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Representações

● Romance sáfico;
● Uma das protagonistas é bissexual e com uma deficiência
motora;
● Uma das protagonistas é lésbica.
Avisos de Conteúdo

● Violência;
● Manipulação emocional;
● Consumo de álcool;
● Envenenamento;
● Alagamento;
● Sangue;
● Morte;
● Menção à morte infantil;
● Sequestro;
● Confinamento;
● Lesão corporal;
● Amizade tóxica;
● Assassinato (menção);
● Afogamento;
● Morte de um ente querido;
● Suicidio (menção);
● Cobras.
Sinopse

Uma emocionante e sombria fantasia LGBTQ+ sobre duas


garotas que devem escolher entre salvar a si mesmas, uma à outra
ou sua ilha naufragada.
Todos os anos, na véspera de Santa Walpurga, a Rainha das
Bruxas de Caldella atrai um menino para o seu palácio. Uma vida
inocente a ser sacrificada na lua cheia para evitar que a cidade-ilha
afunde.
Lina Kirk está convencida de que seu irmão será levado este
ano. Para salvá-lo, ela pede a ajuda de Thomas Lin, o garoto que ela
ama secretamente e a única pessoa que já conseguiu escapar do
palácio. Mas eles chamam a atenção da rainha, e Thomas é
escolhido como o sacrifício.
A rainha Eva viu sua irmã morrer para salvar o menino que
amava. Agora, como rainha, ela não cometerá o mesmo erro. Ela está
disposta a sacrificar qualquer um se isso significa salvar a si mesma e
sua cidade.
Quando Lina se oferece à rainha em troca da liberdade de
Thomas, as duas meninas aguardam a lua cheia juntas. Mas Lina não
é nada do que Eva esperava, e a rainha não é nada do que Lina
imaginou. Contra sua vontade, elas se apaixonam uma pela outra
enquanto a água inunda as ruas de Caldella e a maré escura exige
seu sacrifício.
Para a minha avó.
Queria que estivesse aqui para ler isso.
A Rainha das Bruxas vem nas asas da noite.
A Rainha das Bruxas tem o deleite do seu coração.
Segure ele, segure ele, segure ele firme.
Esconda ele, esconda ele, esconda ele, fora de vista.
Lina

— Vai ficar tudo bem. Ela não vai me escolher.


— Claro que não. — Lina pressionou a ponta do dedo no
batente da porta. — Ela só pega os bonitos.
— E nós dois sabemos que eu sou tudo, menos bonito. — Finley
sorriu para seu reflexo no espelho, uma mecha de cabelo preto
alcaçuz caindo em olhos tão cinzentos quanto o mar de inverno. Lina
tinha o mesmo cabelo, mas o tingiu. Os mesmos olhos, mas estavam
muito distantes. A mesma pele de areia dourada, mas ela foi
amaldiçoada com o nariz infeliz da Mamis. Um dia, ela descobriria
como seu irmão conseguiu roubar todos os genes bons.
— Vai ficar tudo bem — Finley repetiu pela milésima vez,
alisando seu terno, o sorriso desaparecendo em seriedade. — Vamos
ficar juntos, entrar e sair de tudo antes que você possa se preocupar.
Pronta?
Lina enrolou duas vezes no pescoço o colar de contas coral-
sangue que ele havia lhe dado em seu aniversário de dezessete
anos. Vermelhas, brilhantes e redondas como bolas de gude, as
contas tilintaram quando repousaram contra seu peito.
— Nós podemos simplesmente ir para a casa do tio. Eu irei com
você. Ele vai nos esfolar vivos se descobrir que você…
— Uma mecha de cabelo — Finley cortou. — Sete fios de
cabelo de uma bruxa para amarrar em um amuleto para curar seu
tornozelo. É isso que você espera conseguir esta noite?
Lina hesitou. Não era para curar seu tornozelo, que estava se
recuperando bem por conta própria. Era para amarrar em um feitiço
para amaldiçoar o irmão que o quebrou.
O olhar de Finley se fixou em sua perna. Estava sem o gesso
agora, a pele nua ainda pálida e ligeiramente inchada. Porque ela
dançou com ele. Ela sabia que não deveria. Ela não tinha permissão
para isso, ainda não. Mas estava de cama há semanas e semanas. O
desejo de se mover era como uma coceira. E ela precisava saber que
ainda podia dançar.
A culpa cruzou as feições de seu irmão, uma sombra
passageira, rapidamente mascarada por uma determinação de
apertar o maxilar.
— Eu vou pegar os fios para você.
Por que ele insistia em interpretar o vilão e o herói? De qualquer
forma, a culpa foi empilhada em seus ombros. Tudo o que ele fazia
era, de alguma forma, por causa dela.
Ela podia imaginar o que o resto da família diria se algo
acontecesse esta noite.
Por que você não o impediu? Ele só assumiu o risco por você.
Porque você não estava bem o suficiente para dançar.
O violino de Finley brilhava ao pé de sua cama. Ela o ouvira
ensaiar "O Carretel da Bruxa” e “Sete Corvos”. As mesmas músicas
que Marek havia tocado na folia no ano passado para ganhar um
feitiço para entrar nos sonhos de alguém. As mesmas músicas que
Lina havia dançado para ganhar um amuleto de proteção para o navio
de suas mães.
Ela se mexeu, reprimindo sua frustração, deixando sua perna
forte suportar seu peso.
— Eu te encontro lá embaixo. Sua gravata está torta.
A testa de Finley franziu em alarme. Ele apertou os olhos para
seu reflexo, puxando sua gravata, batendo em seu topete, que
imediatamente saltou de novo só para irritá-lo.
— Certifique-se de que as portas estão trancadas.
Lina assentiu, um pequeno sorriso sombrio puxando os cantos
de sua boca.
— Ah, eu vou. — Não adiantava discutir. Ela só perderia mais
fôlego. Ela terminou de implorar, terminou de listar as infinitas razões
pelas quais o que ele estava planejando fazer não era seguro. Ele era
tão teimoso quanto ela.
Ela fechou a porta ao sair do quarto dele, e então a trancou. Um
clique alto ecoou como um tiro pela casa.
Houve uma batida imediata de passos, seguida por punhos
batendo contra a madeira. O chocalho frenético da maçaneta da
porta.
— Lina!
Lina arrastou uma cadeira para longe da parede perto da escada
e empurrou-a por baixo da maçaneta. Só por precaução. Ela não
achava que ele tinha outra chave. Ela roubou a original da mesa dele
e a sobressalente do armário da cozinha. Pequenas coisas adoráveis.
Prateada e esquelética. Ela sorriu com carinho para o que estava em
sua mão.
— Você vai me agradecer depois.
— O inferno que eu… — Uma longa e letal sequência de
maldições filtradas pela porta. Lina arquivou alguns para seu próprio
uso.
— Seja um bom menino, e eu lhe trarei algo legal. — Ela
atravessou o patamar, mancando um pouco, o coração batendo em
uma gagueira inquieta com o que ela tinha feito. Mas ele estaria
seguro agora. Nenhuma bruxa o levaria embora. Ele não precisava se
arriscar por causa dela.
Uma brisa salgada soprou pela janela aberta de seu quarto, as
venezianas verdes presas às paredes amarelas como asas de
borboleta. Do lado de fora, na rua inundada, três andares abaixo, as
pessoas riam, cantavam e balançavam enquanto passavam nos
pequenos esquifes de fundo plano que os moradores de Caldella
chamavam de vassouras. Todo mundo já estava meio bêbado. Lina
podia sentir a fumaça das fogueiras das bruxas. Grandes plumas
espiavam pelas frestas entre os telhados, subindo para nublar o céu
estrelado. E, sob todo o barulho e caos, ela podia ouvir um sussurro
como o bater das ondas contra a costa.
Ela está chegando.
Ela está chegando.
A rainha está chegando.
Lina estremeceu. Ela geralmente adorava a véspera de Santa
Walpurga. A última noite do inverno. A única noite do ano em que as
bruxas que governavam a cidade da ilha vinham e dançavam com o
povo comum. A única noite do ano em que a magia — que era tão
cara — era dada de graça. Ou poderia ser ganha, pelo menos. Uma
noite de fogos de artifício e jogos de sombras, encantamentos e
música.
Mel para moscas, ela percebeu.
Atraíam você com prêmios — um colar de pérolas, cada uma
prolongando sua vida por mais um ano — e promessas —, se você
beijar a pessoa que ama à luz das treze fogueiras, ela será sua para
sempre. Mas se a Rainha das Bruxas te beijasse...
Você seria o sacrifício deste ano. Seria afogado na Praça de
São Casimiro na próxima lua cheia, serviria de alimento à maré
escura para evitar que a cidade afundasse.
Lina vasculhou suas gavetas, desenterrando cachecóis e meias
cuidadosamente dobrados que até esta manhã bagunçavam o chão.
Tia Van, ou talvez tia Iris — uma das irmãs de Mamis, pelo menos —
deve ter entrado sorrateiramente na casa para arrumar e bisbilhotar,
porque claramente não se podia confiar em Lina e Finley para manter
o lugar limpo enquanto suas mães estavam no mar.
Ela flexionou o pé, apontou e flexionou novamente, fazendo uma
careta. Ela estava fazendo todos os seus exercícios de construção de
força, e ela realmente tentou descansar, como lhe foi ordenado, mas
era tão difícil ficar parada quando ela sabia o que seu corpo poderia
fazer. Tão difícil não apenas empurrar a dor como ela foi treinada
depois de anos e anos sendo gritada por professores de dança.
— De novo. De novo. Sim, Lina! Assim mesmo. Respire através
disso. Você tem que empurrar forte. Mais forte.
Ela pegou um par de luvas compridas da cama. Azul claro para
combinar com o vestido. Mais uma dança não faria mal. E, felizmente,
a festa desta noite era segura para as meninas. A Rainha das Bruxas
sempre escolhia um menino. Como diziam as mulheres da ilha aos
maridos, irmãos e filhos: para nós é diferente. Não é seguro para
vocês. E foi por isso que ela teve que trancar Finley.
Lina cantarolou. Música. Magia grátis. Talvez até um beijo?
Do lado de fora, um fogo de artifício explodiu, uma flor carmesim
desabrochando brilhante, suas pétalas caindo e espalhando luz
vermelha pela janela.
A folia havia começado.
Seus pés de meia escorregaram nos degraus de ferro forjado
enquanto ela descia as escadas correndo, seu quadril latejando
quando bateu na curva do corrimão. Os moradores de Caldella
construíram suas casas no segundo e terceiro andares de suas casas
coloridas devido às frequentes inundações; a misteriosa água negra
como tinta batia escura nos três últimos degraus.
Um grito soou quando Lina mergulhou no mar de botas de
borracha e guarda-chuvas amontoados em uma prateleira na parede.
Um choro fraco. E não uma maldição desta vez. A voz de Finley.
Soando dolorido. Em pânico.
Seguido por um estrondo ensurdecedor.
Lina pulou, engoliu.
— Finley?
Um segundo estrondo alto. Lina olhou por cima do ombro em
direção ao teto, voltando para o andar de cima, colocando um pé no
patamar rangente do terceiro andar.
— Finley?
As batidas vieram de novo, ficando mais altas enquanto ela se
aproximava da porta dele. Lina xingou e arrastou a cadeira para
longe, xingou novamente e correu de volta para seu quarto para
pegar a chave que havia deixado lá. Ela a enfiou na fechadura, com o
coração batendo forte, hesitando antes de girar.
— Finley?
E se fosse um truque? Algum estratagema para que ela o
deixasse sair?
— Finley, você está bem? Isso não é uma piada. Esta noite não
é uma piada. — Lina pressionou a testa contra a madeira e mordeu a
bochecha. Ela tinha visto os meninos que a rainha havia escolhido
como sacrifícios. Ela os conhecia. Finley os conhecia. O bonito Eli,
com seu sorriso torto. Aarav, que dançava duetos como em um
sonho. Niko, com seus milhões de sardas. Thomas Lin.
Ela baniu seus rostos de seus pensamentos. Finley achava que
ela queria isso, que ficaria feliz se ele se arriscasse? Ele achava que
ela se importava mais com algum charme do que com a vida dele?
Achava que se ele magicamente afastasse o ferimento dela, isso
compensaria sua parte em causá-lo?
Ou talvez nem fosse sobre ela. Ele não estava preocupado com
a inundação? Murmurando sobre fazer qualquer coisa que pudesse
para pará-la? Estudando gráficos de maré amassados e calendários
lunares, histórias desbotadas e empoeiradas da ilha e a magia que a
mantinha segura.
Talvez tivesse sido diferente nos velhos tempos. Quando a maré
negra subiu e ameaçou afundar a cidade, os ilhéus não tiveram
escolha a não ser fazer um acordo com a bruxa que se tornaria sua
primeira rainha. Fugiram da guerra no continente, fugiram por causa
do que acreditavam ou não acreditavam, por causa de quem amavam
ou não amavam. Este era seu novo lar, seu refúgio, e não tiveram
tempo para escapar e nenhum lugar para correr quando a água preta
entrou. Os primeiros meninos foram para a morte de bom grado.
Mas agora... bem, agora ainda não tinham para onde ir e, sim, a
inundação estava piorando e, sim, havia algo terrivelmente romântico
e corajoso em salvar sua casa e as pessoas que você amava ao
custo de sua própria vida, mas isso não significava que o sacrifício
tinha que ser o irmão dela. Não significava que tinha que ser Finley.
— Finley, por favor, por favor, não faça isso.
Outro estrondo. Madeira batendo em madeira. A trepidação de
vidro estremecendo na sequência de um golpe violento.
Lina destrancou a porta e espiou dentro.
O quarto estava vazio. A cama de Finley estava encostada na
parede. A cadeira da escrivaninha estava presa em cima do colchão,
uma pilha de livros e um velho baú surrado empilhado em cima do
assento. Seu violino e arco se foram.
Uma brisa gelada sussurrou nos ouvidos de Lina. A pena em
sua faixa de cabeça farfalhava contra seu cabelo loiro curto.
A pequena janela perto do teto estava aberta, suas venezianas
azuis sacudiam para frente e para trás com estrondos terríveis
enquanto o vento aumentava. Ela havia se esquecido daquela janela.
Era uma coisa tão pequena, nunca aberta, pouco mais larga que seus
ombros. Como ele tinha se encaixado? Ele era um gigante. Duas
cabeças mais alto que ela, e largo.
Lina subiu a escada improvisada oscilante, dedos brancos
agarrando a moldura da janela para salvar sua vida. Ela se inclinou
para a noite, olhando para cima, depois para baixo, a fúria
incandescente rapidamente substituindo seu medo.
— Espero que ela leve você! — A única resposta foi o riso,
borbulhando da rua inundada abaixo. A luz âmbar da lanterna faiscou
na água negra, nos vestidos cintilantes e nos rostos pintados de prata
e ouro.
— Você perdeu alguém, amor? — uma figura barbuda
perguntou. — Melhor encontrá-lo antes que alguém o encontre.
Lina

Quando Lina tinha quinze anos, ela viu uma rainha se afogar.
Assistiu enquanto a água escura subia pelas rachaduras entre os
paralelepípedos, enquanto a maré tenebrosa batia na lateral da Praça
de São Casimiro que levava ao mar. Ondas negras coroadas com
dentes brancos afiados. Esticando-se, alcançando a pequena e frágil
figura acorrentada ao pilar de pedra no centro. A rainha não vacilou,
não quebrou como os meninos antes dela tinham feito. Não houve
gritos nem orações sussurradas. Apenas o rugido ensurdecedor das
ondas e o rosto de uma bruxa como pedra.
Lina gostava de imaginar que seria assim: destemida quando
mais importava, inquebrável quando se tratava de proteger a pessoa
que amava. Ela roubava coragem da memória muitas vezes, para
pequenas coisas, como o momento antes de ela pisar no palco, e
grandes coisas, como as horas passadas esperando enquanto sua
mãe corria para casa em meio a uma tempestade de naufrágios. Ela
roubava algumas agora, enquanto navegava pelas estradas de água
sozinha no escuro. Mas era difícil não imaginar seu irmão como
aquela pequena e frágil figura acorrentada no centro da praça.
O vento chicoteou seu cabelo. O spray de sal beijou seus lábios.
Ela havia roubado o barco-vassoura do vizinho e bateu no casco com
os nós dos dedos, enviando o esquife mágico pelas veias da cidade,
em direção aos terrenos mais altos. Essas estradas só deveriam
inundar quando a maré cheia atingisse, mas isso acontecia na
maioria dos dias agora. A inundação realmente estava pior do que
nunca.
Lina se inclinou debaixo de um varal de roupa suja pendurada
entre duas casas geminadas, os dedos limpando a parede de tijolos à
sua esquerda, tamborilando um staccato1 ansioso em uma vidraça
escura.
Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Três era um bom número.
Outro barco passou serpenteando, uma lanterna âmbar
balançando de lado na popa. Os ilhéus coletavam o âmbar que o mar
trazia para a praia após as tempestades, e as bruxas o faziam brilhar.
Os meninos que o barco carregava estavam brigando, provocando
uns aos outros, fazendo apostas sobre quem seria corajoso o
suficiente para entrar na festa primeiro. O vinho espirrou em uma
garrafa jogada entre eles. Um declarou em voz alta que seria uma
honra ser escolhido esta noite, que sua família ficaria orgulhosa…
Suas vozes desapareceram. Lina virou seu barco por um beco
estreito, estremecendo quando o casco arranhou o tijolo. Queria
chegar o mais longe possível de barco, porque a pé seria lenta. Muito
devagar. Ela precisava alcançar Finley e... então o quê, o que ela ia
fazer? Levá-lo de volta? Arrastá-lo? Segurar no braço dele e gritar até
ele ficar tão envergonhado que viraria as costas e fugiria?
Ela mesma assassinaria ele? Isso parecia um plano decente.
A quilha do barco arranhou em uma pedra. Lina saltou para
frente no banco. Alguns quarteirões depois, ela foi forçada a
abandonar completamente o barco, prendendo-o a um poste de
amarração listrado de vermelho e branco. Ela continuou a pé,
mancando um pouco, a frustração aumentando a cada passo.
Mais lanternas de âmbar iluminavam o caminho, balançando nos
terraços que se projetavam sobre a rua. Eles tinham eletricidade no
continente, mas os moradores de Caldella preferiam a magia. Era
mais caro, mais luxuoso. As bruxas só usavam magia, e as bruxas
governavam a ilha.
— O que é bom o suficiente para eles no palácio, é bom o
suficiente para gente como nós aqui embaixo — o tio sempre dizia.
Era sobre status. Quanto mais magia você pudesse pagar, mais perto
estava do auge da sociedade.
Lina pegou o dedilhar de música suave, fez uma pausa e olhou
para trás.
Um grupo de ilhéus passou acotovelando-se e fazendo piadas
em voz alta.
— E se a rainha te beijar e te levar para o palácio, lembre-se de
levar uma faca para a cama com você. Dizem que ela tem dentes lá
embaixo!
Lina mordeu a bochecha e mudou de direção. Havia a menor
chance de Finley ter parado, e mesmo que não tivesse…
Ela dobrou a curva, pegou um caminho pelo qual havia se
apressado minutos antes. Embora soubesse o que estava por vir, ela
ainda prendeu a respiração. As ruas labirínticas de Caldella
contornavam centenas de praças encaixotadas, alguns jardins
escondidos e pomares maduros com frutas suculentas. Outras eram
praças de pedra pavimentadas para assembléias e mercados ao ar
livre. A de São Casimiro era a maior. A Praça do Amante era muito
menor, mas facilmente mais bonita, com uma fonte de mármore feita
para captar o luar, árvores exuberantes e roseiras em flor, e uma
escada larga e sinuosa que levava a ruas e casas construídas em
terrenos mais altos.
Ao fundo daquelas escadas, um menino podia ser encontrado
cantando por moedas extras.
Fogos de artifício explodiram no céu, explosões soando nos
ouvidos de Lina no ritmo das batidas de seu coração. Ela já estava
corando, as bochechas vermelhas como o fogo cortando o céu. Lá
estava ele. Pele bronzeada pelo mar e cabelo beijado pelo sol, olhos
castanhos que guardavam uma centena de segredos incontáveis.
Apenas um menino foi escolhido como sacrifício e viveu para contar a
história.
Ninguém se atreveu a perguntar a Thomas Lin como ele fez
isso, como fez a rainha má se importar com alguém mais do que ela
mesma. Como ele a fez se sacrificar em vez dele dois anos atrás.
Certamente não Lina, que mal conseguia olhá-lo nos olhos sem ficar
vermelha como uma lagosta. Mesmo quando ela quebrou o tornozelo
e ele a levou para casa, ela não conseguiu juntar mais do que um
obrigada gaguejante.
Ele voltou como alguém não muito real. Um personagem
escapado de uma história. O menino que havia seduzido uma rainha.
O menino que ganhou sua liberdade de uma bruxa.
Outro fogo de artifício acendeu, este arrastando estrelas verde-
pixie. Lina estava na beira da Praça do Amante, as palmas das mãos
ficando úmidas. Havia também pessoas, como Finley, que diziam que
Thomas Lin era perigoso, que alegavam que ele havia quebrado a
magia que mantinha Caldella segura, que não importava quantos
sacrifícios sua nova rainha fizesse agora, a ilha estava fadada a
afundar.
Ele havia trocado sua vida pela deles.
Lina afastou o pensamento. Ela não estava aqui para os
rumores ou sua paixão desesperada. Esta noite não era sobre ela.
Ela atravessou a praça; Thomas Lin abaixou o violão. Lina respirou
fundo.
— Eu preciso que me diga como você fez uma bruxa se
apaixonar.
As palavras se estenderam no silêncio entre os fogos de
artifício, como uma corda dedilhada ressoando com a primeira nota
de uma música. Lina afundou no degrau de pedra ao lado de
Thomas, reprimindo um calafrio quando o frio penetrou em seu
vestido. A noite estava fresca o suficiente para fazê-la desejar ter
usado um casaco.
Enfeites e contas brilhantes pendiam dos galhos das árvores do
jardim, mas o rosto de Thomas estava mascarado na sombra. Seus
dedos brilhavam brancos onde ele segurava sua guitarra.
— Por favor. É por Finley. — Thomas conhecia seu irmão,
mesmo que não gostassem um do outro. Não havia estranhos em
Caldella, exceto pelas bruxas, que ficavam, principalmente, no
Palácio da Água, a não ser em noites como esta. Lina conhecia o
rosto de cada ilhéu, mesmo que nem sempre se lembrasse de todos
os nomes. A ilha foi fechada para forasteiros. E Finley e Thomas
estudaram música no Conservatoire, a mesma escola onde ela
estudou dança. — Você poderia falar com ele, dizer a ele. Ele está
decidido a se juntar à festa esta noite, e eu…
— Você acha que a rainha vai escolhê-lo.
Lina puxou seu colar, segurando as contas vermelhas tão
apertadas que cravaram em seu pescoço.
— Todos nós sabemos que ela pega os bonitos. Não há mais
ninguém para competir com Finley. Ninguém vai — ela emendou.
A boca de Thomas se contraiu.
— É por isso que você raspou uma das sobrancelhas dele?
— Foi um acidente. Eu pretendia raspar as duas, mas ele
acordou.
A risada de Thomas encheu o jardim. As pessoas que passavam
pararam e olharam. O calor percorreu Lina apesar do ar frio da noite.
Não era como se outros garotos não tentassem parecer pouco
atraentes. Finley deveria ter agradecido a ela.
— Acho que nunca o vi tão bravo — disse Thomas. — E isso
significa alguma coisa. Todos pensamos que você fez aquilo porque
ele usou seu vestido rosa na festa de Josef.
— Ele o quê?
— Ah. Merda. Você não sabia?
Seu vestido rosa novinho em folha, que brilhava como o interior
de uma concha. Com seu zíper que, misteriosamente,
inexplicavelmente, quebrou. Os dentes de Lina se juntaram com um
clique.
— Ele parecia bastante atraente — disse Thomas.
Lina deu-lhe um soco no braço, depois puxou o punho para trás
como se tivesse sido escaldada. Ela tinha acabado de tocar em
Thomas Lin. Ela tinha acabado de dar um soco em Thomas Lin.
E ele estava sorrindo.
Ele colocou o violão de lado e se aproximou. Lina não resistiu a
fazer o mesmo, dobrando as pernas para que seus joelhos se
encostassem acidentalmente.
— Você tem que ajudar. Pode contar a ele como você
sobreviveu, como você enganou a rainha, como você…
Uma leve ruga se formou entre as sobrancelhas de Thomas. Ele
pressionou o polegar no lábio inferior, então alisou as mãos sobre a
calça.
— Ele passou por aqui há pouco, com Istvan e Josef. Eu disse a
Josef que eles não deveriam ir, mas ele não queria. Eles já se foram.
— Se foram — Lina repetiu. O vento soprava pelo jardim,
despenteando seu cabelo. Havia algo tão angustiantemente final
sobre a palavra.
— Lina — disse Thomas suavemente. — Eu tentei impedi-los.
— Tentou? Você não fez um trabalho muito bom. Você disse a
eles o que fazer se fossem escolhidos? Contou a eles o que você fez
para se salvar? — Lina se levantou. Ele nunca havia contado a
ninguém, e pela expressão em seu rosto agora, ela sabia que ele não
havia contado a Finley. Ele manteve o segredo para si mesmo.
— Você não pode mantê-lo preso — disse Thomas. — Ele é um
homem adulto. Não acho que a rainha vai levá-lo.
— Ah, e você pode jurar isso, pode? Ninguém pensou que ela
levaria Niko.
Niko, com seu cabelo preto e cheio de sardas. Niko, com seu
sorriso selvagem. Niko, morto no fundo do mar.
Thomas estendeu a mão para ela.
— Lina.
Por que ela se incomodou? Por que tinha vindo aqui? Ela só
tinha perdido mais tempo. Ela deu de ombros e perdeu o equilíbrio ao
subir o primeiro degrau. Seu coração bateu contra sua caixa torácica
enquanto ela cambaleava para trás.
Ela se conteve, caminhou mais devagar, subindo os degraus um
de cada vez, as bochechas queimando. Ela deveria ter raspado a
cabeça inteira de Finley, deveria tê-lo nocauteado ou amarrado de
alguma forma. Lágrimas ardiam em seus olhos. Ela só chorava
quando estava frustrada ou furiosa. Tão furiosa que ela queria
quebrar alguma coisa. Alguém.
Ela andou pelas ruas lotadas, acotovelando as pessoas que
festejavam, pessoas muito espertas ou muito assustadas para colocar
os pés dentro da festa. O cheiro de uísque se misturou com os
aromas de fumaça e suor. Arcadas de lojas alinhadas em colunas
cercavam a Praça de São Casimiro por todos os lados, menos por
um. A última dava direto para o mar.
Lina parou em um arco ao lado de uma coluna em frente à
sorveteria fechada. Suas janelas tremiam com o gemido de tubos e
cordas. Fogos de artifício coroaram a cena diante dela, mas ela mal
conseguia ver nada além da névoa de calor das fogueiras. Formas e
sombras dançando. O grande pilar de pedra no centro disparou para
perfurar a noite.
Tambores batiam trovejando no chão, e o som deles puxou,
chamando aquela voz sinuosa dentro dela, aquela que a incitava a
pular quando estava no topo de um lance de escadas, aquela que lhe
dizia para pular do convés do navio de sua mãe, embora não
soubesse nadar. O desejo a encheu. Ela queria muito entrar na praça,
apesar do perigo. Ela queria dançar, pular e girar e estalar os dedos.
Ela queria ter um vislumbre da malvada Rainha das Bruxas
enquanto ela entrava e saía dos foliões disfarçada, mudando de
rosto, aparecendo um segundo como a pessoa que você amava,
transformando-se em seguida na pessoa que o garoto ao seu lado
amava, enganando você para pegar sua mão, enganando você para
beijá-la.
A dor surda em seu tornozelo permitiu que ela se livrasse do
puxão da magia. Seu corpo inteiro tremia, e ela não tinha certeza se
era de medo ou desejo. Uma gota de suor escorria de sua têmpora.
Verdade seja dita, ela não deveria estar aqui esta noite também. Ela
deveria estar descansando, deveria estar comemorando a véspera de
Santa Walpurga com o resto da família na casa do irmão de Mamis,
onde ela e Finley deveriam estar agora. Alguém viria procurá-los? Ela
captou trechos do clamor habitual enquanto passava pela casa: o
familiar silvo de óleo quente, o barulho de panelas e frigideiras se
afogando sob as vozes de cinco de suas seis tias. Fofocas e risos tão
altos que dava para ouvir no meio da rua.
As unhas de Lina cavaram luas crescentes em suas palmas. Ela
até teria ficado lá com Finley, como disse a ele. Por um tempo, pelo
menos. Ela teria escapado sozinha mais tarde, só por um tempo.
Enquanto todos se empanturravam de caranguejo manteiga,
enquanto Nina e Ivy tocavam piano ou Finley tocava violino ou o
primo número quinze tocava violoncelo. Todas as tias ocupadas
jogando olhares presunçosos de um lado para o outro como facas,
cada uma confiante de que ela tinha o filho mais talentoso, todos
distraídos demais para perceber que ela estava desaparecida.
Seu irmão sempre teve que fazer tudo sobre ele, mesmo quando
ele supostamente estava fazendo algo por ela.
Lina começou a avançar. Uma mão áspera agarrou seu pulso.
Thomas manteve um amplo espaço entre ele e a borda da praça, a
borda da folia. Seus olhos dançaram com chamas refletidas, e ela viu
medo e hesitação espreitando em suas profundezas. O
aborrecimento aumentou.
— Não é como se fossem escolher você duas vezes. — Até as
bruxas respeitavam os desejos das rainhas mortas. Lina sacudiu o
braço e deu um passo para trás através do arco. — E não é como se
ela fosse me escolher.
Lina

O mundo não mudou tanto enquanto se aguçava.


