gole.
Depois assentiu. – Agora é a sua vez.
Quando viu que ela nada fazia, ele estendeu a mão e deslizou os dedos por
sua coxa. A jovem se sobressaltou.
Segurou-lhe a mão e a manta se abriu. Ela se apressou em segurá-la
novamente. O capitão elevou as sobrancelhas. Mas não fez nenhum comentário
sobre sua escassez de roupa, só voltou a lhe procurar a mão e a obrigou a soltar
a manta. – Não estou tentando me aproveitar de você, se é isso que a preocupa
– explicou-lhe em tom de conversa colocando a mão dela ao redor da taça. –
Doutor Stewart voltará em seguida com leite quente e pílulas, e o senhor Miles
com o chá. É possível que Gavin não se assustasse, mas se Miles me encontrasse
procurando violar uma mulher bêbada, se demitiria de seu cargo, e em que
posição isso me deixaria? É muito difícil encontrar um bom ajudante de
camarote, sabe? – Pôs-lhe a taça nos lábios e ela notou o contato de sua enorme
e quente mão sobre os dedos. – A única forma de esquentar seu corpo
rapidamente é acender um fogo a bordo, coisa que não tenho nenhuma intenção
de fazer. Bem, é só uma das alternativas, mas já deixamos claro que a outra não
é uma opção.
– Cap…
– Agora beba.
A indignação da jovem não podia competir com sua tristeza ou com o calor
da mão do capitão ao redor da sua. O álcool do licor subiu por seu nariz. Tossiu.
– O q-que é?
– Conhaque. Lamento não ter Champanhe. Mas isto será muito mais rápido.
Arabella fitou o interior da taça.
– Eu nu-nunca…
– Sim, já sei, nunca havia bebido álcool. – Inclinou a mão e pressionou a
borda da taça sobre seus lábios gelados. – Conte-me outro conto para dormir,
pequena duquesa.
Não se incomodou em corrigi-lo. Bebeu. O conhaque lhe queimou a garganta
e lhe irritou a língua. Mas quando o calor se estendeu pelo seu peito
compreendeu tudo.
O capitão soltou-lhe a mão e observou como dava outro gole. Voltou a tossir
e seus olhos se encheram de lágrimas.
– Não tem que bebê-lo todo de uma vez – murmurou.
– Eu disse que é a primeira vez que bebo conhaque.
– Assim diz.
– Capitão, se…
– Como se sente? Mais quente?
– Po-por que sempre me in-interrompe?
– Não falamos vezes suficiente para que exista um “sempre”. Fez tudo que
pôde para não se aproximar de mim desde que subiu a bordo, e rechaçou minha
cama.
Deixou de olhar a taça e fitou seu rosto.
Elevou a sobrancelha.
– Não é assim?
– N-não.
A jovem não pensava que lhe acreditasse.
– Vamos, outra – disse deslizando a garrafa em sua direção por cima da mesa.
– Se tomo outra taça, me embebedarei.
Já tinha a cabeça feito uma bagunça. Mas havia começado a sentir calor.
Estava mais quente do que havia estado em muitos dias. Temia que tivesse mais
a ver com o silencioso olhar lupino que a observava do que com o conhaque.
O capitão se recostou na cadeira e estirou as pernas a seu lado, prendendo-a
contra a mesa. Cruzou os braços.
– De que tem medo, duquesa? Teme que sob a influência do álcool possa
abandonar sua atitude altiva e acabe fazendo algo de que os dois se arrependam
pela manhã?
Os homens haviam tentado bajulá-la, seduzi-la, fazer-lhe amor com palavras
com a intenção de que sucumbisse a seus encantos. Haviam lhe dedicado
infinitos elogios, e quando haviam se dado conta de que isso não funcionava, a
haviam forçado. Nenhum homem havia falado daquela forma tão sincera. E
nenhum homem havia conseguido que quisesse fazer algo de que pudesse se
arrepender pela manhã.
Mas as palavras que o capitão estava lhe dizendo nesse momento não
estavam pensadas para seduzir.
– Está de-desafiando-me, não é? – Disse. – Está pondo a prova minha co-
coragem, como faria com qualquer marinheiro de seu barco.
– Agora quer ser um marinheiro, senhorita Caulfield? Quer mudar a
aborrecida existência de uma preceptora pela aventura em alto mar? Suponho
que poderia fazer algo a respeito.
Ela deixou a taça na mesa junto à garrafa.
– En-encha-a.
O capitão riu. Ela gostava de como soava sua risada. Quando a fitava com
diversão, imaginava que a achava realmente divertida.
Ela não era divertida. Era séria, profissional, decidida e responsável. Exceto
por subir ao barco de um rufião e sentar-se diante dele vestindo uma manta, não
havia feito nada especialmente aventureiro que pudesse recordar.
Levou a taça aos lábios.
– Eu não te-tenho medo de nada. Em especial dos ho-homens.
– Estou começando a acreditar.
Um sorriso apareceu no canto de sua atraente boca. Arabella via o camarote
envolto em névoa; para ela já só havia madeira, ar com cheiro de sal e o calor
que crescia em seu interior. Tinha a sensação de que não podia afastar os olhos
de sua boca. A verdade é que não era muito inteligente se sentar diante dele
vestindo só uma manta.
– Isto é uma im-imprudência – escutou-se dizer.
– Medicamentos não costumam serem fáceis de engolir.
Sua voz parecia um pouco áspera.
Ela concentrou a atenção em sua taça.
– Por que esconde o cabelo? – Perguntou ele de repente.
– Porque não desejo que me vejam com homens que são ca-capitães de
navios mercantes. – Deu outro gole de conhaque. – Pergunta seguinte.
Riu. Ela não gostou, ficou encantada pelo riso quente, cheio e seguro. A
risada do capitão penetrou em seu interior e se aninhou em algum lugar muito
profundo.
– No que estava pensando ali encima para não perceber sequer a chuva,
duquesa?
– Tenho duas ir-irmãs. – Não podia lhe falar de seus medos. – Passo muito
tempo sem vê-las. Tenho saudades delas.
– Fale-me delas.
A luminária dourada regava seus traços com luz e sombras e lhe dava uma
aparência fabulosa. Não eram imaginações suas nem efeito do conhaque. Era
ele.
– Por que?
– Eu tenho um irmão. – Fez um gesto em direção ao desenho da parede. –
Temos um interesse em comum. E já que rechaçou minha cama, não tenho
nada melhor que fazer esta noite.
– Fa-fala assim a todas as mulheres?
– Só a preceptoras que vestem pouco mais que uma manta.
– Encontrou-se com mu-muitas?
– É a primeira vez.
Fitou-lhe os olhos por cima da borda da taça. O conhaque lhe deslizou pela
garganta. Cuspiu.
O capitão colocou a mão no bolso e tirou um lenço muito bem passado.
Deixou-o na mesa entre eles. Ela o pegou e enxugou os olhos enquanto
observava o desenho a carvão. Os olhos do garoto eram dois ocos sombrios
cheios de medo, tinha os ombros curvados, e uma expressão muito séria. E, no
entanto, a habilidade do artista havia conseguido ressaltar sua beleza natural
apesar da escuridão.
– Esse qu-quadro é de seu irmão?
– É um autorretrato.
– E já é um artista sendo tão jovem?
– Agora tem vinte e seis anos. Desenhou-o de memória. Agora fale-me de
suas irmãs.
A jovem largou o lenço.
– Eleanor é bo-boa e justa. É loura, tem os olhos dourados, é alta e esbelta,
parece uma donzela grega.
– Athenas, uma deusa guerreira.
– É esperta, mas não é guerreira. Prefere ler a montar a cavalo, passear ou
fazer qualquer outra coisa. Passa os dias traduzindo textos para o rev… para
nosso pai; traduz do latim para o inglês. Ninguém sabe disso. Todos acreditam
que ele o faz. Uma vez perguntei a Eleanor se lhe im-importava, e me disse que
não.
– É modesta.
– Talvez.
O capitão se inclinou para a frente para lhe encher novamente a taça e ela
pôde sentir o cheiro de mar e calor que emanava dele. O que sentiria se a
abraçasse com seus braços musculosos?
Já devia estar bêbada.
Muitos homens a haviam agarrado, apalpado, aprisionado. Mas nenhum a
havia abraçado.
Serviu-se um pouco de conhaque na taça e deixou a garrafa na mesa.
– E sua outra irmã?
– Ravenna é uma cigana.
Deteve a taça a meio caminho de sua boca.
Arabella mordeu o lábio.
– Tem os olhos escuros. É mo-morena. Não suporta estar fechada. Não sabe
ficar qu-quieta. É indomável.
– Nisso me parece que é como sua irmã.
Tomou o conteúdo da taça em um só gole.
– Eu sou responsável por elas.
As palavras se precipitaram por sua língua.
O capitão encheu novamente ambas as taças.
– Você?
– Por isso é tão im-importante este trabalho. Tenho que… – A taça do
capitão voltou a estar vazia. Fitou-o. – Por que você também está bebendo?
Você não está com frio.
– Um cavalheiro nunca deixa que uma dama beba sozinha.
Sustentava a taça relaxadamente. Mas não estava relaxado. A tensão parecia
ter-se apossado de seus ombros, e o autocontrole lhe retesava a mandíbula.
“Autocontrole?”
– Mas você não é um cavalheiro, não é? – Perguntou. – Não se parecia a um
quando me negou a passagem em Plymouth.
– Do que logo me retratei.
– E brincou quando me ofereceu sua cama.
– Uma demonstração de generosidade de minha parte.
– Mas não agora.
– Somente o fiz para que relaxasse.
– Com que tipo de um-mulheres costuma falar para que pudesse imaginar
que isso me relaxaria?
Entrefechou os olhos.
– Sou um marinheiro, senhorita Caulfield.
“Oh.”
Mas e a champanhe? E sua roupa… era muito elegante. Atraente. Parecia um
cavalheiro, exceto pela cicatriz, o lenço negro, a sombra das costeletas em sua
mandíbula, esse brilho de lobo de seus olhos e os estragos que estava causando
em seu interior?
Não estava pensando com claridade.
– Os cavalheiros tra-tratam melhor às damas – disse.
– Isso ouvi.
– Alguns cavalheiros.
Inclinou-se para diante e seus joelhos rodearam os da jovem.
– Não todos?
– Não… muitos.
Deixou de fitar seus joelhos juntos.
“Faminto.”
O olhar do capitão era faminto. Como um lobo fitando uma ovelha.
Levantou-se subitamente arrastando a cadeira pelo piso e levou a mão à nuca.
– Pelo visto não este.
Arabella se levantou e a manta se entreabriu. Mas já sentia calor. Os dentes se
entrechocavam, mas dentro de seu corpo se aglomerava um calor embriagador.
A luz da lanterna projetava sombras sobre seu olho bom, mas viu o confuso
desejo que se aninhava nele. Era inseguro e autoritário, e a fitava como nenhum
homem havia feito, como se a desejasse, mas não compreendia por quê.
– Creio que deveria ir para a cama, senhorita Caulfield. – Falava em voz
baixa. – Agora.
Não conseguia pensar. O conhaque havia roubado seu juízo. A cabeça dava
voltas. O doutor Stewart tinha razão, estava intrigada. Mais do que isso. Estava
obstinada. Apesar de acabar de conhecê-lo. Como uma estudante. Como uma
estudante que jamais havia sido, porque inclusive então já era séria e esforçada
em aprender a ser uma dama apesar de tudo. Ela sempre havia estado decidida a
esperar por esse príncipe que devia aparecer para lhe mostrar o destino que lhe
havia sido negado.
E nesse momento, e depois de só dois copos de conhaque, um capitão com
pinta de pirata havia conseguido que se obstinasse por ele.
Era ridículo.
Tinha que freá-lo antes que isso escapasse de seu controle.
– Po-por que ordenou a Joshua que me seguisse pelo barco?
Disse como se fosse uma acusação.
– Para saber onde estava.
– Doutor Stewart disse que…
– O que disse?
Estavam tão próximos que podia sentir o calor que emanava de seu corpo.
Era difícil respirar.
– Disseme que não seria a primeira.
A porta se abriu.
– Capitão, pendurei a roupa da dama no lugar mais quente do barco.
Preparo-lhe a cama?
O capitão se afastou dela e assentiu virando a cabeça.
– Sim.
O assistente se dirigiu ao pequeno cômodo que havia no camarote do
capitão. Arabella sentiu uma pontada de pânico. Aproximou-se da porta com os
joelhos trêmulos.
– Não escapará, duquesa. – O capitão deu um passo adiante e a segurou entre
seus braços. – Não desta vez.
Levou-a para seu quarto. Para sua cama. A jovem não podia respirar. Seus
braços não lhe davam trégua. Aqueles apaixonantes braços musculosos. E seu
duro peito. Que roçava o dela. Um homem a levava para sua cama, um homem
com desejo nos olhos que cheirava a sal, a mar, a calor e a poder, e ela estava
assustada porque a parte embriagada em seu interior queria que a levasse até ali.
– Não. – Lutou. – Não deve…
Deixou-a sobre o colchão e se voltou para a porta.
– Descanse, duquesa.
E desapareceu.
Pousou a rosto afogueado pela bebida sobre o travesseiro enquanto o senhor
Miles colocava as mantas ao seu redor e estalava a língua como se fosse uma
enfermeira deitando a um menino.
– O doutor Stewart virá dentro de uma hora para verificar se não tem febre –
disse.
Saiu. Não ouviu o ruído da chave fechando a porta, nada a prendia, exceto o
colchão mais macio em que havia dormido em anos, e um casulo de calor que a
atraía ao sono.
Não deveria ter bebido nem uma gota. Teria que ter permanecido sóbrio.
Assim, quando esses magníficos olhos azuis se nublaram, se tornaram selvagens
e depois o roçaram como uma carícia, não teria começado a se imaginar
afastando a manta para descobrir a mulher que havia por debaixo.
Como não tinha nada com que ocultá-lo, o anel de rubi pendurado em seu
modesto cordão justo onde a manta se abria na altura de seus seios, como se
tivesse um valor de cinco mil guinéus e ela não tivesse nenhum motivo para
escondê-lo. Só a visão desse anel e os restos de honra cavalheiresca que seu pai e
a Marinha Real haviam conseguido lhe inculcar haviam evitado que pusesse em
prática o que estava imaginando.
Ela afirmava que não tinha ninguém. O único que não encaixava era a língua
ferina que tinha, por mais que respondesse a suas provocações pouco
cavalheirescas de uma forma tão previsível como qualquer preceptora virginal.
Mas esse anel contava uma história muito diferente. E ao contrário do seu
primo libertino, o conde de Bedwyr, Luc preferia que suas mulheres não
estivessem comprometidas. Também gostava que tremessem. Nem que fossem
lânguidas.
Subiu a escadinha até o convés principal. A chuva havia cessado enquanto
estava abaixo fantasiando em desnudar a mulher que tinha sentada diante dele.
O vento que soprava do oceano era frio e fresco. Em dois dias chegariam a
Saint-Nazaire e sua passageira partiria para o castelo, para seu castelo. Um
castelo a que ele levava vários meses sem ir, mas onde residiam seu irmão
Christos e seu amigo Reiner de Sensaire.
Ela se dirigia a sua casa. O castelo que havia herdado da família de sua mãe,
uma mãe que abandonou a seus jovens filhos após a morte de seu marido para
lançar-se às mãos dos revolucionários de seu país. E agora uma linda preceptora
inglesa havia ido em busca dele para que a levasse até ali com a intenção de
trabalhar para seu amigo.
Que probabilidades tinha com essa mulher? Ele não era um homem dado a
apostar, mas suspeitava que seriam muito escassas.
O mar se estendia a seu redor e as sólidas tábuas de seu barco e as velas
embranquecidas que ondeavam sobre sua cabeça estavam em paz. Bastava
volver a cabeça para ver a imensidão que o rodeava em todas as direções. Passou
o resto da noite como costumava fazer, observando as estrelas. Teria gostado de
pegar o timão do barco. Havia bebido muito conhaque, e embora sete meses
atrás isso não tivesse afetado muito sua habilidade para dirigir sua embarcação,
não era tão idiota para acreditar que podia comandar o barco embriagado e com
um só olho.
Um pirata. Riu. Se tivesse ficado na Marinha teriam lhe chamado de Capitão
Caolho. Agora, quando regressasse a Londres, seria o Herdeiro Caolho. E algum
dia talvez se convertesse no Duque Caolho.
E esse duque caolho necessitaria de um herdeiro.
Tentou recordar as debutantes que lhe haviam sido apresentadas em sua
juventude, justo antes de escapar para ir à guerra. A única cara que podia
imaginar era a dela. Mesmo pálida e trêmula, continuava sendo incrível. E não
estava tão pouco interessada na companhia de um homem como havia dito. O
conhaque havia revelado um desejo nos olhos dela que havia viajado
diretamente até sua virilha.
Não precisava desse tipo de problemas. Em Saint-Nazaire haveria mulheres
de sobra que poderiam satisfazer suas necessidades.
Se pudesse aguentar mais dois dias sem tocá-la.
O cabelo que usava escondido sob aquele tecido estava deixando-o louco.
Cada vez que a via coberta, o assaltava o impulso de ordenar que a trancassem
no fundo do navio para deixar de sentir a tentação de se aproximar dela e lhe
arrancar esse maldito turbante. Ela devia saber que esconder partes de seu corpo
só fazia com que fosse mais tentadora. Especialmente o cabelo.
Era magnífico. Vermelho dourado. Enquanto tomava o conhaque havia
resvalado o tecido que lhe cobria a cabeça, e havia aparecido um pedaço da viva
cor por cima de sua testa. Como o cobre. Havia bebido com ela para evitar de
lhe tirar o lenço e ver todo o cacho. Depois a havia metido em sua cama, apesar
de seus protestos. E o fato de que tivesse conseguido sair desse cômodo lhe
parecia um milagre que ainda estava muito embriagado para compreender.
Levantou a mão e levou os dedos ao olho direito. Viu uma faísca, um
minúsculo pulsar de luz cruzando o vazio negro, como suas recordações,
fugazes mas devastadoras.
Quando os primeiros tons acinzentados começaram a subir pelo horizonte,
Luc se pôs em pé e – com muito cuidado, como fazia as coisas ultimamente –
desceu a escadinha novamente. A tripulação havia recolhido as redes e os
marinheiros comiam chá com bolachas. Assentiram ao vê-lo. Alguns poucos
nostálgicos inclusive o saudaram quando passou junto a eles para entrar em seu
camarote. Abriu a porta de seu cômodo.
Gavin, sentado em uma cadeira apoiada na parede, despertou sobressaltado.
Sacudiu a cabeça para se espreguiçar.
– Quanto conhaque lhe deu, rapaz? Não despertou nem uma só vez.
Luc levou a mão à nuca e recordou como estava nervosa na taverna em
Plymouth; sabia que não dormiria a bordo.
– Creio que é muito provável que tenha passado vários dias sem dormir.
– Sim – Gavin assentiu. – Então a colocou para dormir.
– Parecia a solução mais rápida.
O médico pegou sua maleta e lhe deu uma palmada no ombro. Era um gesto
familiar e sem importância e, entretanto, ele sentiu o afeto que transmitia como
se fosse uma manta de lã que envolvia a mulher que jazia em sua cama.
– A sua febre não subiu. Fez bem, rapaz. Como sempre.
O capitão deu um passo para trás para permitir que Gavin saísse do
camarote. Depois entrou e observou sua silhueta na escuridão. Miles – a velha
galinha choca – a havia envolvido com sua manta de lã azul preferida e a havia
puxado até o pescoço. A jovem respirava profundamente com a boca um pouco
entreaberta.
– Quando a examinou, – disse por cima do ombro – tocou-a na cara?
– Sim.
– Como é sua pele?
O sorriso do escocês se refletiu em suas palavras.
– Gosta dela, eh?
– Não, maldição. – A pausa inevitável. – Sim. – Encolheu os ombros. –
Cuidou desses meninos sem pensar nos inconvenientes que isso poderia lhe
causar.
E era uma criada de debutantes. E ele, herdeiro de um ducado, poderia
perder a cabeça por ela.
– Tem fraqueza pela bondade, rapaz.
– E você tem fraqueza pelas bailarinas. Não pode me culpar, velho amigo.
Gavin riu e cruzou o camarote.
– Terá que voltar a embebedá-la para que lhe desembrulhe o estômago.
Tome uma taça você também, rapaz. Está com cara de que precisa.
Luc se voltou para a mulher adormecida.
Envolta em lã, mal deixava alguma marca sobre o colchão. Sabia que havia
comido pouco desde que estava a bordo; Miles e Joshua lhe haviam informado.
Mas parecia ter passado semanas sem comer bem. À tênue luz da alvorada que
passava pela escotilha, via os lábios secos e pálidos, as bochechas ligeiramente
afundadas, e sua pele parecia menos sedosa do que havia fantasiado, Mais
parecia feita de lona. Quando despertasse, esses deslumbrantes olhos azuis se
abririam surpreendidos, ou brilhariam de indignação ou refletiriam o calor de
um sentimento que não poderia esconder totalmente. Mas, no momento, a única
coisa que aliviava a severidade de seu rosto era esse triângulo de cabelo
alaranjado que caía em sua testa.
Atuou empurrado pelo desejo, e sem vacilar estendeu o braço e lhe afastou o
lenço da cabeça.
Um halo de fogo acetinado abraçava a sua cabeça como um gorro. Não era
laranja nem vermelho. Era da cor das chamas. Como o cobre polido.
Tirou-o totalmente e liberou um volume de feroz beleza que o deixou sem
fôlego, preso em uma surpresa que explodiu em sua virilha. Havia muito. Devia
lhe chegar na cintura quando estava de pé. Parecia-lhe impossível não a imaginar
encima dele com aquelas brilhantes mechas caindo por seus ombros nus e os
peitos colados a seu torso. Ou estendidos sobre os lençóis brancos e suas mãos
enroladas em sua glória enquanto entrava nela.
Reprimiu o gemido que lhe subia pela garganta. Deveria sair.
Ficou de joelhos junto à cama e lhe tocou a testa com os dedos. Já havia
sentido o acetinado de sua pele quando lhe tocou a nuca. Passou os nós dos
dedos na pele dela e os arrastou pelas madeixas de cabelo fechando os olhos e
sentindo a carícia por todo o seu corpo, por dentro e por fora.
Que sensação.
– Meu Deus.
Muito boa.
O fôlego da jovem resvalou por sua pele.
– Rezando, capitão?
Capítulo 4
A serviçal
Luc afastou a mão e se sentou sobre os calcanhares.
– Sempre, duquesa. Um homem como eu necessita toda a ajuda que possa
conseguir.
Levantou-se, entrou em seu camarote e voltou com uma xícara.
– Também quer me embebedar hoje? Assim poderá tocar um pouco mais o
meu cabelo.
Não reprimiu seu sorriso. Era possível que fosse uma serviçal, mas não
parecia sabê-lo.
– É água com uma gota de conhaque. O doutor o ordenou.
Franziu o cenho, mas tirou os braços de debaixo da manta e se sentou.
Aceitou a xícara. O anel de ouro e rubi brilhava contra a pele que ficava
descoberta justo onde se separava da manta. Seu braço era como a nata, alheio
ao sol e suave do ombro até a munheca.
– Meu médico disse que não teve febre. – Falava para evitar fitá-la fixamente.
Via-lhe a manga curta de um camisão sem adornos à altura do ombro. O vestido
com que havia embarcado também era simples. Sua beleza e caráter pediam seda
e rendas. Mas nela ficava sedutora inclusive o mais simples dos tecidos. –
Felicito-a por ter tão boa constituição, duquesa.
– Embora pelo visto não seja bastante boa para conservar a roupa. Onde
está?
– Oh, por aí – disse com imprecisão.
– Não deixe que minha atitude relaxada sugira que estou confortável sentada
diante de você neste estado, capitão – explicou com uma compostura perfeita. –
Asseguro-lhe que não estou.
Reprimiu um sorriso. Não compreendia como aquela mulher podia ser
somente uma serviçal.
– Não se preocupe – disse. – Marinheiros costumam perder peças de roupa
devido às inclemências do tempo. Ou por causa de ladrões. Os bandidos. Os
piratas. E sabe como é isso.
A jovem lhe devolveu a xícara. Uma madeixa lhe caiu pelas costas como uma
cascata.
– Devo supor que você também perdeu a roupa?
– Somente o olho.
– Não deveria tê-lo feito.
– Não fui eu. Foi outro sujeito.
– Não deveria ter me embebedado. Uma gota teria sido suficiente.
O capitão se apoiou na parede e cruzou os braços com despreocupação.
– É mágico? Usa-o preso para conservar suas propriedades místicas?
– Voltamos às brincadeiras. – Afastou o rosto. – Não se cansa de debochar?
– Santo Deus. Antes as mulheres o chamavam de charme. Mas suponho que
Napoleão amargurou todo o mundo. Afinal de contas, o charme é algo muito
francês.
– Disse que não se aproveitaria de mim – disse com tranquilidade e firmeza.
– Está claro que nossa terminologia não coincide. Porque estou seguro de
que lembraria se tivesse me aproveitado de você ontem pela noite.
Ela não respondeu. Ficou com a cabeça inclinada e o rosto reservado.
– Sansão – murmurou o capitão.
– O quê? – Respondeu.
– Não era esse sujeito cuja força residia em seu cabelo? Ou era David?
Desculpe-me, sempre esqueço o catecismo nestas situações.
– Que tipo de situações?
– Situações nas que uma mulher linda se deita em minha cama e eu não me
deito junto a ela.
Voltou a fitá-lo. Luc ficou sem fôlego. Descia-lhe uma gota de umidade pela
bochecha que deixava um fio sedoso em sua passagem.
Levantou a mão e passou as pontas dos dedos entre os olhos, mas não o fez
para limpar as lágrimas. Era como se não soubesse que ele estava ali.
– Devo estar horrível – disse ela.
– Não – conseguiu murmurar. – Disse que era linda, lembra? E eu só digo a
verdade.
– Já lhe disse que eu nada sei sobre você.
Coisa que era quase certa.
A jovem pegou o lenço e, enquanto ele continuava ali sentado muito
entretido e completamente excitado, ela recolheu a massa de cabelo acobreado e
o ocultou sob o tecido.
– Recuperou a força, lady Sansão?
– Conseguiu controlar seus modos de pirata, capitão Andrew?
– É vaidade?
– Sua arrogância? – Elevou as sobrancelhas e os olhos voltaram a se iluminar
com uma faísca que ele sentiu explodir em seu peito. – Suponho que é muito
provável.
Sorriu.
– Se não gosta de mostrá-lo, por que não o corta?
– Utilizo-o para atormentar homens como você, coisa que já lhe expliquei.
Seriamente, não presta atenção a nada do que digo, não é?
Meteu as últimas mechas por debaixo do lenço.
Quanto dinheiro lhe custaria convencê-la a que voltasse a soltar o cabelo? Só
uma vez. Apenas uma vez seria suficiente para deslizar os dedos por sua
cabeleira e sentir o renascer de uma luxúria pura e sem complicações. Poderia
lhe fazer uma oferta que faria com que o salário que Reiner pudesse lhe pagar
parecesse uma piada.
A ideia o intrigava.
Acrescentaria um prêmio se concordasse em lavá-lo.
– Cada palavra – murmurou. – Como se fossem pérolas.
A jovem lhe lançou um olhar inescrutável e depois desceu as pernas pela
lateral da cama. A bainha de seu camisão aparecia por debaixo da manta, um
pedaço de estúpido tecido branco sem nenhum ornamento. Era uma peça
surpreendentemente comum, e dela emergiram suas panturrilhas e seus pés. A
boca de Luc ficou seca.
– Se lhe mostro um pedaço dos tornozelos, – disse – esquecerá de meu
cabelo?
– Tem calcanhares muito bonitos, mas é muito provável que não consiga me
fazer esquecer o seu cabelo.
Eram tão bonitos como o resto dela. Era uma preceptora desalinhada, estava
despenteada e não muito limpa e, no entanto, continuava sendo arrebatadora.
Uma linda serviçal que estava a caminho de seu castelo.
– Como viajará até Saint-Reveé-des-Beaux, duquesa?
– Alugarei uma carruagem, embora não sei que importância possa ter isso
para você.
Na realidade, tinha muita.
– Se eu decidir segui-la, me denunciará aos guardas?
Franziu seu delicado cenho e o receio voltou a dominar os olhos azuis.
– Por que quereria me seguir?
– Meu irmão vive próximo dali. – No castelo. Não podia lhe dizer. Deveria
dizer-lhe. – É meu caminho.
– Ficando a uma distância prudente, não me importo que me siga por todo o
continente.
– É um consolo.
Levantou-se e lhe ofereceu a mão.
Ela ficou tensa. Desceu da cama sem sua ajuda e voltou a ajeitar a manta.
– Tenho que encontrar ao senhor Miles e recuperar minha roupa. Quando
chegaremos a Saint-Nazaire?
– Se o vento continua, chegaremos amanhã. E o senhor Miles lhe trará a
roupa quando esteja seca. Hoje terá que ficar aqui.
– Em seu camarote? – Enrubesceu. – Em sua cama?
Esboçou um pequeno sorriso.
– Sim, mas lamento lhe dizer que eu não estarei nela. Hoje tenho que
trabalhar.
Percebeu seu suspiro de alívio. Não esperava ter escolha. Uma serviçal com
sua beleza…
Sentia-se como um idiota por sua brincadeira de mal gosto. Pior ainda, como
um pilantra. Deveria ter se dado conta. Nem todos os homens aceitavam um
não como resposta.
Nem todos os homens haviam vivido o inferno pelo qual ele havia passado.
Luc estendeu o braço para pegar seu chapéu, que estava pendurado em um
cabide.
– Ontem à noite me perguntou como considero meus homens. Por quê?
Alguém a incomodou?
– Não. Mas há um jovem…
Mordeu os lábios, um hábito da jovem ao que estava começando a se viciar.
– Explique-me – disse. – Agora.
Os olhos violetas voltaram a se iluminar.
– É muito autoritário.
– Vem com o comando de um barco. – Sentiu-se satisfeito por um instante.
A duquesa havia voltado. – Conte-me.
– Outro dia foi à enfermaria do doutor Stewart dizendo que tinha dor de
dente, mas mentia.
– Como sabe que mentia? O doutor Stewart suspeitou dele?
– Não. Mas… eu tive a sensação de que não dizia a verdade. Seja o que for
que esse marinheiro quisesse conseguir da farmácia do doutor, me parece que
não tem boas intenções.
Voltou a falar com segurança sem se sentir acovardada por sua fúria e sem
medo de sua autoridade. Nunca havia conhecido a uma mulher tão bonita que
fosse modesta e vulnerável, e segura e forte ao mesmo tempo. Estava
assombrado. Não podia deixar de fitá-la, mas não podia falar.
– Tive essa sensação – repetiu ela com empenho.
– Como percebeu, pequena duquesa? – Disse, e aproximou a mão a seu
queixo. – Assim como sente…
Ela se afastou de seus dedos.
– Não volte a me tocar.
Luc deu um passo atrás.
O dia que completou onze anos disse essas mesmas palavras a Absalom
Fletcher apontando-lhe uma pistola que sustentava com uma mão trêmula. E
Fletcher procurou outra vítima. Uma vítima mais jovem.
Voltou-se para a porta.
– Investigarei sua advertência.
Depois a deixou sozinha em seu quarto. Apesar de ter lhe roubado a paz e a
sensatez, sem lhe oferecer nada com que remediar essa perda, a jovem não
protestou quando saiu.
Por mais que necessitasse dormir, Arabella não conseguia ficar em sua cama.
Só havia uma tentação que poderia tê-la convencido para que ficasse: a
oportunidade de preencher seus sentidos com o seu perfume, uma fragrância
que a deixava um pouco tonta. Mas os lençóis só cheiravam a sabão.
Havia compartilhado a cama com suas irmãs vezes suficientes para saber que
o cheiro de uma pessoa persistia. Ela adorava aconchegar-se no quentinho com
o cheiro de sálvia que Eleanor deixava no travesseiro quando levantava ao
alvorecer para estudar e escrever. O lugar de Ravenna na cama sempre estava
bagunçado e amassado. Sempre havia algum cabelo de cigana misturado com os
sedosos fios negros de Bestia, e de vez em quando encontrava algum brinquedo
de tecido perdido entre os lençóis. Muitas vezes, quando estava sozinha em sua
cama simples de serviçal na casa onde estivesse trabalhando, imaginava-se
aconchegada em uma cama de quatro colunas junto a suas irmãs, quentinhas
apesar do frio do inverno e rindo. Sempre rindo, inclusive nas profundezas da
pobreza e da necessidade, porque o amor era assim.
Havia adormecido na cama do capitão Andrew, mas os lençóis não
cheiravam como ele.
O senhor Miles lhe serviu o desjejum no camarote, mas lhe informou de que
por culpa da chuva sua roupa ainda não estava seca. Quando se foi, colocou a
jaqueta que havia lhe oferecido no dia anterior, e levou sua dolorida cabeça até a
enfermaria. Ao vê-la passar, os marinheiros a fitaram com curiosidade.
Apressou-se. Estava segura de que todos haviam visto muito mais do que a
bainha do camisolão de uma mulher. “Sou um marinheiro, senhorita Caulfield.”
Nenhum daqueles marinheiros a molestaria. O capitão não o permitiria.
Ele era a grande ameaça. Tudo o que fazia e dizia esse homem a confundia e
a fazia perder o controle. Pela primeira vez depois de anos de determinação e
trabalho, estava se comportando de forma imprudente: havia saído debaixo de
chuva, havia bebido conhaque e havia dormido na cama de um homem; e havia
querido fazer todas essas coisas.
Não queria que voltasse a tocá-la. Era autoritário e arrogante, e cada vez que
a fitava sentia um incômodo calor que lhe percorria todo o corpo. Até esse
momento as atenções dos homens sempre a haviam repugnado. Mas quando
despertou sentindo sua carícia, quis segurar a sua mão.
Joshua havia suspendido sua vigília e ela desceu sozinha a escadinha e cruzou
o convés até a enfermaria. A porta estava um pouco aberta. Quando a abriu
completamente, ficou atônita.
O jovem magricela que foi ver ao doutor a três dias atrás estava diante da
caixa da farmácia. As gavetas estavam abertas. Na mão tinha uma garrafa com
uma etiqueta com uma caveira e dois ossos cruzados.
Aproximou-se dele.
– O que tem aí?
O rapaz meteu a garrafa no bolso.
– Desculpe, senhora. O doutor me disse que tome esse remédio…
– É impossível que lhe tenha dado permissão para que você a tomasse
sozinho, e para que pegue especificamente essa garrafa.
O jovem a fitou e cravou a atenção em seu peito.
“O anel”. Não havia pensado em esconde-lo. Só pensava em sua ridícula
paixonite.
– Largue a garrafa – disse.
– Se me der esse anel, darei a garrafa, senhorita.
O rapaz olhou em direção à porta. Não havia ninguém naquele convés e
nesse dia o vento soprava especialmente forte. O barco rangia com fúria e os
animais estavam inquietos e ruidosos. Se gritava, era muito provável que
ninguém a ouvisse.
– Prometo que deixarei a garrafa – disse. – Não quero lhe machucar,
senhorita. Se me der o anel.
Por cima de suas bochechas afundadas aparecia um olhar selvagem. Podia ser
que estivesse doente. Talvez só estivesse morto de fome. Talvez o fizesse por
desespero.
E ela compreendia muito bem o desespero.
– Volte a deixar essa garrafa no armário e vá – disselhe. E fingirei que não
tentou me subornar.
Os olhos do jovem voltaram a saltar da porta ao anel.
Ela estendeu a mão.
– Dê-me a garrafa – disse usando seu tom de preceptora autoritária.
O marinheiro meteu a mão no bolso e tirou uma faca.
A garganta de Arabella se contraiu.
Agarrou-a pelo pulso e a imprensou contra a parede. Tinha uma compleição
magra, mas era alto e surpreendentemente forte.
– Se não quer negociar, ficarei com as duas coisas.
A faca brilhou junto a sua cara.
– Que idiotice é essa? – Conseguiu dizer muito nervosa. O jovem se valeu da
mão que tinha livre para agarrá-la pelo braço com força, e com a mão que
sustentava a faca a agarrou na frente do camisão. – Estamos no mar.
Descobrirão em seguida.
O rapaz puxou. O laço lhe cortou o pescoço. Arabella apoiou todo o peso de
seu corpo sobre uma pena e o goleou com o joelho na virilha.
O jovem cambaleou para trás procurando respirar. Abriu o punho e o anel
brilhou na palma de sua mão como se fosse sangue. Ela correu para a porta e ele
cambaleou até Arabella com o rosto contraído.
– Mas o que é que estão fazendo?
Luc entrecerrou os olhos olhando entre as ondas espumosas. A luz do sol
refletia entre as dezenas de velas brancas que se viam a trezentas jardas de
distância projetando um brilho glorioso sobre a embarcação naval mais próxima.
– Esperando com o barco, capitão.
Joshua mordiscava uma palha com os pequenos polegares metidos nos
suspensórios como se fosse um granjeiro.
Luc, porém, não podia ver as caras dos marinheiros, mas conhecia muito
bem a pose boçal do homem que aguardava orgulhoso na ponte de comando do
barco que tinha em frente. Tony Masinter havia sido o melhor imediato que
havia tido, e seu melhor amigo. Não podia ter desejado um homem melhor para
substituí-lo no comando do Victory. Mas não tinha nem ideia do motivo pelo
qual seu velho barco estava caçando o novo.
– Capitão? – Disse Joshua.
Luc olhou para o convés de seu veleiro. Tendo em conta a companhia que
havia aparecido no horizonte fazia já uma hora, devia admitir que estava
particularmente escasso de marinheiros. Nem todos os dias acontecia que uma
fragata de cento e doze canhões escoltasse uma humilde embarcação até o
porto. Mas essa parecia ser a intenção de Tony.
– Vinte homens, disse?
– Talvez sejam mais. Mas só tenho vinte dedos – reconheceu Joshua
encolhendo os ombros.
Luc deu as costas ao outro barco, apoiou-se no corrimão e cruzou os braços.
– Por que acredita que esses homens estão fazendo algo tão estranho, Josh?
– Talvez seja pela roupa íntima de mulher que está pendurada na viga à frente
do barco, senhor.
Luc se endireitou.
– Roupa íntima de mulher?
-Há algumas peças, capitão, não são muitas, mas estão todos apostando para
ver quem fica com elas. Desde que ela se esqueça de pegá-las quando
cheguemos ao porto, claro.
O rapaz lhe piscou um olho.
– Compreendo. Obrigado, Joshua.
Luc foi em direção à ponte de comando. Deveria pedir a Miles que se
ocupasse do assunto. Mas não pensava em deixar que sua tripulação e seu
ajudante vissem a roupa íntima da jovem enquanto ele se conformava com um
montão de fantasias quentes.
Em que diabos estaria pensando Miles quando decidiu pôr essa roupa junto
ao cercado do rebanho? Havia dito que era o lugar mais quente do barco.
Quando estava a ponto de pegá-la, ouviu-a gritar.
As cabeças dos marinheiros se voltaram junto à dele.
– No convés inferior, senhor – disse um deles.
Desceu as escadas de um salto e girou em direção ao escritório de Stewart,
seguido de seus homens. Não tinha tempo de pegar a pistola. Levou a mão à
espada e abriu a porta da enfermaria de um só golpe.
A jovem tinha as costas colada à parede e estava enrubescida. Tinha uma
serra para cortar ossos numa mão e uma jarra de cobre na outra. Parecia uma
feroz valquíria. A um metro de distância estava um marinheiro que lhe apontava
uma faca ao pescoço. Tinha o outro punho apertado, mas por entre seus dedos
ossudos brilhava um objeto dourado e vermelho.
– Já lhe disse que viriam. – Seu tom de voz era duro, mas compassivo, como
se seu pescoço não estivesse a poucos centímetros da faca do rapaz. – Deveria
ter-me feito caso.
Era um dos homens que o intendente de Luc havia contratado em Plymouth.
Mas tinha idade de ter barba, e olhava para Luc com medo nos olhos e a faca
brilhava na mão.
– Disse que me pagaria três guinéus para o fazer – respondeu com aspereza.
– Três guinéus.
– Quem quer que tenha prometido isso, rapaz, – disse Luc levantando a
espada e pondo-se entre eles – deixou-o sozinho.
O jovem não fez movimento para resistir. A faca repicou ao cair no piso e o
jovem pareceu desmoronar.
Luc fez sinais a um dos homens que aguardavam na porta para que pegasse a
faca, e depois segurou a mão do ladrão e arrancou o anel de entre seus dedos
frouxos. Assentiu em direção a sua tripulação, que estava amontoada à porta. Os
homens comemoraram em gritos e aclamações, seguraram ao ladrão e o tiraram
do camarote.
Arabella tinha os olhos muito abertos e estava pálida. Baixou os braços. Luc
lhe tirou a serra e a jarra e as deixou sobre a maca.
– Leva uma garrafa de arsênico na jaqueta – disse.
– Os homens a encontrarão. Está…
– Estou bem – interrompeu-o. Por um momento a jaqueta lhe apertou o
peito, mas levantou o queixo. – Estou bem.
– Demonstrou muita valentia. Muito mais do que vi em muitos homens a
quem enfrentei.
– Estava assustado. Não queria fazer o que havia concordado em fazer.
Cravou a tenção no anel que Luc mantinha.
Ele o deixou na mão dela e ela fechou o punho.
– Lamento lhe ter informado mal, senhorita Caulfield. É novo a bordo. Teria
que ter vigiado mais.
– E o que fará agora? Será julgado quando chegue ao porto?
– Já foi condenado. Receberá sua sentença dentro de poucos minutos.
Os olhos da jovem pousaram na porta, por onde ainda passavam os distantes
sons alegres dos marinheiros.
– Que sentença?
– Furto em um barco é castigado com o chicote.
– Chicote?
– Vinte e cinco chicotadas.
– Vinte e cinco? – Isso o mataria. – Aqui? Agora?
Assentiu.
– Não. Não podem lhe açoitar.
O capitão Andrew embainhou a espada.
– A lei é clara, senhorita Caulfield.
– Você é o capitão. Isso não o converte na lei neste barco como me disse?
Salve-o. – Deu um passo adiante. – Suplico-lhe.
Fitou-a e observou-a com atenção.
– Roubou-a. E diz que também roubou a Stewart. Por que quer perdoá-lo?
– Não quero ser a causa da morte de nenhum homem.
Esse anel devia trazer vida, não morte.
– Talvez não o faça. Pode ser que não morra.
O capitão deu meia volta e saiu da cabine. Ela correu atrás dele. Adiante
deles, e descendo pela escada, se ouviam aclamações da tripulação que
aguardava no convés principal.
– Está morto de fome – disse por detrás dele, agarrando-se ao corrimão da
escada. O mar se estendia a ambos lados do barco e brilhava à luz do sol. – Não
o vê?
– Nesse caso deveria ter se aproveitado das generosas rações de comida que
se servem neste barco – disse sem se voltar para ela.
A jovem se obrigou a soltar o corrimão e saiu ao convés.
– Se é novo a bordo, como iria saber que as rações seriam generosas?
O capitão se deteve e se voltou para ela. O convés estava abarrotado e a
jovem não podia ver com claridade nem ao mar e nem o que ocorria ao redor
do mastro central. O que não podia ver não podia machucá-la. As pernas se
afrouxaram. Estava tonta.
– Está defendendo a um ladrão, senhorita Caulfield. Um homem que tentou
lhe machucar.
– Mas recuperamos tudo o que havia roubado, e não cometeu nenhum
assassinato. – Uniu as mãos diante do corpo em atitude suplicante. – Capitão,
tem que ouvir a razão.
– Senhora…
– Não poderei suporta o peso do castigo desse homem.
– Então não deveria ter subido a meu barco com algo que valesse a pena
roubar.
Não estava falando só do anel. Estava falando dela. Ela o havia rechaçado,
havia dito que não a tocasse, e agora estava lhe fazendo pagar.
Não podia ser. Não podia estar encaprichada por um homem que pudesse ser
tão cruel. Mas ela já havia sofrido por confiar no caráter de um homem.
Então o doutor Stewart chegou.
– Capitão, os homens já estão preparados para que dite a sentença.
Arabella se voltou para ele.
– Doutor, não pode permitir isto.
Ele negou com a cabeça.
– Assim é como funciona, mocinha.
A jovem abriu caminho entre a tripulação em direção ao mastro central. Os
homens se afastaram a sua passagem. O rapaz tinha os pulsos atados a ambos
lados do mastro. Todas as costelas marcadas.
Três guinéus. Uma fortuna para um montão de marinheiros. O suficiente
para alimentar sua família por toda vida.
– Olhe-o, doutor – disse. – É um saco de ossos.
O escocês franziu o cenho.
– Mocinha…
– Não roubou nada – disse. – Eu lhe dei! Eu lhe dei! – Gritou.
Os marinheiros ficaram em silêncio entre o bater dos aparelhos mexidos pelo
vento, o ranger da madeira e o permanente zumbido do oceano.
– Se vai açoitar a alguém, capitão, – disse – temo que deveria ser a mim. Vi
uma ratazana em meu camarote e peguei emprestada a garrafa de arsênico da
farmácia do doutor Stewart para envenená-la. Este marinheiro estava me
ajudando. E… – titubeou.
O capitão Andrew apertou a empunhadura de sua espada e os nós de seus
dedos ficaram brancos.
– E lhe dei o anel como símbolo de agradecimento – disse com firmeza. –
Presenteei-o. Tenho muito medo das ratazanas.
Ninguém fez nem um só ruído.
– Mocinha…
– É verdade, doutor Stewart. – Voltou-se para ele. – Dei-o para ele. Então na
realidade não roubou nada. Capitão, tem que soltá-lo imediatamente.
O capitão Andrew embainhou a espada e se aproximou dela muito devagar e
com movimentos deliberados.
– Você lhe deu a garrafa e o anel?
– Isso mesmo. Eu… sim.
Tremia. O vento açoitava o fino tecido da saia do camisão que aparecia por
debaixo da jaqueta. Sentia-se nua e fora de controle, como sempre que estava
com ele.
– O que lhe parece, doutor? – Disse o capitão sem deixar de fitá-la. – Deveria
açoitar à pequena preceptora por roubar veneno de sua enfermaria para se
ocupar de um roedor?
A jovem engoliu a saliva alarmada. Não seria capaz.
– Senhor, devo admitir que fui eu quem lhe deu o veneno para a ratazana
disse o doutor.
Ela inspirou fundo.
O capitão assentiu.
– Cavalheiros, – disse fitando-a – soltem o prisioneiro. Nossa convidada tem
um objeto de valor que deve lhe devolver.
Os marinheiros desataram o prisioneiro com má vontade e o empurraram até
a jovem. O rapaz tremia tanto como as velas e tinha a cabeça baixa. Em seus
olhos afundados brilhava o medo e uma desconcertante gratidão.
Arabella meteu a mão no bolso para pegar o anel com a garganta endurecida.
– Veja, senhorita, – disse o jovem – agora que pensei melhor, não posso
aceitá-lo. – Falava com rapidez. – Minha mãe não gostaria que aceitasse
presentes de uma dama. Pensaria que ficaria em dívida com a senhorita por toda
a vida, e jamais me deixaria em paz.
Deu um passo para trás.
– Senhor Church – o capitão chamou o imediato. – Acompanhe o senhor
Mundy ao calabouço, por favor. E lhe dê sua comida agora. Ninguém, nem
sequer aqueles que se salvam das chicotadas por intervenção divina, passa fome
neste barco.
O imediato agarrou o rapaz pelo braço e o levou. Arabella segurou o anel
dentro do bolso.
O doutor apareceu junto a ela.
– Fez uma grande obra de caridade, mocinha. Que Deus a abençoe.
– Obrigada, doutor – sussurrou. – Obrigada.
– Senhorita Caulfield. – O capitão marchou até a escada. – Reúna-se comigo
em meu camarote, por favor. Tenho que lhe falar de um assunto em particular.
O doutor Stewart negou com a cabeça e depois voltou-se para a curiosa
tripulação.
– Voltem ao trabalho – ordenou-lhes. – Todos.
Era um dia cálido e o sol aparecia por entre as nuvens ralas. Mas Arabella
estremeceu enquanto se dirigia ao camarote do capitão.
Quando chegou, encontrou-o de pé, de costas para a porta e fitando pela
escotilha aberta. Ao longe, se via um barco com a bandeira da Inglaterra. Estava
rígido e tinha a mão apoiada na empunhadura da espada.
– Não teria me açoitado – disselhe.
Deu meia volta.
– Acredita nisso? Como sabe? Pensava que não sabia nada sobre mim.
– Não podia deixar que esse rapaz fosse castigado por minha estupidez.
– Estupidez? – Aproximou-se dela. – Acaso foi você quem lhe ordenou que
pegasse o veneno na farmácia do doutor Stewart, duquesa?
– Não me chame assim.
– Por que não? Comportou-se como se o fosse. Repartindo justiça segundo
sua vontade.
– Não podia…
– É seu cúmplice?
A jovem arregalou os olhos.
– Não. Não, claro que não.
– Como sabia? – Estava zangado. Em seu olho brilhava uma luz esmeralda,
mas se mostrava controlado e reprimido. Na noite anterior também percebeu
que se controlava com ela. – Como sabia que iria roubar algo ou que poderia
machucar outros? Nem seque o imediato tinha ideia, e isso porque é um juiz
excelente. Como sabia que mentia quando pediu um remédio ao doutor?
– Eu…
Não o compreendia. O reverendo nunca o compreendeu.
– Você?
– Posso “ler” as pessoas.
– Pode “ler” as pessoas?
– Posso ler as pessoas com quem me encontro.
Exceto a ele.
O capitão entrecerrou o olho.
– Pode adivinhar os pensamentos dos homens?
– Não. Não se trata disso. Posso perceber emoções, desejos e medos, e assim
intuir os motivos que os provocam. Normalmente…
– Normalmente?
– Normalmente acerto. Por isso valorizam tanto meus serviços. Minha
habilidade resulta muito útil quando alguém quer conseguir certo status ou
estabelecer determinadas relações; em tais casos é importante saber o que
querem os demais.
Deu outro passo até ela.
– Faz isso com todo mundo?
– Só quando quero.
– Pode ler a mim?
Nesse momento não havia desejo em seu olhar. Tampouco caçoava. Em seu
olho só brilhava essa intensidade que tanto a havia assustado na taverna de
Plymouth.
A jovem obrigou seus pés a se manterem em seu lugar com firmeza.
– Sim.
Fez-se um momento de silêncio.
– E o que descobriu sobre meus desejos, duquesa?
– Nada.
– E o que a impede de tentar descobri-lo? – Aproximou-se um pouco mais. –
Tem medo?
– Tentei. – Não deveria lhe dizer. – Mas não pude. Não o entendo.
– Muito conveniente – disse.
– Absolutamente.
O capitão não respondeu. A jovem já não podia fitá-lo.
– E o que fará agora? – Ela finalmente lhe perguntou.
– Farei com que salte pela prancha.
Levantou o olhar. Tinha o rosto duro, mas a ira havia desaparecido.
Arabella encheu os pulmões de ar.
– Claro.
– Senhorita Caulfield, não volte a interferir na justiça que reparto, entendeu?
A jovem engoliu o alívio e assentiu.
– Entendido.
Fitou-lhe o rosto.
– Que pensava fazer com o arsênico?
Havia acreditado nela. Acreditou quando lhe disse que podia ler as pessoas.
Ou talvez acreditasse que era cúmplice do ladrão.
– Não sei.
– Não?
– Já lhe disse que não sei ler a mente. Eu só…
– Só?
– Sinto. Sinto as emoções dos demais, capitão, e as percebo porque em meu
interior não há nenhuma que possa se interpor no caminho.
Ficou olhando-a fixamente.
– Uma afirmação muito sincera. Especialmente procedendo de uma mulher
que admitiu, faz só alguns minutos, que sua alma não poderia carregar o castigo
de um homem.
Seu coração batia muito depressa.
– Que vai fazer com ele?
– Entregarei nas mãos da Marinha.
– Esse barco…
– É uma nau da marinha. Seu capitão fará bom uso dele. Suspeito que o
rapaz demorará vários anos em compreender a sorte que teve. Mas no final
entenderá.
– Deixará que se vá?
– Alguma vez remou nas galeras de uma fragata de vinte e cinco canhões,
senhorita Caulfield? Não tem muito a ver com liberdade.
– Mas é um ladrão.
O capitão elevou uma sobrancelha.
– Agora quer que o açoite? Vamos ver se esclarece isso, pequena preceptora.
– Por que o perdoou? Todo mundo sabia que eu estava inventando tudo.
– E ainda assim conseguiu o apoio do doutor – disse com tristeza. – Que
bruxa.
– Bruxa?
– Na realidade, veio outra palavra a minha cabeça. Mas consegui me corrigir a
tempo.
Tão rapidamente se zangava como caçoava.
– É um homem estranho, capitão Andrew.
– E você é uma preceptora muito pouco comum, senhorita Caulfield.
– Agradeço o elogio.
Então apareceu essa ruga na bochecha do capitão.
– Era um elogio?
O coração de Arabella voltou a acelerar, mas não foi devido ao medo.
– Pelo menos deveria interrogá-lo. Ao que parece, alguém o contratou para
que roubasse veneno. Pode ser que quem o fez quisesse machucar algum dos
homens de sua tripulação. Ou matá-lo. Ou talvez…
– A mim? Talvez quisesse me matar? Amotinar-se, talvez?
A jovem assentiu.
– Não se preocupe, senhorita Caulfield. Interrogaremos o rapaz.
– Costuma ser o objetivo de muitos assassinos, capitão?
– Normalmente não.
– E, no entanto, não parece se surpreender que outro homem lhe quisesse
mal.
O capitão levantou a sobrancelha e esboçou um pequeno sorriso.
– Suas palavras me parecem muito pouco sinceras, tendo em conta que não
se esforçou nada para esconder suas opiniões sobre meu caráter imperfeito.
– Não pode ser sincero pelo menos uma vez? Rir de tudo? Inclusive do
perigo?
– Senti um sincero medo por você quando entrei nessa enfermaria.
A garganta de Arabella se apertou.
– Medo?
Alguém bateu à porta.
– Adiante – disse o capitão sem deixar de fitá-la.
– Senhor – disse Miles. – O capitão Masinter deseja falar com o senhor.
Franziu o cenho.
– Agora? Antes que cheguemos ao porto?
– Seu passageiro insiste nisso
– E quem é seu passageiro, Miles?
A voz de Miles pareceu encolher.
– Sua senhoria, o conde de Bedwyr.
– “Conde?”
Pelo visto a surpresa de Arabella não significava nada para o capitão. A
diversão desapareceu de sua cara.
– Farei uma visita ao Victory. Diga ao senhor Church que prepare o bote.
– Sim, capitão.
– Senhorita Caulfield, vou pedir ao senhor Miles que lhe devolva a roupa
imediatamente. – Dirigiu-se para a porta. Então se deteve e voltou a colocar-se
muito próximo dela. – Não saia deste camarote enquanto eu estiver ausente. A
menos que o doutor Stewart esteja com você, feche a porta com a chave e deixe
entrar somente ao senhor Miles. – Fitou-lhe o rosto muito devagar e com
cautela. Expressei-me com clareza?
Assaltou-a um batalhão de pontadas nervosas. O olhar do capitão passou
sobre seus lábios e logo subiu novamente até seus olhos.
– Entendeu-me? – Repetiu com aspereza.
Assentiu.
– Sim.
– Nesse caso bom dia, senhora.
Pegou o chapéu que estava sobre a mesa e saiu do camarote.
Os joelhos de Arabella cederam e desabou numa cadeira.
Um conde queria falar com o capitão de um barco mercante? Nunca havia
visto isso, mas conhecia a reputação do conde de Bedwyr. Diziam que era muito
atraente, um grande jogador, e o tipo de homem que qualquer mãe afastaria de
suas filhas. Que poderia querer esse lorde libertino de seu capitão?
Suas bochechas esquentaram.
Não era seu capitão. Aquele barco só era o meio que necessitava para
conseguir uma finalidade. Dentro de dois dias não voltaria mais a vê-lo. Dentro
de dois dias já não seria mais que uma recordação.
Capítulo 5
O duque
– Que o diabo o carregue, Luc! Meus homens o receberam a bordo como se
fosse o Messias regressando de entre os mortos.
O capitão Anthony Masinter da Marinha Real afastou o prato de comida e se
serviu de outra taça de vinho; depois encheu também a de Luc. O cenho
franzido que aparecia por cima de seu bigode tinha um ar jocoso.
Luc tomou assento atrás da mesa de mogno; a mesa que ele mesmo havia
escolhido para o camarote do capitão quando mobiliou o Victory antes de sua
viagem inaugural seis anos atrás. Era muito mais espaçoso que os aposentos que
tinha no Retribution, e dali havia dirigido centenas de marinheiros e meia dezena
de oficiais durante cinco anos.
– Os homens recordam a guerra e a glória de que desfrutavam depois da
batalha, Tony. E só sou uma recordação desses dias.
Um ajudante trabalhava em silêncio junto a eles e retirava os restos da ceia.
Fitou o olho de Luc.
– Maldição. – Tony deu uma palmada na mesa. – Até o bom Cob sabe que
não fala sério. Advirto-o de que é um desafio capitanear um barco cheio de
marinheiros que querem que seu antigo capitão volte.
– Eu nunca diria isso – disse o ajudante, e saiu com os pratos do camarote.
– Nunca o diria – grunhiu Tony limpando o vinho de seu arrumado bigode
com um lenço bordado. – Besteira!
– Podemos fumar, Anthony?
A voz do conde de Bedwyr soou do outro extremo da mesa com um
estudado ar de indolência. Apesar de ter sido um completo cavalheiro em seus
dias como militar, depois de aceitar o condado, Charles Camlann Westfall
esqueceu até o último vestígio de seu treinamento militar. Já não usava o
elegante uniforme azul com cordões dourados do Décimo dos Husares, sim
uma casaca de cor de ameixa com enormes botões de prata, um colete de seda
com rosas bordadas, e uma máscara de intenso tédio no rosto.
– Boa ideia, Charles. – Tony se levantou e aproximou uma caixa à mesa,
acendeu um charuto e empurrou a caixa para Cam. – Então, não quer o Victory?
– Perguntou a Luc com despreocupação.
Não, desde que havia encontrado outra missão que valia a pena perseguir.
– Já sabe que não.
– Não poderia tê-lo, embora quisesse – disse Charles arrastando as palavras.
– É verdade. – Tony negou com a cabeça. – O velho duque não quer que se
ponha na primeira linha de fogo. Pobre coitado.
Deu uma palmada no ombro de Luc.
– Melhor dizendo, é – disse o conde levantando os olhos ensombrecidos por
uma mecha de cabelo loiro estrategicamente colocado – a viúva do velho duque.
– Meteu uma mão coberta com rendas no colete e tirou uma carta lacrada com
cera. Deixou-a sobre a mesa. – Que lhe parecem as notícias?
– Luc, por Deus! É um duque! Parabéns. Isto merece um brinde, e depois um
segundo. Cob, traga o conhaque.
– Ainda não é um duque, Anthony. Só é um duque em potencial.
Luc observou a carta sem abrir que aguardava sobre a palma de sua mão.
– Quando ocorreu?
– Quer saber quando tio Theodore foi se encontrar com seu criador? – Seu
primo não abandonou sua habitual forma de arrastar as palavras; era como se o
fato de que ele mesmo também estivesse um passo mais próximo do ducado
não significasse nada para ele. Coisa que provavelmente era certa; Cam preferia a
indolência ao trabalho. – Faz três semanas, depois que ficou pior. A verdade,
Lucien, é que se tivesse se mantido em contato teria sabido que isso era
iminente.
O assistente regressou com uma garrafa de cristal e três taças.
Cam brincou despreocupadamente com seu brilhante relógio de bolso
enquanto a fumaça se enroscava por entre seus ombros.
– Suponho que continua com a mesma atividade que tinha quando a marinha
o despediu.
– Não o despediram. Ele saiu – disse Tony soltando uma nuvem de fumaça.
– É um tipo nobre.
O camarote estava fresco. O ar de final de verão procedente do Atlântico
entrava pelas amplas janelas. E, no entanto, o suor se amontoava ao redor da
cicatriz de Luc.
– Por que Adina o enviou para me dizer, Cam?
A viúva de Theodore era uma mulher jovem, linda, e tão superficial e insossa
como seu defunto esposo. Estava muito unida a seu irmão mais velho, Absalom
Fletcher. E era evidente que as notícias não seriam do agrado deste. Estava claro
que isso significaria que Luc regressaria finalmente à casa. E que seu irmão
também o faria.
Mas Fletcher já não era somente um clérigo. Fazia pouco que o haviam
promovido ao episcopado, e era um homem poderoso e influente. O bispo de
Barris não tinha muito o que temer dos meninos que teve sob sua tutela. Até
esse momento ele sempre havia vivido no mar, e Christos na França. E,
entretanto, isso estava a ponto de mudar.
– Ela não me enviou. Oferecime como voluntário. – Cam levantou uma
sobrancelha. – Vim lhe dar os pêsames, primo.
Tony franziu o cenho.
– A verdade é que Combe é um lugar muito bonito. Não me importaria ter
um castelo como este.
– Luc já tem um castelo, Tony.
– Mas não na Inglaterra.
– O título lhe cairá bem, Anthony, assim como a propriedade – murmurou o
conde. – Se a duquesa perder o filho que espera assim como aconteceu com
todos os demais, ou se der à luz uma menina, o número de herdeiros ao ducado
se reduzirá a zero.
Tony se engasgou com o conhaque.
– Não gosto que fale assim do irmão de nenhum homem, Charles. Não me
surpreenderia que Luc o desafiasse por isso. Se ele não o fizer, talvez eu o faça.
– Sabe que não o farei. Ele tem dois olhos. – Luc meteu a carta no bolso. – E
você também o sabe.
– Desafiarei este pilantra se quiser, mesmo que ainda lhe deva cem guinéus da
última partida de cartas.
– Há uma nota de Adina adicionada, Lucien – disse Cam. – Não lhe interessa
ler as sinceras súplicas de nossa tia para que volte para casa e lhe arrume a vida?
– Já se deitou com ela, não é, Cam?
Tony ficou de pé de um salto e jogou a cadeira a suas costas.
– Malditos sejam seus três olhos. A pobre garota acaba de enviuvar.
– Sente-se, cavalheiro bobo. – Cam riu com languidez. – Luc só está me
sondando. A duquesa não é meu tipo.
– Não é uma mulher casada?
Luc pegou sua taça.
O duque estava morto. Longa vida ao duque.
Durante os dezenove anos em que Adina havia sido a esposa de Theodore,
havia perdido cinco filhos antes de nascerem. A vida do pobre filho que levava
no ventre não era nenhuma certeza. Após o quinto aborto, Theodore exigiu que
Luc abandonasse a Marinha e lhe deixou suas preocupações bem claras.
Mas ele sempre havia dado como certo que seu tio se recuperaria da doença
de que padecia e continuaria fazendo herdeiros. Havia quem sugerisse que a
delicada Adina não sobreviveria a outro parto complicado, e que o melhor que
Theodore podia fazer era procurar uma segunda esposa que se saísse melhor na
hora de conceber.
Mas isso já não era possível e tudo havia mudado.
Luc não tirava da cabeça o rosto do marinheiro Mundy, assim como as
súplicas da pequena preceptora para que salvasse o jovem faminto. Os pobres
continuavam passando fome, apesar de que já fazia um ano que havia acabado a
devassidão da fome. As más colheitas do ano anterior haviam reduzido as
reservas de sementes, e as plantações desse ano eram escassas. Havia visto em
Portugal na primavera, no verão na França, e novamente na Cornualha e Devon
antes de sair de Plymouth: as bochechas afundadas dos camponeses, as
extremidades fracas dos aldeões, e crianças morrendo por todas as partes. Até
mesmo o patrimônio de sua família havia chegado a sofrer, uma próspera
propriedade em Shropshire.
Mas já não tinha escolha. Não podia viajar para Portugal com suas
mercadorias.
E agora tinha uma meta: necessitava de um herdeiro. Com o duque morto e
Adina esperando o nascimento de seu filho, o ducado estava em suspenso. Mas,
se o menino não sobrevivesse, ou se viesse uma menina, ele herdaria. Tinha que
abandonar seu barco e regressar a Londres em busca de uma esposa adequada.
A propriedade da França era modesta e o título de Rallis era honorário. Seu
irmão Christos, que estava há vários anos vivendo no castelo, poderia se
encarregar dele. Mas não devia herdar o ducado. O peso da responsabilidade e a
autoridade acabariam com a vida de Christos com a mesma rapidez que uma
guilhotina.
Agora não podia mais ficar embarcado. Pela primeira vez em onze anos,
devia ir para casa.
Regressando, poderia se ocupar dos problemas de Combe, se tivesse o poder
de fazê-lo. Theodore não podia tê-lo nomeado o principal administrador da
propriedade. Muito temia que teria sido Fletcher que teria recebido essa honra,
já que era amigo de seu tio de longa data. Ele só poderia exercer autoridade
sobre Combe até que a criança nascesse. Depois do nascimento já não teria
nenhuma autoridade, ou teria toda ela.
– Na realidade, – disse Cam – a duquesa não está em condições de se
revolver sobre o feno com ninguém. A linda Adina está a ponto de dar à luz.
Luc levantou a vista.
– Já?
– Oh, o tempo voa.
– Pobrezinha. – Tony negou com a cabeça. – Com seu histórico, é muito
provável que não lhe sirva de nada. E de qualquer forma Luc terá que esperar. A
maldita aristocracia sempre enrolando. Eu sempre digo que é muito melhor ser
plebeu.
– Seu pai é um baronete, Anthony – recordou-lhe Cam esboçando um
pequeno sorriso.
Tony fez um aceno com seu charuto.
– Ninguém dá importância a um baronete. E menos ainda a seu quinto filho.
– Quando nascerá?
– Em novembro.
Restavam-lhe menos de três meses. Três meses após os quais Absalom
Fletcher bem poderia ser o senhor de fato de Lycombe durante um montão de
anos. Ou três meses para se converter em duque. Tudo dependia da frágil viúva
e seu filho ainda no útero.