As bordas cortavam como facas, as cores brilhavam como o
vislumbre de uma lâmina. Lina podia ver os foliões claramente agora,
girando em círculos selvagens. Mãos entrelaçadas. Cotovelos
entrelaçados. Conduzidos pelo bater implacável de tambores. O grito
e o lamento do cachimbo2 e do violino. Os dançarinos deram voltas e
voltas, no sentido horário e no sentido anti-horário, para frente e para
trás. Pessoas que ela conhecia e pessoas que ela não conhecia.
Silhuetas borradas. Sereias de vestidos com sorrisos de tubarões e
pulseiras que tintilavam, de âmbar e conchas. Figuras de peito nu
com olhos tão frios quanto vidro no mar.
Alguns diziam que as bruxas eram sonhos e pesadelos que
escaparam de mentes mortais. Crianças nascidas depois do pôr do
sol. Elas ainda pareciam humanas, ou escolheriam parecer, e seus
trajes negros se misturavam com as sombras, fazendo parecer como
se elas piscassem dentro e fora da noite em si.
O coração de Lina enfureceu, pulso acelerado ao pensar em
estar cercada por muita magia. A música atingiu um acorde em seus
ossos. Ela avançou, cantarolando inconscientemente sob a
respiração, procurando na multidão por um topete preto e olhos tão
cinzentos quanto o mar de inverno. Aqueles que não dançam foram
reunidos em torno das fogueiras, tentando encantar as bruxas com
seus talentos. Só porque a magia foi dada de graça esta noite não
quer dizer que foi dada por nada; você tinha que impressionar uma
bruxa. Outros ainda estavam tentando pegar faíscas laranjas
crepitando na madeira fumegante. Uma queimadura de uma das treze
fogueiras trazia sorte para o portador pelo resto do ano.
Uma das bruxas, uma menina de pele marrom com aros de
prata balançando de suas orelhas, pegou uma faísca e, acenando
uma vez como um brilho, colocou-a atrás do ouvido de Lina.
Corando, Lina estendeu a mão para tocar, se maravilhando com
o calor suave que encontrou nos dedos. A bruxa piscou, e uma Lina
agitada recuou, ombros batendo no peito firme atrás dela. Ela girou,
pedindo desculpas.
Thomas olhou para ela, expressão tão calculada que a culpa
imediatamente picou sua consciência. Ela não sabia que lembranças
escuras ela pedia a ele para reviver por estar aqui. Embora
tecnicamente ela não o pediu para estar aqui — ele veio atrás dela.
Seguiu ela.
Um estranho aperto espremeu o peito de Lina. Sua raiva de
mais cedo desapareceu. Quando os braços dele ficaram sob os dela,
ela não protestou, apenas deixou ele puxá-la para mais perto. Tão
perto que seus peitos se encostaram. Ele a conduziu para o fluxo e
refluxo de dançarinos, as mãos deixando pequenos pontos de calor
nas pequenas costas, em seu braço, seu quadril.
A garganta de Lina ficou seca.
— Eu pensei…
Eu pensei que você não se importasse.
— Eu não posso perder ele. — Saiu como um sussurro. Parecia
um pedido de desculpas.
Os olhos de Thomas estavam tão escuros que pareciam quase
pretos. Ele a puxou ainda mais perto, e quando se moveram, era
como se tivessem dançado estes passos cem mil vezes antes. Seu
corpo respondeu ao menor movimento dela. Seu olhar nunca deixou
o de Lina. Ela podia sentir seus ossos do quadril enquanto eles
giravam juntos através da maré de corpos. Palavras aquecidas
fizeram cócegas na ponta do ouvido. Lina não podia respirar.
— Você terá que segurar ele com firmeza então. — Seu sorriso
era agudo quando ele se afastou. Frio repentino correu entre eles
enquanto ele a soltava.
A boca de Lina abriu, mas ele já estava girando, tomando o
braço de outro menino.
Alguém pegou seu pulso. Lina pulou. Era Thomas.
— Não! Thomas? — Ela se contorceu, olhando para um lado e,
em seguida, para o outro, do mar de dançarinos em que Thomas
havia se fundido, para o Thomas que apertava seu pulso. Seu
coração gaguejou. Quem...
Mas ela sabia quem. Havia apenas uma bruxa que usava os
rostos de outras pessoas na véspera de Santa Walpurga. Uma bruxa
que aparecia para você como a pessoa que você amava.
Uma minúscula emoção involuntária atravessou Lina.
— Você viu…
— Finley? — Thomas, o verdadeiro Thomas, ficou com toda a
tensão de alguém prestes a fugir, pavor enrolado em todos os
músculos. — Não, ainda não.
Lina engoliu em seco e não o corrigiu. Havia tanto medo em seu
rosto já. Ela soltou uma respiração. Mas o sangue em suas veias
ainda estava cantando, zumbindo.
— Vou te ajudar a encontrar ele. Eu ouvi que você feriu seu
tornozelo novamente. — Um reflexo quente de indignação ajudou
Lina a recuperar a compostura.
— Eu não sou indefesa.
— Mas você é lenta. E pequena. Alguém poderia te derrubar.
Você poderia ser pisoteada. Ferida. Olha, não importa se ela não vai
te pegar. Não pode confiar em ninguém aqui. Quanto mais rápido
você o encontrar, melhor.
Thomas se encolheu quando um feitiço de mensageiro — uma
pequena espiral de vento, uma tromba d'água do tamanho de uma
xícara de chá — passou assobiando por sua têmpora com um tilintar
de vento.
O coração de Lina doía. Como ele poderia ter medo de magia
quando era tão bonita?
— Nós seremos rápidos então, prometo. — E talvez fosse uma
resposta à provocação de um minuto antes, mas ela estendeu a mão
e pegou a mão dele. — Eu vou segurar você. — Ela estava corando
novamente, as bochechas brilhando ainda mais do que as fogueiras,
mais brilhantes mesmo que os fogos de artifício carmesim
florescendo acima de suas cabeças. — Quero dizer… quero dizer —
ela gaguejou. — Como… como a música. — Ela não conseguia
encontrar os olhos dele. De repente, ela queria encontrar quem
estava tocando e estrangulá-los. Os fracos acordes cadenciados de
um único violino.
Esconda ele, esconda ele, fora de vista.
Segure ele, segure ele, segure firme.
Compreensão apareceu no rosto de Thomas. Lina estava pronta
para cavar um buraco e se enterrar nele. Ela também poderia ter
gritado “Eu te amo!” na frente de toda a maldita praça. Porque era
uma música que todos os ilhéus conheciam e uma canção que a
rainha obviamente sabia. Uma música sobre uma garota que se
recusou a entregar seu amante como sacrifício, que não o deixou ir
nem mesmo quando a rainha usou magia para tentar roubá-lo. A
bruxa transformou o menino em uma serpente marítima, um urso e,
finalmente, uma parede furiosa de fogo, mas a garota não tinha
soltado e, no final, a rainha tinha sido forçada a deixar os amantes.
Uma dançarina que passava pegou a melodia, cantando as
palavras em alto e bom som. Então outra. E outra. Vozes levantadas
em uníssono, em desafio. A ilha inteira cantou, ondas de som
varrendo a praça.

A Rainha das Bruxas vem nas asas da noite.


A Rainha das Bruxas tem o deleite do seu coração.
Segure ele, segure ele, segure ele com força.
Esconda ele, esconda ele, fora de vista.
Não havia uma pessoa aqui que não conhecesse a melodia, que
não tivesse ouvido as palavras cantadas acima de seu berço, que não
tivesse adormecido com a história da garota que roubou o amor da
Rainha das Bruxas.
Lina cantou também, porque, foda-se, não havia como ela se
envergonhar mais. Não havia como voltar agora.
Thomas não tirou os olhos dela quando ele se juntou, a voz
suave, mas carregada por causa de sua qualidade assombrosa. O
dele era o canto de uma sereia, atraindo todos os que o ouviam.
O círculo de dançarinos os arrebatou. A correnteza jogou eles
ao redor da praça, e Lina ignorou ferozmente a pontada de dor aguda
que piorava em seu tornozelo. Ela pagaria por isso mais tarde, mas
por enquanto Thomas estava com ela, firmando-a. Ele a girou
rigidamente, conscientemente, segurando-a a uma distância
estranha. Era Lina quem tinha que conduzir seus passos agora, e ela
rapidamente empurrou para baixo a menor pontada de decepção.
Então ele não era um dançarino muito bom; o que é que tem? Ela
deu os braços a ele, guiando-o através dos outros foliões.
— Você viu Finley? — ela perguntou a Gita quando a espiou.
Sua colega estava rindo, um braço em volta de um músico barbudo.
Seus lábios pintados se abriram em um O quando ela espiou
Thomas.
— Você viu meu irmão? — Lina perguntou a uma bruxa envolta
em pele de foca. — Cabelo preto? Massivamente alto? Ele toca
violino.
Gita balançou a cabeça. A bruxa beijou as bochechas de Lina.
Lina viu o amigo de Finley, Istvan, e agarrou seu pulso.
— Onde diabos está Finley, cabeça de botão?
Istvan praguejou e acenou com a mão na direção de onde eles
vieram. O grande círculo de dançarinos se dividiu em filas, bruxas do
lado de fora, ilhéus do lado de dentro, todos entrando e saindo, saias
girando como tornados virados para cima.
O suor grudou o vestido de Lina nas costas.
— Eu vou matar ele.
— Isso não anularia o propósito? — A bota de Thomas estalou e
esmagou uma garrafa quebrada.
Ele se moveu junto com ela enquanto se dirigiam para o outro
lado da praça, finalmente encontrando o ritmo, e Lina se permitiu
imaginar, apenas por um minúsculo, minúsculo segundo, que ela não
estava aqui procurando por seu irmão. Que ela estava aqui pela
magia, pela promessa ousada das bruxas: ela beijaria o menino que
amava à luz das treze fogueiras, e ele seria dela para sempre. Ela
sonhava acordada com isso, qual seria o gosto de Thomas, qual seria
a sensação da boca dele se movendo contra a dela.
Quente. Insistente. Devaneios obscuros que reviravam seu
estômago em nós e a deixaram corada e um pouco envergonhada.
Havia uma fome profunda e voraz dentro dela. Às vezes ela não tinha
certeza se queria beijá-lo ou comê-lo inteiro.
Sua mão se fechou sobre a dela. O calor penetrou em sua luva,
e ela desejou não tê-la usado, desejou poder sentir a pele dele
pressionada contra a dela.
— Finley tem sorte. Quando eu... eu não tinha ninguém que se
importasse o suficiente para vir atrás de mim. Que teria me segurado.
Lina engoliu.
Thomas sorriu, a ação desfazendo-a como sempre fazia, cada
osso de seu corpo derretendo para um mingau. Porque Thomas era o
garoto de seus devaneios, o único garoto que a Rainha das Bruxas já
havia deixado ir, o garoto no centro da história de amor mais famosa
de Caldella, o que era uma façanha em uma cidade repleta de
histórias de amor. Da garota que manteve seu amante através de
encantamento e fogo, a Laolao e vovô, que navegaram de lados
opostos do globo para que pudessem ficar juntos, a Mamis, que
contrabandeou Mainha para a ilha pouco antes que suas fronteiras
fossem fechadas.
Histórias encheram a ilha das bruxas até transbordar.
Mas para Lina, muitas vezes parecia que tudo emocionante,
tudo que significava alguma coisa, aconteceu antes que ela tivesse
idade suficiente para participar. As histórias terminaram, os livros
fecharam e ela estava presa vivendo no felizes para sempre de outra
pessoa. Uma personagem de fundo chato. Ela queria mais. Ela queria
ser algo mais. Queria mudar alguém ou salvar alguém. Queria um
amor sobre o qual as pessoas contassem histórias.
O sorriso de Thomas prometia que ela poderia ter isso.
A música mudou, e ele retirou a mão da dela para copiar
cuidadosamente o garoto ao seu lado, pressionando o punho contra o
coração e mergulhando na cintura conforme os passos da próxima
dança exigiam. Uma figura ágil com cabelos cor de cinza empurrou
Lina para o lado, jogando-a de repente para os braços de outro folião,
roubando seu lugar como parceira de Thomas.
Ela gritou em protesto ao mesmo tempo que Thomas fez. Ela
tropeçou e perdeu o equilíbrio. Seu novo parceiro a pegou pela
cintura e a girou no ar, o mundo se transformando em um borrão
vertiginoso.
— Espera, espera! — Lina olhou para trás, mas só captou o
flash do cabelo loiro de Thomas desaparecendo no escuro.
Eva

No dia em que sua irmã morreu, Eva selou seu coração dentro
de uma garrafa e o jogou no mar.
Mas, às vezes, quando ela encostava o ouvido nas frias paredes
de pedra de seu palácio, quando se revirava à noite em vez de
dormir, ela jurava que ainda podia ouvir: uma batida fraca e
constante. Um tamborilar enquanto ela atravessava um corredor
vazio, batendo nas pontas dos pés. Ela podia ouvi-lo agora no
barulho rítmico das ondas negras em suas costas, um barulho em
seus ouvidos enquanto ela arrastava uma mão pelo fogo.
Chamas lambiam seus dedos, faziam cócegas na curva
elegante de sua palma. O ar se curvou e ondulou, a fumaça
serpenteando até se fundir com o céu estrelado. A décima terceira
fogueira ficava à distância das outras, à beira da praça que
desembocava na maré, à sombra do grande pilar de pedra onde,
daqui a um mês, Eva acorrentaria o menino que amava e o deixaria
para ser engolido pelo mar.
Ela gostava daqui, onde não era tão lotado, longe da correria
interminável de foliões e dançarinos, longe das pessoas que ela
instintivamente não gostava por nenhuma outra razão além de serem
pessoas e Eva não gostar de pessoas. Aqui ela podia esperar e ver
seu reflexo mudar nas poças a seus pés. Podia se ver crescer alta e
magra ou baixa e gorda, jovem e velha, por sua vez.
Seu cabelo torcido em cachos de sereia espessos, caindo lisos
e retos em sua espinha. Pele empalidecendo e escurecendo em
contrapartida. Ela usava mil rostos, mas nunca o seu.
E quando os dançarinos se aproximavam, cambaleando para
recuperar o fôlego e aquecer as mãos, ela podia ouvir, ouvir o que a
cidade tinha a dizer sobre ela.
— Dizem que ela não tem coração.
— Dizem que a bruxa é amaldiçoada.
— Frígida.
— Ouvi dizer que ela é feita de pedra.
— Ela vai falhar de novo este ano, você vai ver. Em breve.
O último orador estalou os lábios como se a perspectiva o
agradasse. Ele estava do lado oposto da fogueira de Eva, meio
escondido pelas chamas. Cabelos ralos e grisalhos. Pele coriácea
bronzeada pelo sol e pelo mar. A ponta de seu cigarro brilhava em
vermelho enquanto ele puxava uma respiração irregular.
Os homens de cada lado dele ecoaram a ação, cada um tão
desgastado pelo tempo e salpicado de sal quanto as ruínas
afundadas que enchiam o porto de Caldella. A fumaça subiu como
fantasmas entre seus dedos nodosos.
— A ilha vai afundar e todos nós com ela. — Sua voz era
áspera. A maré batia na orla da cidade, transbordando e se
acumulando nas pontas pontiagudas dos sapatos de Eva. — Não é
um sacrifício se ela não se importa. Ela não tem amor por nós. Sem
amor pelos garotos que ela leva.
— Se é de amor que ela precisa… — O mais baixo dos três
tinha uma âncora azul tatuada na lateral do pescoço.
— Você vai para a cama com um monstro, então? — O último
homem deu uma cotovelada nas costelas de seus companheiros.
— Melhor um monstro do que sua esposa. — Risadinhas
estouraram acima da briga que eclodiu. — A bruxa vai se parecer
com quem eu quiser. Ainda bem, se ela for tão horrível quanto dizem.
— Ainda assim, é um pouco difícil ir para a cama com uma
garota feita de pedra.
Eva desenrolou uma das várias pulseiras amarradas em seu
pulso. Torções desfiadas de seu cabelo preto e barbante vermelho-
sangue. Cada feitiço exigia um pedacinho da bruxa que o lançava.
Cada maldição tirava uma pequena mordida de você até que não
tenha mais magia. Ela enrolou as cordas nos polegares e nas pontas
dos dedos, como se estivesse brincando de berço de gato, o que os
ilhéus chamavam de Jogo das Bruxas.
— Ah, tenho certeza de que posso fazer. Algumas cutucadas e
ela vai implorar por mais.
Eva moldou uma rede e depois um peixe. Uma onda atingiu a
borda da praça, e borrifos estouraram no ar. Agulhas geladas
afundaram em sua pele, onde seu vestido mergulhava para mostrar
suas costas. O resto das gotas pareceram congelar, brilhando. Ela
formou uma segunda forma, uma terceira, fios brilhando quentes,
antes que o mundo voltasse correndo.
A água encharcou os paralelepípedos. Cigarros caíram de
dedos nodosos, chiando quando bateram na pedra.
Eva saiu de trás da fogueira. Três gaivotas estavam onde três
homens uma vez estiveram, olhando para ela com as expressões
escancaradas e de queixo caído, comuns aos velhos confrontados
por garotas que se defendem.
Um tossiu, um som que se transformou em um crocitar. O
segundo bateu os braços em pânico. O terceiro decolou, guinchando,
girando círculos raivosos acima de sua cabeça.
— Parece que você está se divertindo. — As botas se
arrastaram quando Marcin saiu das sombras à esquerda de Eva. Seu
cabelo de um vermelho profundo como as chamas da fogueira, um
sorriso puxando sua boca generosa. — Mas se continuar
transformando todos os ilhéus que a irritam em uma gaivota, em
breve não teremos mais ninguém. — Ele encostou o ombro no de
Eva, puxando de brincadeira as tranças que coroavam sua cabeça. —
Encontrei um bom para você. Cachos castanhos. Alto. Um verdadeiro
encantador. Você vai gostar dele.
Eva reatou as pulseiras, puxou as mangas do vestido preto para
baixo sobre os dedos.
— A menos que você prefira deixar a cidade afundar. — O tom
de Marcin era suave. Não continha nenhum julgamento, nenhuma
acusação. Era quase... uma sugestão.
Uma segunda onda quebrou contra a borda da cidade.
Não é um sacrifício se ela não se importa.
Não há mágica em sacrificar alguém com quem você não se
importa. Não há sacrifício se não te machuca desistir dessa pessoa.
Não há poder sem preço.
Eva podia sentir a fúria da maré negra em cada chicotada que
dava contra a pedra, uma fome que não era saciada há quase dois
anos. Isso lhe deu uma espécie de satisfação selvagem. Era uma
espécie de vingança mesquinha.
Vocês levaram minha irmã. Por que eu deveria dar alguma
coisa?
— Todas as grandes cidades caem eventualmente. — Marcin
torceu o grosso anel de prata em seu polegar. — É como as coisas
são. Você nem sempre pode lutar contra o destino.
— Mas não esta cidade. Nossa cidade não vai cair. — As
palavras cortaram a escuridão, mas tremeram com uma nota de
incerteza. Yara tinha um jeito de falar que fazia tudo parecer uma
pergunta. Com passos delicados, apertando a saia longa e brilhante
para não arrastar no chão, ela escorregou em seu lugar de sempre à
direita de Eva. A luz do fogo brincava com sua pele morena suave,
brilhante onde pegava o coral e as pérolas se entrelaçando
carinhosamente em seus braços e pulsos.
— Seria apenas temporário — disse Marcin. — Poderíamos
reconstruir em outro lugar.
— Onde? — disse Yara.
— Em algum lugar do outro lado do mar. — Marcin deu de
ombros. — O continente. Uma das cidades litorâneas. As coisas
estão diferentes lá agora.
— Você não tem como saber disso. — Eva interrompeu Marcin
antes que ele pudesse delinear todo o seu plano. Ela já tinha ouvido
isso milhares de vezes antes. E ela não levava a sério; Marcin
gostava de fingir que não se importava com a ilha, com nada e nem
com ninguém, quando na verdade se importava mais do que a
maioria. — Eu não vou abandonar Caldella. Não vou abandonar a
cidade de Natalia.
Porque ainda parecia a cidade de Natalia. Não dela. As estradas
de água enevoada e as ruas de paralelepípedos escorregadias, as
casas pintadas em tons pastéis apertadas demais, os jardins
escondidos enfiados em praças escuras, iluminados pela luz âmbar
das lanternas e cheirando a rosas depois da chuva. Todos eles
pertenciam a sua irmã. Não havia um lugar na ilha que não fizesse o
vazio no peito de Eva doer.
Ela captou um lampejo de emoção nos olhos castanhos de
Marcin. Ele era o amigo mais próximo de sua irmã, a ajudou a fugir do
continente quando Natalia era criança e Eva ainda mais jovem, não
mais que uma bruxinha, mal com idade suficiente para andar. Muito
antes de todos terem sido adotados pela então rainha de Caldella.
Yara colocou uma mão gentil no braço de Eva.
— O sacrifício vai funcionar este ano. Você só precisa deixar ir,
se deixe se importar.
Se deixe se importar. Mas o que ela queria dizer era: se deixe se
machucar.
O fantasma de Natalia pousou sobre os ombros de Eva como
um xale. A primeira regra da magia era nunca entregar muito de si
mesmo. Nunca trocar mais poder do que você poderia perder. Nunca
amar uma pessoa mais do que você ama a si mesmo.
Eva não cometeria o mesmo erro que sua irmã.
Era mais seguro nunca se importar.
— Para duas bruxas tão desesperadas para salvar esta cidade
— disse Marcin — parece que sou eu quem está fazendo todo o
trabalho. O único a procura de meninos para Eva escolher como seu
sacrifício. O que vocês tem feito? — Ele olhou de uma garota para
outra. — Transformando homens em gaivotas? Enchendo a pança?
Havia uma pitada de açúcar abaixo dos lábios exuberantes de
Yara; ela sempre foi uma formiguinha.
Ela esfregou o queixo, franzindo a testa, enquanto o sorriso de
Marcin se tornava malicioso.
— Tinha um menino que assava doces na esperança de ganhar
alguma magia.
— Tão gentil como eles fazem isso — disse Marcin. — Mostram
seus talentos para que possamos escolher os mais atraentes.
— Um ruivo — Yara continuou, ignorando-o. — Você pode fingir
que ele é Marcin quando o acorrentar ao pilar. Mas o mais bonito de
todos está tocando violino na terceira fogueira. Eu disse a Omar para
ficar de olho nele.
— O meu tem cachos — disse Marcin. — O moreno de quem te
falei.
— O meu tem covinhas — disse Yara. — E olhos cinzas de
inverno e cabelo bagunçado. Preto.
— Nenhum loiro? — disse Eva secamente. As palavras
escaparam antes que ela pudesse pensar melhor sobre elas.
Marcin e Yara trocaram um olhar. Eva rapidamente decidiu que
preferia quando eles estavam brigando.
— Dancei antes. Com muitos meninos. — E não achei nenhum
atraente. Ela alisou o vestido. — Eu posso escolher por mim mesma.
Outro olhar. Outra troca sem palavras que a cortou
completamente. Não tanto desconfiança quanto falta de fé nela. A
raiva crescente penetrou na voz de Eva.
— Eu deixei vocês escolherem o último. E olha no que deu.
— Porque você não fez absolutamente nenhum esforço — disse
Yara. — Você nem tentou se apaixonar um pouco por ele, E. Você
nem tentou. Eu sempre escolho os mais bonitos. Para Natália
também. Não há um suprimento infinito.
— Beije o menino com cachos castanhos. Ou aquele com o
violino. Você gosta de música — disse Marcin, como se isso
resolvesse.
Eva havia gostado de música e músicos, uma vez.
— Eu posso escolher meu próprio sacrifício — ela repetiu, e
começou a avançar, caindo mais uma vez na correria da multidão.
Não foi difícil perder os outros em meio aos foliões. Eva envolveu as
sombras em torno de si e, quando se mexeu, foi como se arrastasse
a noite atrás de si. Seu reflexo brilhou em poças, nos olhos
apaixonados de dançarinos rodopiantes.Sempre em mudança.
Ela era uma bruxa. Um ilhéu. Um menino.
Novo. Velho. Meia-idade.
Cabelo longo. Cabelo curto. Cabelo preto. Castanho.
Loiro.
Eva parou com um pé congelado no ar. A poça em seus pés se
despedaçou quando um folião passou, mas no segundo antes... no
segundo antes, havia mostrado um fantasma.
Dançarinos fluíam em uma cadeia sem fim.
Eva olhou para a água ondulante, para seu reflexo trêmulo,
segurando sua forma atual. Ela levantou a mão e traçou o queixo
familiar, estremecendo com a aspereza que encontrou lá. A barba
curta. A boca macia. Os olhos castanhos escuros. Ela olhou para
suas mãos, bronzeadas pelo sol e calejadas por repetidas dedilhadas
nas cordas do violão. Mais cedo, ela teve um vislumbre e pensou que
estava vendo coisas. Estava mudando tão rapidamente, mudando de
um conjunto de braços para outro, girando, girando, girando.
Ela girou agora, procurando por quem a fez mudar, fez com que
ela tomasse esta forma de todas as formas. Ela fechou os olhos e
escutou, analisando os sons, filtrando a música, o alto crepitar das
chamas da fogueira, as risadas. Ela pensou que tinha ouvido seu
canto também. Aquela voz como um sussurro cadenciado, como uma
canção de ninar enquanto te persuadia a dormir. Uma música que te
aconchegava antes de cortar sua garganta. Ela o ignorou, descartou
como um mero desejo porque Thomas Lin não ousaria se juntar à
festa na Praça de São Casimiro. Não essa noite. Não enquanto ela
estava aqui.
A fogueira mais próxima cuspiu, faíscas incandescentes
evocando gritos de dor daqueles que escaldaram.
Eva serpenteou pela multidão em busca de uma voz, em busca
de um fantasma, duas perguntas em mente: que rosto ela usaria
quando o encontrasse? E, a maré negra ainda aceitaria seu sacrifício,
se ela afogasse o menino com suas próprias mãos?
Lina

— Está errada, essa música.