Luc esfregou sua cicatriz. Cam virou a cabeça com despreocupação. Mas pela
primeira vez em meses o capitão do Retribution não sentiu a necessidade de
partir essa cara perfeita de seu primo.
– Em qualquer caso, Luc, seria bom para essa pobre garota ter um homem
em casa. – Tony tocou o punho de sua espada. – Será melhor que volte em
seguida.
– O que é esta monstruosidade? – Cam pousou um olhar arqueado sobre a
espada. – Santo céu, Tony, parece uma joia da Coroa.
– Pertence à família. – O baronete estufou o peito. – O rei William a
presenteou a meu tataravô após sua admirável vitória em Cherbourg, sabia?
Luc observou distraído as brilhantes joias incrustadas na empunhadura da
espada. Um dos rubis lhe chamou a atenção, mas não era tão grande como o
que havia no anel da preceptora. No final, não poderia segui-la até seu castelo.
Era o melhor. Não tinha nenhum sentido que complicasse a vida cortejando-a,
por mais valente, vulnerável e arrebatadora que fosse. E não importava como o
fitassem seus magníficos olhos com esse desejo velado, nem o muito que o
surpreendesse com sua ágil língua.
Bebeu o conhaque da taça, tudo o que tinha, tal como havia feito na noite
anterior, quando compartilhou a escuridão com essa linda serviçal encharcada.
– Deixarei o Retribution nas mãos de Church – disse. – Vocês regressam à
Inglaterra?
Tony bufou.
– O almirante ordenou que ponha o barco à sua disposição. O Victory
navega à sua vontade. Novamente.
Sorriu franzindo o cenho.
Luc olhou os escuros olhos de seu primo. Cam devolveu o olhar com os
olhos entrecerrados.
– Qual é o verdadeiro motivo de que se oferecesse voluntariamente para me
trazer a notícia?
O canto dos lábios de Cam se curvaram para cima.
– Afortunadamente, justo quando seu tio morreu, tinha a imperiosa
necessidade de me ausentar de Londres.
– Por uma mulher, suponho.
Luc arqueou a cicatriz. Fazia seis meses também havia protagonizado um
escândalo com uma mulher que levou seu primo a viajar da Inglaterra para a
França.
Na realidade, era uma jovenzinha. Mas naquela ocasião Cam lhe surpreendeu.
O vício de seu primo não era o que ele imaginava. E, no entanto, quando
compreendeu a verdade já era demasiado tarde: seu olho foi a vítima de seu erro
de julgamento.
Cam fez girar o conteúdo de sua taça de conhaque distraidamente.
– Quando um homem racional se comporta de forma contrária a seus
interesses, sempre é por culpa de uma mulher, Lucien. O fato de que você esteja
demasiado cego para se dar conta – por fim olhou diretamente para o lenço que
cobria o cenho de seu primo – é só culpa sua.
Luc afastou a cadeira da mesa e se levantou. Então abriu a porta e entrou o
imediato do Victory.
– Capitão – disse o marinheiro a Masinter. – Interrogamos Mundy. Só
admitiu que em Plymouth um homem que nunca havia visto antes o contratou.
Pediu que procurasse o Retribution, que se unisse à sua tripulação e que
roubasse o veneno da enfermaria. Devia esperar novas instruções quando
chegasse a Saint-Nazaire. – Dirigiu-se a Luc. – Creio que disse a verdade,
senhor.
– Torturou-o, não é? – Perguntou Cam arrastando as palavras.
– Disse como se chamava a pessoa que o contratou? – Perguntou Luc ao
imediato.
– Disse que não o sabia, senhor. Quanto à tortura… – Olhou para o conde. –
Mundy nos disse que faltava o polegar da mão esquerda ao homem.
– Obrigada, Park – disse Tony. – É o suficiente.
– Sim, capitão.
O oficial saiu.
Tony franziu o cenho, mas desta vez sua expressão não refletia nenhum
prazer.
– Maldição, Luc. Não gosto que nenhum ladrão passeie livremente pelo meu
barco.
– Tranque-o no calabouço, se quiser. Falarei com ele quando volte.
E descobriria tudo o que pudesse da tentativa de roubo do rapaz. Se tinha
que acreditar nos instintos da preceptora, – ou como ela havia dito, essa sua
habilidade para ler os homens – Mundy não era um ladrão por natureza, mas
sim por desespero. Mas o veneno era preocupante.
Então se aproximou da porta.
– Nos veremos no porto, cavalheiros.
– Suponho que cancelou os planos de dar uma escapadinha a seu precioso
castelo – supôs Cam suspirando com pesar.
– É lamentável. Mas o velho Luc tem que fazer frente a suas
responsabilidades.
Isso e evitar mais reuniões em privado com uma linda serviçal ruiva.
Mandaria ela para Saint-Reveé-des-Beaux e se desfaria da tentação.
– Doutor Stewart, porque a Marinha Real nos escolta até o porto?
Arabella estava junto à janela do camarote e observava como o barco se
deslocava pela água muito devagar junto a eles.
– É uma grande honra, moça.
Longo estariam em Saint-Nazaire e deixaria o mar para trás. Mas estava
muito nervosa. Disse para si que era porque estava a ponto de começar a
trabalhar em um novo lugar. Segundo lhe havia dito o doutor Stewart, já
estavam somente a um dia de viagem. Certamente o seu nervosismo nada tinha
a ver com a certeza de que se veria obrigada a falar com o capitão Andrew antes
de desembarcar. Não haviam voltado a trocar palavra desde que ele havia subido
a bordo do navio da marinha na noite anterior, e se alegrava por isso. Aquela
noite não havia sonhado com mares revoltos e tormentosos, havia sonhado que
ele a tocava.
Nunca havia desejado que nenhum homem a tocasse. Era ridículo que tivesse
sonhado que ele o fazia e tivesse despertado sem fôlego, com as saias
enroscadas e a pele quente.
– Agradeço que cuidou de mim quando resfriei, doutor. Quisera poder lhe
oferecer algum pagamento.
– Não tem que me agradecer. – Riu. – E não precisa me pagar.
A jovem meteu a mão no bolso e tirou a maior moeda que tinha.
– Aceitaria isso?
Ele afastou-lhe a mão com delicadeza.
– Não tem que se envergonhar por aceitar um favor. Não é pecado.
– O pecado reside no orgulho que conduz a rechaçá-la.
O capitão Andrew apareceu na porta do camarote.
Não estava preparada para voltar a vê-lo. Provavelmente nunca estaria. O que
a havia confundido quando estava junto a ele não foi o conhaque, o sono ou o
ataque do jovem marinheiro. A confusão devia-se somente a ele, simplesmente.
Era essa estranheza, sua beleza destruída e esse intenso olhar que se suavizava
de repente e voltava a endurecer com a mesma rapidez.
– Agora é teólogo? – Perguntou Arabella ao capitão.
– Faço o que posso, senhorita Caulfield.
Seu olhar brilhante deu vontade a ela de que também brincasse. Não o devia
fazer. Mas já não voltaria a vê-lo. Devia voltar a se concentrar no trabalho, a
determinação e seu objetivo.
– Como por exemplo? – Permitiu-se dizer. – Além de pecar, claro.
Ele apoiou um ombro no caixilho da porta e cruzou os braços.
– Um pouco disto, um pouco daquilo. Sabe como é, recolher ladrões de joias,
resgatar damas… – Fez um gesto despreocupado com a mão. – O habitual.
O doutor Stewart lançou-lhe um olhar enviesado e saiu.
Arabella deixou escapar um forte suspiro.
– Eu não roubei o anel.
Ele levantou as sobrancelhas.
– Eu não disse tal coisa.
– Por que desconfia isto de mim? Dei-lhe algum motivo especial para isso?
Observou-a com essa estranha intensidade que parecia enfraquecer os joelhos
dela.
– Não é o que parece, senhorita Caulfield. O anel que carrega combina
melhor com seu caráter que o uniforme de preceptora. Pode negá-lo.
Queria fazê-lo. Tinha-o na ponta da língua. Isso era uma tolice. Era uma
garota pobre procedente de uma família pobre. Uma órfã. Uma serviçal.
Mas quando ele a fitava a fazia sentir-se como… uma duquesa.
Voltou à realidade.
– Por que esse navio da marinha está nos escoltando? E em águas francesas,
além do mais. Fez algo ilegal?
– Ah, a pequena duquesa crê que pode fazer todas as perguntas que quer
enquanto se nega a responder as que se fazem a ela. Interessante, embora
suponho que previsível. – Fez um gesto em direção ao convés dos canhões. –
Logo chegaremos ao porto. Talvez prefira ver como chegamos lá de cima.
Fez-lhe um gesto para que se dirigisse à porta e ela saiu à frente dele. Mas
Luc ficou perto, muito perto, e quando ela subiu a escada do convés principal, a
mão do capitão roçou a sua no corrimão.
Segurou-a pelos dedos e deteve sua subida. A brisa que entrava pela escotilha
formava um redemoinho ao redor de sua capa e suas mãos unidas.
– Senhor – sussurrou, mas tinha a garganta apertada e o vento levou o som
de sua palavra.
Soltou-a e ela se apressou escada acima.
O vento soprava com força no convés principal, e as velas do Retribution
estavam infladas como as do navio da marinha que os seguia de perto. Os
marinheiros estavam muito ativos sobre o convés.
– Perdeu suas luvas, senhorita Caulfield?
O capitão falou por detrás de seu ombro com um tom grave e íntimo, como
se não estivessem a plena luz do dia rodeados por dezenas de homens.
Voltou-se. Suas bochechas se ruborizaram e os lábios se separaram.
– Estão em Plymouth – disse. – Vendi em troca de comida.
– Para os meninos que encontrou.
Assentiu.
O capitão ficou olhando sua boca e suspirou, e ela teve medo que a beijasse
diante de sua tripulação e em plena luz do dia, como um homem beijaria a uma
mulher de má reputação, onde quisesse e quando quisesse. Pela forma como
falava das preceptoras, devia pensar que era o que sugeriu quando se
conheceram em Plymouth. Viajava sozinha e tinha um anel que somente uma
mulher rica poderia possuir. O capitão Andrew não tinha motivos para pensar
que era outra coisa além de uma mulher de vida fácil, ou devia ter algum outro
motivo para fitá-la com esse evidente desejo.
– Não sou o que acredita que sou.
Mordeu o lábio. Não havia sido sua intenção falar isso. Não tinha porque se
justificar ante ele.
– Não creio que tenha nem ideia do que penso sobre sua pessoa. Agora olhe
para atrás de você.
Ela deu meia volta.
Enfeitado como uma noiva no dia de seu casamento, o estuário brilhava à luz
do sol transbordante de embarcações. A margem se estendia como um manto
dourado e branco de longas e relaxantes praias que dava a vez a duas fileiras de
cais. Estavam cheios de barcos cujas bandeiras delatavam que procediam de
todos os cantos do mundo.
A cidade de Saint-Nazaire estava situada no interior da desembocadura do
rio, e era pouco mais que uma coleção de cais e estaleiros, com a ponta de uma
igreja aparecendo por cima de uma penca de edifícios que se elevavam desde a
margem.
-É muito improvável que caia pela borda com tanto barco ao redor, duquesa
– disselhe em voz baixa junto ao ombro. – Já pode soltar o corrimão.
Sobressaltou-se. Tinha os nós dos dedos brancos de apertá-los.
– Eu…
– Já tinha me dado conta – limitou-se a dizer. – Bem-vinda novamente à
terra, senhorita Caulfield.
Fez-lhe uma reverência e cruzou o convés em direção ao timão.
Capítulo 6
Dois Luíses
– Je suis désole, mademoiselle – disse o estalajadeiro sem um pingo de
desolação em seu estreito rosto gaélico. – Mas não há nenhuma carruagem. E
ninguém pode fabricar uma carruagem do nada, não?
Franziu os lábios.
Arabella apertou as moedas que lhe havia mostrado, até o último centavo que
tinha.
– É porque não lhe pago mais, não é?
Negou com a cabeça.
– Je vouz ai dit, nem os cavalos e nem a carruagem estarão disponíveis até o
jeudi.
A quinta-feira. Faltavam dois dias. Não podia se permitir ficar nem uma só
noite na pousada e depois alugar a carruagem até Saint-Reveé-des-Beaux.
– Há algum outro lugar onde possa alugar uma carruagem na cidade?
– Non non, mademoiselle.
Voltou a negar com a cabeça como se lamentasse muito não poder agradá-la.
– Mas quando vinha passei junto a um estábulo e vi uma carruagem
perfeitamente boa com dois cavalos que não estavam fazendo absolutamente
nada – replicou ela com firmeza. – Como explica isso, monsieur?
– Discutir com os estalajadeiros deste país é uma perda de tempo, querida –
disse uma voz lânguida às suas costas. – Agora que provaram o mel da
Revolução, os franceses têm pouco respeito por tudo que não seja a avareza. É
uma lástima. Antes eram maravilhosamente obsequiosos.
O homem que aguardava na porta parecia um príncipe saído de um conto de
fadas. Era loiro como um Deus, tinha o cabelo ondulado e uns cálidos olhos
marrons. Vestia veludo escuro, com renda no pescoço e nos pulsos, e usava
umas botas tão polidas que brilhavam.
Mas nenhum príncipe avaliaria uma dama com uma olhada dos pés à cabeça.
Em comparação, os luxuriosos olhares do capitão Andrew, ao lado do
desconhecido, pareciam completamente seguros. Isso não era verdade. Não
havia nada de seguro nos olhares do capitão Andrew, porque ela os havia
desejado muito para seu pesar.
– Monsieur, bem-vindo! – O estalajadeiro fez uma reverência pronunciada. –
Posso ajudá-lo em algo?
– Para começar, poderia deixar de angustiar a esta dama. – Aproximou-se
dela. – É evidente que necessita de ajuda.
– Que não creio que aceite de você. – O capitão Andrew cruzou a porta.
– Creio que em seguida se dará conta que é muito autossuficiente. – Fez-lhe
uma reverência. – Senhora.
Arabella procurou controlar seu pulso acelerado.
– Capitão.
Os lânguidos olhos do cavalheiro se arregalaram.
– Como é que tem o prazer de conhecer a este diamante e eu não, Luc? É um
verdadeiro crime.
– Senhorita Caulfield, permita-me que a apresente, com todas as minhas
reticências, ao conde de Bedwyr – anunciou o capitão olhando o conde de
esguelha. – Cam, a senhorita Caulfield viajou desde Plymouth no Retribution.
Na boca do conde se desenhou um lento sorriso e voltou a reavaliá-la com os
olhos.
– Ah, agora compreendo a presença de um passageiro em seu barco, que
costuma estar rempli des bêtes. Bom trabalho, Lucien.
O capitão aceitou uma chave do estalajadeiro.
– Amanhã há festa na cidade – escutou pela porta antes que aparecesse o
homem que o havia dito. – Que bom, cavalheiros, poderemos aproveitar de um
entretenimento pouco habitual.
Era um homem moreno com um bigode que se curvava dramaticamente
sobre cada uma de suas bochechas. Usava uniforme naval e a esplêndida pluma
de seu tricórnio balançava sobre seus olhos. Quando viu Arabella, deteve-se
abruptamente.
– Ora, bonjour, mademoiselle. – Tirou o chapéu e arrastou a pluma pelo solo.
– É uma beleza, verdade, cavalheiros?
– Pelo visto, os olhos de Luc não estão tão machucados como os nossos,
Anthony – disse o conde arrastando as palavras. – Bem, o olho.
– Senhorita Caulfield, este é o capitão Masinter da Marinha Real – disse o
capitão Andrew pondo-se a seu lado. – Tony, não é francesa.
– Não creio que Anthony tenha aversão quando a beleza é tão evidente –
afirmou o conde de Bedwyr esboçando um sorriso.
– E não é casada – advertiu o capitão com secura lançando um duro olhar ao
conde. Depois fitou-a: – Verdade?
Arabella engoliu o nó que tinha na garganta. O conde era realmente
magnífico, e o capitão naval muito bonito. Mas estar junto ao robusto e
autoritário capitão do Retribution quando acreditava que já não voltaria a vê-lo,
fazia-lhe tremerem os joelhos. Comportava-se com total autoritarismo, e não
havia tido que lhe dizer que tinha medo do mar para que se desse conta. Ela não
podia decifrar seus pensamentos, mas pelo visto ele podia interpretá-la
perfeitamente bem.
– Não sou casada.
– Lamento, Cam – disse o capitão sem traço de humor. Depois a fitou e seus
olhos brilharam. Monsieur Gripon, já atendeu devidamente à senhorita
Caulfield?
Não era a primeira vez que falava com outra pessoa enquanto a fitava. Era
como se soubesse que a atenção dos demais sempre estava voltada para ele e
acreditasse que todo o mundo estava esperando suas palavras sem importar para
onde estivesse olhando.
– Hélas, monsieur! – O estalajadeiro bateu as mãos como se estivesse muito
preocupado. – A preparação de le jour de la fête de amanhã envolveu toutes les
ressources de la ville.
O capitão franziu o cenho.
– Quero alugar uma carruagem para viajar até o castelo, – disse a jovem –
mas me disse que não há nenhuma, embora eu tenha visto uma no estábulo, e
cavalos.
Voltou-se para o estalajadeiro.
– Não é isso?
– Le carito tem que levar a imagem sagrada de lê rói Luís IX na procissão de
amanhã, capitão. Não pode alugá-lo agora. O estalajadeiro negou com a cabeça
desgostosamente. – Mas a mademoiselle não quer compreender.
O capitão assentiu.
– Entendo. Senhora Caulfield, temo que é muito provável que esteja dizendo
a verdade. De quantos dias dispõe antes de ter que chegar a seu destino?
– Cinco. Mas gostaria de chegar antes. – Não tinha escolha. Não dispunha de
fundos para ficar nem um só dia em Saint-Nazaire. Não podia se deixar vencer
depois de ter chegado tão longe. – Quantos dias durará o festival?
– Só um. – O capitão retirou as luvas. – É a festa de São Luís, senhorita
Caulfield, um desses sujeitos medievais das cruzadas e antepassado do atual
Luís, sabe? Amanhã será muito divertido. – Dedicou-lhe um amplo sorriso. –
Os católicos do continente celebram umas festas maravilhosas.
– Por que não fica uma noite na cidade e desfruta da celebração, senhorita
Caulfield? – Sugeriu-lhe lorde Bedwyr fazendo uma elegante reverência. – Será
uma honra ser seu acompanhante nos festejos.
– Não tenho nenhuma dúvida. – Luc voltou a fitá-la. – Senhorita Caulfield, se
tal como afirma é correto que passou tanto tempo entre a alta sociedade de
Londres, já saberá que não pode confiar nas intenções de lorde Bedwyr.
– Mal o conheço, capitão. Não deveria prejulgá-lo.
– Então talvez possa confiar em minha palavra.
– Sim, senhorita Caulfield – afirmou Cam lhe lançando um astuto olhar a
Luc. – É muito melhor que confie em nosso amigo o capitão Andrew, em lugar
de confiar em mim. Embora tenha aspecto de vilão e se dirija a uma dama como
um sem-vergonha, na realidade é um tipo nobre, enquanto que eu só sou um
pobre homem em um país estrangeiro que busca a inocente companhia de uma
dama para dar um passeio pela tarde.
O sorriso de Cam se alargou até se converter no sorriso que havia praticado
com centenas de lindas mulheres com enorme êxito.
Um pálido rubor apareceu nas bochechas da preceptora.
Luc apertou os dentes. Esse sem-vergonha sempre conseguia afetar as
mulheres. Ele nunca havia se importado. Nem uma só vez.
Mas agora se importava.
– Camlann, não brinque com a jovem – disse sem surpreender-se pela
aspereza da voz.
– Suponho que você é o único homem com esse privilégio.
Um brilho iluminou os olhos de Cam.
– Capitão, milord – disse a jovem com firmeza erguendo o queixo. –
Adoraria que deixassem de falar de mim como se não estivesse aqui diante. –
Voltou a se dirigir ao estalajadeiro. – Reservarei um quarto para esta noite e a de
amanhã com a esperança de poder dispor da carruagem no dia seguinte. Quanto
me custará?
O estalajadeiro lançou um olhar inquisitivo para Luc.
A jovem se ruborizou. Mas seus ombros permaneceram firmes.
– Mal conheço a estes cavalheiros, monsieur, e não faço parte de seu grupo.
Eu pagarei por meu quarto e pela carruagem até Saint-Reveé-des-Beaux.
– Saint-Reveé-des-Beaux? – Perguntou Cam lançando um rápido olhar para
Luc. Deu um passo para ela. – Ora, querida, esse também é o meu destino.
Tenho muita vontade de ver meu velho amigo, o príncipe Reiner, que está
alojado como convidado de…Ora, como se chama o arisco dono do castelo,
Tony?
Este elevou uma sobrancelha e fez girar uma das pontas do bigode com o
dedo indicador e o polegar.
– Nesse momento não o recordo.
– Ah, sim, o conde de Rallis. – Cam gesticulou com uma das munhecas
cobertas de renda. – Monsieur Gripon, ponha a carruagem em minha conta.
Insisto. No entanto lhe garanto sua privacidade durante a viagem, senhora. Eu
irei na frente e limparei o caminho de rufiões e ladrões. – Dedicou-lhe um
sorriso triunfante e foi para a porta. – Ouça, Tony, por que não voltamos ao
restaurante que vimos ao passar e pedimos um pouco de galeto recheado?
Lucien, suponho que o veremos em breve.
– Boa ideia, Charles.
Tony fez uma grande reverência à senhorita Caulfield e saiu.
Então a jovem disse:
– É amigo de condes e comandantes navais, capitão?
– Não chamaria Bedwyr de amigo.
– Isso é evidente. Não tenho nenhuma intenção de aceitar sua ajuda para
viajar até Saint-Reveé-des-Beaux.
– É o melhor que pode fazer.
Se houvesse um só cavalo ou mula disponível na cidade, mandaria uma
mensagem ao castelo e faria que lhe enviassem uma carruagem. Quando Miles
acabasse de fazer a bagagem lhe pediria que se encarregasse disso.
A jovem o fitou por um momento com as bochechas ainda ruborizadas.
– Boa noite, capitão.
Observou-a enquanto seguia o estalajadeiro escadas acima e se deu conta de
que tinha as costas tão retas com as de qualquer duquesa. Não tinha nenhuma
dúvida de que as jovens que treinava para entrar na sociedade eram muito
afortunadas.
A pousada era na periferia da cidade, no final de uma praia rodeada de
arbustos e bananeiras. Monsieur Gripon lhe designou um quarto do tamanho de
um armário no final da escada, de onde Arabella ouvia cada passo e cada palavra
dos hóspedes do abarrotado hotel quando passavam junto à sua porta. Pelo
visto, por mais que conhecesse um nobre inglês e um capitão da Marinha Real,
isso não assegurava a uma mulher pobre um quarto invejável em uma pousada
francesa. Os lençóis eram finos e estavam desgastados, o colchão era de palha e
os postes e a cabeceira da cama estavam roídos pelos dentes de algum hóspede
faminto.
Custou-lhe pouco se tranquilizar quando pensou que em só dois dias estaria
dormindo no castelo.
Ficou olhando um bom tempo pela janela. Observava as negras ondas que
quebravam na praia, justamente onde fazia duas horas que o sol havia se
escondido na enseada após parecer uma chama de fogo. Até o cheiro, mesclado
com os reconfortantes aromas da comida que haviam servido não fazia muito
tempo no refeitório do piso abaixo, parecia menos selvagem e feroz.
O estômago lhe rugiu. Se não ficasse acordada toda a noite por culpa da
passagem dos demais hóspedes pela escada, seria por culpa de seu estômago
vazio. Mas não tinha dinheiro suficiente para pagar o quarto e a ceia.
O capitão Andrew pagaria a ceia se lhe pedisse. Mas estão estaria em dívida
com ele e esperaria que a pagasse. Era o que costumavam fazer. Havia
conhecido muito poucos homens que não a fitassem como se fosse algo com
que se enrolar, alguém a quem dar ordens ou comprar. E odiar. Como o homem
a quem suas irmãs chamavam “papai”.
Ela acreditava que o reverendo Martin Caulfield era um bom homem, de
sinceras intenções e afetuoso à sua maneira. Admirava a modéstia de Eleanor e
estava orgulhoso de sua inteligência. E lhe divertia o interesse que Ravenna
mostrava por cada bicho e pássaro do povoado; imaginava que era uma
naturalista amadora. Mas nunca havia se preocupado por sua filha adotiva do
meio. Uma vez, quando era muito pequena e o incomodou enquanto trabalhava,
repreendeu-a e disse que não respeitava sua vaidade.
Mas quando cresceu viu algo mais em seus olhos. Decepção. Desgosto.
Então, no dia em que completou quatorze anos, a viu falando com o filho do
ferreiro. Era um rapaz robusto. Havia-lhe levado um ramo de flores que havia
colhido de um jardim e riram por ele ter escapado sem que o jardineiro o visse.
O reverendo a encontrou ali, segurou-a pelo pulso e a arrastou até a casa.
Chamou-a de sem modéstia e leu para ela a história de Jezebel. Disselhe que
sempre havia suspeitado que sua mãe era uma mulher de má reputação. Que
outra classe de mulher, senão uma prostituta ruiva, se desfaria de suas filhas
dessa forma? Arabella devia lutar contra essa tendência que levava no sangue,
pelo bem da reputação de suas irmãs e pelo bem de sua alma.
Depois desse dia, deixou de procurar sua aprovação e seu afeto. Decidiu
estudar para poder encontrar sua mãe e demonstrar ao reverendo que se
equivocava. A longa enfermidade de Eleanor o fez possível. Foi ela quem foi
para a escola com os fundos que havia economizado, no lugar de sua irmã mais
velha, e ali aprendeu o que necessitava para forjar um destino. E com sorte,
talvez, algum dia, poderia encontrar seu pai.
Levou os dedos ao lenço que usava na cabeça. Lembrava-se muito bem do
cabelo de sua mãe, sedoso e brilhante sob o sol tropical.
O seu estava muito sujo. E a cabeça coçava. Não podia se apresentar ante a
princesa Jacqueline com aparência de uma freira. Mas se soltasse o cabelo sem
lavá-lo, teria um aspecto ainda pior.
Pegou a minúscula vela que Monsieur Gripon lhe havia dado, saiu do quarto
e desceu os quatro estreitos degraus da escada até o salão. Já era tarde. Deu uma
olhada pelo corredor que conduzia à parte posterior da pousada. Uma mulher
vinha para ela. Tinha as bochechas rosadas, o cabelo preso e a saia negra
engomada.
– Sou madame Gripon. – Falava como a criada que servia na última casa
onde havia trabalhado. – O gato lhe comeu a língua, senhorita?
– Gostaria de me banhar. – Arabella adotou um tom de voz o mais altivo que
pôde. – Quero que tragam água quente a meu quarto agora mesmo.
– Ora, agora que capturou a atenção de sua senhoria ficou altiva, não?
– Como?
A mulher apoiou os punhos no quadril e a fitou de cima abaixo. Negou com
a cabeça.
– Mas tendo em conta que não é ele quem pagará a conta, parece que não
poderei preparar o banho.
– Claro que sim.
A mulher estendeu a mão para Arabella.
Serão dois luíses.
– Dois? Mas isso é um roubo.
A mulher voltou a pousar a mão no quadril provocando um frufru de tecidos
caros.
– O preço para tomar um banho em meu hotel é de dois luíses, senhorita. Se
não os tem, não tenho água quente para a senhorita.
– Então traga-me água fria e me arrumarei com isso.
Voltou a estender a palma da mão.
– Serão três pennies, senhorita.
Arabella reprimiu sua irritação.
– Boa noite, senhora.
Subiu os degraus o mais tranquilamente que pôde com a vela tremendo entre
as mãos.
Quando entrou no quarto, largou a vela, tirou o pano sujo da cabeça e o
jogou sobre a cama. Caiu-lhe a cabeleira sem brilho até a cintura e seu estômago
acompanhou o movimento com um intenso rugido. A frustração, a impotência,
o cansaço e a fome se apoderaram dela. Enterrou o rosto entre as mãos.
Nada. Nem um soluço. Nenhuma lágrima. Nem uma gota de umidade.
Nunca chorava. Tinha o coração seco desde o dia em que recebeu seu
primeiro açoite no orfanato. A diretora riu com a vara na mão, e Arabella jurou
para aquela mulher e para Deus que não voltaria jamais a chorar.
Aproximou-se da janela, abriu os basculantes e ficou olhando o escuro mar.
Debaixo dela, os cavalos que não podia utilizar porque estavam reservados para
um santo relinchavam com suavidade.
Tinha um nó de nervosismo no estômago. A classe de nervosismo que sentia
sempre que estava a ponto de fazer algo que sabia que não agradaria ao
reverendo, um nervosismo que fazia muitos anos que não sentia, porque havia-
se convertido em uma cuidadora de jovens de berço bom e respeitável,
responsável, profissional e muito conceituada.
Ficou olhando o estábulo. Não havia nenhuma lanterna nem tocha alguma
que iluminasse o edifício, e não se via nenhuma outra casa. Antes havia visto
como o cavalariço fechava o estábulo e saía para a cidade. Não havia ninguém
dentro.
Havia passado a infância no campo com uma irmã apaixonada pelos animais.
Sabia muito bem que nos locais onde os animais passavam a noite haveria água.
Não podia fazê-lo. Se a descobrissem…
Apagou a vela e deitou-se na cama na escuridão. Mas ficou acordada,
submersa na violenta música do bater das ondas e notando a brisa marinha
úmida e salgada na pele. Sentia-se suja e pegajosa da viagem, não tinha aparência
de uma mulher a que algum príncipe pudesse levar em consideração.
Mas queria chamar-lhe a atenção.
Tinha que estar bonita quando o visse.
Não a descobririam.
Levantou-se da cama. Enquanto se aproximava da porta, notou o contato do
frio solo em seus pés descalços. Pegou uma manta de listas e saiu do quarto. A
escada estava escura e desceu tateando, ignorando as queixas de um par de
pessoas que subiam. Quando chegou ao patamar, ouviu os furiosos ruídos de
prazer que saíam de um dos quartos. Arabella ruborizou-se, mas não era nada
que não tivesse já ouvido nos quartos dos serventes, e era uma bobagem que
ficasse acanhada quando ela mesma havia pensado nisso cada vez que o capitão
Andrew a havia fitado.
Chegou ao andar de baixo em silêncio.
Necessitava de sabão. Mas não tinha nem ideia de onde poderia encontrar
um sabão apropriado para lavar o cabelo em uma pousada francesa.
Começou a busca na cozinha. Havia um cachorro velho dormindo no chão
junto à chaminé. O animal abriu um olho quando ela se aproximou da despensa,
sacudiu uma orelha, depois fechou o olho, resfolegou e voltou a respirar fundo.
Arabella encontrou um vaso com sabão atrás de uma jarra de ameixas secas.
Curioso lugar para guardar sabão. Então o abriu e meteu o nariz dentro.
Não era um sabão qualquer, mas a mais luxuosa pasta de lavanda que havia
cheirado em sua vida. Meteu um dedo, esfregou-a e quase se pôs a cantar de
alegria. Era óleo de banho. Um bom óleo de banho custava muito mais que dois
luíses. Se ela tivesse algo como aquilo em um estabelecimento público, também
o esconderia atrás das ameixas.
Saiu da pousada às escondidas. A noite estava iluminada por uma finíssima
lua crescente e as sombras que habitavam o caminho até o estábulo eram muito
intensas. As ondas do oceano que rompiam na praia a quinze metros das
bananeiras abafavam os demais sons como se fossem criaturas noturnas.
Arabella tinha para si que aquilo era muito melhor que a brilhante luz da lua e o
silêncio. O que não podia ver nem ouvir não poderia assustá-la.
O estábulo estava escuro, mas quando abriu a porta passaram alguns raios de
lua que iluminaram a palha. Os cavalos resfolegavam enquanto dormiam
tranquilos e o ar tinha um sabor mais seco e menos salgado, mais parecido ao da
terra. Cheirava como seu lar, como a Inglaterra. Inspirou fundo e encheu os
pulmões daquele aroma.
Encontrou um balde cheio de água junto ao primeiro estábulo. Ficou junto
dele um momento, desejando poder jogar-se todo o conteúdo encima, e se
sentiu confusa.
O vestido ficaria empapado, como também as anáguas. Mesmo que se lavasse
por partes, corria o risco de acabar tão empapada como naquela noite no barco.
O incômodo lhe apertou o coração.
Não podia se permitir esse tipo de problema nesse momento. Por um monte
de razões.
O cavalo que estava na baia a observou com olhos de cor de chá enquanto
ela retirava a manta, o vestido, as anáguas e as meias. Deixou-as de lado, ficou
de joelhos e abaixou a cabeça dentro do balde.
Os jorros da água fria e limpa resvalaram entre as mechas de seu cabelo.
Minúsculas sensações de prazer se estenderam por toda sua cabeça. Estremeceu
prazerosamente. Depois de usar o cabelo preso debaixo do lenço durante
semanas, aquilo a embriagava de liberdade. Sentia-se magnífica. Gemeu de pura
satisfação.
Então escutou um pigarrear masculino.
Tirou a cabeça do balde, afastou dos olhos as mechas encharcadas e levou as
mãos aos seios. Piscou na escuridão.
– Quem está aí?
– Deveria pensar em todas as maravilhas do mundo antes de enfiar a cabeça
na areia, duquesa.
A água lhe escorria pelo nariz, os ombros e entre os seios, e gotejava por seu
estômago deslizando por debaixo do camisão. Percorreu-a um pequeno tremor.
– Teria que ter anunciado sua presença antes, capitão.
– Poderia dizer que foi demasiadamente silenciosa para que pudesse fazê-lo.
Mas o mais provável é que estivesse mentindo.
Agora o via. Era uma sombra apoiada em uma baia, como se fosse
perfeitamente normal que estivesse na escuridão em um estábulo em plena
noite. Supôs que era tão normal como que uma preceptora respeitável lavasse o
cabelo no balde de água de um cavalo.
– Não quero interrompê-la. – Fez um gesto e um raio de luar refletiu em seu
anel. – Rogo que continue com o que seja que estiver fazendo. Está tentando se
afogar? Espero que não seja por minha culpa.
– Não diga absurdos.
– Escolheu um método muito ruim para acabar com sua vida.
– Não estou…
– Sei por experiência, sabe?
Arabella sentiu o coração apertar.
– Saia.
Ele cruzou os braços e ficou imóvel entre as sombras.
– Eu cheguei primeiro.
Ela revirou os olhos enquanto sufocava uma lembrança dos músculos
daqueles braços e da sensação tão peculiar que sentiu por dentro quando os
fitou.
– Então é como se tivéssemos nove anos, capitão?
– Se tivéssemos nove anos, duquesa, não quereria continuar aqui.
Uma onda de calor a percorreu.
– Quero…
O capitão manteve silêncio.
– Quero lavar o cabelo – sussurrou como se estivesse fazendo algo
escandaloso. Coisa que era correta. – Mas não posso fazê-lo se está me olhando.
– Não olharei. Tampouco a vejo, de qualquer maneira. Pelo menos não com
clareza. E é uma lástima.
– Saia, por favor.
Fez-se um longo silêncio. O balanço das ondas soava amortizado vindo de
fora e os suaves rangidos dos cavalos se faziam ouvir no interior.
– Pagarei a você.
O rugido de sua voz era profundo e sério.
Arabella voltou a tremer, mas desta vez foi de pesar. De todos os homens
que conhecia, não queria que fosse precisamente esse quem quisesse comprá-la.
Não queria que pensasse que era uma mulher a que pudesse utilizar e depois
abandonar. Por alguma absurda razão queria que ele fosse diferente.
– Já lhe disse…
– Para que lave o cabelo aqui, agora, diante de mim. Só quero isso.
Só isso?
– Eu não…
– Não tem dinheiro para pagar o preço de uma noite nesta pousada nem a
carruagem até o castelo. Nem sequer tem roupa para se trocar. Fora um anel de
que não quer falar, tem uma capa, um vestido muito velho, e um lenço que meu
assistente lhe emprestou. Não pode pretender entrar no castelo de um nobre
vestida com roupa velha, nem sequer entrando pela porta de serviço. Expulsarão
você pensando que é uma vagabunda.
Isso era correto. Mas não podia admiti-lo.
– Pagarei o suficiente para que pague seu quarto e possa comprar roupa nova
– disse. – Desde que continue com o que estava fazendo.
– Não penso…
– Só o cabelo, senhorita Caulfield. E eu ficarei aqui.
– Deixará de me interromper?
– Fará isso?
Tinha o vestido ao alcance da mão. Poderia ter-se tapado. Mas para fazê-lo
teria que se descobrir um momento. Essa ideia lhe provocou um travesso
calafrio. Não era assim como tinha que ser sua viagem à França para conhecer
um príncipe. Mas pela primeira vez em anos queria sentir algo. Queria se
conceder um momento de completa irresponsabilidade e prazer completamente
imprudente.
Não deveria fazê-lo.
– Não acredito que vai ficar aí – disse vacilante.
– Então desejo-lhe sorte com suas contas.
– Sua caridade já não é tão desinteressada, não é, capitão?
Fez-se outra pausa.
– Se oferecesse ouro a você em troca de nada, o aceitaria?
– Não.
– Você não confia na caridade.
Arabella já havia topado com demasiados homens para acreditar que alguém
pudesse lhe dar algo em troca de nada.
– A caridade sempre tem um preço – disse.
– Eu estou me oferecendo para pagá-lo agora. – Mudou de postura e
suavizou o tom de voz. – Vamos, duquesa, faça o gosto a um marinheiro que
leva muito tempo no mar conformando-se com a beleza do horizonte. Permita-
lhe apreciar uma mulher bonita. De modo inocente.
Aquele homem não tinha nada de inocente. Voltava a brincar, mas não era
um homem tranquilo, e se quisesse machucá-la, não lhe custaria muito.
Mas ela não acreditava que ele viesse a fazê-lo. Poderia tê-lo feito quando
estava em seu barco, quando estava bêbada entre seus braços, em sua cama, a
sua mercê. Mas não o havia feito. Demonstrou misericórdia com os ladrões
desesperados e a fitava como um homem faminto.
– É uma simples transação, senhorita Caulfield – insistiu. – Você lava o
cabelo e eu lhe dou o ouro. Nada mais. Nada menos.
– Sim.
Ele manteve silêncio como resposta. Ela nem sequer assentiu para indicar
que aceitava sua lasciva proposta.
Arabella deixou de fitá-lo com a esperança de poder confiar em seu sexto
sentido. O que não podia ver nem ouvir não podia assustá-la.
Abaixou-se e pegou um pouco de água do balde. E enquanto a jogava sobre
o cabelo e esfregava, esperava que não a visse tremer, e que, se se desse conta,
pesasse que o fazia somente pelo frio.
Capítulo 7
O banho
Os raios de luz da lua que passavam pela porta do estábulo a tingiam de
prata. Luc era um homem de palavra, mas não era particularmente nobre. Na
realidade, não teria podido se mover por mais que tivesse querido. A imagem da
pequena preceptora o tinha paralisado: estava de joelhos e seus pálidos e lindos
braços puxavam o tecido úmido que lhe cobria os seios.
O cabelo lhe caía em forma de escuros rios pelas costas e ombros, e os jorros
de sabão deslizavam por sua cabeleira enquanto ela passava as mãos pelo cabelo.
Arabella se movia decididamente com os olhos fechados e os lábios apertados,
sem nenhuma intenção de seduzir e, no entanto, a sedução era inevitável. Ele
havia imaginado aqueles esbeltos braços, esses pequenos peitos, e a curva de
suas nádegas até suas coxas, e finalmente os tinha diante de si como um
banquete.
Estava faminto.
Seu corpo respondeu. Como não. Passou meses sem ver uma mulher nua. O
herdeiro do ducado de Lycombe não distribuía sua semente com
despreocupação. Não podia permitir a existência de filhos ilegítimos que
pudessem sujar a árvore genealógica da família Westfall; seu tio Theodore o
havia ensinado muito bem. Até esse momento Luc havia tido o suficiente
compartilhando sua cama com mulheres discretas com muita experiência, e
nunca havia necessitado deitar-se com vulgares rameiras. Mas as viúvas
escasseavam no mar. Não era de estranhar que se excitasse vendo a preciosa
preceptora. Era um homem.
Arabella levantou o traseiro dos calcanhares, separou as coxas e pegou o
balde. Depois se inclinou e meteu a cabeça uma vez mais, e Luc perdeu o
sentido. Queria desfazer-se do balde e sentir suas pernas ao redor de sua cintura.
Ela salpicou a cabeça e os peitos, esses pêssegos perfeitos tão maduros que se
marcavam sob o tecido de seu camisão. Uma mulher com experiência saberia
muito bem o que provocaria essa imagem em um homem, as sensações que lhe
estava transmitindo nesse momento. Ou essa mulher o estava provocando de
propósito, ou era virgem e não tinha nem ideia.
Uma virgem. Santo Céu. Seria mais do que ele poderia suportar.
Arabella recolheu o cabelo e o deixou repousar em suas costas. Depois se
levantou e voltou-se para ele.
– Já o fiz – disse. – Só necessito o suficiente para comprar um vestido novo,
uns sapatos e alugar a carruagem. Basta que me dê isso.
A dor da negociação era muito intensa para suportar. Luc se adiantou para se
aproximar porque já sabia que não poderia conseguir nada mais dela.
Arabella ficou onde estava com o queixo elevado. A curva de seu pescoço
estava completamente exposta: era linda, brilhava da umidade, e Luc pensou que
ficaria louco. Ela se escondia atrás de uma fachada de valentia, mas era
completamente inocente, uma menina brincando com uma mecha de fogo, que
insistia em seu jogo mesmo enquanto se queimava toda a casa ao seu redor.
Deteve-se próximo a ela, a ponto de poder tocá-la se se atrevesse, e o
suficiente para que a distância fosse uma tortura. Suas mãos a desejavam. Tinha
a roupa molhada colada ao corpo, e as suaves curvas e o contorno de seus seios
e sua cintura estavam expostos a seus olhos, iluminados pela luz da lua. A
escuridão do cabelo que nascia no vértice de suas coxas era percebida através do
tecido molhado, e tinha os mamilos gloriosamente eretos. Frios. Luc se deu
conta de que ela sentia frio. Mas a cor lhe tingia as bochechas, avançava em
distintos pontos de seu acetinado pescoço e se escondia por debaixo do camisão
colado a sua pele. Seus lábios de morango se separaram e deixaram escapar um
suave som.
Mas estava insegura. Tinha luz nos olhos, mas não era um brilho sedutor, e
sim interrogativo. Valente, quente e receoso.
– Seu cabelo brilha até na escuridão. – Tinha a voz rouca. – Mesmo molhado.
– Tinha que se obrigar a falar ou acabaria tocando-a. – Que tipo de feitiço o faz
brilhar assim? Acaso é uma bruxa disfarçada de preceptora?
– Sim. Mas o que há com você? É um príncipe disfarçado de pirata?
Luc deu um passo atrás.
– Um príncipe não.
Era um homem que deveria ter diante de si naquele momento a missão de
conseguir herdeiros incontestáveis para a herança ducal, e não uma pequena
preceptora mal alimentada, suja e de virtude incerta que havia cruzado a França
em busca de um castelo.
Quando se foi para a porta, deveria ter imaginado como ela deixou cair seus
orgulhosos ombros e o suave suspiro que o seguiu quando saiu do estábulo.
Foi para seu quarto, mas não conseguia dormir. Dedicou-se a passear pelo
cômodo como um animal enjaulado. Como sempre. Mas pela primeira vez em
anos, tinha um motivo.
Os herdeiros a ducados não se divertiam com preceptoras, a menos que
pretendessem assassinar um comerciante ou o filho de um comerciante no
campo ao alvorecer. Esse tipo de mulher sempre tinha algum pai robusto ou
irmãos mais que dispostos a defendê-las dos ataques da libertina aristocracia.
Pelo menos se contavam muitas histórias desse tipo.
Tampouco podia oferecer-lhe algo permanente, e ainda menos considerando
sua língua tão afiada e sua postura tão orgulhosa. Aquela noite havia
demonstrado que podia comprá-la, se estivesse suficientemente desesperada. E
ele não queria se deitar com uma mulher desesperada. Ainda que ocorresse a
remota possibilidade de que ela aceitasse, suspeitava que se tornaria uma amante
muito incômoda.
Pegou um punhado de brilhantes moedas novas de sua bolsa de viagem e a
vela que estava sobre a prateleira e desceu as escadas até o quarto de Arabella.
Deteve-se diante da porta e se imaginou jogando-a abaixo. Imaginou o que
encontraria do outro lado. O receberia com braços abertos? Gritaria para pedir
ajuda? Estaria ali?
Estava ficando louco.
Bateu à porta.
Não houve resposta.
Puxou o trinco e a porta se abriu. Estudou o trinco. Não havia fechadura.
Nem sequer tinha uma trava para se proteger. Gripon era um verme.
Estava encolhida no canto da cama debaixo de uma manta mais fina que seu
camisão. Sua roupa interior estava colocada com cuidado sobre uma cadeira
junto à lareira. As peças eram muito finas para que pudesse viajar usando-as e,
além do mais, uma delas estava molhada.
Estava tão desesperada por comparecer a seu encontro com a princesa de
Sensaire que havia permitido que sua bagagem com toda sua roupa saísse sem
ela.
Enquanto ceavam, seu primo lhe havia perguntado por sua falta de
sinceridade com a dama, e lhe fez uma pergunta que o intrigava: por quê
acreditava que ela era quem dizia ser?
Porque não tinha motivos para não acreditar em sua palavra. Quando a
fitava, via brilhar a sinceridade em seus olhos. Havia-se colocado em perigo para
salvar um marinheiro faminto. E esses meninos de Plymouth… sabia que ela os
havia ajudado. Havia falado com o homem que a acompanhou ao levá-los a seu
pai.
Mas a maior confirmação era sua integridade. Com sua beleza podia chegar
mais alto do que pode aspirar uma preceptora. Uma semana na cama do homem
rico adequado poderia ter-lhe proporcionado facilmente uma loja, um trabalho
de modista ou qualquer outra profissão respeitável para mulheres de boas
famílias. E se tivesse passado mais tempo, poderia ter conseguido uma casa
própria. Bem vestida e perfumada, poderia ser uma cortesã que deixaria loucos
os homens. Mas ela não confiava nos homens. Era evidente que já lhe haviam
feito propostas. Mas as havia recusado.
Nada disso explicava por quê uma mulher com sua beleza e espírito não
havia se casado. A menos que não fosse adequada para se casar com um homem
respeitável. A menos que, na realidade, não fosse virgem.
Sua linda cabeleira estendida sobre o travesseiro continuava molhada e
embaraçada. Não usava touca. Adoeceria e morreria porque ele era muito
estúpido para se dar conta de que a jovem devia ter secado o cabelo diante de
um bom fogo. Deveria lhe trazer madeira para a lareira, despertá-la, conseguir-
lhe um pente e obrigá-la a secar o cabelo.
Mas não podia despertá-la. Adormecida, suas pestanas de cor de canela
escondiam as chispas de seus olhos. Adormecida, era menos bonita. Na
realidade, não era bonita, só era uma criada muito magra que começava a deixar
para trás a juventude ou, talvez, que havia sido castigada por uma vida de
servidão.
Mas não podia deixar de fitá-la. Estava claro que não fingia estar adormecida;
ele era o único bobo entre os dois que continuava acordado e morto de desejo.
Depois da auto imposta sessão de tortura, deixou as moedas que lhe devia
sobre a mesinha de cabeceira e saiu do quarto. Uma vez na escada, colou as
costas na parede e sentiu o peso de seus membros, a falta de equilíbrio que se
apossava de suas pernas quando estava em terra, agravada por seu estreito
campo de visão no escuro.
Afastou-se do edifício na escuridão em direção à praia. Subiu a inclinação e
retirou a jaqueta e o colete. O vento soprava com força e levou o lenço que
estava amarrado ao pescoço. O pedaço de tecido se afastou voando durante
vários metros antes de pousar na areia. Depois retirou as botas. O quebrar das
ondas abafou suas maldições à lua crescente – que apesar de seu escasso
tamanho brilhava muito para ele – e as maldições seguintes dirigidas ao balanço
das ondas, que pareciam projetar um brilho sagrado sobre a praia.
Quando estava só de calção, tirou da cabeça o lenço negro, com que já não
saía a nenhuma parte, e entrou no oceano. A água estava gelada. Entrou até a
cintura e depois mergulhou em uma onda.
A água lhe golpeou a cara e os ombros. A cicatriz lhe ardeu e voltou a
mergulhar, depois mais profundamente, mais longe da margem, do cais, dos
barcos e da civilização. Afastou-se da lua em direção ao sul e remou com os
braços na correnteza. Fechou os olhos. O peito se tensionou e a respiração se
acelerou, sentiu o sabor do mar frio na boca e percebeu o cheiro e o som desse
mar por todas as partes enquanto notava a força da correnteza afastando-o da
praia. Deixou que o levasse.
Um tempo depois deu meia volta, encheu os pulmões de ar e fitou as estrelas.
– Maldição – voltou a amaldiçoar a lua pelo mero prazer de amaldiçoar em
voz alta.
A água se agitava com força no estuário e o mexia, submergindo-o sob as
ondas e empurrando-o à superfície pouco depois. Já não via a margem. Estava
demasiadamente longe, e o brilho da água eclipsava tudo. Mas sabia onde estava.
As estrelas e a lua não o abandonariam.
Iniciou a viagem de regresso mediante lentas e controladas braçadas. A
correnteza puxava seus braços e suas pernas para arrastá-lo, mas lutou contra
ela.
Quando por fim seus pés tocaram a areia e as ondas arrebentaram contra seu
corpo, saiu da água, e, uma vez na areia, ficou de joelhos. Deixou-se cair para a
frente exausto e sua mão roçou um tecido.
Abriu o olho e riu. Deslizou o dedo por debaixo do lenço, pegou-o e colocou
sobre a cara destroçada. Depois deitou de costas sobra a areia, que ainda
conservava o calor do sol.
Pela primeira vez em meses, dormiu até o amanhecer.
Quando Arabella despertou, descobriu junto a sua cama cinco moedas de
ouro gravadas com o perfil do rei da França.
Levantou-se e, com a pele arrepiada, cobriu-se com a blusa, as meias, o
espartilho, as anáguas e o vestido amassado. Amarrou as botas, pôs a capa e
desceu as escadas da pensão. Era tão cedo que havia névoa na rua. Atou bem a
capa, desejando que o sol abandonasse sua incerteza rosácea para se tingir de
tons dourados. Talvez quando saísse o sol ela pudesse esquecer aquela noite, a
luz da lua no estábulo e como se havia sentido.
Estavam abrindo as janelas da padaria. O padeiro a saudou esboçando um
sorriso e dedicando-lhe um seco: – Bonjour, mademoiselle.
Escolheu dois rolinhos quentes e um folhado com conservas. Pagou ao
homem e regressou à pousada em seguida. Um homem com uma carroça cheia
de miudezas passou ao seu lado e a saudou levando a mão ao chapéu. Um
garoto sentado em uma fenda do muro ficou olhando fixamente sua comida.
Arabella deu-lhe um rolinho, prendeu um pouco mais a capa e foi para a praia.
Não pensava em dar aos estalajadeiros a satisfação de ver como comia o
desjejum como uma camponesa.
Tinha muita vontade de fincar o dente na porção de folhado. Fitava-a com os
mesmos olhos com os que a fitou o capitão na noite anterior. Talvez como ela
fitou também a ele.
Não devia pensar nisso. Não devia admitir para si. Depois do desjejum se
esconderia em seu quarto até que acabasse o festival. Depois alugaria os cavalos,
únicas testemunhas de sua vergonha na noite anterior, e a carruagem, para que a
levassem a Saint-Reveé-des-Beaux.
Os escassos raios de sol passavam por entre as árvores e projetavam tons
dourados entre as sombras. Havia um monte de minúsculos caranguejos azuis
perambulando pela areia e as gaivotas voavam em círculos sobre sua cabeça em
busca de algo para comer. No meio da praia havia um homem nu tombado de
barriga para cima na areia.
Arabella deteve-se atrapalhada.
O capitão moveu o braço e tapou a cara com a mão.
Devia ir. Devia afastar-se correndo. Já.
Não conseguia que seus pés se movessem.
Luc sentou-se. Tinha as costas largas e uma pele de cor marrom dourada
pelos raios de sol do amanhecer. Estava toda coberta de areia, que também
estava grudada nos braços. Limpou-a com despreocupação enquanto fitava o
mar.
Tinha que ir. Ele se levantaria e ela lhe veria o…
O capitão flexionou os joelhos e apoiou os cotovelos sobre eles. Os nervos
de Arabella tremeram como gelatina. Usava calção. Estava a salvo.
Deixou escapar um trêmulo suspiro.
Não podia tê-la ouvido, o ruído das ondas encobria todos os sons. Mas ele
deu meia volta e ela se deu conta de que não estava a salvo. Absolutamente. Não
sabia que um home pudesse ser tão atraente. O movimento de seus músculos ao
se voltar para olhá-la, e a evidente força que seus movimentos projetavam, lhe
haviam pregado os pés ao solo.
As palavras dos sermões do reverendo lhe vieram à cabeça, palavras como
“entranhas”, e inspirou vacilante. Havia sido vista. Tinha que ser valente. Não
podia escapar.
Quando ele se pôs de pé, ela esteve a ponto de perder a coragem. Mas devia
devolver-lhe parte das moedas, havia dado demais. E simplesmente era incapaz
de se afastar, correr ou sequer arrastar-se com o tremor que havia se apossado
de suas pernas. Poderia regressar à pousada, esperar que se vestisse e então falar
com ele. Mas talvez jamais tivesse a oportunidade de voltar a ver um homem
como esse. Jamais voltaria a ver a esse homem.
Luc começou a caminhar para ela.
Arabella se obrigou a avançar para ele, como se para ela não fosse estranho
encontrar-se com um homem meio desnudo em uma praia ao alvorecer;
lamentou ter desejado que a luz do sol brilhasse. O dourado do sol iluminava a
pele, exaltando os arrebatadores contornos de seus músculos. Sentia uma intensa
necessidade de tocá-lo. Nunca havia sentido a necessidade de tocar um homem
antes de conheceo capitão, e menos ainda a um homem nu. Tentou não o fitar
intensamente, mas não conseguiu.
Arabella pensava que se deteria a certa distância, mas não foi assim.
A jovem cambaleou para trás e estendeu a mão.
– Pare! Fique aí.
Ele a agarrou pela mão e puxou ela até que estava a escassos centímetros de
seu peito nu.
– Se quisesse se afastar de mim, já teria ido.
Agarrava-a pelos dedos com pouco esforço, e tinha a pele quente. Arabella
não compreendia como podia estar tão quente, estando quase nu. Havia
barbeado as costeletas de pirata na noite anterior, mas voltava a ter uma sombra
na mandíbula.
Ela puxou a mão e ele a soltou.
– Eu…
Tinha os pés enterrados na areia e via como a luz do sol bailava na bochecha
do capitão. Tinha a sensação de ter perdido totalmente o controle. Sabia que
não devia deixar de olhá-lo nos olhos, mas sua atenção resvalou até seus lábios e
o desejo se apoderou dela.
– Por que não me beija? – Provocou-o. Era tão atraente… De seus largos
ombros e seu peito musculoso até os calções que repousavam sobre os ossos de
seu quadril. Um corpo de homem. Um corpo de homem muito atraente. E
estava diante dela, provocando-a sem sequer tocá-la. A verdade era terrível: ela
queria que ele lhe pedisse um beijo para não se sentir culpada por se deixar
beijar. – Sei que quer fazê-lo.
– Não a beijei porque, apesar do que pensa de mim, sou um cavalheiro e não
me convidou a fazê-lo. – Falava em voz baixa. – Convide-me agora.
“Sim.”
– Não.
Luc parecia ter a respiração acelerada e não deixava de lhe fitar os lábios.
Agachou a cabeça e as mechas de cabelo despenteado caíram sobre sua testa.
Sussurrou-lhe próximo aos lábios.
– Só um beijo.
Não devia fazê-lo.
Luc inspirou fundo. Estava muito próximo, mas não a tocava.
– Mmmm. Rosas e lavanda. Vamos, duquesa – murmurou. – Não me faça
suplicar.
– Não. – Morria por sentir a boca do capitão sobre a sua. – Não.
Ele apertou os punhos em ambos lados de seu corpo muito devagar.
Afastou-se dela com o olhar esmeralda quente e pouco fora do eixo.
Afastou-se. Rodeou-a em direção à pousada.
Foi-se.
Ela ficou olhando as marcas das pisadas que deixava na areia. Próximo dali
havia uma jaqueta de homem largada na areia, e um pouco mais longe um colete
e calças, e ainda mais longe, uma camisa. Luc ia embora e o surto de expectativa
que rugia no interior de Arabella gritou de frustração.
Deu meia volta e sua garganta deixou escapar um pequeno som de tristeza.
Os homens nunca se afastavam dela. Era ela quem se afastava deles.
Na realidade, costumava escapar correndo. Não sabia que existisse essa
opção. Nunca havia conhecido um homem que respeitasse seu desejo de não se
deixar tocar.
– Esqueceu a roupa – disse contra o vento.
– Fique com ela – provocou ele por cima do ombro sem se deter.
– Isso é ridículo. Para que eu quero uma camisa e uma jaqueta de homem?
– Dê para alguém. Venda-as. Faça o que quiser com elas. Tenho mais. Muitas
mais.
– Já me deu mais dinheiro do que deveria. – Meteu a mão no bolso para
pegar as moedas. – Deveria…
Luc se deteve e se voltou para ela. Tinha o cenho muito sombrio devido ao
pedaço de lenço que o cruzava. Arabella deu um passo atrás.
– Eu não sou ridículo. – Voltou a se aproximar dela. – Nem absurdo. Nem
sequer irracionalmente arrogante. – Seus passos eram compridos e decididos. –
Sou apenas um homem que quer beijar uma mulher que quer ser beijada. Que
quer que eu a beije. E, no entanto, pretende negá-lo.
Deteve-se diante dela, tão alto e quase nu.
– Eu... – Estava confusa. O vento lhe açoitou a capa e tinha os lábios frios, e
depois desse dia já não voltaria a vê-lo. – Eu... eu não quero que me beije…
Luc a beijou.
Não era a primeira vez que a beijavam. Haviam-na apalpado, se esfregado
nela, agarrado e forçado. Havia tido línguas empapadas de vinho dentro da boca
e mãos frias sob o vestido.
Mas aquilo era completamente diferente.
Sustentava-a empregando somente a pressão da boca contra a sua, com
firmeza, com intenção, como se quisesse senti-la somente dessa forma. Seu beijo
era quente, como se fosse o sol. Ela ficou quieta sentindo como sua luz solar se
expandia por seu corpo, aglomerando-se por sua quietude, e se enroscava em
seu estômago e em seus seios.
Pousou a mão sobre o ombro dela com muita suavidade e capturou seus
lábios com maior segurança sob os seus. Arabella não se moveu. Em questão de
momentos poderia lhe pedir mais. Voltou a beijá-la. Dessa vez parecia
aproximar-se ainda mais. Agarrou-a enquanto ela esperava mais, aguardava que
lhe pedisse para poder rechaçá-lo. Deixou resvalar a mão até seu pescoço.
Pousou os dedos sobre a garganta com muita delicadeza, e lhe inclinou a cabeça
para cobrir a sua boca por completo e poder desfrutar de um interminável
momento de doce e quente conexão.
Depois se afastou de seus lábios.
Ela ofegou e piscou, e lhe escapou um pequeno suspiro de surpresa.
Luc fitou seu rosto com atenção e o seu peito se elevou.
– Outra vez? – Disse.
– Outra vez – sussurrou.
Pousou a mão em sua nuca e uniu seus lábios. Guiou-a com segurança até
que ela lhe entregou seus lábios para compartilhar uma carícia, e outra, e depois
outra e mais outra. Arabella já não estava esperando a oportunidade de rechaçá-
lo. Agora se deixava beijar e esperava que não parasse até que se tivesse saciado
dele, de suas carícias, de seu calor, e do desejo que estava despertando em seu
interior. Queria que a beijasse até que esquecesse o que era não sentir prazer em
um beijo. Luc era terno e meticuloso, e imaginava que já teria adivinhado todos
os seus sentimentos e desejos. Já saberia que estava assustada e excitada, e que
pela primeira vez em anos não se sentia sozinha.
Que bobagem. Aos homens não importavam os sentimentos e a solidão,
somente a luxúria e a satisfação.
Separou-lhe os lábios com a boca e ela o permitiu, consciente de que só
queria dela o que desejava qualquer homem: seu corpo e seu consentimento.
Mas não queria resistir a ele. Ele não lhe pedia mais do que estava disposta a
oferecer, o que estava ansiosa por lhe dar. Havia olhado para ela muitas vezes
com gula, e agora era ela que morria de desejo por ele.
Ficou na ponta dos pés na areia procurando-o mais profundamente. Luc
pousou a mão em sua nuca, inclinou-se sobre ela e Arabella se abriu, deixando
que a utilizasse como quisesse, permitindo que a guiasse. Queria mais, queria
sentir mais intensamente essa crescente dor em seu interior que buscava com
desespero.
Ele acariciou a língua dela com a sua.
Ela deixou cair os folhados.
Luc repetiu a manobra e ela ficou louca por dentro. Suas mãos começaram a
tremer por debaixo da capa. Ele lhe chupou o lábio inferior e ela deixou escapar
um suave gemido. Luc prendeu o som com a boca e voltou a acariciar a língua.
Arabella escutou os sons que saíam de sua garganta, sons que não reconhecia,
sons de surpresa, necessidade e tristeza. Não devia desejar aquilo, mas queria
mais. Queria estar mais próxima dele. Tinha os braços colados a ambos lados do
corpo e com eles procurava controlar a necessidade.
Luc segurou-a pelo rosto e se apoderou por completo de sua boca. Ela a
entregou, permitindo-lhe a entrada, deixando-se conhecer. A respiração dos dois
se acelerou. Os peitos de Arabella roçavam o torso do capitão e de repente o
calor explodiu no interior da jovem. Luc rugiu.
– Duquesa.
Era um som de frustração e angústia. Deixou resvalar as mãos pelas costas
dela, que gemeu enquanto ele a estreitava contra seu corpo.
O capitão tinha gosto de sal, vento e calor, e estava rígido por todo o corpo,
tinha músculos e peito muito poderosos e a rodeava com braços muito fortes.
Queria tocá-lo. Tinha a pele quente, força e beleza, e embora ela fosse pobre e
estivesse suja, sentia-se como a mulher mais bonita da Terra: linda e inocente,
pela primeira vez em anos.
A garganta dela se contraiu e sentiu um calor por detrás dos olhos. Era uma
fantasia. Estava inventando fantasias.
Queria afastá-lo. Mas ele não era uma fantasia e ela não parecia capaz de
soltar-se dele.
Luc lhe afastou o lenço e deslizou os dedos por seu cabelo, e então o tirou
pela segunda vez. Mas debaixo só encontrou uma trança muito apertada, do tipo
que sua irmã Eleanor a havia ensinado a fazer. Naquele dia, havia apertado a
trança com mais força do que nunca.
A trança o deteve. Deixou cair as mãos e a soltou subitamente. Mas respirava
com aspereza e tinha o cenho franzido. O vento mexeu uma mecha de cabelo
para a frente dos olhos de Arabella. Ela o afastou com a mão trêmula e a luz do
sol bailava em sua cabeleira enquanto se olhavam nos olhos.
– Amanhã a acompanharei a Saint-Reveé-des-Beaux.
Não parecia gratificado por tê-la beijado, nem frustrado. Parecia zangado.
Ela negou com a cabeça.
– Não necessito da sua ajuda.
Luc franziu o cenho, mas não deixava de lhe fitar os lábios.
– A terá de todos os modos.
– Não quero sua ajuda. Eu… Por favor, não a ofereça.
Ele inspirou com aspereza e o peito subiu. Por um momento parecia que
fosse falar.
Deu meia volta e se foi para a pousada.
Arabella passou os dedos pelos lábios úmidos e o sentiu neles.
– Não foi só um beijo – disse. O pânico se apossou dela. – Não foi somente
um beijo – gritou.
Ele se deteve, mas agitou a mão com impaciência.
– Terminologia, senhorita Caulfield. Terminologia.
Capítulo 8
A ceia
Arabella não se escondeu. O festival encheu de música as ruas de Saint-
Nazaire e os deliciosos aromas entravam por sua janela aberta. A janela de onde
olhava o estábulo onde havia sido escandalosamente desavergonhada na noite
anterior, e a praia em que havia sido ainda mais desavergonhada.
Meteu as moedas que não pensava aceitar no bolso, pôs a capa e saiu da
pousada. Havia vendedores ambulantes por todas as partes gritando as
qualidades de seus produtos: melões, cerejas, patês, queijos, frutas secas e
azeitonas. O ar cálido exalava uma combinação de flores, carne assada e alho
que só havia sentido nas casas de Londres com chefs franceses. A fragrância era
mais interessante e consideravelmente melhor do que havia cheirado em
semanas, se não contarmos o cheiro de um confuso capitão de navio que
cheirava a mar e do qual parecia não ter o suficiente.
O festival era muito mais que um comércio normal. Mais lhe recordava as
feiras ciganas por onde costumavam passear suas irmãs e ela durante os verões
quando eram meninas. Havia um homem vestido de violeta e amarelo que fazia
truques com cartas e um chapéu, um trio de acrobatas fazia seus números pela
rua, e outro homem engoliu uma espada inteira ante os olhos dos transeuntes
encantados. Havia expectadores de todos os tipos: camponeses, vendedores
com aspecto endinheirado e um montão de gente. Havia músicos tocando um
violino, gaitas e um garoto desalinhado que tocava o tambor e vestia umas calças
azuis e uma jaqueta com botões polidos para a ocasião.
– Não há dúvidas de que esse devia ser o encarregado de tocar o tambor para
as tropas de Napoleão.
A suave voz do conde de Bedwyr fez com que se voltasse.
– Bom dia, milord.
Fez-lhe uma reverência.
Ele lhe sorriu. Não muito longe dali, o capitão Masinter flertava com uma
vendedora cujas bochechas estavam adquirindo uma brilhante cor vermelha.
Arabella passeou os olhos pela multidão.
– Não está aqui – disse o conde brincando com seu relógio de bolso de ouro.
Brilhava sob o sol como as listas douradas de sua jaqueta e os cachos de seu
cabelo. – Está em seu barco fazendo só Deus sabe o quê para prepara-lo e
deixar nas mãos de seu imediato. Mas tampouco algum dia gostou desse tipo de
festa. – Fez um gesto indicando a reunião festiva que os rodeava. – Pelo menos
já não. – Levantou uma mão enluvada e pousou seu dedo indicador sobre sua
atraente bochecha para se apontar o olho direito. – Homens de ação não gostam
que os surpreendam.
Ela sabia que devia mudar de assunto. Não devia dar rédeas soltas a sua
curiosidade.
– Parece que se conhecem muito bem – disse, no entanto. – A cicatriz parece
recente. É uma ferida de guerra?
O conde elevou as sobrancelhas.
– Por que a senhorita mesmo não lhe pergunta, querida?
Porque tinha medo de saber mais coisas sobre ele. Temia que quanto mais
soubesse sobre ele mais vontade teria de beijá-lo.
Guardou silêncio.
– Ah – murmurou o conde. – Ao que parece ela é tão pouco comunicativa
com ele, como ele é com ela. Que interessante. – Segurou-lhe a mão e a pousou
no antebraço. – O capitão perdeu o olho em uma briga faz uns seis meses,
senhorita Caulfield. – Começou a deslocar-se por entre a multidão arrastando-a
junto dele. – Uma discussão terrível. A ponta de uma espada. Mas os duelos são
terríveis.
– Um duelo? Mas os duelos são ilegais.
Deu-lhe umas palmadinhas na mão.
– Somente se o pegam, querida.
– E por que o desafiaram a um duelo?
– Um cavalheiro não pode dizer essas coisas.
Seu estômago se apertou.
– Por uma mulher.
– Uma menina, melhor dizendo. Não é o que a senhorita imagina, – disse em
voz baixa – embora naturalmente não tento sugerir que a senhorita saiba nada
sobre esse tipo de assuntos sórdidos.
– Lord Bedwyr, o senhor ficou muito misterioso. Suponho que o faz para me
confundir.
– Não é fácil alguém admitir ter arrancado o olho de um amigo – disse. –
Não pode esperar de mim que me mostre frio e centrado.
Ela afastou a mão.
– Foi o senhor quem o deixou caolho? Por uma menina?
– Acusou-me de um vício particularmente feio – disse sem evasivas. – E
embora eu admita abertamente ser viciado em bom número de pecados, esse
não é um deles. – Voltou a pousar a mão dela sobre o braço. – Embora tenha
tido seus motivos para chegar a essa conclusão, por isso acabei por perdoá-lo.
– Depois de o ferir.
– É o que costuma ocorrer quando alguém luta com espadas. Mas já
deixamos o assunto para trás. – Sorriu. – Sugiro que a senhorita faça o mesmo.
Perdoe esse pobre homem por seus erros e a mim por ser tão orgulhoso e me
deixar provocar. Aproveitemos este festival tão encantador.
– A procissão vinda da igreja até o cais começa ao anoitecer. – O capitão
Masinter se aproximou por detrás com um papelote de nozes com especiarias
em uma mão e uma caneca de cerveja na outra. – Pelo visto, primeiro caminham
por um tempo com S. Luís pelas ruas e depois o colocam em um barco e o
levam ao mar. Outra vez para as Cruzadas, pobre velho… isto está muito bom.
Ofereceu-lhe uma noz.
– Nunca o considerarão nobre demais para as diversões das massas, não é,
Anthony?
O conde sorriu para Arabella.
Entre uma tenda de empanados e um grupo de pessoas que desfrutavam de
um espetáculo de marionetes, aparecia uma vitrine de uma loja de vestidos.
– Milord. Capitão. Devo entrar nessa loja.
Assentiu para se despedir e se afastou deles.
– A acompanharei encantado – disse o conde, e lhe fez um gesto para que o
precedesse. – Considero-me um expert em moda.
O capitão Masinter sorriu.
– Esperarei aqui. – Fez um gesto com o queixo em direção ao palco das
marionetes. – Desfrutarei do espetáculo.
Uma mulher peituda lhe roçou a manga e ele se voltou para segui-la, sem
nem olhar para as marionetes.
A loja estava cheia de tecidos de seda, algodão, veludo e lã, todos de cores
lindas. A vendedora apareceu em seguida. Era uma mulher miúda vestida com
um sublime vestido de musselina violeta pálido. Deu uma rápida olhada à
elegante roupa do conde e depois fitou o vestido simples de Arabella e sua
desgastada capa de viagem, mas em seguida adotou uma expressão neutra.
– Monsieur, em que posso lhe ajudar? – Disse em um inglês com sotaque
francês.
– É evidente que é a dama quem necessita de ajuda. Eu só vim para
acompanhar.
Passou junto a uma caixa de rendas e sentou-se com elegância em uma
poltrona.
Os olhos de Arabella pousaram sobre um veludo de cor fria e depois
observaram um manequim vestido com um fabuloso vestido de seda azul. Tinha
várias camadas de um finíssimo tule bordado com lantejoulas prateadas, negras e
douradas que pareciam asas de borboleta. Eram tão leves e brilhantes que tinha-
se a impressão de que a dama que o usasse poderia sair voando, se assim
desejasse.
Surgiu um sorriso nos lábios vermelhos da modista. Olhou para lorde
Bedwyr.
Arabella enrubesceu. Não havia dúvida de que aquela mulher estava
pensando o pior dela. Não era a primeira. “Só uma rameira legaria um cabelo
vermelho a sua filha e logo a abandonaria, junto a suas outras duas irmãs, como
fez sua mãe”. Só uma rameira. Uma mulher que aceitava o dinheiro de um
homem em troca de lhe dar prazer.
As moedas lhe arderam no bolso.
– Creio que não comprarei nenhum vestido – disse à modista, e saiu da loja.
Deixou que o capitão Masinter e lorde Bedwyr a acompanhassem na
procissão. A multidão cantava um hino solene durante todo o caminho e o ritual
lhe lembrou uma coroação. Supôs que era o que se pretendia.
Quando embarcaram a estátua dourada, pintada a mão, de tamanho real de S.
Luís, em direção à Terra Santa em um barco muito pequeno para sua própria
vela, junto ao único marinheiro que a conduzia, desculpou-se ante seus
companheiros e regressou à pousada.
Penteou o cabelo enquanto escurecia, prendeu-o em um coque e alisou os
enrugados de seu velho vestido enquanto seu estômago se queixava de seu
vácuo. Aguardava-a uma ceia modesta em uma pequena taverna que havia
descoberto próximo à igreja. A maioria das celebrações havia se transferido para
a água, e Arabella passeou em direção à igreja pelas ruas da cidade, cada vez mais
vazias. Cearia, dormiria e no dia seguinte faria sua curta viagem até o castelo. E
ali encontraria seu destino.
Pôs o capuz, apertou a capa com firmeza e voltou à esquina da ruela que dava
acesso à taverna.
Quatro homens lhe bloquearam a passagem nas sombras. Três deles
aguardavam em grupo e o quarto estava apoiado na parede.
Arabella se deteve.
Mas já era muito tarde.
– La voilà – exclamou um deles.
“Aí está?” ela nunca os havia visto.
– Où est votre homme, ma petite dame? – Disse aproximando-se e olhando
atrás dela. – Onde está seu homem? – Repetiu com a língua grossa.
Outro deles o seguiu.
– Eh, signorina?
“Italiano?”
Arabella retrocedeu. Os homens riram com aspereza e falaram entre eles para
que ela não os entendesse. O homem que estava na frente lhe fez gestos para
que se aproximasse dele.
– Va be. Noi vi abbiamo ora. Allora, ucciderlo.
Levou as mãos à braguilha e puxou.
Arabella deu meia volta e correu. A rua estava deserta e os ruídos do festival
soavam ao longe. As pisadas ressoaram às suas costas. Uma mão puxou sua
capa. Ela se soltou. A saia se enroscou nas pernas e meteu o pé numa poça. Caiu
para a frente. As risadas se aproximaram.
Arabella cambaleou até uma luz, uma porta. Rezou para que tivesse gente.
Agarraram-na pela capa, pelo braço e lhe deram meia volta.
– Não! Solte-me!
O homem riu. Tinha os dentes negros e as bochechas afundadas. Os olhos
do outro sujeito se moviam da esquerda à direita. Estavam bêbados.
Arabella resistiu procurando se soltar, mas o que estava bêbado lhe agarrou o
outro braço. Um terceiro homem apareceu por detrás.
A imprensaram contra a parede e seguraram seus ombros contra a pedra. Um
deles estirou o braço em direção à sua saia.
Ela gritou.
Luc prendeu bem o lenço do pescoço.
Miles lhe segurava a jaqueta.
– Sua Graça, no entanto …
– Sua Graça?
O capitão fitou o reflexo de seu auxiliar no espelho.
– Como o senhor não acreditou ser oportuno me informar da morte de seu
tio, lorde Bedwyr o fez – disse Miles suspirando.
– Entendo. – Luc ajeitou os punhos. – Como bem saberá, ainda não sou
duque.
– Mas será.
– É um sujeito muito lúgubre.
– O bebê da duquesa poderá ser uma menina. Como ia dizendo, preparei
uma maleta com roupa adequada para o castelo, e pedi que tragam uma
montaria esta noite para que esteja disponível quando vá com a senhorita
Caulfield. A carruagem está reservada para as sete em ponto.
– Bom.
Levá-la-ia até ali e se encarregaria de que chegasse a salvo e se instalasse com
seu pessoal e Reiner. Desde que ela o permitisse.
Não deveria tê-la tocado. Não era a primeira vez que alguém beijava a
pequena preceptora, mas não estava convencido de que lhe tivesse agradado.
Parecia uma estátua de mármore entre seus braços. E, no entanto, seu beijo era
puro fogo. Estava muito seguro de que não seria de seu agrado que a
acompanhasse a Saint-Reveé-des-Beaux, mas não pensava dar-lhe nem voz nem
escolha sobre o assunto.
Depois iria para Londres, encontraria uma esposa e estaria tão ocupado
fazendo herdeiros na dama da aristocracia que teria escolhido que se esqueceria
por completo da linda preceptora, que – se o comportamento tinha algo a ver
com o assunto – deveria ter nascido duquesa.
E o inferno congelaria.
Não era uma mulher fácil de esquecer.
– Quando tiver se ocupado com minhas contas, Miles, tire um dia de folga na
cidade – disse. – Não penso em ficar mais de um dia no castelo.
Miles ficou tenso.
– Não pensava em abandoná-lo com um criado, Sua Graça. Haverá damas
presentes.
– Estou certo de que Reiner não se importará que pegue emprestado os
serviços de seu criado pessoal durante uma visita tão curta.
– É claro que não. Eu o acompanharei ao castelo e regressarei com o senhor
ao Victory quando o senhor quiser.
– Miles, de todas as pessoas que conheço é o único que me trata com tanta
impertinência.
– Creio que não sei ao que se refere, Sua Graça. A senhorita Caulfield
também o faz.
Luc foi ao salão, depois ao refeitório da pensão e não encontrou nem rastro
de Cam, Tony, Gavin ou da preceptora.
Gripon aproximou-se dele com afetação.
– Bonsoir, capitão. Quer que lhe sirvamos a ceia?
– Onde foram meus companheiros de viagem, Gripon?
– O doutor, o capitão Masinter e milord cearam cedo e depois foram ver o
espetáculo no cais. Mademoiselle saiu faz uns quinze minutos.
– Saiu sozinha? Para o festival?
– Oui, monsieur.
– E não tentou convencê-la para que esperasse um acompanhante?
Gripon cruzou os braços.
– Tinha muita pressa, capitão. E todas as famílias saem à rua quando há festa.
Estará perfei…
Mas Luc já havia saído. Havia um cavalo atado diante da pensão. Pegou a
rédea, montou e deu meia volta.
Encaminhou-se para os píeres da cidade, para onde a multidão havia se
deslocado para aproveitar os festejos noturnos. Enquanto a procurava, os cascos
do cavalo batiam nas ruas calçadas e nos cais.
Não a encontrou na rua e nem no restaurante. Foi em direção contrária à
procissão. Não teria se afastado das zonas povoadas da cidade. Receava muito
aos homens para fazer algo tão…
Um grito ressoou nas paredes da ruela que estava adiante.
Dirigiu-se para ali.
Tinha-a imprensada contra a parede, escondida atrás de uma pilha de caixas,
dois a agarravam pelos braços para que não se movesse e lhe tapavam a boca,
outro a segurava pelas pernas e as separava. Havia outro homem aguardando
entre as sombras da ruela.
Luc desembainhou a espada e deslizou a lâmina pelo ombro de seu atacante
antes que algum de seus amigos tivesse tempo sequer de ver o cavalo que
pairava sobre eles. O sujeito gritou e cambaleou para trás. Um dos homens que
estava ao lado deu meia volta e saiu correndo pela escuridão da ruela por onde já
havia desaparecido o terceiro. Um quarto sujeito se aproximou do capitão por
detrás.
– Capitão! – Gritou Arabella.
A caixa de madeira lhe bateu sobre a cabeça e os ombros. Tudo ficou negro.
Apenas tinha consciência para tirar os pés dos estribos e descer do cavalo.
Deixou-se cair até o solo esquivando-se dos cascos do animal e ficou de joelhos.
Tinha a sensação de que a rua se inclinava sob seu corpo, e se esforçava para
tomar ar enquanto com a mão buscava às cegas a espada que havia soltado ao
cair.
– Aqui!
Luc levantou a cabeça. Arabella estava a um metro de distância pegando a
espada do solo, mas sua silhueta envolta na capa cambaleava e estava manchada.
Alcançou-lhe os ombros. Luc caiu ao solo e seu estômago se revolveu.
O relincho do cavalo soou muito distante. Desenfreado.
O homem rugiu quando voltou a levantar a caixa vazia.
– Não!
Arabella correu até o atacante com a espada.
Luc girou pelo solo apoiando-se no ombro e grudou na terra seu inútil olho
direito. Alguém gemeu de dor. O capitão sacudiu a cabeça procurando recuperar
a visão e buscando o homem da caixa.
Ela havia se adiantado. O sujeito estava sangrando por debaixo do braço;
gritava e havia soltado a caixa. Outro dos atacantes a segurava por trás e lhe
retorcia os braços nas costas. A espada repicou no solo da rua. O homem ferido
cambaleou para ela amaldiçoando.
Luc se esforçou para se levantar e conseguir que seu corpo voltasse a
funcionar. Nada. Os homens a empurravam, a arrastavam e a atiravam ao solo.
O homem que sangrava estava encima dela e lhe subia a saia. Ela chutava com
força.
O capitão ficou de joelhos e obrigou suas extremidades a funcionar. A espada
estava escassos centímetros de sua mão. Bendita mulher. Havia sido ela quem
havia chutado em sua direção.
Lançou-se sobre a arma e ficou em pé.
Golpeou seu atacante com a lâmina da espada. O outro soltou a jovem
gritando e saiu correndo. O atacante cambaleou fugindo e escapou gritando
maldições.
De repente, e com exceção de Arabella, a ruela ficou vazia.
A cabeça de Luc dava voltas. Ela o segurou pelo braço. Depois o abraçou e
colou seu corpo ao dele. Tudo estava borrado.
– Não caia.
Sua voz soava contraída e tinha os braços tensos.
Estava segurando-o? Isso era um disparate. Mas a ruela era um túnel escuro,
as extremidades lhe pesavam muito e os ouvidos zumbiam.
– Temos que ir a algum lugar onde haja mais gente, e rápido – disse ela. – Se
cair, não terei força suficiente para voltar a levantá-lo.
Arabella fez com que se apoiasse em seu ombro e deslizou o braço por sua
cintura para lhe empurrar para a frente.
Luc piscou e viu um ponto de luz borrada que se converteu em uma tocha,
depois viu uma lanterna pendurada ante uma porta. Depois viu outra. A cabeça
latejava e lhe zumbia ao ritmo da música que começava a se infiltrar pela rua.
Piscou novamente, depois o fez com mais força, e conseguiu enfocar melhor. O
ombro lhe doía muito. Concentrou-se na mulher em cujo ombro se apoiava. Seu
cabelo, preso em um coque descoberto, brilhava como fogo.
Afastou-se dela.
Arabella ficou de pé, tremendo.
– Mas está…
– Sim.
A rua se mexia. Segurou-a pelo braço e puxou-a. Viraram uma esquina em
direção a uma rua com lanternas diante de cada porta. Havia gente reunida ao
redor de um par de malabaristas que se lançavam tochas acesas. O capitão
Andrew a fez contornar a multidão até um espaço escondido entre as sombras e
a virou para colocá-la na frente dele. Seu olho estava em chamas.
– Maldição, em que estava pensando quando decidiu sair sozinha pela cidade?
Aonde ia?
Arabella não podia controlar o tremor que percorria todo o corpo.
– Cear.
– Cear?
– Tinha fome.
– Tinha…
– Fome! Levo semanas sem comer bem e, com as malditas moedas que
insistiu em me dar por fazer algo que não devia fazer, pretendia cear. – A
explicação se precipitou por sua língua. – Depois do que passei esta manhã não
queria arriscar a cear na pousada e me encontrar com você porque não quero
voltar a fazer coisas que não devo fazer. Mas… tinha fome.
O olhar de Luc pareceu dar voltas. Esticou a mão para ela e Arabella se
sobressaltou.
Ele deu um passo para trás.
– Eu… perdoe-me.
– Como posso lhe perdoar algo quando acaba de me salvar desses homens e
de minha lamentável falta de juízo? É ridículo.
Não queria estar em dívida com ele. Estremeceu por dentro tomada pelo
pânico.
– Não tinha medo – disse com uma voz estranha. – Pelo contrário.
Os joelhos lhe falhavam. Havia sido uma idiota. Só pensava em escapar dele e
em nada mais.
Luc se aproximou dela, mas só a segurou pela mão e a rodeou com a sua.
Agora está a salvo – limitou-se a dizer.
– Não quero estar em dívida com você – disse, porque o melhor que podiam
fazer era ser sinceros.
– Isso já me ficou perfeitamente claro – murmurou ele por debaixo da música
dos malabaristas. – Foi muito valente. Se tivesse ao alcance a serra de Stewart e
sua jarra de cobre, nem sequer teria necessitado de minha ajuda. – Colocou um
sorriso em seus atraentes lábios. Pousou os dedos sob o queixo dela e levantou a
cabeça. – Como agora eu também estou em dívida com você, podemos supor
que estamos em paz?
Ela concordou. Luc a observou em silêncio durante um momento, depois
deixou escapar um tenso suspiro e deu meia volta. Tinha um fio vermelho de
sangue no lenço do pescoço.
– Está ferido.
– Menos do que estive outras vezes. – Fez um gesto para a luz. – Agora creio
que deveríamos ir em busca dessa ceia que queria.
– Já não tenho apetite. Não vi tudo o que ocorreu quando… Que me fizeram
quando…
– Nada – alfinetou. – Venha.
Arabella percorreu as ruas estreitas junto dele. As pessoas passeavam
agarradas pelos braços ante as portas dos estabelecimentos lotados. Todos
estava festejando.
Foram ao restaurante que havia perto da pousada. Ele abriu a porta e ela viu
sua careta de dor.
Deteve-se.
– Não penso em cear até que não tenha cuidado dessas feridas.
– Está me chantageando? Senhorita Caulfield, é uma lástima que não tenha
nascido duquesa.
A jovem viu algo muito estranho em seu olhar quando o pousou sobre seus
lábios.
– Talvez algum dia me case com um duque e dê rédea solta a meu potencial –
disse forçando um sorriso. – Mas até então, serei uma preceptora excepcional.
– Não me cabe nenhuma dúvida.
Falava em voz baixa.
– E essas feridas? – Disse com energia.
Luc esboçou meio sorriso.
– Ou também poderia ser uma babá.
Seu meio sorriso a fez se sentir diferente por dentro e fora de controle. Todo
ele a fazia se sentir fora de controle. Tomava decisões precipitadas por sua
culpa.
Afastou-se da porta e saiu à rua.
– Minha babá era uma mulher maravilhosa. – Devia conservar o tom leve e
falar de coisas sem importância, assim não teria nada entre eles. – Não a recordo
muito bem, morreu quando eu tinha três anos. Mas lembro de seu cabelo negro
e…
– Não quero que me fale de sua babá. – Falava em voz baixa sob os sons
alegres que o rodeavam. – Não quero saber nada mais sobre você. Já estou
praticamente louco de desejo por você, e essa loucura piora com cada palavra
que diz.
– Por lhe falar de minha babá?
– Sobre o que seja. Qualquer coisa. – Olhou para ela e ocorreu o mesmo que
em Plymouth: era um olhar confuso e autoritário ao mesmo tempo. – Desejo-a
quando começa a mover os lábios.
– Então ficarei em silêncio!
– Não creio que seja capaz de ficar em silêncio. Mas tanto faz, tampouco
importaria. Seguiria desejando-a, embora admita que talvez com um pouco
menos de intensidade.
– Nenhum homem me falou como você. Você é sincero. Como se… –
Como se ao deixar claras suas intenções estivesse deixando em suas mãos a
decisão de agir, como havia feito essa manhã na praia. – Desejaria não tê-lo
conhecido – disselhe.
Luc lhe falou com silenciosa intensidade: – Pelo visto, o destino se empenha
em nos contrariar, senhorita Caulfield.
“Destino?”
Afastou-se dele e entrou em um grupo de pessoas que passeavam pela rua.
De repente a rodeou a música das trombetas, tambores e gaitas. A luz dos fogos
se projetava nas paredes, o cobre brilhante e as telas reluzentes. Os vizinhos
riam, falavam e cantavam enquanto avançavam. De repente a música lhe era
familiar, mais suntuosa e livre. Viu de soslaio os músicos, uma banda de ciganos.
Eram muito diferentes da gente do povoado e dos granjeiros. Tinham a pele
morena, grossas mechas de cabelo negro, e usavam brilhantes aros dourados que
decoravam as orelhas dos homens e os pulsos das mulheres. Arabella havia
dançado com suas irmãs a cada verão de sua infância ao som da música de uma
feira cigana. Dançaram no dia em que a velha adivinha lhes leu a sorte e Arabella
decidiu que algum dia se casaria com um príncipe. Esse era seu destino.
Sonhos. Fantasias. Como a fantasia que perseguia nesse momento, correndo
até um castelo em busca de um príncipe, mas caindo nas mãos de um grupo de
homens que poderiam tê-la violado porque estava sozinha.
Ziguezagueou entre a multidão sabendo que a seguiam. Agora já não a
deixariam só. Abriu passagem entre as pessoas apertando a capa contra si e
olhando as caras das pessoas que a rodeavam. Não via os homens que a tinham
atacado, tinha o coração acelerado. A banda se aproximou e a multidão ficou
para trás. Algumas mãos a agarraram ao passar. Ela conseguiu liberar a capa.
Estava tonta, desorientada. Não podia deixar de tremer.
Luc a agarrou pelos braços e afastou as pessoas. Os bêbados se queixavam
rindo e o rodeavam.
– Está bem?
Ela assentiu. Só a tocava por onde lhe segurava os braços e a protegia com o
escudo de seu corpo. Arabella levantou a vista. Luc tinha a cara entre as sombras
e luzes.
– Não sei que giro cruel do destino a trouxe até mim, duquesa – disselhe com
aspereza. – Mas agora preferiria passar um momento de loucura com você a
uma vida inteira de prudência.
– Eu... Por favor. – Tinha a respiração entrecortada. – Não me peça o que
não posso lhe dar.
– O que acredita exatamente que lhe peço?
– Curarei a ferida e depois me deixará em paz, e isso acabará aqui.
Ele a agarrou com força por um instante. A multidão havia-se dispersado e a
música se perdia na escuridão. Perto dali os clientes do restaurante riam e
bebiam vinho na noite cálida.
Segurou-lhe a mão e a guiou sem falar. A pousada estava próxima e a
correnteza do rio que se unia ao mar se misturava com a música dos ciganos.
Levou-a até ali e só a soltou quando chegaram à porta da pousada. Fez um gesto
para que entrasse primeiro. Arabella subiu as escadas sem fôlego pensando nas
palavras que devia dizer para dissuadi-lo.
Quando chegaram a seu quarto e ele abriu a porta, ela se voltou para ele.
– Tenho que ir buscar o cavalo – disse Luc. – Sairemos logo para Saint–
Reveé-des-Beaux. Até então lhe desejo boa noite, senhorita Caulfield.
– Fez uma reverência e saiu com toda pressa escada abaixo.
A noite seguia sendo cálida e as celebrações continuaram apesar de já ser
quase meia-noite. Mas a cuidadosa e rigorosa busca pelas tranquilas ruelas de
Saint-Nazaire esfriou o sangue de Luc e o distraiu da dor que sentia no ombro e
na cabeça. Ia armado com uma pistola e uma adaga, e também levava a espada,
que havia limpado depois de deixá-la na porta, quando ainda duvidava se teria
forças para sair.
Não lhe pareceu muito difícil seguir o rastro de sangue desde o ponto onde a
haviam assaltado. Deu algumas moedas a uma prostituta de uma casa nojenta
junto ao cais E encontrou bo homem ferido tomado em um catre do piso
superior. Tinha a camisa e o casaco tingidos de sangue. Não abriu os olhos
quando Luc falou com ele.
O capitão deu à mulher algumas moedas mais para cobrir os gastos do
enterro e lhe perguntou os nomes de seus comparsas. A garota não os sabia.
Disse que eram marinheiros e forasteiros. Nunca os havia visto antes daquela
noite.
Luc prosseguiu com a busca até que a escura cidade havia ido dormir, mas
não teve êxito. Os outros três homens haviam-se desvanecido.
Só restava encontrar o cavalo. Havia voltado ao estábulo de seu dono e
aguardava nervoso junto ao prado com as rédeas penduradas até o chão.
Tranquilizou-o, montou com muito desconforto e regressou à pousada.
Quando chegou ao estábulo da pousada, viu que a pequena preceptora
aguardava sob o círculo dourado que projetava a luz de uma vela.
Tirou o bridão do cavalo, a sela de montaria e a manta, e conduziu o animal
até sua baia. Depois fechou a porta e se permitiu fitá-la. Aguardava correta e
orgulhosa com o pálido rosto oval emoldurado pelo capuz da capa.
– É evidente que não aprendeu nada de sua aventura desta noite sobre os
perigos que provoca ao vagar sozinha por esta cidade – disselhe.
– Não ignorava os perigos dessas aventuras antes dessa noite, capitão –
respondeu-lhe. – Embora seja certo que nunca me havia ocorrido com quatro
homens ao mesmo tempo.
Tremeu-lhe a voz, mas levantou o queixo como se quisesse negar que esse
episódio a tivesse angustiado.
Luc sentiu uma extraordinária pressão no peito.
– Vejo que encontrou seu cavalo – ela disse. – Suponho que para fazê-lo não
tenha necessitado as quatro horas que esteve fora.
– Passei um tempo em um bar de má fala – respondeu. – Verá que a bebida é
muito útil para aplacar inoportunos...mmm... desejos. Sempre que se beba só,
claro. Quando alguém bebe com uma linda preceptora, pode ter efeito contrário,
como já sabemos.
Arabella se aproximou dele até que estivesse a escassos centímetros. O
coração de Luc acelerou. Ela estirou o braço, deslizou uma esbelta mão pela
nuca e se pôs na ponta dos dedos. Puxou-o pelo pescoço.
Luc pousou os lábios sobre os da jovem, que o beijou com firmeza e
intenção.
Soltou-o em seguida e deu um passo para trás.
-Não esteve bebendo. Não cheira a álcool.
-Bruxa.
O capuz lhe havia caído e os olhos azul royal estavam muito abertos.
-Foi em busca desses homens.
– Preferiria que ficassem livres?
– Preferiria que não voltasse a colocar-se em perigo por minha culpa.
– Não corri muito perigo. Sou bem conhecido por minha habilidade com a
espada e a pistola. Caixas de madeira à parte.
– Não ensinam a brigar com caixas de madeira na escola de piratas?
– Nas que frequentei, não.
– Não foi bastante hábil com a espada quando se bateu em duelo com lorde
Bedwyr.
– Esse erro foi uma casualidade. Coisa que ele mesmo teria admitido se não
tivesse dito com a intenção de impressioná-la.
Arabella fez uma pausa.
– E esse momento de loucura de que falava também é uma casualidade?
– Não. – Lutou contra essa loucura, que nesse instante o assediava com
força. Aquela mulher era diferente de todas as demais. Sem necessidade de
flertar, parecia direta, franca e vulnerável ao mesmo tempo. E linda. Era tão
bonita que continuava desejando-a apesar da terrível noite que havia tido. – Na
realidade, esse é meu estado ultimamente.
A jovem tinha o olhar cansado.
– Agora tenho uma dupla dívida com você.
– Não espero nenhum tipo de pagamento. – Afastou-se dela. – Não quero
que me pague. Sua dívida está quitada.
– Não quero lhe pagar. Não pretendo lhe pagar – se apressou a responder. –
Só quero...
Bateu os cílios com incerteza, e depois com ar suplicante.
Luc contou até dez. Depois até vinte.
Ela não disse nada.
O capitão deu meia volta e saiu do estábulo. Cruzou as árvores em direção à
água buscando refúgio e tranquilidade onde sempre a encontrava.
Ela o seguiu e lhe tocou o braço, e ele sucumbiu à loucura.
Abraçou-a, se inclinou sobre seus lábios e a beijou. Beijou-a conscientemente
e sem nenhum ápice de dúvida, e Arabella não fez nada para detê-lo. Era o que
mais desejava e o motivo pelo qual havia corrido atrás dele. Esse homem a fazia
desejar coisas que não deveria querer, e fazer coisas que não devia fazer, e não
havia dúvida de que aquela era a pior de todas, porque não queria que a beijasse
apenas. Queria que enfraquecesse seus joelhos por algo que não tivesse nada a
ver com o medo. Mas a única coisa, além do medo, que havia feito com que se
sentisse dessa forma era ele. Ele a fazia esquecer que a tinham beijado homens
que não tinham nenhum interesse em agradá-la enquanto se abandonavam a seu
próprio prazer.
Era evidente que ele sim queria agradá-la. Luc pousou as palmas das mãos em
suas costas, as deslizou até sua cintura e a puxou para seu corpo. Também a
deixou fazer isso. Era duro e forte, e ela queria perder o controle por um
momento.
Ele enterrou os dedos em seu cabelo preso, inclinou-lhe a cabeça para trás e
pousou os lábios em seu pescoço. Ela suspirou, sentindo como o prazer
deslizava pelo seu corpo até que o notava por todas as partes, nas pontas dos
peitos e na virilha. Aquela sensação fêz que tivesse vontade de tocá-lo e senti-lo
com as mãos. Deslizou os dedos por seu braço e depois se agarrou a ele com
suavidade. Os músculos que se ocultavam sob sua jaqueta se moveram com a
passagem de sua carícia e um som de prazer rugiu em seu peito.
– Então tem mãos, eh? – Murmurou Luc detrás de sua orelha, apoiando a
boca quente sobre sua pele e fazendo-a sentir-se selvagem por dentro. – Toque-
me, duquesa.
– Não devo.
– Eu lhe peço.
– Assusta-me.
Soltou-a. Inspirou fundo e o seu peito inchou.
– Isto é pior que a guerra. Pelo menos em uma batalha um homem sabe onde
está em todo momento. Geralmente.
– Somente sou sincera com você! Eu...
– Sim ou não?
– Sim.
Arabella cruzou o espaço que havia deixado entre eles e pousou a leve palma
da mão sobre seu peito. Ele a segurou pelo traseiro e puxou-a colocando-lhe o
joelho entre as coxas.
A jovem ficou sem fôlego. Parou de raciocinar. Só sentia seu duríssimo
músculo contra a área mais íntima de seu corpo.
Luc beijou-lhe o pescoço e puxou o broche de sua capa.
– O que está fazendo? – Sussurrou ela. Suas palavras se perdiam no ritmo do
movimento e da necessidade que rugia em seu interior.
– Estou desnudando-a. Estou tocando-a. Deixe que a toque.
Deslizou a mão por sua clavícula e por cima de seu peito. Mas ela não se
afastou, tampouco o repreendeu ou disse que não. Sabia que não devia deixar
que a tocasse, mas queria sentir prazer. Queria, embora fosse por um momento,
ser tão louca quanto um pirata.
Arabella não o rechaçou. Aceitou seus beijos e Luc encheu as mãos com seu
corpo como tantas vezes havia fantasiado.
A realidade era ainda mais doce. Estava ficando louco: queria mais. Sentia
seus peitos pequenos nas mãos e queria chupá-los até fazê-la gemer e conseguir
que corresse para ele. Mas ela estava imóvel, mal o tocava, tinha os olhos
fechados e os ombros tensos. Deslizou a mão por suas costas e lhe passou o
braço pela cintura prendendo-a contra ele, obrigando-a a montar sua coxa. Ela
arqueou as costas esticando o tecido do vestido contra seus peitos.
– Solte o cabelo.
As palavras soaram muito abruptas, como uma ordem que poderia ter dado a
seus homens a bordo do navio.
Milagrosamente, ela obedeceu. Levantou os braços para tirar os grampos e
liberou as grossas mechas de sua prisão. Olhava-o por debaixo dos seus cílios
cor de canela entrecerrados. Quando toda sua cabeleira caiu por suas costas, Luc
deslizou a mão por debaixo da magnífica mata de cabelo e separou os dedos em
seu interior. Era pesado, como a água, a seda e o cobre fundido, e estava quente.
As mechas balançaram empurradas pela brisa da noite e resvalaram para a frente
de seus lábios de morango. Queria ver seu cabelo sobre seu corpo, resvalando
por ele desnudo; não queria ter outra coisa que não fosse seu cabelo entre as
mãos.
– Não comprou um vestido novo?
– Não.
– Deveria fazê-lo. Isso foi o que combinamos.
Deu-lhe meia volta para colocá-la de costas para ele e ela continuou sem
protestar. Afastou-lhe o cabelo, soltou os fechos da nuca e depois os laços que
se cruzavam por debaixo dos seios.
– Vai me desnudar aqui fora, onde qualquer um pode me ver? – Disselhe.
– Todo mundo está na cama, e a lua também. – Inclinou-se sobre seu
pescoço para degustar o cetim de sua pele e ela suspirou. – Somente quero vê-la.
– Não sou atraente – sussurrou ela. – Não tenho curvas nem sou voluptuosa.
Vai se decepcionar.
– Não é atraente – mentiu, porque aos trinta anos já sabia que era uma
bobagem tentar convencer uma mulher do que se negava a acreditar sobre ela
mesma. Tirou-lhe o corpete e desceu as mangas. – É muito magra. Uma mulher
tem que ter mais carne. – Pousou as mãos em seu abdômen, agarrou-a pelo
quadril e puxou-a para si. Seu corpo suave e arredondado aterrissou contra sua
ereção. – Muito mais.
– Não tem nenhum respeito por minha vaidade. – Arqueou o pescoço e ele
apertou mais os dedos. Arabella ficou sem fôlego. – Mas não é o primeiro.
– A vaidade não é o pior de seus pecados, duquesa. – Beijou-lhe o pescoço
inspirando sua fragrância de lavanda e rosas. – É o orgulho.
– Como se eu fosse a única orgulhosa por aqui. Não deveria ter me
preocupado por estar em dívida com você. Já vejo que não é nenhum
cavalheiro.
– E tem a língua muito afiada, coisa de que nenhum homem gosta.
Deu-lhe meia volta para vê-la de frente e ficou sem palavras. As anáguas
eram muito escassas e a camisa era muito fina, esse tecido através do qual havia
visto seu corpo no estábulo. O pesado anel pendurado no decote que se abria
entre seus seios, e várias mechas de brilhante seda acobreada se enredavam com
o simples laço com que o levava preso. Sua pele era como nata, e a curva de seu
quadril era realmente deliciosa.
– Minha língua viperina é irrelevante neste momento – disse ela. – Não
estávamos falando de meus defeitos de caráter, mas de minha falta de beleza.
– Desejo-a. Agora.
Não podia pensar em outra coisa.
A respiração acelerada da jovem pressionava-lhe os seios contra o corpete.
– Sim – sussurrou ela.
Luc deixou cair ao solo a espada, a pistola e a jaqueta. Depois ficou de
joelhos diante dela e deslizou as mãos por debaixo de sua saia. Tinha pernas
magníficas e usava meias muito desagradáveis, que queria rasgar. Deslizou as
mãos por suas panturrilhas até chegar às suas coxas e ela não disse nada, não fez
nada, não se moveu nem um centímetro. Mas ele notava seu tremor.
Necessitava senti-la debaixo dele. Agarrou-a pelas nádegas apalpando com as
palmas das mãos. Ela lhe apertou o ombro com a mão.
Luc puxou-a para deitá-la no solo.
A jovem deixou que a beijasse nos lábios, na dobra do pescoço, as curvas dos
seios, e permitiu que lhe descesse as anáguas e o vestido até que o corpete
deixou de ocultar-lhe os seios. Tinha os mamilos duros e tão escuros quanto os
lábios; destacavam contra a palidez de sua pele na escuridão. Beleza. Era uma
autêntica beleza. Acariciou um seio com o dedo. Ela estremeceu com violência,
mas não disse nada nem abriu os olhos. Luc se inclinou sobre seu seio e rodeou
sua excitação com a língua: sua pele e seus seios eram suaves como pétalas de
rosa. Deslizou a língua pela ponta para degustá-la, e ela separou os lábios em um
silencioso ofego de prazer.
Ele estava destroçado.
Chupou-a e seu membro pressionou contra as calças. A respiração dela se
acelerou e ele a mordeu. Arabella se encurvou debaixo dele apoiando as mãos
contra o solo.
Luc deixou escapar um grunhido de frustração. Ela era sua fantasia, estava
nua e entregue a ele, deitada, cedendo por fim a seus desejos. Mas estava tensa e
silenciosa sob o rugido da maré.
Não queria seu consentimento. Queria seu fogo.
– Abra os olhos, duquesa. – Sua voz soava muito áspera. Fazia muito tempo
que não tinha uma mulher, e estava tempo demasiado esperando por essa
mulher. Não podia esperar. – Fale.
– Estou sentindo – sussurrou ela com o fôlego entrecortado. – Não é
suficiente para você?
Levantou-lhe a saia, baixou as calças e entrou nela.
Calor. Pressão. Umidade.
– Oh, Deus.
Estava morrendo. Ia morrer. Bendita liberação. Fazia muito tempo. Estava
tão quente e firme... Era uma beleza, um anjo e uma sedutora, e estava salvando-
o.
Ela estava ofegando, agarrava-se com força à capa e engolia em seco.
Uma rajada de gelo resvalou pelas costas de Luc e se fixou em seus testículos.
Segurou-a pelo queixo, rodeou sua cara com a mão e a obrigou a abrir os olhos.
– É virgem – disse com a voz rouca.
– Eu... – Arabella tentou afastar o rosto, mas ele a agarrava com força. – Já
lhe disse que não sou como você pensava.
– Abra os olhos. – A contenção lhe agitava o corpo. Aquilo era uma agonia. –
Abra-os.
Ela obedeceu.
– Não...
Luc inspirou fundo e fez força com os braços para se retirar.
– Não se vá. – Ela lhe agarrou pelo pulso. – Faça-o.
– Perdoe-me – sussurrou, e a penetrou.
Não podia fazer outra coisa. Retirou-se e voltou a investir mais
profundamente. Rugiu de alívio empurrado pelo poder e o prazer de possuí-la.
Foi abrindo caminho por seu interior, devagar a princípio, vencendo suas
resistências, e logo, quando já não foi capaz de seguir devagar, o fez mais
depressa.
Ela estava imóvel debaixo dele, tinha o punho sobre os olhos e os lábios
fechados.
– Agora – rugiu Luc. – Duquesa, suplico-lhe.
Segurou-a pelo quadril. Apertou-a contra ele e Arabella gritou. Luc voltou a
entrar nela e ela deixou escapar um gemido. Agarrou-o pelo braço e seu quadril
balançou contra o dele. Então começou a buscá-lo, movendo-se ao ritmo de
suas investidas.
As palavras escapavam dentre os lábios de Luc, preces, maldições. O êxtase
que via na face de Arabella empurrou-o e à sua urgente necessidade até o final.
Ela o agarrou com força e abriu os olhos subitamente, os olhos azuis royal
estavam cheios de surpresa. E então voltou a ofegar, jogou a cabeça para trás e
gritou de prazer.
Capítulo 9
Os votos
Arabella cobriu os olhos com a munheca e apagou as estrelas, que eram as
testemunhas de sua ruína.
Os homens há anos esfregavam-se nela. Ela havia resistido à luxúria de
serventes e chefes, e em duas ocasiões isso lhe havia custado seu posto de
trabalho. Mas não tinha nem ideia do que esses homens queriam, ignorava por
completo o prazer que podia encontrar nesse ato, não sabia que podia
experimentar essas sensações, ou que com suas carícias um homem podia chegar
até seu coração e conseguir que tivesse vontade de cantar, rir, gritar e suplicar-
lhe mais, tudo de uma vez. E lhe dar tudo.
Por fim o sabia.
Enquanto estava ali deitada de costas, com o corpo quente de satisfação,
entregou-se ao pânico. Havia-se deixado arruinar. A virtude que havia guardado
com tanto zelo durante todos aqueles anos havia desaparecido para sempre. Já
não podia recuperá-la.
Havia tentado ficar quieta enquanto ele a tocava. Não que quisesse resistir, só
queria viver o momento de loucura que fosse do presente, não estivesse fincado
no passado apagado e distante, nem no futuro incerto. Pensava que podia se
permitir sentir prazer naquele instante apenas.
Mas havia perdido o controle. Havia deixado que entrasse nela.
Seria assim como havia começado sua mãe? Com UM homem? UM ato? UM
momento de loucura?
O que havia feito?
– Então não queria me pagar, eh? – Disse Luc.
Sentou-se longe dela com as costas apoiadas na árvore. Na azulada luz das
estrelas, Arabella viu que havia desabotoado a jaqueta e afrouxado o lenço, e
tinha os cotovelos apoiados nos joelhos. Seus corpulentos ombros estavam
rígidos.
– Não pretendia que fosse uma forma de pagamento – respondeu.
Só a necessidade de experimentar um momento de perigo que não tinha nada
que ver com a violência, mas com suas necessidades e desejos.
– Eu lhe disse a verdade.
– Teria que me ter dito toda a verdade. – Ficou em silêncio um momento. –
Por que não me deteve?
Arabella sentou-se, penteou o cabelo com os dedos para lhes retirar a areia e
começou a trançá-lo novamente. Não se atrevia a olhá-lo.
– Não queria que parasse – disse, olhando o cabelo que tinha entre as mãos.
– Queria saber o que se sentia. – Com ele. Em seu interior, sentiu pânico de não
voltar a vê-lo e queria ter algo seu que a acompanhasse em seu incerto futuro. –
Depois do que passei essa noite e do que me fizeram esses homens... – Não só
esses homens, o haviam tentado muito antes. – O que aconteceu me assustou.
– Antes disse que eu lhe dava medo.
A voz baixa de Luc se perdia entre o som das ondas.
– Queria fazê-lo nos meus termos. – Seus dedos deslizavam rapidamente pelo
cabelo, retorcendo-o, trançando-o. – Como eu escolhesse.
– Deveria sentir-me utilizado, mas, tendo em conta que é uma causa tão
nobre, suponho que não posso.
– Não ria de mim.
– Perdoe-me.
– É um idiota.
Luc se aproximou dela e lhe segurou o rosto. Sua carícia era mais quente que
a noite e desprendia os aromas do mar, do perigo e da excitação. Arabella não
precisava de conhaque. Ele a embriagava somente por aproximar-se.
– Não costumo deflorar preceptoras.
– E eu não costumo deixar-me deflorar por piratas. Consideramos um
empate?
Mas ele não riu como ela esperava. Agarrou-a com mais força. Arabella viu
seu corpo de homem por onde se abria a gola da camisa, ossos, músculos e uma
pele muito diferentes dos seus. Mesmo depois de tudo que haviam
compartilhado, vê-lo a fazia tremer.
– Tenho que acabar de fazer a trança – obrigou-se a dizer. – Solte-me.
Luc deixou resvalar a mão e ela se apoiou nos calcanhares. Os dedos
tremiam, mas seguiu movendo-os para ocultar o tremor.
– Hoje fiz isso, – disse – mas amanhã...
– Amanhã é outro mundo – afirmou ele com seriedade.
Arabella sabia que ele continuava olhando-a enquanto prendia o cabelo. O ar
da noite lhe acariciou a nuca úmida. O frio e o controle a fizeram sentir-se a
salvo, era uma sensação que lhe parecia familiar.
– Não fui sincero com você – confessou Luc.
Ela se pôs de pé, pegou a capa e cobriu os ombros.
– Posso ter sido virgem, capitão, mas não sou idiota. Os homens nunca são
sinceros com as mulheres com quem querem se deitar.
– Há algo que devo dizer...
– Não. – A jovem recuou afundando os pés na areia. – Antes me disse que
não queria saber nada sobre mim e eu sinto o mesmo. Boa noite, capitão.
A lua havia desaparecido e a única luz que havia era a das estrelas e a da
lanterna pendurada na porta da pousada. Luc não a seguiu; ela sabia que não o
faria. Estava acostumado a dar ordem a dezenas de homens e havia ganho o
respeito e a amizade de capitães da Marinha e de Lordes do Reino, mas nunca a
havia obrigado a fazer nada que ela não quisesse fazer.
Exceto dormir em sua cama sem ele.
Arabella se apressou até a pousada, reprimindo o intenso pânico que crescia
em seu interior. Quando escutou o xingamento do capitão às suas costas,
imaginou que o havia dito porque ela havia saído. Então ouviu as vozes dos
demais homens e soube que não era assim.
Não teve tempo para se defender. Sua espada e sua pistola estavam jogadas
na areia a vários metros de distância.
Mas tinha uma adaga na bota.
Não importava. O murmúrio das ondas o impediu de ouvir esses homens
quando se acercavam, e a escuridão os havia ocultado à vista. Sua absoluta
confusão e o cansaço que lhe havia provocado a surra anterior e os posteriores
exercícios decidiram seu destino. Caíram sobre ele antes que pudesse reagir.
Dois deles lhe agarraram os braços por detrás enquanto o terceiro aparecia entre
as árvores que havia à direita. Seu ombro ferido protestou preso pela dor.
O brilhante reflexo do aço cruzou a noite estrelada.
A dor não foi imediata, só sentiu surpresa e o frio no estômago. Conseguiu
soltar uma mão e lançou o braço para a frente. Seu punho bateu contra uma
mandíbula.
Então chegou a dor, absoluta e devastadora. Inclinou-se para a frente,
procurando chegar a sua adaga. Roçou-a com os dedos e conseguiu pegá-la.
Voltou-se às cegas, atacou com ela e alcançou carne. Alguém uivou de dor.
Rezou para não ser ele.
Uma mulher gritou. Seu atacante caiu de costas.
Luc voltou a atacar.
Uma bota bateu contra sua perna. Seu ombro ferido se chocou contra o solo.
Só foi capaz de rugir.
O gelo se estendeu por seu estômago, e seus assaltantes começaram a
sussurrar entre eles.
“Italianos.”
Saíram.
Haviam ido de verdade? A escuridão o envolvia. O ruído da maré o
embalava. Ofegou, tratando de tomar fôlego. Tentou se mover.
“Oh, Deus.”
Certo. Era melhor que ficasse quieto. Na realidade, ficar quieto era o ideal.
Inclinou-se sobre o buraco que tinha na barriga pressionando-o com os nós
dos dedos e se amaldiçoando. Não podia se esvair em sangue até morrer, e ainda
menos depois de todas as feridas e horrores que havia sofrido e às que havia
sobrevivido. Morrer nesse momento seria uma estupidez.
Mas um momento depois, quando perdeu a força dos braços e já não podia
pressionar a ferida e o sangue começava a correr por entre os dedos, uma morte
rápida lhe pareceu uma opção perfeitamente razoável.
Arabella estava bastante próxima para vê-los fugir e para ver que um deles
tropeçava não muito longe dali e caía. Não se levantou.
Correu e se pôs de joelhos junto a Luc. Tinha o rosto contraído.
– Não. – Segurou-lhe o braço e o afastou da cintura. Ele não resistiu. Tinha o
colete e a camisa empapados de sangue. “Não”. – Não, não, não.
Não tinha nada para deter a hemorragia. Abriu-lhe a jaqueta e procurou um
lenço.
– Agora me toca? – Sussurrou ele. – Não é o melhor momento.
– Agora levo em conta que poderia não ter outra oportunidade.
As palavras ficaram presas na garganta dela. Encontrou o lenço e o
pressionou contra a área mais escura de sangue.
– Não... – Tinha a mandíbula dura como uma rocha. – Não era o que tinha
em mente.
– Fique quieto. – O que podia fazer? O homem que estava no solo por trás
das árvores não havia se movido. Mas os demais podiam continuar próximos. –
Não deve falar.
– Bedwyr – disse ele sem fôlego.
– Não. Esses homens poderiam voltar. Não posso deixá-lo aqui. Onde está
sua espada?
– Vá.
Arabella engoliu o medo e correu.
O conde abriu a porta de seu quarto com cara de sono, as pontas da camisa
penduradas por cima da calça e os pés descalços.
– Está ferido. Grave. Tem que se apressar.
Entrou em seu quarto e saiu com as botas e a pistola. Enquanto calçava as
botas fez um gesto em direção ao corredor.
– Desperte Masinter e Stewart.
O capitão Masinter abriu a porta empunhando a espada.
– Q-quê? – Arregalou muito os olhos. – Santo Céu. O doutor Stewart tinha
os olhos injetados de sangue, mas despertou em seguida. Pegou sua maleta do
chão.
Saíram da pousada rápido e em silêncio, e percorreram o caminho até a praia.
Luc estava tombado tal como ela o havia deixado, imóvel. Mas agora tinha a
cara entorpecida.
– Não!
Arabella se lançou para ele.
O capitão Masinter segurou-a pelo braço.
– Abra espaço, senhorita Caulfield. Este não é lugar para uma dama.
Ela se afastou dele.
– Mas...
– O padre Stewart sabe bem o que tem que fazer.
O conde deixou uma lanterna junto a Luc e o sacerdote se ajoelhou junto
dele.
– Perdeu muito sangue – murmurou o doutor Stewart.
Tirou o lenço empapado.
– Vai morrer, Gavin?
– Você... – Escutou-se um sussurro baixo. – Bem que gostaria.
O coração de Arabella deu um pulo. Luc não havia se movido.
– Sim, às vezes eu gostaria. – Bedwyr se ajoelhou com suas elegantes calças. –
Mas não de modo tão vergonhoso. Eu não sou tão insensível a nosso passado
amigável como você.
A jovem ficou de joelhos do outro lado de Luc. Sua respiração era tão
superficial que mal podia percebê-la.
– Que quer que faça, Lucien? – Disse o conde. – Estou à sua disposição.
– Por Deus, rapaz. Agora não. – O sacerdote afastou outro tecido empapado.
Abriu a maleta que tinha ao lado e tirou duas pequenas garrafas e um estojo de
couro. Dentro havia uma agulha e um carretel de linha. – Charles, dê-me sua
gravata.
O conde desatou o lenço do pescoço e o deu ao sacerdote.
– Se não podemos falar agora, padre, então, quando? – Disse, e voltou a se
concentrar no homem ferido. – O que me diz, primo?
– Primo?
Arabella deixou de olhar para Luc para olhar ao conde.
– Maldito... seja.
Luc não abriu o olho.
– Utilizar seus últimos momentos para me amaldiçoar é absurdo, garoto.
O conde sentou-se esticando suas longas pernas para a frente e se apoiou em
uma mão. Se não fosse pela escuridão que o rodeava, qualquer um podia ter
pensado que estava em um piquenique. Mas seu rosto não refletia nenhum
prazer. Arabella pensou que estava fingindo. Lorde Bedwyr estava fingindo
despreocupação.
– Pense nisso, Lucien – comentou o conde arrastando as palavras. – Quando
morra, coisa que poderia ser muito em breve, e não, não estou tentando
acelerar...
– Bom... para você.
– Vocês dois são terríveis. Capitão Masinter, detenha isto. – Arabella levou as
mãos às bochechas. – Isso não pode ser real.
– Pois é, querida – disse o conde. – Terrivelmente real. E Luc está pensando
nisso agora mesmo. E mais, embora somente seja por um momento, está
pensando que, se morrer hoje, morrerá sem descendência.
– Sem descendência?
– Sem descendência, senhorita Caulfield. Sem filhos – disse o conde com
extremo cuidado.
Luc estava mais abatido e sua respiração era mais rápida e profunda. O padre
Stewart estava costurando a ferida para fechá-la, e Arabella sabia que a dor devia
ser agonizante, mas Luc permaneceu consciente, de qualquer forma. Sua vida
estava-lhe escapando, sua força, sua vitalidade e sua paixão, e ela estava gritando
por dentro que simplesmente não podia ser. Beijou-a, havia feito amor com ela e
em nenhum momento a havia forçado. Viu-a bêbada e lhe disse que não era
bonita, e ela pensava que talvez gostasse dele um pouco por isso.
– E que importância tem que não tenha filhos? – Perguntou.
Estava morrendo!
– Que importância tem, Luc? – Repetiu o conde. – Seu atual herdeiro saberá
honrá-lo, amigo velho?
– Seu herdeiro? Herdeiro de quê?
O conde ficou em silêncio.
– Capitão Masinter, diga-me!
– De sua propriedade. De suas coisas. O habitual.
Olhava fixamente para o conde com a testa franzida.
– Isso não pode ser real. – Voltou-se para lorde Bedwyr. – Não pode estar
lhe falando desta forma só porque brigaram e se ele, se... – Uma ira impotente se
apoderou dela. – Tem um irmão.
– Exato.
– Essa é a besteira de que está falando? De seu ressentimento contra o
senhor ou contra seu irmão?
Olhou para os três homens alternadamente. Luc estava muito quieto.
Arabella sabia que não estava inconsciente, pelas tensas rugas que lhe rodeavam
a boca. O padre Stewart seguia trabalhando junto a ele e um cheiro amargo
flutuou pelo ar. Ela não podia fazer nada por ele. Não podia fazer nada.
Passara toda a vida lutando contra a impotência. Quando estava no orfanato
e não cuidaram de sua irmã mais nova, ela se queixou e lhe bateram por isso,
mas Ravenna não passou fome. Quando o reverendo lhe disse que devia ser
filha de uma prostituta porque nenhuma mulher recatada teria um cabelo como
o seu, fez com que prometesse sobre a cruz que jamais diria essas coisas diante
de suas irmãs. Quando o filho de seu chefe a acusou de seduzi-lo depois que ela
resistiu a ele com unhas e dentes e a despediram, disse à mãe do rapaz que, se
não lhe escrevesse uma carta de recomendação excelente, diria a todo mundo
que sua filha mais nova não era de seu marido. E quando uma adivinha
prometeu que um príncipe lhe revelaria a verdade sobre seu passado, trabalhou
até que encontrou uma forma de chegar até à porta de um príncipe.
Nunca havia se rendido. Mas nesse momento nada podia fazer, e estavam
falando do fim da vida de um homem como se só suas posses importassem.
– Não posso crer que queira falar disto agora – murmurou.
– Ele quer falar disso, querida – respondeu-lhe lorde Bedwyr.
– Não. Não. Eu... – Arabella se pôs de pé. – Tem que haver algo que possa
fazer. – Não podia ficar sem fazer nada, vendo-o morrer. – Tenho que...
– Duquesa.
Foi somente um sussurro. O olhar entrecerrado de Luc era negro sob os
primeiros brilhos da alvorada.
– É isso. – O conde franziu o cenho. – Já vejo que está pensando o mesmo
que eu, primo. – Assentiu. – Imaginava-o. Mas a dama estará disposta?
O olho de Luc pareceu ficar vidrado e voltou a se fechar.
O padre Stewart deixou os últimos tecidos junto a ele; estavam empapados de
sangue.
– Não, Charles. – Negou com a cabeça. – Não é possível.
– Claro que é possível. Você é sacerdote e necessitamos de um casamento.
Allez-y, mon père.
– Eu não sou padre, rapaz.
– Um casamento? – O estômago de Arabella se revolveu. – Mas com
quem...?
– Com a única pessoa aqui presente que poderia, hipoteticamente, estar
carregando seu herdeiro.
O conde a fitou elevando uma sobrancelha.
O doutor Stewart negou com a cabeça enquanto limpava o sangue das mãos,
mas seu sóbrio olhar sugeria que não devia negá-lo.
– Eu...
– Não tem por que dar explicações, querida. – O conde esboçou um sorriso
confidente. – Somos homens do mundo, verdade, Gavin? Tony? E de qualquer
forma, não temos tempo. – Fez um gesto aflito ao doutor. – Adiante, padre.
Pegue seu livrinho e sua estola e faça sua mágica.
– Isso não é magia, rapaz – disse o sacerdote, e largou o pano avermelhado. –
E minha Igreja não o aprovaria.
– Sua mãe francesa era católica e estamos na França, que é um país católico,
não? Você é um sacerdote de Roma e pode casá-los com quem queira. E o que
não satisfaça o ato apressado, estou convencido de que um pequeno remendo
em forma de ouro poderá corrigi-lo.
– É possível que baste para os homens de Roma, mas não para os velhacos
do Parlamento – murmurou o capitão Masinter.
– O Parlamento?
– Como baderneiro capitão naval que é, querida senhorita Caulfield, nosso
encantador capitão não sabe nada sobre as leis de casamento. Não o escute. –
Lorde Bedwyr olhou com firmeza para o doutor Stewart. – Vamos, padre, seus
serviços são requeridos.
– Não penso fazê-lo. – Arabella apertou a capa, mas tinha as mãos
manchadas de sangue e se esforçou para não começar a chorar. – Estão loucos.
Que seja seu irmão quem herde sua propriedade. Oh, Deus. Por favor.
– Verá, senhora, chegou a falsas conclusões. Não é uma briga o que motiva o
último desejo de meu primo. Certo, Luc?
– Não é adequado – Espetou o ferido capitão, inspirando fundo.
– Vê, senhorita Caulfield. Seu irmão não é adequado para herdar.
Arabella apertou seus punhos.
– Capitão Masinter?
– É verdade, senhora. Lamento dizer. Atrever-me-ia a dizer que é pior do que
a senhora imagina.
A jovem fitou o sacerdote. O doutor Stewart estava tenso. Assentiu, a modo
de confirmação.
Arabella não podia respirar.
– Mas na Inglaterra ninguém aceitará como legítimo um casamento celebrado
de uma forma tão precipitada por um sacerdote católico. É escandaloso.
– Pense um momento na situação – disse o conde muito tranquilamente. – Se
em poucas semanas não descobrir que está, como dizer... em estado
interessante, pode considerar tudo uma farsa e seguir com sua vida
tranquilamente. Mas se assim for, e com a assistência deste seu amigo, claro, –
fez-lhe uma reverência – poderia pedir a validação à Igreja da Inglaterra. Desse
modo, nem a senhora e nem seu filho careceriam de nada. A propriedade de
meu primo é... extensa.
– Mas ainda que tivesse um filho... – Tinha a cabeça desnorteada. – Não seria
legítimo. Esse casamento...
– Vai se celebrar depois do ato? – Concluiu o conde. – Muito certo. Mas o
capitão Masinter e eu não o diremos nunca, verdade, Tony? E o bom padre
pode reajustar a data no informe oficial.
O padre Stewart franziu o cenho, mas nada disse. Estava observando o rosto
de Luc. Depois estendeu a mão para sua maleta e tirou um livro forrado com
fitas coloridas e uma longa tira de tecido. Colocou a estola sobre o pescoço e
abriu o livro.
– O quê? Não! – Arabella negou com a cabeça. Não podem obrigar-me a...
– Não se preocupe, mocinha. Não é o sacramento.
A jovem negou com a cabeça.
– Outra coisa?
– A extrema-unção, senhorita Caulfield – murmurou o conde. Observava seu
primo com seriedade. – Os últimos rituais.
– Santo Céu – disse o capitão Masinter com a voz entrecortada.
Voltou a cabeça para o outro lado e seus ombros se agitaram.
Arabella nunca havia visto um homem chorar. Amavam-no, aquele
marinheiro, o nobre e o sacerdote, porque era um homem digno de amar. Mas
ela já fazia anos que sabia que tinha um coração frio.
Então, o que era aquela desesperadora dor que sentia no coração?
– Arrepende-se de todos seus pecados, rapaz? – Disse o doutor Stewart.
Retirou a tampa de uma minúscula garrafa de vidro e colocou o polegar na
abertura.
Luc a fitou.
– De todos... menos de um.
Ela caiu de joelhos junto a ele e estendeu a mão em busca da sua. Mas se
jogou para trás e não a pegou. Não se atrevia a tocá-lo.
– Estão loucos – sussurrou.
– Eu... o suplico.
A tensão marcava suas palavras.
– Nem sequer será capaz de dizer os votos.
Cada palavra lhe doía. Era insuportável.
– Linda... esposa. As rugas da sua boca relaxaram. – Tentarei.
– É um mentiroso. Mentia antes e mente agora, mas tanto faz. – As lágrimas
lhe queimaram os olhos, e depois as bochechas. – Isso é errado.
O olhar embaçado de Luc pousou sobre o conde.
– Diga-lhe...a verdade.
Arabella não conseguia ver por entre as lágrimas.
– Que você é louco e que o seu caso não é transitório?
– Quero que... – Custava-lhe respirar e engolia em seco – lhe...
– Farei isso.
– Ah, conseguiu! – O conde bateu uma palmada – A dama é razoável.
Adiante, padre.
O escocês negou com a cabeça, mas passou as folhas de seu livro. Então
levantou a mãos e desenhou o sinal da cruz no ar entre eles.
– In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti...
Arabella estremeceu naquele cálido amanhecer de verão. Aquele não era
um casamento legal. Era uma farsa para o conde e para Luc. Mas ele a estava
fitando com o olho entrecerrado e não se arrependia. Esse homem a havia
ajudado quando poderia tê-la abandonado. E quando poderia tê-la
machucado, havia-lhe dado prazer. Devia dar-lhe esse presente, mesmo que
fosse falso.
Nunca havia prestado atenção às lições eclesiásticas do reverendo e não
havia estudado como Eleanor; não entendeu nem uma palavra do latinório
que precedeu os votos.
– Lucien Andrew Ral..
. Sim, sim, já sabe seu nome – o conde o interrompeu. – Temos pouco
tempo, padre. Continue.
– Luc, toma a esta mulher como legítima esposa?
– Sim, quero.
Dentre seus lábios saiu só um sussurro.
– Como se chama, moça?
– Arabella Anne Caulfield.
Luc abriu a palma da mão. O padre lhe perguntou se queria se casar com
ele, e ela respondeu o que eles desejavam.
Então o conde se levantou e caminhou com toda pressa para a pousada.
Enquanto ela o observava surpreendida e trêmula, o sacerdote retomou o fio
e começou a recitar o resto do texto em voz baixa e com rapidez. Pousou a
mão sobre a fronte de Luc. O capitão lhes dava as costas de pé, e fitava o
mar com os braços cruzados.
O céu estava se tingindo de cinza e os grasnidos das gaivotas cortavam o
ar da manhã. Arabella continuava sentada; estava como que entorpecida, só
sentindo o pânico que lhe percorria as veias.
A mão do doutor Stewart resvalou da frente de Luc e o sacerdote abaixou
a cabeça.
Não. Não.
Ela se levantou e deu meia volta cambaleando sobre as pernas arqueadas.
Lorde Bedwyr segurou-a pelo braço.
– Não devemos esquecer as formalidades, querida.
Ela ficou olhando o papel e o tinteiro que levava na mão.
– Por que fez isto?
– Deve confiar em mim. – Pegou uma pluma da jaqueta. – E também em
seu marido. – Regressou junto a Luc e voltou a se ajoelhar, tirou a tampa do
tinteiro e apoiou a folha de papel sobre a maleta do doutor. – Isto servirá.
Assinalou a base da página.
Ela o assinou com os dedos entorpecidos.
– Arabella – murmurou o conde. – Sua mulher tem um nome muito
bonito, Lucien. É uma lástima que não tenha a oportunidade de utilizá-lo. –
Pousou a pluma na palma de seu primo. – Agora é sua vez, rapaz. Tente não
o manchar de sangue.
Arabella deu meia volta.
O capitão Masinter estava pálido.
– Vestido... novo – sussurrou Luc. – Sapatos.
– Quer que o enterremos com um vestido e sapatos novos? – Perguntou o
conde. – É um pedido estranho, mas os últimos desejos de um homem são
sagrados. Não direi a ninguém, nem Tony tampouco – acrescentou, mas
Arabella viu a dor em seus olhos.
Deixou-se levar pelo impulso e segurou a mão do conde.
– Quer que me compre um vestido e sapatos novos antes de chegar ao
castelo. Fizemos um pacto. Diga-lhe que me ajudará a comprar roupa nova e
me levará até ali. – Levantou a voz. – Prometa-lhe.
O conde apertou os lábios com força e olhou para seu primo.
– Claro que a ajudarei, bastardo. – Liberou a mão de entre as de Arabella.
– Anthony, ajude-me a levá-lo para dentro.
O capitão Masinter se aproximou.
Arabella não podia olhar a cara castigada de Luc, só suas mãos estendidas.
Daria tudo para segurá-las, deslizar a sua em seu interior e lhe dar sua vida.
Capítulo 10
A viúva
Não a deixavam entrar em seu quarto. Arabella não protestou, eles o
conheciam de toda a vida. Foi a seu próprio dormitório, limpou o sangue das
mãos e as lágrimas caíram na água tingida de vermelho.
Sentou diante da janela e fitou o mar. Pelas escadas se escutavam passos e
vozes. Um tempo depois, envolveu-se em sua capa e se encolheu na cama.