Lina olhou para o lado, assustada. Ela se afastou das fogueiras
e dos foliões, voltando para um arco escuro entre as colunas da
arcada circundante para recuperar a respiração. O ar estava mais frio
na frente da linha de lojas fechadas. Ela não tinha percebido que seu
parceiro de dança a seguiu. Uma comichão de desconforto correu por
sua espinha.
— Aquela que você estava cantarolando agorinha? “Esconda
ele, esconda ele, fora de vista. Segure ele, segure ele, segure firme”?
— Ouviu-se um suave arranhão quando o bruxo coçou sua bochecha
barbada. Ele parecia ter a idade de Mainha, mas você nunca poderia
dizer. Os sonhos e pesadelos envelheciam?
Ele usou uma manga para limpar o brilho de suor de sua testa
pálida.
— Pessoalmente, prefiro uma música em que a heroína não
morra queimada no final.
— Ela não queima até a morte — protestou Lina.
— Ah, ela queima. Queimou. A moça que segurou seu amante e
nunca o soltou? Ela soltou. Quando a Rainha Jurata transformou o
rapaz em fogo, seu coração falhou. Não foi rancor, sabe, mas um
teste. O amor pode quebrar um feitiço, mas no final, a moça não o
amava o suficiente para mantê-lo. Ela se perdeu no medo e esqueceu
o que estava segurando. Ela e o rapaz foram queimados vivos.
Queimaram até não sobrar nada. — Os dentes do bruxo cortaram um
crescente torto. — Mas nenhum de vocês canta essa parte.
Ele se aproximou, o sorriso crescendo quando Lina ficou tensa e
deu um pequeno passo para trás. As bruxas só sorriam quando
queriam alguma coisa, porque sabiam que iam conseguir.
O coração de Lina estava batendo, mas ela levantou o queixo
em desafio.
— Mesmo que isso seja verdade, a rainha ainda perdeu. A
menina ainda ganhou.
— A morte está vencendo, então?
— A rainha não conseguiu o que queria. Ela não pôde roubar o
menino.
— E agora você sabe por que nenhum de nós gosta da música.
— O bruxo baixou a cabeça. — Você deveria dizer isso ao rapaz,
aquele que tocou agora. — Seus olhos passaram por ela. Lina seguiu
seu olhar, olhando para a multidão, os olhos arregalados. — Não vai
ganhar nenhuma mágica para ele. Pensei em mencionar isso em
troca da dança. Vocês são parecidos, os dois. Os mesmos olhos e…
Lina não ouviu o resto, porque ela já estava se movendo,
correndo em direção à fogueira mais próxima e a silhueta por suas
chamas ondulantes. Isso tinha sido uma ameaça? O bruxo estava
tentando avisá-la? Um aviso em troca de uma dança em vez de uma
bugiganga encantada ou mecha de cabelo?
Alguém havia pintado uma faixa brilhante de ouro nos olhos de
seu irmão como uma máscara. Covinhas apareceram nas bochechas
coradas de Finley assim que ele a viu. Beber sempre o deixava
vermelho como um tomate.
— E este pássaro aqui com cara de bravo é minha irmãzinha —
ele informou a garota ao seu lado. Uma garota extremamente bonita
em preto brilhante, cujos longos cabelos castanhos ondulavam como
ondas.
Finley acenou com o arco do violino.
— Venha dançar com seu irmão, Lina. Em breve colocaremos
um sorriso nesse rosto.
Lina sorriu, para a garota de preto brilhante.
— Ele tem uma namorada. Sei que é difícil dizer, porque ele
flerta com qualquer coisa que se mova e não consegue manter as
mãos para si mesmo, mas…
Finley deixou escapar um som engasgado. A expressão da
garota azedou como se ela tivesse chupado uma ameixa do mar.
— Espere! — disse Finley quando ela se virou para ir embora.
— Ela está inventando isso. Não escute!
Lina agarrou sua manga.
— Nós vamos para a casa do tio. Agora mesmo. — Finley
balançou e colocou um braço suado sobre os ombros de Lina.
— Não seja assim. Aqui. Veja. — Ele lutou para enfiar a mão no
bolso interno do paletó e segurar o arco e o violino ao mesmo tempo.
— Olha o que eu consegui.
Lina virou a cabeça.
— Você está fedendo. — Ela começou a andar para trás.
Finley cambaleou atrás dela, um braço ainda pesado em volta
dos ombros. O hálito dele estava quente em sua bochecha, rançoso
com o fedor de álcool forte.
— Aqui. Veja. Veja. — Ele acenou com alguma coisa, e a ponta
chicoteou seu pescoço. Um pedaço de cabelo trançado e barbante,
atado e enfiado com madrepérola e fragmentos de osso. Uma escada
de bruxa, para pendurar na cabine de um navio, para acalmar as
ondas e afastar as tempestades. Um talismã para proteger contra os
monstros que vagavam pelo Mar Oriental.
A magia valia mais do que suas mães ganhavam em um ano.
Lina olhou, sem palavras.
Finley enfiou a escada da bruxa de volta em sua jaqueta.
— Para as mães, para que possam voltar para casa rápidos e
seguras. — Ele bateu no peito com orgulho e piscou, ou tentou,
franzindo o rosto com o esforço. — Você não achou que vim aqui só
para me divertir, achou? E aqui, para você…
— Você não deveria ter vindo de jeito nenhum. — Lina dirigiu-se
para a borda da praça, algo como inveja torcendo dentro de seu
estômago. Ela ganhou magia antes, impressionando as bruxas com
sua dança na véspera de Santa Walpurga. Eles disseram que ela
dançava tão lindamente que poderia parar o coração de uma pessoa
com seus passos. Mas nunca ganhou nada tão valioso quanto isso. O
vidro brilhou quando Finley tirou mais magia de seus bolsos. Desta
vez, um feitiço engarrafado, vidro embaçado, rolha de cortiça.
Uma garrafa de fundo redondo cheia de lágrimas e desejos,
osso e respiração e areia. Âncoras para magia poderosa. Você
poderia usar o cabelo de uma bruxa para tecer encantos, seus dentes
para lançar maldições. Dizia-se que os habitantes do continente
ferviam os corpos das bruxas até os ossos. A única maneira de ter
magia se você não tivesse nascido com ela em suas veias.
A menos que você pague por isso, é claro. Mas nem todos
estavam dispostos a pagar.
— Isso é… — Lina fez uma pausa, mordendo o lábio, enquanto
uma enxurrada de dançarinos passava. Este não era o momento.
Corpos inchavam ao redor deles por todos os lados, uma maré viva.
Ela examinou a multidão por Thomas. — Vamos embora.
— Não se preocupe — disse Finley, interpretando mal seu olhar.
— Eu vou te proteger da rainha má.
— Não estou procurando pela rainha. Estou procurando por
Thomas.
— Claro que você está. — A expressão de Finley escureceu. Ele
empurrou o feitiço engarrafado em seu bolso. — Aquele covarde não
virá aqui.
— Ele estava aqui. Ele estava me ajudando a procurar por você.
Isso foi demais para o cérebro viciado em cerveja de Finley. Ele
piscou, os lábios abrindo, fechando, separando novamente. Ele
esfregou a mão sobre o rosto e manchou a sobrancelha esquerda.
— Você desenhou sua sobrancelha?
— Eu posso ter pegado um pouco de sua tinta.
— Você usou minha maquiagem? Eu juro... — O peso nos
ombros de Lina diminuiu quando Finley cambaleou para o lado para
esmagar os punhos com seu amigo Josef. Outro idiota arriscando sua
vida por magia grátis. Por cordas e grinaldas de nós de marinheiro
amarrados com mechas de cabelo. Por garrafas cheias de cuspe e
água salgada. Por que os meninos eram tão estúpidos?
— Amigo! — O choque de seus gritos quase estourou seus
tímpanos. Os três contornaram um grupo de músicos que passavam,
Lina espiando ansiosamente através da bagunça.
— Estamos procurando por você há séculos, Finley — ela
reclamou. — Em todos os lugares. E Thomas não gosta de estar aqui.
— Lin está aqui? — Os olhos de Josef estavam arregalados em
seu rosto bronzeado. Sua mão raspou seus cachos pretos cortados
bem curtos, e seu quadril bateu no de Lina, a surpresa
desaparecendo rapidamente no olhar astuto usado apenas pelo
bêbado. — Ah, ele só arriscaria isso por você, garota. Só você. “O
que há com Lina? Por que ela não fala comigo? Por que o irmão dela
me odeia tanto?” — Josef imitou em uma versão aguda do sotaque
cadenciado de Thomas.
Finley parecia assassino.
Lina piscou.
— Espere, o que você… o que você… ele realmente disse isso?
— Ele é velho demais para você — disse Finley antes que Josef
pudesse responder.
— Ele tem apenas vinte anos, o mesmo que você, e eu tenho
praticamente dezoito anos — disse Lina.
— Ele é perigoso. Eu te disse — disse Finley. — É culpa dele
que os sacrifícios pararam de funcionar.
Atravessaram a sombra projetada pelo pilar no centro da praça.
Palavras esculpidas profundamente na pedra escura brilhavam
prateadas, entrelaçando-se em sua superfície:
Nosso amor nos impede de nos afogar.
Um arrepio percorreu Finley e encontrou Lina. Josef pareceu de
repente muito sério e sóbrio, quase triste. Uma nota triste penetrou
em sua voz.
— Eu não o mostrei para você naquela primeira vez? Não te
apresentei? Por que você não traz suas amigas para me conhecer,
Lina?
— Você é nojento.
— Finley, conte para sua irmã. Aquela menina morena, agora,
com os grandes... você sabe. — Josef apontou para o peito.
Lina apontou seu próximo passo para esmagar os dedos dos
pés dele, mas Josef se esquivou e roubou o violino e o arco de Finley,
arrancando um gemido azedo das cordas.
Finley amaldiçoou.
— Me dê isso!
Josef saiu do alcance. O cabelo loiro brilhou no canto da visão
de Lina. Ela girou rapidamente. — Fin… — A palavra morreu em seus
lábios. As costas de Finley estavam viradas, os braços gesticulando
loucamente. Lina engoliu em seco, olhando para frente, a garganta
seca como areia. — Finley. — Depois, com mais urgência. — Finley.
Seu irmão não respondeu. Ela não ousou desviar o olhar. O
rugido das fogueiras, as gaitas, os aplausos e cânticos quando outro
fogo de artifício explodiu — tudo desapareceu no fundo, deixando
apenas um toque, um trovão estranho e silencioso, o sangue
pulsando em suas veias.
Lina avançou como se estivesse em transe. Foliões, dançarinos,
cambaleavam e giravam fora de seu caminho. Cuspindo insultos e
lançando olhares de reprovação. Líquido chicoteou seu braço. Um
frasco caiu no chão. Lina tropeçou com mais urgência, o medo
crescendo como uma onda enquanto ela perseguia a garota de
vestido azul-claro. A menina com contas em volta do pescoço. A
garota com cabelo loiro cortado e uma pena de pavão na cabeça.
Ela correu atrás de si mesma. Cotovelando as pessoas,
jogando-as de lado. A garota olhou por cima do ombro uma vez,
então continuou. Pânico estendeu a mão para estrangular Lina. O
medo voltou trovejando cem vezes. O crepitar das chamas da
fogueira parecia uma risada.
A Rainha das Bruxas vem nas asas da noite.
A Rainha das Bruxas tem o deleite do seu coração.
Com quem ela dançou para ficar assim? Quem?
Lina — a Falsa Lina, a Não-Lina — chamou um nome. Uma
figura se virou, separando-se da multidão, uma segunda cabeça loira
pegando a luz da fogueira. Mãos se estenderam, pegaram as da Não-
Lina enquanto ela corria para frente
Um corpo colidiu com a lateral da verdadeira Lina, derrubando-a
de lado. Ela agarrou a camisa dele para se equilibrar. Empurrou outra
pessoa para fora do caminho.
A multidão se separou. Lina abriu a boca, mas nenhum som
escapou. Por um único instante desorientador, sua mente se recusou
a compreender o que ela estava vendo; não conseguia entender a
imagem. Brilhava diante dela como calor. Os braços de Não-Lina
estavam em volta do pescoço de Thomas, suas mãos emaranhadas
em seu cabelo. Suas mãos estavam em sua cintura, puxando seu
corpo contra o dele. E ele a estava beijando, faminto, desesperado,
como se fosse a última coisa que faria.
Era cada sonho sombrio se tornando realidade.
Exceto que não era com ela.
— Thomas. — A palavra escapou desta vez, um sussurro suave
e inaudível. A cena nadou, ondulada. Mudou.
A garota que beijava Thomas olhou para cima, as mãos ainda
emaranhadas no cabelo dele, os lábios inchados. Ela usava seu
cabelo preto em tranças que circundavam sua cabeça como uma
coroa. Seu olhar travou com o de Lina, e seus olhos brilharam como o
luar na água escura. Ela sorriu. Um lampejo de dentes pontiagudos.
Todas as fogueiras da Praça de São Casimiro se extinguiram e
se apagaram. Uma grande rajada de fumaça preta engoliu os foliões
inteiros.
Lina

Houve um momento de completa e absoluta escuridão.


A escuridão se instalou como lodo no fundo do mar. Uma
escuridão pesada e sufocante. Uma que Lina não se atreveu a
perturbar com som ou movimento, porque não era uma escuridão
vazia.
Ela não queria acordar o que quer que estivesse nela.
O vento era um sopro e um uivo ao mesmo tempo. Grandes
espirais de fumaça amarga encheram o nariz, a garganta e os
pulmões de Lina. Agarrando seu caminho dentro dela, agarrando seu
caminho para fora. E ainda assim ela não se moveu. Estava
congelada como uma estátua.
Um corpo bateu em suas costas. Alguém tropeçou nela
enquanto cambaleava para frente, um barulho de estilhaços soando
em algum lugar atrás. Um cotovelo atingiu sua mandíbula e sua visão
estourou em uma explosão de luz ofuscante. Ela girou, presa em uma
dança de terror, os ombros batendo nos dela, virando-a primeiro para
um lado e depois para o outro. Gritos ecoaram. As botas batiam.
Ela pensou ter ouvido alguém gritar seu nome.
Com a mesma rapidez, a pressão dos corpos diminuiu. A
fumaça estava subindo, a luz rastejando através da neblina,
infiltrando-se de volta na cena. As brasas de treze fogueiras
tremeluziram.
— Lina!
Seus olhos levaram um momento para se concentrar. Ela ainda
estava vendo Thomas. E aquela garota.
A mão de Finley estava chocantemente quente em seu braço.
Sua boca apertada com preocupação.
Ao redor deles, as pessoas compartilhavam sorrisos trêmulos.
Alguns começaram a rir timidamente. — Viu aquilo? Você a viu? Era
a rainha saindo. Você viu quem ela levou? Viu quem ela escolheu?
A garganta de Lina fechou. As palavras saíram em um sussurro,
mas cortaram todos os outros sons. — Ela o levou.
Os dedos de Finley se apertaram ao redor de seu antebraço. —
Quem?
— Thomas.
— Ah. Bem. Isso é… — Uma mistura de emoções guerreou pelo
controle do rosto de seu irmão. Choque. Alívio. Alegria, e uma pitada
de culpa.
Lina não esperou para ouvi-lo dar um sermão sobre por que isso
era uma coisa boa, a coisa certa a acontecer, não esperou que ele
oferecesse seu conforto enquanto escondia seu sorriso. Seu corpo se
encheu de uma energia repentina e furiosa.
— Ei, agora, apenas espere! — Finley a perseguiu, colocando-
se entre ela e a multidão, agindo como um escudo e abrindo caminho.
— Espere…
Lina acelerou por um arco sombreado, passando pelas lojas
vazias, saindo da arcada e entrando nas ruas enevoadas e
iluminadas pela lua, cortando o primeiro beco à esquerda. Um rato
d'água assustado passou pelas botas de Finley.
— Lina, calma! Pare!
Ela não podia. A urgência tinha seus ganchos nela. Nunca foi
capaz de ficar quieta enquanto uma pessoa que ela amava estava em
perigo. Quando Lina tinha uma ideia na cabeça, ela era fisicamente
incapaz de fazer qualquer coisa além de agir.
— Eu tenho que trazê-lo de volta.
As palavras atraíram Finley.
Lina continuou se movendo, correndo através de uma névoa que
deixou beijos molhados em suas roupas. O tipo de névoa que você
percorria sabendo que poderia cair por ela e entrar em um mundo
completamente diferente, nunca capaz de retornar a este. Ela virou
em outro beco estreito. As paredes de ambos os lados brilhavam e
giravam com murais encantados que faziam você lamber os tijolos se
os encarasse por muito tempo. Os construtores de Caldella tinham
um estranho senso de humor. Era um efeito colateral de viver com
bruxas.
O coração de Lina gaguejou. Bruxas. Assassinas. Rainhas que
acorrentavam meninos a pilares de pedra e os afogavam nas noites
de lua cheia.
Thomas tinha ido atrás dela. Thomas tentou ajudar ela. Ele não
teria pisado na Praça de São Casimiro ou se juntado à festa se não
fosse por ela. Ela o arrastou para isso. Ela pediu a ele para ajudar
seu irmão e o perdeu em vez disso, perdeu o garoto que ela amava.
Perdeu o menino que amava ela.
Lina mordeu o interior da bochecha até sentir o gosto de cobre.
Ela queria chorar. Queria gritar. Ela ignorou seus medos, os jogou na
cara dele. Cada centímetro dela estava em chamas com vergonha.
Finley a alcançou, ombros largos raspando no tijolo enquanto
ele passava, bloqueando seu caminho. O beco se inclinava e
terminava na beira da cidade, desmoronando e se abrindo para
rochas pretas escorregadias e musgo verde brilhante.
Atrás de seu irmão erguiam-se as torres cinzentas da casa da
Rainha das Bruxas, dentes pontiagudos projetando-se do mar negro
como tinta. Você podia ver o palácio semi-afundado, não importa
onde estivesse na ilha. Lina não sabia se era magia ou arquitetura
inteligente. Ela nunca tinha prestado muita atenção no lugar. O
Palácio das Águas perdia o seu charme quando você passava por ele
todos os dias no caminho para a aula. A fortaleza e as torres
malvadas pareciam sem importância quando a bicicleta do seu primo
estava balançando de um lado para o outro e você estava tentando
desesperadamente preencher as respostas da lição de casa da noite
passada enquanto se encostava em suas costas. Agora nem ela nem
Finley conseguiam evitar que seus olhos se lançassem em direção a
ela.
— Lina, se ela o escolheu, não há nada que você possa fazer.
— Finley estava tentando manter sua voz calma, seu tom gentil. —
Você precisa deixá-lo ir. Pelo bem da cidade, pelo bem de todos.
Sempre acabaria assim, eu lhe disse. Olhe em volta. — Ele gesticulou
em direção à poça de água aos pés deles, para as manchas feias nas
paredes das inundações na maré alta. — O último sacrifício não
funcionou. Ele quebrou a magia. A nova rainha deve ter percebido.
Ela está tentando salvar a ilha.
— Não foi por isso que ela o levou. — Os olhos de Lina ficaram
vidrados. — Eu vi ela. Aquela, aquela coisa, aquela garota, aquela
bruxa, ela se parecia comigo. Ela vestiu meu rosto. Finley, ela usou
meu rosto.
— Por que ela estaria usando seu… — A expressão de Finley
escureceu.
Lina tentou passar por ele. Ele a bloqueou com seu corpo,
palmas para cima e para fora, mas muito deliberadamente não a
tocando, não a agarrando. — Pense sobre isso. — Ele enfiou a mão
no bolso do paletó e ergueu uma garrafa com rolha de cortiça. O vidro
verde nublado brilhava com um suave calor dourado. Ele se
aproximou, com cuidado, como se ela fosse algo selvagem que
pudesse assustar. — Aqui, para o seu tornozelo. Isso vai ajudá-lo a
se curar, como se fosse novo. Parar com a dor, aquela pulsação de
que você reclama. — Ele forçou o feitiço engarrafado em sua mão
enluvada. — Vamos para casa agora, e você pode tentar.
— Eu não quero sua garrafa estúpida, Finley!
O vidro estilhaçou-se contra os paralelepípedos. O líquido
dourado deixou um respingo na parede.
Um pavor terrível puxou o estômago de Lina em direção ao
chão. Ela não deveria ter feito isso.
Finley piscou uma vez, então deu um soco na parede, os nós
dos dedos estourando vermelhos contra o tijolo.
Lina estremeceu.
— Eu arrisquei minha vida por aquele maldito feitiço! Estive aqui
arriscando minha vida por você.
— Eu não pedi para você fazer isso!
— Estou tentando acertar as coisas, aqui. Estou tentando
consertar as coisas.
— Para quem? Para você se sentir melhor? Nada disso é para
mim. Você não precisa me consertar. Eu disse que não queria que
você fosse.
— Você disse que seu tornozelo estava doendo! Eu ouvi você
falando com Ula sobre aqueles fios de cabelo que queria para fazer
um feitiço. De que outra forma eu poderia... — A voz de Finley era
quase um rugido.
Lina se encolheu, curvando-se sobre si mesma, curvando os
ombros, e as palavras de Finley foram interrompidas abruptamente.
Seu temperamento era uma coisa rápida. Rápido para incendiar e
desaparecer. Uma breve chama alta justa seguida pela mais profunda
das baixas brasas de auto-aversão. Um olhar de devastação total
amassou suas feições. Ele chupou uma junta sangrenta, respirou pelo
nariz. Um longo suspiro, forçando a raiva que vinha tão facilmente.
Sua voz falhou. — Eu só quero acertar as coisas com a gente.
Lina fechou os olhos, desejando que seu coração parasse de
bater, bater, bater. — Se você quer isso, se realmente quer isso, e
quer que eu te perdoe por tudo, vai me ajudar a recuperá-lo. — A
culpa se agitou dentro de seu estômago. Uma parte dela sabia que
não deveria jogar seu perdão como um suborno quando, no fundo,
ela também sabia que ele nunca quis realmente machucá-la. Sabia
como ele lutava para controlar seu temperamento, sabia o quanto ele
se odiava quando perdia essa luta. Ela sabia que a briga deles e seu
tornozelo quebrado tinham sido metade culpa dela.
Mas o resto dela ainda estava furiosa com ele e sentia que ele
devia a ela. Se ela não estivesse ferida, Thomas não teria sentido a
necessidade de se juntar à festa para ajudá-la. E se Finley não
tivesse sido tão cabeça dura e fugido esta noite em primeiro lugar.
— Ele estava me ajudando a encontrar você. E se tentar me
impedir, nunca mais falarei com você. — Lina passou por ele,
apontando para a linha de barcos balançando ao lado das rochas
cobertas de musgo. Barcos-vassoura em forma de meia-lua
extravagantes com assentos de veludo vermelho e cobertores para se
proteger do frio. Seus cascos curvos pintados para brilhar com laca
preta.
Seu calcanhar derrapou no musgo e ela cambaleou.
Finley correu para equilibrá-la. — Vamos conversar.
— Ah, como conversamos quando você fugiu?
— A maioria deles ainda está festejando na praça.
— É por isso que precisamos ir agora. Menos bruxas para se
preocupar.
— Há a rainha para se preocupar. — Lina enfiou a mão no bolso
do terno de Finley, pegando a pequena faca de marinheiro que ele
sempre carregava consigo.
— Sim, você vai lutar com ela com um palito de dente.
— Você não precisa vir. — Lina enfiou a faca na frente do
vestido e no sutiã, cambaleando novamente quando chegou ao
primeiro barco. O vento aumentou e seus braços se arrepiaram. Ela
subiu a bordo, aterrissando com força em um banco de veludo
vermelho em meio a um ninho de cobertores de lã.
Finley praguejou, olhando para o beco, para a cidade, para a
segurança.
Ele meio que caiu no colo dela enquanto se arrastava atrás dela.
O cotovelo de Lina quase arrancou seu olho. Ele soltou um ganido
quando o barco balançou e saiu na correnteza.
Lina

O barco-vassoura atravessou a água negra turva como uma


poção de bruxa. O spray de sal picou as bochechas de Lina e
encharcou seu vestido. Ela apertou as mãos enluvadas entre as
coxas. A noite era um cobertor de frio, ficando ainda mais gélido à
medida que navegavam cada vez mais longe das fogueiras, da luz e
do calor da cidade. O palácio da Rainha das Bruxas assomava à
frente, brilhando com a luz bruxuleante de uma chama no escuro. Seu
reflexo ondulado se estendia sobre as ondas, que sangravam brancas
onde quebravam contra o casco.
Finley baixou o queixo no peito. — Pode não ter sido a rainha
que o levou.
— Quem mais desaparece em uma nuvem de fumaça? Quem
mais beija alguém na véspera de Santa Walpurga usando o rosto de
outra pessoa?
— Ele conseguiu sair da última vez, sozinho.
— Porque ele fez a última rainha se apaixonar por ele — disse
Lina. — Ela está morta.
— Talvez ele faça com que a nova o ame também.
No escuro, os olhos cinzentos de inverno de seu irmão pareciam
quase pretos, fazendo Lina pensar na rainha na praça, lembrando-a
da versão falsa de Thomas com quem ela se empolgou para dançar,
e a linda garota com olhos como águas iluminadas pela meia-noite e
sorriso mais afiado do que uma lâmina. A imagem de Thomas
beijando-a foi gravada na visão de Lina. Ela não podia mais ver a
ilusão, ver a versão falsa de si mesma o beijando, apenas a outra
garota, e Thomas retribuindo o beijo.
— Ei — disse Finley, lendo sua expressão. — Eu não quis dizer
isso.
Lina se abraçou.
— Não é culpa dele que os sacrifícios não estejam funcionando.
Você está errado.
Finley suspirou, mas não respondeu, apenas se inclinou
pesadamente para o lado dela. Um pouco de sua culpa e medo
derreteu sob o peso familiar de seu ombro. Ele podia ser uma
doninha traidora com uma vantagem de altura injusta, mas ainda era
seu melhor amigo, ainda era seu irmão. Ela não estava sozinha aqui.
Ele não a deixou ir sozinha. Ela desejava poder se forçar a odiar ele.
Havia algo terrivelmente errado com ela por não conseguir.
— É minha culpa Thomas estar lá. — Sua voz soava trêmula e
pequena, e ela odiava isso também. — E sua.
Um silêncio tenso se estendeu sobre o barco, quebrado apenas
pelo barulho das ondas. Passaram pelo pináculo enferrujado de uma
torre do relógio, sobre telhados afundados e a cúpula verde-cobre
submersa de uma antiga catedral, sobre as faixas da cidade velha
que se perdera na maré escura quando se ergueu duzentos anos
atrás.
Lina se moveu para se sentar na popa, olhando para trás
enquanto deslizavam pela velha torre do sino, sua cúpula em ruínas e
chapéu cinza pontudo saindo das ondas. Quando as bruxas
congelavam partes do mar no inverno, você podia patinar até lá, se
fosse corajoso o suficiente. Lina tinha arrancado a camada superior
de sua língua quando ela tentou lamber o sino com crosta de gelo.
A névoa do mar sussurrava e envolvia seu corpo, circulando seu
pescoço como um laço. Ela se viu fazendo pequenas barganhas. Se
piscasse três vezes cada vez que passassem por uma torre, Thomas
seria salvo. Se ela prendesse a respiração por uma contagem de oito,
se cruzasse e recruzasse os dedos das mãos e dos pés…
O Palácio da Água se erguia diante deles, mas nunca parecia se
aproximar. Lina apertou os dentes. Ela se arrastou até a proa,
batendo os nós dos dedos com impaciência na madeira laqueada
preta na frente do barco, incitando-o a continuar, a se mover mais
rápido. A maré estava lutando contra sua aproximação agora, como
se uma parte dela soubesse que eles vieram para roubar seu prêmio.
O barco corcoveou, a proa curvada quase na vertical quando
uma grande onda correu de frente para encontrá-los.
Finley gritou e xingou. Lina agarrou o banco para salvar sua
vida, o coração disparando em sua garganta. Nenhum dos dois sabia
nadar. Aprender era tentar o destino. Era só pedir que a maré levasse
você, Mamis dizia.
O barco despencou de volta em uma grande onda de borrifos.
Finley cuspiu na água para dar sorte. Lina cuspiu também. Uma
vez. Duas vezes. Três vezes, só para ter certeza. Ela desejou ter um
pouco de sal santo para alimentar as ondas; do tipo que os
pescadores juravam que ajudava a acalmá-las.
— Por que está demorando tanto tempo? Por que não estamos
chegando mais perto?
Outra onda se chocou contra a proa. O barco balançou e
desviou do curso. Lina bateu os dedos na borda estibordo do casco.
Se eles se aproximassem de uma rota diferente, talvez…
— Lina — disse Finley.
— Cale a boca.
A névoa se contorcia como se alguém a estivesse mexendo com
uma colher de pau, engrossando até ficar quase impossível de ver.
Ela grudou na pele deles, deixando um rastro como teias de aranha
cinzentas e úmidas. O barco passou por mais casas afundadas,
passou por uma boia laranja onde alguém havia derrubado uma sopa
de caranguejo, através de um arco em ruínas incrustado de cracas.
As bruxas haviam afundado magias como âncoras nas bordas das
águas rasas para impedir que forasteiros chegassem à ilha, para
manter as tempestades e os monstros marinhos afastados, exceto a
única serpente marinha que a rainha mantinha como animal de
estimação. Claro que teriam colocado uma barreira ao redor do
palácio também, mas tinha que haver um ponto fraco em algum lugar.
Não poderia terminar assim.
Lina não tinha prometido segurar ele? Não tinha acabado de
descobrir que ele gostava dela? Ela finalmente não teve coragem de
mostrar a ele que também gostava dele?
Arrepios violentos sacudiram o corpo de Lina. Seus dentes
começaram a bater enquanto a adrenalina passava e a dúvida se
insinuava. Minutos se passaram, talvez horas. Ela não conseguia ver
o céu noturno através da névoa para saber se estava clareando, para
saber quanto tempo já havia sido perdido.
— Bem, nós tentamos — disse Finley. — Agora vamos voltar.
Lina nem se deu ao trabalho de se virar e encará-lo.
Finley se juntou a ela na proa, um cobertor de lã pendurado nos
ombros. Ele enrolou outro ao redor dela gentilmente. Fechou os
dedos semicongelados em torno de uma pequena garrafa retangular
de vidro azul-cobalto. A garrafa estava quente, mesmo através do
tecido de suas luvas. Seu couro cabeludo se arrepiou quando seu
polegar roçou a rolha de cortiça.
— Onde você conseguiu isso? — E então ela se sentiu uma tola,
porque é claro que ele conseguiu na festa, outra peça de magia grátis
ganhada enquanto tocava seu violino. — O que isso faz?
— É uma rajada, eu acho. Uma tempestade.
Os pelos se arrepiaram nos braços de Lina. Ela sentiu o
tamborilar fantasma de gotas de chuva em sua pele. Garrafas de
feitiços não eram rotuladas, mas cada uma dava uma ideia, uma
sensação de que magia espreitava dentro. Um estalo elétrico se
instalou em seus ossos. Havia algo sombrio e destrutivo na
tempestade engarrafada. Raiva selada atrás do vidro. A voz de Finley
era suave.
— Vamos para casa, Lina. Por favor.
— Eu não posso.
— O tio e todos vão ficar preocupados. Isso não está
funcionando. Você sabe disso. Não nos querem aqui. A rainha não
vai nos deixar chegar ao palácio dela. Vamos tentar novamente
amanhã, talvez. Ou no dia seguinte. Não vão sacrificá-lo até a lua
cheia. Faz parte da magia, faz parte do ritual. Há a regata3 também,
onde vão trazê-lo para que as pessoas possam se despedir. — Os
olhos de Finley estavam suplicantes.
Lina se sentiu vacilante. Outro arrepio violento arrasou seu
corpo. Mas se ela desistisse agora…
Ela poderia perder a coragem. Finley às vezes dava-lhe nos
nervos por sempre apressar as coisas, mas a vantagem era que ela
nunca tinha tempo para segundas intenções. Nunca tinha a chance
de mudar de ideia. Se você hesitasse, se desse tempo para pensar,
era quando o medo se insinuava.
E havia medo, um pânico mesquinho que consumia tudo,
consumia sua coragem cada vez mais, quanto mais tempo passavam
aqui, mais a maré lutava contra o barco, mais eles não conseguiam
chegar até o palácio. Ela não foi a primeira pessoa a perseguir um
ente querido, e raramente terminava tão bem quanto para a garota da
música.
Nunca terminou tão bem quanto para a garota da música.
— Você disse que ela o levou para consertar as coisas. Isso
significa que acham que ele quebrou a magia também, que o culpam
também. Era sua irmã, não era? A última rainha, aquela que morreu
por ele. Mesmo que esperem para sacrificá-lo na lua cheia, o que
você acha que farão com ele até então? — Lina se afastou de Finley,
batendo na proa, incitando o barco a mudar de direção, tentando
outra aproximação.
Finley não respondeu, mas ela podia sentir a raiva queimando
dele. Seu corpo ficando rígido e inflexível como um tijolo. Eles
continuaram no silêncio, no frio, amontoados sob os cobertores de lã,
os corações martelando cada vez que o barco balançava e
estremecia, a água batendo na proa, chapinhando pelas laterais. O
palácio da Rainha das Bruxas surgiu da névoa, uma coroa escura
sobre o mar, provocando-os com sua presença. Uma fortaleza com
torres cinzentas perversas. Paredes de pedra escorregadias subindo
das profundezas, os níveis mais baixos completamente engolidos
pela maré. Espuma branca jorrava de uma fileira de arcos
escancarados que um dia poderiam conter janelas, embora o vidro
que residia ali tivesse desaparecido.
Sem entrada visível. Tão perto e tão longe. Eles poderiam nadar
até lá, talvez, se soubessem nadar.
O céu estava ficando visivelmente mais claro, a névoa corando
com suaves listras de balé rosa e cobre ardente. O barco-vassoura
em forma de crescente balançou no lugar como se sua magia
estivesse se dissolvendo com a escuridão, como se também
estivesse desistindo.
Um peixe solitário quebrou a superfície da água, espirrando de
volta para as profundezas.
Lina estremeceu quando o primeiro sino tocou. Um eco distante
e ecoando da cidade que eles deixaram para trás. Os sinos da igreja
de Caldella tocando ao sol nascente.
Finley passou a mão pelo rosto.
— Thomas Lin não vale isso.
O queixo de Lina disparou.
— Ele vale a pena. — Sua voz estava rachada de frio, rouca
pela falta de sono. — Gosto dele desde sempre, Finley. Eu amo ele.
— Era uma verdade que vinha de algum lugar dentro dela. Uma
verdade que ela sabia desde o momento em que o viu pela primeira
vez. Era como Mamis e Mainha, como Laolao e vovô, como todas as
histórias. Havia outras pessoas às vezes — claro, ela não era
completamente ingênua. Mas você só tem um amor verdadeiro. Um
amor que contava mais do que todo o resto. — Ele é o único por
quem me sinto assim, o único por quem vou me sentir assim.
Finley começou a revirar os olhos.
Lina acenou com a tempestade engarrafada para ele. — Você
se lembra daquela vez em que navegamos em uma tempestade
porque pensou que o barco de Jeanne estava preso nela? Se fosse
você e estivesse indo atrás de uma garota, diria que isso era
romântico. Todos diriam. Então não se atreva a revirar os olhos como
se fosse diferente porque sou eu. — Ela colocou uma mão em cima
de sua cabeça para apoio, segurando a garrafa azul na outra. Tirando
o cobertor e ignorando os protestos de Finley, ela se levantou.
Ela encarou o palácio. Podia ver a Rainha das Bruxas sorrindo
para ela por cima do ombro de Thomas, zombando dela, desafiando-
a a fazer alguma coisa. Ela podia ouvir aquelas palavras sussurradas:
Você terá que segurá-lo com mais força, então. A memória culpada
daquela dança, dos quadris, de outro corpo puxado contra o dela,
surgindo com muita facilidade. Raiva e vergonha assobiavam e
ferviam dentro de Lina.
— Eu coloquei Thomas nisso. Vou tirá-lo. E se ela não me
deixar entrar em seu maldito palácio — a voz de Lina subiu, sua
mandíbula apertada com determinação sombria —, então eu vou
derrubá-lo. — Ela puxou o braço para trás e arremessou a
tempestade engarrafada naquelas odiosas paredes cinzentas,
naquela barreira invisível, com todas as suas forças.
Eva

— O que diabos foi isso?