Doíam-lhe as partes do corpo por onde aqueles homens a haviam agarrado, e
tinha muito sensíveis as áreas nas que Luc lhe havia feito amor.
O capitão Masinter foi buscá-la ao anoitecer. Estava com olheiras e tinha
os nós dos dedos brancos por apertar o punho da espada.
– Senhorita, digo, senhora, eu... Quero dizer... – Passou as costas da mão
pelos olhos. – Sinto muito, querida.
– Não pode ser. – Sentia-se cega e sem fôlego. – Posso entrar agora?
O capitão negou com a cabeça.
– Não creio que lhe importe.
Não pode se reprimir. Independentemente do que havia nesse papel, na
realidade tinha tanto que ver com ele como qualquer desconhecido. E desde
que isso era o que havia desejado, supunha que era um castigo justo.
Levaram-na à polícia e lhe mostraram o rosto imóvel e pálido do homem
que Luc havia matado na praia. Arabella o reconheceu. Era um dos homens
com quem Luc havia brigado na ruela.
– Atacaram-no como vingança por ter me defendido – sussurrou
atordoada.
O enterro se celebraria no mar, no dia seguinte. Lorde Bedwyr disse que
depois se encarregaria dos assuntos de seu primo e se reuniria com ela no
castelo. Até então, seria melhor que prosseguisse com seu destino. Subiu-a na
carruagem particular onde o senhor Miles a aguardava e partiram para Saint–
Reveé-des-Beaux, com um corpulento marinheiro do Retribution que viajou
sentado ao lado do cocheiro.
O castelo apareceu diante eles de repente em uma clareira do bosque.
Erigia-se a partir do rio em gótica magnificência. O edifício projetava o
brilho dourado de seus torreões pontiagudos e seus arcos elegantes, e
bradava seu esplendor aristocrático refletido no espelho d´água.
Assaltou-a a mesma debilidade que sentiu a bordo do barco quando iam a
Saint-Nazaire. Mas nesse momento Luc já não estava detrás dela para
tranquilizá-la, nem tampouco sentia o contato da mão dele pegando a sua,
como a sentiu então. Nesta ocasião, sua única companhia era um estranho
homenzinho com o colarinho da camisa engomado e salto alto que não havia
se dirigido a ela em toda a viagem, exceto para lhe oferecer comida e
almofadas.
Arabella supunha que o senhor Miles também estaria triste, à sua maneira.
Nesse momento se inclinou para a janela e disse: – Como pode ver, o
castelo é um testemunho do melhor Renascimento francês, senhora. Uma
arquitetura brilhante. De uma habilidade deliciosa.
Era um castelo saído de um conto de fadas, mas não sentiu nenhum
prazer ao vê-lo.
– O caritativo trabalho que fez a viúva do conde na área o salvou dos
revolucionários, e a família conseguiu conservá-lo – prosseguiu. – Morreu faz
alguns anos, mas seu filho mais novo continua vivendo aqui na ausência de
seu irmão. Conhece Sua Graça ou Sua Majestade?
– Não. O príncipe me contratou por carta, e não sei nada do conde,
exceto que é um lorde inglês novo que leva algum tempo afastado de seu lar.
Nunca ouvi falar dele. – Ficou olhando o castelo. – As pessoas para as que
costumo trabalhar não têm nenhum interesse em lordes ausentes, só lhes
interessam os que residem em Londres e podem prestar atenção em suas
filhas.
O senhor Miles apertava os lábios.
– O conde é herdeiro de um título e uma propriedade de muito prestígio
na Inglaterra, senhora.
O príncipe Reiner tinha a intenção de introduzir sua irmã na sociedade
londrina dois meses depois, com o propósito de lhe encontrar um marido
apropriado. Talvez estivesse visitando o castelo do conde com a esperança de
estabelecer uma aliança entre as famílias.
– É casado? – Perguntou.
O senhor Miles voltou a olhar pela janela.
– Na realidade, casou-se há pouco.
Aproximaram-se do castelo. Suas paredes se elevavam contra o céu azul,
subindo desde o rio prateado como uma fantasia. De seu interior saíram dois
homens vestindo libré azul e dourado, e com espadas presas ao quadril.
Depois apareceu outro homem trajado com casaca negra e cordões
prateados: talvez fosse o mordomo. Abriu a porta da carruagem. O senhor
Miles saiu, deu um passo atrás e disse: – Senhorita Caulfield, prima de lorde
Bedwyr. A jovem veio assumir o posto para o qual a contratou Sua Alteza.
Creio que Sua Senhoria o conde chegará dentro de alguns dias.
De repente Arabella era prima de um conde. Não havia pensado nisso.
Aceitou a mão que um lacaio lhe oferecia e desceu da carruagem.
O mordomo lhe fez uma reverência.
– Por aqui, se for tão amável, senhorita.
O castelo era ainda mais esplêndido por dentro que por fora. No vestíbulo
brilhavam luzes em um lustre de cristal e espelhos em ambos lados, que
dividiam seu reflexo em imagens infinitas. Afastou o olhar e deixou que o
mordomo levasse sua capa. Guiou-a por uma magnífica escadaria de pedra
em espiral. Dava acesso a um corredor forrado com luxuosos tapetes
vermelhos e dourados, e de suas paredes se penduravam retratos de damas
cujos arranjos de cabelos rivalizavam com as torres do castelo, e de homens
vestidos com batas violeta, adornadas com arminho branco. Abriu uma porta
dourada que dava acesso a um salão de um perfeito esplendor.
A silhueta de uma mulher alta e esbelta recortada contra a luz que entrava
pela janela se voltou quando a ouviu entrar. A jovem que aguardava entre
todas aquelas cadeiras com bordados egípcios, o reluzente piano de cauda e a
harpa dourada, vestia um simples vestido de musselina branco e um xale de
renda; não tinha aspecto de princesa.
– Senhorita Caulfield? – Disse.
Arabella lhe fez uma reverência muito acentuada.
A princesa se aproximou dela com presteza.
– Como é jovem! E muito bonita! – Falava um inglês perfeito com um
ínfimo tom de sotaque que delatava sua origem estrangeira. Segurou Arabella
pelas mãos e se inclinou para lhe dar dois beijos, um em cada bochecha. –
Quando Reiner me disse que havia contratado à temível senhorita Caulfield
de Londres, comecei a tremer. Que outra pessoa que não fosse uma temível
preceptora podia conseguir tão bons casamentos a tantas jovenzinhas? Mas
você não é severa e nem terrível. Que sorte a minha.
– A sorte é toda minha, alteza.
– Meus amigos me chamam de Jacqueline. – Observou o rosto de
Arabella com olhos abertos e inteligentes. A princesa era uma garota simples
com o cabelo negro e liso, o nariz comprido e uma boca larga de sorriso fácil.
O único adorno que usava era um pingente de pérolas que levava preso ao
pescoço com uma corrente com aros entrelaçados. – Creio que seremos boas
amigas.
– Isso espero al...
A princesa lhe estreitou os dedos.
– Jacqueline – corrigiu-a. Uniu suas sobrancelhas escuras. – A menos que
esteja escondendo uma terrível e malvada bruxa sob esse lindo rosto e seu
reflexivo sorriso. É isso?
“Bruxa”.
Arabella reprimiu a dor que lhe apertava o peito.
– Descobrirá em seu devido tempo.
A princesa voltou a rir e a arrastou até um sofá.
– Deve estar esgotada da viagem. Mas o secretário de Reiner disse que
chegaria há dias.
– Essa era minha intenção. Mas então perdi a... um bom amigo.
– Oh, sinto muito, senhorita Caulfield. Quando vi o pano negro de sua
carruagem pensei que era pelo velho duque. Não tinha ideia de que estava de
luto. E, no entanto, veio me ajudar de todas as formas. É melhor pessoa do
que pensava.
Arabella não se preocupava que a princesa não compreendesse muito bem
as obrigações dos empregados. Jacqueline era alegre e boa, e em seus olhos
cor de avelã brilhava uma simpatia sincera. Arabella assentiu e sentiu
saudades de suas irmãs, a quem poderia ter confiado a verdade. Essa noite
escreveria uma carta para Eleanor e Ravenna.
– O velho duque? – Disse.
– O duque de Lycombe, o tio do comte. Morreu faz pouco mais de um
mês, e deixou nosso anfitrião como herdeiro de seu filho por nascer. Nunca
conheci um duque inglês. Sempre havia pensado que eram pálidos, grisalhos
e severos. Mas meu irmão diz que o conde é um bom homem, então, se
acabar herdando o título de seu tio, minha ideia sobre os duques ingleses
mudará por completo. – Sorriu. – Embora também seja verdade que Reiner
gosta mais dos cavalos e da caça que a maioria das pessoas, assim, não sei se
sua recomendação pode ser aceita sem refletir sobre o assunto. Na realidade,
neste momento, meu irmão está caçando em outra propriedade, e não voltará
pelo menos em uma semana.
– Tinha entendido que ia ao palácio de inverno dentro de alguns dias.
– Reiner está gostando muito daqui, caçando e montando a cavalo. E eu
também. Este é um lugar ideal para ler e escrever. Decidimos que iremos a
Londres diretamente daqui.
Não tinha motivos para ter corrido tanto. Não teria por que ter subido ao
barco de Luc, e se não o tivesse feito, talvez ele ainda estivesse vivo.
Esforçou-se para seguir falando.
– E o conde está aqui?
– Não. Seu irmão esteve aqui faz algumas semanas, mas se foi para Paris
com minha mãe e as cortesãs de Reiner. Desde então só estamos Reiner, eu e
algumas de minhas donzelas, que são todas bastante simpáticas e
terrivelmente chatas. Mas Reiner e eu estamos passando umas férias
estupendas. Gostaria que durassem para sempre. – Suspirou. – Mas é
impossível, claro. Ele que me casar com algum lorde inglês velho e chato, e
suponho que, como estou esperando isto desde que minha memória alcança,
não posso protestar.
– É o motivo pelo qual me contratou.
– Mas não posso pedir que trabalhe estando de luto. Senhorita Caulfield,
proponho que continuemos de férias durante todo o mês de setembro.
Assim você poderá curar sua dor tranquilamente e eu poderei atrasar um
pouco mais o inevitável. Se aceitar, prometo que quando chegue outubro
aprenderei tudo o que me ensine na metade do tempo. Acredita que poderei
consegui-lo?
– Isso depende de se é uma aluna muito boba – “como sua professora” –
ou uma aluna muito esperta.
O que sentia era o luto habitual, arrependimento, dor e saudade ao mesmo
tempo? Custava-lhe respirar. Custava-lhe falar. Havia passado a vida
fingindo, mas ainda não o havia sofrido em pessoa.
Jacqueline esboçou um sorriso.
– Sério?
– Oh, claro! – Obrigou-se a falar. – Gosto mais das alunas espertas, sem
dúvida, mas também posso ensinar às que não o são tanto. Normalmente
compensam sua falta de graça com uma imponente devoção ao
conformismo. E como os cavalheiros da alta sociedade costumam ser todos
igualmente pouco originais e previsíveis, não me custa muito casá-las.
– Oh, senhorita Caulfield.
– Arabella.
– Parece-me, Arabella, que vamos nos dar muito bem.
Tão bem como podiam se dar duas amigas quando uma estava ocultando
sua dor e a outra pretendia escapar de seu futuro.
Depois de tomar o chá, o mordomo, monsieur Brissot, acompanhou
Arabella até seu dormitório. Deu uma olhada na luxuosa cama de quatro
colunas cobertas com sedas cor de marfim e borlas douradas, à lareira de
mármore italiano e ao grosso tapete de tons rosa-pálido e dourados, e se
afastou do umbral da porta.
– Rogo-lhe que me desculpe, – disse – pensava que iria me mostrar meu
quarto.
– Ça y est, madame.
Fez um gesto para o interior do cômodo.
– Não, monsieur. Deve ter havido algum erro.
– Não é nenhum erro. As instruções de lorde Bedwyr foram bastante
claras.
Disse como se não lhe importasse que designassem um cômodo perfeito
para qualquer convidado da nobreza a uma empregada de menor classe social
que ele.
Arabella passou a maior parte dos quatro dias seguintes metida naquele
quarto. Reunia-se com a princesa para passear pelo parque que se estendia
por uma das margens do rio, para tomar o chá e para cear. No quinto dia
Reiner enviou uma carruagem que devia recolher sua irmã para que
comparecesse a uma festa que o anfitrião de uma propriedade próxima ia
celebrar em sua honra.
– Suplicaria que me acompanhasse, Arabella – disse Jacqueline, dando-lhe
um beijo em cada face. – Mas imagino que preferirá ficar aqui. Eu também
ficaria.
Sorriu com tristeza e saiu para a festa.
Arabella foi ao terraço com vistas ao rio e ficou olhando fixamente a água,
que a aterrorizava, apesar de sua tranquila aparência de espelho. Tirou o anel
de rubis do vestido e passou o polegar pelos símbolos que havia gravados no
grosso aro de ouro.
Quando regressasse, Jacqueline viria acompanhada de seu irmão: o
príncipe. Arabella sabia que deveria sentir a mesma emoção que havia sentido
após cada passo do caminho para descobrir sua verdadeira identidade. Mas
só sentia vazio. O normal seria que tivesse pensado que lhe havia partido o
coração, mas para isso devia ter um coração, e já fazia muito tempo que ela
sabia que não tinha coração. Já não era uma donzela casadoira, nem
tampouco era uma verdadeira esposa e nem uma viúva, e a ideia de que
talvez algum dia pudesse ser princesa lhe parecia a ambição de outra mulher e
uma bobagem de proporções gigantescas.
Teve pesadelos durante algum tempo. A escuridão o assediava, via
desertos e tinha sede. Mais pesadelos e mais sede. Depois percebeu alguns
momentos de luz e sentiu uma breve satisfação na língua e na garganta. Logo
depois regressou a sede e novamente os pesadelos. Ouvia gritos, primeiro de
um garoto e depois de uma mulher. Estava perdido na escuridão e nunca
conseguia encontrá-los. A sede o consumia.
Então a luz se estendeu. A claridade apareceu, um cinza perolado e depois
branco.
– Ah, Lucien. Bem-vindo ao mundo dos vivos.
– Vinho – disse.
O rosto lhe pesava.
O peso desapareceu e a frieza o substituiu. Era uma delícia.
– Vinho.
– Ora, creio que disse algo, Charles!
– Pois claro que disse algo, Anthony. Está consciente. Está aí lúcido e de
olho aberto. Fale, primo, ou não serei responsável pelo que eu fingir tê-lo
ouvido dizer.
– Santo céu, Luc! Nos deu um susto de matar.
Tinha a boca seca e a sensação de ter a língua cinco vezes mais grossa que
o normal.
– Vinho.
– Está bem, está bem. Não há necessidade de gritar, amigo.
– Traga-lhe um copo de vinho, Anthony.
Tentou levantar-se. A dor estourou em seu ventre e logo vieram
espasmos. Ofegou.
– Será melhor que não se mova. – Escutou a voz de Cam a seu lado. –
Tem um buraco espantoso nas costas e nenhum de nós tem vontade de que
volte a abrir, e menos ainda Gavin, que teve que costurá-lo duas vezes
porque entre os três não fomos capazes de evitar que se movesse quando
delirava tomado pela febre, maldição.
Luc fechou o olho e se concentrou em não desmaiar. Doía-lhe tudo.
Respirou devagar enquanto punha a prova suas extremidades uma a uma.
Havia uma mão na frente de seu queixo. Uma mão com uma xícara. Mas a
cabeça lhe pesava muito para levantá-la.
– Maldição – murmurou Tony. Agarrou Luc pela nuca e lhe inclinou a
cabeça para a frente. – Beba, amigo. Tem que se recuperar rápido. Não
quererá que essa esposa tão bonita que tem continue sendo uma viúva
durante muito tempo, não é? Uma garota como essa teria os caça-fortunas
batendo à sua porta em um vapt-vupt.
Luc cuspiu o vinho.
– Viúva?
– Olhe o que fez, Anthony. Já o perturbou e não está consciente nem há
dez minutos.
– Estou vivo.
– Quanto ao da viúva, – disse Tony levantando-se – veja, Luc, amigo,
tínhamos que fazê-lo. A pobre garota estava destroçada. Foi melhor assim.
Melhor para ela.
– Vou ... – A dor lhe retorceu os intestinos. Ofegou procurando tomar ar.
– Vou estrangulá-los.
– Desafio você a tentar.
Cam falava com serenidade.
Luc abandonou a luta. Graças ao balanço que sentia no corpo quando
ficava quieto, e o polido teto de carvalho que tinha sobre a cabeça, sabia que
estava no camarote do capitão do Victory. Estava muito fraco e os lençóis
estavam frios e úmidos. Não era a primeira vez que tinha febre. Reconhecia
as consequências, mesmo apesar da confusão mental.
Fechou o olho e relaxou nos lençóis frios.
– Explique-me.
– Garoto esperto. – A voz de Cam se aproximou. – Está morto, capitão
Andrew do Retribution. Atiramos seus restos mortais ao mar do convés de
seu antigo barco mercante, com o que agora mesmo estamos percorrendo a
costa bretã.
Aguardou.
– Se perguntará por que fingimos sua morte prematura e mentimos a todo
mundo. Pois veja, acreditamos que é um homem marcado. Melhor dizendo,
era. Mas, agora que os assassinos acreditam ter feito o trabalho, já relaxaram.
Até que não volte à vida não tem nada que temer em seu debilitado estado.
Em resumo, o que queremos é que esteja plenamente recuperado antes de
voltar a por-se em perigo.
Luc apertou os punhos. A dor que sentia no ventre lhe provocava uma
pontada cada vez que inspirava com ira.
– Já lhe contaremos o resto mais tarde, Charles. Tem os lábios muito
brancos. Padre Stewart, tre...
– Onde... ela está?
– No castelo – disse Cam. – Miles a acompanhou até ali no dia seguinte ao
ataque e a deixou ao cuidado de Reiner. Ali está a salvo, e até que não
saibamos quem tentou matá-lo, ninguém tem por que saber nada sobre sua
ascensão à aristocracia, coisa que acreditamos que seja o melhor e com o que,
não me cabe dúvida, estará de acordo. Por sua parte, ela não parece inclinada
a aceitar a validade de seu casamento apressado, coisa que é boa, até que
cheguemos ao fundo deste assunto.
Doía-lhe a cicatriz. Doía-lhe o ombro. Doía-lhe respirar. E tudo o
esgotava muito.
– Eram ladrões de carteira – murmurou se entregado ao sono.
– Eram assassinos. – Escutou o rangido de um papel ao ser desdobrado. –
Olhe.
Abriu a pálpebra e tentou centrar a vista no papel que Cam lhe havia
posto adiante.
Encontrou-se frente à sua própria cara. Era um retrato perfeito, incluindo
a cicatriz e o lenço. E era bem evidente que era obra de seu irmão. Tinha até
sua assinatura ao pé: Christos W.
– Anthony encontrou isto no bolso do sujeito que matou na praia. Não
conseguimos encontrar os outros dois, mas depois de lhes seguir o rastro por
Saint-Nazaire, acreditamos que pelo menos um deles era siciliano. Algum
mercenário da guerra, talvez?
– Lixo – alfinetou-lhe Tony.
– Então, como vê, primo, temos motivos para acreditar que há alguém
que quer ver o futuro duque morto.
– Não foi Christos – sussurrou Luc.
– Não está no castelo, amigo – disse Cam. – Recebi uma mensagem do
senhor Miles. Seu irmão saiu de Saint-Reveé-des-Beaux faz um mês dizendo
que ia a Paris. E desde então não se sabe nada dele.
Luc estava confuso.
– Um mês...
– Faz um mês, depois de que seu tio morreu, coisa que o aproxima
perigosamente do ducado, e marca ao jovem e louco Christos como o
seguinte na linha de sucessão.
– Não – “Impossível”. – Sussurrou e caiu adormecido.
Quando despertou tudo estava escuro. Esforçou-se por descobrir onde
estava, e logo recordou.
– Cam?
Tinha a garganta em chamas.
– Está dormindo, rapaz – disse Gavin junto dele, depois lhe ajudou a
beber. – Nos deu um bom susto. Seu primo está há uma semana sem dormir.
– Sente-se culpado.
Teria rido se isso não o tivesse matado de dor.
– É devoção. Gosta de você como de um irmão. Sempre gostou.
Coisa que provavelmente era verdade. E, tendo em conta o crime de que
havia acusado seu primo fazia sete meses, Cam tinha sido misericordioso ao
ter-lhe retirado somente um olho.
– E Christos?
– Anthony enviou um homem a Paris para buscá-lo.
– Não foi ele.
– Já sei, rapaz. Mas temos que nos assegurar, não?
– Cam deve ir...
A dor lhe atravessou o ventre e apertou seus pulmões.
– Ao castelo. Sim. Já fez a bagagem. Saíra pela manhã.
Luc conseguiu esboçar uma careta.
– Pelo visto não precisam de mim para nada – sussurrou.
– Só para que se recupere rápido. Há uma moça que se alegrará em vê-lo.
Pode ser que sim, mas também podia ser que, quando descobrisse que
havia escapado das garras da morte, decidisse acabar com ele ela mesma.
A princesa e o príncipe regressaram da caçada uma hora depois de que a
governanta lhe dissera que o conde de Bedwyr havia chegado ao castelo.
Arabella esperou sua aluna real no vestíbulo. Jacqueline não demorou a ir
em sua busca. A jovem usava uma jaqueta de montar sobre o braço e retirou
as luvas enquanto entrava a toda pressa na sala.
– Querida Arabella, como senti sua falta! Já tenho a sensação de que é
como minha irmã. Imagine a vontade que tinha de lhe contar até o último
detalhe do que aconteceu enquanto estava fora.
– É uma honra, alteza.
A princesa lhe lançou um olhar inquisitivo.
– Não me diga que voltou a se meter no papel de preceptora agora que
meu irmão voltou?
– Eu...
– Não! Pedi que não o fizesse, e temo que esteja a ponto de me
desobedecer. Vamos, acompanhe-me ao quarto de vestir para que possa
retirar este terrível uniforme. Não gosto de montar em companhia de
cachorros, mas isso é a única coisa do que falava todo mundo: a caçada e as
incontáveis raposas que pegaram para decorar as paredes.
Arabella sorriu.
– Tão aborrecido assim?
– Juro-lhe, Bella, não tive nada que dizer a ninguém, durante todo o
tempo. Mais isso tampouco é algo extraordinário. Sou terrivelmente tímida.
Arabella não podia acreditar nisso.
A princesa encolheu os ombros.
– Estou muito confortável em companhia de um livro e de uma pluma,
mas não consigo ficar à vontade entre os cavalheiros e as damas da
sociedade. Minha língua trava. – Entrelaçou o braço com o de Arabella e a
levou para o corredor. – Esse é um dos motivos por que você me agrada
tanto. Você nunca disse nada que me deu vontade de me esconder detrás das
tapeçarias.
– Não consigo acreditar.
– Mas é verdade. Para minha desgraça. Reiner conhece minhas
dificuldades e creio que a contratou sob falsos pretextos. Suponho que
imaginava que teria uma aluna que seria capaz de abrir a boca em companhia
de outras pessoas, mas a realidade é que tem que se encarregar de uma égua
que refuga quando vê um cachorro e que sai correndo quando uma raposa se
aproxima.
Arabella riu. Teve uma sensação horrível e de grande alívio ao mesmo
tempo.
– Ah, a doce risada de uma dama – disse a voz do conde por detrás dela. –
Que bálsamo para a esgotada alma masculina.
Arabella se voltou. A princesa ofegou junto a ela.
Lorde Bedwyr estava do outro lado do corredor diante da porta do salão,
tão resplandecente como sempre, a roupa branca como a neve e uma cascata
de renda pendurada no pulso. Tinha o cabelo despenteado e um magnífico
sorriso.
Junto a ele, o príncipe de Sensaire parecia um homem comum.
Em uma ocasião Arabella havia visto o príncipe regente da Inglaterra de
longe. Era um homem com o rosto ameno, de um tamanho enorme e roupas
chamativas, e não havia dúvida de que tinha mais de cinquenta anos. Nesse
momento apagou todas as fantasias infantis que mantinha de que o príncipe
com quem se casaria seria jovem, bonito ou resplandecente.
O príncipe Rainer não era nem bonito e nem resplandecente, mas sua
aparência era tão oposta à do príncipe regente como à do conde de Bedwyr.
Era muito alto e magro dos pés a cabeça, coisa que lhe conferia certo ar de
soldado. Usava uma bela casaca branca de corte militar, tinha um aspecto
robusto, e seu rosto, apesar de não ser realmente atraente, contava com um
bonito par de olhos alegres.
– Reiner, – disse o conde – permita-me apresentar-lhe minha prima, a
senhorita Caulfield.
O príncipe fez uma reverência.
– Enchanté, mademoiselle.
Arabella se inclinou.
– E, Bedwyr, quero apresentar-lhe minha irmã – disse o príncipe. – Jackie,
tenho o prazer de apresentá-la ao conde de Bedwyr, amigo de Westfall desde
a infância.
– Alteza.
Lorde Bedwyr fez uma elegante reverência à princesa.
Jacqueline baixou o olhar e cravou os olhos no chão.
O conde lhe deu as costas.
– Reiner, velho amigo, há notícias da Inglaterra. Westfall é quase
Lycombe.
– Já a ouvi. O tio duque morreu.
– Que Deus abençoe sua alma.
– Então, tem notícias de nosso amigo? – Disse o príncipe. – Regressou a
Londres para aguardar seu destino, deixando-o aqui para que desfrute de seu
castelo?
– Na realidade, está na França e tem a intenção de vir nos fazer uma visita.
– Sorriu para Arabella e para princesa. – Mas o que podemos fazer com
nosso tempo até que nosso anfitrião chegue?
– Tem que cear comigo todas as noites, Bella – insistiu Jacqueline. – As
insípidas donzelas que minha mãe escolheu não têm nada interessante sobre
o que falar, e eu...
Havia se interessado pelo conde. Arabella não precisava de nenhum poder
especial de observação para dar-se conta.
– É muito tímida em público – limitou-se a dizer.
– Sou mesmo.
As bochechas da princesa não eram rosadas, sim amareladas. Pelo visto
seu interesse lhe provocava mais preocupação do que prazer. Arabella a
compreendia muito bem.
– Por favor, Bella, me agradaria muito.
Era o que estava sonhando durante anos: poder desfrutar da companhia
de um príncipe solteiro. Mas, embora já não tivesse nenhum interesse nele,
fez o que Jacqueline lhe pediu.
Uma semana depois, a princesa anunciou a Arabella que já estava
preparada para começar as lições.
– Quero ser menos... reservada.
– Normalmente não é reservada. – Só estava confusa por um homem. –
Necessita unicamente algumas poucas instruções e poderá ficar tranquila
entre a alta sociedade londrinense.
Quis dizer-lhe que nem todos os homens da alta sociedade eram tão
bonitos como o conde. Nem tão provocadores. Lorde Bedwyr não havia
mencionado seu primo, mas às vezes observava como se estivesse avaliando-
a. Quando o encontrava, sorria e flertava escandalosamente com alguma das
donzelas, ou convidava o príncipe para montar, ou dava alguma desculpa
claramente para evitá-la. Mas ela tampouco queria falar com ele sobre Luc.
Não foi procurá-la até passados quinze dias.
– Santo céu, querida – disse aproximando-se dela pelo jardim de rosas
com o chapéu na mão e o cabelo brilhando ao sol. – Ainda usa seu uniforme
de preceptora? Pensava que havia prometido comprar um vestido novo para
si. E sapatos, se não recordo mal.
– Já vi que estas três semanas de luto não lhe tiraram a vontade de fazer
comentários inapropriados, milord.
Deu-lhe as costas para se concentrar no cesto em que estava colocando as
rosas que cortava.
– E nem lhe tiraram essa mania de fazer o trabalho da criadagem. Acaso
Reiner não tem jardineiros que façam essa classe de coisas? – Disse
assinalando a cesta.
– Agrada-me. E eu sou uma criada.
Fez-se um momento de silêncio só quebrado pelo feliz trinar dos pássaros
que brincavam no arbusto ao lado, e o bater das tesouras de Arabella.
– Vim cumprir a promessa que fiz a meu primo.
O conde já não brincava.
– Comprar-me um vestido e sapatos novos? Isso é tão ridículo como tudo
mais.
– Não vim lhe comprar um vestido.
Estava muito sério.
– Não tem nenhuma responsabilidade comigo, milord.
– Claro que tenho.
Deixou resvalar o olhar até onde ela colocava as mãos na altura da cintura,
e então ela compreendeu que ele ficaria com ela até que soubesse se estava
grávida do filho de Luc.
– Poderia mentir-lhe – disse, sentindo como em seu interior crescia um
estranho e triste desespero. – Poderia estar grávida de outro homem e
afirmar que é de seu primo para me aproveitar de minha conexão com o
senhor, um lorde. Como sabe que não faria isso com a esperança de me
assegurar um futuro para não ter que voltar a ser uma criada?
– Porque conheço meu primo. E, pelo visto, muito melhor que a senhora.
Arabella sentiu uma agulhada nos pulmões.
– Vim aqui para me casar com um príncipe – disse da forma mais absurda.
– Querida, a senhora já está casada.
Não podia ser. Ela não queria se casar com Luc. Ele não era um príncipe e
não reconheceu o anel. E estava morto.
Estava morto. A fatalidade desse pensamento a percorreu dos pés à
cabeça.
O conde deu um passo adiante e a estreitou entre seus braços. Ela colou o
rosto à excelente lapela de sua jaqueta e chorou.
Arabella regressou aos jardins no dia seguinte, e no outro, e durante toda a
semana. Os labirínticos caminhos eram elegantes e tranquilos, e lhe
proporcionavam horas de solidão nas que não se via obrigada a sofrer o
escrutínio do conde. Passeou por entre os belos canteiros de flores, depois
percorreu um caminho por dentro do bosque até chegar a uma fonte onde
havia esculpidas algumas estátuas em pedra de mulheres que sustentavam
uma concha.
Enquanto caminhava, imaginava cartas a suas irmãs que nunca chegava a
escrever.
Quando viu que pelo caminho se aproximava uma carruagem puxada por
quatro cavalos cinza, deteve-se e observou quando os passageiros desceram.
Do castelo saíram quatro criados trajados com a libré negra e prateada que
cercaram um cavalheiro e subiram as escadarias rodeando-o com ar protetor.
Então regressou à casa e foi em busca de Jacqueline.
– A comitiva de sua mãe regressou?
– Oh, não, ainda não, graças a Deus. – A princesa meteu a ponta da pluma
no tinteiro. – O conde por fim voltou para casa.
– É idoso?
– Tem a idade de lorde Bedwyr, creio que só é alguns anos mais jovem
que Reiner. Por que pergunta?
– Porque entrou muito devagar na casa, apoiado pelos serventes.
Arabella afastou a cortina e observou a opulenta carruagem que
desaparecia no espaço destinado ao seu estacionamento.
– Parece que está enfermo – disse a princesa. – E agora está
convalescente. Creio que demorará alguns dias para podermos desfrutar de
sua companhia. Mas quando estiver recuperado, será maravilhoso que nosso
pequeno grupo possa se beneficiar da presença de um cavalheiro. Quase me
dá vontade de que minha mãe não regresse nunca com o resto da corte. Oh,
mas isso já lhe disse, não?
Seus olhos cor de avelã brilharam.
Como a tarde era suave e cálida, Arabella sugeriu a Jacqueline que
praticasse a arte inglesa de tomar o chá. Os serventes lhes prepararam todo o
necessário em um terraço que se estendia sobre a margem do rio com vista
para os jardins.
A princesa aceitou a xícara que Arabella lhe ofereceu e se voltou para o
príncipe Reiner, que estava sentado diante de um tabuleiro de xadrez com
lorde Bedwyr.
– Falemos do conde, irmão. É bonito?
– Como poderia saber, Jackie? – Inclinou-se sobre o tabuleiro. – Não sou
uma dama.
Duas das donzelas de Jacqueline riram. Haviam utilizado a desculpa do
chá para usar suas melhores roupas. Sem dúvida para aparecer bem diante do
conde.
Arabella serviu uma taça e se aproximou da balaustrada. As companhias
que a rainha havia escolhido para sua filha não a haviam aceitado em seu
círculo, e depois de três semanas ainda a fitavam com receio. Ela não as
invejava. Depois de passar anos às portas da alta sociedade, estava
acostumada.
– O conde é bonito, lorde Bedwyr?
Jacqueline por fim havia conseguido deixar de gaguejar e se ruborizar na
presença do conde. Mas isso não parecia ter efeito algum nele. Bedwyr a
tratava com a mesma simplicidade com que tratava as donzelas.
Lorde Bedwyr se recostou no encosto de sua cadeira e aguardou o
movimento de seu oponente.
– Lamento lhe comunicar, alteza, que é uma besta. Não é absolutamente
do agrado das damas.
Jacqueline apertou os lábios.
– Segundo tenho entendido, é proprietário deste castelo, dos vinhedos e
de uma casa na Inglaterra. Deve ser muito rico.
– Que tipo de comentário é esse, Jackie? – Disse seu irmão. – Senhorita
Caulfield, está descuidando de seu trabalho. Deve fazer uso de sua função e
ensinar-lhe modos – disse sorrindo.
– Peço-lhe perdão, alteza. – Arabella fez repicar os dedos contra a xícara,
uma porcelana fina como o papel com bordas douradas. Era uma taça digna
de uma princesa, como seu luxuoso dormitório e os jardins que estava
observando sem sentir absolutamente nada. – Me esforçarei para melhorar
meus métodos de instrução.
– Assim espero.
O príncipe Reiner sorriu e voltou a concentrar a atenção no tabuleiro. Era
um homem bom, amável com todo mundo, generoso e afetivo com sua irmã.
Mas não despertava nenhum interesse em Arabella.
– Bom, é rico, milord? – Disse Jacqueline.
– Se eu tivesse a metade dos fundos do conde, princesa, – confessou-lhe
lorde Bedwyr – estaria nadando entre cavalos, carruagens, casas e joias.
– Sabe, irmão? – Disse Jacqueline. – Não deveria me repreender por
perguntar pelas características materiais de um cavalheiro. Isso é o que
mamãe me ensinou a valorizar nos homens desde que tinha seis anos.
– É uma tragédia que o valor de um homem, seu coração e sua nobreza
fiquem eclipsados por sua fortuna e aparência aos olhos das damas.
O conde deixou escapar um suspiro teatral e moveu o cavalo branco.
– O senhor não tem que se preocupar por isso, milord – afirmou
Jacqueline, fitando-o diretamente com descaramento.
Ele elevou uma sobrancelha.
– Ah, mas minha fortuna não é nada invejável, princesa.
A jovem esboçou um pequeno sorriso.
– Lorde Bedwyr, o senhor é terrivelmente convencido.
– Jackie!
– Princesa!
O conde a fitou de soslaio com cumplicidade e voltou a se concentrar no
tabuleiro.
– Sua irmã é muito sincera, Reiner. Não deveria tê-la enviado a um
convento para que a educassem. As garotas aprendem os piores
ensinamentos morais das freiras, sabia?
Jacqueline se ruborizou, mas seu olhar era sereno. Talvez o conde tivesse
percebido o truque afinal de contas.
A porta do terraço se abriu e o lacaio anunciou: – Sua Graça, o conde de
Rallis.
Um cavalheiro saiu à luz do sol. Era um homem alto de costas largas e
roupa impecável. Usava botas brilhantes e um lenço negro na cabeça lhe
tapava o olho direito e parte de uma terrível cicatriz.
A xícara de Arabella caiu e se desmanchou em cacos a seus pés.
Capítulo 11
A condessa
Luc observou como lhe mudava a cor das bochechas, que haviam ficado
pálidas como um pergaminho, e esteve a ponto de estrangular seu primo.
Quando Cam enviou a última mensagem ao Victory, dizia que ela já conhecia
sua verdadeira identidade. E ele havia acreditado.
Uma jovem com a mesma altura e aspecto de Reiner correu até ela.
– Arabella!
“Arabella.”
– Bella, está passando mal?
– Não – mal a ouviu dizer. – Não, estou bem.
Levantou o queixo quando a fitou aos olhos, mas os olhos azul turquesa
demonstravam confusão.
– Ah, Luc! – O príncipe lhe apertou a mão. – Bedwyr prometeu que viria,
mas nunca acredito em nada do que diz.
– Deveria começar a seguir seu exemplo.
E olhou para Arabella por cima do ombro de Reiner.
– Meu amigo – disse o príncipe, voltando-se aos demais. – Permita-me
que lhe apresente suas convidadas, minha irmã e suas donzelas.
As damas se aproximaram dele. Estava cercado, tinha que atuar como o
elegante anfitrião da festa, quando a única pessoa que merecia sua atenção se
afastava pelo terraço em direção ao jardim. Ninguém pareceu perceber.
Continuava usando o simples vestido de preceptora. Pelo visto, nem Cam e
nem ela haviam explicado a ninguém o que havia ocorrido em Saint-Nazaire.
Corrigiria isso em seguida. Mas não antes que pudesse falar com ela.
– Senhoria, – disse uma das damas – gostaria de tomar o chá?
– Creio que gostará de algo mais forte. Não é assim, Rallis? – Disse Cam
elevando uma sobrancelha.
– Nesse caso, tomaremos vinho – disse Reiner.
Luc fez uma reverência às damas, lançou um silencioso olhar a seu primo
e seguiu o príncipe para o interior do castelo. Fez um gesto com a mão para
despachar o criado, e se voltou para seu primo.
– Maldito seja, Cam.
Bedwyr se apoiou no aparador com despreocupação.
– Suponho que não se recorde de que já me amaldiçoou quando se debatia
entre a vida e a morte na areia daquela praia. Sério, Lucien, ultimamente se
repete muito.
– Merece todas as maldições que recebe.
– É provável, mas isso agora não importa. Desde quando é minha
responsabilidade gerir suas tortuosas histórias amorosas?
– Maldito seja, primo. Não tem consciência?
Reiner lhe serviu uma taça de Borgonha.
– Seguem discutindo como quando tinham dezoito anos.
– Naquela época era só um hedonista despreocupado. Agora é um
mentiroso e manipulador. Por que me fez acreditar que já o havia feito?
– Diga-me, Lucien, – disse Cam como se seu primo não tivesse dito nem
uma palavra – durante sua convalescência pensou em trocar uma cegueira
pela outra? Ou simplesmente agora está duplamente cego? – Fez um gesto
com a taça em direção à porta do terraço. – Mas creio que já tenho a
resposta.
Reiner pôs a taça de vinho na mão de Luc.
– Beba, amigo. Parece que necessita.
Luc largou a taça.
– Contou-lhe?
– Que devia garantir a segurança da impactante preceptora, mas não podia
me aproximar a dez metros dela? Sim. Mas não mencionou que tivesse algo a
ver com você.
– Não era eu quem tinha algo que explicar a ela. – Cam retirou um fio
imaginário da manga e por fim fitou Luc nos olhos. – Desde o princípio. Foi
sua opção.
Cam tinha razão. Luc sabia que teria que lhe dizer a verdade quando ela
lhe perguntou seu nome. E desde aquele dia poderia ter-lhe contado a
qualquer momento. Não o havia feito porque acreditava que ao lhe ocultar
sua identidade poderia afastar-se dela.
Mas seu primo sabia. Por algum motivo, o sem vergonha compreendeu
logo o que ele havia estado muito cego para ver.
Começou a caminhar em direção à porta.
– Espere um momento, Luc – disse Reiner às suas costas. – Instalou sua
amante nesta casa na qualidade de preceptora para minha irmã?
– Não é minha amante. – Abriu a porta. – É minha comtesse.
Arabella entrou às cegas no jardim. Não estava chorando, mas havia
ficado presa em um ciclone de alívio, alegria e uma absoluta e titânica ira que
embotava seus sentidos enquanto corria junto à fileira de arbustos em direção
aos caminhos.
Estava vivo.
Necessitava estar só por um momento para pensar, para pôr ordem em
seus pensamentos, para compreender.
Para se deleitar.
Estava vivo. Vivo, são e capaz de sorrir e fazer reverências às insossas
donzelas da princesa.
Vivo.
Bastante vivo para ter-lhe dito que não havia morrido, antes de que ela o
descobrisse dessa forma.
Estava chorando há semanas. Semanas. E ele havia-lhe mentido. Era
incapaz de compreender o motivo. Teria pensado que, se conhecesse a
verdade, tentaria prendê-lo ao casamento. Mas ela havia-lhe rechaçado em
mais de uma ocasião. Havia-se negado até o último momento. Havia sido ele
que a havia prendido.
Ao final da fileira de arbustos havia um comprido muro de pedra que
entrava no campo de vinhedos. Deteve-se. Seus passos não a haviam levado
ao bosque. Estava perdida. Mas não havia caminhado tanto para se afastar do
castelo. O castelo de Luc. O castelo do comte.
Estava vivo. E era um cavalheiro com título. O herdeiro de um ducado.
Teria que ter-se dado conta. Não era a primeira vez que um homem
mentia para ela.
Embora nunca dessa forma. Claro.
Inspirou fundo. Esticou a mão, agarrou-se ao muro e apertou a rocha com
força, enquanto assimilava aquela incompreensível realidade. Depois seguiu
caminhando até que chegou a um edifício. Tinha o teto baixo, era largo e
sombrio; logo se deu conta de que era uma prensa de vinho. Não havia
ninguém por ali. A colheita havia acabado, o sol estava se pondo e o edifício
e o vinhedo desnudo projetavam longas sombras sobre a relva.
Apoiou-se na parede de pedra e fechou os olhos. Regressaria, enfrentaria a
ele e tentaria não se lançar a seus braços e inspirar sua fragrância enquanto
lhe dizia exatamente o que pensava do modo como a havia tratado.
Podia ser que para ele tivesse sido uma brincadeira. E seu primo, lorde
Bedwyr, devia fazer parte dela. Mas os homens que a atacaram e sua ferida,
isso não havia sido uma farsa.
Por que?
Separou-se da parede e regressou por onde havia vindo.
Primeiro escutou o latido dos cachorros, e depois o ruído das patas de um
cavalo. Quatro cachorros dobraram a esquina do altíssimo muro de pedra
que rodeava o campo mais próximo e correram para ela com as línguas
penduradas em atitude de amigáveis boas-vindas.
Ouviu-se um assobio e os animais se afastaram dela para regressar ao
campo.
Luc se aproximou de Arabella sobre um enorme cavalo negro, como se
fosse um homem saído de seus sonhos. Usava uma jaqueta de cor verde
escuro de muito boa confecção, as coxas cobertas de pele e um chapéu alto
com uma pluma negra. Parecia um lorde, apesar do lenço e da cicatriz.
Arabella não queria se esconder, pois sabia que não devia lhe importar que
lhe tremessem as mãos e sua garganta tivesse se apertado. No entanto,
quando Luc desceu do cavalo com os cachorros brincando por entre suas
botas, não pôde evitar de fitá-lo abobalhada.
– Bom dia, senhora.
Aproximou-se dela.
A jovem retrocedeu.
– Pode montar?
– Provavelmente não deveria. Mas, segundo o lacaio que se informou
falando com o jardineiro, saiu nessa direção a uma velocidade considerável, e
não sabia se conseguiria encontrá-la antes do anoitecer se o tentasse a pé.
Isto é muito grande. – Esboçou um pequeno sorriso. – Assim, se minha
ferida se abrir e eu morrer, asseguro-lhe que será culpa sua.
– Como pôde...? – A voz lhe falhou. Era alto e atraente e, no entanto,
tinha a pele mais clara e percebia mais tensão ao redor dos lábios. Arabella
desejava que morresse de dor e ao mesmo tempo rezava para que não fosse
assim. – É cruel.
– Ah. Vamos direto ao ponto. Nada de beijos de reencontro em primeiro
lugar. – Suspirou. – Deveria ter imaginado quando quebrou a xícara, mas
ainda tinha esperanças.
– Como pôde me ocultar isso?
– Pensava que Bedwyr lhe houvesse contado. Disseme que o havia feito.
– Pois não o fez. – Tremeu-lhe a voz. Obrigou-se a falar com mais
firmeza. – Vi-me obrigada a saber subitamente quando entrou pela porta.
Luc saboreou o prazer que sentia ao voltar a ver-lhe o rosto. Tinha as
bochechas ligeiramente ruborizadas, os olhos azul turquesa bem abertos e
seus lábios eram perfeitos, como sempre, suaves, carnosos e vermelhos como
morangos. Queria puxá-los para os seus. Queria lhe dar um beijo de boas-
vindas tão apaixonado que acabariam os dois deitados na relva meio
desnudos, assim como ocorreu naquela praia fazia já muito tempo para seu
gosto.
Mas ela tinha aspecto de ter o estômago embrulhado.
Deteve-se a certa distância de Arabella.
– Lamento não lhe ter dito toda verdade sobre mim. – Fez-lhe uma
grande reverência. Estava há uma semana sem sentir tanta dor no estômago,
mas valia a pena. – Rogo que me perdoe.
Os olhos azul turquesa se arregalaram.
– Lamenta não ter me dito toda verdade? Pergunto-me que classe de
verdade parcial poderia ter me contado.
– Verdade parcial? – A impaciência se apoderou de Luc. – Tão detestáveis
lhe pareceram meus títulos e minha posição?
– Seu título e sua posição?
Luc balançou a cabeça confuso. Então o motivo da surpresa de Arabella
golpeou em seu ventre dolorido como uma faca fria.
– Bedwyr não lhe contou que eu estava vivo. – Não era possível. – É
verdade?
– Claro que não.
Arabella engoliu em seco para reprimir as emoções.
– Santo Céu. – Deu um passo adiante. – Nunca imaginei que não lhe diria.
Fez isso para me castigar, e não a você, disso não há dúvida. Mas deveria
matá-lo por isso. Ontem foi o primeiro dia em que pude viajar, mas se tivesse
sabido teria escrito.
Ela se endireitou e pareceu tomar uma decisão.
– Por que não me disse antes quem era?
– Deveria tê-lo feito. – Esfregou a mandíbula. – Queria fazê-lo.
Arabella afastou o olhar.
– Os homens mentem por costume.
– Minha intenção não era mentir, mas sim...
– Tanto faz. Não significa nada para mim.
– E, no entanto, o alívio lhe iluminou os olhos quando me viu no castelo.
Está enganando a si mesma, duquesa.
– Não me chame assim.
– Parece muito instrutivo que a preocupe como a chamo. – Aproximou-se
dela. Arabella apoiou os ombros contra a parede que tinha detrás. Luc
observou seu lindo perfil; seus dedos morriam de vontade de se enredar em
suas mechas acobreadas que caíam do pesado coque que estava na nuca. –
Preocupa-se por mim – disse.
– Preocupava-me por você quando pensava que estava morto. – Tremeu-
lhe a voz. – Era então mais interessante.
Luc relaxou.
– Se isso é o que tenho que fazer para prender sua atenção, ficarei
encantado em morrer novamente. Diga a data e a hora.
– É muito engraçado, milord. Deveria reunir uma companhia teatral e
fazer espetáculo ambulante. – Continuava sem fitá-lo. Talvez possa convidar
lorde Bedwyr. Juntos ganhariam um montão de dinheiro.
– Já tenho muito dinheiro. E não suporto que me chame de milord dessa
forma tão desagradável. Dá vontade de escrever ao rei e lhe dizer que não
quero o título.
Por fim apareceu uma careta nos lábios de Arabella. Então pareceu perder
sua batalha interior, o cenho se suavizou e se voltou para ele. Luc pensou que
iria morrer de verdade. Ver como o fitava com tanta elegância e caridade era
uma benção do céu.
– Eu... – Pareceu se esforçar por encontrar as palavras. – Alegro-me de
que esteja bem.
– Alegra-se? Isso é tudo?
Esticou a mão para ela e lhe rodeou o pescoço com a mão. Arabella se
afastou.
A ira ardeu em seu olho.
– Não vai deixar que a toque? Permitiu-o a Bedwyr.
– Não é verdade.
– Disse que o abraçou. Isso também é mentira?
– Eu... – Procurou recordar. O conde havia lhe abraçado no jardim. –
Eu...
– Deixou que esse libertino sem-vergonha...
– Foi um abraço de consolo, um breve... – Deixou de se justificar. – Não
tenho porquê me justificar.
– Já eu acredito que tem?
– Estava chorando! Não entende? Chorei por você, porque havia morrido
por minha culpa, e ele me consolou. Isso é tudo. Só foi um momento de
consolo. E agora que está aqui, depois de ter mentido e me feito sofrer,
pretende que caia em seus braços?
– Sim.
Ficou boquiaberta.
– Pelo visto sua arrogância parece tão intacta como seu corpo.
Luc apoiou as palmas das mãos na parede em ambos lados de sua cabeça e
se inclinou para a frente.
– É verdade, meu corpo sobreviveu, e ainda recorda suas carícias. Muito
bem.
Então seu corpo a traiu. Podia suportar suas provocações. Mas não podia
suportar sua proximidade.
– Meu primo disse que tinha a intenção de se casar com Reiner – disse.
– Disse isso a você, e a mim não disse que estava vivo?
– É um tipo contraditório – reconheceu ele com certa tristeza. – Parece
que se deve a um excesso de adulação. – Inclinou-se sobre um lado de sua
cara e pareceu que inspirava fundo. – Deus, não sabe o que sinto ao ver você.
Tudo mais desaparece. – Roçou-lhe o lóbulo da orelha com os lábios e lhe
provocou uma corrente suave de prazer. – Que intenções tem com Reiner?
Estava vivo, estava bem, e a estava tocando. Arabella havia sonhado com
aquilo.
Devia se esforçar para falar com sensatez.
– Não tenho nenhuma intenção para com ele. Não tive nenhuma desde o
momento em que deixei que me tocasse naquela praia.
E alguns dias antes.
– Bom – murmurou Luc. Deslizou a ponta da língua por debaixo de sua
orelha e depois pousou os lábios em seu pescoço. – Porque teria que me
bater em duelo com ele por ter se casado com minha esposa. Tendo em
conta que eu disparo melhor que ele, morreria, e seu país ficaria sem líder e
se produziria um incidente de consequências internacionais. Não seria
bonito. É muito melhor desta forma.
Arabella se afastou do prazer separando-se dele.
– Não sou sua esposa de verdade.
Luc deixou cair o braço.
– O sacerdote disse “têm declarado seu consentimento de converter-se em
marido e mulher”. Parece-me que sim, que é.
– Eu não ouvi ele dizer isso.
– Deve ter sido pelo nervosismo. Creio que é algo muito comum entre as
noivas.
– Não foi um casamento legal.
– Assinou um contrato de casamento.
– Assinei uma folha em branco.
– Já não está em branco. Alguns elfos muito simpáticos com quem me
encontrei no bosque enquanto estava convalescendo fizeram visível a tinta
invisível da folha e agora está muito claro que está casada comigo. Não lhe
parece que a magia é algo incrível?
– Como pode brincar sobre isto? – Protestou.
Luc deu um passo adiante, segurou-lhe o rosto com as mãos com
suavidade e colocou a boca a dois centímetros da sua.
– Não estou brincando. Estamos casados. E é um casamento real e válido.
O fôlego de Luc lhe roçava os lábios e de repente pareceu arder toda a
vida que albergava em seu interior.
Ela havia confiado nele, havia acreditado em sua honra, havia entregado
seu corpo, e ele havia mentido desde o princípio.
– Se lhe pedir que me libere desse compromisso, – disse, sentindo seu
hálito e perfume a seu redor enfeitiçando seus pensamentos como sempre –
o fará?
– Tem certeza?
Tinha a voz muito rouca. Seus lábios roçaram os de Arabella como um
sussurro. Ela fechou os olhos ao perceber aquela debilidade.
– Sim. Tenho certeza. Libere-me agora.
Fez-se um momento de tensão: Luc não se movia. Então deixou escapar
um rugido e se afastou.
– Que quer de mim? – Perguntou-lhe. – Outra desculpa? Uma dezena de
desculpas? Pois aqui as tem. – Estendeu a mão. – Equivoquei-me. Cometi
um erro. Estava acostumado a fazer esse papel e não vi nenhum motivo para
lhe dar mais informações.
– Não me importa por que mentiu. Será que não vê isso?
– Só o que vejo é que, tendo em conta como tudo acabou, está fazendo
uma montanha de um grão de areia.
– Obrigou-me a casar-me com você com falsos pretextos!
– Eu nunca a obriguei a fazer nada. – Voltou a avançar para ela e se
aproximou tudo o que pôde sem tocá-la. – Mas farei isso agora, pequena
preceptora. Vou obrigá-la a me querer. Conseguirei que me queira mais do
que pode suportar.
– E agora me ameaça?
– Não compreendo como pode pensar que é uma ameaça.
Era um lorde. Por fim compreendia de onde vinha sua arrogância, sua
forma de ser tão autoritária e insistente. Podia ter a mulher que quisesse. Era
impossível que a quisesse de verdade, ela só era uma pobre serviçal com a
língua afiada. Afinal de contas, Luc era igual a todos os demais homens.
Outros já haviam procurado colocar a perder sua reputação quando não se
entregou a eles.
Mas agora estava nas mãos de Luc, era sua esposa, podia fazer o que
quisesse com ela, e não só durante uma viagem, como também durante toda
a vida. O pânico que havia sentido tantas vezes estando com ele voltou a
dominá-la novamente.
– Não entende – disselhe. – Eu não posso estar casada com um lorde.
– Não pode estar casada com um lorde – repetiu sem nenhuma
entonação. – É a mulher mais difícil que conheci em minha vida.
– Pois não entendo para que me quer.
– Não entende – disse, com o olhar sombreado novamente por essa
desconcertante necessidade que não compreendia. – Não entende, não é?
Beijou-a. A princípio só foi uma suave carícia, mas se apropriou de seus
lábios e a obrigou a senti-lo. Depois se converteu em uma possessão. Ela
aceitou seu aprisionamento, apoiou-se nele, pressionou-lhe o peito com as
mãos. Sentiu sua vida sob a palma das mãos e separou os lábios para ele.
Foi muito breve. Luc a soltou.
Ela levou os dedos aos lábios e virou a cabeça procurando o controle que
havia perdido. Ele levantou a mão como se fosse lhe afastar os dedos da
boca, mas então se deteve e deu um passo para trás.
– Maldita seja.
Luc deu meia volta fazendo girar a cauda de seu casaco no ar e voltou para
seu cavalo.
Ela o viu montar. Viu como subiu ao cavalo de um salto, esquecendo da
ferida, que sem dúvida ainda devia lhe doer. Depois fez o animal girar e se
afastou a galope com os cachorros ladrando e brincando ao redor. Arabella o
viu ir embora.
Sempre a deixava. Ela só lhe havia deixado uma vez, mas cada vez que
esse homem conseguia acender sua necessidade, depois o via ir embora. Luc
esperava ganhar, e era muito possível que acabasse fazendo-o.
Quando Arabella regressou ao castelo ao anoitecer, encontrou um desfile
de carruagens alinhados no caminho e um montão de criados correndo de
um lado para outro carregando baús de viagem e caixas de chapéus. O
mordomo estava no centro do alvoroço dirigindo o trabalho.
– Monsieur Brissot, quem chegou?
– A rainha voltou, mademoiselle. Aconselho que se ocupe da princesa tout
de suite.
Arabella passou correndo junto aos criados a caminho dos cômodos da
princesa.
– Oh, querida Bella. Pensava que nos livraríamos de mamãe por um
pouco mais de tempo. Mas não foi possível. – Jacqueline a abraçou e depois
sorriu. – Sendo assim, pedi ao conde que celebre uma festa.
Luc não havia contado a ninguém que estavam casados. Arabella não
entendia nada do que aquele homem fazia, só sabia que era imprevisível e
autoritário e que lhe provocava um desejo que a enfraquecia.
– Pensava que não gostasse da vida da alta sociedade – conseguiu dizer.
– E não gosto. Só o fiz porque mamãe sempre deve ter algo que fazer.
Ultimamente só está concentrada em minhas perspectivas matrimoniais, e
pensei que poderia lhe dar outra coisa no que pensar. Pelo menos durante
alguns dias.
– A festa se celebrará logo?
– Depois de amanhã. O conde adorou a ideia. Vai convidar todo mundo.
– Sorriu. – Mas antes que comece o desfile de vestidos de noite e todo
mundo comece a dançar a valsa, tem que me ensinar algo muito prático para
que mamãe fique muito impressionada com suas orientações e lhe duplique o
salário.
A rainha não estava impressionada. Quando entrou nos cômodos de sua
filha antes de cear, lançou um olhar a Arabella e disse que agora que a corte
havia regressado já não precisariam de seus serviços pela noite, por mais
prima afastada do conde que fosse. Jacqueline protestou, mas a rainha se
aproximou da porta do dormitório e a abriu ela mesma. Arabella saiu
encantada.
As objeções do príncipe desautorizaram as ordens de sua mãe. Um
minuto antes que soasse o sino que avisava do começo da ceia, Jacqueline
entrou apressada pela porta do dormitório de Arabella.
– Apresse-se. Tem que se vestir para descer para a ceia. – Aproximou-se
do armário. – Reiner insistiu que nos acompanhe. E o conde reforçou seu
convite. É um cavalheiro. – Ficou boquiaberta quando viu os baús vazios. –
Arabella, não tem outro vestido além do cinza que usa todo dia?
– Estou... estava... estou de luto – gaguejou.
– Então deveria ter ao menos dois vestidos cinza – disse a princesa com a
inocência de uma garota que não havia passado um só dia de sua vida sem ter
menos de três dezenas de vestidos no armário. – Temo que eu não tenha
nada de uma cor tão apagada, e olhe que mamãe insiste em que todos os
meus vestidos sejam brancos ou de tons pastel. Então esta noite terá que usar
mais cor. – Foi até a porta. – Venha, apresse-se. Quanto mais nos atrasemos
para a ceia, mas nos olharão quando apareçamos, e isso não me agrada em
nada. Uma coisa é quando a olham quando é a mulher mais bonita do país
como você, mas é muito diferente quando olham para mim.
Apressaram-se pelo corredor, mas todo mundo as olhou igualmente.
Arabella só notou o olhar de uma pessoa.
Depois Luc a ignorou por completo, não só durante a ceia, como também
durante os três dias seguintes. Mostrava-se elegante e agradável com a rainha
e suas cortesãs, incluindo as donzelas, a quem tratava com muito encanto e
deferência, e sem demonstrar nem um pingo de arrogância ou autoritarismo;
mas a ela, nem sequer lhe dirigiu a palavra. Enquanto toda a casa se
concentrava nos preparativos para a festa, não saiu a seu encontro em
nenhum momento nem se aproximou dela. Ninguém se dirigia a ela na
qualidade de nada que não fosse “a preceptora da princesa”, a senhorita
Caulfield. Até o conde havia deixado de lhe lançar olhares capciosos. De fato
já quase não o via.
Ninguém sabia que a esposa do conde residia sob o teto de Saint– Reveé-
des-Beaux, e a jovem começou a acreditar que havia imaginado seu encontro
no vinhedo.
Arabella negou com a cabeça quando uma criada apareceu em seu
dormitório com o vestido que Jacqueline havia prometido lhe emprestar para
a festa.
– Isto não pode ser para mim.
Sobre sua cama havia um vestido confeccionado em gaze rosa e a mais
fina das sedas, com minúsculas mangas enfeitado com miçangas em forma de
estrelas costuradas ao corpete e à saia. Era um vestido para uma princesa, e
não para uma preceptora, por mais que gostasse desse vestido.
– Mais oui, mademoiselle – disse a criada com seriedade. – A princesa o
escolheu dentre todos seus vestidos e pediu que o consertassem
especialmente para que a senhorita o use ce soir.
– Mas não posso aceitar outro presente...
– Sim, pode. – a cabeça de Jacqueline apareceu na porta de seu dormitório
com uma caixa nas mãos enluvadas. – Este.
Aproximou-se dela, destampou a caixa e retirou uma meia-lua de
diamantes.
– Princesa, – sussurrou Arabella – não deveria ter feito isso.
– Não fui eu. – Jacqueline deixou a reluzente tiara sobre o vestido que
havia na cama como se estivesse vestindo a colcha para a festa. – É da parte
do comte.
A criada levou a mão à boca.
– Jesus, Marie et Joseph.
– É evidente que a admira – disse a princesa. – Não estranho. E não é o
único. Vi pelo menos quatro cortesãos de Reiner lhe lançando olhares
interessados do outro lado da mesa na hora da ceia, e dois deles são casados e
são mulherengos.
Arabella ficou olhando a delicada tiara, uma chuva de diamantes que se
espalhavam em forma de leque a partir de um grupo de gemas centrais
colocadas em forma de rosa.
– Não posso usá-la.
A donzela fez uma careta de desagrado.
Jacqueline a fitou.
– Não gosta do conde? De verdade Bella, se um homem me presenteasse
com uma tiara tão bonita como esta, a usaria tanto se gostasse ou não. Todas
minhas tiaras são relíquias de família, são muito feias e estão fora de moda.
Esta é perfeita.
Pelo visto Luc pensava levar a cabo sua ameaça. Não sabia que os
presentes caros não significavam nada para ela.
Vestiu-se e deixou a tiara encima da cama. Mas a princesa se pôs diante da
porta e a proibiu de sair do quarto a menos que a colocasse.
Arabella deixou que a donzela a colocasse na cabeça e se fitou ao espelho.
Parecia uma princesa. Tocou os diamantes com dedo vacilante.
– Por que não me deu pessoalmente?
– Creio que temia que a tirasse da cabeça se ele tentasse. – Jacqueline
elevou as sobrancelhas. – Comporta-se de uma forma diferente quando está
no mesmo cômodo que ele, Bella, e a verdade é que não entendo por quê. Se
há um homem capaz de colocar na defensiva a uma mulher, esse é lorde
Bedwyr, não o comte. Certamente que, apesar de ser um herói da Marinha e de
ter essa brilhante cicatriz, é como um fofo filhotinho.
Arabella não pensava o mesmo. Luc havia se servido da ajuda de
Jacqueline para que não pudesse rechaçar seu presente e, no entanto, ainda
não havia contado a verdade a ninguém. Estava brincando com ela como
havia feito desde o princípio, e o pânico que lhe provocava agarrou-se a ela
sem piedade.
Não era um filhotinho de cachorro. Era um lobo.
Já fazia um século que o castelo contava com um grande salão para
celebrar bailes. Foi construído no lado que dava ao rio, completando a ponte
que cruzava de uma margem a outra. O corredor que saía da galeria de arcos
conduzia até um magnífico salão de teto alto com uma porta no extremo
oposto pela qual se acessava um caminho com treliças que levava ao bosque.
Aquela noite, o salão brilhava devido às centenas de velas e ao reflexo das
tochas que flutuavam no rio; seu brilho refletia através das janelas que se
estendiam desde o reluzente solo de parquet até o teto de gesso. Os músicos
do príncipe estavam vestidos com uma libré azul e dourado, e tocavam peças
alegres que enchiam o vasto salão. Os criados, com as cores prateadas e
negras do pessoal do duque, moviam-se por entre os grupos de convidados
oferecendo vinho.
Os convidados da festa também estavam todos magníficos. Aquele era o
mundo de Luc, os homens e as mulheres que ela só havia visto de passagem
enquanto preparava suas estudantes, as vestia e enfeitava na última moda.
Todos tinham um ar de sublime superioridade. As damas, com os lábios
pintados de vermelho e os pescoços envoltos em joias, pousavam sobre ela
suas longas pestanas e levantavam os leques para sussurrar à sua passagem.
Arabella manteve o queixo bem alto, soltou o leque da renda que
Jacqueline lhe havia dado e se internou na multidão.
A rainha entrou de braços com o príncipe Reiner e seguida de Jacqueline.
Os convidados se inclinaram fazendo reverências enquanto o grupo real se
encaminhava para o pódio, onde o príncipe sentou sua mãe em uma poltrona
dourada. Depois segurou sua irmã pela mão, ajudou-a a descer o degrau do
estrado e se dirigiu diretamente para Arabella.
Os ofegos se fizeram evidentes por todo salão.
Soltou sua irmã e se inclinou sobre a mão de Arabella.
– Comtesse – disse em voz baixa. – Ficaria encantado em ter a honra de
dançar com a preciosa esposa de meu querido amigo.
Jacqueline ficou de boca aberta.
Arabella não pôde evitar que a levasse à pista de dança. Ele sorriu-lhe com
amabilidade, e foi como se não tivesse nada de estranho que um príncipe
bailasse com uma preceptora.
– Não deveria ter feito isso, alteza – sussurrou quando a coreografia os
aproximou.
– Não pude evitá-lo. Teria sido uma grande falta de gratidão por minha
parte se não lhe tivesse pedido a primeira dança. Afinal de contas, esta é sua
casa.
Sorriu.
– Os convidados pensam que o senhor está dançando com uma criada.
– Os convidados logo saberão a verdade.
Luc aguardava do outro lado do brilhante salão junto a um grupo de
damas e cavalheiros. Voltou-se para fitá-la como se sentisse o olhar de
Arabella.
A dança chegou ao fim, o príncipe fez uma reverência e se afastou.
Jacqueline apareceu a seu lado.
– Comtesse? Santo Céu, Bella, o que esteve me ocultando e porque meu
irmão sabe e eu não?
– Ele deve ter lhe dito. – Segurou Jacqueline pela mão. – Sinto não ter lhe
explicado. Não sabia...
– Oh, não tem importância. Todo mundo tem segredos, embora tenha
que admitir que o seu era enorme. Não sei porque o conde e você estão
ocultando isso de todo mundo, nem por que age como uma criada quando
na realidade é a senhora da casa. Mas... – Voltou a fitar a multidão, desta vez
em direção a Luc. – Felicito-a. Seu marido é muito atraente.
– Não sei o que quer de mim – disse Arabella com sinceridade.
A princesa pôs seu inteligente olhar sobre ela.
– Talvez devesse lhe perguntar.
Luc estava se aproximando delas. Jacqueline lhe apertou os dedos e se
afastou.
Então apareceu diante dela, segurou-lhe a mão e se inclinou sobre ela.
Esta noite está linda, duquesa. Como sempre.
Levou a mão de Arabella aos lábios, deu-lhe a volta e beijou o centro de
sua palma enluvada. Arabella sentiu um formigamento por todo o corpo.