Eva acordou em um pulo com o choque na voz de Yara, um
toque afiado em seus ouvidos, um aperto sufocado em sua garganta.
A sensação de areia e água salgada raspando seus pulmões, como
se ela tivesse passado a última hora se afogando em vez de sonhar.
— Como… — disse Yara. Houve uma queda afiada de
porcelana quebrando.
Eva se sentou, olhando a espreguiçadeira escarlate mergulhar
debaixo dela.
Os raios de sol do início da manhã derramaram-se pelas janelas
arqueadas do Salão de Âmbar, pintando com luz partículas de poeira
que caiam em mil manchas cintilantes, brilhando nas pulseiras de
coral subindo nos braços marrons de Yara.
A outra garota ainda estava no aparador, onde estava quando
Eva cochilou, misturando coquetéis encantados em bules barrigudos
e de mau humor porque Eva não havia beijado o garoto que Yara
escolhera para ela. Marcin estava do outro lado da sala, um cabelo
ruivo flamejante pendendo em uma poltrona, uma piteira longa e fina
pendurada em seus dedos pálidos, mapas antigos caindo do colo e
no tapete enquanto ele planejava conquistas imaginárias no
continente.
Havia outras bruxas lotando a sala também, em vários estados
de consciência, ainda vestidas com todos os seus reluzentes enfeites
pretos da festa. Corpos caídos sobre mesas de centro e
espreguiçadeiras baixas ou entrelaçados como cordas. Outras bruxas
ainda dançavam, os quadris balançando suavemente ao som de um
disco que alguém havia contrabandeado do continente.
Na noite anterior, ao retornarem, uma sensação de euforia
vertiginosa tomou conta do Palácio da Água. Suas paredes âmbar se
iluminaram com um brilho dourado-mel. O próprio ar era doce como
xarope, perfumado com jasmim e rosa.
Irritou Eva por ela não ter notado como seu palácio havia se
tornado úmido e sombrio desde que sua irmã morrera, desde que seu
primeiro sacrifício — um menino com cabelos negros e sardas —
havia fracassado. A casa de uma bruxa refletia aqueles que moravam
nela. Era um espelho erguido para suas almas.
Eva decidiu que sua alma devia ser uma coisa muito negra e
retorcida, porque sentia falta do silêncio frio, da escuridão e de suas
sombras misericordiosas.
Ela se levantou, a cabeça latejando, um pé de meia grudando
em lantejoulas descartadas. Seus ouvidos não paravam de zumbir, e
o tapete parecia ter ganhado vida e estava tentando escorregar
debaixo dela. Ela tropeçou para o lado, estendendo a mão para a
parede de ouro em busca de apoio. Ela não tinha bebido tanto,
apenas um bule.
E então percebeu que não era ela. O próprio Palácio da Água
estava tremendo.
— O quê…
Um relâmpago azul, parecendo uma língua bifurcada, atingiu a
torre do lado de fora das janelas do Salão de Âmbar, queimando sua
visão em branco. Pedra estilhaçada. Fogo. Ambos voaram pelo ar. O
vidro se estilhaçou e alguém gritou. Houve um grande estrondo
ensurdecedor de trovão.
Um segundo raio atingiu a torre em que eles estavam. Eva
cambaleou quando as paredes tremeram, poeira chovendo do teto. O
lustre balançava perigosamente de um lado para o outro. Um castiçal
voou da lareira de mármore ao lado do toca-discos, quicando,
rolando. Vasos se estilhaçaram, derramando água e flores da lua
sobre o tapete.
Marcin ficou de pé, mapas e cigarros abandonados. Eva correu
para as janelas. O vento sacudiu o vidro que permanecia intacto,
uivando, gritando para entrar.
— Um ataque? — disse alguém, muito alto e estridente.
— Eles passaram pelas âncoras! Uma frota de Skani?
— Quem quer que sejam, não vão longe. — A voz de Marcin era
letal, uma lâmina raspando o osso enquanto atravessava a carne
para perfurar o coração. As cabeças de todos se voltaram para ele,
os olhos brilhando de medo. — E se eles vierem por nossa magia,
não vão conseguir.
Seu rosto era como o coração pálido de um fogo. O Salão de
Âmbar escureceu nas bordas, dobrando-se na sombra. Outros rostos
brilharam com alívio, então endureceram em resolução. As bruxas ao
redor da sala viraram-se para Marcin pedindo ordens, para se
tranquilizar.
Não para Eva.
Ela teve o súbito desejo urgente de machucar algo, alguém. —
Não seja ridículo. Skani não tem motivos para nos atacar. Se for
alguém, são os ilhéus. — Ela manteve a voz baixa. Não precisava
levantá-la para ser ouvida; a voz de uma rainha fazia seu próprio
silêncio, Natalia havia lhe ensinado isso. Uma rainha nunca entrava
em pânico. Mesmo quando não tinha ideia do que estava
acontecendo ou quem estava atacando sua casa.
O buraco em seu peito se expandiu.
Ela levantou a mão, deu uma série rápida de ordens. Sem
prisioneiros. Sem piedade para os ilhéus.
Ilhéus que ferviam corpos de bruxas até os ossos.
Suas irmãs se dissolveram em fumaça, se retorceram em ventos
gelados e salgados, agarraram as mãos ansiosas uma das outras
saindo correndo da sala para reunir e esconder os bruxos. Ainda
havia aquelas que hesitavam, muitas que sussurravam e cortavam
olhares para Marcin pedindo permissão primeiro. Eva prendeu cada
sussurro a um rosto e cada rosto a um nome, arquivando-os para
serem tratados mais tarde.
Se houver um mais tarde.
Fique calma. Mantenha a calma.
Um menino com cabelo tingido de prata saiu da pressão de
corpos em suas costas, piscando e esfregando o sono duro de seus
olhos. Jun já tinha uma escada de bruxa na mão: madeixas de seu
cabelo amarradas em volta de um cordão, penas de gaivota cinzentas
e fragmentos de concha e osso de pássaro amarrados a sete grandes
nós.
Como Eva, ele fazia mágica à maneira da ilha, misturando
pequenos pedaços de si mesmo com areia, sal e conchas, amarrando
nós de marinheiro e jogando jogos de cordas como aqueles que os
ensinaram. Embora ele, como Eva, também misturasse antigos e
semi-recordados encantos dos lugares onde nasceram, como o
cordão vermelho de Eva, um aceno para a fita vermelha que Natalia
amarrou em seu pulso quando criança para evitar feitiços perversos.
A magia de Caldella era um emaranhado de tradições trazidas aqui
por pessoas que fugiram de todo o mundo.
O braço de Jun roçou o dela. Eva esperou o mais breve
segundo, observando seus dedos bronzeados enfiarem um laço, sua
testa franzida pressionando uma vidraça em concentração. Mais
bruxas se juntaram a ele, prontas para banir a tempestade, prontas
para dobrar sua ira para servir a seus próprios propósitos. Eva se
obrigou a voltar para a espreguiçadeira escarlate. Sentar com os
tornozelos cruzados. Uma rainha assumia o comando do campo de
batalha, elaborava uma estratégia; não havia sentido em atacar
cegamente, sem saber para onde mirar ou onde afundar sua faca.
Qual era a fraqueza de seu inimigo? A cidade também estava sob
ataque? Ela deveria soltar a serpente do mar? Os atacantes já
haviam violado as paredes do Palácio da Água?
— Yara.
Yara correu para a frente com uma bandeja, um bule e três
xícaras delicadas com bordas de açúcar. Ela colocou a bandeja na
mesa oval em frente à espreguiçadeira. A chuva batia nas janelas, e o
Salão de Âmbar se tornou sombrio e glacial enquanto nuvens turvas
sobrenaturais rolavam para engolir o palácio. Foi preciso cada grama
do autocontrole de Eva para não se apressar com Jun e os outros,
para não arrancar outra pulseira vermelha de seu pulso e assumir o
controle da tempestade ela mesma.
As paredes estremeceram a cada novo estrondo do trovão. O
vento golpeou a torre com punhos raivosos.
Yara se sentou à sua direita. Marcin à sua esquerda. Yara
encheu as xícaras trêmulas, distribuindo-as em pires pintados em
pastel.
— Licor de cereja azeda. Para maior clareza. Já adicionei
algumas das minhas lágrimas, então você não precisa… — Yara fez
uma careta quando Marcin cuspiu em seu copo — fazer isso.
As pessoas alegaram que as bruxas eram pesadelos, sonhos,
mas Eva sentiu que estavam mais próximas das plantas; magia
selvagem crescia dentro de cada um deles, esperando para ser
colhida nas vertentes de seus cabelos, suas lágrimas de sal, seu
cuspe e sangue.
Ela mexeu a mistura com a ponta do dedo e observou a
ondulação líquida de cereja.
Yara lambeu uma pitada de açúcar do aro de sua xícara de chá.
A chuva e o vento cortaram abruptamente, deixando para trás
um silêncio tão ensurdecedor que parecia cantar.
— Isso foi rápido — disse Marcin.
— Eu sou bom mesmo — disse Jun da janela.
— Shh — Yara silenciou.
Nuvens continuaram a sombrear o salão. Eva fechou os olhos e
se concentrou. Yara e Marcin fizeram o mesmo, todos os três ficaram
perfeitamente parados. Quando o líquido em todas as três xícaras
também estava, um reflexo imóvel, Eva abriu os olhos. Três xícaras
refletiam três céus diferentes. Noite, dia e crepúsculo. Estrelado,
tempestuoso, claro.
Yara soltou um bufo irritado. Eva se inclinou para o lado para
espreitar a xícara de céu tempestuoso de Marcin. Ele sempre foi
capaz de conjurar as visões mais claras — Eva disse a si mesma que
era só porque ele era mais velho. Trinta e dois contra seus dezenove
anos. Um idoso, praticamente.
Jun se arrastou pela sala, olhando sobre as cabeças dobradas.
— Crianças?
— Ah — Yara bateu a mão na boca. — Ah, é ele.
— Você conhece eles? — exigiu Marcin.
— O menino era minha escolha na folia. Aquele que eu te disse,
que encontrei para E.
— O que ele está fazendo aqui? Como chegaram aqui? Como
eles conjuraram uma tempestade? — Marcin olhou para Eva, uma
mecha de cabelo vermelho caindo em sua testa.
Mas Eva não respondeu. Ela estava ocupada demais assistindo
a garota da folia. A loira cujo rosto ela usava quando roubou Thomas.
Ela se inclinou para mais perto da imagem na xícara de chá. A
garota e o menino estavam em outra torre, muito abaixo do Salão
Âmbar, em um dos níveis mais baixos do Palácio da Água, uma
metade engolida pelo mar. Seu barco-vassoura bateu contra o fundo
de uma escadaria de pedra larga flanqueada por estátuas sem rosto,
degraus cinzentos íngremes subindo e subindo e subindo.
Eles estavam encharcados. E estavam discutindo. Os lábios da
menina estavam brancos e comprimidos, seus ombros se curvavam
defensivamente, tornando seu corpo pequeno. O menino estava
gritando e acenando os punhos.
— Ilhéus — disse Jun com tantos alívios, que soou como um
suspiro. — Ilhéus comuns — Uma batida passou em silêncio. — Acha
que eles vieram atrás de Thomas? Já faz muito tempo desde que
alguém tentou salvar um sacrifício. Na regata da primavera, não foi?
Aquela mãe que implorou pelo retorno de seu filho. Ninguém nunca
violou o palácio antes, no entanto.
— Eles não podem ter ele. — O ácido, a raiva no tom de Marcin
assustou tanto Eva que ela quase baixou a xícara de chá. Seu
conteúdo soprou de um lado para o outro, e o céu sombrio que a
xícara mostrou desapareceu em uma enxurrada de ondulações.
— Como vou gostar de assistir a esse garoto se afogar.
Foi isso que Marcin dissera quando descobriu quem Eva havia
escolhido como sacrifício deste ano, dando a ela um sorriso genuíno
de sua aprovação rara e preciosa.
E era estranho como esse entusiasmo, essa ânsia selvagem,
havia colocado um amortecedor no próprio sentimento dela. Antes
daquele momento, tudo o que sentiu foi triunfo. Era vingança. Era
justiça. Era isso que Thomas Lin merecia. Aquele era o garoto que
havia tirado Natalia deles.
Aquele também era o menino que Natalia tinha dado tudo para
salvar.
Eva colocou sua xícara em seus pires, memórias e desconforto
através de suas veias.
— Eu quero que ele viva. Quero que ele seja feliz. Estou tão
cansada, Eva. Todos vão embora enquanto eu permaneço. Eu não
sei se posso ser deixada para trás novamente
E, no entanto, Natalia ficou contente em deixar ela para trás.
Minúsculas alfinetadas de fúria dançavam na pele de Eva.
Thomas estava feliz, feliz o suficiente com outra pessoa. Com essa
garota invadindo o palácio como um rato. Como ele ousava
desrespeitar a memória de sua irmã assim? Natalia foi tão facilmente
esquecida? Ela foi apenas uma coisa a ser usada e descartada?
E como ousa essa garota desrespeitar ela vindo aqui? Como
ousa atacar a casa de Eva?
— Você pode ter o menino — ela disse a Yara. Yara soltou uma
respiração que ela poderia estar segurando, quebrando para um
sorriso de gato que enviaria qualquer criatura sensata correndo rápido
e longe na direção oposta.
— Mar…
— Vou verificar o dano e acalmar os outros. Veja se alguém
ficou ferido. Jun, tome Omar e verifique o estado da Torre Leste.
Os lábios de Eva pressionaram juntos. Ela estava prestes a dar
essa ordem. Havia momentos em que Marcin ainda a tratava como
uma bruxinha, agia como se Natalia tivesse feito ele rainha.
— E então eu vou me divertir com nossos visitantes. — Marcin
bebeu a tempestade de sua xícara de chá e sorriu com dentes
manchados de tempestade. — Se você não os encontrar primeiro.
Yara imediatamente correu pelo salão, os quadris balançando
em uma batida que só ela podia ouvir. Ela bebeu o conteúdo de sua
xícara em um único gole rápido.
— E você? O que você vai fazer, E?
O olhar de Eva se desviou para o teto, onde um gigante mural
em folha de ouro retratava figuras de duzentos anos atrás. A primeira
Rainha das Bruxas ajoelhada em uma costa rochosa, seus longos
cabelos esvoaçando atrás dela, seu rosto escondido enquanto ela
amarrava pedras nos tornozelos do garoto ela amava, enquanto as
grandes ondas vorazes da maré escura caíam sobre ambos.
É um pouco mórbido, não é? Natalia tinha sussurrado para ela
uma vez quando eram mais jovens. Macabro.
E era exatamente por isso que Eva gostava. Ela colocou sua
xícara e pires na mesa em frente à espreguiçadeira com um tintilar
suave.
— Eu vou pegar a garota.
Lina

— Estamos mortos. Estamos tão mortos. Estamos mais do que


mortos. — A voz de Finley ficou histérica. — Eles vão nos matar. A
rainha vai alimentar sua serpente marinha conosco. Ela vai costurar
nossos lábios e encher nossos pulmões com água salgada como faz
com criminosos. Transformar nossos corações e olhos em pedra.
Descascar nossa pele como se fôssemos uvas e esculpir nossos
ossos para fazer apitos de osso e...
— Isso é do continente — disse Lina. — O apito de ossos.
— Não me importo!
— Eu disse para você não gritar!
Finley seguiu em frente, fumegando. Até mesmo seu pânico
conseguiu se transformar em fúria; todas as suas emoções se
transformaram. Suas mãos, cerradas em punhos com os nós dos
dedos brancos, balançaram em seus lados.
Lina lutou para acompanhar, seguindo as ondas que seu irmão
deixou para trás, suas botas pretas espirrando em poças que faziam
espelhos no chão. Eles escalaram uma espiral interminável de
escadas para se encontrarem em um corredor igualmente
interminável, suas paredes e teto dourados com âmbar. Havia portas
fechadas à esquerda — madeira escura polida, brilhando com glifos e
símbolos em mudança — e à direita janelas altas e uma série de
sacadas que se estendiam sobre o mar. Cortinas finas ondulavam e
estalavam nos arcos sem portas que levavam a cada uma delas. Uma
brisa amarga trazia o cheiro de sal e o grito estridente das gaivotas.
A culpa deu um nó nas entranhas de Lina.
Por que, por que todas as escolhas que ela fazia eram erradas?
Por que nunca conseguia fazer nada certo? Tudo o que fazia só
piorava as coisas. Ela estava tão focada em Finley. Tentou proteger
ele e amaldiçoou Thomas, tentou salvar ele e quase virou o barco
crescente, quase condenando Finley e ela mesma.
Lágrimas picaram em seus olhos, furiosas e ardentes.
Não pense. Não pense. Continue andando. Continue. Encontre
Thomas. Saia daqui.
De alguma forma.
Ela estava mancando muito agora. O nariz e os dedos estavam
dormentes de frio.
Mas ela estava acostumada a se esforçar, acostumada a forçar
seu corpo além do limite. Ela botou seu rosto de dançarina, uma
máscara determinada que não rachava mesmo quando um tornozelo
girava, quando bolhas estouravam e unhas dos pés quebravam. Ela
podia parecer pequena e esguia, mas por baixo disso, todo o seu
corpo e vontade eram de ferro, moldados por treze anos de punitiva
prática diária.
Uma única gota de água caiu do alto teto abobadado e atingiu o
topo de sua cabeça. Era da chuva, da tempestade que ela
desencadeou, como as poças salpicando o chão.
Ou talvez tenha sido sempre assim. Afinal, aquele era o Palácio
da Água, um palácio que as bruxas haviam desenterrado das
profundezas do mar. Úmido e frio.
Como ela era. A tempestade a havia encharcado até os ossos.
Lina esfregou as mãos para cima e para baixo em seus braços em
vão. Ela tirou as luvas, deixou-as para trás no barco-vassoura em
forma de meia-lua. As pontas de seus dedos eram ameixas pálidas
congeladas.
Finley fez uma pausa, torcendo a bainha da camisa pela
centésima vez, o cabelo preto despenteado grudado no crânio.
Exceto por seu topete, que se destacava com um ar de desafio
teimoso. Também não seria derrotado.
Lina correu para alcançá-lo, a mão livre cavando em seu sutiã
para a pequena faca de marinheiro que ela havia roubado dele,
desembainhando-a. Eles não tinham vislumbrado uma alma até
agora. Mas mal passava do amanhecer, então talvez todos no palácio
ainda estivessem na cama, exaustos e de ressaca demais depois da
festança para terem sido acordados pelo trovão.
Ela esperava. Rezava. Mas, por falar nisso…
Os sonhos e pesadelos dormiam?
Música estava tocando em algum lugar. Uma música que ela
conhecia. Esconda ele, esconda ele, fora de vista. Segure ele,
segure ele, segure firme. A melodia provocante, cadenciada e baixa,
abafada e indistinta, como o canto de um marinheiro ouvido debaixo
d'água.
O coração de Lina batia forte enquanto ela pensava em todas as
danças de batalha que conhecia, arremessos e gabaritos tradicionais
onde você floreava uma lâmina, imitando o uso da arma na luta. Não
era tão bom quanto saber lutar, mas certamente era melhor que nada.
Os olhos de Finley se voltaram para ela e se afastaram
enquanto ela se igualava a ele. Ele abriu a boca, depois a fechou
abruptamente.
Passos. Percussivos. Saltos batendo na pedra.
Lina agarrou a maçaneta da porta mais próxima, quase caindo
de alívio quando ela se abriu. Finley a empurrou para dentro à sua
frente. Lina fechou a porta com uma lentidão excruciante para que
não batesse e os denunciasse.
Eles prenderam a respiração enquanto os passos ficavam cada
vez mais altos. Cada vez mais perto.
Pausa.
Antes de iniciar novamente, um pouco mais rápido desta vez.
Desaparecendo, finalmente.
A respiração que Lina soltou soprou a franja de sua testa. Finley
abriu um sorriso inquieto e aliviado.
Eles estavam no quarto de alguém. Seus passos na ponta dos
pés e encharcados deixaram pegadas úmidas no carpete cremoso.
Seus rostos ansiosos brilhavam como fantasmas em painéis de
parede espelhados, no brilho âmbar do sol estampado no teto e na
tela de filigrana prateada montando guarda sobre uma lareira
alegremente crepitante.
Lina e Finley passaram correndo pela enorme cama de dossel
para pairar em torno das chamas, as mãos estendidas em direção ao
glorioso, glorioso calor.
Ambos continuaram olhando por cima dos ombros.
A sala tinha uma sensação estranha, recém-desocupada, como
uma cadeira ainda quente. Os lençóis estavam jogados para trás em
um emaranhado. O ar estava inebriante, como se alguém borrifado
em perfume doce tivesse acabado de passar por ali. A fumaça saía
de uma longa piteira de ébano deixada em um cinzeiro.
Um disco estava girando no player no canto… silenciosamente
agora, exceto por um estalo quase inaudível.
Lina largou a faca e pegou uma xícara de chá meio vazia de
uma bandeja na penteadeira. O batom carmesim manchou sua borda
de porcelana.
Ela engoliu o conteúdo. Engasgou e bateu no peito.
Licor de cereja?
Ah! Graças a deus. Ela pegou o bule, enchendo a xícara até a
borda, afogando o medo e a preocupação com coragem líquida.
Como ela costumava fazer antes de uma apresentação, o frasco
secreto de um colega de classe passava de dançarino para
dançarino, boca ansiosa para boca ansiosa. Ela não tinha bebido
nada desde antes da festa. Sua garganta estava seca como o
deserto.
Finley lutou para manter a voz baixa.
— Ei, não beba tudo. — Ele espiou o prato de tortas de ovo ao
mesmo tempo que ela e atacou.
— Metades! — sibilou Lina.
— Acho que não — disse Finley, e enfiou um na boca. — É um
castigo.
Lina amaldiçoou e, quando ele se aproximou e roubou o bule
também, ela o chutou na canela.
Finley saltou para fora do alcance, remando direto do bico do
bule. Mas então, ele cedeu e deu a ela as duas tortas de ovo
restantes.
Lina as comeu, bebendo de sua xícara, saboreando a
queimadura em sua garganta, o calor começando a enrolar em sua
barriga. Seus olhos deslizavam seus arredores. Mesmo em
desordem, este quarto era muito mais arrumado do que o dela.
Nenhuma roupa estava caindo do guarda-roupa. As prateleiras
estavam espalhadas, amarradas lindamente com feixes de ervas
marinhas secas, empilhadas com fileiras de feitiços engarrafados e
frascos de geléia velhos contendo medusa minúscula e luminosa.
Então este era o quarto de uma bruxa? Uma pequena parte dela
não pôde deixar de se emocionar com o pensamento. A mesma parte
que se emocionou quando ela dançou com a Rainha das Bruxas
disfarçada na festa.
Embora os ilhéus vivessem em paz com as bruxas, ainda viviam
um pouco separadamente. A rainha e o resto se isolavam no palácio,
chegando à terra apenas para festivais e para vender sua magia nos
mercados da cidade. E embora os ilhéus pudessem se curvar e
serem gratos à rainha por impedir Caldella de afundar, eles não eram
excessivamente gratos. Ainda havia antipatia e superstição.
Havia algo tão deliciosamente proibido por estar aqui.
— Não é como eu imaginei — disse Finley em voz baixa. Sua
expressão era mais calma agora, comprimida por algo que poderia ter
sido melancolia. Ou saudade. Trouxe de volta memórias de quando
eram pequenos e tinham brincado de ser bruxos, observando fotos
em plumas de fumaça de vela, escalando os destroços escorregadios
e em ruínas no porto afundado e fingindo que a velha torre de sino
era seu Palácio de Água.
— Por quê? — disse Lina — Porque a sala não está cheia de
cabeças decapitadas e todas as diferentes faces que a rainha usa?
Ela arrastou os dedos sobre o rouge e os vasos de rímel na
penteadeira, sobre frascos de perfume estranho e um compacto
dourado em forma de concha, olhos brilhando quando ela espiou uma
tigela cor-de-rosa rotulada "Doce".
Estava transbordando de pérolas negras gordas. Cada uma
impecável e brilhante como uma promessa.
Lina não pôde evitar. Ela disparou um olhar para Finley no
espelho da penteadeira — ele estava franzindo a testa para a porta
que tinham entrado —, então pegou uma pérola da tigela e a jogou
em sua xícara de chá, arrebatando uma colher da bandeja e mexendo
enquanto a pérola se dissolvia. O licor de cereja vermelho se
transformou em um oleoso preto meia-noite, minúsculos arcos-íris
dançando através da superfície do líquido.
Ela lambeu a colher e bebeu a xícara inteira. Tinha gosto de
algas marinhas e alcaçuz, como encantamento.
— Finley — ela sussurrou depois.
Sua cabeça estalou em direção a ela. Sua voz não era ela
própria. Era mel quente, hipnótica.
— Me pegue um casaco? — Ela bateu os cílios.
Os olhos de Finley ficaram vidrados.
— Um bom! E um par de chinelos?
Ele pegou um suntuoso casaco de pele do guarda-roupa de
madeira de freixo da bruxa e estava obedientemente ajudando uma
alegre Lina a vesti-lo antes que os efeitos do feitiço desaparecessem
e seu rosto se transformasse de repente em trovão.
— É inofensivo — ela disse rapidamente, as palavras
tropeçando umas às outras em sua pressa para deixar a boca. — Um
feitiço para tornar sua voz doce. Irresistível. Os sopranos no
conservatório estão sempre acusando uns aos outros de comprá-los.
— Geralmente quando estavam brigando por um solo. Lina agarrou
um punhado das pérolas negras, deixando elas caírem através de
seus dedos e zumbindo de volta na tigela de açúcar. — Pegue uma
também. Se encontrarmos alguém, podemos encantá-los, subjugá-
los. Isso ajudará. Não fique bravo.
Raiva e incerteza guerrearam nas feições de Finley, lutando
contra a doçura da voz dela.
— Não fique bravo — ela enfatizou. — Por favor — Cada
músculo de seu corpo se retesou instintivamente ao primeiro sinal de
seu temperamento subindo. Ela se perguntou se sempre seria assim
entre eles agora. Como se não fosse apenas o tornozelo que tinha
quebrado, mas algo mais, algo irreparável.
— Eu não estou com raiva — disse Finley, soando ligeiramente
atordoado, as palavras grudadas em sua língua como melaços
grossos.
Lina puxou o casaco de pele apertado em torno de seus ombros,
empurrando a questão de saber se as coisas voltariam ao normal,
ficando com raiva de si mesma agora por se distrair. Thomas estava
aqui em algum lugar, sozinho e em perigo.
— Você ouviu isso? — Finley inclinou a cabeça. — É aquela
música novamente, aquela canção.
— Está tocando há séculos — E o bruxo com quem ela dançou
na festa alegou que não gostavam. Que mentiroso. — Você devia
pegar emprestado um casaco também — Lina empurrou os pés em
um par de chinelos e vasculhou pelo quarto em busca de qualquer
outra coisa que pudessem pegar. Como as pérolas negras, algum
pequeno encanto que podia ajudar.
Ela pegou a faca de Finley da penteadeira, seu olhar
permanecendo em um ventilador portátil com uma alça de tartaruga e
grandes plumas de penas de pavão. O tipo de ventilador que não só
esfriava e disfarçava seu rosto, mas poderia afastar a má sorte.
— Eu juro que é como… — Finley fez uma pausa, se afastando
dela. — Parece o modo como eu toco, não?
Lina segurou um arrepio. Parecia? Aquele desdobramento fraco,
fino e alto. Por um segundo, ela jurou que podia sentir o vibrar das
cordas nos dentes. Sentir cada nota enrolando em torno de seus
pulsos e tornozelos, puxando-a, tentando dirigir seu corpo como um
navio.
Passos suaves de meias acolchoadas atrás dela. A porta se
abriu. Clicou para fechar.
Lina se virou.
— Finley?
Lina

Lina estava do outro lado do tapete em um instante, xingando,


com a faca na mão.
Ela abriu a porta, irrompeu e quase tropeçou em seus próprios
pés em estado de choque.
Onde estava o corredor? As varandas e suas cortinas
ondulantes? As paredes brilhantes de folha de ouro e âmbar
brilhante? A porta a levara para outro lugar. Lina respirou fundo. O ar
estava apertado. Metálico. Como lamber o lado marcante de uma
caixa de fósforos. Arrastar a língua pelo lábio inferior terminaria em
uma boca cheia de faíscas.
Ela estava em uma sala no topo de uma torre devastada pela
tempestade. Seu telhado estava desmoronado, seus vitrais
quebrados, uma chuva leve caindo de lado pelos buracos. Velas,
livros e móveis em ruínas cobriam um tapete encharcado e
enegrecido.
A culpa repentina atingiu Lina. Isso era culpa deles. Culpa dela.
Quando ela lançou o feitiço engarrafado para convocar a tempestade,
viu um raio atingir as torres do palácio. Ela queria derrubar todo o
lugar odioso, mas não pensou…
A porta se fechou atrás dela. Lina pulou.
— Finley? — Ela agarrou a maçaneta da porta, soltando a faca
para agarrá-la com as duas mãos.
Não girava, não abria, não funcionava.
Ela deu um soco na madeira.
— Finley? Finley!
Alguém gemeu. Lina girou, a maçaneta da porta cavando em
suas costas. Ela pegou a faca do chão.
Um armário caído contra a parede oposta estremeceu,
levantando uma nuvem de poeira. Alguém estava lutando para sair
debaixo dele, as unhas arranhando o tapete. Seus cabelos loiros
estavam emaranhados com sangue de um corte profundo na testa.
O coração de Lina parou. Ah, Deus. Elu estava ali quando ela
causou a tempestade? Tinha mais alguém?
— Não se mova! — Seus chinelos chacoalharam enquanto ela
abria caminho pelo caos. Ela sentiu que ia vomitar. — Não se mova.
Estou chegando. Aguente.
— O que é que você fez?
Sua cabeça se ergueu com a voz familiar, a boca aberta
enquanto ela olhava para o rosto empoeirado e manchado de sangue.
— Thomas?
— O que é que você fez? — As palavras eram ásperas, densas
de dor e acusação.
— Eu não… Deus, eu sou tão… — A respiração de Lina
engatou. Ela escorregou em um livro encadernado em couro e seu
tornozelo cedeu quando seu peso mudou de repente. Ela
desmoronou, aterrissando com força, o tapete roçando suas palmas
em carne viva. A faca se soltou de seu aperto.
Ela engasgou, cerrou os dentes e olhou para cima.
— Estou bem. Apenas... fique quieto...
Não havia ninguém preso embaixo do armário caído. Ninguém
lutando para rastejar para fora das ruínas com as mãos e os joelhos
sangrando. O espaço ocupado por Thomas estava vazio, exceto pela
poeira.
O cabelo na nuca de Lina se arrepiou.
— Thomas? — Saiu como um sussurro. O ar mudou. A mais
leve rajada de vento agitou as páginas de outro livro, abafou o
tamborilar suave das gotas de chuva. Lina lutou para ficar de pé. De
repente, ela estava ciente de algo, alguém, movendo-se em algum
lugar atrás dela. Um sussurro de seda. Um passo suave de gato.
Ela engoliu em seco, se preparou e se virou lentamente.
Não havia ninguém. Nada, exceto um toque de fumaça escura
da noite.
Lina desejou que seu coração parasse de correr. Ela se lembrou
da pérola negra que engolira minutos antes. Colocou suas palavras
em camadas com a mesma doçura suave e melosa que ela usou para
compelir Finley.
— Eu... eu sei que você está aí. — Ela mordeu a bochecha, se
amaldiçoando pela gagueira. — Por que você não sai? Onde está
meu irmão? O que você fez com ele?
Sem resposta.
Lina lambeu a superfície ressecada de seus lábios.
— Meu nome é Lina Kirk. Estou aqui por Thomas Lin. Estou aqui
para levar ele de volta. — Sua voz ficou mais alta. — Mas você sabia
disso, ou não teria conjurado aquela... aquela ilusão, aquela coisa. —
A raiva fresca se agitou em seu estômago, queimando seus nervos.
— Você não pode escolher o mesmo garoto duas vezes!
O ar enfumaçado parecia pulsar com uma risada meio ouvida,
como se sussurrasse de volta: Quem disse que não posso?
— Por que você não se mostra? — Lina persuadiu, enfatizando
cada sílaba. A magia da pérola havia trabalhado para encantar Finley.
Funcionava para os sopranos do Conservatório. Por que não estava
funcionando agora?
Ela tentou forçar a fechadura da porta com a faca de Finley, mas
só conseguiu entortar a lâmina.
Ele ia ficar muito bravo com isso.
Se ele ainda estivesse vivo.
Se ela o visse novamente.
Se a Rainha das Bruxas já não o tivesse servido de alimento
para sua serpente marinha.
Em um ataque de pura frustração, Lina arremessou a faca cega
pela sala. Uma lágrima de pânico queimou uma faixa de fogo em sua
bochecha, e ela enxugou furiosamente a umidade.
— Você ainda está aí? — ela tentou novamente. — Só quero
conversar. Eu…
Houve um estalo suave, uma chave girando em uma fechadura.
Um gemido prolongado de dobradiças enferrujadas.
Lina recuou quando a porta se abriu, mas ninguém entrou. A
porta aberta apenas esperava, paciente, glifos dourados brilhando
sobre sua madeira polida, as sombras além acenando em um convite
silencioso.
Lina hesitou. Onde a levaria desta vez? Improvável que isso
levasse a algum lugar bom...
Mas o que ela tinha a perder? Já tinham levado Finley, roubado
Thomas. Ambos estavam em perigo por causa dela. Ela também não
estava ajudando ficando parada.
Ela cruzou o limiar. E novamente, as portas do Palácio da Água,
como portas em um sonho, a levaram para outro lugar, para o lugar
que ela menos esperava. Era uma capela, silenciosa como uma
igreja. Fria e cheirando fortemente a incenso, suas paredes sagradas
estavam decoradas com ossos humanos, uma cadeia de crânios
sorrindo acima do altar.
Ainda não havia sinal de ninguém.
A próxima arcada — portas duplas desta vez — abriu em um
salão fantasmagórico, luz pálida caindo através de janelas finas,
móveis escondidos sob lençóis brancos esvoaçantes. A porta depois
disso levava a uma cripta onde jaulas de almas — potes de lagosta
que os diabos do mar colocavam ao longo do fundo do mar para atrair
as almas dos marinheiros afogados — se alinhavam em todas as
prateleiras.
Virando-se, Lina captou o brilho mais rápido de dois pares de
olhos curiosos como gatos. Um lampejo de duas menininhas em
vestidinhos pretos — duas bruxinhas com redemoinhos dourados
pintados nas maçãs do rosto.
Seus pés descalços batiam. Suas saias pretas balançavam.
E então elas sumiram novamente.
O coração de Lina dançou uma batida furiosa. Estavam
brincando com ela? Era tudo uma forma distorcida de esconde-
esconde? Achavam que esse tipo de coisa a assustava? Lina era
uma ilhéu, criada com cafés da manhã de encantos e maldições.
Ela abriu a porta ao lado. E a próxima, e a próxima, e a próxima.
Por horas, dias, talvez uma eternidade, ela procurou no palácio
por Finley e Thomas, por vislumbres de uma garota feita de fumaça.
Não havia como controlar o tempo. A cada passo, ficava mais e mais
cansada. Ela não dormia desde antes da festa, e havia algo hipnótico,
torturante, nessa sequência interminável de portas. Os quartos todos
derretendo juntos. E seu tornozelo — Deus, ela estava tão cansada
de sentir dor. Todos os dias ela acordava esperando, e ainda estava
lá — essa fraqueza, essa dor teimosa.
Ela estava com tanto medo agora, de que a dor estivesse
sempre lá, que nunca fosse embora. E sabia que estava piorando as
coisas por não descansar, mas ela não podia descansar, não podia
parar agora.
— Isso é o melhor que pode fazer? — ela chamou. — Eu não
vou desistir.
Ela se forçou a passar por outra porta, os pés afundando com
respingos chocados na água gelada.
Lina sibilou, os olhos demorando para se ajustar à escuridão
repentina, a língua de repente picante com o gosto de sal e algas
velhas. Ela estava de pé até os joelhos nas águas rasas de uma
caverna inundada ondulando com luz esmeralda e safira.
Água parada se estendia na frente dela, fissuras escarpadas nas
paredes onde estátuas desgastadas pelo mar montavam guarda.
Pedras cobertas de musgo se projetavam como dentes de jade,
formando um caminho escorregadio pelo derramamento.
A inquietação enrolou dentro da barriga de Lina, sua mente se
enchendo instantaneamente com todas as histórias com as quais
Finley a aterrorizava quando ela era pequena: Contos da serpente do
mar que a Rainha das Bruxas mantinha como animal de estimação. O
monstro gigante que comia os criminosos da ilha e engolia os navios
do continente, que dormia em uma caverna esculpida nas fundações
inundadas do Palácio da Água.
Mas não era como se o monstro comesse qualquer um, certo?
Protegia a ilha, os ilhéus. Ela não era uma criminosa… Era um crime
invadir o palácio?
Lina começou a voltar, se torcendo para encontrar a porta pela
qual acabara de passar. Mas sua atenção foi pega.
Mantida.
Visões e imagens se perseguiam pela superfície imóvel da água,
piscando como escamas de peixe. Na ilha, também, as poças às
vezes refletiam céus diferentes daquele acima.
Lina teve um vislumbre de saias chicoteando como
redemoinhos, dançarinos girando em torno de uma fogueira
crepitante em um campo com montanhas além. Uma vista do
continente. Eles celebravam sua própria versão grotesca da véspera
de Santa Walpurga, queimando efígies vestidas de preto e, às vezes,
quando as pegavam, bruxas de verdade.
Em seguida, veio uma visão cintilante de Caldella, as sinuosas
estradas aquáticas da ilha e o arco-íris pastel de casas bem
empilhadas, suas praças de paralelepípedos e jardins secretos. A
saudade roubou o fôlego de Lina. Sua linda cidade encantada. O
cenário de sua história de amor. Ela queria focar a imagem, beliscar e
cutucá-la até que revelasse sua porta da frente, até que mostrasse
sua família, seu irmão, mostrasse a ela onde Finley estava agora.
Antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, a imagem mudou.
Agora, a água mostrava o Conservatório, suas paredes
espelhadas e pisos polidos, a cor rica e inebriante de caramelo
derretido. E uma figura, a própria Lina, rodopiando, pés ágeis
dançando sobre duas espadas cruzadas, realizando uma das danças
tradicionais da ilha, uma encenada na véspera da batalha, que
prenunciava triunfo ou perda, conforme seus pés roçavam as lâminas
nuas.
Ela dançaria assim de novo? Seria capaz? Seu primo, um
médico, disse que sim, mas sempre havia esse medo persistente no
fundo de sua mente.
Cada lesão cobrava seu preço. Limitava ela. Mesmo antes de
quebrar o tornozelo, ele estava rígido por causa do tecido cicatricial;
ela não podia contar o número de vezes que o torceu. Era seu
tornozelo fraco. Daria muito trabalho voltar para onde estava. Já tinha
dado muito trabalho para chegar lá, e era trabalho duro, não talento,
Lina sabia. Trabalho duro e sempre se levantando de novo.
Ela se deu uma sacudida.
Você já passou por isso antes. Vai passar por isso novamente.
Pare de sentir pena de si mesma.
Foco.
Ela vasculhou a caverna, as sombras, a voz ecoando pela água
enquanto gritava:
— Quanto tempo você vai continuar se escondendo? Não está
cansada desse jogo?
As visões que a água havia mostrado se desvaneceram até que
a superfície refletiu apenas seu rosto angustiado.
Deus, ela parecia horrível. Como algo quebrado e trazido com a
maré. Cabelo emaranhado em nós, kohl4 manchado sob os olhos
vermelhos pela falta de sono.
E então aquela imagem também desapareceu, a água
estremecendo como se alguém tivesse acariciado um único dedo em
suas costas.
Lina abriu a boca para falar novamente.
Foi para as pernas dela. Uma cauda escorregadia atacou,
enrolou-se em suas panturrilhas e a arrancou das águas rasas. A
água negra engoliu o som de seus gritos enquanto a serpente a
arrastava para baixo.
Lina se debateu e lutou e arranhou e chutou. Mas sua cauda
enrolou mais apertado, arrastou-a mais fundo, e a água negra estava
por toda parte. Atrás de seus olhos. Enchendo sua garganta, seu
nariz.
Ela soluçou, engasgou, inalou, engasgou novamente. Rostos
inchados e carne inchada giravam em uma grande onda de bolhas.
Os fantasmas de meninos afogados vieram acompanhá-la até um
túmulo aquático.
Não.
A força se esvaiu de seus membros.
Não.
Seus braços cortavam fracamente com a corrente. Seus chutes
eram fracos. Uma dormência estava rastejando por seus dedos das
mãos e pés, roubando em seu peito. A visão de Lina cintilou. Ela viu
as bolhas subindo. Seu último suspiro flutuando para a superfície.
Não, por favor.
Eva

— Você fez com que as portas a levassem para a caverna do


mar? Vai deixar a serpente comer ela?
— Não me lembro de ter ditado o que você tinha que fazer com
o garoto.
Eva parou na frente da porta do salão, lançando um olhar por
cima do ombro.
— Eu o tranquei.
Tedioso. Mas Eva não disse isso em voz alta.
Yara alcançou. Ela tinha uma carranca de julgamento
indisfarçável, e parecia tanto com a de Marcin que Eva fez uma nota
mental para diminuir o tempo que eles passavam juntos.
— O menino que você me deu? — Yara apertou as pontas dos
dedos. — Acho que ele faria um sacrifício muito melhor. Muito melhor
do que Thomas.
Eva ergueu os olhos para o teto. Yara nunca pararia de ficar de
mau humor, nunca se contentaria com o fato de Eva ter escolhido por
si mesma este ano?
— Você não concorda com a minha escolha.
— Acho que você vai achar difícil se apaixonar por Thomas.
Eva deu de ombros, um minúsculo levantar de seus ombros. Ela
segurou gentilmente a maçaneta da porta, sorrindo levemente ao
imaginar o terror de Lina Kirk ao tropeçar na caverna da serpente
marinha, ignorando o fato irritante de que Yara estava certa.
— Finley é muito bonito. E ele poderia tocar violino para você.
— Você acha que vou falhar — disse Eva categoricamente. —
Acha que o sacrifício vai falhar novamente este ano.
Porque iria. O feitiço que acalmaria a maré negra foi queimado
em Eva, listado como os ingredientes de um livro de receitas ou de
um velho grimório: tire a vida de quem você ama e misture com as
lágrimas que derramou por ele. Adicione três gotas de sangue, três
fios de cabelo e alimente tudo no mar à luz da primeira lua cheia de
maio.
A primeiríssima Rainha das Bruxas, a garota pintada no teto do
Salão de Âmbar, havia dado o menino com quem ela se casaria ao
mar para salvar a ilha, e a maré havia desenvolvido o gosto por tais
sacrifícios. Só ficava satisfeita quando recebia alguém que a rainha
sofreu ao perder, alguém com quem ela se importava.
Não era um problema para as rainhas que vieram antes de Eva.
Elas amaram facilmente, se apaixonaram instantaneamente pelos
garotos que escolheram, mantendo-os no Palácio da Água até a lua
cheia para que pudessem se apegar cada vez mais a eles.
Mas Eva não era do tipo que se apega facilmente às pessoas;
na melhor das hipóteses, ela gostava deles, apesar de seus esforços
contínuos para mantê-los à distância. Ela poderia até alimentar maré
com cem meninos ilhéus, um a cada amanhecer, a cada anoitecer, e
isso não importaria, porque eles não importavam para ela.
Thomas Lin não importava para ela, não da maneira que
contava. Ela não sofreria por perdê-lo. Ela gostaria de acorrentá-lo ao
pilar e assim a magia falharia, e a maré continuaria a subir.
— Marcin não… — Eva fez uma pausa. Claro que Marcin não se
opôs. Não sobre isso. Ele queria ver Thomas se afogar e já havia
confessado que não se importaria de ver a cidade afundar.
Uma parte de Eva suspeitava que ele gostava quando ela
falhava. Preferia. Ela costumava achar fofo, como ele sempre
precisava ser aquele que cuidava das coisas para ela, como ele era
entusiasmado, vindo até ela com conselhos. Ele nunca parecia saber
o que fazer consigo mesmo quando ela realmente conseguia algo
sem sua ajuda.
Yara se mexeu impaciente, o tecido de seu vestido farfalhando
como ervas daninhas.
Eva empurrou a porta, começando a descer um lance de
degraus escavados na rocha que conduziam à escuridão. Um baque
surdo e distante encheu seus ouvidos, a batida fraca de um coração
perdido, o estrondo das ondas ouvido debaixo d'água. Ela sentiu mais
como uma força do que um som, a maré escura batendo nas paredes
que brilhavam úmidas com fome voraz e insaciável.
Como ela desprezava isso, essa maldição que atormentava sua
ilha. Uma rainha não deve responder a ninguém. Nem os céus, nem a
terra, nem o mar. Especialmente não a algo tão temperamental como
a maré.
Natalia, é claro, riu na primeira vez que Eva disse isso a ela.
— Uma rainha — ela corrigiu afetadamente, — responde a
todos. Em primeiro lugar sua família, suas colegas bruxas. E depois
seu povo, seus ilhéus. O que é uma rainha, afinal, sem seus súditos?
Uma rainha do nada e de lugar nenhum.
Eva seria uma rainha do nada e de lugar nenhum se perdesse
Caldella, se ondas negras engolissem a cidade que sua irmã lhe
confiara. Mas o que era mais um ano? Certamente Caldella poderia
sobreviver por mais um mísero ano. Eles perderiam partes da ilha,
sim. Margens. Cantos. Alguns dos ilhéus perderiam suas casas e
negócios. Mas a cidade inteira não estaria perdida.
Ou foi o que ela disse a si mesma. E valeria a pena ver Thomas
Lin acorrentado ao pilar de pedra na Praça de São Casimiro como
deveria ter sido há dois anos. Teria sido, se Natalia não tivesse
tomado seu lugar. Ela podia ouvir os passos de Yara atrás dela. Ela
não podia esperar que Eva simplesmente o deixasse ir. Ela honrou a
memória de sua irmã todo esse tempo, não tocou um fio de cabelo
em sua cabeça. Mas ele a provocou, entrando na festa com Lina Kirk.
Foi um tapa na cara da irmã. Seu sacrifício tinha significado tão pouco
para ele? Como se atrevia a esquecê-la e seguir em frente quando
todos ainda estavam de luto? Ele não se importou com Natalia, a
enganou desde o início. Estava lá fora fazendo sua irmã parecer uma
tola.
Eva pressionou o polegar no lábio inferior e mordeu com força,
então rapidamente abaixou a mão, fechando os dedos em um punho
para que não visse as unhas já roídas até o talo. A morte era quase
boa demais para Thomas Lin. Ela queria tirar dele, como ele havia
tirado dela.
— Seria fraco mudar de ideia agora — disse ela a Yara.
— Mas não seria! — Elas chegaram ao pé da escada agora,
onde um arco escuro esperava para levá-las à caverna do mar. Eva
se moveu por ela, e um grito de gelar o sangue a cumprimentou,
interrompido por um grande respingo e uma nuvem de spray quando
algo escamoso e sinuoso arrastou algo menor para a água escura.
O ar ficou preso nos pulmões de Eva. Ela desceu sobre uma
pedra coberta de musgo. Yara agarrou seu braço, inclinou-se para
perto.
— Não é fraco ouvir uma amiga, especialmente quando sabe
que estou certa. Você vai mostrar a todos que é uma rainha que vai
ouvir, que você está disposta a ouvir.
Eva a olhou de lado, notando a expressão ansiosa do maxilar de
Yara, o tremor de seus lábios exuberantes, a bainha irregular de seu
vestido preto longo e brilhante mergulhando na água. O mesmo
vestido que ela usara na festa...
Havia momentos em que Yara ficava tão obcecada por uma
pintura, poção ou feitiço que estava trabalhando, que se esquecia de
dormir, comer e trocar de roupa. Às vezes, ela queimava tão
intensamente que Eva temia que sua amiga se esgotasse. Usasse
toda a sua magia e desaparecesse da existência como um sonho ao
acordar. Do jeito que todas as bruxas eventualmente faziam. Havia
uma razão para tão poucos deles envelhecerem.
— Marcin disse que você não tem dormido… — Eva começou,
puxando seu braço livre, tentando não deixar a impaciência sangrar
em suas palavras. Tentando não imaginar Lina enrolada nas espirais
da serpente do mar, seu cabelo loiro curto se espalhando ao redor de
sua cabeça, seus lábios cor-de-rosa lentamente ficando azuis.
Mas não iria comer ela. Ainda não. O bichinho de Eva gostava
de brincar com a comida.
— Eu dormiria melhor se não estivesse preocupada que o mar
estivesse prestes a devorar minha casa. Deveria começar a usar uma
boia salva-vidas como travesseiro. Você não quer salvar? A cidade de
Natalia? Nossa cidade? Você disse que sim. — Os ombros de Yara
estavam rígidos.
O olhar de Eva passou da ponta dos pés dela para a água negra
ondulante. O grito de Lina ainda permanecia em sua pele, dando-lhe
arrepios.
— Ela não te deixou isso — disse Yara —, para você observá-la
afundar.
Eva endureceu.
Um ciclone de vento e sombra chicoteou a água em spray. Eva
levantou a mão para proteger os olhos. Quando pôde ver claramente
novamente, Yara havia desaparecido.
Ela fez uma tentativa tímida de ir atrás dela.
Mas então Lina veio à tona.
Ofegante. Tremendo. Vomitando água salobra. Terror óbvio em
seu rosto quando ela se debateu com as pernas e os braços. Seus
dedos roçaram a borda irregular de um degrau e ela se agarrou a ele
para salvar sua vida. A água era profunda onde ela emergiu. As
pedras flutuavam sobre a água por magia.
Eva seguiu o caminho escorregadio que elas abriram na
caverna, chegando mais perto, parando a um passo de Lina.
— Você gostou de se afogar?
A cabeça de Lina se ergueu. Seus olhos estavam arregalados
como pires.
— Ouvi você gritando…
— Você gostou de ouvir? — Lina cuspiu na piscina, olhando de
um lado para o outro, procurando ansiosamente pela serpente do
mar.
— Um pouco — disse Eva, sorrindo.
— Eu não sei nadar! — Lina estremeceu e, uma vez que
começou a tremer, não conseguiu parar. Seus dentes batiam, de frio
ou de fúria, Eva não sabia dizer.
— Evidentemente não. — Eva se agachou e mergulhou os
dedos na água, reprimindo uma estranha pontada de culpa.
Mas Lina Kirk havia causado isso ao invadir o palácio sem ser
convidada. Ela trouxe esse lado de Eva, fez ela afundar em
mesquinhez e rancor infantil. Havia algo em Lina que a irritava.
Havia algo nela que lembrava à Eva de Natalia.
Elas não se pareciam. Lina parecia um rato afogado agora, e
Natalia parecia Eva — ou melhor, Eva parecia Natalia. Mas havia
algo, alguma qualidade indefinível que a lembrava de sua irmã. Algo
que levou as duas meninas a mergulharem de cabeça no perigo para
proteger os meninos que amavam.
Um tipo de inveja fervilhante e doentia serpenteou por Eva.
Porque, no fundo, ela sabia que, embora pudesse amar, não era
capaz de tal amor. Não um amor como o de sua irmã. Não estava
dentro dela. Ela sempre, sempre se colocaria em primeiro lugar.
E por que isso era tão terrível?
A inveja se misturou e se derreteu em uma frustração de ranger
os dentes. Ela não entendia. Não conseguia entender. O que tornava
a vida de outra pessoa mais preciosa do que a sua? Por que você
jogaria a sua fora? E se a outra pessoa realmente te amasse de volta,
iria querer que você jogasse fora? Se isso fosse amor...
A borda escamosa de uma espinha cortou a superfície da água.
Lina chutou freneticamente, tentando subir na pedra que ela
segurava. As palavras sopravam entre cada respiração.
— Onde está meu irmão? O que você fez com ele? Onde…
— Seu irmão? O que você fez com meu palácio? Com minhas
irmãs que estavam sonhando pacificamente naquela torre em que as
portas a levaram pela primeira vez?
— Eu não… — Lina soltou um grito quando a serpente do mar
mergulhou abaixo dela. — Não queria machucar ninguém. Eu só
queria…
— E ainda assim, vindo aqui e tentando levar Thomas Lin
embora, você está machucando todo mundo. Todas as pessoas da
ilha. Todos em Caldella. Seus amigos. Sua família. Um sacrifício tem
que ser feito para evitar que a ilha afunde, Lina Kirk, mas você
roubaria o meu e condenaria a todos para salvar algum garoto que
gosta. — Eva se endireitou.
A cor inundou as bochechas de Lina. Ela se arrastou para a
pedra, pingando, ofegante nas mãos e joelhos.
— Isso não é verdade. Você pode dar outra pessoa à maré.
— Ah? Então veio aqui para me oferecer outra pessoa? Seu
irmão, talvez?
Lina se acalmou.
Eva inclinou a cabeça para um lado.
— Ele veio aqui com você. Ele se juntou à nossa festa.
— Ele só se juntou porque você o tentou — retrucou Lina. —
Porque você promete a qualquer um que tenha a chance de ganhar
magia grátis e amor eterno e…
— Claro que sim. Vocês nos obrigam. Foi originalmente
concebido como uma recompensa, para homenagear aqueles
corajosos o suficiente para se voluntariarem. Como o dinheiro que
pagamos às famílias pela perda de seus filhos. Mas a cada ano, mais
e mais de vocês ficam relutantes. Mais e mais de vocês esquecem
seu dever. Agora temos que subornar, enganar e persuadir vocês a
se juntarem à festa, mesmo quando todos sabem que um sacrifício é
necessário. E agora você se atreve a vir aqui, ousa atacar minha
casa, minha família, fazer exigências para mim. Uma vida por ano é
tudo o que se pede para manter Caldella segura. Esse é o acordo que
vocês, ilhéus, fizeram com a primeira rainha.
— Dificilmente é um acordo se você não está mantendo sua
parte — Lina retrucou. — Nós lhe demos uma vida no ano passado, e
a cidade ainda está inundando. A maré negra está subindo desde que
você foi coroada rainha. Sua magia não está funcionando.
A compostura de Eva escorregou, suas mãos se balançando em
punhos ao lado dela. Ela falou rigidamente. Mentiu.
— O sacrifício funcionará este ano.
Lina zombou.
— Perdoe-me se não vou jogar a vida de Thomas nessa chance
única. — Ela se levantou, cambaleando, os pés escorregando no
musgo. — Por que ele? Você poderia ter tomado qualquer um. Ele
já... ela era sua irmã, não era? Sua irmã de sangue? Nossa última
rainha?
Todas as bruxas se consideravam familiares. Mas era uma coisa
rara, de fato, estar relacionada com sangue.
— E?
— E? Você não se importa? Sua irmã o amava, desistiu de sua
vida por ele. Ela se sacrificou para que ele pudesse viver. E isso não
significa nada para você? — Lina parecia pronta para pular a lacuna
entre suas pedras, a fim de estrangular Eva. Seus olhos queimaram
com toda a fúria de uma tempestade desencadeada.
Eva ficou tensa.
— Eu me importo — disse Lina. — Eu estava lá naquele dia. Eu
os vi acorrentá-la ao pilar. Foi a primeira vez que Mainha me deixou
assistir. Nunca vou esquecer aquilo. Sua irmã não estava com medo.
Nem um pouco. Nem mesmo quando a maré subiu ou quando a água
preta borbulhou através dos paralelepípedos. Nem mesmo quando as
ondas vieram batendo. Ela parecia tão, tão… — Admiração suavizou
sua voz, espreitava na curva agridoce de um fraco e súbito sorriso.
Agora, Eva queria romper a lacuna entre elas e cometer
violência.
— Você fala como se a admirasse. Como se ela tivesse feito
algo surpreendente, alguma coisa maravilhosa. Como se não tivesse
feito uma escolha tola e egoísta. Como se ela não tivesse desistido
de sua vida por nada.
— Nada? Ela protegeu a pessoa que amava. É você quem está
jogando fora sua vida, seu sacrifício, tomando Thomas. Ela...
— Você faria isso? — Eva interrompeu.
A água escorria acima do lábio superior de Lina, brilhando como
glitter nas pontas de seus cílios. Sua boca se abriu, mas nenhuma
palavra saiu.
Eva saltou nessa hesitação.
— Você tomaria seu lugar? Trocaria sua vida pela dele, sabendo
exatamente como é se afogar?
O peito de Lina parou. Por um segundo, ela não respirou, e
naquele segundo, Eva sabia que Lina daria qualquer coisa, trocaria
tudo e qualquer pessoa, pela promessa de que nunca teria que
passar por aquilo novamente. Que ela nunca sentiria o arranhão
salgado de água do mar em sua língua, sufocando sua garganta,
queimando seus pulmões. Que nunca se sentiria tão totalmente,
completamente desamparada enquanto ela lutava e lutava e lutava e
não conseguia chegar à superfície.
Ainda assim, ela queria ouvir Lina dizer em voz alta. Queria ouvi-
la admitir que a vida de Thomas não valia a pena. A voz de Eva
mergulhou baixa.
— Se você disser sim para tomar o seu lugar, te dou minha
palavra que vou deixá-lo ir. — Ela ofereceu a promessa como se
fosse um suborno.
Lina não fez nenhum movimento para aceitá-lo. Ela olhou, e
seus dedos se contraíram contra a coxa, mas isso era tudo. Eva
sorriu.
— Não é uma visão tão romântica, é? — A água bateu, a
serpente do mar nadando um círculo inquieto ao redor delas. — Você
se valoriza mais do que pensa. Nenhum menino valeu a vida da
minha irmã. Nenhum menino vale a sua vida — As palavras
transbordaram dela. Parecia tão bom dizê-las, essas coisas que ela
nunca teve a chance de dizer para Natalia. — Minha irmã não é um
exemplo para viver, uma lição para imitar. Ela não é um personagem
de conto de fadas para idolatrar e se sustentar e romantizar. Você
devia ficar grata por ter te ensinado esta lição, Lina Kirk. Eu não vou
te punir por atacar meu palácio. Não vou te dar de alimento para meu
animal de estimação, e até deixo você ir para casa — acrescentou
com um ar de grande magnanimidade. — Você pode voltar ao resto
da sua família. Viva uma vida longa e feliz.
Diga a todos como é generosa sua nova rainha.
Gotas geladas de água escorreram pelo pescoço de Lina e
passaram por sua clavícula. Uma das alças de seu vestido estava
escorregando de seu ombro.
— Não vai dizer obrigada?
O ar salgado sussurrou pela caverna do mar. A luz esmeralda
dançou sobre as paredes escarpadas.
— Meu irmão.
Eva inclinou a cabeça.
— E quanto ao meu irmão?
Eva não respondeu. Não podia deixá-lo ir também. Ou ele ou
Lina teriam que ser punidos por suas invasões do Palácio da Água,
caso contrário, os ilhéus começariam a ter ideias.
Lina provavelmente também sabia disso. Seu olhar caiu na
água. Ela deu um aceno minúsculo e infinitesimal no silêncio de Eva,
consolando-se talvez. Então olhou para cima.
— Eu vou fazer isso. Vou ficar no lugar de Thomas. E do meu
irmão. Deixe-o ir também. É o suficiente punir um de nós, certo? Vou
ficar com você e ser o sacrifício, por favor… — Lina se curvou a
cabeça. — Por favor. É minha culpa que estejam aqui. Thomas se
juntou à festa para me ajudar. Você o deixou em paz antes. Eu fico
com você, prometo. Por favor.
Uma descrença selvagem queimou através de Eva. Era uma
sensação de derrota, como se tivessem jogado um jogo que Eva não
sabia que estavam jogando, e ela tinha perdido de alguma forma.
Por que as pessoas não têm o mesmo amor por si mesmas que
tem pelos outros?
Ela olhou para aquela cabeça loira curvada, sem palavras, o
espaço oco onde seu coração costumava estar doendo, se
expandindo para um vazio que ameaçava engoli-la. E atingiu: o
sacrifício poderia realmente funcionar este ano se fosse Lina.
Não era amor que ela sentia. Não era nem gostar. Mas Eva
sofreria, e pela maré escura, isso poderia ser suficiente. Machucaria
assistir a essa vida tola e saber que Thomas Lin tinha de alguma
forma conseguido roubar a alma de outra garota.
Alguém pareceu tomar posse do corpo de Eva então. Seu braço
se estendeu e uma voz que não era mais sua sussurrou: — Muito
bem.
Se Lina Kirk ficou tão interessada em abraçar a morte, então
quem a pararia? E talvez este fosse um tipo melhor de vitória; ela
levaria alguém de Thomas do jeito que ele tinha tomado alguém dela.
Lina