Afastou a mão.
– Que está fazendo?
Ele sorriu com comodidade e segurança.
– Provocando-me uma enorme frustração. Venha comigo ao terraço.
– Não. Todo mundo pensará que pretende seduzir a preceptora.
– Que todos se danem. Isso já consegui faz semanas. Venha comigo.
“Isso já conseguiu.”
– Não.
– Sua receptividade segue deixando muito a desejar.
– Suponho que não tenho prática de deixar que me acariciem em público.
– Dado que prefiro acariciá-la em privado, concederei a você essa vitória.
– A praia não era precisamente um lugar privado.
– Certamente. Mas eu já fiz todo tipo de planos para nós em minha
imaginação.
Arabella apertou os punhos.
– Por que brinca comigo como se não tivesse mais nada que dizer?
– O que mais há que dizer? Que tal isto: essa dança é para você.
– Para mim? Mas você...
– Chamo isso de uma espécie de festa de compromisso. – Olhou ao redor.
– Agora todos já estão nos olhando. Pelo visto, não é correto que um
homem fale durante muito tempo com uma dama em um salão de baile. Terá
que dançar comigo para apaziguar sua sensibilidade ultrajada.
– Pensava que havia dito que podiam se danar.
– Dance comigo, duquesa.
– Confunde-me.
– E você me deslumbra.
O olhar de Luc deslizou por seu pescoço e lhe acariciou os seios, depois
seguiu descendo até seu quadril. Ele era mais bonito do que Arabella havia
sonhado; parecia como que fosse capaz de levantar um barco sozinho.
Também usava uma única safira de cor azul marinho escuro alojado no lenço
do pescoço. Usava o olho coberto com um lenço de imaculada seda negra, e
até a cicatriz parecia elegante. Se fosse uma mulher dada a perder o coração
pela importância e a beleza de um homem, estaria perdida. Mas ela não tinha
coração; estava a salvo.
– Tem que dançar comigo – disse. – Não aceitarei uma negativa.
– Desfruta muito de sua vantagem.
– Do que desfruto é de poder lhe tocar. Recorda-me esse breve, porém
memorável episódio da praia. Antes do desafortunado incidente da faca,
claro.
Sorriu.
Arabella tinha as bochechas queimando.
– Ouvi você falar com as damas de companhia. Dirige-se a todas as
mulheres com a mesma sinceridade?
– Não. Só o faço com minhas esposas, e entre elas com nenhuma mais
além das que se negam a dançar comigo. – Aproximou-se um passo e a fitou.
– Conceder-me-ia a honra de dançar comigo, Arabella?
Era a primeira vez que a chamava por seu nome. Parecia acariciá-lo.
– Eu, eu... – Os pensamentos dela se embolavam com seu tom sugestivo.
Sabia que o fazia de propósito. – Faz três dias que evita falar comigo a sós e,
no entanto, agora me provoca como fazia em seu navio, como se nada
tivesse acontecido desde então.
– São três agoniantes dias mantendo-me afastado de você com a intenção
de deixar que se acostume à verdade em seu próprio ritmo. É evidente que
foi uma má tática.
Olhou para a tiara que usava no cabelo.
– Somente um homem de pouco caráter tentaria engabelar uma mulher
com presentes caros.
– Tem toda razão – disse ele. – Mas dance comigo de qualquer forma.
Não podia resistir a ele. Assentiu.
Como era o senhor da casa, Luc só teve que levantar a mão para que a
orquestra começasse a tocar uma nova música. Então a segurou pela mão.
Deslizou os dedos por sua cintura e depois os subiu até suas costelas
acariciando-a desnecessariamente, mas ela o aceitou. Arabella levantou a mão
para pousá-la sobre seu braço e ele começou a dançar a valsa com ela.
– Não voltei a fazer isto desde que esse pervertido me tirou o olhou –
disse em voz baixa e com um sorriso na voz. – Peço-lhe desculpas adiantadas
se lhe der uma pisada.
Arabella perdeu o olhar naquele rosto que refletia o prazer de desfrutar de
algo tão simples, e então uma sensação terna e poderosa ao mesmo tempo se
apossou de seu peito. Talvez Jacqueline tivesse razão. Talvez não fosse
sempre um lobo.
Essa ideia durou menos de um minuto.
– Meu Deus. Morreria para poder beijá-la. – Tinha a voz rouca e não
deixava de lhe fitar os lábios. – Necessito beijá-la.
– Se me beijar aqui, me envergonhará.
– Se a beijar aqui a... – Deteve-se. – Isso foi uma aceitação tácita?
– Eu...
– Não me refiro a que tenha aceitado o lugar do beijo, claro. Sim o
próprio beijo.
Não o suportava. Fazia-a rir, chorar e dançar ao mesmo tempo. Olhou
por cima de seu ombro.
– É...
– Absurdo. Sim, já me disse isso antes.
– Você não deixa de interromper-me. Ia dizer que é tão pervertido como
seu primo.
– Quanto aos desejos é possível. Mas eu só tenho olhos para uma mulher.
– Separou os dedos sobre suas costas procurando a costura do vestido para
depois roubar uma carícia em sua pele. – As suas estão distribuídas entre
muitas. Regardez.
Ela seguiu a direção do olhar de Luc em busca de uma distração, um
pouco de controle ou qualquer coisa que sufocasse o agitado ardor que havia-
se desatado em seu interior. Lorde Bedwyr estava no centro de um grupo de
damas e ria enquanto elas levavam seus leques às bochechas.
Arabella franziu o cenho.
– Não compreendo porque insistiu em celebrar essa boda ridícula.
Luc a estreitou um pouco mais forte, muito além do apropriado; a tinha
tão bem presa que cairia se resistisse à força de seus braços.
– Não foi ridícula – disse por cima de sua testa. – E o fez porque sabia
que era o que eu desejava.
– Você tinha tanta vontade de se casar comigo como eu de me casar com
você. A única coisa que queria era estar comigo por essa última vez, assim
como eu. Pensávamos que iria morrer. Jamais deveria ter aceitado.
Por fim o havia dito em voz alta.
Arabella prendeu a respiração mordendo o lábio.
Ele não negou.
Apertou-a com a mão que tinha em suas costas. Aproximou-a um pouco
mais e inclinou a cabeça até a sua.
– Já passou mais de um mês, Arabella. É tempo mais que suficiente para
saber. – Tinha a voz rouca. – Diga-me. Está grávida de mim?
Arabella ficou um pouco abalada em seu interior e sussurrou.
– Não.
Luc nada disse.
– Se o filho da duquesa for um menino, – disse – tampouco tem que se
preocupar com que seu irmão possa herdar.
– Bedwyr lhe explicou.
– Ninguém teve que me dizer. Toda a casa está ciente de sua situação
familiar. As damas de companhia estão toda manhã fofocando a respeito. –
Não era capaz de olhá-lo nos olhos. – Aceitarei a anulação sem protestar. E
não espero que me compense de alguma forma. Não tem por que ninguém
saber.
Fez-se um longo silêncio.
– Eu não quero anular nosso casamento – disse Luc.
– Claro que quer. Deve fazê-lo.
– Não, não devo, pequena preceptora que dá ordens como se fosse
duquesa por nascimento. Pergunto-me o que será a próxima coisa que me
ordenará. Quer que busque uma faca e acabe o que começaram aqueles
sujeitos da praia? Ou talvez prefira que me crave um pouco mais acima, que
me arranque o coração e o meta em uma caixa sobre a lareira, assim não
voltará a incomodá-la.
Não podia falar a sério. Não o dizia seriamente. Luc flertava e a provocava
como se não significasse nada, quando para ela havia significado tudo.
Para ela significava tudo.
O coração que acreditava que não existia começou a palpitar a galope por
debaixo de suas costelas. Passara toda a vida escapando: do orfanato, do
reverendo e dos homens que haviam tentado utilizá-la. Mas jamais poderia
escapar dele. E o pior de tudo era que não queria fazê-lo. Queria voltar a se
perder, mas dessa vez queria fazê-lo com ele. Perder-se-ia encantada, e então
desapareceria para sempre.
Arabella se liberou de seus braços. Ficaram como duas estátuas gregas no
meio dos giros das saias, as pontas das casacas e as joias brilhantes dos
dançarinos. A jovem viu a verdade em seu rosto. Não havia lhe contado tudo
sobre seu casamento apressado. Continuava mentindo para ela.
– Fala como se suas palavras não tivessem consequências – disselhe. –
Mas essa brincadeira acabou. Tem que deixar de brincar com isso.
– Não penso em liberá-la de seu compromisso, Arabella.
Ela levantou a mão e retirou a tiara do cabelo.
– Não pode comprar meus sentimentos nem minha obediência, milord.
Os pares que dançavam a seu redor reduziram seus passos de dança e se
detiveram para olhá-los.
Ele não se moveu nem aceitou a tiara.
– E agora quem tenta envergonhar a quem?
Sua voz era rouca e sombria.
– Eu sou a única envergonhada. Envergonhei-me confiando em você.
Luc pegou a tiara de sua mão e em seu rosto se refletiu uma furiosa
vulnerabilidade.
Ela se afastou com o queixo bem alto enquanto deslizava entre os
convidados.
Teve que fazer uso até da última gota de sua serenidade para não sair
correndo.
Capítulo 12
A noiva
– Falaram do assunto durante horas. – Jacqueline estava atrás dela em sua
penteadeira e lhe passava as cerdas de uma escova prateada pelos cachos. –
Os aristocratas franceses são muito escandalosos, mas nunca esperam que
um inglês também o seja. Sua valsa e a briga seguinte com o conde foram
uma refrescante surpresa.
Suas risadas se encontraram com os olhos de Arabella no espelho.
Tinha o olhar límpido. Quando saiu do baile, despiu aquele vestido de
princesa e o entregou à donzela para que o levasse. Depois sentou-se junto à
lareira até que os sons da festa se apagaram e Jacqueline foi vê-la em seu
quarto.
– De qualquer forma, todo mundo acabaria se inteirando em seguida da
origem da tiara – disse a princesa escovando-a com suavidade. – O mais
provável é que os criados tenham começado a falar sobre o assunto quando a
dei a você. Em uma casa como esta, os segredos não duram muito.
– Nenhum?
Jacqueline esboçou um sorriso.
– Exceto talvez a notícia de que na realidade não é uma preceptora.
– Sim, sou uma preceptora.
– Bem, até que o conde anuncie seu casamento secreto. Reiner pensava
que tinha a intenção de fazê-lo esta noite. Sua briga deve tê-lo feito mudar de
opinião. Oh, Bella, tem que perdoá-lo imediatamente para que eu possa
abraçá-la diante de todos como minha amiga e não como uma serviçal.
Arabella se levantou, foi até o armário e o abriu. Jacqueline havia lhe
deixado roupa nova; seu velho uniforme estava bem dobrado em seu interior.
Afastou as anáguas e retirou o anel que enrolara na camisola. Retirou-o e o
atou ao pescoço. Quando usou o vestido de baile, havia tido saudades de seu
peso ao redor do pescoço. Parecia-lhe familiar. Consolava-a.
– Por que se casaram em segredo?
– Jacqueline, não posso ficar aqui.
A princesa deixou a escova na mesa.
– Não vai me explicar o que acontece entre o conde e você, não é?
– Vou embora amanhã.
– Ele sabe disso?
Logo descobriria. Mas, com um pouco de sorte, a distância faria com que
esfriasse sua luxúria e seu orgulho, e se daria conta de que era melhor assim.
Nesse ínterim, ela começaria a procurar seu pai, mas dessa vez o faria sem
esperar que algum príncipe lhe mostrasse o caminho.
-Tem que fazer o que deve – disse Jacqueline. – Eu não sei nada sobre as
complicações matrimoniais. Mas gostaria que ficasse.
– Não posso.
O momento de terror que havia sentido no baile já havia passado, mas
não a vontade de ir embora e afastar-se de Luc.
– Bella – disse a princesa. – Admito que lamento que não estará comigo
em Londres.
– Já sabe todo o necessário para se defender perfeitamente.
– Não me sinto confortável com os cavalheiros – disse franzindo o cenho.
– Esperava que me ensinasse a me acostumar com eles.
– Temo que nesse aspecto não tenha muito mais conhecimentos que
minha aluna.
– Isso não pode ser verdade. Eu vivi confinada em castelos e
comparecendo às festas escolhidas por meu irmão e minha mãe, e não sei
nada sobre os homens. Mas você viveu entre a alta sociedade londrina. Deve
ter tido muitas aventuras.
– Se por aventura se refere a ter confiado em um homem que me
prometeu me apresentar a... – um príncipe – a um possível superior, para
depois descobrir que o que queria era me apresentar à sua luxúria, então sim,
tive uma aventura.
– Arabella! Era um convidado de alguma casa em que trabalhou?
– Era o irmão mais velho dos meninos de que eu cuidava, e até esse
momento o considerava um amigo. – Fechou a mão ao redor do anel que
pendia sobre sua clavícula. – Expliquei à governanta o que me havia feito.
Ela informou a meus superiores, mas eles não se alteraram. Disselhes que eu
o havia seduzido. Despediram-me.
– Foram injustos.
– Foi culpa minha. – Sempre havia sido culpa sua, desde os primeiros dias
de orfanato até a terrível e desastrosa situação em que se encontrava nesse
momento. – Fui muito ingênua. E presumi de forma espantosa que o bom
caráter sempre devia estar ligado à riqueza e à boa aparência de um homem.
A princesa demorou um pouco a responder.
– Compreendo – disse por fim.
Arabella voltou a sentar-se na penteadeira e levantou as mãos para trançar
o cabelo.
Jacqueline segurou sua mão.
– Vai embora amanhã?
– Pela manhã.
– Pedirei ao cocheiro que lhe prepare a carruagem. – Foi para a porta e se
deteve ali. – Sentirei sua falta, Arabella. Sentirei saudades como sentiria de
uma irmã, se a tivesse. Espero que voltemos a nos encontrar logo.
Arabella se aproximou dela e a abraçou.
Quando Jacqueline saiu, entrou uma donzela para preparar o fogo que
aplacaria o frio da noite. Ela se sentou na frente das chamas e entrançou o
cabelo. Mas, uma hora depois, enquanto fitava o rio negro pela janela envolta
em uma manta, e uma vez que haviam-se apagado todas as luzes da festa e
que havia desaparecido a magia, continuava tendo frio. O castelo tinha
trezentos anos, o outono havia levado uma brisa úmida a seus aposentos; não
era de surpreender que não conseguisse reaquecer-se para poder dormir. E já
não voltaria a vê-lo outra vez.
Meteu-se na cama e se cobriu. Os lençóis eram macios e cheiravam a
rosas, e estava rodeada de marfim e ouro. Era a cama de uma princesa, podia
fingir uma noite mais.
Quando despertou, a luz ambarina do fogo se estendia sobre a colcha nos
pés da cama. O conde estava abrindo as cortinas e sua silhueta se recortava
contra a claridade da noite. Arabella só via o contorno de seus ombros, o
braço com que afastava a cortina e a silhueta de sua cintura. Ali a escuridão
ocultava a beleza masculina de seu corpo, não como na praia, onde pôde vê-
la iluminada pelo sol.
Arabella sentou-se.
Ele não disse nada, mas seu peito se estendeu. Ela escutou sua áspera
inspiração por debaixo do estalo e do sussurro do fogo.
A jovem se deslocou engatinhando até os pés do colchão. Ele estendeu o
braço e pousou a mão em seu rosto. Era grande, quente e forte. Arabella
voltou os lábios para a palma de sua mão. Luc se inclinou, a levantou até ele
e seus lábios se encontraram.
Beijou-a com apetite e abraçou-a sem lhe soltar a cara. Acariciou-lhe a
mandíbula e o queixo com o polegar, abrindo-lhe a boca para ele. Tinha
sabor de vinho, de calor e do desejo que sentia por ela. A língua de Luc
acariciou a sua com suavidade, e depois penetrou mais para dentro. Ela o
acolheu. Cada vez que a tocava conseguia que o desejasse um pouco mais.
– Doce Arabella – sussurrou contra sua bochecha. – Que consequências
pode temer tanto para que queira fugir de mim, minha pequena preceptora?
A perda. A traição. Que lhe rompesse o coração. A indefinível sensação de
toda a dor que havia sofrido, guardada sob sua pele e que a rodeava o
coração como um guardião. Não devia amá-lo. Mas ficar com ele e não amá-
lo era impossível.
– Que está fazendo aqui?
– Desfrutando do que é meu por direito.
Escondeu o nariz em seu pescoço e ela levantou a cabeça para lhe permitir
o acesso.
– Eu não lhe pertenço como esta casa ou seu navio.
– Dê-me uma noite de bodas. Por fim.
– Não deveríamos estar casados. Não deveria ser meu marido.
– Duquesa. – Segurou-lhe a cara e a obrigou a olhar para ele. – É minha
esposa aos olhos de Deus.
– Eu já não acredito em Deus.
– Então acredite em mim.
– Blasfemo.
Luc sorriu.
– Hipócrita.
– Beije-me.
“Beije-me uma e outra vez até que volte a crer em Deus, porque então
saberei que é um milagre e não só um sonho.”
Luc lhe acariciou o rosto com reverência e depois fez o que ela havia lhe
pedido. Arabella já conhecia seu sabor, a sublime forma e pressão de sua
boca sobre a dela, a intensa e palpitante emoção que sentia por dentro
quando a língua de Luc acariciava a sua. Conhecia o cheiro de mar e de vento
que desprendia, mesmo nesse momento.
Por fim se deu permissão para tocá-lo. Pousou as mãos sobre seu corpo e
acompanhou o contorno de seu pescoço e seus ombros com as palmas das
mãos e as pontas dos dedos, reconhecendo sua pele e seus tendões como
conhecia seu caráter: forte, poderoso e seguro. Seu corpo era duro e robusto,
e Arabella sabia que nunca seria seu, não importava o que ele dissesse ou
fizesse. Luc não pretendia machucá-la; mas talvez o fizesse sem se dar contar.
– Faz-me sentir o oposto do que eu quero – disse, e para salvar seu
orgulho acrescentou: – E sua arrogância é insuportável.
Luc lhe acariciou a parte inferior dos seios com os polegares.
– Não podemos fazer uma trégua?
– Como fizemos na praia quando fez amor comigo?
– Talvez durante um pouco mais de tempo.
Segurou-lhe um seio e ela se inclinou sobre ele. Então lhe acariciou o
mamilo. A respiração de Arabella se entrecortou. Luc a acariciou e ela pensou
que, se ele parasse, ela se quebraria em mil pedaços.
Agarrou seus ombros.
– Podemos fazer amor agora.
– Sim, por isso vim.
– Não ria de mim. – Arabella o necessitava, dentro dela, por todas as
partes. – Não tem nem ideia do que isto tudo me faz sentir.
Claro que sei. – Deixou resvalar a mão por suas costas até seu traseiro e a
colou ao corpo. – Porque o mesmo acontece comigo.
Beijou-a com intensidade. Ela queria subir encima dele e envolver-se nele.
Passou as mãos por seu peito e depois seguiu até sua cintura; necessitava
tocá-lo e necessitava tê-lo próximo. Os dedos de Arabella pousaram sobre
uma cicatriz de carne irregular e ele ficou sem ar. No amparo da escuridão, a
cicatriz recente dava a impressão de ser um corte sombrio em suas costas.
– Ah – disse em voz baixa. – Um pequeno inconveniente.
– Um inconveniente?
Ela havia pronunciado seus votos de casamento por culpa dessa ferida.
– Melhor dizendo, uma oportunidade.
Luc a levantou da cama, atraiu-a para si e a beijou. Deixou resvalar as
mãos por suas costas, agarrou-a pelas nádegas e seguiu por suas coxas. O
camisolão de Arabella subiu por seus joelhos, e ela notou a calidez de suas
mãos quando a convidou a separar as pernas. Ofegou com o corpo exposto
ao seu. Ele arrastou-a para si e sua zona sensível colidiu com o tecido de suas
calças.
– Eu... – Agarrou-se nele. – Eu vou cair.
– Eu a segurarei.
Levou-a novamente para a cama, colocou-a sobre o colo e a ajudou a se
sentar a cavaleiro sobre ele. Arabella não entendia o que queria, mas o fez
porque ele queria que o fizesse e porque morreria para tê-lo perto. Luc a
beijou agarrando-a com força pelo quadril com uma mão e pela cabeça com a
outra. Enterrou os dedos em seu cabelo preso.
– Por Deus, por que usa esta trança infernal?
Arabella riu.
Luc lutou com o laço.
– Dar-lhe-ei o que queira. – Tinha a voz áspera. – Se me ajudar com isto,
lhe darei a metade de minhas posses. Darei a você três quartas partes; não.
Darei todas minhas propriedades.
Ela lhe afastou as mãos com delicadeza e desfez o nó com facilidade.
– Não quero nada disso.
Começou a desabotoar as calças dele.
– Oh, duquesa, duquesa – rugiu Luc, espalhando o cabelo dela pelos
ombros com o olhar transbordante de desejo. – Ainda vai me matar.
– Não voltarei a permitir que morra por minha culpa.
– Já estou morrendo por você agora. – Seu peito subiu com força. –
Toque-me. Toque-me agora e verá como morro.
– Outra ameaça?
Arabella pousou os dedos sobre seu abdômen e os músculos de Luc se
contraíram.
– Só seria uma ameaça se lamentasse minha morte. – Respirava com
dificuldade. – Arabella, lhe suplico.
Ela o tocou. Antes desesperada por mantê-lo afastado, nesse momento
somente desejava agradá-lo.
Não foi como ela esperava. Luc gemeu de prazer, coisa que ela já
imaginava que sentia, mas a jovem também sentiu prazer enquanto o
explorava. Ele pousou a mão encima da sua para lhe ensinar o que queria e
continuou movendo a mão de Arabella por sua pele até que a soltou e a
ajudou com o balanço de seu quadril.
– Isto é tudo o que quer de mim? – Disse ela com a voz trêmula.
– Sim... Não. – Luc tinha a voz torturada. – Deus, não.
– Então, o que quer?
– Quero estar dentro de você. – Segurou-a pelo quadril. – Mas primeiro...
– Puxou a camisola que ela tinha sob as nádegas e procurou retirá-la, mas os
braços e o cabelo de Arabella se enroscaram no tecido. Luc a imobilizou
quando tinha os braços levantados e seus cachos se soltavam por todas as
partes. – Oh, Deus, duquesa.
– Não vejo seu rosto, – riu ela por detrás da cortina de cabelo – mas
parece que está com alguma dor.
– Tenho dor sim. – Pousou a mão no seu peito cálido e estimulou o
mamilo. – Sim.
Depois ela notou o contato de sua boca sobre a pele rodeando o mamilo,
quente e úmida. Deu-lhe um suave mordisco. O prazer a percorreu dos pés à
cabeça.
– Retire-a.
Luc puxou a camisola até retirá-la totalmente. O cabelo de Arabella se
soltou em forma de cascata. Ele enroscou uma mecha na mão e puxou-a para
aproximá-la.
Ela sorriu e Luc sentiu a glória de desfrutar da felicidade do momento.
– Então, no final, é da classe de homens capazes de arrastar uma mulher
pelo cabelo até seu dormitório.
– Não quando ela já me convidou a entrar no seu.
– Eu não o convidei. Você forçou a fechadura.
– A porta não estava trancada. Estava me esperando. – Afastou uma
mecha de cabelo da frente. – Brigou comigo. Mas queria que viesse.
Segurou a mão dele e a colocou na cintura, depois encontrou a excitação
de Luc com a outra mão. Ficou de joelhos e ele não disse nada enquanto ela
se acomodava encima dele, mas fitou-lhe o rosto com a respiração
descompassada. Arabella não sentiu o mesmo que recordava da praia depois
daqueles primeiros momentos de dor. Ele era enorme e ela se sentia
incômoda.
Luc a agarrou com mais força pela cintura.
– Arabella, deixe-me...
Ela o beijou e ele enterrou os dedos em seu cabelo e a atraiu para ele
enquanto a beijava.
– Vem aqui, linda – disse contra seus lábios. – Abra-se para mim. Deixa
que lhe dê o que procura.
Luc deslizou as ponta da língua pelo lábio inferior dela enquanto a
agarrava pelo seio. Acariciou-lhe o mamilo com o polegar e ela brilhou como
se estivesse cheia de gotas de chuva. Deslizou-se sobre ele e seu corpo se
dilatou, depois sentiu-se plena e então vencida. Sentia-o demasiadamente. No
corpo e em seu coração nu e cru.
– Não vai se romper. – Luc lhe colocou a cabeça para trás e beijou-lhe o
pescoço enquanto ela se esforçava para respirar. – Foi feita para isto –
murmurou pousando a cálida boca em seu pescoço e deixando resvalar as
pontas dos dedos por seu estômago. – Para mim.
Passeou o polegar pelo cabelo que lhe crescia no ventre e acariciou sua
intimidade. Arabella se ouviu fazer um ruído, um gemido que não foi capaz
de reprimir. Luc a acariciou e lhe falou com suavidade enquanto ela se
pressionava contra ele cada vez mais desesperada.
– Mais – sussurrou. – Por favor.
Luc investiu contra ela. Ela gemeu, se pôs de joelhos e voltou a deslizar
encima de sua ereção. Ele lhe dava um prazer que sentia dentro, no fundo da
garganta, e por todas as partes. Era sólido, tinha as mãos fortes, e ela queria
tudo de uma só vez. Arabella o segurou pelo rosto, beijou-o e deixou que
entrasse ainda mais nela. Queria mais. Queria senti-lo dentro de todo seu
corpo.
Quando chegou o momento, Luc a abraçou, e ela não se desmanchou em
pedaços, não se quebrou nem resistiu. Arabella se colou a ele, e quando se
deu conta de que estava a ponto de gritar seu nome, mordeu os lábios.
Luc tinha o brilho do suor na pele e a respiração tão acelerada que lhe
agitava o peito. Ela deslizou as mãos pelos musculosos contornos de seu
estômago e deixou que seus dedos pousassem sobre o monte que havia junto
ao ponto em que estavam unidos.
– Sobreviveu – sussurrou Arabella.
– Tinha um bom motivo.
Afastou-lhe o cabelo do rosto e a atraiu para si. Teve a sensação de que a
beijava com ternura e gratidão. Tinha o coração demasiadamente cheio.
Ela se afastou. Quando se separou dele, Luc ficou deitado no colchão e
deixou escapar um grande suspiro. Arabella sentiu frio na pele úmida ao não
ter o calor do corpo dele, e se envolveu com a colcha, aconchegando-se de
lado para poder fitá-lo.
– Já conseguiu o que queria, capitão?
Tinha o olho fechado, mas lhe aparecia um sorriso no canto dos lábios.
– Consegui o que queria, pequena preceptora.
Sua voz era um suave rugido, como se estivesse meio adormecido.
– Irei embora daqui amanhã pela manhã.
– De forma alguma.
– Sim, irei.
– Como? – Voltou a cabeça e se apoiou sobre o cotovelo para vê-la. –
Aparecerá uma caravana de ciganos e a raptarão?
– Não haverá nenhum sequestro. Irei assim como cheguei, pela porta
principal e numa carruagem.
Ele lhe acariciou o ombro com o dedo, baixando-lhe a colcha pelo braço e
seguindo o caminho do tecido com o olhar.
– Não acredito. Mas se acreditasse, não o permitiria.
– Ordenará a seus criados que não me deixem sair? Fechará as portas com
chave?
As abas de seu nariz se dilataram como se fosse um cavalo enfurecido.
– Não.
– Então irei.
Luc se levantou da cama, subiu os calções por cima das nádegas firmes, os
abotoou e puxou a corda que fazia soar a campainha.
– Então necessitará sustento para a viagem – disse com toda normalidade
e com o mesmo encanto senhorial que empregava para dirigir-se ao resto de
seus convidados. Pegou a casaca que havia deixado sobre a poltrona dourada
e a pôs sobre o ombro. Era de seda negra.
Ela se sentou e arrastou a roupa de cama.
– Mesmo vestido de lorde parece um pirata.
Luc sorriu e foi até a porta.
– Se acredita que pareço um pirata, quero dizer que nunca viu um de
verdade.
– Você conheceu piratas de verdade?
Ele saiu ao corredor fechando a porta quase toda. Mas a conversação que
manteve com a criada que havia chamado foi mais que suficiente para deixar
claro a toda a casa que eram amantes, como se a tiara que lhe havia
presenteado não tivesse sido suficientemente explícita.
Depois voltou, fechou a porta e cruzou o dormitório até a lareira.
– Durante a guerra passei onze anos na Marinha – explicou, colocando
um novo tronco no interior da lareira.
– É o herdeiro de um ducado. Por que foi à guerra?
Luc se sentou em uma cadeira diante do fogo. A luz dourada iluminou a
parte marcada de sua face.
– Meu tio se casou com uma mulher jovem. Nunca pensei que chegaria a
herdar. De qualquer forma, depois do Tratado de Paris, me retirei da
Marinha.
– Mas não voltou à Inglaterra. E não respondeu minha pergunta.
– Eu estava em Cambridge quando meu irmão escapou do homem que
tinha sua tutela e desapareceu na França.
– Na França? – Em plena guerra contra a Inglaterra.
– Estive procurando por ele durante um ano inteiro, mas não consegui
encontrá-lo, não podia protegê-lo. Eu... – Franziu o cenho. – Já fazia muitos
anos que Gavin Stewart era médico de nossa família, além de um bom amigo.
Foi ele quem me sugeriu que fizesse algo útil em lugar de passar a vida
atormentado. – Esfregou a cara com a mão e pousou os dedos sobre a
cicatriz durante um segundo. – E gosto muito de navios.
– Conseguiu...? – Arabella jamais havia pensado que ele também podia ter
perdido alguém. – Conseguiu encontrar seu irmão?
– Foi ele quem me encontrou. Na época, eu dispunha de uma renda
proporcionada pela propriedade que meu pai havia me legado, embora ainda
não controlasse minha fortuna. Mas meu irmão continuava sendo muito
jovem para poder ser independente do homem que nos deram como tutor
quando nosso pai morreu, e nosso tio, que era o tutor legal, se negava a
intervir. Então mandei dinheiro para Christos.
– Enviou dinheiro para a França? Isso não era ilegal?
– E aqui é onde voltamos ao assunto dos piratas.
Luc sorriu, mas seu gesto não refletia qualquer prazer. E embora tivesse
adotado uma postura relaxada na poltrona, adivinhava-se a tensão nas mãos,
apoiadas nos braços da poltrona.
– E onde está seu irmão agora?
Luc fechou o olho.
– Creio que em Paris.
Alguém bateu à porta.
– Ah – disse. – Já chegou a refeição.
Luc não deixou a criada passar e entrou ele mesmo com a bandeja para
deixá-la sobre a cama. Arabella destampou os pratos.
– Aqui há comida para meia dezena de pessoas – exclamou.
– Ou para uma preceptora mal alimentada.
Luc falava com tranquilidade.
Arabella passou o olhar pelas delícias que tinha diante de si e depois o
fitou: viu uma mescla de satisfação e vulnerabilidade. Sua garganta se
contraiu.
Comeu e bebeu o vinho que lhe serviu. Ele se recostou na cabeceira da
cama com uma travessa de prata cheia de figos maduros cor de violeta,
apoiada em seu plano ventre. Tinha a jaqueta aberta e o tecido caía em pregas
de cetim pelos lados de seu corpo. Arabella perdeu o apetite e somente
queria saciar-se do prazer de olhá-lo. Queria acariciá-lo com a boca como
havia feito ele. Esse homem lhe acelerava e esquentava o sangue e isso a
assustava. Quando estava com ele, podia esquecer-se de tudo. Podia até
chegar a esquecer a necessidade de averiguar quem era realmente. Havia
negado isso durante semanas, havia resistido a esse sentimento e a ele, mas,
no fim, havia caído.
Então empurrou a bandeja até os pés da cama e engatinhou até ele. Como
tinha medo de tocá-lo e despertar as emoções que havia experimentado havia
um momento, limitou-se a deitar-se de lado e a observá-lo.
– Luc...
“Amo-o.”
Ele afastou o prato de frutas, inclinou-se para a frente e a beijou.
– Se voltar a chamar por meu nome, linda, a presentearei com uma dezena
de tiaras. Centenas.
– Não pode me comprar.
– Não pretendo comprá-la – murmurou ele contra seu pescoço. –
Pretendo fazê-la feliz.
– Os diamantes não me farão feliz.
Arabella se agarrou a seus ombros enquanto os beijos dele desciam por
seu corpo.
– Então, o quê?
– Quero conhecer minha família.
Por fim sussurrou a verdade que jamais havia dito a alguém.
– Seu pai adotivo, o reverendo Caulfield, pastor de uma pobre paróquia de
um minúsculo povoado fronteiriço – disse. Sua irmã mais velha, Eleanor,
uma solteirona erudita. Sua irmã caçula, Ravenna, a serviço de...
Arabella o empurrou.
– Como sabe tudo isso? Eu não contei a você.
Luc franziu o cenho.
– Não me custou muito descobrir, duque...
Ela pousou os dedos nos lábios.
– Não deveria me chamar assim.
Luc lhe beijou os dedos e depois meteu um na boca. A carícia de sua
língua na sensível ponta do dedo se reproduziu entre suas coxas e os dedos
dos pés. Arabella fechou os olhos e se limitou a sentir o que lhe estava
fazendo. “Só isso”. Isso era o único que devia aceitar dele, nada mais. Agora
que já conhecia suas próprias debilidades, podia proteger-se e não desejar
mais. Entretanto podia salvar-se em vez de acabar completamente perdida.
Luc pousou os lábios na palma de sua mão e depois na sensível pele do
pulso.
– Então, como posso fazê-la feliz, duquesa?
– Deixe-me ir embora.
Estirou o pescoço e ele a beijou no ombro despojando-a por completo da
colcha.
– Não posso. – Desenhou um caminho entre seus peitos com a língua,
depois traçou um círculo sobre sua tumescência, e por fim chegou ao
faminto mamilo ereto. – Todo mundo pensaria que sou o pior dos sem
vergonhas por seduzir uma preceptora e depois abandoná-la. Isso arruinaria a
reputação de minha família.
Arabella se arqueou ao sentir seus beijos sobre o ventre; estava deixando-a
sem fôlego.
– Você brinca, mas não o compreendo.
– O que eu compreendo é que quando estou com você, dentro de você,
não há nada mais.
Agarrou-a pelo quadril.
– Sempre há algo mais.
– Que outra coisa pode haver, além de seus expressivos olhos, sua gloriosa
cabeleira, sua língua afiada...?
– Minhas desconfianças de você.
A instigou a separar os joelhos e pousou a boca na face interior das coxas.
– Seu cheiro de rosas.
“Meu coração, que agora poderia se romper.”
Inclinou-se sobre ela e lhe deslizou a língua pela zona mais sensível de seu
corpo. Arabella ofegou.
– Seu sabor embriagador.
Voltou a lambê-la muito devagar e ela arqueou as costas.
– O que...? – Arabella tentou respirar. – O que está fazendo?
– Estou saboreando-a. – Passou-lhe a língua por cima. – Embriagando-me
de você.
Era um prazer absoluto, suave e úmido, e ela estava se afogando.
– Não sou um copo de conhaque.
– É o paraíso. Meu paraíso.
Luc sugou com suavidade e Arabella esteve a ponto de pular da cama.
Agarrou-se à colcha e ficou quieta, e ele continuou chupando-a até que ela
estivesse cega de prazer e debilitada: a atormentava a necessidade de querer
muito mais que isso.
– Isto não pode ser certo.
Esforçou-se para se controlar enquanto sentia as carícias de sua boca.
Lutava contra sua necessidade.
– Confie em mim, Arabella – disse ele, e a segurou mais forte com as
mãos.
Queria fazê-lo. Queria ser todo seu mundo assim como ele – muito temia
– já havia se convertido no seu.
Deixou lhe fazer o que quis com a língua, e gritou quando o prazer a
percorreu dos pés à cabeça, balançando seu corpo com tal intensidade que
não pode reprimir seus gritos. Depois a penetrou. Dessa vez seu grande pau
se internou nela sem ternura nem palavras tranquilizadoras, dessa vez o fez
com urgência. Investiu contra ela com força e depois com mais força ainda.
Depois da suave sedução de sua boca, a jovem aceitou a invasão, e imaginou
que ele a necessitava. Se agarrou a ele.
– Deus, Arabella – rugiu. – Deixa-me louco.
Seus ombros ficaram tensos e, depois de deixar escapar um gemido
poderoso, acabou dentro dela.
Demorou um tempo para soltá-la. Rodeou-a com os braços, abraçou-a
enquanto continuava debaixo dele e apoiou a testa no ombro dela. Ela
deslizou as mãos por suas costas suadas e memorizou a textura de sua pele e
a forma de seu corpo. Quando seus dedos chegaram à ferida, Luc inspirou
fundo. Separou-se dela sem deixar de fitá-la.
– Não deveria ter feito isso – disselhe Arabella.
– Não pude evitar.
– Dessa forma – esclareceu passando-lhe o dedo nas costas.
Moveu-se com cautela e a cobriu.
– Sou muito indisciplinado.
Outra mentira. Estava tão seguro da disciplina que impunha a sua
tripulação, amigos e criados que não podia imaginar se desviar de sua
vontade.
Arabella fechou os olhos e voltou a cabeça sobre o travesseiro. Ele tocou-
lhe a testa, afastou um cacho de cabelo e pousou os dedos na bochecha dela
um momento antes de afastar a mão.
– Por que não confia em mim, duquesa? – Disse com suavidade. – Se eu
lhe daria tudo?
– Quer saber por que não confio em você? – Sussurrou. – Por que mentiu
e continua ocultando-me a verdade?
Arabella necessitava que o negasse, que lhe assegurasse que não estava lhe
ocultando nada sobre os motivos que haviam propiciado um casamento tão
apressado, e sobre o porquê de que mantiveram sua ferida em segredo.
Luc nada disse e ela apoiou a face no tecido que conservava seu cheiro.
– Aceitaria os diamantes como presente de casamento? – Disselhe com
seriedade.
– Não posso.
Então ele saiu. Arabella já supunha que iria. O dormitório ficou frio em
seguida. Cobriu-se com a manta, se aconchegou no colchão e aguardou que o
sono a vencesse.
Capítulo 13
O senhor da casa
– Está aqui, Sua Graça?
Luc abriu o olho. Seu camareiro estava na porta da casinha para botes. A
luz do sol que marcava sua silhueta sugeria que já era meio-dia.
O senhor da casa se inclinou para diante sobre o banco acolchoado e
esfregou o rosto com as mãos e depois o cabelo; procurava despertar.
– O que ocorre?
Depois de ter passado a noite fazendo amor com uma linda e apaixonada
mulher, deveria sentir-se ótimo. Mas as costas lhe doíam muitíssimo e, apesar
de tudo, Arabella continuava intratável.
– Esta manhã chegou uma carta de Canterbury, senhor, e outra do senhor
Parsons.
Miles lhe trazia a correspondência com precisão militar. Luc franziu o
cenho. A expressão que viu na cara de seu assistente o recordava muito
quando Arabella lhe devolveu a maldita tiara na noite anterior.
Havia cometido um erro. Outro erro com ela. Era muito orgulhosa para se
deixar bajular. Mas não compreendia o que essa mulher queria dele. Nunca
havia conhecido alguma mulher que não se derretesse ante uma joia. Ou ante
a sedução. As desculpas não haviam funcionado.
Pegou as cartas.
– Café. Faça as maletas. Uma carruagem. Nessa ordem.
– Tomei a liberdade de pedir ao mordomo que diga à cozinheira que
prepare outro desjejum para o senhor e vários dos convidados que se
levantaram tarde devido à festa da noite passada. Antes de partir, Sua Graça...
– A comtesse.
– ...e sua alteza comeram o desjejum...
– Foi embora?
Luc levantou a cabeça.
Seu delicado assistente levantou o nariz. Ia vestido com tanta elegância
como sempre. Usava a roupa engomada e passada à perfeição, como sempre
que havia feito o papel de assistente de camarote nos barcos de Luc.
– Sua Graça queria ir visitar a modista da cidade. Eu lhe assegurei que a
mulher viria vê-la, mas ela tinha muita vontade de sair de casa, onde pelo que
vi está sendo objeto de um escrutínio considerável por parte dos convidados,
com exceção de lorde Bedwyr e sua alteza o príncipe e a rainha, claro.
Luc esfregou o pescoço dolorido. Dormir sentado não o afetava menos
que dormir profundamente. Mas, na realidade, seus problemas não eram
físicos. Ela o havia deixado exausto e confuso. Essa mulher era pura paixão e
coragem, tudo envolto em um feroz descaramento que agora sabia que
ocultava uma terna insegurança. Arabella havia conseguido que a quisesse
mais com cada carícia e cada palavra.
Podia ser que resistisse, mas não tinha escolha: era sua.
Pegou a carta da mão de seu assistente e rompeu o selo de cera.
– A modista?
– Sua Graça quer comprar um vestido de viagem.
– Mm...
A carta era curta e ia direto ao ponto. O arcebispo não aceitaria a validade
do casamento celebrado por um sacerdote de credo romano em
circunstâncias incertas, e sem o benefício da leitura dos proclamas
apropriados. Urgia a lorde Westfall a regressar a casa e conseguir uma licença
para se casar com a senhorita Caulfield com o pleno consentimento da Igreja
da Inglaterra, ou corria o risco de por sua alma mortal em perigo de cair
presa do pecado da fornicação.
Meteu a carta no bolso.
Malditos prelados. Só era um mero inconveniente. Mas se ela engravidasse
e o menino nascesse antes dos nove meses da data da boda, poderia acabar se
convertendo em um problema. Iriam à Inglaterra o quanto antes e poriam
fim a todo aquele assunto.
Levantou e Miles se retirou para que pudesse sair do galpão. Luc não
voltou ao seu dormitório depois de ter ido visitar Arabella no seu. E quando
ela voltou a rechaçar o presente, foi ao galpão sem pensar. Só dormia bem
quando estava próximo da água. O antepassado que comprou Saint-Reveé-
des-Beaux devia estar pensando nele quando o fez.
Miles o seguiu e seus saltos Luís XIV ressoaram pelo cais que se estendia
sob os arcos do túnel.
– Partirá logo para a Inglaterra, Sua Graça?
– Hoje. E deixe de me chamar de Sua Graça. É desrespeitoso e um pouco
mórbido.
– Muito bem, Sua Graça. E devo pedir a monsieur Brissot que coloque os
serviçais sob as ordens de Sua Graça a duquesa quando volte?
– Da modista?
Miles elevou suas finas sobrancelhas.
– Desculpe-me, Sua Graça, mas pensava que Sua Graça regressaria de
Paris. Mas talvez prossiga sua viagem e se reúna com o senhor na Inglaterra.
– Depois de quê? De que diabos está falando, Miles?
– Monsieur Brissot me informou que Sua Graça pretendia partir para Paris
depois de visitar a modista.
Luc se deteve e fechou os olhos. Deveria ter imaginado. Já lhe havia dito.
Era um completo idiota. Pior ainda, estava cego. E estava começando a ver o
gênio de sua pequena preceptora sob uma luz completamente nova.
– Quando saiu para o povoado, Miles?
– Não faz nem quinze minutos.
– Faça os preparativos para nossa viagem de hoje. Passaremos a noite em
Guer e depois iremos parando nos lugares que sejam necessários no caminho
até Saint-Malo. E diga a lorde Bedwyr que sairei em uma hora. Se quiser vir
comigo e com minha esposa, terá que estar preparado para sair.
Cruzou o cais até chegar a um dos níveis inferiores do castelo, onde os
limpos e vivos odores do rio se mesclavam com os aromas da cozinha e o
cheiro de pão recém feito. Iria busca-la na modista e depois... Não sabia o
que faria. O receio daquela mulher era completamente irracional. Que mulher
não queria ser comtesse e possivelmente duquesa, pelo amor de Deus?
Arabella o desejava, isso era evidente. Só tinha que se manter firme.
Depois, como ele era o que tinha mais experiência dos dois, ganharia dela na
disputa. Embora isso fosse algo que já havia tentado fazer várias vezes, sem
nenhum êxito.
Pode ser que voltassem a lhe apunhalar no estômago, e então ela se
aproximaria dele por vontade própria. Devia ter isso em mente.
Entrou no estábulo e retirou do bolso a carta do assistente de Combe.
Parsons não tinha boas notícias. A produção da propriedade ia bastante bem
e os rendimentos não haviam sido reduzidos. Mas os arrendatários estavam
sofrendo. A fome havia acabado, mas os granjeiros pareciam menos
prósperos que nunca, trabalhavam muito duro sem conseguir nada em troca
de seus esforços. E Parsons lhe suplicava que se ocupasse disso. A
propriedade não podia esperar até que resolvesse o assunto do título. O
assistente lhe escrevia para pedir que regressasse tão rápido como pudesse.
Tinha que fazê-lo, e não só porque a propriedade estivesse em apuros. A
carta de Parsons lhe confirmava: Theodore havia nomeado seu velho amigo e
irmão de Adina, Absalom Fletcher, principal administrador no caso de que o
filho de Adina fosse um menino. Ele estava em segundo lugar. Em apenas
dois meses, o bispo de Barris poderia se converter de fato em senhor de
Combe durante as duas décadas seguintes.
Luc não precisava de mais nada. Tinha muita vontade de regressar à
Inglaterra. A mesma vontade que tinha de saber quem tinha tanta pressa de
vê-lo morto.
Os homens que o atacaram na praia não o fizeram para vingar o
companheiro que ele havia matado na ruela. O fato de que Arabella os tivesse
encontrado primeiro foi uma desafortunada coincidência. Ou pode ser que
tivessem sabido que ela havia chegado em seu barco e pretendiam utilizá-la
para atraí-lo. Mas o marinheiro Mundy continuava insistindo que o haviam
contratado em Paris e que não tinha nem ideia do que devia fazer com o
veneno uma vez que o tivesse roubado. Tanto Tony como seu Imediato
acreditavam em sua palavra.
Na Inglaterra encontraria respostas.
Cam apareceu quando Luc pegava seu cavalo na baia.
– Tenho entendido que sua encantadora comtesse foi comprar um vestido. –
Recostou o ombro no umbral da porta e cruzou suas brilhantes botas de
rattan. – Confesso que estou surpreso em saber que conseguiu convencê-la.
Não me deu um pingo de atenção.
– Pode ser que meus poderes de persuasão sejam melhores que os seus.
– Duvido muito.
Luc ajustou o estribo e deslizou a mão pelo esbelto lombo do cavalo.
– Não está vestido para viajar.
– Temo que terá que viajar sem mim, primo. – Olhou em direção ao
caminho onde a princesa Jacqueline montava, acompanhada de um
cavalariço. – Tenho que me ocupar de algumas coisas aqui antes de voltar
para casa.
Luc franziu o cenho.
– É muito inocente, Cam. E suponho que não tenho que acrescentar que
também é a irmã de nosso amigo.
– Então, porque o acrescentou? – Esboçou um sorriso preguiçoso. – Pode
ficar tranquilo, esse não é o tipo de interesse que tenho nela, oh, grande
defensor da virtude feminina. Com exceção da virtude de uma determinada
dama, claro.
– Vigie sua forma de se referir a minha esposa – rugiu Luc.
Seu primo aceitou as rédeas do grande cavalo branco que um cavalariço
lhe oferecia.
– Pode ser que seja você quem deva ter cuidado, Lucien, ou, apesar do
muito que me esforcei por você, acabará perdendo-a.
– Terei isso em conta.
Apoiou o pé no estribo e deu impulso para cima aguentando a dor.
– No entanto vejo que não está totalmente bem, não é? – Disse Cam. –
Está certo de que quer sair já?
– Não penso em esconder-me num buraco como um coelho assustado. –
Negou com a cabeça. – Os homens de Tony já voltaram de Paris. Não
encontraram Christos.
– E o retrato que tinha o siciliano que tentou matá-lo?
– Não tenho uma explicação para isso. Mas meu irmão não os contratou.
– Está preocupado por ele. Por sua segurança – disse Cam, porque sabia.
– Sempre. – Passou a mão pela nuca. – Quando o vi pela última vez em
dezembro, brigamos.
– Já imaginava.
– Ah, sim?
– Não me ocorria outro motivo para que me acusasse de ter abusado de
uma menina de doze anos – disse seu primo com suavidade. – Depois de
nossa pequena conversinha com as espadas, escrevi a seu irmão. Disseme que
antes que se reunisse comigo em Paris, ele e você falaram sobre Fletcher.
– Pedi a Christos que voltasse para casa comigo.
– Suponho que se negou.
– Disseme que não queria regressar à Inglaterra e nem a Combe. –
Inspirou fundo. – Minha forma de reagir quando o encontrei com aquela
menina foi uma lamentável consequência de minha... frustração.
– Ah.
Cam golpeou a bota com chicote.
– Como está?
– Minha tutelada está bem, obrigado. Estou seguro de que poderia gostar
de você, mas tem pânico de vê-lo. Coisa que é muito compreensível.
– Se tivesse me explicado que estava procurando a menina que tinha sob
sua tutela antes de que o encontrasse com ela a sós em um bordel de Paris,
talvez não tivesse reagido dessa forma tão violenta.
– Já imagino. E que fazia naquele bordel, primo? Nunca me pareceu seu
estilo.
– Estava lhe procurando. Esperava aproveitar que estava na França para
que fizesse entrar bom senso na cabeça de meu irmão. – Doía-lhe a cicatriz.
As duas. – Esconde-se do passado e, no entanto, não creio que recorde nada,
Cam.
– Tampouco serviu muito o que fez.
Luc fitou seu primo nos olhos.
– Fui idiota por pensar, ainda que por um momento, que tinha algo a ver
com Fletcher.
– Ah, por fim se desculpa. – Suspirou Cam com dramaticidade. – Grande
confusão. E agora está cego por isso. Mas não se podia evitar. O momento
foi desafortunado e você vive predisposto a proteger os fracos. Pobre
cavalheiro tonto.
– Desfrutando o discurso, primo?
– Só desfruto da liberdade que me proporciona minha falta de
preocupação pelos demais.
Luc fez seu cavalo avançar.
– Desfrute do castelo, Cam, não da princesa.
Esporeou ao cavalo em direção ao povoado.
Fazia um dia quente e a porta da modista estava aberta. Luc ficou no
umbral com o coração apertado.
Ela estava no meio da loja olhando para o outro lado. Usava um vestido
tão azul como o mar que acariciava suas curvas sutis e deixava descoberto
seu pescoço, seus braços e seu decote. Seu cabelo, que só havia prendido
com um laço, caía por suas costas em ondas de fogo.
– Se coloca isso no dia de nosso casamento, duquesa, me fará o homem
mais feliz do mundo.
Arabella se voltou para ele com os olhos arregalados.
– No dia de nosso casamento?
Entrou na loja.
– Uma formalidade para satisfação da Igreja da Inglaterra. Mas temos que
fazê-lo o quanto antes. Saímos hoje.
– Saímos para...
Olhou para a modista. A mulher havia elevado as sobrancelhas e os
escutava com atenção.
Luc lhe fez um gesto para que saísse. Ela fez uma reverência e
desapareceu na parte de trás da loja.
Arabella ficou na ponta dos pés como se fosse sair voando.
– Quer partir hoje para a Inglaterra?
Luc pareceu estudá-la.
– A menos que isso interfira em sua viagem.
Ela levou as mãos à cintura.
– Disseme que não impediria que me fosse.
– Disse que não permitiria que meus criados a trancassem em casa. Nunca
disse nada sobre o que eu faria.
– Vai me prender?
– Claro que não. – Aproximou-se dela. O anel de outro e rubis pendurado
naquela simples fita brilhava no vértice de seu decote. – Pensava deixar-me?
– Sim. A princesa me ofereceu a carruagem de seu irmão e uma escolta.
– Ah. Então concluiu que não podia escapar de mim em minha
carruagem. Quer dizer, sua carruagem.
Ela não disse nada.
Luc estendeu a mão e Arabella não retrocedeu quando ele pegou o anel e
o observou.
– Vai a Paris se reunir com o homem que a presenteou com esta joia tão
cara? – As palavras escaparam contra sua vontade. – Esse é o motivo pelo
qual tem tanta pressa?
Ela demorou um pouco para responder.
– Se acredita-me capaz de me entregar a você como fiz ontem à noite e ao
mesmo tempo ter a intenção de fazer o que está sugerindo, – disse – então
faltam muitas coisas para aprender sobre mim, milord.
Foi como se lhe desse uma bofetada. Luc soltou o anel, mas não se
afastou dela. Tinha-o sob seu poder; era como se o tivesse aprisionado. Não
poderia lhe ganhar a disputa.
– Por que quer fugir para Paris, Arabella? – Seu coração batia com força. –
O que espera encontrar ali que eu não posso lhe dar?
– Um homem. – Segurou o anel com a mão e a levou ao peito. – Mas não
é o que você imagina.
– O que estou imaginando?
– Já lhe expliquei que tipo de mulher sou, mas você não me acredita. –
Afastou-se dele. – Diga-me, milord, é só por meu cabelo? É esse tom
vermelho de prostituta que o convenceu de que não sei nada sobre a
castidade ou a fidelidade? Ou é minha beleza? Ou talvez se deva à falta de
modéstia que demonstrei ter com você. Não é o primeiro homem que pensa
mal de mim. Na realidade, é algo bastante comum.
– Eu não penso mal de você.
Ela o fitou nos olhos com firmeza e levantou o queixo dessa forma que
lhe apertava o peito.
– Serei uma esposa boa e atenciosa. Acompanharei você à Inglaterra e lhe
darei o que deseja quando o deseje. Mas terá que acreditar em minha palavra
quando digo que seu herdeiro será realmente seu.
– Nunca pensei que não seria.
– Então, por quê veio para evitar que eu vá a Paris?
Porque a necessitava. Porque não podia suportar pensar que pudessem
machucá-la. Porque tinha a sensação de que estava ficando louco, e não só
quando estava com ela, mas também quando não estava. Porque, pela
primeira vez em sua vida, se sentia realmente desequilibrado e pensava que,
talvez, a loucura de seu irmão não era um caso isolado, talvez ele também
tivesse sucumbido a ela.
Os delicados nervos do pescoço de Arabella ficaram tensos. Deu um
passo adiante, rodeou-o no caminho para a porta e o deixou com aquele
cheiro de rosas e a quente e familiar pontada da impotência.
Quando chegaram à pousada no caminho do porto, Luc se dirigiu a
Arabella como se lhe tivesse informado do tempo que fazia e fez saber que
não dormiria com ela. Disselhe que sua ferida o preocupava muito. Que
necessitava mais tempo para se curar bem.
Durante o caminho a Saint-Malo, ele cavalgou junto a carruagem em que
ela viajava com o senhor Miles e uma donzela. Cearam sozinhos na pousada,
e ele lhe falou muito civilizadamente sobre os povoados pelos quais iam
passando, a cidade portuária a que se dirigiam e o lugar em que aguardariam a
chegada do navio do capitão Masinter, que os levaria a Portsmouth. Depois
de cear, acompanhou-a até seu dormitório, fez-lhe uma reverência, e saiu
depois de um simples: “Boa noite”.
Fizeram o resto do caminho até Saint-Malo mais ou menos da mesma
forma. Uma vez na cidade portuária amuralhada, aguardaram a chegada do
Victory até que a paciência de Luc chegou ao limite. O senhor Miles explicou
a Arabella que não esperariam o navio do capitão Masinter. Pelo visto, o
conde havia comprado passagem para o ferry. Prosseguiriam seu caminho
para a Inglaterra pela manhã.
Embarcaram logo. Ao meio-dia o céu já havia se tornado cinza e no meio
da tarde começou a chover. Ao anoitecer as ondas do oceano batiam nas
janelas dos camarotes que havia sob o convés principal do navio.
O capitão da pequena embarcação lhe assegurou que se tratava de uma
tormenta suave e comentou a Arabella que, desde que o vento soprasse com
constância, chegariam em muito bom tempo. O senhor Miles lhe ofereceu
um chá que derramou da taça e caiu sobre a mesa. O assistente limpou o chá
da mesa enquanto lhe contava histórias de tempestades muito piores que o
conde havia dominado com facilidade.
– Embora, desgraçadamente, sua senhoria não esteja comandando este
navio (se é que podemos chamar de navio a esta embarcação de um só
mastro e convés) – disse o homenzinho mexendo a cabeça com ar de
suspeita, – assim que eu tampouco posso saber como passaremos por esta
tempestade.
Quando caiu a noite, Arabella deitou de lado na cama e se encolheu,
rodeando-se com os braços; tinha as mãos frias e úmidas e a respiração
acelerada. O navio rangia com raiva e o vento ululava e açoitava as laterais da
embarcação até que não fosse capaz sequer de escutar seus pensamentos.
Exausta, acabou deixando-se arrastar por pesadelos de violência e asfixia.
Despertou rodeada pela escuridão e sentindo a mão cálida de Luc na
bochecha. Agarrou-se a ele e se aferrou a seus dedos como se fossem uma
boia.
Ele se sentou na borda da cama e a abraçou.
– Não tenha medo, pequena preceptora – disselhe por debaixo dos
rugidos do navio e o açoite da chuva. – Estou aqui. Está a salvo. – Abraçou-a
com segurança. Ela enterrou a cara em sua camisa e se agarrou a ele. Luc
beijou-lhe a cabeça e lhe acariciou o cabelo e as costas. – Sobreviveu a coisas
muito piores.
Arabella sentia as fortes e rítmicas batidas do coração de Luc contra a
bochecha.
– Sabe do naufrágio? – Sussurrou.
– Sim – disse contra seu cabelo. – Um homem de minha posição tem que
saber algo da mulher com quem se casa.
Arabella levantou a cabeça e só viu um contorno de sua silhueta na
escuridão.
– E não se importa? Tanto faz que não saiba nada de minha verdadeira
família? Que minha mãe enviasse suas três filhas a um futuro incerto? Que
talvez fosse uma...
Luc se apoderou de seus lábios.
Beijou-a com suavidade e ternura, e depois com mais intensidade, até que
ela lhe rodeou o pescoço com os braços. Voltou a deitá-la no colchão com
muita delicadeza. Arabella enroscou os dedos em seu cabelo e ele a atraiu
para si segurando-a pela cintura enquanto ela se pressionava contra ele. Era
forte, sólido e quente. Abraçou-a e beijou-a para que somente pudesse pensar
em sua boca, na necessidade que sentia por ele, e na segurança de seu abraço.
– Obrigada – sussurrou Arabella, porque nunca lhe havia dito isso.
Luc beijou-lhe os cantos dos lábios, depois continuou por debaixo de suas
orelhas e o pescoço. Depois moveu o braço para segurar-lhe a cabeça.
– Durma. – Acariciou-lhe a bochecha com um dedo. – Prometo que
quando acordar o céu estará claro e poderá voltar a realizar seus passeios pelo
convés principal com a lei da gravidade normalizada.
Ela se aconchegou na proteção de seu corpo e o vai-e-vem do barco
passou a ser uma ameaça distante.
– Controlará o clima da mesma forma que controla tudo mais?
Murmurou sentindo como o sonho se apoderava de suas pálpebras e de
suas extremidades.
– Tudo não – sussurrou ele e lhe deu um beijo na testa. – Não posso
controlar minha duquesa. – Arabella pareceu lhe escutar dizer. – Não posso
controlar meu coração.
Mas ela sabia que já estava sonhando.
O dia amanheceu tão esplêndido, claro e azul como ele havia prometido.
Arabella despertou sozinha. Levantou-se do catre, vestiu-se e subiu ao
convés principal. Ele estava ali e a saudou como havia feito desde que
começou sua viagem: muito agradável, com serenidade e de um modo muito
impessoal.
Naquela noite tampouco foi procurá-la. Quando partiram a caminho de
Shropshire, Luc voltou a cavalgar junto à carruagem. Era uma magnífica
carruagem, atapetada com tecidos mais macios e com pele, cortinas douradas
nas janelas e o escudo de armas do duque na porta. Puxada por quatro
impressionantes cavalos negros com arreios brilhantes, e o cocheiro e o
arauto vestiam librés azuis recém estreadas. O estalajadeiro da pousada em
que se detiveram na estrada se desfez em atenções para fazer feliz à comtesse
depois de que o conde deixara bem claro que esse era seu único desejo. Seu
marido a rodeava de luxo e comodidades, mas não a tratava com mais
intimidade que aos serviçais.
Arabella não se opôs. Luc havia frustrado os planos que ela havia feito de
visitar seu irmão em Paris. Já encontraria a forma de averiguar a verdade
sobre seu casamento apressado por mais distante que se mantivesse dela.
Pelo que que Jacqueline lhe havia contado, Christos Westfall foi uma
companhia muito divertida durante a temporada em que esteve vivendo no
castelo. Era um artista que passava a maior parte do tempo fechado no
estúdio que havia numa casinha no final dos jardins, no meio do bosque. E a
princesa não o tinha visto muito. Também lhe contou que tinha um
temperamento muito volúvel e que sentia autêntica devoção por Luc, que o
adorava da mesma forma. Parecia um homem irreprovável. Mas Arabella
havia-se casado com seu irmão por causa de sua falta de idoneidade para
herdar tudo. Ela esperava que a propriedade sede do ducado de Lycombe lhe
desse respostas. Era evidente que o herdeiro do duque de Lycombe não as
iria dar.
Arabella havia estado muitas vezes em residências de outros duques em
Londres, mas nunca havia visitado a casa de campo de nenhum. Quando viu
Combe pela primeira vez, deu-lhe um nó no estômago.
A casa presidia campos esmeralda salpicados de ovelhas e um ou outro
solitário e enorme carvalho. A propriedade aparecia sobre o cume de uma
subida. Era uma extensão majestosa de pedra calcária com torrezinhas e
janelas que capturavam os raios do sol minguante e pareciam colocar fogo
em toda a casa. O rio que serpenteava aos pés do vale refletia o resplendor da
casa como uma película protetora.
Passou o olhar até o homem que estava montado sobre seu cavalo
próximo a ela. Havia-se detido e aguardava muito quieto com o rosto voltado
para a casa.
O caminho rodeava a ladeira pelo Norte e depois se alinhava com a casa.
Cruzaram uma fileira de velhos pinheiros que desembocava em uma
repentina clareira, e Combe apareceu diretamente diante deles, majestosa,
extensa e indiscutivelmente ducal.
Diante das colunas da porta principal havia duas dezenas de criados
distribuídos em perfeitas fileiras que aguardavam a ambos lados da escadaria.
Ao pé da escadaria os esperavam as irmãs de Arabella e um enorme cachorro
negro.
Ravenna correu para a carruagem com Besta a seu lado. Eleanor a seguiu.
Quando o lacaio diminuiu a velocidade, ela saltou da carruagem e aterrissou
entre os braços de sua irmã. Eleanor a segurou pela mão e se abraçaram sem
dizer uma só palavra. Tinham muitas coisas para se contar. Havia passado
demasiado tempo.
Arabella se afastou.
– Bem-vinda a casa, duquesa – exclamou Ravenna com um sorriso nos
olhos escuros.
– Já lhe havia dito que deveria chama-la de milady, – disse Eleanor
apertando a mão de Arabella com força – mas todos os criados insistem em
que logo se converterá em duquesa, e de qualquer forma nossa irmã mais
nova fará o que quiser por mais que eu lhe fale.
Sorriu-lhe com doçura.
Arabella deu-lhe um beijo na bochecha.
– Senti muito a falta das duas.
A voz lhe falhou.
– Mas pelo visto esteve muito ocupada – disse Eleanor esboçando outro
sorriso e olhando por cima do ombro.
Luc estava desmontando. Deu as rédeas a um criado e se aproximou delas.
– Nossa Mãe, Bella, – sussurrou Ravenna – é lindíssimo. Pensava que
queria se casar com algum velho príncipe baixinho, mas este homem é... uau!
Eleanor retirou a mão do ombro de Ravenna. Quando Luc chegou até
elas, agachou sua cabeça dourada e fez uma grande reverência.
– Milord – disse.
– Senhorita Caulfield.
Ele lhe dedicou uma elegante reverência.
Ravenna flexionou fugazmente os joelhos.
– Olá, duque. É um prazer tê-lo na família. Quem lhe fez essa ferida no
olho? Quem quer que seja lhe fez um corte muito feio.
A linda boca de Luc desenhou um sorriso de lado. Agachou-se para
acariciar a cabeça peluda de seu cachorro.
– Eu pensava o mesmo, senhorita Ravenna, por isso fiz com que o
matassem. É muito fácil fazer essas coisas em um navio. Só tem que
empurrar alguém pela borda e navegar a toda vela.
Ravenna esboçou um sorriso brilhante.
– Tem minha aprovação, Bella. Pode ficar com ele.
Eleanor reprimiu uma gargalhada.
– Senhoritas, – disse ele – se me permitem mostrar a casa a sua irmã,
depois a deixarei toda para vocês.
Não olhou para Arabella enquanto pousava a mão em seu braço e lhe
apresentava o mordomo e a governanta.
Esta última fitou Luc com carinho.
– Permita-me dizer que estamos muito contentes de que tenha voltado
para ficar, Sua Graça.
Obrigada, senhora Pickett. Eu também me alegro de estar em casa. –
Parecia um homem em paz. – Mas não deve vender a pele do urso antes de
caçá-lo. Basta me chamar de milord.
– O senhor Parsons deseja falar com o senhor, Sua Graça – o mordomo
com absoluta seriedade. – Espera-o no estúdio.
Nenhum dos demais criados alinhados no caminho piscou nem uma só
vez.
– Vê? Eu lhe disse – sussurrou Ravenna a Eleanor.
Luc balançou a cabeça e ajudou Arabella a subir as escadarias que
conduziam à porta principal. O interior daquela majestosa montanha de
pedra calcária era todo cor, elegância e móveis dourados, dos retratos das
damas vestidas com cores alegres e cavalheiros com suntuosos trajes, até o
piso em xadrez preto e branco, e as velas que ardiam em candelabros de
bronze e de cristal pendurados no teto.
– O que lhe parece, pequena preceptora? – Perguntou-lhe em voz baixa. –
Crê que este espaço lhe proporcionará o território suficiente para exercer sua
autoridade, ou deveria construir uma ala adicional e contratar mais uma
dezena de criados?