Lina ouviu seu irmão antes de vê-lo, gritos raivosos ecoando na


próxima curva do corredor.
Ela correu em direção ao som, fios de cabelo molhados
grudando em suas bochechas enquanto ela olhava para a bruxa
andando ao lado dela.
— Se você o machucou…
— Já disse que não machucamos. Acho que alguém contou
para ele que você está tomando o lugar de Thomas?
Os passos de Lina vacilaram. Um cobertor de lã áspero pendia
de seus ombros, envolvendo suas roupas ainda úmidas. Pétalas cor-
de-rosa suaves caíam dos galhos de flores de cerejeira pintados no
teto do corredor, e uma roçou a ponta de seu nariz.
O vapor saía da caneca que ela segurava em uma mão. Uma
caneca de sopa de peixe caseira e defumada que ela ficou chocada
ao reconhecer como o Ensopado Caldellano favorito dos pescadores
locais. Se ela fechasse os olhos agora, quase poderia contar uma
história para si mesma, fazer de conta que nada disso estava
acontecendo, que ela estava de volta à ilha, parada na beira do North
Shore em meio à casas pintadas em tons pastel de laranja e azul.
Uma brisa salgada batendo nas persianas amarelo-limão. Sinos
prateados tilintaram quando uma figura curvada e com um cachecol
saiu da loja de chá na esquina que vendia tortas de ovo. Água negra
lambendo as tábuas frágeis da passarela de madeira que as pessoas
haviam erguido para não molhar os sapatos.
— Achei que você estava desesperada para vê-lo?
Os olhos de Lina se abriram. Ela encontrou o olhar da bruxa que
lhe dera o cobertor, que insistira que ela bebesse a caneca
fumegante de ensopado. Você é o sacrifício agora; não podemos tê-la
morrendo de frio antes da lua cheia.
Yara. Uma garota com uma voz rouca e questionadora. O tipo
de voz que ficava na sua memória por muito tempo depois que você a
ouvia. Ela balançou mais perto, seu vestido preto longo e brilhante
oscilando com um som como ondas lavando a costa. Seu cabelo
preto curto estava arrumado nas ondas mais perfeitas dos dedos. Ela
estava envolta em pérolas, e pulseiras de coral subiam em seus
braços, brilhando contra sua pele morena macia.
Parecia alguém por quem o mar se apaixonaria.
A Rainha das Bruxas — Eva, como Yara a chamava — deixou
Lina com ela. Largou-a como um cachorrinho indesejado no meio da
sala de música ensolarada onde Yara estava escolhendo uma música
frustrada em um piano de cauda reluzente.
— Você me disse para pegar outra pessoa como sacrifício —
Foi tudo o que ela disse antes de sair, saias e sombras lambendo
seus calcanhares, deixando uma Yara boquiaberta olhando para uma
Lina molhada e uma Lina igualmente boquiaberta, encarando Eva,
uma pequena poça indignada se formando a seus pés.
— Onde ela está indo? — Ela explodiu. Muito possivelmente
Eva tinha algum outro negócio real para atender, algum compromisso
pré-arranjado para arruinar a vida de outra pessoa, mas como ela
ousa simplesmente ir embora? Depois de tudo isso?
— Ah, é assim que ela é — disse Yara. — As pessoas a
cansam. Estou tão feliz que ela mudou de ideia. Ela provavelmente
precisa de um tempo sozinha.
— Agora?
Uma carranca puxou os lábios de Lina com a memória. Mas sob
sua frustração, sua fúria, e até mesmo sua incerteza, um triunfo
selvagem cantava. Ela encontrou uma maneira de salvar Thomas. Ela
o colocou naquilo, e ela o estava tirando. Tirando o irmão dela.
Salvando os dois. Foi a mesma euforia que sentiu quando acertou
uma sequência novinha em folha, aquela explosão de orgulho quando
recebeu um breve aceno de cabeça da instrutora mais rigorosa do
Conservatório.
Muito mais satisfatório do que se a Sra. Czajkowska tivesse
simplesmente elogiado.
Yara estendeu a mão para firmar Lina enquanto ela dava um
passo mancando para frente. Lina se esquivou.
— Sou perfeitamente capaz de andar sozinha. Não preciso de
uma enfermeira. Você não tinha que andar comigo.
Yara piscou.
— Mas eu andei? As portas aqui gostam de fazer travessuras.
Marcin diz que alimentamos o palácio com muita magia e agora as
portas têm vontade própria. Gostam de cuspir você nos lugares mais
estranhos.
Uma cabeça pequena e escura apareceu na curva à frente. Uma
garotinha como as duas que Lina tinha visto antes. Outra bruxa. Ela
se parecia muito com a prima de Lina, Ivy. As mesmas maçãs do
rosto e olhar excessivamente solene, as mesmas franjas pretas que
tia Van sempre cortava um centímetro acima das sobrancelhas de
Ivy.
Quantos anos tinha essa menina? Ela deve ser uma das últimas
bruxas que encontraram. Isso não acontecia com frequência agora,
mas a rainha costumava testar as crianças da ilha em busca de
magia, assim como aquelas crianças que vinham para Caldella como
refugiadas antes do fechamento das fronteiras. Lina nunca tinha
contado a ninguém, nem mesmo a Finley — e ela contou a maioria
das coisas ao irmão —, mas quando ela era pequena, secretamente
desejou que a rainha viesse buscá-la.
Viesse e dissesse que ela era especial, que podia fazer magia,
que ela tinha que ir morar com ela no Palácio da Água. Ela deixava a
janela aberta para que a rainha não tivesse problemas para visitá-la
mesmo no auge do inverno, porque alguma voz interior jurou que se
ela não o fizesse, a bruxa definitivamente não viria.
Lina se encolheu. Que tola absoluta ela tinha sido.
— Nunca pensei em escolher uma garota para E — disse Yara,
meio para si mesma, dedos longos brincando com suas saias,
franzindo a testa para a bruxinha que rapidamente se escondeu,
como se tivesse sido pega fazendo algo que não deveria.
— Importa quem é — disse Lina amargamente, levando a
caneca de sopa à boca —, desde que alguém seja alimento da maré?
Os olhos de Yara estavam arregalados.
— Claro que importa. A rainha tem que se apaixonar pelo
sacrifício.
Lina engasgou com um gole de sopa.
— O quê…
À frente, a voz de Finley rugiu como um trovão. Lina
estremeceu. Um meio pedido de desculpas, meio justificativa
derramou instantaneamente de seus lábios.
— Ele não costuma ser assim.
Yara ergueu uma sobrancelha.
As bochechas de Lina esquentaram. — Ele é um bom irmão. Só
fica um pouco agitado às vezes. Você não ficaria também, se
estivesse trancada aqui desde a festa?
Deus, mas realmente, ele tinha que falar tão alto? Por que tinha
que envergonhá-la assim? Por que ele tinha que gritar assim? Por
que todos em sua família faziam isso? O tio, até Mainha, às vezes.
Ela odiava quão incrivelmente pequena a raiva deles sempre a fazia
se sentir, como fazia seu coração bater forte, como congelava seus
pés no chão.
Lina puxou o cobertor de lã mais apertado em torno de seus
ombros.
— Você deveria ter me deixado contar a ele.
Mas teria feito muita diferença? E talvez, apenas talvez, uma
pequena parte terrível, cruel e vingativa dela gostasse do fato de que
ele estava claramente em pânico por ela ser chamada de sacrifício.
Deixe ele provar tudo o que ela sentiu na véspera de Santa Walpurga.
Deixe ele chafurdar no medo e na culpa. Deixe que ele explique tudo
para a família deles, explique como ele não a ouviu.
Uma leve brisa rodopiava nas pétalas que caíam das pinturas
encantadas no teto. Yara levantou a mão para pegar uma,
esmagando-a entre o indicador e o polegar.
— Eu cuidei dele desde que o peguei. Eu tinha trancado ele no
meu quarto. Dei a ele roupas secas. Ele foi a minha escolha na festa.
Ele é muito bonito.
Lina cortou-lhe um olhar de soslaio, a suspeita começando a
incomodar. Seria como Finley. Seu irmão não podia ir a lugar nenhum
sem uma garota sorrindo para ele. Ele pode até ter incentivado a
atenção, tentado encantar Yara do jeito que disseram que Thomas
tinha feito com a última rainha. Que maldito hipócrita. Lina tomou um
gole raivoso de sua sopa.
— Eu estava tentando convencer Eva a escolher ele — disse
Yara. — Para afogá-lo em vez de Thomas.
Lina bufou.
— E aqui estava eu pensando que você poderia ser uma boa
bruxa.
Yara sorriu de um jeito que fez Lina estremecer.
— Não existe tal coisa.
Enervada, Lina caminhou à frente, os mosaicos que cobriam as
paredes brilhando enquanto ela passava. Inúmeros pequenos
quadrados de concha e madrepérola retratavam cenas da história de
Caldella.
Havia a rainha Magareta. A trágica rainha. Aquela que queria
fazer a paz com os Continentais, que construíram uma grande ponte
entre aqui e Seldoma. Lá estava ela, conhecendo seu fim na panela
preta do rei do continente. E havia as gigantes serpentes do mar que
outrora aterrorizaram essas costas — menos aquela que tinha
aterrorizado Lina menos de uma hora antes. No mosaico, três
garotas, três dançarinas, estavam hipnotizando as feras, enquanto
três bruxas trabalhavam na magia para mandá-las embora.
Lina roubou um pouco de coragem da imagem.
Elas enfrentaram monstros — você enfrentou um. Tudo o que
tem que enfrentar agora é seu irmão.
Ela virrou a curva. Rostos de pesadelos e sonhos espiavam
pelas portas de cima a baixo do corredor. Bruxas de todas as formas
e tamanhos se reuniram em torno de Finley. Lina não era alta o
suficiente para ver sobre as cabeças das duas na frente dela,
bloqueando seu caminho, então ela olhou através delas em vez disso.
Eram como os fantasmas, seus corpos moldados de fumaça fina,
desaparecendo da existência dessa maneira que um sonho fez ao
acordar, suas características incertas e diminuindo, em breve sendo
totalmente esquecidas. Bruxas cuja magia estava quase esgotada.
— Como não podem ver isso? — Finley exigiu, apelando para a
multidão, aumentando várias oitavas. Yara não mentiu. Ele parecia
bem. Mesmo mais magro que o habitual nas roupas secas que ela lhe
dera. Yara até conseguiu domar seu topete com um punhado de
brilho gorduroso, que, se Lina já não soubesse, teria sido prova o
suficiente que ela fazia magia.
— Todos nós, ilhéus, sabemos. É óbvio para todos que tem que
ser Thomas Lin a morrer. — Finley sacudiu um punho na multidão, o
sangue crostando de seus dedos negros. Ele provavelmente foi e
socou outra parede. — Os sacrifícios não funcionam desde que a
última rainha deixou-o viver. Ele quebrou a magia, e é por isso que a
maré escura está subindo. Não dá para enganar o mar com sua
presa.
Yara roçou o cotovelo de Lina, deslizando e se espremendo no
meio da multidão.
— A magia não está quebrada.
Lina empurrou atrás dela, aproveitando o caminho aberto pela
outra garota, a sopa em sua caneca espirrando, derramando.
Finley olhou para Yara, depois torceu e se dirigiu a um homem
alto com cabelos como chamas.
— Achei que a rainha estava tentando consertar tudo. Fiquei
feliz quando ela o levou. Eu pensei, deveria ter tido mais fé nela. Ela
não quer salvar a ilha? Como levar minha irmã ajuda? Querem que a
nossa casa afunde?
Uma corrente elétrica correu pela multidão.
O homem com cabelos como chamas parou de se encostar na
parede e ficou ereto. Antes, ele assistiu a Finley com um vago ar de
diversão. Agora sua expressão era séria.
— Pode haver alguma verdade no que o rapaz está dizendo.
— Marcin! — Yara chegou ao lado do homem. Lina estava presa
alguns passos para trás; alguém havia pisado no final de seu cobertor
de lã, fazendo-a parar.
— Você sabe que é porque Eva não se importava o suficiente
com o último garoto — disse Yara.
— Sei que Eva realizou o último sacrifício perfeitamente. Não
sabemos com certeza o que fez a magia falhar.
Várias cabeças giraram em direção a Marcin, incluindo a cabeça
de Finley. Incluindo a de Lina.
Fios de cabelo vermelho sombreavam seus olhos de avelã.
— Eu não gosto de pensar que falhou porque ela não tem
coração, porque ela não consegue se importar. Eu quero acreditar
que a Natalia estava certa em fazê-la rainha. E eu não gosto de como
ela está duvidando de si mesma, mudando de ideia. Não gosto de
como você está influenciando ela.
— Eu estou influenciando ela? — O tom de Yara era incrédulo.
— Você escolheu o último menino para ela — murmurou uma
mulher perto de Lina.
— Você está de mau humor desde que ela escolheu Thomas —
disse Marcin. — Esteve incomodando ela para escolher outra pessoa,
escolher este rapaz aqui em vez disso, desde que voltamos. É como
se você quisesse salvar Thomas. É isso? Se apaixonou por ele
naquela época também? É por isso que você deixou Natalia morrer?
Os murmúrios das bruxas cresceram como uma onda,
transformando-se em um rugido. Sombras selvagens deslizavam
pelas paredes como aranhas furiosas. Uma mulher com a pele um
tom mais escura que a de Yara e longos cachos prateados com sinos
se moveu para colocar uma mão de apoio no braço de Yara. Mas o
resto... Lina percebeu que odiavam Thomas tanto quanto Finley.
A voz de seu irmão subiu acima do clamor.
— Thomas enganou vocês uma vez, não? É tudo que todos na
ilha falam: como ele seduziu a rainha má, como transformou o
coração de uma garota tola para seus próprios fins egoístas. Vão
deixar ele se safar disso? Ele enganou-a. Ele enganou vocês. Ele se
gaba disso.
— Isso não é verdade! Ele nunca fala sobre isso. — Lina
finalmente conseguiu passar pelas bruxas na frente dela, explodindo
no pequeno espaço no centro da multidão.
O barulho no corredor cortou para um silêncio mortal. Todos os
olhos estavam sobre ela agora.
O sussurro de um feiticeiro carregava:
— Lee-nah. Aquela que trouxe a tempestade. Nunca foi uma
garota antes. Não achava que Eva gostava de garotas. Achei que ela
não gostasse de ninguém.
As bochechas de Lina estavam em chamas. Ela gostava dos
holofotes, gostava de ser aquela que dança no centro do palco, mas
não tinha certeza se gostava desse nível de atenção. Ela abriu a boca
para continuar defendendo Thomas.
Mas Finley já estava avançando, seus olhos cinza de inverno
refletindo sua própria angústia de volta para ela. Ele a esmagou em
um abraço feroz e superprotetor.
— Se eles te machucaram…
Ele estava tremendo. Seu irmão estava tremendo.
A garganta de Lina fechou.
— Não me machucaram. Estou bem. Estou bem, Finley. Me
deixe…
Seu queixo pressionou afiado no topo de sua cabeça. Seus
protestos foram perdidos e abafados contra o peito dele enquanto ele
se voltava para as bruxas, a voz tensa.
— Vocês perderam sua irmã por causa de Thomas Lin. Por
favor, não me deixe perder a minha.
Lina

Eles receberam um quarto na torre sul. Com chão de mármore e


amplo, com sofás-camas e uma varanda virada para a cidade. Telas
intrincadamente esculpidas de âmbar e folha de ouro cortavam o
enorme espaço em seções, derramando um brilho quente de mel e a
luz do sol da tarde através de seus recortes esculpidos em padrões
elaborados.
Lina afundou em um dos sofás e, em segundos, estava
dormindo profundamente, a exaustão arrastando ela para seus
sonhos.
Ela sonhou com Eva, com Thomas, com cidades inundadas e
sinos funerários ainda tocando abaixo das ondas, com meninos
afogados e água negra se fechando sobre sua cabeça, despertando
nas garras de um pânico tão grande que ela mal conseguia suspirar.
— Quanto tempo eu estava… — Ela se sentou. — Onde está…
Finley colocou a mão em sua panturrilha.
— Não muito. — Ele estava empoleirado rigidamente na beirada
do sofá-cama. Um prato de comida intocado repousava atrás dele no
colchão. Lina lembrava-se vagamente de alguém trazendo-o,
cacarejando e pressionando a comida para ela como sua avó.
Você é o sacrifício agora; não podemos ter você morrendo de
fome antes da lua cheia.
O estômago de Lina roncou.
— Não posso acreditar que você se ofereceu… — Finley passou
a mão pelo cabelo, puxando-o. — Você está louca?
Lina fez uma careta e atacou a comida, colocando purê de
caranguejo em sua boca, mastigando com raiva. O alívio que ela
sentiu ao encontrar seu irmão já estava se transformando em
aborrecimento familiar. Por que não encontrou Thomas primeiro? As
bruxas prometeram que o trariam aqui também. Ela desejou que se
apressassem.
— Era a única maneira que ela o deixaria ir. A única maneira
que ela deixaria você ir.
— Não preciso de você para me salvar. — Finley passou a mão
pelo rosto. — Vou te tirar dessa.
— Eu não preciso de você para me salvar.
— Não estava me xingando na festa? Por me arriscar a isso?
— Isso é diferente. — Lina trocou a colher por um garfo.
— Como é diferente? — exigiu Finley. Ele pegou a comida no
prato. Bolinhos recheados com salmão. Arenque misturado com
creme de leite, cozido em duas pequenas panelas de barro e coberto
com cebola e queijo. Sopa servida dentro de uma tigela de pão
crocante. Crepes recheados com queijo doce, polvilhados com uma
neve de açúcar.
Lina espetou meio crepe com o garfo.
— Você vai se arrepender de comer isso.
Provavelmente. O estômago de Lina e alimentos leitosos e com
queijo não se misturavam. Mas ela apenas deu de ombros.
— Bem, vou morrer em breve de qualquer maneira, então eu
tenho que viver ao máximo.
Finley empalideceu.
Ah, e o crepe estava bom. Tão bom. De dar água na boca. Um
doce de queijo. Cremoso. Então absolutamente vale a pena.
— Ah, e quando você chegar em casa — Lina continuou
alegremente, acenando com o garfo, querendo que seu irmão
provasse mais da angústia que ela sentiu na véspera de Santa
Walpurga —, vou precisar que você encontre meu frasco de quadril5
e esconda ele. Está na minha bolsa com meus sapatos de dança,
enrolados em um par de meias. E eu preciso que se livre dos
charutos com sabor de morango atrás da minha cômoda. Há um
pedaço solto no rodapé onde eu os escondi. E… — Lina vasculhou
seu cérebro para qualquer outra coisa que ela não gostaria que
Mamis e Mainha encontrassem. Ela nunca tinha pensado sobre isso
antes, todas as coisas incriminatórias que ela deixaria para trás se
morresse.
Havia tantas coisas.
— Meu diário. Queime ele. E não se atreva a ler antes. E você
tem que prometer cuidar de Mainha e...
A garganta dela engasgou um pouco. O que suas mães
pensariam dela vindo aqui? Ficariam orgulhosas por ela ter lutado
para salvar a pessoa que amava?
Ou ficariam horrorizadas? Elas preferiam que ela e Finley
mantivessem a cabeça baixa, tinham criado os dois para nunca fazer
confusão.
— Lina.
Lina correu os dedos pelos fios de seu colar, tocando cada
conta, como Mainha rezando com seu rosário.
— Eu preciso de um banho. E algumas roupas limpas. Estou
prestes a dizer meu último adeus a você e a Thomas, afinal.
E não havia algo tão romântico e trágico nisso? O pensamento
de dizer adeus à pessoa que você amava, que nunca mais veria? A
perspectiva encheu Lina de uma espécie de dor melancólica, uma
emoção de culpa. Thomas pensaria nela quando ela se fosse? Como
uma luz guia, como a voz viva dentro de sua cabeça, como a garota
que o transformou, o salvou?
— Tire esse olhar do seu rosto — Finley ordenou, arruinando o
momento. — Pare com isso agora. Isso não é romântico. Você não é
a heroína trágica em uma de suas fantasias estúpidas. Você não vai
fazer isso.
Lina fez uma careta. Claro que ela não ia fazer isso. Não era
como se quisesse morrer. Era apenas difícil desligar essa parte de si
mesma. Ela sempre viveu em devaneios e histórias, inventando todas
as aventuras e romances que podia de uma vida comum, de
acontecimentos chatos do dia a dia.
Ela tomaria o lugar de Thomas porque era a coisa certa a fazer,
porque ela tinha arrastado ele e Finley para isso, mas... Ainda havia
tempo antes da lua cheia. E Thomas tinha conseguido sair desse
dilema da última vez, não foi? Lina duvidava muito que ela pudesse
fazer Eva se sacrificar, mas isso não significava que não pudesse
pensar em outra coisa, alguma outra saída. Assim que Thomas e seu
irmão estivessem em segurança longe daqui.
— Olhe — Finley implorou, sugando uma respiração profunda,
tentando controlar seu temperamento. Lina não pôde deixar de ficar
tensa. — Sei que você quer salvar a vida dele, mas pense, tudo bem?
E a vida de todos os outros? E as nossas vidas? E a nossa casa? O
que acontecerá com Mainha e Mamis e todos quando a Caldella
afundar? Já te disse, a magia não vai funcionar se for outra pessoa. O
sacrifício tem que ser ele.
Lina mordeu o garfo.
— As bruxas não pensam assim.
Antes, no corredor, Yara disse que o sacrifício do ano passado
falhou porque Eva não se importava o suficiente com o último menino.
Ela disse algo semelhante quando estavam andando juntas também.
Lina estava tão distraída com Finley que quase se esqueceu.
A rainha tem que se apaixonar pelo sacrifício.
Lina mudou, de repente desconfortável. Bem, isso não deveria
ser verdade também. Era ainda mais impossível de acreditar do que a
teoria estúpida de Finley.
Havia um retrato da Rainha das Bruxas pendurado na parede
logo acima do sofá-cama. O olhar de Lina se desviou de má vontade
para ele; a carranca pintada de Eva espelhava a dela, apenas sua
expressão combinava melhor com ela. Combinava com suas feições
sombrias e um tipo de elegância sombria. Meio ameaçador, meio
bonito.
Um rosto tão irritante.
— Alguns pensam que estou certo. Como aquele bruxo de
cabelo ruivo. — Uma das pernas de Finley sacudiu o sofá-cama,
fazendo os pratos da travessa chacoalharem. — Você não pode ter
os dois. Não pode ter Thomas e a ilha. Você realmente não se
importa com o que acontece com os outros?
— Você só começou a se importar com tudo isso porque a tia
Iris perdeu a casa dela e seu estúpido melhor violino estava lá
quando inundou. Você não se importou até começar a ouvir todos
aqueles rumores delirantes sobre Thomas, odiando ele só porque Ivy
disse que eu gostava dele.
As pontas das orelhas de Finley ficaram vermelhas. Seus
punhos cerrados. Lina mordeu o lábio, o coração martelando. O ar
ficou tenso. E mais uma vez, eles estavam perigosamente perto
daquele momento nos degraus de São Dominic, quando lutaram e o
tornozelo de Lina quebrou. Parecia que não importava o quão longe
eles viajassem, quantos dias e horas se passassem, sempre
voltavam de alguma forma para o momento que havia dividido o
mundo em antes e depois.
Ele a assustou. Seu irmão a tinha assustado. E ela sabia que ele
não pretendia, sabia que tinha sido ela quem começou a discussão,
mas a memória ficou como tecido cicatricial, grosso e inflexível, a
maneira do corpo se proteger. Um lembrete permanente de que,
enquanto algumas coisas curavam, também deixavam uma marca.
Ela sempre teria que superar isso.
Os olhos de Finley desceram do rosto para o tornozelo.
— Se você está fazendo isso para me punir…
— Isso não é sobre você. Não estou fazendo isso para te punir.
E aquilo, não foi sua culpa. — O que era apenas meia verdade, mas
sua pena, sua culpa, era sufocante. Cem vezes pior que sua raiva.
Lina não aguentava.
Ocorreu a ela brevemente que, se morresse, ele não teria mais
que ficar tão obcecado em consertar as coisas, não teria que se sentir
culpado toda vez que olhasse para ela. E então ela não se sentiria
culpada por fazê-lo se sentir culpado por algo que era culpa dele.
Ela soltou um suspiro.
— Pare de olhar para mim como se tivesse me quebrado. Eu
não sou tão fraca. E tenho um plano para sair disso. Você e Thomas
voltam para a ilha…
— Você não pode pensar que vou deixar você — Finley
interrompeu.
— E eu fico aqui esperando a lua cheia — Lina continuou,
falando por cima dele. — Deixo todos pensarem que estou
concordando com isso. Deixo pensarem que está tudo resolvido. Mas
tem a regata. Será realizado em breve, não é?
A regata da primavera sempre acontecia logo após a folia. Se
este fosse qualquer outro ano, Lina já estaria ocupada se preparando;
ajudando Finley a decorar seu barco-vassouras com seus primos,
tecendo guirlandas de lírios brancos com todas as tias para colocar
nas ondas, sonhando acordada com quantas estrelas cadentes ela
pegaria ao pôr do sol e quantas maçãs carameladas conseguiria
comer antes de passar mal. As festividades eram tão grandes e
mágicas quanto as realizadas na véspera de Santa Walpurga.
— Centenas de barcos estarão no porto afundado — continuou
ela. — Milhares de pessoas assistindo as corridas e colocando coroas
de flores na água, incluindo as bruxas. Estarei com a rainha, as
corridas são realizadas em honra do sacrifício, e com todas as
distrações, vou escapar. Você e Thomas só precisam pegar um
barco-vassoura bem perto do navio dela para que eu possa descer
quando escurecer. Então ele e eu podemos navegar juntos.
Assim como em seus devaneios.
— Ah, sim — disse Finley. —, e para onde vocês dois idiotas
vão?
Lina não tinha pensado tão à frente. E ela não conhecia Thomas
o suficiente para saber aonde ele gostaria de ir. Ela nem sabia onde
ele morava na ilha. Ele tinha família? Ele disse que da última vez que
foi levado, não tinha ninguém para salvá-lo. A testa de Finley ainda
estava franzida, mas pelo menos seus punhos se abriram.
— A rainha virá atrás de você.
— Ela vai estar muito ocupada, não vai? Encontrando outra
pessoa para sacrificar.
Alguém para acorrentar ao pilar na Praça de São Casimiro.
Alguém para alimentar as ondas.
Lina engoliu de repente, um eco de água salgada sufocando sua
garganta.
Nunca a havia incomodado antes, a ideia do sacrifício, e talvez
isso fosse horrível, que não a incomodasse desde que não fosse seu
irmão ou Thomas. Alguém com quem ela se importava.
Finley se mexeu, como se estivesse preocupado com o mesmo
pensamento.
— Nós vamos para o tio — disse ele finalmente. — Vamos
encontrar um lugar para esconder você.
— E Thomas.
Finley não respondeu.
— E Thomas — Lina repetiu mais alto. Finley deu um grunhido
evasivo, avançando para roubar o último bolinho de salmão e
enfiando-o na boca.
— Eu não gosto de te deixar. O que você acha que vão dizer se
eu te deixar? Tia Van. Laolao.
Lina queria revirar os olhos. Ela tinha certeza de que não diriam
nada. A família inteira o mimava muito. Finley escapou de tudo
porque ele era o garoto. O único sobrinho. O precioso primeiro neto.
Ele até recebeu o nome do marido alegre e de olhos azuis de sua
avó. Tudo o que ele precisava fazer era abaixar a cabeça e
murmurar: “Desculpe, Laolao”, e ela derreteria e manusearia seu
queixo com os dedos enrugados e tortos.
— O tio vai arrancar minha cabeça. Não gosto disso. Eu vou
ficar também.
— Você não precisa! Todos ficarão preocupados. Você tem que
deixá-los saber que estamos bem. Tem que fazer com que eles
tragam um barco.
— Lin pode levar a mensagem. Vou me certificar de que ele... —
Finley fez um gesto de silêncio quando uma porta se abriu do outro
lado da sala.
Lina estava de pé, o coração trovejando. Era Yara, e novos
rostos ao lado dela, mas o mais importante, uma figura hesitante
iluminada pelas lanternas de âmbar na passagem além. O garoto que
ela arrastou para isso, o garoto que ela estava ali para salvar.
Thomas.
Lina