Ela o fitou. Seus olhos não brilhavam de provocação e nem censura, mas
sim de orgulho e cautelosa esperança. A ela lhe doía o coração, um coração
que possuía apesar do muito que havia se esforçado em negá-lo.
– Isso parece o suficiente – conseguiu dizer.
Luc esboçou um pequeno sorriso e se separou dela.
– Senhorita Caulfield, senhorita Ravenna, é toda sua.
A governanta levou-a por uma visita completa pela casa seguida de suas
irmãs e Besta.
– E você pensava que se casasse com um príncipe poderia ter um palácio
– sussurrou Ravenna quando passaram junto a uma biblioteca cheia de livros
até o teto.
– Ela nunca quis ter nenhum palácio – corrigiu-a Eleanor. – Só o príncipe.
– Esta casa não é minha – esclareceu Arabella. – Só estamos aqui para nos
ocuparmos de algumas coisas até que nasça o filho da duquesa.
– Este é o cômodo que Eleanor mais gosta. – Ravenna assinalou a
biblioteca. – É claro.
– A ceia é servida às cinco em ponto, Sua Graça – informou-lhe a senhora
Pickett quando as deixou na porta de seu dormitório. – Parece-lhe bem?
– Sim. Obrigada, senhora Pickett. Mas não deve me chamar de Sua Graça
– disselhe com suavidade. – É uma falta de respeito para com a tia de meu
marido.
– Sim, Sua Graça.
A governanta fez uma reverência e saiu. Arabella se voltou para Eleanor e
voltou a ver o fino vestido de sua irmã, uma roupa que ela mesma havia
costurado já fazia cinco anos. O vestido de Ravenna era mais novo; seus
chefes lhe pagavam um salário decente. Mas era apropriado para o trabalho
que fazia com os animais, não era uma roupa elegante.
– Está mordendo o lábio, Bella – disse Eleanor franzindo a testa. – O que
a preocupa?
– Os criados as tratam bem?
– Pois é claro que sim. Somos suas irmãs.
Mas ela havia trabalhado em suficientes casas de aristocratas para saber
que isso não tinha por quê ser assim, e tampouco disse o que estava
pensando: que as pessoas de Combe deviam estar esperando que a que se
convertesse em sua senhora fosse outro tipo de mulher. Uma verdadeira
dama.
– É evidente que não têm nenhum problema imaginando-a como a
duquesa – disse Eleanor. – Na realidade, parecem ansiosos para que isso
ocorra.
Arabella se endireitou. Cumpriria com suas expectativas. Como havia
passado a vida sonhando com um príncipe, levava já uma década
preparando-se para isso. Seria uma duquesa, ou pelo menos uma comtesse
vivendo na casa de uma duquesa. Luc não teria nenhum motivo para se
envergonhar dela.
– Venha. Deixe-nos ver seu dormitório. – Eleanor a segurou pela mão e
abriu a porta. – Não nos permitiram nem colocar o nariz desde que o
redecoraram.
Ficou sem palavras. Todas se detiveram na porta. O dormitório era
espetacular. Era um espaço elegante, simples e completamente feminino. Os
estofados eram de uma tapeçaria cor marfim e rosa pálido, a penteadeira e as
cadeiras estavam recobertas de um sutil dourado, havia brilhantes espelhos, e
tanto a cama de quatro colunas como as janelas estavam cobertas de
cortinados de finíssima gaze rosa com bordados dourados.
– É...
Ravenna abriu e fechou a boca.
– Digno de uma princesa – disse Eleanor.
Arabella tinha o estômago encolhido.
– E dizem que acabaram de redecorar?
Ravenna entrou no dormitório.
– Pelo visto, o duque mandou instruções faz semanas.
Fazia semanas, antes que ela soubesse que era comtesse ou uma provável
duquesa. Quando havia pensado que era a viúva do capitão de um navio
mercante.
– Olhe, Bella – Ravenna abriu uma porta e enfiou a cabeça. – Um
trocador maior que a casa de papai na Cornualha. O duque poderia
estacionar a carruagem aqui. E está cheio de vestidos. Estou certa de que
poderia colocar um diferente a cada dia durante um mês. – Olhou para a
parede oposta. – Suponho que essa porta dá em seu dormitório.
Eleanor a segurou pela mão.
– Venha, Bella, vou pedir que nos preparem o chá e nos contará como
isso aconteceu.
Luc não ceou com elas. O mordomo explicou a Arabella que Sua Graça
estava em outra parte da casa se ocupando de assuntos urgentes, e lhe
perguntou se Sua Graça gostaria de desfrutar de um Borgonha de 1809 com
suas cailles em sauce de la reine.
Mais tarde, vestida com uma finíssima camisola de seda e suaves rendas,
aconchegou-se no enorme colchão e escutou o crepitar do fogo e os sons de
seu marido no dormitório ao lado. No final ouviu como sua porta se fechava
e seus passos desapareciam no corredor.
Comeu o desjejum sozinha em seu dormitório até que Ravenna bateu na
porta. Usava uma saia xadrez com bolsos grandes, uma camisa e um colete
justo. Havia prendido a selvagem e sedosa cabeleira com um laço.
– Posso tomar um pouco do seu chocolate? – Perguntou sua irmã mais
nova. – A cozinheira ainda não havia preparado quando desci para os
estábulos. Pelo visto, os criados não tomam chocolate nas mansões ducais.
Franziu suas sobrancelhas negras e segurou a xícara de Arabella.
– Onde você vive os criados tomam chocolate?
– Eu sim. Mas as crianças me mimam porque eu mimo seus cachorros.
Arabella sorriu.
– Gostam de você?
– Sim. Elas me adoram. Pelo visto, sou a única pessoa da Inglaterra capaz
de manter doze pugs, três cães de caça e dois papagaios juntos, sadios e
felizes. Parece-me um acordo maravilhoso.
– Mas não é totalmente feliz ali.
Ravenna beliscou a torrada.
– Sempre parece adivinhar meu pensamento, Bella. – Mas eu me viro. Se
quer se preocupar, preocupe-se com Ellie: passa a vida fechada na Cornualha
fazendo o trabalho de papai.
– É infeliz?
– Ela diz que está contente.
Negou com a cabeça.
Então apareceu uma donzela na porta.
– Sua Graça, o duque deseja que se reúna com ele no estábulo dentro de
quarenta e cinco minutos. Quer que se vista com roupa adequada para
montar. Deseja que a ajude?
Quando Arabella se aproximou pelo caminho, Luc a observou sem pressa
e com evidente apreciação na elegante entrada do comprido complexo de
estábulos de tetos baixos.
Fez-lhe uma reverência.
– Esse vestido fica muito bem em você.
Ela passou as mãos na saia de veludo da cor do céu outonal.
– É como se tivesse sido feita para mim.
– E não foi assim?
Ele sorriu.
– Eu deveria usar luto pelo seu tio.
– O que deveria fazer é usar diamantes por mim.
– Não...
– Se me disser que eu não deveria tentar comprar sua obediência com
presentes bonitos, é provável que eu responda que esses vestidos tão bonitos
são para dar prazer a mim, e que tanto faz que você goste ou não, ou se me
proporcionam alguma outra vantagem. E então você me fulminará com os
olhos...
– Eu não faço isso.
– ... e brigaremos e saíra...
– Eu não saio... Bom, talvez o tenha feito um par de vezes.
– ... e então não poderei ter o prazer de ver esses vestidos. Portanto,
poupe-me a reprimenda, duquesa. – Fez-lhe uma reverência. – Por favor.
– Não quero fazer sermão para você. – Não podia suportar que brincasse
quando ela sentia tanta confusão no coração. – Só quero lhe agradecer pelos
vestidos. Por meu dormitório. Por tudo que me tem dado. Mas em especial
por ter trazido minhas irmãs.
Luc a fitou com atenção e procurou decifrar sua enigmática expressão.
– É um prazer.
Se voltou para as amplas portas do estábulo de onde o cavalariço estava
tirando dois cavalos. Ela tocou o braço para detê-lo e ele parou e lhe fitou a
mão. Ela a retirou.
– Luc, não é apropriado que os criados se dirijam a nós como o fazem,
como se o assunto da herança já estivesse decidido.
– Já lhes disse várias vezes, mas não tem jeito. – Seu olhar brilhou. – E
pelo que tenho entendido, a servitude não vem sempre acompanhada de
obediência cega.
As bochechas de Arabella arderam.
– Vamos, – disse fazendo um gesto aos cavalos – quero mostrar-lhe
Combe.
Não a convidou, esperou que ela concordasse.
– Adoraria.
Ajudou-a a montar segurando-lhe a cintura, e o coração de Arabella caiu a
seus pés. Sentia saudades da proximidade que ele havia demonstrado no
caminho e de ver esse faminto olhar em seu rosto. Mas ele só lhe lançou um
rápido olhar enquanto ela ajeitava bem a saia por cima das pernas e das ancas
do cavalo, e depois se aproximou de sua montaria.
Fazia um bonito dia de outubro, era brilhante e fresco, só havia algumas
nuvens sobre o rio e o caminho era muito confortável. Rodeava um arvoredo
de freixos e carvalhos, e cruzava um campo salpicado de ovelhas em direção
a uma chácara que se elevava ao longe, localizada em um canto da ladeira. A
partir da casa, estendiam-se trechos de terra arada aguardando a semeadura
ao lado de trechos de trigo de inverno brotando.
– Minha família reside em Combe há séculos, embora esta casa tenha sido
construída na época de Elizabeth – disse. – Pensei que gostaria de visitar
alguns arrendatários. A família que vive nesta casa, os Goodes, é a mais
próspera.
Luc cavalgava seu enorme cavalo negro e examinava as terras de sua
família em perfeita paz; tinha a mesma atitude que adotava no convés de seu
navio.
– Parece que conhece bem a propriedade. Vinha em visita normalmente
antes de ir para o mar?
– Vivi em Combe com meus pais e meu irmão até que completei os dez
anos. Meu pai tinha uma casa ao Norte, mas minha mãe preferia viver aqui,
onde as notícias da França chegavam mais depressa, vindas de Londres.
Naqueles tempos não costumavam ser nunca boas notícias. Pelo menos para
sua família.
Então ficou em silêncio e só se escutaram os bufados dos cavalos fuçando
o capim, o canto dos pássaros e o balido isolado de alguma ovelha.
– E quando completou os dez anos seu pai mudou sua família para essa
casa de Londres?
– Quando tinha dez anos meu pai morreu em um acidente de carruagem.
Minha mãe ficou muito mal, e foi para a França com a intenção de se
consolar recuperando as terras de sua família da mão dos jacobinos que
estavam no poder. Meu irmão e eu fomos mandados para viver perto de
Londres, na casa do irmão de nossa tia. Nosso tio era uma espécie de
hedonista indolente e não queria se preocupar em educar dois meninos.
– Esse é o tutor que mencionou em Saint-Reveé-des-Beaux, não é? O
homem de quem seu irmão escapou.
– Ele mesmo. – Apontou para um homem que se aproximava vindo da
chácara. – Ali está Goode. Eu conheci seu pai Edward quando era um
menino. Thatcher é sua viva imagem.
Thatcher Goode o saudou com deferência e depois observou Arabella
com olhos astutos. Vestia-se com graça e falava muito bem, mas as costuras
de sua roupa estavam esgarçadas e tinha as bochechas afundadas. Os levou à
sua casa e apresentou-lhes sua mulher e seus três filhos.
A casa estava vazia de móveis, as paredes nuas e sem qualquer tapete para
cobrir as frias tábuas de madeira do solo. A senhora Goode ofereceu um chá
para Arabella. O chá estava fervido três vezes e os biscoitos não tinham
açúcar. A mulher e o filho mais velho a observaram com cautela e não
falaram muito.
Quando saíram da chácara a cavalo, Luc parecia pensativo e Arabella ficou
em silêncio.
A família seguinte de arrendatários vivia mais ou menos nas mesmas
condições que os Goode.
– Luc...
Ele levantou a cabeça enquanto cavalgavam em direção à ponte que
cruzava o rio. A enorme casa que se erigia ao longe não dava nenhuma pista
do estado em que se achavam os moradores da propriedade.
– Duquesa?
– São todos quakers?
Ele franziu a testa.
– Não – provocou.
– Desculpe-me. Pensava que talvez isso explicaria a nudez de suas casas e
su...
– Pobreza? – Luc agarrava as rédeas com força. – Não. Somente são
pobres.
– Mas já colheram os campos, e deve haver umas quatrocentas ovelhas e
cabras...
– É a primeira vez que o vejo. – Esfregou a cicatriz por debaixo da aba do
chapéu. – Mas é pior do que imaginava.
– Já o sabia?
– O administrador de meu tio me mostrou os livros de contabilidade da
propriedade ontem pela noite. – Fitou-a. – Lamento não ter podido cear com
você e com suas irmãs.
– Parece-me que os arrendatários famintos de Combe são mais
importantes que as codornas no molho – assinalou ela. – O senhor Parsons é
um homem desonesto?
– É terrivelmente honesto. O que acontece é que não tem nem ideia de
onde vai parar o pagamento dos arrendatários. Escreveu-me um mês antes de
que meu tio morresse e me suplicou que interviesse. Não podia fazê-lo, não
tinha nenhuma autoridade. E... – Fez uma pausa. – Outros assuntos me
mantiveram afastado de casa mais tempo do que pretendia.
Assuntos de que não queria falar com ela.
– Têm medo – comentou. – Pude perceber seu medo. E as suspeitas.
Mas... não creio que sejam dirigidas a você.
Observou-a detidamente enquanto seus cavalos cruzavam a ponte.
– Eu...
– Não deve se preocupar por isso – advertiu-a e voltou a cabeça para a
estrada. – Eu me encarregarei.
– Já não tenho preocupações. Afastou-me de uma vida em que trabalhava
todos os dias e me deu uma existência de absoluta tranquilidade. Não estou
acostumada a tanta inatividade.
– Logo terá diversões mais do que suficientes.
A partir desse momento, Luc só tocou em assuntos leves. Felicitou-a por
sua forma de montar, e mais tarde, durante a ceia, também elogiou seu
vestido e seu penteado. Arabella tinha vontade de agarrá-lo e sacudi-lo para
que voltasse a ser sincero com ela. Depois queria que a abraçasse e fizesse
amor com ela como havia feito em outras ocasiões, como se a necessitasse.
Mas não lhe pediu sua sinceridade, e não fez nada do que ela sonhava. E
tampouco voltou a convidá-la para montar. O momento de intimidade havia
desaparecido. Só o via nas ceias, quando se comportava de forma
encantadora com suas irmãs e lhe demonstrava sua apreciação masculina. Ele
era o senhor da casa e ela só era o adorno com quem compartilhava seu lar.
Capítulo 14
Sedução
Afinal, Arabella encontrou muitas coisas que fazer durante o dia.
– Faz mais de um ano que não há nenhuma senhora nesta casa – explicou-
lhe a senhora Pickett enquanto remexiam entre pilhas de velhas rendas e
toalhas à luz das velas. Separavam os que estavam piores do que podiam
salvar. – Tentei manter tudo em ordem, mas não quis tomar decisões que não
me correspondiam.
Arabella não se incomodou em assinalar que na realidade ela não era a
senhora da casa, porque já sabia que não serviria de nada. Reprimiu um
bocejo. Mas ainda não estava suficientemente cansada para ir dormir.
Quando imaginava que aguardaria em vão que ele fosse procurá-la em seu
dormitório, voltava a enterrar as mãos na pilha de toalhas antiquadas. Suas
irmãs haviam ido dormir, mas a senhora Pickett parecia ansiosa para acabar
aquela tarefa.
– Havia entendido que o tio de meu marido esteve doente vários meses
antes de morrer – comentou Arabella com ar conversador.
– Sim, Sua Graça. Foram quatorze meses, ainda que no começo pudesse
passear pelos arredores. Foi só no final que ficou muito enfermo para sair de
seu dormitório.
– Quatorze meses? – As mãos se congelaram. – E a duquesa não viveu
aqui durante todo esse tempo?
– Não, Sua Graça. – A governanta tinha os olhos cravados na pilha de
toalhas, mas franziu os lábios. – Sua Graça preferia ficar na casa da cidade.
Era pouco habitual que os maridos e as esposas da aristocracia vivessem
separados durante parte do ano. Mas era evidente que a duquesa havia
abandonado seu marido enfermo.
– Suponho que o visitava frequentemente. – Arabella sabia que a senhora
Pickett pensaria que era uma fofoqueira, mas tinha que saber isso. – Não é
uma viagem tão longa.
– Não, Sua Graça.
– Não?
Não podia ignorar a oportunidade que a governanta estava lhe
oferecendo.
– Visitou Combe alguma vez depois que ele ficou doente?
– Não gosta de viajar.
Os olhos da senhora Pickett se encontraram com os de Arabela durante
um breve e significativo momento.
De repente, o fato de que os criados insistissem tanto em chamar Luc de
Sua Graça já não parecia tão impertinente. E os olhos precavidos e as
bochechas afundadas dos Goode e das demais famílias de arrendatários...
tudo se esclareceu. Não temiam a Luc. Temiam ao filho não nascido de
Adina, que consideravam ilegítimo.
E, no entanto, por quê teriam tanto medo de um menino indefeso? A
menos, estava claro, que temessem o tutor do menino.
– Senhora Pickett, – alisou uma ruga que encontrou em um caminho de
mesa de renda, deixou-o na pilha, e se voltou para a governanta – sabe onde
posso encontrar o conde a estas horas?
Dava-lhe vergonha admitir que não sabia nada sobre as atividades de seu
marido depois da ceia. Mas os olhos da governanta brilharam de satisfação.
– Está no escritório, Sua Graça.
Arabella teve que fazer uso de toda sua disciplina para não sair correndo.
Bateu à porta e depois entrou sem esperar. Animada por suas recentes
descobertas, negava-se a aceitar a distância que Luc havia-lhe imposto.
O escritório estava iluminado por uma única luminária que se encontrava
sobre uma escrivaninha e pelo fogo da lareira. O local estava mobiliado com
elegância masculina e parecia afundado entre as sombras que se projetavam
pelas paredes forradas com nogueira. No teto aparecia uma pintura azul
marinho salpicada de estrelas prateadas. Um par de estantes ladeava a lareira
de mármore, e Luc estava sentado diante delas com vários livros e diários a
seus pés, e um dos volumes aberto sobre os joelhos. Sobre uma mesa e à
altura de seu cotovelo, tinha uma bandeja de prata com uma garrafa de cristal
e uma taça cheia de um líquido ambarino. Na bandeja também havia outra
taça vazia.
Luc levantou a cabeça e pareceu demorar um momento para focar a vista.
– Duquesa – limitou-se a dizer. Sua voz era muito suave.
– O que está...? – Falhou-lhe a coragem. A luz do fogo refletia
dramaticamente sobre sua cicatriz, e parecia forte, viril e proibitivo. Quando
passava muito tempo sem vê-lo, esquecia que quando estava próximo a ele
seus joelhos enfraqueciam. – O que está lendo?
Ele fechou o livro, deixou-o a seu lado e se levantou.
– Nada agora que está aqui. Pensava que já estaria na cama há muito
tempo.
– Estava fazendo algo com a senhora Pickett.
– Que diligente a estas horas, tão tarde da noite.
– Não é tão tarde. – Olhou o relógio dourado de cristal que havia sobre a
escrivaninha sob os escuros vidros da janela. Aproximou-se do relógio. –
Não são nem oito horas.
Fechou as cortinas. Sabia que estava fitando-a e essa certeza lhe acelerava
o coração. Voltou-se para ele e o viu exatamente como antes: alto, forte e
absolutamente distante.
– Não vai me oferecer uma taça? – Perguntou. – Ou esse copo vazio é
para outra pessoa?
– Para que outra pessoa poderia ser? O mordomo é um puritano, e meu
assistente não gosta de conhaque francês.
Arabella tentou sorrir.
– Conhaque?
As mãos lhe tremiam.
Luc elevou uma sobrancelha.
– Quer um pouco?
Ela assentiu e enquanto ele servia se pôs do outro lado da lareira. Passou
os dedos com nervosismo pelas encadernações douradas dos livros.
– Parece que está imerso em um projeto de investigação.
Voltou-se e ele lhe segurou a mão. Seu contato era cálido e completo. Pôs
um copo na mão dela, tocou-lhe os dedos e a soltou. Mas não se afastou.
Não havia voltado a estar tão próximo dele desde que cruzaram o canal.
– Estava lendo sobre rotações de cultivos e colheitas de milho –
comentou junto a ela, rodeado de um odor de conhaque e pele. – Um tema
fascinante. Explico-lhe o que aprendi?
Arabella levou o copo à boca e bebeu.
– Adoraria.
Luc se inclinou para ela.
– Embora preferisse admirar o encantador vestido que usa. É um... –
Levantou o copo e se serviu dos nós dos dedos para lhe acariciar a pele nua
do decote por cima do xale. Arabella estremeceu. – É um desenho muito
bonito – concluiu, e manteve o olhar enquanto levava o copo à boca.
– Está bêbado? – Sussurrou ela.
– Só de você, duquesa. Sempre só de você.
Arabella levou a mão à bochecha acalorada.
– Estamos muito próximo do fogo? – Perguntou ele. – Pode se afastar se
quiser.
– Não quero. – O que queria era queimar-se. Quero ajudá-lo.
– Em quê? – Perguntou ele com voz hesitante.
– Quero ajudá-lo com o que quer que esteja fazendo para resolver o
mistério das perdas das famílias arrendatárias. Esta noite...
– Esta noite enquanto revolvia entre toalhas como uma criada?
– Como sabe que estava fazendo isso?
– Eu sempre me preocupo em saber o que está fazendo, pequena
preceptora. – Passou seu cabelo na bochecha. – Mmm, perfume de poeira.
Totalmente encantador.
– Se não gosta de meu perfume domestique, não se aproxime tanto de mim
– provocou-o sem nenhuma convicção.
O hálito de Luc mexia os cachos de cabelo que lhe caíam na testa.
– Por quê trabalha como uma criada, Arabella? Acredita que dessa forma
está cumprindo com o dever de uma esposa abnegada como prometeu?
– Não... – começou a dizer, e então se obrigou a pronunciar as palavras. –
Faz semanas que não me dá a oportunidade de ser uma esposa abnegada.
Luc pareceu ficar paralisado.
– Se lhe oferecesse a oportunidade, – disse – a aceitaria sem considerá-la
um dever?
– Não. Na realidade, temo que se me fizer a oferta, seria uma esposa
decepcionante, porque não encontraria nem rastro de dever em meu
recebimento.
Luc deixou o copo na prateleira da lareira. Depois a segurou pela cintura e
deixou resvalar a mão por debaixo de seu braço. Seu contato, apesar de ser
leve e provocador, a fez tremer.
– Arabella?
Tinha a voz rouca.
Ela fechou os olhos, sentiu suas mãos sobre ela e quis que esse momento
nunca acabasse.
– Luc?
Pareceu inspirar seu aroma.
– Quer se casar comigo?
Um soluço ficou preso em sua garganta. Sabia que era ridículo, mas um
raio de absoluta felicidade a percorreu.
– Pensava, milord, – disse com a voz trêmula – que já estávamos casados.
– Quer se casar comigo? – Segurou-a pela cintura com a outra mão e falou
colado a sua bochecha. Voltou a lhe acariciar a lateral do peito com o
polegar. – Sim ou não?
Arabella queria ver-lhe o rosto, mas ele a tinha abraçado com força.
– Sim.
Agarrou-a pelo peito, passou o polegar pelo mamilo e ela notou como seu
corpo se abria para ele.
– Tem carte blanche para preparar a boda – disselhe. – Escolha o que quiser.
Mas tem que ser logo. Três semanas.
O suficiente para que pudessem ser lidos os proclamas.
– Onde for?
Mal conseguia ouvir a própria voz nem sentir o contato dos livros que
tinha colados nas costas. Luc estava tocando-a e estimulando-a, e morria por
isso.
– Onde se não aqui?
– Em Londres – disse. – No Tâmisa. No convés do Victory.
Luc deixou de mover as mãos e ela desejou não ter dito nada. Separou-se
dela com uma expressão inescrutável no rosto.
– Pode ser feito? – Perguntou com insegurança.
– Sim. – Esboçou um sorriso lento. – Sim, creio que pode ser feito.
-Hum. – Um homem pigarreou na porta que ela havia deixado aberta. –
Milord?
Luc afastou-se dela e Arabella agradeceu que a escuridão ocultasse suas
bochechas ruborizadas.
– Arabella, este é o senhor Parsons, o administrador de Combe – explicou
Luc sem que sua voz delatasse que fazia só um momento estava tocando-lhe
o peito e pedindo-lhe que se casasse com ele. Mas era um lorde, e um lorde
podia fazer amor com sua mulher na rua se assim desejasse, e o tráfego se
veria obrigado a dar a volta. – Parsons, esta é... – Olhou para ela e apareceu
uma pequena ruga sob sua boca – minha comtesse.
O senhor Parsons fez uma reverência.
– Milady. – Então se dirigiu a Luc. – O senhor Firth me informou que...
– Excelente, excelente. – Luc se dirigiu até a porta. Fez um gesto para
Arabella para que o seguisse. – Querida, a dedicação que demonstra este
homem pela propriedade é incansável, mas a consciência me impede de
aceitar que continue trabalhando quando deveria ir dormir. Acabo com isto
em seguida. Nos desculpa?
Tinha a mão na porta. Estava despachando-a.
– Claro – limitou-se a dizer com as mãos frias e as bochechas ardendo de
vergonha.
Ao pensar nisso, deu-se conta de que havia sido surpreendentemente
idiota. Ele a queria em sua cama; ela já sabia desde seu primeiro encontro que
a queria dessa forma. E a Igreja da Inglaterra tinha que validar seu
casamento. Era uma tonta por sonhar, pela primeira vez em sua vida, com
uma proposta carinhosa e um casamento de conto de fadas. Havia-se
equivocado ao interpretar o que acabava de ocorrer como outra coisa que
não fosse um negócio. Nada havia mudado. Luc não tinha nenhuma intenção
de confiar nela.
– Boa noite, senhor Parsons – disse, e saiu do escritório sem revelar a
tempestade que ocultava em seu interior.
As velas estavam a ponto de extinguir-se quando Luc abriu a porta que
comunicava os seus dormitórios. Aproximou-se da cama de Arabella, correu
as cortinas, e retirou sua roupa. Depois a segurou pela mão e a fez se pôr de
pé no grosso tapete, exatamente diante dele. Primeiro lhe retirou a touca da
cabeça, depois os grampos do cabelo e em seguida a delicada camisola.
Tocou-a em todos os lugares do corpo que o brilho das brasas iluminava,
e depois continuou pelos cantos em que a luz não chegava. Conseguiu que o
quisesse até que não desejou nada que não fosse ele, depois se enterrou nela e
fez que o necessitasse ainda mais.
Quando acabaram e estava deitada encima dele com o corpo suave úmido
de satisfação, Arabella observou como as sombras tremiam sobre o brilhante
corpo suado de Luc e o tocou. E com suas carícias lhe pediu mais em
silêncio.
Luc a deitou de bruços, levantou-lhe o quadril da cama e, com grande
habilidade e uma força apaixonante, deu-lhe muito mais. Ela colocou as mãos
na cabeceira da cama e gritou seu nome uma e outra vez enquanto se
desmanchava em pedaços.
Quando desabou sobre o colchão, ele beijou seus ombros, as costas e a
curva das nádegas até que adormeceu. Deixou-a sem lhe ter dito uma palavra.
Pela manhã a donzela lhe trouxe o desjejum. Arabella se aconchegou sob
os lençóis com sua xícara de chocolate, percebendo a gloriosa sensibilidade
que tinha em certas partes do corpo, e pegou o bilhete que havia sobre a
bandeja do desjejum. O papel tinha gravado o escudo de armas do conde de
Rallis. Leu-o com um sorriso e depois se desfez em suspiros entrecortados.
“Duquesa, vou à cidade. Voltarei para buscá-la dentro de três semanas. L.”
Arabella só havia chorado quando acreditava que o homem a quem ainda
não sabia que amava estava morrendo, depois voltou a chorar quando esteve
de luto por ele. Algo tão insignificante como um afastamento virtual e um
abandono não iria lhe provocar lágrimas, nem mesmo depois de que a tivesse
utilizado como se fosse uma prostituta; ou que ainda tivesse a sensação de
que tivessem largado seu coração com o resto da roupa suja. Ela havia-lhe
permitido utilizar seu corpo, voluntariamente e com impaciência. E havia
voltado a ser imprudente por deixar que a esperança se aninhasse novamente
em seu coração. Era a única responsável pelo vazio que sentia em seu
interior.
Levantou-se da cama, vestiu-se e foi em busca de suas irmãs. No corredor,
junto à sua porta, aguardava um criado vestido com a libré da casa sentado
em uma cadeira. Era um jovem alto com cachos louros, a pele bronzeada e
olhos escuros. Reconheceu-o, mas não fazia parte da criadagem da casa.
Lembrava dele do Retribution, e também a havia acompanhado, a ela e ao
senhor Miles, a Saint Reveé-des-Beaux.
Levantou-se e fez uma reverência.
– Sua Graça.
Encontrou suas irmãs na sala do desjejum. Quando as deixou um
momento depois, o lacaio de cabelo cacheado estava esperando-a na porta do
salão.
Esteve seguindo-a de um lado para o outro durante o resto do dia.
– Bella, – disse Ravenna quando entraram no jardim – sabe por quê esses
criados nos seguem?
– Na realidade, um está adiante de nós e o outro está nos seguindo –
corrigiu-a Eleanor.
– Parece que prefiro ser uma veterinária pobre a ser uma duquesa. Tanto
faz o quanto sejam espetaculares seus estábulos – disse Ravenna com brilho
no olhar. – Ficaria muito nervosa que me controlassem o dia todo.
– Não creio que estejam controlando-a, Venna – sugeriu Eleanor. – Creio
que estão protegendo-a.
Arabella não estava tão segura. Luc queria um herdeiro, e ela já havia
estado a ponto de escapar em uma ocasião. Mas, muito antes disso, quando
estavam em seu navio, já havia pedido ao garoto encarregado dos camarotes
que a vigiasse. Segundo confessou o mesmo, o fez saber sempre onde estava.
Mordeu o lábio.
– Ellie, Venna?
Suas irmãs deixaram de olhar os cães de guarda vestidos com librés para
fitarem-na.
– Vou para Londres.
Não foi para a cidade em seguida. O dia que passou visitando os
arrendatários de Combe se converteram em dois, depois em três, e depois em
uma semana. As esposas dos granjeiros lhe serviam chás aguados e biscoitos
sem açúcar, e aceitavam com cautela as cestas de fruta, pão e nozes que lhes
trazia de casa.
Voltou a atrasar sua viagem e na semana seguinte visitou as mesmas casas
com doces para os meninos, mel e toalhas de mesa. A senhora Pickett a
fitava com desaprovação e lhe dizia que os granjeiros não necessitavam de
tecidos com rendas e bordados. Mas as esposas dos granjeiros lhe agradeciam
e Arabella já não tinha que adivinhar suas emoções porque elas começaram a
compartilhá-las.
Durante a longa ausência da duquesa, seu irmão a havia substituído. De
vez em quando dizia algum sermão na igreja da paróquia.
– Nunca se viu um cavalheiro mais elegante, milady, nem se escutaram
melhores sermões que os do bispo – comentou a senhora Lambkin enquanto
servia o chá em duas xícaras trincadas. – Nos disse que devíamos dar ao
Senhor o melhor que Ele mesmo nos oferece. – Olhou um momento para
seu filho, que estava limpando a lareira. – Como agradecimento,
compreende? – Acrescentou. – Assim Deus saberá que não guardamos
rancor e não voltará a nos enviar a fome. – Tremeram-lhe as mãos com que
sustentava o bule de chá. O garoto apertava os dentes. – Não podemos
esperar generosidade se não damos algo ao Senhor antes, não é?
Fitou brevemente Arabella e depois pousou os olhos sobre o corpulento
criado que aguardava junto à porta. Depois olhou pela janela, onde o outro
criado aguardava junto à vala. O medo brilhava em seus olhos.
Arabella saiu em busca do administrador de Combe e o encontrou no
moinho. Conversou sobre a propriedade e o homem se mostrou orgulhoso
de falar longamente sobre o assunto. Mas deu-se conta de que não podia lhe
formular diretamente a pergunta que jamais havia se atrevido a fazer a seu
marido; não podia envergonhar Luc dessa forma, nem devia humilhar a si
mesma.
Na casa ninguém tinha muito o que dizer sobre Christos Westfall. Os
criados mais velhos o recordavam como um menino bonito que gostava
muito de desenhar e diziam que era propenso a passar períodos de intensa
introspecção. Quando cresceu foi embora da Inglaterra, para o país de sua
mãe, e jamais regressou.
Ravenna lhes anunciou que devia ver como estavam seus animais antes de
se reunir novamente com suas irmãs em Londres para o casamento.
– Farei com que chegue um convite a seus patrões – disse Arabella.
– Então irão com prazer. Adoram os espetáculos.
– Eu também deveria ir, Bella – interveio Eleanor. – Papai não deixa de
me escrever para dizer que espera minha volta diariamente. Perguntarei se
quer vir comigo a Londres para o seu casamento.
– Não tenho nenhuma dúvida de que terá que ficar em sua paróquia. E
também estou certa de que não gostará de que volte a viajar.
– Já o sei. – Eleanor a abraçou e deu-lhe um beijo em cada bochecha. –
Mas eu estarei onde você estiver.
Arabella ficou no caminho e se despediu da carruagem que levou suas
irmãs.
– Joseph – disse a seu guardião quando entrava na casa. Era um jovem
gigantesco com os braços do tamanho de galhos de árvore e pernas como
troncos. – Diga a seu amigo Claude que amanhã vamos para Londres.
O jovem lhe fez uma reverência.
– Sim, Sua Graça.
A espessa fumaça dos charutos flutuava suspensa no ar, e os homens
resmungavam em distintos estados de embriaguez, frustração e satisfação
enquanto as cartas passavam de uma mão a outra, e as moedas e outras
quinquilharias cruzavam as mesas. Luc bebeu o resto do whisky e piscou para
aclarar a vista.
Mas seguia sem ver direito. Não tinha nem ideia de como alguém podia
ganhar uma partida imerso naquela nuvem de vício. E tampouco
compreendia como podia suportar outra noite de tedioso hedonismo sem
tirar nenhum proveito de seus esforços.
Queria ar salgado, brisa e um convés sob os pés. E se não podia ser assim,
queria sentir a brisa do campo, o ar das colinas de Shropshire e o corpo de
sua mulher debaixo do seu.
Na realidade, a primeira coisa podia ir para o inferno. O que necessitava
era exatamente da segunda.
Mas tinha que fazer o que estava fazendo. Dentre todos os clubes de
Londres, Absalom Fletcher, o bispo de Barris, só frequentava o clube White
´s. A última vez que Luc viu seu antigo tutor, disselhe que se alguma vez
subisse a seu navio o faria em pedaços com uma espada e depois utilizaria sua
carne para alimentar os tubarões. Por isso havia considerado que era mais
prudente aproximar-se dele dessa forma sutil. Provavelmente, visita-lo na
casa que tinha próximo de Richmond não seria a melhor opção. O
encarregado dos negócios de viagem do duque, Firth, havia convocado uma
reunião dos procuradores de Combe à que Fletcher ainda não havia
respondido.
Porém Luc não estava surpreso. Pelo visto, o bispo de Barris tinha um
cocheiro a quem faltava um polegar. Era muita coincidência que o
marinheiro Mundy tivesse afirmado que havia sido contratado por um
homem a quem também faltava o polegar.
Daí a estratégia de Luc. Um encontro acidental bem preparado poderia lhe
conseguir o que jamais poderia obter de uma aproximação direta.
E, no entanto, depois de duas semanas, estava começando a ter dúvidas.
– Provavelmente esteja muito ocupado depenando paroquianos inocentes
e lhes tirando o pouco dinheiro que têm para o pão, para sair e jogar cartas –
murmurou Tony com a mão no quadril.
O porteiro já lhe havia entregue sua espada.
Cam entrou na sala e passou junto a eles.
– Gostariam de ir à opera esta noite, cavalheiros? – Perguntou com
despreocupação.
– Santo céu, Charles – rugiu Tony. – Prefiro voltar à guerra a ter que
suportar todos esses gritos, por mais tentações que nos aguardem na sala
verde. Se temos que ver algum espetáculo, por que não vamos a Drury Lane?
– Ouvi dizer que o público que comparecerá esta noite à ópera será muito
mais interessante que as atrizes ou a sala verde.
Cam elevou uma sobrancelha carregada de intenção olhando para Luc.
Este jogou as cartas sobre a mesa e se levantou.
– Sinto um carinho especial pela ópera. Que obra está sendo apresentada,
Bedwyr?
– Hamlet.
Luc o fitou por cima do ombro.
– Não representam Hamlet na ópera. – Tony os seguiu um pouco
cambaleante. Olhou para o porteiro que lhe havia dado a espada. – Não?
– Somente a versão em que o tio Claudius contrata um cocheiro a quem
falta um polegar para assassinar Hamlet – disse Cam.
Tony franziu o cenho e voltou-se subitamente para Luc.
– Hamlet assassina Claudius.
Luc fulminou Cam com o olhar.
– E morre pouco depois.
Tony negou com a cabeça.
– Charles, maldito patife, não há nenhuma versão de Hamlet em que
apareça um cocheiro.
A carruagem de Luc se deteve diante do clube e foram para a casa de
Lycombe, onde mudaram de roupa para a ópera. Não se vestiu de negro por
seu tio Theodore, que havia deixado que as pessoas a que devia proteger
morressem de fome. Pôs uma casaca de cor azul brilhante e um colete de
listas amarelas e prateadas. O alfaiate de Cam havia aplaudido de felicidade
quando Luc escolheu os tecidos. Seria o homem mais elegante da cidade com
esse tom de azul combinado com o amarelo canário.
Luc mal podia ver aquela monstruosidade amarela. Mas se seu traje
conseguisse provocar a ira do sóbrio, disciplinado e moralista Fletcher, estava
disposto a pôr uma cesta sobre a cabeça e correr por toda Bond Street,
zurrando como um asno.
E a verdade é que era um asno. Não deveria ter abandonado Arabella tão
rápido. Teria que tê-la convidado para ir a Londres com ele. Mas não podia
protegê-la quando a única coisa que desejava era deitar-se com ela.
Isso não estava certo. Não queria só deitar-se com ela. Bom, só de vez em
quando. Mas abraçá-la enquanto cruzaram o canal havia sido quase
igualmente satisfatório. E observá-la enquanto tomava o chá com as esposas
dos granjeiros, ouvi-la falar com seus filhos e escutar como ria com suas
irmãs lhe provocava a mesma dor no peito que sentia cada vez que ela
levantava o queixo com valentia. E quando seus olhos lhe faziam perguntas
que encolhiam suas entranhas e roubavam-lhe a razão, não podia pensar com
clareza.
Fazer amor era infinitamente mais simples, especialmente quando não
falavam.
Não conseguia por corretamente o lenço do pescoço. Miles estalou a
língua e fez outro nó. Mas também o amassou.
– Se Sua Graça me permite...
– Posso dar o nó na maldita gravata sozinho, Miles – rugiu.
– Mas tudo dá a entender o contrário, Sua Graça. Pode ser que um copo
de conhaque lhe acalme os nervos.
– Meus nobres nervos estão bem.
Brigou com o tecido. Não necessitavam beber mais. Necessitava uma
tentação com uma cabeleira feroz e olhos azul turquesa nublados pela paixão,
suaves lábios vermelhos como morangos e o mais suave de...
Obrigou-se a abandonar sua fantasia. Tinha que deixá-la em Combe.
Tendo em conta que Fletcher e seu cocheiro sem polegar estavam na cidade,
ela estava mais segura onde não pudesse se interpor no fogo cruzado entre
ele e seus possíveis assassinos.
– Isto é absurdo – Rugiu para seu primo enquanto ocupavam seus
assentos no camarote que Cam havia reservado na ópera. – Estou perdendo
tempo. Ainda que consiga falar com Fletcher, é muito improvável que logre
que confesse que contratou vários homens para que me assassinassem na
França.
– Certamente. – Tony assentiu e retirou uma caixa de rapé do bolso do
uniforme. – E eu diria que estas tramoias começam a ser tediosas, Luc. Esta
horrível casaca que usa é uma piada. E a pequena corrida que representamos
ontem no parque para escandalizar os transeuntes me custou cinquenta
guinés.
– Luc as devolverá a você – assegurou-lhe Cam.
– Não penso em aceitar! Ganhou-as justamente, galopando por Rotten
Row como se o diabo o perseguisse.
– Tem que fazer o que seja pelo espetáculo – afirmou Cam, tirando do
bolso uma folha de jornal. – Tal como esperávamos, aparece na coluna de
fofocas de hoje. Cito: “As distrações e a falta de luto por seu tio que
demonstra lorde Westfall são frutos da frustração que deve sentir devido a
estar cada vez mais longe o título ducal?” Ou...
– Idiotas – Luc os xingou. Cam observou com despreocupação os
espectadores do teatro.
– Mas que outra coisa propõem, primos? Querem invadir sua casa e
vasculhar seus documentos em busca de alguma prova que demonstre que
tentou me matar?
– Não é má ideia, embora seja completamente ilegal, claro.
Tony baixou a caixa de rapé e limpou os bigodes com um lenço
cuidadosamente.
– Anthony, às vezes é um perfeito imbecil. É um milagre que a Marinha
Real permita sequer que comande um bote a remo.
– Serviço excepcional ao rei. – Tony assinalou os galões e as medalhas que
levava presas ao peito. – Ordem de Garter e tudo o mais.
– Que Deus ajude nosso império – murmurou Cam. – Sabe algo de seu
irmão, Lucien?
– Nada. Mas tenho motivos para pensar que viajou de barco saindo da
França faz quinze dias. O homem que tenho em Calais...
Sua língua travou.
Na outra ponta do teatro viu um homem esbelto com o rosto fino. Vestia
uma capa de veludo azul estendida dramaticamente sobre uma casaca negra, a
gravata e os calções até o joelho, tudo de cor negra. Olhou fixamente para
Luc. Observou-o atentamente e entrecerrou os olhos.
As mãos de Luc ficaram frias e pegajosas. Absalom Fletcher tinha as
têmporas cobertas por trilhas prateadas, coisa que enfatizava sua imagem de
austera e sofisticada sobriedade. Mas, pelo demais, era o mesmo bastardo
piedoso e santarrão que Luc havia visto doze anos atrás.
Naquela ocasião foi procurá-lo para perguntar aonde Christos havia ido.
Ainda não era bispo, mas se esforçava com zelo estabelecendo conexões no
Parlamento e na Corte. E o sacerdote negou saber algo do paradeiro do
garoto. Recomendou a Luc que voltasse a levar seu irmão à sua casa de
Richmond quando o encontrasse, onde cuidariam de Christos como se devia
cuidar de uma pessoa propensa a sofrer ataques de histeria.
Se Luc tivesse uma espada nesse momento, o teria matado. Fletcher nunca
havia admitido ter feito algo mal. Dizia que ele havia se preocupado por eles
com humildade, e lhes havia ensinado disciplina e a força interior que
necessitavam para ser homens de caráter no mundo. Como não tinha
nenhuma arma, Luc lhe cuspiu em lugar de assassiná-lo.
Então comprou uma patente na marinha.
Era a escolha mais evidente. Christos havia fugido para a França, estava
longe de sua proteção e a guerra avançava com força. Então Luc foi ao único
lugar onde – desde menino – podia escapar de Fletcher.
Ao reverendo Absalom Fletcher acontecia o mesmo que a sua mulher, o
mar aberto o aterrorizava. Não sabia nadar.
De repente Luc já não via o drama que estava sendo representado no
palco do andar abaixo, nem escutava os demais espectadores rindo com
nervosismo de sua falta de respeito ao luto. Só sentia o ardor de suas
entranhas. Mas quando chegou a pausa do espetáculo, limitou-se a se reclinar
na poltrona como se só estivesse aproveitando a companhia de seus amigos,
e aguardou.
Fletcher não lhe fez esperar muito. Poucos minutos depois, percorreu o
teatro com austeridade até o camarote de Luc.
– Lucien, que surpresa mais agradável. – Sua voz era o mesmo ronronar
cortês de vinte anos atrás. Sobre seu peito descansava uma enorme cruz
muito elegante que reluzia com o brilho dos diamantes. – Charles. – Fitou a
Cam e depois a Tony. – Capitão.
Nenhum deles o saudou com uma reverência. Luc jurou em silência que,
se Fletcher levantasse seu anel violeta de bispo para que o beijasse, romperia
todos os ossos da mão.
Fletcher voltou a observar a roupa de Luc.
– Já vi que não usa o respeitoso luto por seu tio, Lucien.
Seus olhos cinza como aço estavam carregados de censura.
– Não há dúvida de que isso se deve a que não o respeitava.
Não pôde dizer nada mais. Tinha os punhos apertados e a garganta
endurecida.
– Já me contaram sobre sua corrida pelo parque ontem e que nas últimas
semanas não parou de jogar.
– Ah, sim?
– Não tem nenhum respeito pela dor de sua tia ou pela honra que deve ao
nome de sua família?
– Suponho que não.
– Parece que não mudou nada desde que tinha dezoito anos, Lucien.
Lamento muito. Pensava que se converteria em um homem de caráter, mas
está claro que as sementes que plantei em sua juventude caíram em solo
estéril.
Luc não podia respirar.
– Assim parece.
– É uma lástima. Terei que aconselhar minha irmã que se console
retirando-lhe o cargo de administrador da propriedade enquanto seu filho
continue sendo menor. Um duque não pode se abandonar aos
entretenimentos de que você desfruta, e o menino deve ter alguns tutores que
ensinem bem e administrem suas terras com sapiência até que seja maior de
idade.
– Como comprou seu posto no episcopado, Fletcher, suponho que agora
tem linha direta com Deus, – provocou Luc – e já sabe que meu primo não
nascido é um menino.
O bispo não moveu nem um só músculo do rosto.
– Soube que se casou com uma serviçal, Lucien. – Balançou a cabeça com
tristeza. – Nunca foi tão inteligente como seu irmão. Apesar de ser fraco
como é, pelo menos ele soube sempre quando demonstrar um
comportamento de acordo com seus interesses.
Luc viu tudo vermelho.
Fletcher olhou para Cam e saiu do camarote.
Tony segurou Luc pelo braço e o imobilizou.
– Cavalheiros, – disse Cam – vamos sair? Já tive muito espetáculo por esta
noite, e acontece que tenho uma garrafa de conhaque que tem nossos nomes
escritos nela.
– Espero que sejam garrafas – comentou Tony. A soprano me provocou
uma terrível dor de cabeça durante o primeiro ato. Se me vejo obrigado a
sofrer com seus gritos também durante o segundo ato, creio que ficarei
surdo. Então você teria que ficar mudo, Charles, e os três poderíamos pôr
uma barraquinha numa feira e vender entradas.
– Eu ficarei mudo quando você se desfizer dessa espada ridícula, Tony.
– Esta espada está em minha família desde...
– Décadas. Sim, já sabemos. Mas isso não a faz menos comum do que era
no dia em que a forjaram.
– Tudo depende da cor da lente com que a veja.
– E falando do assunto, essas costeletas que usa não estão proibidas na
Marinha?
– Eu tenho privilégios especiais.
– Privilégios especiais?
– Já lhe disse, Charles: o rei, Garter, essas coisas. Teria que ter estado ali.
A cerimônia foi incrível. Isso sim foi um bom espetáculo.
Falavam de besteiras para fazer menos evidente o silêncio de Luc, e ele
lhes estava agradecido.
Luc não aceitou o convite de Cam para beber até esquecer, e foi para casa.
Faltava pouco para Adina dar à luz e estava fechada em seus aposentos de
Lycombe, rodeada por criadas e cuidada por uma amiga, e Luc não a havia
visto muito mais depois de saudá-la quando chegou. O médico ducal lhe
disse que o menino crescia como era devido e que a duquesa estava bem,
apesar de estar um pouco fraca. Quando falou com Luc em particular,
disselhe que era perfeitamente possível que o menino sobrevivesse. A
duquesa necessitava descansar e não se podia incomodá-la com nenhum
assunto de importância. Mas Luc não podia esperar mais para falar com ela.
Tal como havia imaginado, sua farra hedonista havia sido suficiente para
provocar a ameaça de Fletcher: sua intenção de afastá-lo da administração da
propriedade e da responsabilidade de criar o filho de Adina – se é que era um
menino – havia ficado muito clara. Legalmente, o bispo não podia fazer nada
para que ele deixasse de ser administrador de Combe: a vontade de Theodore
era inquebrantável. Mas Fletcher era o administrador principal e devia esperar
tirar proveito dessa posição, e via Luc como um impedimento para conseguir
seus fins. Talvez imaginasse que, eliminando Luc da equação, poderia
controlar Christos, tanto se fosse ele o herdeiro do menino como se fosse
convertido em duque no caso de que o bebê da duquesa fosse uma menina.
E então Fletcher ficaria com o ducado de todas as formas.
Segundo o testamento de Theodore, Adina não tinha nenhum controle
sobre Combe nem sobre o futuro de seu filho. E Luc não entendia por quê
havia feito isso, tendo em conta a devoção que seu tio sentia pela jovem
esposa que lhe havia conseguido seu antigo amigo há dezenove anos.
Havia chegado o momento de manter uma conversa com a futura mãe.
Quando Luc regressou à casa, Miles o repreendeu como se fosse sua mãe.
Tirou-lhe a casaca dos ombros e a sustentou entre o polegar e o indicador.
– Queime-a. O colete também. E todas as roupas carnavalescas que usei
nestes último quinze dias.
– Graças a Deus! – Miles deixou a casaca no corredor. – Então devo
concluir que por fim encontrou-se com o bispo?
– Sim, mas como sabe que...? – Negou com a cabeça. – Bedwyr.
– Sua senhoria acredita conveniente me informar das razões que estavam
motivando suas atrozes decisões a respeito da moda e dos entretenimentos a
que se dedicou ultimamente, Sua Graça.
– Já imaginava.
Colocou o roupão e caminhou para a porta.
– Esta noite será a biblioteca, Sua Graça? Ou talvez o vestíbulo? Examinei
detalhadamente os dois cômodos e creio que as poltronas da biblioteca são
muito mais confortáveis que...
– Não me manipule, Miles.
– Desculpe, Sua Graça.
– Sempre o faz.
– Sua Graça, devo lhe informar que...
– Esta noite não, Miles. – Abriu a porta mais cansado do que havia estado
desde que jazia tombado em um catre recuperando-se do apunhalamento. –
Por esta noite já acabei.
Despertou de um pesadelo empapado em suor. Estava sonhando que seu
irmão de seis anos cavalgava por cima da colina de Combe e caía em um
despenhadeiro que nem sequer existia. Então aparecia uma mulher na colina
que caminhava decidida para cima com o sol refletindo em sua selvagem
cabeleira. Luc a chamou, mas ela não lhe respondeu. Subia para o cume.
Quando abriu os olhos tinha o nome de Arabella nos lábios. A luz do sol
passava por entre as cortinas da biblioteca.
Pegou o copo de conhaque meio vazio que havia na mesinha e o tomou
de um só gole. O calor se estendeu por seu peito, mas não foi suficiente para
aliviar a dor que sentia nas costas e no pescoço. Era evidente que Miles
nunca havia dormido em uma das poltronas da biblioteca.
Foi para seu dormitório e pôs uma jaqueta negra, calções negros e uma
gravata negra. Seu tio, que jamais acreditou no que ele havia contado sobre
Fletcher, não o merecia, mas o nome de Lycombe e sua comtesse sim.
Miles passeava a seu redor com ar afeminado e evidente vontade de falar.
Mas já fazia muitos anos que Luc o advertira de que, se alguma vez lhe
dirigisse a palavra antes do desjejum, o lançaria do Victory ao oceano
amarrado a um canhão de quinze quilos.
Os criados que aguardavam na sala de refeições do desjejum pareciam
estar especialmente alerta. Luc não os conhecia, todos eram empregados de
Adina, e ele só estava há quinze dias na casa. Mas cada vez que levantava os
olhos do jornal ou do desjejum, os surpreendiam olhando-o com brilho nos
olhos.
A atenção que demonstravam lhe cortou o apetite. Afastou o prato e
subiu para as dependências de Adina.
Seu salão transbordava tons dourados e amarelos, estava cheio de
almofadões de cetim e renda, e delicadas bugigangas de porcelana, e cheirava
muito a perfume floral. E no meio desse guloso excesso de abundância
feminina, como se fosse uma flexível vela de ébano iluminada pela chama
mais pura, estava sua mulher.
Capítulo 15
Segredos
Arabella se levantou, alisou a saia negra e lutou contra os desejos
desencontrados de se lançar nos braços de Luc como uma meretriz ou
permanecer distante e fria como uma comtesse. Parecia cansado, tinha a
cicatriz mais tensa do que o normal e se percebia sua pele pálida. Era o
aspecto de um homem dissoluto, se era verdade tudo o que lhe havia
contado a amiga de Adina.
Quando não estava com a duquesa, a senhora Baxter passava o tempo de
salão em salão inteirando-se dos on dits mais saborosos. Segundo os rumores,
o novo duque passou quinze dias de farra na cidade, jogando e sempre em
confusão, e basicamente desonrando o nome de Lycombe. E era tão
impróprio do homem que ela conhecia que não havia acreditado nela.
No entanto, não parecia alegrar-se de vê-la.
Fez-lhe uma reverência e disselhe com elegância: – Grande beleza
angelical encontro. Embora talvez isto não seja a Terra. Talvez ontem a noite
eu tenha morrido enquanto dormia e agora isto seja o céu.
Fitou-a e franziu o cenho.
– Lucien, que delicadeza que tenha vindo me ver – balbuciou Adina,
estendendo-lhe a mão para que a beijasse.
Luc se inclinou sobre ela e depois saudou à senhora Baxter com uma
inclinação de cabeça. A mulher bateu os cílios pelo menos vinte vezes
enquanto dizia a palavra "commte” como se não suportasse não lhe infundir
alguma ênfase.
Arabella se sentiu na obrigação dela também lhe oferecer a mão. A mão de
Luc era cálida e forte, e ela havia sentido tanto a falta dele que ao vê-lo
voltava a se sentir viva. Quando ele pousou os lábios sobre os nós de seus
dedos, os dedos dos seus pés se encolheram.
– Comtesse – disse.
Ela lhe fez uma reverência.
– Milord.
A voz não tremeu. Um pequeno triunfo. Podia controlar a situação. Tinha
coisas mais importantes em que pensar que em seu estúpido coração, que
queria suplicar a esse homem que a quisesse, ou em seu corpo, que recordava
de um modo tão tangível o que ele lhe havia feito quando a tinha tocado na
última vez.
Ele a soltou e ela recuperou parte da compostura que tanto havia
praticado até que conheceu Luc Westfall e colocou tudo a perder. Sabia que
devia continuar aborrecida e magoada, e que tinha que se esforçar por
defender os muros que havia construído ao redor de seu coração. Mas já
fazia muito tempo que esses muros haviam tombado. Apenas podia se pôr
em pé sobre seus destroços e esperar que o invasor tivesse piedade dela.
– Que encantador – cantarolou Adina. – Poder presenciar o reencontro de
um casal enamorado. – Suspirou e depois arregalou seus olhos brilhantes. –
Ora, Arabella, ainda não lhe perguntei como Luc e você se apaixonaram. Sua
beleza fala por si mesma, claro, e todos sabemos que os cavalheiros
valorizam isso acima de qualquer outra virtude feminina, não é?
Assentiu com sabedoria e a senhora Baxter fez o mesmo.
– A senhora acertou – disse Luc. – Os homens são muito estúpidos
quando se trata de mulheres atraentes.
O coração de Arabella se encolheu. Ele não podia tê-lo dito com intenção
de ser cruel. Mas estava apertando os dentes.
– Adina – disse. – Gostaria de falar com você quando estiver bem.
Embora antes queira desfrutar de momentos a sós com minha esposa.
Adina esboçou um brilhante sorriso.
– Claro, Lucien – disse, e lhe fez sinais em direção à porta. – Leve essa
linda dama e beije-a adequadamente. Não quero que ninguém diga que me
interponho no caminho do amor.
Riu com suavidade e alegria. A senhora Baxter soltou uma risadinha.
Arabella sentiu vergonha alheia por aquelas mulheres de quase quarenta
anos que se comportavam como meninas estúpidas de quinze. Mas ela era
igualmente culpada por desejar os beijos de um homem que a tinha obcecado
fazia meses e que a havia feito esquecer seus planos para conseguir se casar
com um príncipe, apesar da despreocupação e a desonrosa forma com que a
havia tratado.
Luc lhe fez um gesto para saísse antes dele. E no corredor, as retas costas
de Joseph ficaram ainda mais tensas quando passaram.
– Capitão!
– Descanse, senhor Porter.
Luc abriu outra porta e a fez entrar novamente. Era um salão mobiliado
segundo ditava a moda e sem levar em conta o conforto. Arabella se deteve
no meio do cômodo, mas não se sentou.
Ele fechou a porta e caminhou para ela até que esteve bem próximo.
– Disse que regressaria a Combe e lhe traria a Londres eu mesmo.
Ela entrelaçou as mãos.
– Ora. Já vi que aprendeu a saudar de uma forma tão desagradável como
eu.
Luc não sorriu.
– Por que veio?
– Para planejar o casamento. Você me deu carta branca, se o recorda. E
para compartilhar com você algumas informações que averiguei e que não
me pareceu seguro lhe transmitir por escrito.
Luc franziu o cenho.
– Informação?
– O filho de Adina não é de seu tio.
Arregalou os olhos.
– Ela disse isso a você?
– Não. Averiguei falando com a senhora Pickett, e me foi confirmado por
quase todos os demais habitantes da casa.
– Perguntou a eles?
– É claro. Primeiro me dirigi aos criados da casa e lhes perguntei pela
verdadeira identidade do bebê que está no útero da duquesa. Depois fiz uma
ronda e continuei com os jardineiros e os cavalariços. E depois perguntei a...
Luc levanto a mão como se fosse pegá-la pelo braço, e depois o deixou
cair.
– E como o averiguou?
– Graças a uma complexa operação de soma e subtração. Veja, eu antes
era uma professora, e minha matemática é especialmente boa. Sei que a um
homem de educação universitária como você parecerá surpreendente, mas sei
contar até nove. As vezes é muito útil ter tais conhecimentos.
Luc voltou a levantar a mão, nessa ocasião para esfregar a cicatriz que
aparecia por debaixo do cacho de cabelo negro que caía por sua testa. Mas
Arabella viu como sua testa se enrugava.
– Depois que saiu de Combe repentinamente, sem avisar nem dar
nenhuma explicação...
– Escrevi-lhe uma mensagem.
– ... me entretive visitando as famílias de arrendatários...
– Como a duquesa que está tão preparada para ser.
Arabella sentiu um revoar de borboletas no estômago.
– Todo mundo parecia ansioso para me deixar bem claro que Adina não
havia voltado à casa desde que começou o período de fome, e que, durante
esse tempo, o velho duque estava muito adoentado para sair de Combe. Luc,
queriam que eu soubesse que o bebê não é de Theodore.
– Isso não é prova suficiente.
– A que se refere? Centenas de pessoas estão seguras, incluindo a
governanta...
– É a palavra de Adina contra a de toda essa gente, e a palavra de Adina
tem mais valor. – Negou com a cabeça. – Temo que é assim que são as coisas
no mundo dos nobres licenciosos, pequena preceptora.
Arabella mordeu o lábio. Luc pôs o olhar sobre sua boca.
Ela se encheu de coragem.
– E falando de comportamentos licenciosos, a senhora Baxter ouviu
rumores muito surpreendentes sobre você, lorde Bedwyr e o capitão
Masinter.
– Ah, sim? Pergunto-me o que terá ouvido.
– Jogo. Bebida. Farras. – Deteve-se com a respiração entrecortada. –
Mulheres de má fama. Já sabe, o habitual.
– O habitual, eh?
– Para alguns homens. – De repente seu intenso escrutínio a pôs nervosa.
– Sinto-me como se voltássemos a estar no convés de seu navio – sussurrou.
– Porque tem vontade de se segurar no parapeito?
– Porque está me fitando como o fazia então. – Tentou ficar reta. – Por
quê?
– Pode ser que seja porque me sinto como me sentia então – disse com
uma estranha voz grave. – Como se um lindo mistério envolto em modéstia
moralista e uma imprudente valentia decidida, tivesse aterrissado diante de
mim e não soubesse muito bem o que fazer com ela.
A garganta de Arabella se apertou.
– Poderia...
A porta se abriu.
“Beije-a.”
– Milord? Oh. Desculpe-me, milady. – O mordomo fez uma reverência. –
Joseph me disse que o encontraria aqui, milord. Acaba de chegar a carruagem
do capitão Massinter. Espera-o na rua.
– Obrigada, Simpson. Descerei em seguida.
O mordomo se retirou.
– Bem, aí está – disse com despreocupação. Havia desaparecido a
intensidade de seu olhar. – Pelo visto me espera mais um pouco de farra, e
isso ainda sendo onze da manhã. Mas assim é a vida de um hedonista na
cidade.
Separou-se dela.
– Não pode falar a sério – disse ela para suas costas.
– Pois claro que não – disselhe com a mão na maçaneta da porta e a
cabeça inclinada. – Mas não tenho nada mais que dizer, Arabella. Então isso
deveria lhe bastar.
O estômago dela se encolheu.
– Não me basta. Mas suponho que não tenho escolha. Luc, por quê pôs
guardas em Combe? Não confia em mim?
– Claro que confio em você – assegurou-lhe.
– Eleanor pensava que havia pedido a Joseph e a Claude que me
protegessem.
Luc guardou silêncio por um momento.
– E acreditou?
– Não sei. De que necessito que me proteja?
“De seu coração irracional e da indiferença que Luc demonstrava por ele.”
– Esta noite teremos convidados – limitou-se a dizer. – Nada
inapropriado durante o luto. Só convidarei alguns amigos íntimos para lhes
anunciar que chegou à cidade.
– Eu...
– A governanta se ocupará dos preparativos. Você não tem que fazer
nada, exceto vestir-se para a ocasião. – Fitou-a por cima do ombro. – Deixe
o cabelo solto, por favor.
– Estou de luto. E sou uma mulher casada. Não parece apropriado que...
– Deixe-o solto, Arabella.
E saiu.
Naquela tarde passou várias horas fechada com Adina e a senhora Baxter,
que assumiram o planejamento do casamento com grande entusiasmo. A
emoção tingiu as pálidas bochechas de Adina de um bonito tom ruborizado.
Quando a conversa se converteu em um debate sobre que florista poderia
lhes proporcionar as rosas mais frescas em novembro, e se puseram a falar de
que o rio cheiraria especialmente mal nessa época do ano, pelo que não era
necessário que comprassem ramalhetes, Arabella foi se vestir.
Havia deixado sua donzela sair e estava sentada na penteadeira pensando
no decote e a quantidade de pele dos braços que o vestido negro desejava
entrever. Então Luc entrou.
– Ah, a dama em sua penteadeira. A maior fantasia de um homem e um
pesadelo ao mesmo tempo.
Arabella tentou respirar com tranquilidade quando se aproximou dela por
detrás e a fitou pelo espelho. Ele também se vestia de negro, e o lenço que
usava preso na face era uma mera extensão de sua beleza proibida.
– Pesadelo?
– As decisões femininas sempre o são. Por exemplo, que joia porá.
– Não tenho nenhuma...
Luc tirou uma caixa da casaca e a abriu. Duas fileiras de gemas carmesim
brilhavam agrupadas em minúsculos ramalhetes dourados.
– Pensei que como está acostumada a levar rubis e ouro não rechaçaria
este presente.
– São lindos, Luc.
– Imaginava-os brilhando em seu cabelo. – Afastou-lhe uma mecha da
testa. Depois segurou a cabeleira e a afastou dos ombros. – Esta noite não
use o anel – disse; era a primeira vez que lhe pedia que não pusesse o anel.
– Eu... Não. – Podia ser que se lhe contasse não se aborrecesse. Mas tinha
medo. – Obrigada. É muito generoso.
Luc deixou a caixa na mesa, tirou um dos brincos e o pôs.
– Uma mulher bonita não necessita de adornos. Mas um homem
orgulhoso os presenteia de qualquer modo.
Arabella deixou que lhe pusesse o outro brinco e depois voltou a cabeça
para olhar como as pedras brilhavam à luz das velas. Luc levantou a mão e
lhe acariciou a bochecha com suavidade, depois seguiu pelo pescoço e o
ombro. Ela suspirou e seus peitos se apertaram no corpete, inchados,
redondos e sensíveis ao eco de sua carícia. Arabella queria que a tocasse e
confiasse nela, e que lhe desse motivos para que ela também pudesse confiar
nele.
Um dos dois teria que começar.
– Faz muitos anos disseram a minhas irmãs e a mim que o legítimo
proprietário deste anel conhecia nossos pais verdadeiros. Nos disseram que
esse homem era um príncipe.
Luc deteve suas carícias.
– Reiner?
Ela o fitou através do espelho.
– Não sabemos quem é, só sabemos que não reconhecerá o anel a menos
que uma de nós se case com ele.
Deixou de tocá-la e levou a mão ao lenço do pescoço. Luc olhou-se no
espelho e reajustou um pouco o tecido.
– Isso soa como um conto cigano.
– Crê que sou uma tonta. E tem razão, porque fui bastante ingênua para
acreditar nisso. Mas tinha muita vontade de conhecer meu pai. E queria saber
se minha mãe era o tipo de mulher que o reverendo Caulfield afirmava ser, o
tipo de mulher capaz de nos abandonar dessa forma. Queria saber se era uma
prostituta. – Deu meia volta para fitá-lo diretamente. – Acredita em mim?
Acredita no que lhe contei sobre o anel?
– Por que não iria fazê-lo?
Não era uma afirmação. Estava lhe perguntando.