Quatro dias se passaram em rápida sucessão. No final, Finley


se empenhou e permaneceu no Palácio da Água. Thomas voltou para
a ilha sozinho, encarregado de levar a notícia à família Kirk. Lina
cruzou os dedos para que não ficassem com muita raiva dele. E ela
os cruzou novamente, rezando para que eles ouvissem o plano que
ele propôs.
Eles iriam ajudá-la, não iriam? Navegariam em um barco-
vassoura perto o suficiente do navio da Rainha das Bruxas para que,
no caos escuro da regata, ela e Finley pudessem descer e escapar.
Pensando nisso, porém, ela percebeu que sua família sempre
concordou com o sacrifício, não importa quem fosse escolhido, assim
como todos os outros. Sua família manteve a cabeça baixa, não
causou problemas. Não tem nada a ver conosco, diria o Tio.
Mas certamente era diferente agora que era ela?
Lina percebeu que Finley também estava preocupado, mas,
como sempre, ele escondeu sua ansiedade sob uma espessa
camada de raiva e piadas. Transbordou, no entanto; um músculo se
contraindo em sua mandíbula enquanto os dias passavam, novas
sombras sob seus olhos, que eram especialmente óbvias agora na
noite da regata.
Os ilhéus tinham decorado a cidade para a morte.
Buquês de fitas brancas de luto esvoaçavam de cada chaminé,
cada janela, cada pulso. Dos postes de amarração listrados de
vermelho e branco ao longo das sinuosas estradas aquáticas, das
cúpulas em ruínas e dos cata-ventos enferrujados que se projetam
das ondas no porto em forma de meia-lua. Centenas de barcos-
vassouras enfeitados, movidos por magia, deslizavam dentro e fora
das ruínas incrustadas de cracas, navegando sobre o esqueleto
afundado da cidade velha, carregando crianças segurando maçãs
carameladas pegajosas e cones de papel de velas bruxuleantes. Os
tios comiam pepinos em conserva envoltos em tiras de arenque
salgado, caracóis do mar e lascas frias de melão açucarado,
enquanto as tias se abaixavam, colocando coroas de lírios brancos
como osso flutuando na água negra como neve recém-caída.
O pôr do sol dourava as pétalas de cada flor. O céu brilhava
carmesim e dourado. O frio se aprofundou quando a última luz
fumegante se esvaiu do dia. Mas ninguém estava saindo; os ilhéus
continuariam a discutir sobre quem deveria ter vencido a corrida final
e quem certamente a venceria no ano seguinte. Eles riam e
beliscavam uns aos outros para ficarem acordados enquanto ficavam
de vigília em seus barcos-vassouras, em suas varandas, até o
amanhecer.
A regata da primavera era uma vigília fúnebre com toda a
sensação de um carnaval noturno.
Havia dança, é claro. Música. Cantantoria alto e bêbada. Não
era uma festa em Caldella sem isso. O navio de Eva tinha ancorado
bem no centro da ação, no meio do porto, perto dos restos do antigo
campanário. As velas negras como noite ondulavam de seus mastros,
soprando em uma brisa salgada adoçada pelo cheiro de cera de vela,
caramelo e flores.
Tambores rufaram, flautas soavam. Cordas tocavam uma
música que Lina estava realmente começando a odiar.
A Rainha das Bruxas vem nas asas da noite.
A Rainha das Bruxas tem o deleite do seu coração.
Ela vai levar seu amante para ela.
Ela transformará seu coração e olhos em pedra.
Era como ouvir uma música de um de seus antigos números de
dança, uma onda de adrenalina em pânico, mente e corpo voltando
para intermináveis e infernais horas de treino e nervos.
Havia algumas músicas que Lina nunca, nunca queria ouvir de
novo.
Ela estava tentando evitar olhar para onde os instrutores do
Conservatório haviam montado o pontão6 de performance da escola,
um mini palco flutuando sobre a água. Os dançarinos já estavam
girando em círculos pelas tábuas de madeira com aros e serpentinas
de cores vivas e espadas reluzentes.
Alguns alunos até dançavam diretamente sobre a água com os
sapatos brilhantes que as bruxas haviam enfeitiçado para eles, que
os deixavam andar sobre o mar como se fosse sólido. Seus passos
deslizavam leves como uma pluma pela superfície como pedras
saltadas. Todos ficaram enfeitiçados pela mesma batida selvagem
que fez Lina rodopiar no convés com Eva — porque é claro que o
sacrifício da rainha tinha que fazer parceria com a mesma. As bruxas
giravam em torno de ambas em redemoinhos escuros de risadas
perversas.
A cena levou Lina de volta à primeira vez que elas dançaram, na
véspera de Santa Walpurga à luz das treze fogueiras, Eva disfarçada.
A emoção sombria de ser puxada contra outro corpo. Lábios roçando
a curva de sua orelha enquanto as palavras eram sussurradas de
forma provocante. As bochechas de Lina aqueceram com a memória.
Como elas se aqueciam agora, Eva se inclinou para sussurrar:
— Eu sou uma dançarina melhor do que ele, não sou?
Lina olhou para ela enquanto passavam por um grupo de bruxas
batendo os pés, sorrindo encorajadoramente do lado de fora,
parecendo perturbadoramente as tias de Lina quando estavam
tentando combinar uma de suas primas com algum garoto legal que
encontraram.
Eva era uma dançarina melhor que Thomas, mas Lina não
estava disposta a admitir isso em voz alta. A maneira como elas se
moviam juntas, como se seus corpos se conhecessem, como se já
tivessem dançado esses passos em outra vida, fez Lina se odiar um
pouco. Seu traidor coração de dançarina reconheceu a habilidade de
Eva, e seu corpo ainda mais traidor gostou demais da sensação.
Palma suada pressionada contra palma suada, olhos vendo
apenas uma à outra. Lina virou rápido, mais rápido, só para ver se
Eva conseguia acompanhar. Seu sangue cantou com uma alegria
estranha, cada passo combinado como se fosse um desafio, ambas
respirando com dificuldade.
Elas eram um estudo de contrastes, rodopiando pelo convés.
Eva, perigosa e elegante, em um terno sob medida com seus lábios
carmesins e sorriso afiado. Lina em um vestido esvoaçante de um
azul pálido, seu cabelo uma auréola loira curta. Ela estava com um
pequeno lenço também, uma coisa prateada sufocando seu pescoço.
— Não te incomoda — disse Eva. —, que Thomas nem sequer
protestou? Que ele simplesmente se levantou e te deixou aqui para
morrer? Você pensaria, realmente, que se ele realmente se
importasse com você, iria insistir em ser o sacrifício. Mas não. Ele
ficou tão aliviado, assim como ficou quando foi com minha irmã.
Lina podia sentir os olhos da outra garota sobre ela enquanto se
virava embaixo do braço, incrivelmente escura e intensa. Aguardando
uma reação. Esperando por uma. Seu colar de contas de coral-
sangue estalou contra seu peito. Seu estômago deu uma reviravolta
culpada quando Eva a girou para fora, então a girou de volta em um
abraço apertado.
A bruxa era uma cabeça mais alta, e ela se inclinou novamente
para continuar sussurrando:
— Ele me implorou para levar outra pessoa. Eu gostei dessa
parte. Embora tivesse sido melhor se ele tivesse feito isso de joelhos.
Ele me disse que sabia de outros meninos que eu poderia pegar, me
deu seus nomes, mas nunca se ofereceu. Nem uma vez.
Algo no peito de Lina deu a menor pontada.
— Pelo menos seu irmão insistiu em ficar com você — finalizou
Eva com o que soou como um respeito relutante, seu olhar saltando
pelo convés para onde Finley deveria estar à procura do barco-
vassoura do tio, mas estava flertando com Yara.
— Ele não é o irmão perfeito que você pensa que é — Lina
retrucou, fazendo Eva levantar uma sobrancelha. A culpa picou
imediatamente na consciência de Lina. Mas, honestamente, por que
seu irmão não voltou para a ilha com Thomas?
Os braços de Eva apertaram a cintura de Lina. Ela ainda a
observava atentamente. O coração de Lina pulou em uma batida
irregular.
— Eu preciso de um descanso. Nem deveria estar dançando.
Meu tornozelo… quebrei meu tornozelo recentemente e não consigo
colocar muito peso nele. — Ela se afastou abruptamente, se
esquivando dos outros corpos girando, o feitiço da dança quebrado,
seu constrangimento imediato e intenso. Não era uma mentira
completa, de qualquer maneira. Seu tornozelo estava protestando.
Era tão frustrante. Ela tinha esse medo constante à espreita no fundo
de sua mente agora, nunca sabendo por quanto tempo ou quão bem
seu corpo iria aguentar.
Lina encontrou um lugar no parapeito, mudou seu peso para sua
perna forte e tentou acalmar o pânico palpitante em seu peito.
Se Eva se sentiu insultada por sua saída repentina — ela
parecia estranhamente desolada, uma silhueta solitária encalhada em
um mar de casais dançando —, ela se recusou a demonstrar. E Lina
lembrou a si mesma que ela não se importava, de qualquer maneira.
Ela seguiu o balanço dos quadris da outra garota enquanto
também se afastava dos outros dançarinos. As linhas de seu traje
eram tão nítidas que ela poderia ter sido um personagem cortado de
um jogo de sombras.
Faíscas alaranjadas se acenderam quando Yara se juntou a
Eva. Um movimento gracioso de seu pulso e um estalar de dedos
marrons conjuraram uma chama entre o indicador e o polegar. Eva
colocou um cigarro nos lábios e se inclinou, olhando através de seus
longos cílios negros enquanto Yara acendia a ponta.
Havia algo estranhamente íntimo na cena que fez um novo rubor
começar a subir pelo pescoço de Lina.
Eva olhou para trás por cima de um ombro, pegando-a
observando.
O calor atingiu as bochechas de Lina, e ela se sentiu
subitamente envergonhada, exposta e culpada, sem saber
exatamente por quê. Virou-se rapidamente, torcendo a mão no
cordame e se inclinando sobre o corrimão.
O vento açoitou suas bochechas, seu cachecol, e ela apertou os
olhos para a luz fraca, procurando nos barcos por rostos familiares.
Captou olhares de choque, mas também de alívio e admiração,
ambos mil vezes melhores do que a pena enfurecedora que acabou
se acostumando desde que machucou o tornozelo.
O que pensaram, as meninas de sua classe? Seus amigos e
vizinhos? Todo mundo que ela conhecia? Engasgaram quando a
Rainha das Bruxas anunciou seu nome? Eles a achavam uma tola
por tomar o lugar de Thomas? Acharam ela corajosa?
Ela não falava com nenhuma das garotas de sua classe há
anos, as evitava ativamente mesmo antes da festa, porque não
suportava ficar sentada e ouvir tudo o que estava perdendo enquanto
estava ferida.
Salpicos atraíram seus olhos para uma criança inclinada
precariamente para fora de um barco balançando nas proximidades,
caramelo pegajoso tocando sua boca. Um homem rapidamente puxou
a criança de volta. A coisinha não podia ter mais do que cinco ou seis
anos. Ela não tinha mais de cinco ou seis anos na primeira vez que
participou da regata. Os continentais diziam que era grotesco, o que
os ilhéus faziam aqui todos os anos, que eram selvagens por celebrar
o sacrifício de seus filhos. Mas os habitantes do continente ferviam
suas bruxas até os ossos, então não era como se tivessem o direito
de dizer qualquer coisa...
Arrepios crivaram a pele de Lina.
Mas era um pouco grotesco, na verdade. Tudo isso. Essa noite.
A ilha não estava apenas celebrando a coragem e o sacrifício de
alguém. Estava comemorando o assassinato. Glorificando a morte.
Por que todos concordavam com isso? Uma vida realmente valia
a pena ser negociada para manter milhares seguras?
Ela não queria pensar nisso.
Olhou para a forma fraca de sua sombra na água, batendo na
madeira três vezes para banir os pensamentos. Então ela se inclinou
ainda mais, procurando ansiosamente pelo barco-vassoura do tio, por
Thomas. Quatro dias agora desde que ele foi mandando embora.
Mas, agora mesmo, ele pode estar navegando mais perto como
planejaram, escalando a lateral do navio. Uma segunda sombra
juntou-se à dela na água, e o coração de Lina gaguejou conforme ela
meio que imaginou...
Seu olhar esperançoso se transformou em uma carranca
quando ela levantou a cabeça e viu cabelos pretos em vez de loiros.
— Ele não virá — disse Eva, esgueirando-se ao lado dela,
ficando tão perto que podia sentir o calor irradiando do braço da outra
garota. — Se é por isso que você continua olhando. Ele é muito
covarde para mudar de ideia e fazer um resgate de última hora.
A inquietação torceu as entranhas de Lina. Ela e Finley estavam
confiando nele. Thomas viria. Ele não viria? E a família dela também.
Onde estavam? Por que ela não tinha visto seus barcos? Muito em
breve estaria realmente escuro, e as bruxas arrancariam as estrelas à
medida que surgissem, uma a uma, jogando-as reluzentes na água
para se juntarem às coroas, passando seus dedos famintos pelo céu
até a noite ficar sem estrelas.
Talvez estivessem apenas esperando por aquela escuridão?
— Não entendo por que você gosta dele — disse Eva. Irritação e
exasperação queimaram Lina como chamas. Como se sempre ouvir
isso de Finley não fosse cansativo o suficiente.
— Por quê? Está com ciúmes?
A rainha tem que se apaixonar pelo sacrifício.
Lina rapidamente baniu esse pensamento também.
— Eu vou gostar dele ainda mais se continuarem tentando me
fazer odiá-lo.
— É por isso que você gosta dele? — disse Eva, nada
impressionada.
— O quê? Não, isso é, é… — Como você explicava como era
gostar de alguém? Como explicava gostar de alguém para uma bruxa
que não tinha coração?
— Ele me deu carona para casa. — Foi assim que começou. —
Quando eu virei meu tornozelo em uma pedra escorregadia. —
Parecia tão inadequado, realmente, quando dito em voz alta. Mas
como você poderia capturar em meras palavras a emoção de ter o
famoso e misterioso Thomas Lin se ajoelhando na sua frente e se
oferecendo para levá-la para casa na frente de toda a escola?
Todas aquelas mandíbulas frouxas e lábios azedos. Pura inveja
no rosto de cada aluna.
Descansando contra as costas largas de Thomas Lin.
Respirando o aroma surpreendentemente frutado de seu xampu.
Esse garoto mais velho que, mesmo antes de escapar das garras da
última Rainha das Bruxas, era admirado como o cantor mais talentoso
do Conservatório.
— Deixe-me adivinhar — disse Eva quando Lina fez uma pausa.
— Ele fez a vítima trágica para você. Agiu todo cheio de cicatrizes,
triste e solitário? Então você sentiu que tinha que consertar seu
coração partido, tinha que salvá-lo?
— Eu salvei ele — Lina retrucou com grande triunfo. — De você.
— Agora tudo o que ela tinha que fazer era se salvar também,
desaparecer sob o manto da escuridão. Porque era assim que
funcionava. O menino e a boa menina sempre acabavam fugindo
juntos.
E a bruxa malvada sempre acabava sozinha.
— Ele me faz sentir — acrescentou ela. — como se eu fosse...
como se eu fosse alguém melhor, alguém especial.
Eva olhou para ela por um longo, longo momento. O calor
estava de volta nas bochechas de Lina.
— Nunca quis isso, alguém para dizer que você é especial?
— Por que eu precisaria de alguém para me dizer o que já sei?
Lina fez uma careta e desviou o olhar, as mãos em punhos em
sua saia. Envergonhada de compartilhar algo tão privado. Era uma
coisa tão ruim de querer? Era inútil falar com Eva. Ela deveria tentar
empurrá-la ao mar, usar isso como sua distração para escapar.
E então ela viu.
Entre as centenas de barcos ancorados no porto afundado, um
pintado em azul familiar, outro vermelho e dourado. O primeiro
tripulado por um esquadrão de tias carrancudas. O segundo dirigido
por vários primos. E lá estavam Laolao e Tio em um terceiro barco
vindo para cá, lutando para navegar entre a multidão.
De repente, Lina queria muito rastejar sob alguma coisa e se
esconder.
Ah, Deus. Ela estava morta. Estava mortinha. Ela ia ter muitos
problemas por tudo isso. Por que não tinha pensado nisso antes?
Mesmo se afogar nas mãos da Rainha das Bruxas parecia de
repente melhor em comparação com as punições que sua família
daria quando a pegassem. Laolao pode até trazer seu chinelo de
couro. O chinelo de couro. Lina nunca tinha visto a arma lendária em
ação, mas Mainha e as tias contavam histórias sobre ele.
Ela já podia ouvir as broncas: Que tipo de criança você é? Por
que tem que nos envergonhar?
O estômago de Lina despencou, e depois despencou ainda
mais, porque quanto mais ela olhava para os barcos de sua família,
mais ficava claro que Thomas não estava lá. Não com nenhum deles.
Ele também não estava em nenhum dos barcos próximos.
Sua angústia deve ter sido óbvia, porque Eva também se
inclinou, tentando seguir a linha de sua visão. Lina rapidamente
agarrou sua mão.
— Dança? De novo? Ou melhor, as estrelas estão prestes a
aparecer. Por que não tira algumas para nós? — Ela puxou com
determinação, arrastando Eva para longe da amurada antes que
pudesse espiar os barcos e adivinhar o que Lina havia planejado.
Ambas cambalearam enquanto o navio balançava. Eva
estendeu a mão para agarrar as cordas, ambas girando rapidamente
enquanto mil gritos aterrorizados ecoavam sobre a água.
Lina

Uma grande sombra serpenteou sob o navio da Rainha das


Bruxas, quase invisível na água escura, serpenteando sinuosamente
pelas ruínas afundadas, mergulhando sob cascos, quilhas e lemes. O
movimento levantou ondas com cristas de lírio, girando barcos,
fazendo-os bater uns contra os outros com triturações brutais.
Gritos se transformaram em guinchos quando uma cauda
maciça cortou a superfície, uma nuvem de spray de cristal e um flash
de escamas cinzentas irrompendo antes que a serpente do mar
mergulhasse mais fundo, desaparecendo nas águas rasas, agitando
séculos de lodo. O ar fedia com o cheiro repentino de salmoura e
peixe podre. De coisas afogadas, coisas mortas, coisas que ficaram
debaixo d'água por muito tempo.
Houve um guincho agudo de um bruxinho brincando no convés.
Um profundo “Ah, inferno” de Finley e uma gargalhada rouca de Yara.
Lina quase poderia ter rido também, um pouco histericamente,
se seu coração não estivesse na garganta com o olhar de horror no
rosto de seu irmão. Não era você que costumava tentar me assustar
com histórias sobre isso?
Finley estava ao lado do gurupés7, acenando para alguém no
porto. Tio? Um primo? Suas palavras gritadas se confundiram sob o
fluxo frenético de sangue em seus ouvidos, mas Lina tinha certeza de
que tudo era algo como: Não venha! Não venha! Olhe, há uma cobra
gigante!
Ela não percebeu o quanto apertava a mão de Eva, não
percebeu que ainda a segurava, até que Eva disse:
— Você não precisa ter medo.
Lina olhou para suas mãos unidas. Assim como duas outras
bruxas que estavam por perto. Marcin, que estreitou os olhos, e uma
figura mais alta com músculos para rivalizar com os de Mainha,
Omar, que deu a Eva um olhar conhecedor.
Lina imediatamente tentou soltar a mão de Eva, mas agora era
Eva quem segurava firme.
— Tem certeza de que isso é sábio, Eva? — Marcin perguntou,
a voz tensa. — Se você não conseguir controlar…
Gaivotas sobrevoaram, grasnando, seguindo o progresso da
serpente.
— Achei que Lina gostaria de acariciá-lo. — O sorriso de Eva
estava misturado com malícia. — Deixei sair em sua homenagem. E
também porque sei como isso aterroriza Thomas. Até consigo
imaginá-lo encolhido em algum lugar lá fora, todo patético. Eu mando
pesadelos para ele às vezes sobre ser comido vivo, lentamente.
— Então você achou que ele viria? — Lina sentiu um pequeno
lampejo de esperança. Só que ela não o tinha visto lá fora. Mexeu no
sutiã através do vestido. Ela não precisava usar um, dado o quão sem
peito ela era, mas era um lugar útil para guardar coisas. Como a faca
de Finley, que as bruxas devolveram. Ela se sentiu melhor sabendo
que estava lá, especialmente agora.
— Tem aquela velha história — disse Eva, ignorando a
pergunta. —, sobre as serpentes e os dançarinos que as domaram.
Ele gosta de música. E gosta de você. Não viu como foi brincalhão
com você na caverna do mar?
— Ele tentou me comer.
— Ele faz isso.
Lina finalmente conseguiu soltar a mão, tropeçando um passo
para trás. Mais do que um passo, quando o navio inteiro deu uma
guinada repentina e nauseante. Os mastros gemeram, e uma onda
bateu a bombordo, subindo e cuspindo spray sobre a amurada,
encharcando o convés, encharcando Eva, que soltou um suspiro
chocado e sibilante. Lina teria rido se o navio não tivesse balançado
novamente com tanta violência que ela tombou de lado, batendo no
mastro de proa. A dor explodiu em um clarão incandescente quando
sua têmpora se conectou com a madeira. Ela caiu de joelhos,
segurando a cabeça enquanto piscava para conter as lágrimas.
Outro estremecimento sacudiu o navio, seguido por gritos de um
grupo de bruxas farreando na popa.
— Eva? — alguém chamou alto, inquieto.
Lina agarrou o mastro, erguendo-se. Coração martelando. Visão
escura, ou era apenas o céu?
Toda a luz havia se apagado do mundo. Uma sombra mascarou
o sol poente e uma onda de calor a inundou.
Uma gota de água atingiu sua nuca. Ela engoliu em seco
quando olhou para cima.
Um olho maior do que seu torso a encarou, totalmente preto,
coberto por uma película viscosa que lançava minúsculos arco-íris
sobre sua pupila como óleo na água. As narinas fendidas se
dilataram. Um corpo sinuoso enrolado nas ondas, grosso como duas
árvores, coberto de escamas cinzentas cobertas com colares de
algas podres e cabelos trançados. Sua cabeça triangular plana
chicoteou para o lado. As gaivotas que circulavam o navio
desapareceram em um rastro de penas e saliva carmesim.
Um grito morreu na garganta de Lina.
Ela não tinha visto claramente na caverna do mar. Era tão, tão...
Movimento à sua direita. Eva se aproximando da amurada,
arrulhando baixinho, ternamente. Uma mão estendida. A serpente
recuou, mordendo o ar vazio acima de sua cabeça, claramente
agitada, fios de saliva vermelha pingando de sua boca. Uma mão
pousou no ombro de Lina, e ela pulou, soltando um grito. Finley e
Yara estavam atrás dela. A serpente girou, olhando para ela. Tinha
reconhecido o som de sua voz?
— Eva, se você não consegue controlar — Marcin repetiu, mais
alto dessa vez.
— Fique calmo — Eva ordenou firmemente. — Lina, fique onde
está.
Lina não poderia ter se movido se quisesse. Seus pés estavam
enraizados no convés com aqueles olhos monstruosos e escuros
como óleo presos nela. Mas ela arriscou um olhar de lado quando a
música suave chegou aos seus ouvidos.
Eva estava recostada no parapeito, cantando baixinho. Ela tinha
uma voz surpreendentemente forte.
A serpente balançou, seu olhar escuro ainda fixo em Lina.
Lina prendeu a respiração, então a soltou quando o monstro
balançou novamente, as escamas brilhando. Como se estivesse
encantado com o canto de Eva, como se estivesse... tentando dançar.
Gosta de música.
Uma medida de tensão drenou do ar. O medo se transformou
brevemente em admiração. Em algum lugar atrás de Lina, uma
feiticeira deu uma risadinha nervosa e bateu palmas. A mandíbula da
serpente se abriu e ela balançou ainda mais perto, seu corpo batendo
contra o casco, balançando o navio enquanto sua cabeça chicoteava
em direção a Eva.
— Eva, se afaste!
O calor queimou a bochecha de Lina quando Marcin lançou um
feitiço flamejante no monstro para afastá-lo. Lina cambaleou, ouviu
Yara gritar. Seu nariz se encheu com o cheiro acre de cabelo
queimado.
A serpente recuou. Assobiou. E estalou suas mandíbulas
diretamente para Lina.
Lina se jogou no convés. Finley empurrou Yara para o lado,
empurrando-a para longe do perigo.
Mais chamas passaram, e o traquete8 pegou fogo. A serpente
desviou, gemendo, sangue oleoso jorrando da carne queimada.
Marcin gritava com Eva para controlá-lo.
Ele bateu a cabeça no convés, contra o casco.
O impacto sacudiu os ossos de Lina e sacudiu seus dentes. Ela
rolou quando a sombra do monstro pairou sobre ela.
O navio arriou. Uma cauda cinza amarrou o mastro de proa,
partindo-o em dois com um estrondoso crack.
Uma parte do cordame caiu livre, assobiando quando passou
pela cabeça de Lina. Finley gritou quando um bloco duplo o atingiu no
centro do peito. O tempo diminuiu. Tudo se movia em câmera lenta
enquanto Lina lutava para se apoiar nas mãos e joelhos, nos pés,
enquanto ele caía para trás, por cima do corrimão.
Ela pegou seu pulso.
Sentiu o peso e puxou antes que diminuísse. Dedos frios
deslizando pelos dela, arrancados de seu aperto. Havia terror nos
olhos de seu irmão quando ele escorregou sob a água agitada e
desapareceu.
Eva