Nesse momento poderia ter lhe suplicado que acreditasse em sua
fidelidade. Poderia ter insistido em que ela jamais levaria um homem a sua
cama como Adina havia feito, como talvez houvesse feito sua mãe há muito
tempo... Talvez por isso teve três filhas tão diferentes entre si; pensar que
tinham o mesmo pai era uma ingenuidade. Poderia ter lhe dito que não tinha
por quê escondê-la no campo e fazer que seus guardas seguissem todos os
seus movimentos, porque ela nunca lhe seria infiel.
Mas ela já lhe havia contado sua história e ele continuava ocultando-lhe
segredos.
Arabella pegou um xale negro de renda e encaminhou-se para a porta.
– Nossos convidados estão a ponto de chegar. Não quero me atrasar.
Voltou-se e por um momento lhe pareceu ver uma sombra de desolação
em seu rosto destroçado. Mas em seguida desapareceu. Era muito possível
que só o tivesse imaginado.
Esperou que se aproximasse da porta e que a abrisse, e desceu a escadaria
segura pelo braço: o conde e a comtesse de Rallis aparecendo ante os olhos do
mundo como se perfeitamente se entendessem.
Depois da ceia, um luxuoso evento junto a uma dezena de parentes com
uma conversa brilhante e muitas risadas, os cavalheiros se retiraram para
jogar cartas. Quando ficou a sós com as damas, Arabella enfrentou o
tortuoso caminho entre seu passado de preceptora e sua nova posição de
comtesse com cada frase que dizia. Mas seus convidados eram pessoas
sofisticadas que sentiam afeto por Luc, e a aceitação do capitão Massinter e
lorde Bedwyr fazia tudo mais natural.
Então subiu a escadaria em direção a seu dormitório depois da meia-noite
e completamente exausta. Luc não foi à sua cama. Enquanto estava acordada
estendida nela, ouviu-o sair de seu dormitório e descer as escadas, mas não
regressou.
Depois do desjejum, Adina, deitada sobre alguns almofadões e com a
barriga sobressaindo de seu delgado corpo, fez-lhe um gesto com a mão para
rechaçar a ajuda que lhe ofereceu com os preparativos para o casamento. A
senhora Baxter se pôs a abrir as respostas aos convites de casamento e
anotava os nomes na interminável lista de convidados. Arabella deixou de
desfrutar dos preparativos.
Joseph voltou a estar a seu lado, coisa que devia significar que Luc não
estava na casa. Arabella foi para a parte dianteira da casa acompanhada de seu
corpulento lacaio e começou a explorar os aposentos. Quando chegou a um
local de tamanho modesto mobiliado com uma escrivaninha, duas cadeiras e
um aparador em que havia grande variedade de garrafas e copos, afastou-se
da porta. Depois se deteve e voltou a entrar, fechado a porta no nariz do
guarda com um sorriso nos lábios.
Estava nervosa, a cabeça lhe doía e tinha o estômago revirado. Um gole de
conhaque parecia o mais adequado para acalmar sua agitação. Quando Luc
lhe permitisse voltar a vê-lo, estaria tranquila e forte, e não deixaria que suas
provocações e seus segredos lhe magoassem.
Destampou uma garrafa, cheirou seu conteúdo e seus olhos se encheram
de lágrimas e começou a tossir.
Conhaque.
Pegou um copo, verteu um dedo e depois se aproximou de uma poltrona
e sentou. Sorriu ao pensar no luxo de não ter outra coisa que fazer às onze da
manhã além de sentar e beber em uma poltrona.
Ainda estava sorrindo quando olhou os documentos que estavam
amontoados em três organizadas pilhas diante dela. Deixou o copo e pegou o
papel que havia no monte do centro do mata-borrão.
“A respeito de sua intenção de solicitar o divórcio ao Parlamento, deve
apresentar uma lista completa e detalhada das infidelidades de sua mulher,
incluindo datas, lugares, nomes e todas as testemunhas possíveis. Para
estabelecer sua verdadeira e inegável infidelidade perante seus iguais, deve
estar disposto a expô-la completamente, incluindo qualquer fator familiar e
de sua juventude que possam proporcionar bases para a difamação. Não
existe nenhuma forma fácil de fazer isto, e embora eu seja consciente de que
um homem de seu caráter se sentirá resistente a expor sua família a esta
censura pública, estes são os passos que devem se tomar para assegurar o
resultado desejado.”
Era evidente que era o mata-borrão de uma carta. Havia manchas nas
áreas em que o autor havia voltado a molhar a pluma na tinta, e estava cheia
de palavras rasuradas e corrigidas nas margens. Mas de qualquer forma, o
estômago de Arabella se revolveu.
“Tem que ser um erro.” Talvez uma brincadeira? Luc não insistiria em que
se casasse com ele para depois se divorciar imediatamente.
E, no entanto, escondia-lhe coisas.
Aproximou-se do monte de papéis e os foi afastando depois de ler o
conteúdo com desespero. No final seus olhos pousaram em uma carta escrita
pela mesma mão. Era outro mata-borrão, mas desta vez o autor da carta
havia assinado.
“A dama por quem se interessou é a senhorita Caroline Gardiner, a
filha mais velha de lorde Harold Gardiner e lady Frances Gardiner. É
um título novo, sua propriedade está a oitenta quilômetros ao norte de
Combe e é próspera. A senhorita Gardiner receberá quinze mil libras de
dote, além de direitos sobre a produção do moinho de Gardiner. Além das
condições de matrimônio, também há que considerar os possíveis
investimentos que se podem fazer nas minas que se encontram nas terras de
lorde Gardiner. Mas minha opinião é que o dote da dama é mais que
suficiente para revitalizar a propriedade, e deixa uma ampla margem para
futuros projetos ou para que o gaste como melhor convenha em suas
propriedades do Norte e da França.
“Se me permite, também quero assinalar uma vantagem adicional: a
garota é muito bonita e acaba de sair da escola. Como não faz muito
tempo que seus pais são membros da sociedade, não conhecem as exigências
que poderiam dissuadir o matrimônio. Na realidade, sei de boa fonte que
estariam mais que dispostos a ligar sua família com a de Combe.”
“Esperarei suas instruções antes de escrever uma oferta oficial.”
“Atentamente,”
“Thomas Robert Jonas Firth.”
Uma herdeira?
Arabella estava muito enjoada. Deixou a carta sobre a pilha e tentou
respirar. Estava convencida de que logo sucumbiria a uma grande tristeza,
mas no momento somente sentia uma náusea fria e amarga e uma enorme
confusão.
Luc havia insistido em que se casasse com ele. Havia insistido. Depois se
negou a lhe conceder uma anulação. Depois pediu que se casasse com ele –
pela segunda vez – e não só para cumprir com os requisitos da Igreja, como
também para celebrar uma boda que ela devia planejar a seu gosto.
Não fazia sentido. Exceto pelo fato de que viriam muito bem a calhar as
quinze mil libras que entrariam em seus cofres. Com esse dinheiro os
arrendatários de Combe voltariam a ser felizes em pouco tempo.
Os arrendatários que Luc havia querido que ela conhecesse.
Levou uma mão trêmula à face. Que tipo de brincadeira era aquela?
De repente, não podia continuar sentada nem um segundo mais.
Levantou-se da poltrona. A cabeça dava voltas e tinha o estômago
embrulhado. Segurou-se na mesa e acabou com o conhaque.
Deixou-se cair na poltrona, levou as mãos ao estômago e depois ao peito.
Tinha os mamilos sensíveis e a barriga um pouco mais arredondada. O
generoso decote que havia usado na noite anterior não era do corte do
vestido. Era o filho de Luc crescendo em seu interior.
Sorriu. Depois riu. E então chorou.
Depois limpou as lágrimas e se dirigiu para a porta.
Não pensava em liberá-lo de seu noivado. Apesar das cartas de seu
secretário e de sua contínua distância, não acreditava que ele quisesse se
desfazer dela. Daria a ele o herdeiro de que necessitava e que teria olhos
verdes brilhantes. E o ajudaria a solucionar a pobreza de seus arrendatários.
Armada de uma incerta coragem, a primeira coisa que devia fazer era pedir
que chamassem a modista. Iria se casar – novamente – dentro de dez dias.
Precisava de um vestido de noiva.
Capítulo 16
O casamento
– Deve ser agradável estar a ponto de se converter em duque, querido
amigo Luc. – O capitão do HMS Victory, Anthony Masinter, estava ao timão
do navio de guerra de cento e vinte e dois canhões e observava seus
domínios. – Pode-se pedir à Marinha Real que estacione um navio de guerra,
e não só isso, que o faça subir por um rio, pelo amor de Deus, e o almirante
concorda imediatamente.
O navio, adornado com grinaldas e flores branca, lanternas de papel e
cheio de criados correndo de cima para baixo, parecia um elegante festival
que cruzava o Tâmisa. Adina Westfall era uma mulher tola, mas conhecia
muito bem a classe de pompa que era esperada nesse tipo de casamento.
Tudo era muito festivo.
Exceto sua noiva.
Quanto mais se aproximava o dia, mais distante estava. Dirigia difíceis
tarefas que ainda restavam por completar, ceava em companhia de Adina e
da senhora Baxter, e passava a maior parte do dia reunida com carroceiros,
floristas e pessoas assim. Luc visitava seu clube e voltou a se reunir com
Firth, e tentava não morrer de vontade de olhá-la quando passava junto a ele.
Para saciar sua patética necessidade de se sentar no mesmo cômodo que ela
durante um momento, visitou os aposentos de Adina. Arabella não estava,
mas Adina se mostrou muito loquaz.
– Oh, Luc, será um esplêndido tutor para meu bebê, seja menino ou
menina – comentou efusivamente. – Estou encantada de que meu querido
Theodore o tenha disposto assim.
Não era bastante inteligente para ser uma boa atriz, mas Luc acreditou
nela. Fletcher ainda não havia falado com ela. Ou suas ameaças eram puro
blefe, ou então não queria preocupá-la até que o bebê tivesse nascido.
Parsons lhe enviou uma carta em que lhe explicava que vários
arrendatários queriam se reunir com ele quando regressasse a Combe. O
administrador lhe perguntava quanto tempo estaria em lua de mel. Luc não
podia lhe dar uma resposta.
Mandou uma mensagem a sua comtesse, que vivia na mesma casa. Fazia seis
anos que era capitão de um dos melhores navios da Marinha, e se sentia
como um imbecil por não ser capaz de chamar a atenção de sua mulher.
Quando Miles lhe pôs a casaca sobre os ombros, – uma casaca que sem
dúvida usaria enquanto ceava sozinho – a cabeça de Arabella apareceu na
porta de seu trocador. Usava um simples vestido negro que cobria seu
pescoço e havia prendido a linda cabeleira em duas tranças que caíam sobre
seus ombros. Tinha o cabelo de uma valquíria. Na realidade, parecia uma
garota que estudava para ser preceptora. Uma combinação de ambas coisas.
Nem nas mãos, nem nas orelhas, nem no pescoço usava joias ou fitas, e o
vulto do anel de rubis já não aparecia. Tinha as bochechas ruborizadas e os
lábios separados.
– Queria me ver?
“De todas as formas possíveis a todas as horas de cada dia.”
Luc secou a boca.
Fez um gesto a Miles para lhe indicar que saísse da habitação e se
aproximou dela.
– Sim.
Arabella tinha o queixo levantado. Mas não pôde resistir a tocá-la. Segurou
a ponta de uma das tranças com os dedos e acariciou o cabelo acetinado.
– Hoje recordei que os casais recém-casados costumam sair em viagem
depois da boda – disse, sentindo-se ridiculamente desajeitado e com uma
estranha sensação de rigidez na língua. Baixou o olhar e observou as
selvagens mechas de cabelo sobre a palma de sua mão. – Gostaria disso?
– Mas na realidade não seremos recém-casados – respondeu ela. – E
tendo em conta que não faz muito tempo que fizemos uma viagem, não vejo
porque deveríamos nos ater a esse assunto.
Luc deixou as tranças resvalarem por entre seus dedos. Entrelaçou as
mãos às costas e a fitou nos olhos.
O coração dela deu um pulo. Por um momento ele viu suavidade no olhar
de Arabella, e a luz que brilhava em seus olhos parecia buscar algo. Depois
voltaram a se apagar.
Precisamente essa forma que tinha de fechar-se em si mesma era o que
fazia que ele não fosse procura-la em sua cama pelas noites. Sabia que
poderia reclamar por seus direitos como marido e ela aceitaria, era uma
mulher apaixonada. Mas não podia utilizá-la dessa forma. Ela merecia mais,
não podia tratá-la como se fosse sua amante. Arabella merecia que a
tratassem como a princesa que um dia sonhou que seria Mas não sabia
quanto tempo mais aguentaria. A semana que havia passado já lhe parecia um
milênio. Se a vida a seu lado iria passar dessa forma lenta, morrendo de
desejo por ela sem poder tê-la, melhor teria sido morrer naquela praia de
Saint-Nazaire.
Mas, enquanto olhava seu lindo rosto e via essa combinação de reticência
e adorável determinação, não podia realmente desejar tal coisa. Mesmo
aqueles breves momentos em sua companhia eram melhores que uma vida
sem ela. Pelo visto, estava ficando completamente louco.
– E você? – Perguntou ela.
– Eu?
Tentou manter juntos os fios da razão que, como sempre, se
destrançavam na presença dela.
– Acredita que deveríamos falar sobre esse assunto?
Luc coçou a nuca como se estivesse pensando. Tentava ganhar tempo. O
assunto estava a ponto de se decidir, sua conversa terminaria, e ela sairia.
– Nunca gostei muito de conversar – confessou. – Terá que me desculpar
por isso, pequena preceptora. Sei que se dedicou bastante tempo a ensinar
bons modos.
– Isso fiz com as garotas que não possuíam nenhuma faísca de
originalidade natural. Mas às que tinham um espírito único, as animava a...
– Animava-as?
– As animava a perseguir seus sonhos da forma mais benéfica a seus
interesses.
O peito de Luc começou a doer. Ela havia tentado seguir seu sonho e ele a
havia retido a um passo de consegui-lo.
– Suponho que não aconselhava o mesmo às suas mães.
Não sabia como havia conseguido sorrir.
– Não exatamente. – Seus perfeitos lábios cor de morango esboçaram um
sorriso. – Mas as pessoas acabam aprendendo a dar uma versão da verdade
quando não estão em uma posição... – engoliu a saliva – invejável. – Inspirou
fundo. – Deveria ir. Está tarde e ainda tenho cem coisas por fazer. – Havia
ficado nervosa. – Isso era tudo o que queria me dizer?
– Sim – mentiu.
Arabella se foi e ele ficou ali de pé um bom tempo depois de que ela saiu.
O coração batia devagar e com força.
Estava há dois dias sem vê-la. E estava a ponto de se casar com ela pela
segunda vez, agora com o beneplácito da Igreja da Inglaterra.
– Depois de ter comandando este navio durante seis anos na guerra, –
disse a Tony – não tem que ser nem baronete para que lhe concedam
privilégios especiais.
Seu amigo bufou.
Luc observava desde a ponte de comando como os convidados do
casamento chegavam e subiam à embarcação cruzando a ponte flutuante que
haviam construído da margem do rio até o barco.
Então seu coração deu um pulo. Arabella avançava com cuidado dando o
braço a seu primo. Cruzou a ponte em direção ao convés com a cabeça alta e
os ombros retos. Não demostrou nem um pingo de medo quando embarcou.
Estava com o cabelo meio preso e sua cabeleira caía em uma cascata de
cachos. Usava um vestido de cor rosa pálido que deixava seu pescoço e
ombros descobertos e oferecia uma hipnótica visão da beleza feminina que
havia debaixo.
Passou por debaixo do toldo branco levantado sobre a prancha, soltou-se
da mão de Cam e subiu ao convés.
Luc se inclinou para a frente.
– Olhe, querida, – disse seu primo – aqui está seu noivo.
Arabella levantou a mão, pousou-a sobre a face de Cam e lhe deu um
beijo na bochecha.
– Obrigada, Milord.
A garganta de Luc ardeu.
Cam lhe fez uma elegante reverência.
– Foi um prazer ajudar em seu casamento. Outra vez.
Luc a segurou pela mão e puxou-a até ele. Ela levantou as pestanas, os
olhos turquesa estavam iluminados.
– Desapareça, Cam.
– Muito bonito, Lucien. Tem os anéis?
– O sacristão da igreja os tem. – Não deixou de fitá-la. – Agora vá.
– Ah, o noivo impaciente. Parece que essa escorregadia criatura existe
apesar de tudo. Fascinante. Parabéns, querida.
Sorriu para Arabella e saiu.
– Foi muito amável me ajudando a subir ao navio – disse ela com um
pequeno sorriso.
– Aproveitaria qualquer oportunidade para tocar uma mulher bonita.
– E você, milord? – Perguntou-lhe Arabella com essa sinceridade que lhe
havia encantado desde o primeiro dia.
– Eu só quero tocar uma mulher.
A tranquilidade apareceu nos olhos turquesa.
– Espero que essa mulher a quem se refere seja eu.
– Na realidade, já faz bastante tempo que é assim. – Tentava falar com
relaxamento, mas temia parecer tão bobo como se sentia. – Está bem?
Arabella assentiu, mas os pequenos tremores de sua cabeça deixavam
entrever que não havia superado seu medo, só havia conseguido escondê-lo
com grande esforço.
– Por que fez isto, Arabella? Por que escolheu um navio se a água lhe dá
tanto medo?
– Não tenho riqueza...
– Tem a minha.
– Riqueza própria. – Continuou, levantando o queixo. – Queria lhe dar
um presente de casamento. Queria agradá-lo como... Como não lhe havia
feito antes.
– Duquesa, se já não o tivesse feito, acredita que estaríamos aqui agora?
Ela flexionou os joelhos com a mesma elegância que um cisne inclinando
o pescoço.
– É uma honra, milord.
– Arabella, tenho...
Então Luc viu uma figura vestida de negro subindo ao convés. Fletcher
olhou à esquerda e à direita e se agarrou ao corrimão com fingida
despreocupação, mas tinha os nós dos dedos brancos.
Luc ficou sem respiração.
– Convidou esse homem?
Ela se voltou.
– Qual?
– O que usa uma cruz de ouro pendurada ao pescoço.
Arabella fitou-lhe o rosto.
– Quem é, Luc?
– O bispo de Barris. Absalom Fletcher.
– Não vi a lista final de convidados. Adina a supervisionou. Mas não é de
estranhar que tenha convidado seu irmão. – Segurou-lhe a mão. – Lamento,
Luc. Quer que lhe peça que saia? Adina não virá, claro, e não vejo nenhum
motivo para que tenha que estar aqui, se não lhe agrada.
Luc fitou seus grandes e compassivos olhos e quis que soubesse tudo. Ela
havia cuidado dos filhos de outra mulher e se assegurou que estivesse a salvo.
Ela havia pedido clemência para um ladrão porque estava morto de fome.
Ela havia tentado proteger o nome de Lycombe do incerto passado de sua
família. E, no entanto, ele era incapaz de lhe dizer a verdade. Não podia lhe
confessar os vergonhosos segredos de seu passado nem os medos que
sombreavam seu presente. Devia protegê-la.
Arabella entrelaçou seus esbeltos dedos com os de Luc.
– Não estragará nossa celebração – ela assegurou com firmeza. – Nos
limitaremos a ignorá-lo. Já levo bastante tempo estudando a arte da
deselegância. Segundo a senhora Baxter, é uma arma necessária para qualquer
duquesa. Não vejo por quê não possa empregá-la como comtesse.
Luc segurou-lhe a mão.
– Uma sereia com os cabelos em chamas e os olhos turquesa das violetas
no verão. – O jovem que estava junto ao ombro de Luc falava com rapidez e
com um suave sabor do continente. – Meu irmão lhe fez justiça, belle enfant.
Arabella temia estar fitando-o fixamente.
Parecia flutuar sobre as pontas de suas botas brilhantes enquanto se
apoiava em Luc. Seus olhos verdes eram vibrantes e impacientes.
– Agora compreendo sua admiração.
Esboçou um lindo sorriso que lhe iluminou a cara.
Luc afastou a mão da mão de Arabella e a pousou no braço do jovem.
– Veio.
– Não podia perder a boda de meu irmão. – Rodeou Luc e levou a mão de
Arabella aos lábios. – Christos Westfall. Enchanté.
– Arabella, este é meu irmão.
Luc estava mais ereto e sua voz soava mais segura.
Ela fez uma reverência, mas Christos a obrigou a se levantar. Aproximou-
se dela e a observou com atenção.
– Luc, elle est exquise – disse, arrastando as palavras. Depois se apressou a
acrescentar: – Onde a encontrou?
O canto do lábio de Luc se curvou para cima.
– Em uma taverna.
– E, no entanto, seus ossos gritam sangue real. – Os compridos dedos de
Christos a seguraram pelo queixo e lhe inclinaram a cabeça da esquerda para
a direita. Ela o permitiu, tentando sorrir e com uma pilha de nervos no
estômago. – Tem que vesti-la de violeta e arminho para que possa lhe fazer
um retrato. Usará uma coroa, Belle. J´insist! Mas sem cetro. Os cetros são para
reis velhos e bigodudos, não para as princesas.
– Como queira – aceitou Luc com simplicidade, mas estava olhando para
seu irmão com a mesma intensidade com a que Christos olhava para ela.
Arabella se afastou com suavidade de seus dedos.
– Estou encantada que tenha vindo. – Esforçava-se para manter a voz
serena. – Devem ter muito do que falar, e eu tenho que saudar os
convidados. Por favor, me desculpem.
Avançou às cegas para diante.
Uma mão pequena e forte segurou a sua.
– É exatamente igual ao duque! – Sussurrou Ravenna.
– De certo modo sim, embora seja mais delgado e um pouco menos forte.
– Eleanor apareceu do outro lado de Arabella. – É seu irmão, Arabella?
Assentiu e segurou as mãos de suas irmãs.
– Fiquem comigo, por favor. Conheço muito poucas das pessoas que
estão aqui, e neste momento creio que não estou preparada totalmente para
ser comtesse.
Mas isso não era verdade. Era comtesse porque havia sido
indescritivelmente fraca, não forte. E nesse momento o homem cuja suposta
ferida mortal a havia prendido ao casamento estava a alguns metros de
distância, com aspecto de ser uma pessoa tão saudável como qualquer uma
das demais que havia naquele navio.
Saudou com elegância a pessoas que não conhecia, aceitou suas
felicitações e ignorou seus olhares curiosos. Entre os convidados havia
elegantes condes e impressionantes ministros, velhos duques, condessas
vestidas na última moda, barões, almirantes; todos eles com suas respectivas
esposas, e Arabella conversou com todos os seus convidados sem problemas.
O único homem com quem lhe custava falar estava perdido entre a multidão
com a ovelha negra de seu irmão, mantendo uma pose de segurança e um
sorriso no rosto mutilado.
Eleanor e Ravenna estavam conversando com alguns convidados. A
respiração dela se acelerou. E não foi pela água cinza do rio que a rodeava,
mas pelo pânico que crescia em seu interior. Arabella correu escada abaixo.
Christos e Ravenna a encontraram ali.
– Belle! Por fim a encontramos! – Christos se movia com leveza e uma
grande elegância. Era um homem elegante com um rosto que refletia todo
caráter e intensidade que se adivinhavam no semblante de Luc, mas onde não
havia nem rastro de sua segurança. Sentou-se a seu lado e a segurou pela
mão. – Seus convidados a estão procurando. Por quê se esconde?
– Está se escondendo, Bella?
Ravenna se pôs de pé diante dela com as mãos nos quadris e uma
expressão preocupada no rosto.
– Não. Sim. – Olhou diretamente para Christos. – Você e Luc estão há
muito tempo sem se ver.
– Só meia dezena de meses. Mas... – Fez um gesto com a mão para afastar
a importância disso – os meses e os anos não importam quando existe
afinidade de espírito e um grande afeto, non?
Ravenna assentiu.
Arabella girou a mão dentro da de Christos e a separou. As palavras
desesperadas que tanto tempo estavam presas em seu interior resvalaram por
sua língua.
– Seu irmão seria capaz de se divorciar de sua mulher sem lhe informar de
seus planos?
– Não o irmão que está há várias semanas elogiando a dita esposa em suas
cartas – disse ele sem vacilar.
– Encontrei cartas dirigidas a ele. Seu administrador as havia escrito.
Falavam sobre o que era necessário para preparar uma petição de divórcio, e
acerca de uma herdeira cujo dote poderia restaurar a fortuna de Combe.
– Oh, Bella. – Ravenna arregalou os olhos escuros. – Perguntou a Luc
sobre essas cartas?
– Não – disse Christos, assentindo pensativo. – Temo que haja muito
medo em um amor incerto.
Ravenna levantou as sobrancelhas. Arabella não conseguia olhar para sua
irmã.
– Como se chamava essa herdeira? – Perguntou Christos inclinado a
cabeça para um lado.
– Senhorita Gardiner.
Christos relaxou a expressão e esboçou um sorriso.
– Ah, então o mistério está resolvido, ma belle. Era meu tio quem se
informou com a intenção de convertê-la em minha esposa.
O ar entrou com impacto nos pulmões de Arabella.
– Seu tio? – Tentou recordar as cartas. Nenhuma tinha data e tampouco
aparecia o nome de Luc. – Quando seu tio lhe disse isso?
– Faz um ano.
– E sobre o divórcio?
– Isso era para liberar Combe das garras do irmão de sua mulher –
replicou Christos automaticamente.
Arabella se inclinou para diante.
– O que sabe desse assunto?
– O que me contou minha tia faz um ano quando lhe fiz uma visita, que
seu irmão queria que ela ficasse em Londres enquanto meu tio morria
sozinho em Shropshire. Essa mulher é muito boa, mas tem uma alma fraca.
No entanto, temo que sua inocência seja prejudicial a meu irmão.
– Mas o que tem uma coisa a ver com a outra? – Quis saber Ravenna.
– Ah, mon chou – disse ele meneando a cabeça. – Parece-me que sabe
pouco sobre a avareza dos homens.
– Por sorte – respondeu ela. Entrecerrou os olhos. – O que é um chou?
– Uma couve.
A cabeça de Arabella estava a mil por hora.
– Por quê não se divorciou de Adina se tinha a intenção de fazê-lo? O
filho não era seu.
Christos encolheu os ombros com elegância.
– Pode ser que não soubesse que estava grávida.
– Tinha que saber. Por quê não se casou com a senhorita Gardiner?
– Ah. – Baixou o queixo. – Embora me agradasse muito, parece que o
afeto e a companhia de uma mulher com a que se pode compartilhar sonhos
não é para mim. Não sou adequado para receber esse presente, ma belle.
Não era adequado.
– Christos? – Segurou sua enorme e bonita mão de artista. – Por quê não
é adequado?
Ele esboçou uma careta com os lábios e em sua boca se desenhou uma
onda. Depois girou suas mãos entrelaçadas.
– Tenho altos e baixos. – Afastou o tecido de renda que lhe cobria os
punhos da camisa. Tinha o punho cheio de cicatrizes entrecruzadas e
sobrepostas entre si. – Os baixos costumam ser muito profundos. E
nenhuma dama merece viver presa a isso.
Fez-se um silêncio entre eles e escutaram o movimento dos pés sobre o
convés, as conversas abafadas das quatrocentas pessoas e as notas baixas dos
violinos e flautas.
Ravenna sentou em uma cadeira e apoiou as mãos nos joelhos.
– O que podemos fazer para que possa voltar a se casar com seu duque com
a cabeça livre de preocupação, Bella?
– Oui, ma belle. Sua irmã fala com a cabeça e eu falo com o coração, mas a
ajudaremos. Por que estou seguro, tão seguro quanto de que eu seja um
homem, de que meu irmão não tem más intenções com você. Muito pelo
contrário.
– Parece-me que alguém está extorquindo os arrendatários de Combe, –
explicou Arabella – mas só me oferecem pistas, cheios de medo. Não tenho
nenhuma prova. E creio que a pessoa que está por trás de tudo isso é o bispo
de Barris, o irmão de Adina. E, entretanto, não tenho muitos fatos em que
basear essa acusação.
– Exceto o ódio que ele sente por meu irmão e sua forma de manipular
minha doce tia. E, a menos que Luc se converta em duque, meu tio será o
principal administrador de Combe.
– Mas isso não basta para demonstrar um crime – afirmou Ravenna.
– Então Arabella deverá encontrar alguma prova – replicou ele.
– Onde?
– Em seus aposentos privados.
– Acredita de verdade que um homem que comete crimes relacionados
com milhares de libras esconderia as provas de suas malfeitorias em uma
gaveta de seu escritório?
– Sim. – Piscou com seus intensos olhos verdes. – Já o vi antes. Malditos
idiotas. Pfff.
– Onde fica Barris? – Perguntou Ravenna repentinamente ansiosa. –
Iremos ali e...
– Barris é uma ilha do afastado mar do Norte, mon chou.
– Mas ele vive em Londres?
– Quando eu era menino, tinha uma casa próxima de Richmond. Meu
irmão e eu vivemos ali durante alguns anos.
– Ainda tem essa casa – explicou Arabella. – Adina o mencionou.
– Poderia ir lhe fazer uma visita, – sugeriu Ravenna – e quando ele sair do
cômodo, reviste o seu escritório. Li uma novela onde o protagonista fazia
isso.
– Ah, oui. E a arte sempre reflete a realidade, non, mon chou? – Perguntou
levantando a sobrancelha.
– Creio que deveria deixar de me chamar de “sua couve” ou nosso
parentesco começará a ser um pouco incômodo.
– Mas Richmond está muito longe, – disse Arabella – e depois tenho que
sentar e esperar que saia da casa.
Ravenna franziu os lábios.
– E estará cheia de criados.
– Então terá que ir quando saia para se entreter em Londres.
– E como saberá quando o fará?
– Acaso não está fazendo isso agora mesmo justamente encima de nossas
cabeças, mon...?
Ravenna o fulminou com o olhar. Ele riu.
– Talvez...
O coração de Arabella se acelerou. Queria ajudar Luc. Precisava ajudá-lo.
Esse era o problema que ele estava escondendo. Não tinha todas as peças:
não sabia por quê não queria compartilhá-lo com ela, nem o motivo pelo
qual a chegada de Christos tanto o havia tranquilizado.
Apertou os punhos.
– Nega-se a deixar que o ajude a proteger o povo de Combe.
– Ah, ma belle – interveio Christos. – Meu irmão sempre tenta proteger os
outros. Compartilhar essa carga lhe parece impossível.
Arabelle se levantou.
– Poderia ir à casa do bispo aproveitando que está aqui. Pode ser que não
volte a se apresentar esta oportunidade. Meu lacaio Joseph poderia vir
comigo. Vocês dois fiquem aqui e inventem desculpas para justificar minha
ausência.
– De seu próprio casamento?
Ravenna saltou da cadeira.
– Logo depois do casamento. Tenho que fazer isso, Venna. Quando
chegar, os criados me pedirão que espere que ele regresse, depois se
esquecerão de mim, e poderei revistar a casa à vontade. – Mordeu os lábios. –
Espero.
– Isso parece um disparate.
– Nom. Não é. A casa é simples e está vazia. Há poucos locais em que
procurar. Os criados são idosos e não se interessam muito pelas visitas.
– Na casa de um bispo?
– Na casa desse bispo. – Christos se levantou como se fosse um gato; era
esbelto e elegante. – Sei muito bem. Só um louco pode reconhecer outro
louco.
Enquanto Arabella estava na parte inferior do barco, a champanhe havia
fluído com abundância e a conversação estava muito animada. Assim como
sua imaginação. Fugir para Richmond para revistar a casa de um bispo em
busca de documentos que provavelmente não existem era uma estupidez. A
mesma estupidez que a havia conduzido a uma ruela escura de uma cidade
portuária que não conhecia, e que desencadeou a série de acontecimentos
que a levaram até ali.
Ficaram ali meia hora mais, até que um pequeno grupo de convidados e
familiares abandonou o navio com ela e com Luc para ir à igreja para celebrar
a cerimônia. Depois regressariam ao Victory para cear, bailar e desfrutar dos
fogos de artifícios. Adina não havia economizado nos gastos.
Arabella não podia esperar meia hora. Tinha que ver Luc. Procurou por
ele entre os convidados. Estava muito nervosa e, por mais que temesse seu
distanciamento, somente queria estar a sós com ele.
A princípio, pensava que esse nervosismo era o motivo dos olhares
estranhos que alguns dos convidados lhe lançavam; especialmente as damas,
que se escondiam debaixo de suas sombrinhas para evitar seu olhar enquanto
os cavalheiros viravam a cabeça para outro lado quando ela passava. Mas
estava imaginando tudo. Ninguém ignoraria uma noiva no dia de seu
casamento.
Serpenteou entre o pessoal que aguardava debaixo do toldo instalado na
parte frontal do navio, e se encontrou com Eleanor.
– Bella? – Franziu o cenho. – Tenho que lhe dizer uma coisa que me
parece que não lhe vai ser agradável. Mas que deveria saber.
“Luc.”
– O que aconteceu, Ellie?
– Acabo de escutar um rumor muito desagradável, porque sei que é um
rumor. Contou-me uma mulher que não creio que saiba que sou sua irmã.
– Diga-me, por favor. Rápido.
– Pelo visto, dizem que foi infiel ao conde, que tem um amante ou vários,
e que está ansiosa por convertê-lo em pai de um bastardo.
Arabella ficou sem ar nos pulmões e uma onde de calor se estendeu por
seu corpo e suas bochechas.
– É um rumor.
– Pois é claro que sim. Para mim é evidente que o adora, e ainda que não
fosse assim, tem demasiada integridade para fazer algo semelhante. – Eleanor
olhou ao redor. – Mas alguém está contando essa história. Veja essas duas
mulheres ali, nos olham como se fôssemos uma curiosidade em uma
exposição.
Não podia deixar-se abater por um rumor. Já se havia mantido firme
contra a crueldade e a falta de amabilidade em muitos momentos de sua vida.
O que a entristecia era que essa crueldade magoasse a Luc.
– A mulher que me contou disse que a informação deve ser verdadeira,
porque procede de uma fonte de dentro da família – explicou-lhe Eleanor. –
Mas não é a duquesa, é seu irmão, o bispo. Não lhe parece o mais
surpreendente que já ouviu nessa vida?
– Não. – Seu coração se acelerou. – O homem odeia Luc. Creio que o faz
para magoá-lo.
Por esse mesmo motivo tirava o dinheiro dos arrendatários de Luc. Mas
só queria prejudicá-lo ou seu objetivo era arruiná-lo completamente? Ou o
faria com alguma outra finalidade?
Tudo aquilo era demais. O desespero voltou a se apropriar de sua razão, e
o plano que Christos e Ravenna haviam traçado cada vez parecia menos
absurdo e mais próximo de ser sua única esperança.
Quando levantou a cabeça para procurar Luc, fez-se o silêncio entre as
pessoas. Oh, Santo Céu. Tinham que ir em solene procissão até a igreja
assim? Tinha a cabeça confusa e estava muito nervosa, não acreditava que
pudesse suportar isso.
Mas ninguém a estava olhando. Todos haviam-se voltado para outra
pessoa. De pé, no outro extremo da prancha, e sob um raio de sol que
passava por entre os apetrechos pendurados sobre suas cabeças, o bispo de
Barris aguardava com os braços cruzados sobre a enorme cruz que levava
pendurada sobre o peito. Via-se brilhar seu anel de ametista.
– Permitam-me que compartilhe estas notícias que afetam profundamente
a minha família com grande solenidade – disse com a segurança de um
homem acostumado ao púlpito.
Os convidados ficaram em silêncio, todo mundo o observava com a boca
fechada. Detiveram-se inclusive as sombrinhas das damas. Um terrível calor
subiu desde o útero de Arabella até seu pescoço e chegou até as pontas de
seus dedos. Ia declarar que ela era uma Jezebel diante de todo mundo. Aquilo
envergonharia Luc por toda a vida.
– Minha irmã, A duquesa de Lycombe, acaba de dar à luz. – Fez uma
pausa, e Arabella fechou os olhos. – É um menino.
Capítulo 17
A força de um homem
– Apenas lamento que meu querido amigo Theodor, – prosseguiu Fletcher
– a quem todos admirávamos, e que tanto amava sua mulher, – esboçou um
estranho e triste sorriso – embora fosse algo um pouco antiquado de sua
parte – ouviram-se algumas risadinhas entre as pessoas – não possa ver com
seus olhos seu filho e herdeiro. Mas tenho fé em que seu espírito descanse
em paz sabendo que sua esposa e seu filho estão bem. Gostaria de lhes pedir
que levantem suas taças comigo pelo novo duque de Lycombe. E por Lucien,
cuja boda honramos hoje, e que seguirá sendo o herdeiro até que assistamos
a outra boda dentro de um par de décadas.
Ouviram-se mais risadas e um tilintar de cristal.
A Luc não importava. Não sabia onde Arabella estava. Os maliciosos
rumores que circulavam pela festa já deviam ter chegado aos ouvidos dela.
Levantou a taça, aceitou os simpáticos gestos de seus amigos e se inclinou.
Depois todo mundo começou a falar. Deixou a taça de champanhe e abriu
passagem entre os convidados, buscando sua mulher. Seu limitado campo de
visão nunca lhe havia parecido tão frustrante.
Devia estar destroçada. Ou não. Não sua pequena preceptora de língua
afiada. Antes de aceitar aquela mentira, era mais provável que respondesse ao
escutar tal rumor.
Luc sabia que era mentira. O pensamento racional o abandonava sempre
que estava com ela, mas a conhecia bem.
– Buscando sua impressionante noiva, Westfall? – Tropeçou com um
capitão que havia conhecido durante a guerra. – Pode ser que tenha decidido
ir embora, agora que escutou que não será duquesa, não? Pobre diabo, perde
o título e a mulher no mesmo dia...
Riu e deu uma palmada nas costas de Luc. Estava bêbado. Ele o percebia
em seus olhos vermelhos. Estava fazendo piada. Era uma brincadeira. De
muito mal gosto e insensível, mas inocente.
E seria verdade?
Distante. Evasiva. Inalcançável. Arabella havia-se comportado de todas
essas formas desde que havia chegado à cidade. E antes disso... Na França
havia tentado escapar dele.
Não podia acreditar nisso. Ela já devia saber que, apesar de sua cegueira, a
encontraria onde fosse.
Estava tão nervosa que lhe custou muito descer da carruagem na frente da
modesta casa do bispo de Barris, na periferia de Richmond. Erguia-se
solitária no extremo de um extenso parque afastado da estrada principal e a
meio quilômetro da casa mais próxima, que parecia uma espécie de escola. O
rio fluía por detrás da vivenda, proporcionando-lhe uma fronteira natural na
parte posterior.
Arabella se dirigiu para a porta com muita determinação.
– Não creio que demore muito, Joseph. Suponho que uma hora.
– Gostaria de entrar com a senhora, milady.
– Não. Esta é uma missão de extraordinária delicadeza. Se entra, seu
imponente tamanho e seu olhar penetrante alarmarão o pessoal do bispo.
O lacaio franziu o cenho e fitou-a contrariado.
– Espere-me na carruagem. O conde ficará satisfeito de que o faça, se o
souber.
Se o conde soubesse, despediria Joseph e depois daria uma boa
reprimenda a Arabella. Verbal, claro. Luc jamais a havia tocado de uma
forma violenta.
Dirigiu-se à porta com as bochechas acaloradas e colocando a capa sobre
os ombros. Não havia parado para retirar o vestido de noiva; ainda não
estava preparada para fazê-lo. Queria que Luc o retirasse em sua noite de
núpcias, e queria que o fizesse muito devagar. Na realidade, esperava que o
fizesse aquela noite. A cerimônia da igreja deveria ter-se celebrado há uma
hora, mas ela não estava presente. Então aquela noite tampouco seria sua
noite de núpcias.
Mas podiam fingir que sim, assim que ele voltasse a lhe dirigir a palavra
depois de havê-lo abandonado no altar a saber que não seria duque.
O que diabos estava fazendo?
Mas as famílias dos arrendatários não podiam continuar sofrendo. O
bispo era o administrador do pequeno duque e, portanto, tinha o controle do
Combe. Jamais voltaria a ter essa oportunidade.
Bateu à porta utilizando o simples batedor de latão. Apesar das elegantes
vestes de bispo, sua casa não era nada ostentosa. Uma idosa mulher vestida
com uma musselina cinza lhe abriu a porta.
– Informe a Sua Graça de que a senhora Bradford veio visitá-lo.
– Sua Graça não está em casa. Terá que voltar mais tarde.
A mulher fez gesto de fechar a porta. Arabella a deteve com a mão.
– Não me importo em esperar.
Penetrou no vestíbulo branco.
A governanta estudou o elegante vestido de Arabella, sua capa e os
brincos de ouro e rubis que apareciam por entre seu cabelo. Depois fez um
gesto em direção a uma porta.
– Pode esperar aqui, senhora – disse, abrindo-a para fazê-la passar a um
salão. – Não tenho nem ideia de quando voltará. Seu sobrinho se casa hoje
na cidade.
– Sim. – Arabella passou um dedo por cima de uma mesa descoberta que
havia no centro do cômodo. – Creio que já ouvi sobre isso. Lerei enquanto
espero. Que maravilhosa coleção de livros.
– Não sei, senhora. Eu não costumo ler. Quer tomar um pouco de chá?
– Oh, a senhora é muito amável. Mas não, obrigada.
A governanta assentiu e fechou a porta quando saiu.
Arabella se levantou e se aproximou da porta. Mas não havia chave na
fechadura. Procurou por toda a habitação alguma gaveta que pudesse conter
uma chave, mas os únicos móveis eram a estante, a mesa e três cadeiras com
encostos retos acolchoados com veludo de um vermelho apagado. Se o bispo
estava desviando dinheiro dos granjeiros de Combe, estava claro que não o
estava empregando naquela casa.
Olhou entre os livros. Parecia o lugar mais evidente para esconder
documentos valiosos. Só encontrou dezenas de volumes impressos sobre
religião com intermináveis anotações nas margens escritas por uma mão
excessivamente bela.
Olhou detrás dos quadros pendurados na parede.
Nada. Mas não esperava mesmo encontrar os tesouros no salão.
Abriu a porta como se tivesse a intenção de chamar pela governanta e
depois ficou muito quieta e escutou. Não se ouvia passos em nenhuma parte.
A casa estava em silêncio.
Tirou os sapatos e fechou a porta ao sair. Pelo menos as dobradiças
estavam bem lubrificadas. Caminhou em silêncio até a porta seguinte e
voltou a ficar completamente imóvel. Do interior do local não saía nenhum
som. Caminhar descalço pela casa de alguém levantaria suspeitas, então
voltou a pôr os sapatos para o caso de que houvesse alguém no cômodo.
Era uma sala para as refeições. Estava tão imaculado como o vestíbulo e o
salão, mas era igualmente pequeno e simples. Nem sequer havia um armário
onde guardar um urinol. Não servia. E cada vez estava mais nervosa. Vaguear
nunca havia sido seu forte. Ela preferia enfrentar as coisas diretamente.
Exceto ultimamente. Estava se escondendo desde que havia lido as cartas
do secretário de Luc, evitando o que poderia lhe dizer se lhe daesse a
oportunidade.
Mas isso havia acabado. Quando aquela aventura imprudente terminasse e
voltasse a Londres, suplicaria que a perdoasse e lhe contaria tudo.
Voltou a tirar os sapatos, saiu da sala de refeições e fechou a porta. Desta
vez ouviu-se um rangido tão silencioso como uma ratazana, mas com o
silêncio que reinava em toda a casa, parecia o som de um gongo. Arabella
estremeceu e se deteve para escutar.
Os trinta segundos que aguardou se converteram em um minuto. Não se
ouvia nada. A governanta devia ter adormecido em alguma parte.
Subiu pela escada rezando para que os degraus fossem silenciosos como o
resto da casa do bispo. Suas orações foram respondidas: os degraus não
rangeram. Chegou ao patamar e pregou a orelha na primeira porta. Nenhum
som. Voltou a por os sapatos e a abriu.
Enfim.
Entrou no escritório do bispo e deixou os sapatos no umbral. O chão era
feito de simples tábuas de madeira, e estava coberto por um tapete vermelho
igualmente modesto que amortizava o som de seus passos. Uma enorme
mesa ocupava a metade do local. Os únicos objetos que havia encima dela
eram um tinteiro, uma pluma e mata-borrão, e uma única folha de papel em
branco. Havia outra estante idêntica à que havia visto no salão, uma mesa
pequena e duas cadeiras de encosto reto. O único objeto que rompia a
monotonia era um quadro pendurado na parede, em que se via um edifício
muito austero levantado sobre um amplo parque. Ao pé se lia: “Escola
Whitechapel. Reading, Inglaterra. Fundada em 1814”.
As cortinas estavam um pouco abertas e o sol da tarde entrava
diretamente no local. De fora somente se veria o reflexo do vidro.
Rodeou o escritório e testou a gaveta central. Abriu com facilidade.
Dentro viu um montão de papel para escrever, um abridor de cartas muito
grande em forma de cruz, uma faca para afiar lápis e uma pequena pistola.
Arabella pegou a faca e a pistola e os meteu no bolso da capa.
As gavetas que havia nos dois lados da cadeira estavam fechadas. “Não
podia ser de outra maneira.” Como não tinha fechadura nas portas, o bispo
devia ter alguma forma de garantir a privacidade de seus assuntos, ocultando-
os dos curiosos criados. Passou a mão por debaixo da gaveta central
procurando com os dedos alguma chave escondida, mas não tinha muitas
esperanças de encontrá-la. Meteu a mão até o fundo da gaveta e seus dedos
roçaram algo de metal. Tirou uma chave.
O bispo era um homem esquisito. Ou talvez tivesse os criados mais
entediados e menos curiosos de toda a Inglaterra. Ou pode ser que tivesse
criados com os braços muito curtos.
A chave abriu as gavetas que havia em ambos lados da mesa com
facilidade. Deslizou os dedos pelos documentos que encontrou. Cada vez se
sentia mais frustrada. Nada parecia especialmente estranho, só havia
correspondência com pessoal eclesiástico e arquivos da escola de
Whitechapel. Arabella não tinha nem ideia do que estava procurando. Havia
sido uma boba por tomar aquela decisão. Havia deixado Luc plantado ante o
altar e não teria nada com que se explicar diante de um marido furioso que
acabava de perder o ducado para as mãos de um filho bastardo.
Voltou a fechar as gavetas e deixou a chave em seu esconderijo. Respirou
fundo. Seria uma fraqueza aceitar a derrota tão cedo.
Não escutou nada no corredor, então repetiu a manobra anterior e
avançou até a porta seguinte. Era o dormitório, com fechadura na porta e
muito pouco mobiliado, embora nesse momento não estivesse ocupado: não
havia pertences pessoais sobre os móveis e a cama pequena não estava feita.
O cômodo seguinte era outro dormitório, também com fechadura e
igualmente vazio.
No terceiro cômodo encontrou utensílios para barbear, um ferro de passar
e um manequim vestido com a bordada veste clerical. Sua opulência
contrastava com o resto da casa. Até esse momento Arabella havia imaginado
que o bispo de Barris e o reverendo Caulfield eram iguais. Mas aquela
imagem mudou sua forma de pensar. O reverendo poderia passar um mês
dedicando seu sermão dos domingos a falar unicamente daquelas roupas.
Ficou no meio do dormitório com os braços cruzados e pensou em todos
os sermões sobre vaidade que seu pai adotivo lhe havia feito ao longo dos
anos. Um homem que exaltava sua aparência pessoal, mas que não parecia se
preocupar pelos luxos domésticos... O que havia dito sempre o reverendo
sobre sua vaidade e seu orgulho? Advertia-a de que podia esconder seu
cabelo e sua cara bonita, mas que debaixo deles sempre se esconderia a
mesma pecadora.
Ficou de joelhos sobre o solo encerado e olhou debaixo da cama.
Parecia muito fácil, como a chave da gaveta: debaixo da cama havia um
cofre de cedro. Arabella o puxou, se encolheu quando ouviu o ruído que fez
ao arrastá-lo pelo solo e o abriu.
Deixou os ombros caírem. Mais documentos sobre a escola Whitechapel.
Suspirou com força e revistou entre eles.
Seus dedos se detiveram sobre o papel.
Na folha leu os sobrenomes dos arrendatários de Combe junto a cifras em
libras. Também estavam os nomes. Eram todos homens, sem dúvida os
chefes das famílias a quem estava extorquindo.
Franziu a testa. O senhor Goode se chamava Thatcher. Mas o nome que
aparecia junto ao sobrenome Goode naquela lista era Edward. Fechou os
olhos e recordou a cozinha da senhora Goode quando visitou a granja pela
segunda vez: a leiteira suja, o prato de biscoitos sem gosto e os sorrisos que
lhe dedicaram os três filhos dos Goode quando lhes deu balas. John, Michael
e o mais novo, Teddy, que havia recebido seu nome pelo seu avô Edward –
Ora, ora. Uma dama no dormitório de um bispo. Pensei que não viveria para
ver isso.
Arabella levantou a cabeça.
O homem que estava na porta era alto, corpulento e tinha uma barriga um
tanto grande que se apertava contra o tecido do colete. Olhava-a com olhos
apertados e estava muito despenteado. Brincava com um palito que levava
entre os lábios com os dois primeiros dedos da mão esquerda, mas não tinha
o polegar.
Arabella soltou os papéis, levantou-se e retirou uma poeira imaginária da
saia. Segurava os sapatos na outra mão.
– Isto não é o que parece; posso explicar.
O homem rodou o palito com os lábios e assentiu com ar pensativo.
– Na realidade, espero que seja tal como imagino, – disse esboçando um
sorriso – comtesse.
O arcebispo de Canterbury pediu a Luc que fosse buscar sua noiva e se
apressasse na igreja para celebrar a cerimônia. Mas Luc não podia lhe dizer
que sua noiva havia desaparecido porque isso o exporia a mais fofocas.
Fletcher aguardava sob o toldo como se fosse o noivo, aceitando
felicitações com serenidade como se fosse o cabeça da família, e sem
aparente pressa para por fim a seu momento de glória. Mais próximo do
porto, as irmãs de Arabella aguardavam junto ao cais, afastadas do resto dos
convidados. Ravenna lançou um rápido olhar a Luc e depois afastou os olhos
repentinamente.
Luc dirigiu-se a ela com o coração apertado.
Christos seguiu seus passos.
– La Jolie brune não teve nada a ver com isso. Eh, bien, muito pouco.
– Nada a ver com quê? Onde está minha mulher, Christos?
Seu irmão deu meia volta e foi para a escadinha. Por ela subiam um sem
fim de criados com bandejas cheias de delícias. Deixou-os passar e depois
correu escadas abaixo. Luc o seguiu por entre os canhões do convés inferior.
– Por que diabos não encontro minha mulher? – Perguntou-lhe quando
por fim seu irmão o conduziu ao camarote do capitão. – E o que você tem a
ver com isso?
Christos o olhou fixamente.
– Ainda não sabe? Do nascimento do filho de sua tia?
– Pois claro que sei.
– E não se sente infeliz?
– Pois claro que sou infe... Claro que sim. E decepcionado. Mas estou
muito mais preocupado em saber como Arabella reagiu a essa notícia.
Os olhos de seu irmão se iluminaram refletindo o sorriso que Luc
recordava de sua infância, antes que seu pai morresse e o mundo
desmoronasse a seus pés.
Então Christos ficou sério e levantou a palma da mão.
– Não tenha medo. Não o abandonou. Na realidade foi para ajudá-lo.
– Ajudar-me? É uma bruxa e tem poderes para transformar o bebê em
uma menina?
Seu irmão sorriu novamente.
– Ah, que seja capaz de brincar em um momento como este... – Negou
com a cabeça. – assusta-me, mon frère.
– Isso me faz muito feliz. E agora fale, Chris.
O rapaz baixou a cabeça e entrelaçou as mãos.
– Ela teme pela segurança do menino e seu patrimônio.
– O quê?
– O guardião do menino, – esse homem – arruinará Combe. Arabella
acredita que já o fez, e está buscando alguma prova.
– Maldição, Christos. Fletcher não é o único tutor do menino. Eu também
o sou. Ele não terá controle absoluto sobre o pequeno e nem sobre Combe.
– Mas controlará nossa tia, como sempre fez.
– Pois levarei Adina e seu filho para longe de sua zona de influência. Por
exemplo, à casa de Durham. E se isso não bastar, Rallis bastará. Fletcher
jamais cruzará o canal.
– E o que ocorrerá se morrer, mon frère? – Perguntou Christos com
segurança. – Quem protegerá o jovem duque então?
Luc ficou olhando seu irmão com uma dor no peito.
– Você se lembra. Não é?
– Me lembro do quê? – Christos fez um gesto com a mão para mudar de
assunto. – Irmão, la belle me fez prometer que lhe ocultaria uma informação
que, entretanto, devo dizer-lhe agora.
– Por quê agora?
– Antes sabia que admirava sua beleza e valentia. Agora sei que ama seu
coração.
Mais que a sua vida.
– Que informação é essa, Christos?
– Ela saiu.
O estômago de Luc se apertou.
– Para onde?
– Não posso lhe dizer. Fiz um juramento. E um homem que rompe uma
promessa a uma dama não é um homem. Mas levou seu leal lacaio.
– Maldição, Christos. Diga-me.
– Aonde iria agora se fosse ela?
– O mais distante possível de Absalom Fletcher que pudesse.
– Ah. – Christos levantou o dedo indicador. – Mas perguntei-lhe o que
faria se fosse ela, não você.
“Não.”
– Maldita seja. Como pôde permitir isso?
– Eu não tenho nenhuma autoridade sobre ela, mon frère, nem sequer sobre
mim mesmo. E ela queria fazê-lo.
– Mas por quê...?
Pour toi, claro.
Por ele.
Havia-lhe falado de Fletcher... havia contado a verdade...
Luc trocou a espada decorativa que usava no cinturão por um florete que
tirou do baú de armas de Tony, pegou uma pistola e meteu uma faca na bota,
onde tinha uma presilha costurada para escondê-la.
– Fletcher não estará ali. – Explicou seu plano em voz alta enquanto ia
imaginando-o. – Agora está aqui. Depois irá visitar sua irmã e o menino,
talvez fique ali durante o resto do dia. É um plano muito astuto.
– Merci.
– Mas não servirá de nada. Fletcher não é tão bobo para ir deixando
provas de suas tramoias por aí. Estarão bem escondidas. Veio a cavalo?
– Em um muito bom.
– Traga-o para mim.
Christos o seguiu pelo convés dos canhões. A irmã mais nova de Arabella
desceu as escadinhas. Seu olhar saltou de Luc a seu irmão.
– Disselhe aonde foi? – Perguntou a Christos.
Ele pousou a mão no coração.
– Fiz um juramento, mademoiselle.
– Pois eu não, chou. – Dirigiu-se a Luc. – Foi à casa que o bispo tem em
Richmond.
Luc já estava subindo as escadas de três em três degraus.
– Apresse-se! – Gritou-lhe enquanto saía.
Não precisava que o animassem. Mas deteve-se e olhou para seu irmão.
– Christos, como é possível que, desde dezembro, Fletcher tenha
conseguido um retrato que você fez?
Seu irmão franziu a testa.
– Em março fiquei sem fundos. Vendi todo meu trabalho nas ruas de
Paris a um siciliano e a seu amigo inglês. Depois fiz um desenho do inglês.
Esse homem era uma besta, mas era interessante: só tinha um polegar.
Os assassinos sicilianos de Saint-Nazaire estiveram com o cocheiro de
Fletcher em Paris.
– E entre as coisas que compraram havia um retrato meu?
– Mais oui. Gostava muito desse desenho. Parecia muito feroz. Comme um
pirate. – Encolheu os ombros. – Mas posso lhe fazer outro.
– Primeiro fará esse retrato de minha mulher. – Luc subiu as escadas
apressadamente. – Como se fosse uma princesa.
Como merecia.
– Confunde-me com outra pessoa – disse Arabella. – Eu sou a senhorita
Bradford. Vim visitar Sua Graça para...
– Seu sobrenome é Westfall. E veio espiar entre os assuntos privados de
Sua Graça. – O homem retirou o palito dentre os lábios e o meteu no bolso
do colete. – E não podemos permitir isso.
– Não sei a que se refere. Só havia cansado de tanto esperar que o bispo
regressasse e a governanta me disse que podia descansar aqui. – Deixou seus
lindos e pouco práticos sapatos rosa de noiva no chão, se calçou e começou a
caminhar até ele. – Entretanto, agora que já sei que é o dormitório pessoal do
bispo, não creio que seja tão boa ideia. – Deteve-se diante dele. – Gostaria de
regressar ao salão.
– De forma alguma.
Ficou diante dela como se fosse uma enorme rocha de malícia. Joseph era
pelo menos igualmente alto e menos gordo. Mas seu lacaio estava na
carruagem.
Havia fracassado. Havia envergonhado Luc duplamente, provocando
escândalo após escândalo, e esse último por vontade própria. Inclusive, ainda
que não tivesse planejado deixá-la, era muito possível que o fizesse depois
daquilo. Grande festa para os fofoqueiros! “O bispo acusa de infidelidade
uma preceptora convertida em comtesse, e depois a encontram sem sapatos no
dormitório do bispo.” As novelas que Ravenna lia não poderiam inventar
uma história melhor.
A rocha de olhos entrecerrados a segurou pelo braço, arrastou-a até outro
cômodo e a trancou dentro, cortando pela raiz seus distraídos pensamentos.
Arabella golpeou a porta.
– Deixe-me sair agora mesmo – ordenou com sua voz mais autoritária. –
Agora mesmo!
– Esperaremos que seja Sua Graça que o decida – respondeu-lhe o
homem do outro lado da porta.
– Mas a governanta disse que demoraria muito tempo a voltar para casa.
Não pode me deixar aqui trancada até então. É intolerável.
E tão aterrorizante como nunca havia imaginado. O cômodo era pequeno
e viu que havia grades na janela, do mesmo tipo que se viam nas casas de
certas vizinhanças de Londres. Mas a casa do bispo estava em um parque
particular. Ali não podia haver muitos ladrões.
Era muito possível que a função das grades não fosse a de não deixar
entrar os ladrões, mas sim de não deixar os convidados saírem.
Afastou-se da porta.
– Isto é um sequestro – gritou. – Irá para a cadeia por isto. Ou enforcarão
você.
– Somente se viver para contar isso.
Alguns passos pesados percorreram as grossas tábuas do corredor e se
perderam escada abaixo.
Arabella se deixou cair sobre a cama e começou a tremer.
Quinze minutos mais tarde, depois de ter aberto a janela tipo guilhotina e
ter comprovado se passava por entre as barras da grade, que verificou ser
muito estreita, pos-se a golpear a porta e a gritar. Talvez a governanta a
escutasse, ou mesmo Joseph.
Seu carcereiro regressou em seguida e Arabella imaginou que não havia
ido muito longe.
– Se não se calar, amarrarei suas mãos e a amordaçarei – rugiu através da
porta fechada.
– Está bem. Mas antes gostaria de lhe perguntar uma coisa.
Não escutou nenhum som do outro lado da porta.
– O bispo o paga bem? – Perguntou. – Refiro-me a se seu salário está de
acordo com o dinheiro que desvia de forma ilegal da propriedade da família
de meu marido.
– Meu salário é assunto meu – rugiu como um cão de rua.
Mas não se foi. Arabella deu um pequeno e silencioso salto de vitória.
– Perguntava-me porque, segundo os documentos que há embaixo da
cama, os que estava olhando, o bispo é um homem rico. Muito mais rico do
que sugere esta casa. Na realidade, com sua renda anual poderia ter uma casa
quatro vezes maior que esta, se quisesse. Vá comprová-lo você mesmo. Está
tudo nos papéis que tem escondido.
Silêncio.
Então o homem disse:
– Deve ter empregado em uma escola que tem em Reading.
– Sim. A escola Whitechapel – disse, exibindo-se.
– As famílias desses pobres meninos não podem pagar e suponho que têm
que comer.
Pobres meninos?
– Mmm, assim suponho. – Mordeu o lábio muito nervosa. – Mas é de se
supor que poderia compartilhar parte do que sobra com você e com os
demais criados, não?
– Aqui só estamos eu e a senhora Biggs – disse. – E eu não sou nenhum
criado. Eu somente conduzo a carruagem quando há algum trabalho.
– Se conduz uma carruagem para ele, temo que seja seu criado – disse,
cruzando cuidadosamente a fina linha que separava a possibilidade de instigar
uma rebelião contra seu senhor do risco de inspirar mais aversão contra ela.
– Ele disse que sou seu sócio.
Parecia desconfiado. Não era a melhor reação.
– Não é seu sócio se não está lhe pagando um salário justo e de acordo
com o trabalho que faz. – Fez uma pausa. – Mas eu sim posso fazê-lo sócio.
Fez-se outro silêncio. Agora mais longo.
– O que me oferece?
Arabella inspirou fundo e fechou os olhos com força.
– Um anel de ouro e rubis. – Seu coração se acelerou. – Um anel de valor
inestimável. O rubi é muito grande. Poderia retirá-lo, fundir o ouro e vendê-
lo, e ninguém poderia acusá-lo – apressou-se em acrescentar. – E se o aceitar,
não contarei a ninguém. Tampouco me interessa que se saiba que estive aqui,
e também não penso em explicar como conseguiu essa joia. Imagine: poderia
comprar um novo colete e tirar o que usa; já não lhe cabe. Poderia comprar
dez coletes novos e também uma casa própria. Nunca teria que voltar a
trabalhar para ninguém. De tão valioso que é esse anel.
Quando acabou seu discurso, tinha as mãos úmidas e trêmulas. Meteu
uma mão no bolso para pegar o único objeto de valor que havia tido... até
que se converteu em comtesse e o lorde que lhe havia roubado o coração
tentou lhe presentear com uma tiara digna de uma duquesa. Havia pegado o
anel antes de sair precipitadamente para Richmond. Mas quando o fez não
sabia o motivo.
Por fim o sabia. Era o destino.
Aguardou uma resposta com o estômago embrulhado.
– Pelo que quer trocar?
– Por minha liberdade e os documentos. Solte-me e deixe que leve esses
papeis, e eu lhe darei o anel.
– Como sei que cumprirá sua parte do acordo?
– Terá que confiar em mim.
Então escutou ao longe como alguém batia à porta.
Seu captor rosnou e desceu as escadas. Arabella pregou a orelha à porta,
mas a madeira era grossa e não ouvia nada. Talvez Joseph tivesse se
impacientado. Deus, esperava que não acabasse ferido por culpa de sua
ingenuidade. Mas não havia ido preparada. Sua desconfiança nos homens
nunca havia sido exposta a esse tipo de maldade.
Passos voltaram a soar na escada, mas já não eram os pés pesados de seu
captor, mas sim os passos de outro homem, seguros e firmes. Atrás deles se
escutavam as potentes pisadas de seu captor.
Arabella se afastou da entrada apertando a capa ao corpo.
A porta se abriu. Seu coração parou.
Luc entrou com as mãos atadas nas costas. Detrás dele vinha seu captor e
também a governanta.
– Desate-me agora mesmo – disse com a mesma calma com que pediria a
seu mordomo que lhe servisse a ceia.
O carcereiro o empurrou para adiante. Em suas mão brilhava uma pistola.
– Ela pode fazê-lo.
Luc se aproximou de Arabella e se virou de costas.
– Por favor, duquesa.
As mãos de Arabella tremiam enquanto o libertava. Quando acabou, Luc
estirou os braços para a frente e esfregou as munhecas.
– Jogue a corda aqui – ordenou-lhe seu captor.
Arabella olhou para Luc. Ele assentiu. Lançou a corda para a porta.
– E agora me dê o anel, milady – disselhe entrecerrando os olhos.
– Eu... – negou com a cabeça. – Não o tenho.
O homem engatilhou a pistola e se escutou um lúgubre clic.
– O anel. Agora. Ou crê que sua senhoria preferirá que o amarre enquanto
procuro o anel como gosto? – Sorriu. – Esse seria um bonito presente de
casamento, não?
Luc estava pálido.
Ela meteu a mão no bolso, tirou o anel e se agachou para fazê-lo rolar
pelo chão. Fez um suave som metálico ao rodar e se deteve junto ao pé dele.
A governanta o pegou e o meteu no bolso.
O captor deu um passo atrás, fechou a porta e a chave tiniu na fechadura.
Junto a ela Luc tremia com os dentes apertados.
– Não posso começar a... Não sei como... – balbuciou Arabella. – Sinto
muito. Jamais imaginei que um bispo pudesse ter uma coisa assim. Por quê
está aqui? Por quê permitiu-lhe que...?
Agarrou-a pela munheca. Tinha a mão gelada.
– Não – declarou com um tom de voz diferente. Soltou-a e se aproximou
da porta. Pousou a mão sobre a maçaneta muito devagar. Girou-a e a porta
continuou trancada.
– Fechou-a com chave – explicou ela de forma irracional. – Teria gritado
para lhe avisar, mas não o ouvi até que já estava no alto da escada. É uma
porta muito grossa...
– Já sei – disse ele com essa voz áspera. – Eu deixei que o fizesse.
Inspirou fundo e apoiou a testa na porta apoiando as mãos na madeira.
– Luc?
– Temo, preceptora, – começou após outro estremecimento – que eu
esteja a ponto de desabar como devem ter feito muitas de suas alunas.
– Luc?
– Parece que não estou passando bem.
Aproximou-se dele e lhe tocou a face. Tinha a pele fria e úmida.
– Esta manhã não estava doente. É como lhe tives... Oh, Deus!
Envenenaram você?
– Não – disse contrariado. – Embora isso teria sido preferível.
– Então, o quê...?
– Quando tinha dez anos...
Inspirou fundo pelo nariz com todo o corpo rígido.
Arabella nunca o havia visto tão doente, nunca o havia visto de outra
forma que não fosse forte e com vitalidade. Exceto quando estava morrendo.
Acariciou seu rosto e pousou as mãos em suas bochechas.
– Quando tinha dez anos, depois que seu pai morreu?
Tinha a testa suada.
– Fletcher trouxe você e seu irmão para viver aqui, não é?
– Este era meu dormitório.
Ela olhou para trás. Não era mais que um cubículo mobiliado com uma
cama pequena, uma mesinha e uma só cadeira. Era um local espartano e os
móveis eram velhos, não era muito diferente de um dormitório de orfanato.
– O que fez, Luc? – Perguntou, vendo com claridade a parede de azulejos
do dormitório para qual faziam que olhasse cada vez que a diretora do
orfanato lhe açoitava as costas com uma vara. Era como se estivesse diante
de cada fenda e buraco dessa parede de azulejos descoloridos. – Açoitava-o
nesse cômodo?
– Nada tão comum – disse soltando uma áspera gargalhada.
Segurou sua mão. Ele entrelaçou os dedos com os seus.
– Matava-nos de fome – disse. – Negava comida durante dias, às vezes
durante semanas. Dizia que aprender a suportar a fome era uma forma de
disciplina. Dizia que homens como nós, que algum dia seriam ricos e
poderosos, devíamos aprender disciplina enquanto fossemos jovens.
Trancava-me cada noite neste cômodo prometendo que me daria o desjejum
pela manhã, mas só se não me queixasse a seu assistente ou à governanta.
Prometia o mesmo a meu irmão...
– Oh, Luc.
– Mas entrava no cômodo de meu irmão e se trancava com ele.
O estômago de Arabella se revolveu e sentiu frio.
– Oh, Santo Céu.
– Disse-nos que Deus nos castigaria se contássemos a alguém. Mas eu
nunca acreditei. Afinal de contas, Deus havia feito o meu pai. E ele havia-me
ensinado como podia ser um homem bom.
Uma lágrima lhe resvalou pela bochecha.
Arabella o abraçou. Luc se inclinou para ela, enterrou a cara em seu
ombro e tremeu com força entre seus braços.
Quando se afastou, tinha as bochechas úmidas. Ela estendeu o braço para
limpar-lhe as lágrimas, mas ele não deixou. Afastou-lhe a mão e limpou a
umidade com uma mão trêmula.
– Sabia que me coloquei em perigo? – Perguntou ela.
Luc não respondeu.
– O que fez? – Sussurrou Arabella.
– O que foi necessário para me assegurar que não ficasse sozinha com
eles. Tenho que admitir que não esperava que me recebessem na porta
empunhando uma pistola nem que me poria a tremer.
Arabella levantou o olhar.
– Não deveria ter feito isto.
– Não podia fazer outra coisa.
– Mas você...
– Arabella, já chega.
– Mas depois de tudo o que fiz, – tanto hoje como nos outros dias – e o
que deve acreditar... Por que fez isto por mim?
– Eu morreria por você. – Suspirou com força, a rodeou e cruzou o
cômodo. – Mas não esta noite. Já não sou nenhum menino e esta é uma casa
como outra qualquer. – Abriu a janela, apoiou uma mão no parapeito e
estirou o braço por entre as barras de ferro. – Esse grosseirão me obrigou a
lhe entregar a espada e a pistola. Inclusive a faca que levava na bota. Mas não
me tirou todas as armas a meu alcance.
Fechou o olho e empurrou a barra que estava junto ao ombro.
– Luc. – Aproximou-se dele. – Luc, não o faça. Se machucará...
Lançou-lhe um rápido e satisfeito olhar.
– O que poderia ter feito então se tivesse tido a força de um homem. –
Colocou o ombro debaixo da barra seguinte. – Embora pudesse ter-me
limitado a matá-lo – afirmou enquanto empurrava. Todas as veias do pescoço
sobressaíram. – E acabar em um barco a caminho da Austrália. – A barra se
desprendeu e se deslocou um momento antes de desaparecer. – Isso teria
sido inconveniente.
Desceu do parapeito e esfregou as mãos.
– O que fez?
– Não se surpreenda tanto. Um homem aprende alguns truques depois de
passar uma década no mar.
– Mas...
– Um mau projeto. – Fez um gesto em direção às barras de ferro com
uma mão trêmula. – Já o sabia antes, mas não era suficientemente alto para
chegar a elas e nem forte o suficiente para soltá-las. – Percorreu-a com o
olhar. Seguia tenso, mas estava tentando ocultar seu medo, por ela, por seu
orgulho ou talvez por ambas as coisas. – Embora seja inconveniente que
agora pese muito para descer pelo cano que está colado na parede de fora.
– Mas eu não. – Olhou pela janela. O jardim era tranquilo e estava cheio
de árvores. Se conseguisse descer, encontraria muitos lugares onde se
esconder quando escapasse. O cano parecia robusto. Voltou-se para ele. –
Não irei sem você.
– Terá que fazê-lo.
– Não posso deixá-lo aqui com essas pessoas.
– Arabella, isto não é uma discussão. Saia pela janela, desça pelo cano e vá
correndo pedir ajuda. A vala que rodeia o jardim tem uma porta no lado
norte. A encontrará seguindo o curso do rio até um pequeno bosque. Do
outro lado das árvores encontrará a vala e a porta. Vá agora.
– Mas e Joseph e meu cocheiro? Minha carruagem...
– Antes de que chegasse, esse grosseirão foi até sua carruagem. Encontrei
o cocheiro escondido entre alguns arbustos completamente aterrorizado, e
Joseph estava ferido.
Arabella levou a mão à boca.
– Que tipo de ferimento tinha?
Havia sido baleado. Enviei-os para casa.
– Dispararam nele? Mas...
– Arabella, o bispo de Barris já tentou me matar em duas ocasiões, com
veneno que roubou aquele rapaz de meu navio e com uma faca na praia de
Saint-Nazaire.
– Mas aqueles homens...
– Eram assassinos contratados. Fletcher quer me eliminar para poder
controlar a riqueza de Combe através do filho de minha tia. E embora
imagine que teria preferido se desfazer de mim na França, não descarto que
tente fazê-lo aqui. – Aproximou-se dela. – Agora você...
A chave soou na fechadura.
Luc puxou as cortinas e ocultou as barras desaparecidas. Quando a porta
se abriu, se posicionou no meio do cômodo.
Seu captor entrou no dormitório, seguido da governanta e apontou para
Arabella com a pistola.
– Não a quer. Tem que ir.
Arabella ficou gelada.
– Ir?
– Para casa – alfinetou-a como se ela fosse uma imbecil.
Luc lhe rodeou a cintura com o braço.
– Ela não irá a nenhum lugar sem mim.
– Não quero ouvir nem uma palavra mais, milord. Ela se vai.
Luc meteu a mão no bolso da capa de Arabella, sacou a pistola e colocou
sua mulher atrás dele em um rápido movimento.
– Vejamos, – disse – calcule as possibilidades que tem de disparar e me
atingir em alguma parte vital do corpo, e a velocidade com que posso
disparar contra você, coisa que asseguro que posso fazer muito rápido e com
boa pontaria. Está calculando? Bem. Agora solte a arma.
Surpreendentemente, o homem fez o que Luc ordenou. A cara da
governanta era impagável.
– Afastem-se da porta – ordenou Luc.
Os dois obedeceram.
– Duquesa, – disse cruzando a porta – pegue essa pistola e me entregue.
Arabella fez o que lhe pedia. Luc meteu a pistola do bispo no bolso e deu
um passo adiante fazendo gestos a sua esposa para que passasse por detrás
dele. Ela correu para as escadas.
Tudo correu em um instante: a governanta tirou algo que levava na mão e
uma nuvem cinza estourou sobre eles. Os dois criados taparam os olhos com
as mãos. Luc cambaleou para trás cobrindo a cara com a mão.
– Arabella – ofegou. – Corra.
Correu. Mas não foi bastante rápida. Seu captor a segurou pelo ombro,
deu-lhe meia volta e lhe golpeou a cabeça com o punho.
Dor. Seu estômago se revolveu. Tentou se agarrar a algo, mas suas mãos
só encontraram o denso corpo daquele homem. Golpeou-o. Ele a agarrou
pelos punhos, os imobilizou e a girou para jogar escada abaixo. Luc se lançou
para eles. O homem soltou Arabella e deu um soco na mandíbula do comte.
Ela procurou ir em sua ajuda, mas a governanta agarrou-a pelo cabelo.
Quando Luc se levantou, o patife lhe apontou a pistola.
– Não! – Gritou Arabella. – Farei o que queira. Prenda-me. Faça o que
quiser. Mas não o machuque. Suplico-lhe!
O homem voltou a prendê-la no dormitório. A porta se fechou e escutou
o ruído da chave ao girar.
Não perdeu mais tempo em continuar suplicando. Retirou a capa,
aproximou-se da janela, afastou a cortina e subiu no peitoril.
O chão estava muito longe. Agarrou-se no cano, encontrou um prego
onde apoiar o pé e rezou.
Mais que descer, deixou-se cair. Seus pés bateram com força contra o solo
e caiu. Depois ficou de joelhos (estavam arranhados e ensanguentados por
causa da violenta descida) e saiu correndo pela lateral da casa.
Então viu algumas figuras se movendo próximo ao rio, e pregou as costas
contra a parede da casa.
De longe viu como o empregado do bispo empurrava Luc com a pistola.
Seu esposo resistia, mas como voltava a ter os braços amarrados nas costas
não parecia ter muito equilíbrio. Seu captor levantou o braço, golpeou-o na
cabeça com a culatra da pistola e Luc cambaleou. Continuou caminhando,
mas o homem o empurrou até a margem do rio, onde havia um pequeno
bote com remos. Quando Luc levantou a cabeça muito devagar e com
aspecto de estar muito machucado, o homem limitou-se a ficar ali de pé sem
sequer apontar a seu prisioneiro com a pistola.
Luc olhou para o lado. O homem jogou a cabeça para trás e riu, mas
Arabella não pôde escutar o som de sua risada, que se perdeu entre o ruído
do rio e as intensas batidas de seu próprio coração e sua respiração agitada.
Seu captor deu um passo adiante e voltou a golpeá-lo; Luc cambaleou para
trás. Depois o empurrou com força e o atirou no rio.
Arabella apertou os lábios para reprimir um grito e se agarrou à parede
que tinha às costas. Se a visse, tudo estaria perdido.
Seu coração estava gritando. Luc tinha as mãos amarradas. Só dispunha de
alguns minutos para ajudá-lo.
O homem ficou olhando a água durante um momento, depois deu meia
volta e voltou para a casa. Quando cruzou a esquina da estrutura, Arabella
começou a correr.
Capítulo 18
O touro e o javali
A corda estava molhada e rígida, e os nós não obedeciam a seus dedos.
Além do mais, estava afundando muito depressa. E estava ficando sem ar.
Agitou o braço debaixo da água. O cortador de ponta de pluma que
Arabella levava no bolso da capa resvalou do interior de sua manga até cair
na palma da sua mão.
Cortou os pulsos e os dedos, mas no final alcançou a corda e soltou as
mãos. Começou a nadar, mas um ombro bateu contra uma rocha. A
correnteza estava arrastando-o. Luc conhecia muito bem aquele rio. Mas não
via nenhuma luz, não podia se guiar pelos raios de sol para se orientar. Seus
pulmões precisavam de ar. A voz de Arabella gritando seu nome chegou até
ele através da escuridão e o ruído. Um sonho. Uma ilusão. Os homens
desesperados ouviam cantos de sereia nas profundezas do mar. Arabella era
sua sereia. Sempre havia sido, chamava-o por entre o borbulhar e correnteza
do rio, por entre a confusão de sua cabeça.
Saiu à superfície. Respirou fundo. A noite o envolveu. A escuridão era
absoluta.
A voz de Arabella voltou a chamá-lo. Seu sonho. Mas desta vez estava
mais próxima.
Era real.
Localizou aquele doce e estridente som. Voltou o corpo em sua direção e
nadou contra a correnteza.
Arabella viu-o brigar, afundar e desaparecer.
O remo lhe resvalava entre as mãos, a cabeça dava voltas, a água se agitava
com fúria e a luz prateada do sol refletia sobre a superfície. Não podia vê-lo.
– Luc! Oh, Deus, Luc, onde está? – Gritou. – Luc!
Inclinou-se para a frente e meteu o remo na água, mas já estava passando
pelo local em que havia afundado e se deslocava a toda velocidade para
adiante. O barco se chocou contra uma rocha e sacudiu para um lado.
Arabella inspirou fundo. O remo colidiu contra outra rocha e voou disparado
de suas mãos. Lançou-se para pegá-lo e o bote se inclinou.
A jovem caiu no rio e afundou agitando os braços e rodeada pelo tecido
de sua saia. A água estava entrando por sua boca. Engoliu enquanto se
esforçava para manter a cabeça fora da água, tossia e agitava as pernas
enredadas na saia. Afundava. Iria se afogar. Seu pesadelo estava se fazendo
realidade. Não poderia dar a notícia a Luc. Levaria com ela o filho do comte.
O rio a engolia e a arrastava para baixo.
Braços forte a rodearam, levantaram e a retiraram da água. Arabella
inspirou fundo, cuspiu e respirou.
Luc a rodeava com os braços, sustentava-a por cima da água e a puxava
para fora.
Deixou-a na margem.
Colocou as mãos no rosto e lhe afastou o cabelo dos olhos. Arabella
tossiu e então se encontrou sobre seu colo. Luc estava abraçando-a e suas
bochechas se encheram de lágrimas quentes.
– Duquesa – disse com aspereza. – Duquesa – repetiu, uma e outra vez,
pousando os lábios na testa e nas bochechas dela. Ela procurou sua boca
com os lábios e se fundiram em um beijo. Luc lhe segurou a cabeça com as
mãos e estreitou-a contra seu corpo.
Ela enredou os dedos em sua camisa. Era tão quente, sólido, forte e
completo. Já havia passado muito tempo sem ele. Queria entrar nele.
Então Luc se separou dela de repente e agarrou-a pelos ombros.
– Em que margem do rio estamos? Na da casa?
Ela negou com a cabeça.
Agarrou-a com mais força.
– Em quê margem? Fale!
– Na outra. – Pousou a mão na cara dele. Tinha o olho fechado, vermelho
e inchado, e estava franzindo o cenho. Na sobrancelha se via uma batida
muito feia. – Descemos pelo rio algo como cem metros. E passamos ao
pequeno bosque.
Puxou-a para que se levantasse. Havia cortado as mãos em uma dezena de
lugares.
– Pode ver a vala? – Perguntou Luc, inclinando a cabeça.
Arabella assentiu.
– O quê...?
– Vê a vala?
– Sim! Mas não enten...
– Eu não vejo, Arabella. Você tem que encontrar o caminho até a vala. E
rápido. Em seguida descobrirão nossa ausência.
“Luc não via?”
– Sim. Sim.
Arabella entrelaçou o braço com o seu e o afastou do rio apressadamente
em direção ao bosquezinho. Arrastava a saia e os pés estavam instáveis. Luc
tropeçou diversas vezes, mas ela se agarrou a ele, compartilhou com ele a
pouca força que tinha e lhe emprestou os olhos.
Luc estava batendo à porta durante quase um minuto antes que Arabella
ouvisse o ruído dos ferrolhos. Então aquela enorme porta se abriu.
A comtesse estremeceu. Estava congelada e tinha o vestido empapado
colado à pele.
A jovem que os recebeu ficou olhando-os com a boca aberta.
– Sou o conde de Rallis e esta é minha esposa – disse Luc apertando os
dentes para evitar que batessem. – Gostaríamos de ver imediatamente à
senhora da casa.
Pouco minutos depois, Arabella estava sentada diante de um fogo em um
confortável salão decorado em tons ambarinos. Apertou a manta que lhe
haviam dado ao redor do corpo.
– Não acreditava que poderia passar mais f-frio que aquela noite em seu
barco – gaguejou. – Acredita que nos darão um pouco de conhaque?
Luc nada disse. Ficou de pé a seu lado agarrando-se ao encosto da
poltrona.
Quando se abriu a porta, uma mulher se caminhou diretamente para, eles
arrastando as pontas de seu simples vestido escuro.
– Bom dia, milord. Milady.
Fez uma reverência. Não era jovem. Tinha algumas mechas prateadas
entre os cabelos castanhos e sua voz era madura.
Luc se inclinou sem separar a mão do encosto da poltrona. Não abriu o
olho.
– Minha esposa e eu tivemos um problema e me perguntava se poderia
nos ajudar a regressar a Londres.
– Será uma honra ajuda-los, milord. Milady, por favor. – Fez um gesto em
direção à porta onde aguardava outra mulher. – A senhorita Magee a
acompanhará a meu dormitório e a ajudará a por roupa seca. – Voltou-se
para Luc. – Milord, temo que os únicos homens que estão neste momento na
escola são o professor de desenho, que é um homem muito menor que o
senhor, e nosso cocheiro, que é muito mais cheio.
– Não me importa. Para poder retirar o traje de casamento, poria a roupa
de um cavalariço.
A senhora elevou as sobrancelhas.
– Hoje tínhamos que nos casar – explicou-lhe Arabella. – Pela segunda
vez.
Mas a mulher parecia olhar fixamente a cara de Luc. Ainda não havia
aberto o olho inchado, e a cicatriz era vista arroxeada sobre sua pele gelada.
– Milord, apesar de seus modos civilizados, é evidente que o senhor não
está bem – disselhe. Não tenho nenhum problema em ajudar aos dois, mas
não quero ter que carregar um lorde com febre enquanto tento calar a
curiosidade de sessenta e seis garotas inocentes. Concentremo-nos em secar
aos dois o quanto antes e depois podem me contar os detalhes de seu
confuso casamento.
Arabella riu.
Luc não chegou a sorrir, mas relaxou os ombros.
– Senhora, com o risco de tocar no delicado assunto da idade de uma
dama, gostaria de saber se há vinte anos atrás era a senhora a diretora desta
escola.
– Sim, era. Acabava de começar. Durante aquela época, a responsabilidade
associada ao cargo me pesava muito, e costumava passear rotineiramente
pelo jardim para ordenar meus pensamentos. De fato, em uma ocasião,
convidei a outro refugiado para entrar neste mesmo salão, um garoto que
apareceu várias vezes em nossa propriedade – explicou observando-o com
atenção. – Durante estes vinte anos me perguntei mais de uma vez o que
teria acontecido a esse garoto.
Arabella não entedia por quê, mas sentia uma grande necessidade de tocá-
lo e lhe dizer que estava próxima dele.
Luc voltou o rosto em direção ao fogo, embora talvez olhasse para ela.
– Saiu-se tão bem como pode se esperar de qualquer garoto.
Arabella colocou uma roupa seca. Depois lhe disseram que o professor de
desenho estava ajudando Luc a se vestir. Esperou na porta e, quando saiu,
segurou-o pelo braço e foi sussurrando-lhe a direção enquanto caminhavam.
Ele avançava com cuidado e ela deixou-o estabelecer o ritmo. Mas, apesar de
o quanto estava cansada, percebia a frustração que emanava de seus
músculos e a ira em seus dentes apertados.
Luc não quis tomar chá. Começava a anoitecer e acreditava que era
melhor regressar a Londres o quanto antes.
Quando estavam sentados na carruagem da escola, ela o segurou pela
mão.
– Luc...
Ele afastou a mão. Arabella engoliu a dor e respeitou seu silêncio e sua
distância.
– Disse que ardia até que saiu à rua e que depois desapareceu a dor?
– Sim, a água do rio pareceu trazer a infernal agonia de antes. Mas já me
perguntou isso antes. Vinte vezes nos últimos três dias.
– Sou um homem de ciência. Tenho que ser minucioso.
– É um charlatão, e me surpreende que por vinte anos eu tenha deixado
que cuide de meu bem-estar físico.
Os dedos calosos de Gavin pousaram sobre a fronte de se amigo e lhe
abriu a pálpebra.
Luc afastou-lhe a mão.
– Pode fazê-lo sozinho. No entanto, tenho mãos.
– Sim, cortadas por todas as partes, mas também deixa que as cubra.
– Já pareço suficientemente tonto com a venda que me colocou no olho.
Sentiu um líquido quente no olho. Gotas. Piscou. Todas as sensações
continuavam ali, frio, calor e dor, embora sentisse muito menos dor que no
início. Mas as imagens haviam desaparecido. A luz.
– É muito pouco paciente, rapazinho.
Luc voltou a pôr o lenço sobre a cicatriz.
– Você não tem mais pacientes. Pelo menos dos que pagam.
– É irritante como um javali.
Deu-lhe uma palmada no ombro.
Luc se levantou e esfregou as sobrancelhas. Seu olho ainda queria ver e
provocava-lhe uma intensa dor de cabeça. Com o primeiro olho não foi tão
terrível. Pelo menos o que lhe restava continuava inteiro. Embora não lhe
servisse para nada.
– Bom, decida-se. Sou um touro ou um javali? – Grunhiu.
– Ambas as coisas. Mas se eu estivesse em seu lugar, seria muito pior que
você. – Escutou o fecho do estojo de remédios de Gavin. – Eu não tenho
nenhuma garota bonita que leia para mim ou que me acaricie as cicatrizes
quando doem, não?
Não havia carícias nas cicatrizes – nem em nenhuma outra parte – durante
os três dias que haviam passado desde que a governanta o deixara cego com
esse pó. Gavin pensava que devia ser pimenta. Luc só sabia que parecia fogo.
E agora todo seu mundo havia mudado. Havia ficado negro, e estava
confinado em seu dormitório de Lycombe House. Já o conhecia tão bem que
quase não se chocava com os móveis. Tinha medo de cair. Tinha medo que
ela visse como caía. Embora o que mais odiava era saber que se ela caísse, ele
não saberia, e não seria capaz de ajuda-la a levantar, porque não saberia onde
estava.
Tinha medo de não poder encontrá-la se desaparecesse.
Arabella havia-lhe agradecido por tê-la tirado do rio. Havia agradecido. E
ele mal havia-lhe dirigido a palavra desde então, simplesmente porque não
podia. Não podia suportar a vergonha da fraqueza. Não podia suportar,
depois de tantos anos, saber que voltava a estar indefeso.
– Diga-me outra vez, Gavin – disse. – Diga-me que isto poderia ser
temporário.
– O escocês agarrou-o pelo ombro.
– Já o sabe, rapaz. Agora terá que esperar.
Miles o barbeou e vestiu, preocupando-se tanto como Gavin, porém mais
ou menos como havia feito sempre.
Em outros assuntos, – assuntos em que Luc se virava sozinho – era
desastrado. A comida caía do prato e tinha que suportar que o lacaio o
limpasse sem dizer uma palavra. Depois daquilo começou a comer em seu
dormitório. Caminhava com a mão apoiada na parede, devagar e com
cuidado, como um velho com gota. Ele havia navegado oceanos e agora seu
mundo se reduzia ao caminho entre seu dormitório e a biblioteca.
Teria que sair da casa de seu primo recém-nascido e ir viver em outra
parte. Lycombe House não era sua, não tinha direito de viver ali. Mas não
podia ir a seu clube e pedir a seus amigos que lhe indicassem residência para
alugar. Mesmo que pedisse a seu administrador que lhe alugasse uma casa, se
veria obrigado a conhecê-la centímetro a centímetro. Também podia levar
Arabella para a casa que tinha no Norte, onde nunca havia residido, mas ali
teria que também aprender como eram os cômodos, e ela só teria sua
companhia.
Não podia montar, nem ler, nem jogar cartas ou escrever. Não podia
conduzir uma carruagem. Nem sequer podia navegar em simples bote a vela
ou remo. Não podia ver os olhos de sua mulher.
Tony e Cam foram visitá-lo. Conversaram, beberam e tentaram fazê-lo rir,
até que se cansou de vadiar e os expulsou como o arisco javali que Gavin
havia dito que era. Podia beber até esquecer cada dia se assim o desejasse; os
lacaios sempre lhe enchiam a taça quando a terminava. Supunha que o
prefeririam sua inconsciência a seu mau humor. Mas depois de embriagar-se
na primeira noite para entorpecer seus sentidos, Arabella anunciou que
deixaria aberta a porta de comunicação de seus dormitórios para poder ouvi-
lo caso necessitasse de ajuda. No dia seguinte, ordenou que escondessem
todo o conhaque da casa.
Necessitava-a mais do que ela compreendia. Necessitava-a com um
desespero que o carcomia e o atordoava. Ele não tinha nada que lhe oferecer.
Arabella nunca havia querido seu título; ela queria encontrar um príncipe
para poder averiguar quem eram seus pais. Luc tinha riquezas, mas ela
tampouco as havia cobiçado. Sua pequena preceptora havia construído um
bom nome à margem da sociedade por seus próprios méritos. Mas, com seu
dinheiro, ele deveria ser capaz de encontrar a única coisa que ela desejava: sua
autêntica família.
– Milord?
A voz do mordomo soou à sua esquerda, na porta da biblioteca. Luc
estava sentado junto à janela. Agradecia pelo pálido calor do sol de inverno
que não podia ver.
– Sim, Simson?
– O senhor Parsons veio de Combe. Vem acompanhado de várias
pessoas. Já lhe disse que não deseja receber visitas. Mas insiste que quer que
veja..., que dizer, que atenda a estas pessoas.
– Faça-os passar.
Era o administrador da propriedade, não podia ignorar seu assistente.
Muito rapidamente, o lorde arisco ganharia a reputação de javali recluso por
toda Londres. O melhor que podia fazer era desfrutar das visitas enquanto
ainda viessem, e da atenção de Parsons enquanto Fletcher o permitisse. Luc
não tinha nenhuma dúvida de que o bispo utilizaria sua cegueira como
desculpa para lhe roubar o pouco poder que tinha sobre a propriedade e o
futuro de seu primo. Estava preso e indefeso e não podia fazer
absolutamente nada a respeito.
– Milord – disse o assistente. – Bom dia.
– O que o trouxe à cidade, Parsons?
– Tenho que lhe informar de certos assuntos, milord.
O homem soava especialmente submisso. Era pela cegueira. Todo mundo
andava nas pontas dos dedos com ele, dirigiam-se a ele com voz baixa e com
palavras suaves; tratavam-no como se fosse um inválido. O que era verdade.
– Primeiro, milord, permita-me transmitir o profundo horror e pena que
sentem todos os trabalhadores de Combe pelas consequências de seu
desafortunado inciden...
– Sim, está bem, Parsons. Obrigado.
Incidente. Christos e Ravenna haviam ido vê-lo e se desculparam por sua
participação na visita de Arabella à casa de Fletcher. Luc lhes assegurou que
sua esposa teria ido igualmente sem a necessidade de que a animassem.
Ninguém mais sabia a verdade. Seu irmão havia tentado lhe contar a história
que inventaram para explicar porque desapareceram em seu próprio
casamento, e os motivos que alegaram para justificar sua posterior perda de
visão, mas Luc não quis escutá-lo. Já estava feito. Estava cego. Os membros
da alta sociedade podiam pensar o que quisessem. Tudo havia acabado.
Mas Fletcher sabia. Não havia voltado a Lycombe House desde então.
Provavelmente, estaria ocupado queimando os arquivos que Arabella
encontrou.
– Milord, acompanham-me três dos arrendatários de Combe: Goode,
Lambkin e Post.
Luc assentiu e esperou estar olhando na direção correta.
– Que notícias trazem das terras, cavalheiros?
– Milord, viemos vê-lo para fazer uma petição.
Luc reajustou o ângulo de sua cabeça em direção à voz.
– Uma petição? Isso soa muito revolucionário para você, Goode.
Supôs que era Goode quem falava. Arabella teria sabido. Teria gostado
que estivesse com ele para analisar aqueles homens, já que ele já não podia
ver nada. Deveria tê-la chamado. Precisava dela.
– Absolutamente, milord. É só que, veja, temos medo.
– Medo?
– Com a chegada do novo duque, e que Deus o abençoe, estamos... Bom,
pensamos que se o senhor se convertesse em duque as coisas se ajeitariam.
Mas nossas esposas e nossos filhos têm medo e temos que fazer algo a
respeito.
– E o que é que suas famílias temem, Goode?
– É a quem, milord.
Luc suspirou devagar e assentiu.
– Necessitamos de sua ajuda, milord. – Isso disse outro dos homens.
Lambkin? – Estamos desesperados.
– Eu sei um par de coisas sobre o desespero, Lambkin.
Responderam-lhe com silêncio.
– Expliquem-se.
– O bispo (quer dizer, o irmão de Sua Graça) veio nos visitar no ano
passado para dizer que tínhamos que lhe dar nossos ganhos trimestrais.
Disse-nos que devíamos dizer ao senhor Parsons que o duque queria que se
destinasse tudo à caridade. Quando lhe explicamos que as rendas eram
nossas e do duque e que não as entregaríamos a ninguém que não fosse ao
senhor Parsons, adotou uma atitude amigável e nos disse que queria levar
nossos meninos a uma escola que havia construído para o povoado. É uma
instituição de caridade onde os meninos podem aprender a ler e calcular, e
talvez se converter em clérigos algum dia. Disse que necessitava de bons
garotos agricultores para a escola e que preferia que fossem os nossos.
– Disselhes isso, eh? – Comentou Luc. – E o que acharam?
– Não confiávamos nele, milord. Ainda que fosse um homem de Deus.
– E por que não? Acaso viram o generoso oferecimento do bispo como
uma ameaça em resposta à sua negativa em lhe dar os rendimentos?
– Sim, milord.
Silêncio. Um dos homens arrastou os pés pelo solo.
– Veja, milord, – disse Lambkin por fim – meu filho mais novo, meu
Toby, ficou depois da missa para ajudá-lo a limpar. É um bom garoto. – Sua
voz tremeu. – Naquele dia Toby voltou para casa contando uma história que
deixou minha mulher chorando durante quinze dias.
– Compreendo.
– Milord. – Voltava a ser Goode. – Estamos lhe pedindo que ajude nossos
meninos. São eles ou Combe.
Quando saíram, Luc voltou ao seu quarto devagar e com dificuldade e
escreveu uma breve carta. Não tinha nem ideia se o texto era legível, mas não
podia ditá-la a outra pessoa. Via-se obrigado a pedir a Miles que lesse a
resposta. Mas isso era tudo.
Escreveu o nome de Fletcher na parte dianteira e deu a carta ao lacaio que
Arabella havia postado diante de sua porta, Claude, o mesmo homem a quem
Luc havia ordenado que a seguisse por Combe. Disse que a entregasse em
mãos e que aguardasse uma resposta.
O lacaio não se moveu.
– O que ocorre, Claude?
– Bem, capitão, talvez possa o senhor me dizer onde quer que a leve.
– Não pode ler o nome e o endereço.
– Não, capitão.
– Mmmm. Não sabia que tinha caligrafia tão ruim.
O lacaio soltou uma gargalhada.
Fez com que Claude memorizasse a mensagem e jogou a carta no fogo.
Aquele marinheiro estava há sete anos como guarda-marinha a bordo do
Victory. Era esperto e leal, motivo pelo qual o havia escolhido, bem como a
Joseph, para cuidar de Arabella. Não lhe restava mais remédio que confiar
nele. Não tinha outra opção.
Naquela noite Luc se retirou para a biblioteca. Andou os passos que havia
contado cem vezes enquanto praticava aquela tarde, e foi até a porta que
separava seu dormitório do de Arabella. Abriu-a.
Escutou-a respirar. Seria de surpresa ou de alarme?
– Mary, pode se retirar – disse com voz serena.
Estava no lado direto do local, talvez sentada na penteadeira. Luc tentou
imaginar o espaço, mas se sentia desorientado. Só havia entrado uma vez
naquele dormitório, a noite em que ela falou do anel, do príncipe e de seu
sonho, o sonho que havia abandonado pelas famílias de Combe.
A cama estava adiante, talvez a uns três metros. Disso se lembrava. Havia
pensado nisso muitas vezes.
Os passos rápidos da donzela passaram por eles. A porta se fechou.
– Encontra-se bem? – Ouviu o rápido roçar da saia. Então Arabella se
deteve diante dele e seu perfume de rosas e lavanda selvagem penetrou em
sua cabeça e o rodeou. – Posso ajudá-lo?
– Não vim em busca de ajuda – dizer desajeitadamente. Havia preparado
um discurso, e era um bom discurso. Ela gostava que ele a provocasse, desde
que não a zangasse, e queria lhe agradar. Mas as palavras não saíam. – Tinha
um discurso preparado – murmurou. Eu...
O roçar de seus dedos na mandíbula foi uma carícia divina. Luc se
esforçou em manter afastada a sua necessidade. Arabella pousou a mão no
pescoço dele e levou sua boca aos lábios.
Beijou-o, vacilante a princípio, depois com mais segurança, e depois com
um apetite e uma urgência muito parecidos aos que ele sentia. Luc deslizou as
mãos por suas costas e a estreitou. Queria senti-la contra ele, queria notar seu
corpinho magro, mas forte. E ardente de desejo. Ela tentou aproximar-se
mais, deslizando as mãos por baixo do colete dele.
Luc segurou-lhe os braços e avançou para adiante. Arabella deixou de
beijá-lo.
– À esquerda! Vá para a esquerda!
Deteve-se.
Arabella riu com doçura e leveza, e o nó de ira que havia-se formado no
coração de Luc desapareceu.
Depois de distrai-la um momento beijando-lhe a orelha e de fazê-la rir
outra vez, encontrou sua boca e a beijou com força. Arabella se separou por
um momento.
– Um passo à esquerda. Dois para diante. Depois outro à esquerda –
sussurrou-lhe sem fôlego para depois enterrar a cara em seu pescoço.
Rodeou-lhe o pescoço com os braços e deslizou os dedos por seu cabelo.
Aprenderá o caminho se o fizer constantemente, sabe? – Acrescentou, quase
com timidez.
– Constantemente, eh?
– Ou...talvez só queira fazer esta excursão uma vez.
Sua voz parecia ter diminuído.
Luc deu um passo à esquerda, depois dois para a frente e novamente à
esquerda, e a deitou com delicadeza sobre o colchão. Inclinou-se sobre ela
devagar e a encontrou com as mãos, depois com os lábios: sua testa, sua
bochecha, sua boca.
– Só esta vez durante meia hora pelo menos – disselhe, e voltou a beijá-la.
Ela lhe rodeou o pescoço com os braços e lhe entregou sua doce boca,
sua língua, colando os suaves seios a seu torso.
– Pequena preceptora, – disse provocando-a e encharcando-se de sua
ansiosa beleza na flexível umidade de sua boca. Enterrou os dedos em seu
acetinado cabelo – suspeito que necessitarei de mais lições antes que a noite
acabe.
Ela lhe meteu a mão por debaixo da camisa e sua respiração se acelerou.
Luc jamais havia escutado um som tão bonito. Sentiu saudade e uma
profunda satisfação. Arabella o acariciou, passando as palmas das mãos pela
pele. Rodeou as costas dele com a perna e lhe cravou o calcanhar na nádega.
Seu perfume estava por todas as partes e sentia a perfeição de seu corpo
debaixo dele. Pressionou-a contra o colchão e ela se arqueou para ele
deixando escapar um gemido suave.
– Muito mais lições – repetiu Luc com a voz rouca.
– Nesse caso, milord, – sussurrou-lhe na orelha e a mordeu – sou a
professora adequada para esse trabalho.
Era verdade: seu marido necessitou de muitas lições. Exigiu tempo para
memorizar certas texturas, e depois voltou a memorizá-las para se assegurar
de que as sabia de memória. Depois insistiu que devia percorrer com os
dedos as suas mãos, pernas e outras parte de seu corpo, inclusive de vez em
quando também com a língua. Segundo lhe disse, era a única forma de poder
criar um mapa mental da paisagem. Às vezes, especialmente durante os
momentos em que ele empregava a língua, Arabella tinha a sensação de que
se convertia na estudante, no lugar de ser a instrutora.
E se abandonou à educação por completo.
Luc repetiu algumas lições. Ela protestou dizendo que não era necessário
que o fizesse, se não queria. Disselhe que havia sido um estudante exemplar
desde o princípio e que, na realidade, nunca havia necessitado aprender nada.
Mas seus protestos eram muito débeis e ele não lhes prestou atenção e se
empenhou com zelo.
Arabella dormiu entre seus braços.
Quando Luc saiu de sua cama depois do amanhecer, beijou-lhe os lábios e
a testa, e ela o convidou a visitar novamente sua escola naquela noite. Ele
esboçou um atraente sorriso, fez-lhe uma galante reverência e respondeu que
ficaria encantado de regressar para continuar com as aulas.
Depois se agarrou à coluna da cama, colocou a cabeça de lado e lhe pediu
ajuda em silêncio para percorrer o traiçoeiro caminho que separava seus
dormitórios.
Arabella chorou enquanto adormecia, sem saber se de alegria ou de pena.
Luc cruzou a ponte sob o chuvisco gelado com a certeza de que era o
maior idiota do mundo.
Embora fosse um idiota feliz. Um idiota feliz cuja esposa merecia muito
mais que um amante cego e um duque descartado.
Agarrou-se à grade e avançou devagar. A neblina gelada penetrava por
debaixo da aba de seu chapéu. Mas Fletcher havia pedido que se reunissem
nesse local e a essa hora.
Luc se perguntou se seu antigo tutor era um imbecil ou se acreditava que
o imbecil era ele. Um homem não levava um cego a uma ponte sobre o
Tâmisa a menos que pretendesse atirá-lo ao rio.
Era evidente que o bispo não queria mais erros. Dessa vez se ocuparia
pessoalmente.
Por detrás do amortizado som da chuva, ouviu o tamborilar de uma
carroça pesada e as esporas de um cavalo ressoando em um beco próximo, o
lamber do rio contra os cascos de botes dos pescadores amarrados na
margem e o lamentar das famintas gaivotas aguardando a luz do dia.
A chuva estava gelada e o terreno resvaladiço, porém estava tão
convencido de conhecer os sons, odores e texturas do rio e do mar como de
saber seu nome e que amava Arabella. Abriu caminho com cuidado, guiando-
se pelo tato, e avançou esforçando-se por recordar a forma e a largura
daquela ponte. Só a havia visto uma ou duas vezes.
– Vem desarmado?
A voz de Fletcher ressoou na escuridão que tinha adiante.
Luc se deteve.
– Como pediu. Mas agora as armas tampouco me servem de algo. Nem
sequer uma faca, por desgraça. A menos que se aproxime o suficiente para
que possa lhe cortar o pescoço.
– Lucien, Lucien. O assassinato é pecado.
– Nesse caso, já estou condenado. Tanto faz enviar outra alma a seu
criador e enfrentar as consequências.
– Diga a seu criado que vá embora com os cavalos.
– Você e eu sabemos que não vai embora a nenhuma parte até que tenha
o anel.
Fez-se um longo silêncio enquanto a chuva se convertia em névoa e Luc
aguardava com os músculos tensos.
Então percebeu uma rajada de cheiro de fumaça de tabaco rançoso
mesclado com óleo de cabelo. Depois escutou uma respiração pesada diante
dele.
– É um bom nadador, milord – disse o cocheiro de Fletcher mais próximo
do que esperava. – Porém não creio que desta vez possa escapar nadando.
Luc estendeu a mão com a palma para cima. O homem pôs o anel em sua
mão, depois o segurou pela mão e enquanto seu odor de tabaco o envolvia
sussurrou-lhe à altura do ombro: – Matá-lo-ia eu mesmo por ter me deixado
em ridículo, mas Sua Graça prefere fazê-lo pessoalmente.
– É uma honra. – Luc se soltou. – Agora retroceda quinze passos.
– O quê...?
– Faça-o – ordenou o bispo.
– Veio como lhe pedi, Fletcher? – Perguntou Luc.
– Nós dois usamos capuz para nos ocultar. Seu criado não saberá quem
somos a menos que tenha revelado nossas identidades.
– Só um dos dois carece de honra, e não sou eu.
– É muito nobre de sua parte, Lucien.
Fletcher falava com sarcasmo, como se somente fosse o bispo, só o
sacerdote, e estivesse comentando uma verdade. Não era consciente de ser
um vilão nem quando estava a ponto de cometer uma maldade.
– Capitão – disse Claude quando se aproximou.
Luc lhe deu o anel.
– É o mesmo que lhe descrevi?
– Sim, senhor.
– Os detalhes e a cor?
– Exatamente, capitão. Não parece falso, senhor.
Só saberia com certeza quando Arabella o visse. Esperava que Fletcher
não tivesse tido tempo de pedir que lhe fizessem uma cópia durante as
poucas horas que fazia que havia entrado em contato com ele.
– Pode ver a cara destes homens?
– Não, senhor.
– Onde estão?
– A três metros, e o outro três metros mais longe. – A voz de Claude
sorriu. – Quer que me encarregue deles, capitão?
– Não, obrigado. – Deus abençoe a lealdade dos marinheiros a seus
capitães. – Quero que vá para os cavalos sem perder de vista esses homens,
mas tenha cuidado.
– Para o caso de caírem sobre mim e me tirarem o anel enquanto o senhor
continua aqui?
– Essa é a ideia.
– Capitão, – disse – não gosto...
– Depois quero que monte, leve o outro cavalo e chame o meu nome
quando for embora. Cavalgue diretamente até a casa e dê esse anel ao senhor
Miles, mas não lhe diga de onde o conseguiu. Entendeu-me?
– Sim, senhor.
A voz do marinheiro já não era divertida, mas sim bem triste.
– Agora vá.
– Sim. Sim, senhor.
Seus passos ressoaram pela ponte enquanto retrocedia. Passou um
momento, depois outro. Os cascos ressoaram sobre o calçamento.
– Vou embora, capitão!
A chuva havia-se convertido em uma névoa fina e Luc sentia seu frescor
nas bochechas.
– Já voltou a ter sua miçanga, Lucien. Espero que esteja satisfeito.
– O filho de Adina não é de Theodore.
– Ora, homem – riu Fletcher. – Não pode pretender julgar isto agora que
está derrotado. Olhe-se, cego e arruinado. Que classe de duque seria?
– Só quero o bem de minha família. Esse menino não é de minha família,
nem da sua tampouco.
– Minha irmã é uma mulher virtuosa.
– Sua irmã faz tudo o que você lhe diz. Se lhe pedir que faça uma
confissão pública, se insistir que isso é o melhor para sua alma, ela o fará.
– Não tenho nenhum interesse em fazer tal coisa.
A voz de Fletcher era monótona. Luc pensava que era como a do diabo.
– Há dezenas de pessoas que atestaram que o velho duque e a duquesa de
Lycombe não se viram nem uma só vez durante os quatorze meses que
precederam a morte dele.
– A metade dos titulados nobres da história da Inglaterra foram bastardos.
Os lordes ririam de sua petição.
O tom do bispo estava tingido de certa valentia. Algo pouco habitual.
Nunca havia dado mostras de outra coisa que não fosse a habitual segurança
serena que o caracterizava.
Luc começou a se sentir incômodo. A cicatriz dava fisgadas, mas o olho
esquerdo doía-lhe muito. Queria fechá-lo. Mas não podia. Fletcher o veria
como uma debilidade, ainda que estivesse cego.
– Não lhe peço por mim – disselhe.
– E então, por quem? Por seu pobre e débil irmão?
– Pelo povo a quem tem prejudicado e tem a intenção de seguir
machucando através desse menino, que além do mais não é legítimo herdeiro
de Combe. Eu...
A dor se intensificou. Um raio de luz dourada atravessou a escuridão. Sua
garganta se retesou.
Era sua imaginação. Tinha que ser. Aferrou-se com força à grade. Ante ele
flutuava uma pálida nuvem de luz.
– E o que fará? Reclamar o ducado? Vamos, Lucian...
– Escreverei uma petição ao Parlamento. – O raio dourado voltou a
aparecer, como um colibri, viu-o durante um instante e depois desapareceu. –
Reclamarei o título e, se me enfrentar, contarei tudo. Tudo sobre a extorsão.
Falarei a eles das pessoas inocentes. Falarei de meu irmão, se for necessário.
A nuvem cinza se alargou e se fez mais longa. A estrela dourada reluziu.
Ficou tonto. Inspirou fundo e fechou o olho. A estrela dourada se
desvaneceu com a nuvem cinza.
– Está tão louco como ele – escutou como que de longe.
Havia deixado de chover e a brisa procedente do rio era gélida. Luc abriu
o olho e a estrela piscou novamente diante dele reluzindo por entre a mancha
cinza. Seu coração se acelerou.
Deu um passo adiante.
– Fique onde está.
– Estou cego, Fletcher. – Mas não para sempre. Por Deus. – O que
acredita que vou fazer dessa distância e desarmado?
O bispo riu, mas não era um som relaxado. Luc piscou. O borrão cinza
era uma mancha da cor do amanhecer com um ponto de cor creme. A cara
de Fletcher? Por debaixo via a estrela brilhante. A cruz em seu peito.
– Está zangado, sobrinho. E a ira nubla o juízo. Sucumbir à ira é pecado,
além de ser altamente inconveniente. Se fizer alguma besteira, se machucará.
– Tem medo. Até de um homem cego. Tem tanto medo de arder
eternamente por seus muitos pecados que está aterrorizado com a morte.
Mesmo nestas circunstâncias tem medo do que poderia lhe fazer se pudesse
ver.
Seu mundo ia se expandindo à medida que falava: sombras, formas na
penumbra, a grade da ponte, a silhueta de um homem.
– Nunca tentou me machucar – disse Fletcher. – Foge de mim. E deveria
fugir agora também.
– Deixei de fugir.
– Ainda não. – Havia voltado a mudar a voz, como um pedaço de seda
cortada por uma faca. – Assegurar-me-ei de que culpem Christos por seu
assassinato.
Luc avançou para adiante.
– Afaste-se – Vociferou Fletcher. – Ou isto será mais doloroso do que o
necessário.
Então Luc viu um brilho prateado por debaixo da pálida cara ovalada e a
faísca dourada. Fechou um pouco a pálpebra e procurou focar bem a figura
do auxiliar do bispo. Era uma sombra escura sob a escassa luz da alvorada
que aguardava a uns três metros de distância. Estava suficientemente longe.
– Não pode me machucar – advertiu-o, e era verdade.
– Eu tenho preparada a carta de confissão – explicou-lhe Fletcher. –
Matará você e o menino e terá tanto remorso que perderá completamente a
cabeça.
– Meu irmão é mais forte do que você pensa. – “Continue falando. Fale
até que as sombras clareiem e o brilho da grade e o tremeluzir das poças e a
cruz de ouro deixem de atrapalhar a visão do cano da pistola.” -Não lhe dará
a satisfação se ficar louco. É um bom homem e será um bom lorde.
– Já o veremos, eh?
Escutou o clicar do percussor da pistola. Luc avançou para adiante.
Escutou um rangido e depois apareceu uma nuvem de fumaça.
Não havia dor.
Luc deu um soco na cara de Fletcher. O bispo caiu contra a grade.
Enroscou-se com a capa. Luc voltou a golpeá-lo. Teria seu assistente em
cima em questão de segundos. Não poderia ganhar aquela briga guiando-se
somente por sombras e brilhos. Mas poderia levar seu tio com ele.
Soaram alguns passos a suas costas. Deu meia volta esticando o braço e
alcançou ao homem no queixo. O assistente do bispo cambaleou para trás.
Um brilho prateado reluziu em sua mão. Luc o agarrou pela munheca e lhe
deu um chute entre as pernas. Aquela besta se agachou para adiante e a faca
bateu no solo da ponte.
Luc sentiu uma dor que deslizava por seu braço. Rugiu e se voltou.
Fletcher saltou para trás e a faca brilhou na mão que tinha estendida para
Luc.
– Vamos, Lucien. – Deu outro passo para trás. – Não deve brigar comi...
Tropeçou. Fez trejeitos com os braços de costas, e caiu desaparecendo na
escuridão. Luc se lançou para a frente. Seu pé pisou no nada, mas se afastou
do buraco.
A seus pés soou o impacto do corpo ao tocar a água.
Avançou com as mãos para a frente, encontrou a grade e se agarrou a ela
para olhar para baixo. Não via nada, só a escuridão do rio, pensou que
voltava a estar cego.
Ouviu alguns passos na ponte. Deu meia volta. O cocheiro do bispo
estava fugindo. Desapareceu na névoa que reinava na imperfeita visão de
Luc.
Deixou-se cair de joelhos e inspirou fundo. Depois inspirou novamente.
No solo viu um objeto brilhante que lhe chamou a atenção: era a cruz
dourada. A corrente havia-se rompido e estava atirada sobre a pedra,
molhando-se sob a chuva.
Levantou-se enquanto a alvorada gélida se assentava ao seu redor
tingindo-se de faixas de cor perolada. A seus pés, o rio descansava em
silêncio, os pescadores ainda não haviam chegado, e nada perturbava a
tranquilidade, salvo os granidos de algumas gaivotas impacientes.
Encontrou a pistola numa poça e a atirou ao Tâmisa. Depois foi embora.
Capítulo 19
Os amantes
Arabella bateu à porta de Adina o mais cedo que se atreveu. A nova mãe
dormia o tempo todo e vivia apaixonada por seu novo filho. Além disso,
insistia em lhe dar o peito, apesar das advertências da senhora Baxter, a
governanta, e uma dezena de amigas.
Quando voltou de Richmond, Arabella havia esperado para falar a sós
com Adina. O parto havia sido rápido, mas a mulher demorava em se
recuperar. E, no entanto, Arabella já não podia mais esperar. Luc nunca
reivindicaria o que merecia. E menos ainda nesse momento. Era muito
orgulhoso. Devia ser ela quem o reivindicasse por ele.
Sufocou um bocejo enquanto esperava que lhe abrisse a porta. Dormia
pouco.
Em seus lábios se desenhou um sorriso. Fechou os olhos e mexeu-se um
pouco sobre a sola dos pés.
Finalmente, uma donzela sonolenta lhe abriu a porta. Adina a saudou com
a mesma cara de sono, embora com expressão de estar contente. Estava
magra e pálida, mas na bandeja de desjejum que tinha ao lado ainda ficavam
restos de chocolate, uma torrada e algum creme de limão. O estômago de
Arabella se revolveu assim que o viu. Já não lhe caía nada bem. Mas comia de
toda maneira. Seu bebê o necessitava.
Não podia continuar ocultando-o de Luc. O medo havia-lhe impedido de
lhe dizer – o temor de que, ao saber que já havia conseguido seu objetivo de
ter um herdeiro, deixasse de procurá-la – já havia desaparecido. E com a
renovada atenção que estava demonstrando pelos detalhes de seu corpo, logo
descobriria as mudanças. Talvez lhe dissesse e o demonstrasse aquela noite.
Um delicioso calafrio a percorreu.
– Querida Arabella, que feliz que me faz vê-la com olheiras. É agradável
não ser a única mulher da casa com tão mau aspecto. – Adina disse com tal
doçura que a jovem teve que rir. – Mas me parece que sua falta de sono se
deve a um motivo muito distinto do meu.
Lançou um apaixonado olhar ao berço em que dormia o bebê.
– Adina. – Arabella se sentou aos pés da cama. – Tenho que lhe contar
uma história. Espero que a escute com atenção antes de tomar uma decisão.
Seus lindos cílios dourados se abriram de par em par.
– Uma decisão sobre o quê?
– Sobre se vai confessar publicamente que seu bebê não é filho de seu
marido. Coisa que permitirá que Luc ocupe seu legítimo lugar como duque
de Lycombe.
Adina ficou séria subitamente.
Mas escutou.
Quando Arabella acabou de falar, Adina abaixou a cabeça.
– Meu irmão me disse que jamais voltaria a fazê-lo. – Falava com um fio
de voz. – Quando o encontrei com meu pajem... – Fechou os olhos. –
Prometeu-me.
– Mentiu.
– Não só sobre isso. – Fitou Arabella nos olhos. – Disse a meu querido
Theodore que eu lhe era infiel. Depois disso meu marido não me permitiu
voltar a Combe. Então Christos veio me ver. Havia ido ver Theodore. Veio
com um amigo. – Pegou a mão da jovem e a apertou. – Não era minha
intenção fazê-lo, querida Arabella! Tem que saber que eu adorava meu
Theodore. Mas estava tão sozinha e ele estava tão longe... E Michael me
consolou.
Encolheu os ombros com tristeza.
– Adina, poria isso por escrito e assinaria o documento diante de
testemunhas? Compareceria ante o Parlamento e ante o rei se fosse
necessário, e declararia a verdade?
Franziu sua linda testa. Mas assentiu.
– Meu bebê...
– Luc cuidará dele. Será um membro a mais desta família, embora não leve
o nome dos Westfall. Jamais o abandonaremos.
Adina bateu os cílios com incerteza.
– Michael quer se casar comigo. E quer reconhecer o bebê como seu,
ainda que isso signifique que o menino não será duque. Às vezes os homens
são muito contraditórios, não é?
Arabella desceu as escadarias com o coração e os passos leves, e foi à
biblioteca. Luc havia passado ali os últimos dias. Daria sua notícia em
particular e veria a cara que faria. Depois lhe contaria todo o resto.
Não estava na biblioteca.
Olhou no vestíbulo, no salão e na sala de refeições. O jardim estava
acinzentado, úmido e vazio.
Subiu as escadarias e bateu à porta de seu dormitório. Sentiu um revolteio
de impaciência no estômago. Que idiotice. Mas imaginar que o veria sempre
era muito mais fácil que vê-lo de verdade. Era alto, um pouco perigoso e,
apesar de tudo, um homem muito decidido; e o desejo que sentia por ele a
enfraquecia tanto que não podia evitar ficar furiosa. Mas então ele a beijava e
abraçava e sentia-se tão poderosa como uma deusa.
Estava completamente indefesa.
Miles lhe abriu a porta. Ficou olhando-a com o rosto pálido e os olhos
muito abertos. Não disse nada.
Arabella sentiu um formigar nervoso.
– Sua senhoria está?
– Não, milady.
– E sabe onde posso encontrá-lo?
O assistente pareceu empalidecer um pouco mais.
– Não exatamente, milady.
– Quando voltará?
O assistente abriu e fechou a boca.
– Senhor Miles, onde está meu marido?
Ele lhe abriu a porta completamente. Ela entrou no dormitório com o
coração acelerado. Luc não estava ali. Voltou-se para o assistente.
O senhor Miles aguardava com a palma da mão estendida e o anel de sua
família sobre ela.
Arabella não podia respirar.
– Onde está?
– Esta manhã Claude e ele foram ao East End, milady. – Seu tom de voz
era seco. – Sua senhoria foi se reunir com o bispo.
– Não. – Seus pulmões estavam encolhendo. – Não. – Levantou a cabeça.
– Quando? E onde exatamente se encontrou com ele?
Arabella jamais imaginou que a torturaria tanto esperar que a carruagem
chegasse. Quando apareceu, subiu apressadamente e gritou a localização ao
cocheiro.
As avenidas de Mayfair logo desapareceram, mas, à medida que se
aproximavam da cidade, as ruas se encheram de carroças, carruagens e
montarias. Agarrou-se ao assento com as mãos geladas. Luc já não estaria ali.
Mas não podia acreditar. Percorreria as tabernas do cais e os bares
frequentados pelos marinheiros até que o encontrasse como havia feito em
Plymouth. Encontraria alguém que o tivesse visto, um pescador ou um
guarda de bosque, alguém. Alguma pessoa tinha que tê-lo notado. Não era
muito comum ver um lorde cego vagueando pelas margens do Tâmisa
sozinho e de madrugada.
A carruagem não se movia. Abriu a janela e colocou a cabeça para fora
para chamar o cocheiro. Estavam presos no tráfego. A rua estava cheia de
gente, iam a pé ou a cavalo, e todos olhavam um desfile. Parecia um desfile
circense. Havia equilibristas caminhando sobre altíssimas pernas de pau e
garotos com coletes brilhantes, mulheres no lombo de pôneis cheios de
laços, música alegre procedente de flautas e pratos, e carroças de cores vivas.
Junto a ela passaram um par de artistas fazendo malabarismo com tochas.
Faziam igual aos malabaristas que viu em Saint-Nazaire na noite em que se
entregou pela primeira vez a um arrogante capitão de navio, a noite em que
esqueceu o sonho de se casar com um príncipe. E então já o amava.
– Não. – Seu coração se apertou. – Não.
Tapou os olhos com as mãos e eles se encheram de lágrimas.
O desfile se afastou e a multidão começou a se dispersar: algumas pessoas
entravam nas lojas e outras iam embora pelas ruelas. Seu cocheiro continuou
avançando. Ela se esforçou para respirar, procurando sufocar o desespero, e
olhou pela janela.
Então Luc apareceu caminhando entre a multidão.
Ela abriu a porta engolindo um soluço, saltou da carruagem e saiu
correndo pela rua.
Ele caminhou diretamente para ela. Parecia ter sorrido.
Arabella se lançou sobre ele. Abraçou-o e ele a segurou entre os braços.
Estava muito frio, tinha a roupa e o cabelo úmidos e tremia um pouco. Ela
levantou as mãos, aproximou-se de seu rosto e o beijou. Depois o beijou
outra vez.
– Já pode ver – disse. – Já pode ver.
Beijou-lhe as bochechas, a mandíbula e a testa, e depois afastou-lhe o
lenço e lhe beijou a testa.
– Duquesa, você me mima demais – disse ele muito devagar e com
aspereza, mas esboçou um sorriso e a segurou pela cintura. Os transeuntes
apressados os fitavam com curiosidade.
Arabella voltou a por o lenço em seu lugar e lhe deu um beijo, depois lhe
beijou o olho bom, as bochechas e novamente a boca.
– Sempre será um grande homem.
Luc a segurou pelo queixo e a fitou com seriedade.
– Arabella, está morto.
– Matou-o?
– Não. Teria feito isso. Mas foi um acidente.
– Fez o correto.
– Já sei disso. – Acariciou-lhe a bochecha com o polegar. – Mas com você,
Arabella Westfall, fiz tudo errado, desde que nos conhecemos, e em quase
todas as ocasiões. Fui arrogante, muito confiante, irritante e profundamente e
insaciavelmente lascivo. – Um transeunte ficou olhando boquiaberto. –
Também tinha medo do que há entre nós. Comportei-me de uma forma
detestável com você, quando a única coisa que você queria era encontrar seu
príncipe encantado. E em lugar disso, acabou com um cego estúpido, arisco e
despótico. Se pudesse voltar atrás, se pudesse fazer o que deveria ter feito...
– Antes que me apaixonasse por você?
– ...a-antes de lhe roubar a virtude. – Franziu o cenho. – Por Deus,
mulher, sempre tem que dizer o que menos espero, não?
-Esforcei-me tudo o que pude para não o querer. – Meteu as mãos no
sobretudo de Luc. – Mas fracassei.
– Fracassou.
Sorriu.
– Mas não fracassei totalmente. Adina escreveu uma confissão explicando
a aventura que teve com um homem francês que está ansioso para
reconhecer seu filho. Agora é duque, Sua Graça.
Luc riu e negou com a cabeça. Então seu olhar se vestiu dessa intensidade
que fazia tremer seus joelhos.
– Sem você estou perdido, duquesa.
– Pois não tem com o que se preocupar. Porque já não voltará nunca mais
a ficar sem mim. – Apoiou a cabeça em seu peito. – Nunca o deixarei.
– Isso diz porque já não estou totalmente cego, não é? – Disse um tanto
vacilante. – Tinha medo de ter que me dar aulas a cada noite, mas agora já
não tem que se preocupar com isso.
Arabella elevou as sobrancelhas.
– Claro que não. O motivo por não pensar em deixa-lo é que agora é um
duque.
– Já entendi.
– Sempre quis me casar bem.
– Ah, sim?
– E quero que meu bebê seja duque. Ou irmã de um duque.
Luc piscou.
– Seu bebê?
Arabella lhe sorriu.
– Seu bebê.
– Meu... – Sua garganta se apertou. Abraçou-a pela cintura. – Temos que ir
para casa. – Tinha a voz rouca. – Agora.
– Agora? Está bem. Mas...
– Desejo-a.
– Você...
– Desejo-a agora. Sempre. Em todas as partes e de todas as formas: minha
amante, minha amiga, minha beleza de língua afiada, minha companheira
para beber, a mãe de meus filhos, minha coragem frente à iminente derrota.
Meu santuário. – Beijou-a. – Minha duquesa.
Beijou-a. Ela lhe devolveu o beijo com grande entusiasmo.
– Porém neste preciso momento – disselhe entre beijos – somente a quero
em minha cama.
Ela aceitou os beijos que Luc espalhava por seu pescoço.
– Nisso posso agradá-lo, Sua Graça.
– Ou na sua. A que encontremos primeiro.
– É muito eficiente.
– OU na carruagem.
Ela o segurou pela mão.
– Pois vamos, certo?
Arrastou-o para a carruagem entre gargalhadas.
Ele voltou a puxá-la, segurou-lhe o rosto e disse: – Arabella, a quero.
– Luc?
– Sim?
– Quer se casar comigo?
Epílogo
O conto de fadas
A duquesa de Lycombe estava sentada numa poltrona de seu dormitório.
Sua comprida saia de seda branca como a neve salpicada de minúsculos
diamantes incrustados reluzia caindo em cascata por cima de seu assento.
Uma tiara de diamantes aparecia por entre sua cabeleira, que caía como cobre
por cima de seus ombros e das volumosas mangas de seu vestido de noiva.
Suas irmãs estavam sentadas diante dela. Sobre a mesa que havia entre elas
brilhavam os tons dourados e carmesins de um único objeto.
– Não espero que nenhuma das duas o faça. – Os olhos de Arabella
alternavam entre as duas garotas transbordantes de felicidade. – Tenho tudo
que desejo: seu bem-estar e o de Luc. – Pousou a mão na barriga. – E agora
farei tudo o que possa para encontrar nosso pais.
– Suponho que não pensará que dinheiro será o suficiente para começar a
finalizar essa busca? – Advertiu-a Eleanor. – Uma de nós tem que se casar
com um príncipe.
– Agora você também acredita na previsão da cigana?
A risada iluminava os olhos de Ravenna.
– Nunca deixei de acreditar nela – admitiu Eleanor. – Só sou cética com a
ideia de que só um homem pode ser a resposta a tudo.
– A fé não é como a erudição, Ellie. É crer ou não crer.
– E você não crê.
Ravenna acariciou seu cachorro.
– Eu creio na amizade. Não tenho nenhum problema em deixar os finais
felizes para princesas como Bella.
– Não tem por quê retomar minha missão. – Arabella segurou o anel e o
levou à penteadeira, onde o meteu em uma caixa de ouro e esmalte. Deixou o
anel no veludo do interior. – Mas se alguma das duas quiser fazer isso, o
encontrará aqui.
Alguém bateu à porta do dormitório. O duque de Lycombe entrou no
cômodo. Estava resplandecente com seu elegante traje de noivo e o lenço
negro na fronte, que lhe dava um ar um pouco perigoso. O coração de
Arabella se acelerou. Era maravilhoso, e era seu.
Tentou não sorrir como uma boba. Mas ele já sabia que era apaixonada
por ele. Sempre. Para sempre. Fitou-a e seu olho brilhou com certeza.
– Esposa – disse transmitindo nessa única palavra o prazer e o afeto que
sentia por ela.
– Esposo – respondeu Arabella, igualmente feliz como ele.
– Nossos convidados nos esperam abaixo. – Fez uma reverência a
Ravenna e a Eleanor. – A vocês também, senhoritas.
Eleanor lhe dedicou um doce sorriso e saiu do dormitório. Ravenna se
pôs na ponta dos dedos, deu-lhe um beijo na bochecha e saiu atrás de Bestia.
Luc estendeu a mão para Arabella.
– Duquesa?
Ela estendeu a mão e ele a puxou. Abaixou a cabeça para enterrar o nariz
detrás de sua orelha enquanto ela deslizava as mãos por seu peito.
– Luc?
– Mmm?
– Agora que sou duquesa de verdade, como vai me chamar?
Pousou os lábios sobre os dela.
– Meu amor.
NOTA DA AUTORA
Hoje em dia há muita controvérsia sobre a terminologia empregada a
respeito dos ciganos, mais apropriadamente chamados romanis, e com razão,
e isso porque as palavras têm muito poder. As palavras com valor pejorativo
que se empregam para designar um grupo ou um indivíduo podem dividir e
destruir, quer sejam utilizadas com intenção ou por ignorância. Para este livro
escolhi utilizar os termos que se usavam nos lugares e período em que está
ambientada a história. E os ingleses do início do século XIX se referiam a
este grupo com a palavra “cigano”.
Quero agradecer por seus conselhos à doutora Marie-Claude Dubois, à
professora Leslie Moch, à doutora Christine E. Lee, à professora Molly A.
Warsh (por sua oportuna intervenção a respeito das pérolas, coisa que
proporciona a você, querida leitora, um exemplo de como uma escritora
demente pode escrever uma frase descritiva como esta: “lábios acetinados
como [espaço a preencher] pérolas”, e depois passar dias procurando o
adjetivo mais apropriado, e a Samantha Kane. Também quero agradecer a
Carol Strickland e às mulheres do grupo Heart of Carolina Romance Writers
BiaW por sua inspiração e pelos bons momentos passados com elas, e a The
Chambermaird: Anne Alexander, Nita Eyster, Carrie Gwaltney e Christy
Krupa.
Mil agradecimentos a Marcia Abercrombie, Georgie Brophy, Mary Brophy
Marcus e Marquita Valentine por sua cuidadosa leitura e suas recomendações.
Quero expressar meu agradecimento e enviar muitos abraços também a
Kieran Kramer, Caroline Linden, Sarah MacLean, Miranda Neville e Maya
Rodale: teria sentido falta de seu carinho e conselhos enquanto escrevia este
livro, se não os tivesse recebido. Myron Lawrence e Georgann Brophy
vieram em meu auxílio mais vezes do que posso contar, e agradeço
profundamente por sua infinita paciência e sua compreensão.
Um agradecimento especial para Georgie Brophy, Nita Eyster e Miranda
Neville, que me salvaram no último minuto, e para Laurie LaBean, por
regatar a mim e a este livro.
Há que diga que sou abençoada pelos deuses das capas, mas eu sei de
quem é esse mérito. Quero gritar um cordial “hurra!” ao departamento
artístico da Avon por me ter feito outra linda capa de livro.
Minha agente Kimberley Whalen merece que lhe agradeça por cada livro
que publiquei, para não mencionar que lhe devo minha cordialidade. Quero
agradecer a minha editora, Lucia Macro, que sempre acertou o alvo quando
me sugeriu algo a respeito do romance, e que compartilhou suas ideias com
esta humilde autora com compaixão e incansável certeza.
Obrigada a meu marido por seu afetuoso apoio, e a meu maravilhoso filho
e a minha doce Idaho, que a cada dia me ajudam a sentir a alegria e a
aventura do amor que faz possível que me dedique a escrever.

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