Eva jogou os braços em volta da cintura de Lina, puxando-a de


volta, impedindo-a de mergulhar no parapeito e seguir seu irmão ao
mar.
Lina se debateu e gritou, jogando-se para frente, a mão ainda
estendida, os dedos ainda agarrando, segurando o ar.
— Finley!
— Pare! Você não pode ajudá-lo, é tarde demais.
Lina se contorceu, a coroa de sua cabeça batendo na parte de
baixo do queixo de Eva, o impacto sacudindo seu crânio em um
lampejo brutal de vermelho. Eva tropeçou, o quadril batendo com um
estrondo no navio, a visão explodindo em fragmentos de luz
fraturada.
Tarde demais.
Assim como ela chegou tarde demais para salvar Natalia. Ela
conhecia aquele vazio escancarado, aquela recusa absoluta em
aceitar que a pessoa que você amava se foi, tinha sido arrancada de
seus braços.
E nada que você faça vai trazê-los de volta.
A fúria cantou através de Eva. Ela manteve seu aperto firme na
cintura de Lina. Sua serpente marinha era cruel quando estava com
raiva. E Marcin deixou-a muito zangada, atirando fogo, fazendo-a
atingir Lina. Eva ainda podia sentir a magia no ar.
Gritos estremeceram a brisa salgada. A água estava turva,
espumante, borbulhando. Mas nenhum sinal do menino ou da
serpente. Seu animal de estimação havia desaparecido abaixo da
superfície.
Soluços violentos atormentaram o corpo de Lina, viajando
através dela até Eva.
— Não. Não, não, não, não, não.
Encontrariam partes do irmão de Lina boiando dias depois? Um
tronco. Um braço. Uma perna. Carne pálida e inchada. Azul.
Emaranhada com algas marinhas. Mordida por caranguejos.
Um anel de vida assobiou na orelha de Eva.
Finley Kirk atravessou a superfície com um suspiro.
Assim como fez a serpente.
Ele disparou das profundezas, água arremessando de suas
espirais escamosas, de sua cabeça triangular perversa, as presas à
mostra. Uma língua fina como um chicote saiu.
Que coisa linda era o monstro dela.
Nos braços de Eva, Lina ficou mortalmente imóvel. O aperto de
Eva afrouxou. O navio rangeu e gemeu, então pareceu prender a
respiração.
O mundo inteiro prendeu a respiração enquanto o menino lutava
desesperadamente pelo anel salva-vidas, enquanto as mandíbulas da
serpente se abriam cada vez mais, saliva pingando de dentes
serrilhados.
O momento foi quebrado por um grande respingo e um
crescendo9 de gritos de arrancar a garganta. Um homem idoso havia
saltado de um barco-vassoura vermelho e dourado para ajudar e
estava se debatendo na água.
Por que diabos ele pulou se não sabia nadar?
Lina se livrou do abraço de Eva, cambaleando para frente,
estendendo a mão pela frente de seu vestido e puxando uma
pequena faca. Ela estava gritando. Não, cantando.
Ruidosamente. E mal. Voz trêmula e dolorosamente desafinada.
Eva queria tapar os ouvidos com as mãos. Lina Kirk tinha
enlouquecido? Ela tinha um desejo de morte? Ela achava que
cantava tão mal que poderia mandar até monstros embora?
Ela achava que poderia lutar contra a serpente com sua
pequena faca?
Eva arrancou uma pulseira de cabelo preto e cordão vermelho
de seu pulso, pronta para dar nós, para trocar partes de si mesma
pelo poder de remodelar o mundo.
Lina acenou com os braços, levantou a faca e fez um corte
profundo no antebraço.
Eva congelou, o fio se soltando de seus dedos, brilhando
vermelho como o pôr do sol, como a ponta acesa de um cigarro
pouco antes de se apagar.
Sangue escorria da linha do corte que Lina tinha esculpido,
pingava no deck de madeira em espessos respingos carmesim.
Algo em Eva recuou. A serpente girou em direção a Lina, as
narinas abertas dilatadas.
Lina levantou-se sobre um pé, olhando para a serpente, para o
mar. Olho no olho com o monstro de Eva. Sua expressão suavizando
em algo que era quase pacífico. Ela colocou os dois punhos na
cintura e curvou-se profundamente. Então sua mão se estendeu, a
palma girando para o céu, beliscando o ar, varrendo acima de sua
cabeça. Ela saltou sobre a ponta do pé, e sua outra perna levantou e
sacudiu para fora.
Ela girou no convés manchado de sangue do navio devastado,
vestido esvoaçando, um braço levantando e depois o outro. Os
movimentos fluíam dela, construindo um ritmo que só ela podia ouvir:
um salto tamborilando na madeira. Um punho pressionado contra um
coração. Um amplo floreio de braços beijados pelo sol. Um giro
elegante e um chute incrivelmente alto.
Movimentos rápidos, audaciosos, cheios de desafio, cheios de
ousadia. Um arremesso destinado a ser dançado sobre um escudo,
ao lado de uma espada. As ondas pulavam e se agitavam como se
estivessem aplaudindo, como se o próprio mar desejasse se mover
com Lina, o giro de seu corpo contagiante. Mágico.
A serpente balançou ligeiramente, apanhada na escravidão da
dança. A melodia silenciosa o acorrentou, o manteve cativo, o
manteve hipnotizado.
Assim como Eva estava hipnotizada.
Algo se agitou no buraco dentro de seu peito. Ela sabia que Lina
estava dançando para seu irmão. Para aquele velho que havia
saltado no mar. Para ganhar tempo, ajudá-los, salvá-los. E ela queria
de repente, egoisticamente, que alguém dançasse daquele jeito para
ela. A escaldante, profunda dor na alma, por isso rastejou até sua
garganta.
Tambores batiam nas ondas, músicos no palco flutuante
espiando o que estava acontecendo, levantando gaitas e violinos.
Um deslize. Um passo em falso...
Eva desviou os olhos de Lina. Acenou com a cabeça
brevemente para Yara e Omar, para as bruxas lutando com o caos
que era as velas do Carterhaugh, o cordame emaranhado e o mastro
de proa quebrado. Ela levantou a mão enquanto Marcin corria para
frente.
Eva saltou do convés para a superfície da água com uma graça
impossível, pousando como um gato nas ondas. Seus sapatos eram
encantados como os sapatos dos dançarinos do Conservatório,
enfeitiçados para atravessar o mar como se fosse sólido.
A maré lambeu as pontas de suas botas. Ansiosa. Com fome.
Mil olhos pesavam sobre ela, ilhéus assistindo com corações
frenéticos, de barcos-vassouras e varandas. Mil velas brilhando
quando a verdadeira escuridão caiu e a cena ficou azul-violeta com
sombra.
Os passos de Eva foram rápidos. Leve como fumaça. O ar
zumbia com magia enquanto ela dava nós em outra pulseira de corda
vermelha, chamando uma onda que varreu o irmão de Lina e o
homem idoso em um barco vermelho e dourado. Um grupo de
mulheres freneticamente os puxou para dentro.
A figura dançante brilhou no canto de seu olho, um turbilhão de
azul pálido e dourado. A cabeça da serpente seguiu Lina, gemendo
enquanto balançava, um som de arrepiar os cabelos entre um silvo e
um lamento.
Lina não vacilou.
Nem Eva ao se aproximar, aproveitando seu transe, estendendo
a palma da mão hesitante. Seu monstro. Seu lindo e cruel animal de
estimação. O fedor de carne podre e peixe era quase insuportável.
Ela queria vomitar.
Mas uma rainha não vomitava.
Eva acariciou as escamas cinzentas ondulantes e os músculos
sinuosos, lisos e escorregadios e incrivelmente quentes. Sussurrou
baixinho, suavemente. Um tremor percorreu a serpente enquanto ela
roçava as algas marinhas presas em seu longo pescoço, a carne
queimada do fogo que Marcin havia lançado.
O sangue escureceu as pontas dos seus dedos, crescentes
escuros manchados sob as unhas roídas. Fúria derretida brilhou
através dela.
Então, com um grito agudo, Lina escorregou.
Caiu.
Seu corpo bateu no convés, um estalo úmido ensurdecedor que
parecia ecoar, que fez as tábuas do navio estremecerem.
A serpente recuou.
Presas brilharam em direção a Eva. Mandíbulas se fecharam a
centímetros de seu peito. Ela sentiu o hálito rançoso da serpente
enquanto corria para a esquerda, esparramando-se de bruços,
indignada, perdendo um sapato. Lutando para se levantar, ofegante,
xingando. Um joelho e, em seguida, sua mão perfuraram a superfície
da água, mergulhando no nada gelado e vazio. Com apenas um
sapato encantado, ela perdeu o controle da magia que mantinha o
mar sólido abaixo dela.
Ela engasgou com a boca cheia de água e ficou cega quando o
sal queimou seus olhos. Mandíbulas estalavam em seus calcanhares,
suas pernas, dentes curvos agarrando, rasgando a bainha de suas
calças. Ela chutou para trás, arranhou a água. Rastejou.
Com mil olhos observando. Uma humilhação pior que o terror da
própria morte.
A serpente jogou a cabeça para trás e a atacou. Eva rolou de
lado rápido, mas não rápido o suficiente. Presas rasgaram tecido,
pele, carne.
Uma explosão de fogo no alto. Calor e agonia rasgando sua
coxa direita. A serpente gritou, enfurecida, e Eva queria gritar também
com Marcin para parar de atirar fogo.
Ela se virou de costas, olhou para cima enquanto aquela boca
aberta descia.
Isso era a morte, então? Este momento, impossivelmente
suspenso? Este louco segundo quando ela se sentia tão
impossivelmente, infinitamente viva, consciente de cada respiração
trêmula, o tum-tum-tum de sangue em seus ouvidos, o frio ártico da
água?
Foi assim que sua irmã se sentiu? Seria assim que ela entraria
na história, uma rainha fracassada comida viva por seu próprio
monstro?
O mar levantou-se. Olhos pretos olharam para o escuro.
Não se atreva.
As ondas tremeram. A serpente desviou-se abruptamente,
enervada. Ziguezagueando, o pescoço se desenrolando, atacando
em vez de uma presa mais fácil, para a dançarina de cabelos
dourados lutando para ficar de pé no convés.
Eva sentiu o ar ficar preso na garganta.
Ela deu um soco na superfície da água espessa de sangue.
Ondas invocadas que incharam em um grande arco curvo, formando
uma parede entre o navio e o monstro.
Um tipo de magia deselegante. Brutal. O encantamento
funcionava com sangue.
A serpente cambaleou, o corpo esticando-se para fora da água.
A maré fez Eva ficar de pé. Ela arrancou sua última pulseira de corda
vermelha restante, usando a magia dentro dela para moldar o mar à
sua vontade. Lançou uma onda escura na serpente como se fosse
um chicote.
Houve um estalo tão alto quanto um trovão.
Ela sentiu o golpe como se tivesse se golpeado. Uma dor que
fez todas as terminações nervosas gritarem.
A serpente rangeu suas grandes presas. Contorcida. Uma linha
de fogo foi esculpida em suas escamas.
Eva o açoitou novamente, levando-o para as profundezas do
porto afundado.
Um lamento doloroso cortou o ar. Olhos insondáveis e
escorregadios se voltaram para ela, perplexos. Ferido.
Perfurando-a com mais força do que qualquer arma jamais
poderia. Seu monstro se contorceu, mas fracamente agora,
afundando suas espirais sangrentas e enegrecidas na água.
Lançando a ela um último olhar magoado antes de deslizar para as
profundezas.
Lina

Havia tanto sangue.


Carmesim espalhafatoso manchando seu vestido azul de verão,
pintando o convés do navio cru com magia, pingando rastros de
migalhas de pão na descida das escadas que levam à cabine do
capitão. Mais sangue do que qualquer um poderia realmente perder.
Lina não sabia dizer se era dela ou de Eva.
— Ela... ela vai ficar bem?
Ninguém respondeu.
Lina foi empurrada escada abaixo pelos ombros largos de Omar.
Ela se contorceu, como um gato, esticando-se em seus braços,
protestando. Os barcos de sua família ainda estavam lá. Ela tinha
visto suas tias puxando Finley em um, graças a Deus. E o tio
também. Ainda não conseguia parar de pensar nele pulando no mar
para salvar Finley sendo que não sabia nadar. Ela precisava ter
certeza de que os dois…
Rostos sombrios lotavam o espaço abafado e mal iluminado.
Omar colocou Lina com firmeza em um velho baú de mar dobrado.
Em algum lugar na cabine, uma bruxa estava soluçando, um som que
fez Lina cerrar os dentes. Suas pernas tremeram. Seu coração
martelava de pânico, de indecisão.
O sangue encharcou lentamente o lenço que ela enrolou no
corte em seu antebraço, escorrendo pelo pulso, formando crostas
entre os dedos e sob as unhas. Omar tocou seu braço e Lina se
encolheu.
Seu olhar deslizou para frente e para trás, para frente e para trás
pela cabine, de Eva, para o rosto preocupado de Omar, até as
escadas que levavam ao convés para Eva. A rainha estava apoiada
na cama do capitão no lado oposto da cabine, apoiada por uma
ansiosa Yara e um pálido Marcin.
Eva mal era visível através da cortina de bruxas ocupadas com
bandagens. Uma parte de Lina sabia que ela não deveria estar tão
preocupada, não deveria se importar se Eva estivesse machucada.
Mas a outra garota estava tão mortalmente cinza. Seu cabelo se
desgarrou de sua coroa apertada de tranças e caiu sobre seu rosto,
um brilho de suor brilhando em sua pele.
Não era... não era assim que esta noite deveria ser.
Lina mordeu o lábio com força quando Omar começou a tirar o
lenço de seu antebraço latejante. Ela não tinha pensado nisso,
apenas puxou a faca para baixo, cortando a pele como a barriga de
um peixe.
Todo o seu corpo estava dolorido. Machucado. Mas ela não
podia simplesmente... Ela precisava... precisava se mover. Precisava
ajudar de alguma forma. Fugir. Ela não podia ficar aqui sentada toda
inútil, indefesa.
Com a mão na parede, Lina levantou-se, sem nem ter certeza
do que estava planejando. Omar objetou alto, sua voz distorcida, as
palavras soando como se estivessem vindo de debaixo d'água. Mas
ela tinha que... tinha que...
O mundo girou violentamente, viciosamente. Seu estômago
embrulhou.
Alguém pediu um balde.
Lina afundou rapidamente, vomitando, o corpo tremendo cada
vez mais violentamente. Do medo tardio, do choque, talvez, do terror
tardio de dançar para um monstro.
Quão estranhamente bom tinha se sentido, no entanto. Pular.
Girar. Balançar. Dançar enquanto a morte a encarava. Como ela se
sentiu viva naquele momento. Havia mantido um monstro cativo com
o giro de seu corpo, a batida de seu calcanhar no convés. Um tipo de
magia diferente da que Eva exercia, talvez, mas magia da mesma
forma.
Um segundo menino se ajoelhou ao lado do baú do mar,
cantando e cantarolando uma melodia estranha e sedosa, dando nós
nos cabelos e barbantes enquanto Omar limpava seu ferimento,
aplicando um feitiço de cura para aliviar a dor.
Parte dela estava desaparecendo. Ela parou de tremer. Omar
passou uma horrível mistura de ervas em seu corte. Cheirava
exatamente como os chás que Mainha fazia para ela beber, que tinha
gosto exato de terra. Assim que terminou de enfaixar o braço dela, ele
se levantou e se dirigiu para a cama do capitão e Eva.
A escuridão comeu nas bordas da visão de Lina.
Ela agarrou os joelhos, fechou os olhos e respirou fundo, do jeito
que foi ensinada a fazer quando estava enjoada.
Inspire por três segundos, segure por três, solte por três. Repita.
O ar na cabine era sufocante, rançoso e nauseante, perfumado
com o doce perfume de jasmim, ervas curativas e a nota áspera e
metálica de sangue recém-derramado.
Inspire por três, segure por três, solte por três.
O mundo retrocedeu.
Inspire por três, segure…
— Você tem vontade de morrer — disse Eva calmamente.
Os olhos de Lina se abriram. Ela deve ter desmaiado por um
segundo. Um minuto. Mais. A cabine estava menos cheia de repente,
praticamente vazia. A maioria das bruxas se foram. Yara estava
levantando a bainha de seu vestido, subindo ruidosamente as
escadas até o convés. Marcin a seguiu, lançando um olhar
preocupado para Lina por cima do ombro.
Eva estava empoleirada ao lado dela no velho baú de mar
dobrado. Neste canto escuro da cabine sombria, ela poderia ter sido
uma sombra, um mero pedaço da própria noite. Eva fez uma careta
para o curativo no antebraço de Lina.
— Você poderia ter sangrado até morrer. Ou desmaiado. Seu
braço provavelmente ainda pode ficar ruim da infecção. Não estou
desperdiçando a magia de ninguém para curá-lo. — As palavras
saíram com pressa, como se Eva as estivesse segurando todo esse
tempo. Ela deixou uma distância cuidadosa entre seus corpos.
Fumaça pálida saía da ponta de seu cigarro. — Acho que finalmente
entendi você. Não é sobre Thomas, é? Você só tem um desejo de
morte. Você simplesmente não quer viver.
— Claro que eu quero…
— É por causa da sua lesão? Porque se preocupa em não poder
dançar do jeito que fazia antes?
Lina olhou. E então algo faiscou dentro dela, uma brasa que se
transformou em um inferno, fervendo por seu corpo como fogo. Suas
unhas cavaram crescentes profundas em suas palmas.
— Como você ousa.
— Eu poderia ter deixado a serpente comer você.
— Por que não deixou, então? — A voz de Lina disparou.
Eva deu uma longa e trêmula tragada no cigarro. Ela tinha um
cobertor enrolado na cintura, mas as bandagens em sua perna
brilharam quando cruzou um tornozelo sobre o outro. Ela estremeceu,
pressionando uma mão em sua coxa.
— Não posso deixar você morrer antes da lua cheia. Eu preciso
de você como o sacrifício deste ano. — Houve uma pausa, e sua voz
baixou. — Tem que ser você. Não acho que pode ser outra pessoa.
— Devo ficar lisonjeada? — Lina cuspiu. Um arrepio percorreu o
navio. Suas orelhas picaram com o ranger e batida da madeira, os
passos caindo acima de suas cabeças, o raspar e o baque da corda.
Os sons familiares de um navio zarpando. — Espere, onde
estamos…
— Você ficou com raiva — disse Eva. — que Thomas não veio
para a regata? Que ele foi muito covarde para se arriscar por você do
jeito que você fez por ele?
— Eu não me importo!
— Não?
Lina ficou em silêncio por muito tempo. Por que ele não veio?
Por que não estava lá? O pensamento da serpente do mar o
assustara tanto? Ou ele realmente não...
Eva encontrou seus olhos, vendo muito de seus pensamentos
ocultos. Seu sorriso era o fio de uma faca no escuro.
— Eu tentei te avisar. Egoísta e covarde por completo. A
primeira vez que o levei para a caverna do mar para ver a serpente,
ele desmaiou.
— E daí? Meninos podem ser fracos às vezes. Eles estão
autorizados a ter medo. — Lina não se importava de ser a forte,
aquela que fazia o resgate. Ela poderia ser corajosa o suficiente para
ambos. Embora não se importasse também, se fosse o contrário, se
ele tivesse vindo resgatá-la, apenas para saber que ela era alguém
que ele achava que valia a pena resgatar. — Imagino que sua irmã
ficaria tão satisfeita com você atraindo-o até lá.
O sorriso de Eva não vacilou.
— Natalia ficou lívida. Mais furiosa do que eu já a tinha visto. Ela
ameaçou me virar de joelhos como costumava fazer quando eu era
uma bruxinha e me espancar.
A revelação foi tão inesperada, a imagem que conjurou tão
surpreendente, que uma risada assustada explodiu em Lina. Ela
imediatamente mordeu o interior de sua bochecha como punição.
Os olhos de Eva ficaram um pouco distantes, fixos em algo
distante no passado.
A curiosidade tomou conta de de Lina.
— Como ela era? — Ela queria saber, queria saber tudo sobre a
rainha que ela viu se afogar, a garota cuja história ela admirou e
roubou coragem por tanto, tanto tempo.
Eva não respondeu imediatamente. Ela sacudiu a cinza da ponta
do cigarro.
— Ela era tudo. Era minha melhor amiga. E ela era tola e
egoísta. Você tem um irmão que claramente te ama. Já pensou em
como ele vai se sentir? Como será perder você?
Lina tocou as contas de corais de sangue que Finley lhe dera
em seu aniversário de dezessete anos. Que ela usava todos os dias
desde então.
— Ah, ele vai ficar bem. Estamos sempre brigando, de qualquer
maneira. Sou apenas um fardo para ele. O fato de ele sempre ter que
me levar para casa depois de dançar é como a grande tragédia de
sua vida. Dê um mês e ele esquecerá tudo sobre mim.
— Não há um dia que passe sem que eu pense em Natalia. Não
desrespeite seu irmão pensando que ele não choraria por você.
As bochechas de Lina esquentaram.
— Eu não estava desrespeitando ele.
— Seu irmão vai se lembrar de todos os insultos que já proferiu
contra você. Ele não poderá passar pelo Conservatório sem pensar
em você. Acontecerá toda vez que ele ver alguém dançar, sempre
que ouvir música. Esta manhã, quando acordei, meu primeiro
pensamento foi: tenho que contar a Natalia… — Eva parou de falar.
Lina ficou quieta. Mas Eva nem conhecia Finley. Finley era um
tolo. Finley ficaria bem.
E ela não estava planejando se deixar sacrificar, de qualquer
maneira. Ela só teria que encontrar outra maneira de sair disso.
— Me dê isso — ela retrucou, de repente precisando fazer
alguma coisa, precisando dizer algo para quebrar o silêncio. — Se vai
fumar na frente de alguém, o mínimo que você pode fazer é
compartilhar.
Eva piscou, sobrancelhas escuras franzindo em confusão. Ela
hesitou, então estendeu o cigarro.
Lina pegou, deliberadamente indiferente, o coração batendo
mais rápido, tentando não pensar em seus próprios lábios se
fechando sobre as marcas úmidas do batom de Eva. Ela não era
realmente fã de fumar; quando as meninas do Conservatório faziam
pausas para isso, ela sempre dava a desculpa de que preferia
charutos. Parecia mais legal, mais elegante e era mais fácil do que
apenas dizer não. Ela tentou manter sua expressão casual, infundir
uma altivez nela. A mesma indiferença que Eva evocava tão
facilmente.
— Ah.
A fumaça não tinha gosto de tabaco. Tinha um gosto agridoce,
como sonhos desfeitos, como saudade, como chocolate preto e
amargo e chá cítrico esfriando. Um arrepio percorreu todo o caminho
até os dedos dos pés de Lina.
Eva a observava com indisfarçável cautela. Os olhos se
estreitaram, a tensão enrolou sob sua pele, uma cobra prestes a
atacar. Havia algo quase engraçado nisso. Uma inversão em seus
papéis que fez Lina se sentir estranhamente poderosa.
Ela soprou uma nuvem no teto da cabine.
— Obrigada mesmo assim. Por salvar Finley. Eu vi o que você
fez.
— Não fiz isso por você. — Eva ficou escandalizada. — Eu não
fiz isso por ele. É o meu animal de estimação; se vou deixá-lo comer
alguém, vai ser alguém que eu quero que ele coma. Como Thomas
Lin. Assim posso aproveitar.
Lina lançou a ela um olhar exasperado.
— A maneira como você continua falando dele, é como se você
estivesse apaixonada por ele.
Eva não pestanejou.
— O que posso dizer? Ele deixou um buraco muito grande na
minha vida.
Fumaça ondulante azedou na língua de Lina. Ela passou o
cigarro de volta, o olhar atraído para a curva do pescoço de Eva,
onde mergulhava para encontrar sua clavícula, os traços afiados de
seu rosto que foram iluminados quando ela o levou aos seus lábios
bem, bem vermelhos.
— Ela vai ficar bem? A serpente? — O rosto de Eva estava
terrível quando ela o forçou abaixo das ondas.
— Vai ficar tudo bem assim que eu a alimentar com a bruxa
responsável por este desastre.
— A bruxa... a pessoa que jogou fogo nele?
Novamente, Eva não respondeu imediatamente.
— É complicado.
Complicado? Como era complicado? Marcin era quem tinha
atirado fogo. Quem atacou a serpente quando Eva tentava acalmá-la.
Mas talvez Lina entendesse. Todas as bruxas eram da família,
independentemente do sangue. E coisas com a família sempre eram
complicadas.
— E pare de fazer isso — disse Eva. — Pensar em todos os
outros antes de você mesma. Se preocupando com o monstro que
tentou comer você. — Ela deu um último suspiro e apagou o cigarro.
— Vou pedir a alguém que prepare uma compressa fria para o seu
tornozelo. Jun te amarrou um amuleto para dor? Se seu braço
começar a doer, vou chamá-lo para você.
— Pensei que tivesse dito que não ia desperdiçar magia comigo.
— Eu também disse que não posso permitir que você morra
antes da lua cheia.
Lina fez uma careta, olhando para o tornozelo, torcendo o braço
ferido.
— Está bem. Não é um corte profundo. Não vai infectar. Você
não precisa…
Mas Eva já tinha ido embora, nada além de Lina no baú do mar,
exceto sombra. A bruxa poderia nunca ter estado lá. Poderia ter sido
um sonho, mas por uma única torção de fumaça preta. Lina deixou
sua cabeça bater para trás contra a parede da cabine.
— Eu realmente odeio quando você faz isso. Realmente odeio.
Lina

Lina dormiu muito tempo depois que o navio retornou ao Palácio


das Águas, acordando apenas quando uma bruxa entrou para trocar
seu curativo e instigá-la a comer e beber. Um dia inteiro passou, e
depois metade de outro. Eles deram a ela o mesmo quarto de antes,
aquele com piso de mármore e telas de folhas de âmbar e ouro e
sofás-cama cheios de travesseiros.
Ela estava tão cansada. Estava sempre, sempre, sempre em
movimento desde a noite da festa — talvez até antes disso, se
preocupando com seu irmão, com seu tornozelo — e agora sua
mente e corpo estavam cedendo, desistindo...
Ou talvez fosse apenas a magia das bruxas atraindo-a para
esse torpor, prendendo-a no sono como uma princesa amaldiçoada.
Seu peito suavemente subindo e descendo, subindo e descendo,
preso no ritmo de um sono profundo e sem sonhos.
Toda vez que os olhos de Lina se fechavam, um pouco mais de
magia entrava na sala.
Um bálsamo para o corpo formigante, para aliviar suas
contusões e dores, apareceu em uma prateleira próxima. Uma
pequena cobra listrada de recife com escamas iridescentes deslizou
pelo sofá, se enrolou em seu pulso e subiu pelo braço como uma
pulseira. Um punhado daquelas pérolas negras de alcaçuz que
deixavam sua voz doce como sereia caíram de uma tigela sobre uma
mesa lateral.
Enterrada tão profundamente debaixo de um cobertor pesado
que apenas a ponta do nariz espiava, Lina viu uma pequena colher de
prata mexer três cubos de açúcar em uma xícara fumegante em uma
bandeja de prata sem ela ter que pedir.
Mas ela não queria mais o chá com leite das bruxas ou qualquer
outra guloseima. Muita comida rica, gordurosa e leitosa estava
revirando seu estômago. O que ela realmente desejava era uma
tigela bem quente de mingau de arroz com gengibre e caldo de
galinha, do tipo que sua avó fazia para ela quando estava doente, do
tipo que ela recebia em casa.
Ela começou a se enrolar mais embaixo do cobertor, um
caranguejo se enterrando na areia. Mas ela se acalmou com um leve
tamborilar de passos.
Um arrepio de antecipação percorreu sua espinha A mesma
sensação de falta de ar que ela teve enquanto esperava nos
bastidores antes de uma performance. Lina deixou uma contagem de
oito passar, como se estivesse ouvindo sua deixa. Outra contagem.
Ela fingiu dormir, roncou um pouco, e então...
Algo tocou o cobertor. Ela o jogou para trás, com o coração
disparado, procurando por um lampejo de tranças pretas, a bainha de
um vestido escuro, um sussurro de fumaça fria.
Ela não encontrou ninguém… até agora ela só conseguiu ver
Eva uma vez.
Mas empilhado em cima do sofá-cama, em cima do cobertor
pesado, em cima dela, havia uma pilha de vestidos. Seda, chiffon,
tafetá. Deslizamentos furtivos e escandalosos em verde marinho e
azul tempestuoso. Um boá de penas rosa-açúcar. Luvas sem dedos
rendadas. E bem no fundo da cama, um charmoso par de sapatos de
dança prateados, brilhando com diamantes.
Os sapatos de dança mais perfeitos que Lina já tinha visto.
Seus olhos se arregalaram.
Ela escorregou da cama, estremecendo quando suas juntas
estalaram como as de uma velha. Ela estava tão rígida… não havia
se alongado ou feito nenhum de seus exercícios de fortalecimento de
força. Ela andou na ponta dos pés ao redor da cama, passando por
cima e ao redor de todas as outras bugigangas e presentes que
apareceram, tudo tão silenciosamente e anonimamente quanto as
roupas.
Prazer culpado a atravessou enquanto ela passava os dedos
sobre anéis e colares de âmbar cintilantes com estrelas cadentes,
sobre feitiços para banir sonhos ruins, engarrafados em frascos
enfumaçados. Havia conchas em uma bolsa de cordão de veludo que
sussurravam fortunas sombrias e os segredos daqueles que você
amava quando os levava ao ouvido. Uma caixa preta contendo um
violino reluzente esculpido em madeira cor de caramelo que tocava
sozinho, tocava as músicas que Lina adorava dançar. Bem como
melodias mais escuras. Líricas, nocturne10, calamitosos e sonatas
sinuosas. Ela não pôde deixar de se perguntar se eram os favoritos
de Eva.
Eva percebeu os segredos que ela estava revelando sobre si
mesma a cada novo presente? Ela estava escondida em algum lugar,
observando a reação de Lina a cada um?
Lina pegou um batom carmesim do caos, rolando na palma da
mão. Era o tom exato que Eva sempre usava, e seu coração batia
descompassado quando ela abriu a tampa e desenhou um laço
vermelho-sangue perverso em seus próprios lábios, verificando seu
reflexo em um pequeno espelho em forma de concha, imitando a
expressão altiva de Eva, sua carranca.
Ela sabia o que eram os presentes: lembretes mórbidos. A
rainha sempre se certificava de que os dias finais do sacrifício fossem
preenchidos com o máximo de magia possível.
E, no entanto, ela não conseguia anular a emoção disso — o
pensamento da infame Rainha das Bruxas de Caldella enchendo-a de
presentes, quebrando seu cérebro para pensar o que Lina gostaria
mais, como o próximo, pensando em nada além dela.
Porque cada presente era estranhamente pensativo, apropriado.
Ela não podia deixar de aproveitar a atenção, não podia deixar de se
sentir um pouquinho especial.
Lina jogou o batom e o espelho no chão, odiando a si mesma.
Ela começou a andar de um lado para o outro, toda a tensão
que havia drenado, correndo de volta. Lá estava ela novamente no
palácio, tomando o lugar de Thomas — Thomas, que ela nem tinha
visto na regata. Ele pretendia vir? A serpente do mar realmente o
assustava? Ou decidiu que ela não valia a pena? Afinal, ela era a
idiota que o havia arrastado de volta para tudo isso. Talvez ele a
considerasse estúpida demais para resgatá-la.
Um nó quente sufocou a garganta de Lina. Ela xingou baixinho,
e então novamente mais alto, palavras que teriam feito a maioria das
pessoas corar — suas mães eram marinheiras, afinal.
Todas as noites, a lua ficava mais gorda e cheia. Ela estava
ficando sem tempo. Uma brisa fresca soprou da varanda, as cortinas
pálidas penduradas no arco que conduziam à ela ondulando, fazendo
parecer como se fantasmas estivessem dançando dentro e fora da
sala. A pequena cobra de recife que se enrolou no pulso de Lina e
subiu em seu braço, depois deslizou e desapareceu em algum lugar
sob o cobertor, enfiou a cabeça para fora, a língua preta fina
sacudindo para fora.
— Pensamos que teríamos que te beijar para te acordar.
Lina estremeceu, girando em direção à voz cantante. Uma
bruxinha olhou para ela do outro lado do sofá-cama. Uma coisinha
com cachos castanhos saltitantes e sardas pontilhadas em uma faixa
grossa em seu nariz. Ela deu a Lina um sorriso malicioso de vampiro,
feito pelo fato de que ela estava sem seus dois dentes da frente.
— Como em um conto de fadas.
— Isso não funciona — disse uma segunda voz, ácida e
monótona. — Eu disse a ela que deveríamos beliscar você.
Lina não pulou desta vez, apenas fez uma careta quando uma
segunda bruxinha apareceu atrás dela. Outra pequena bruxinha
vestida de preto. Ela tinha a mesma pele oliva de Eva e cabelos
longos e escuros, que trançava em uma óbvia imitação no topo da
cabeça. Lina sentiu uma antipatia instantânea por ela, por ambas.
Onde estava Finley quando ela precisava dele? Seu irmão era aquele
que ficava todo grudento com as crianças.
A porta principal ainda estava fechada. Não havia nada que
indicasse se elas se materializaram do nada ou foram sopradas com
a brisa da varanda.
A miniatura de Eva subiu no sofá-cama e beliscou o batom,
espalhando carmesim por toda a boca.
— Não faça isso!
— Por quê? Você fez.
— Isso é... Vocês estavam me espionando?
— Queríamos ver que presentes Eva te deu. — A bruxa
sardenta juntou-se à amiga na cama, o colchão afundando sob seu
peso. Ela cutucou os vestidos. — Não são tão bons quanto os
presentes de Natalia. Ela deu coisas muito melhores para Thomas.
Uma corrente de irritação percorreu Lina, e ela não sabia
exatamente com quem estava irritada. — Como o quê?
A miniatura de Eva estalou seus lábios recém-vermelhos. As
bruxas trocaram olhares e falaram como uma só. — Beijos! — Elas
explodiram em risadinhas incontroláveis, Miniatura Eva rastejando em
direção aos sapatos de dança prateados.
Lina deu um tapa nas mãos da garota antes que ela pudesse
esfregar os dedos manchados de batom sobre eles. A curiosidade
mais uma vez levou a melhor sobre ela. — Como ela era? Natalia? —
Ela perguntou na cabine do navio, mas não obteve respostas.
— Ela parecia com Eva.
A imaginação excessivamente útil de Lina instantaneamente
conjurou a memória de Thomas e Eva se beijando na festa. Seus
lábios nos lábios dela. Suas mãos na cintura dela. Suas mãos
deslizando para cima em seu cabelo.
O calor desceu por seu estômago, rastejou até seu pescoço.
Qual a sensação de beijar alguém assim? Como era beijar uma
bruxa? Alguém tão poderosa que poderia matar monstros marinhos
com barbantes e fios de cabelo?
Lina ainda não tinha dado seu primeiro beijo… aquela vez com
Josef, quando ela tinha oito anos, não contava, nem praticar com as
meninas do Conservatório, porque era apenas prática.
Uma pontada a atravessou. O que ela compartilhou com
Thomas além daqueles sorrisos tímidos? Um punhado de palavras.
Uma dança roubada enquanto procurava por seu irmão. Um passeio
nas costas quando ela torceu o tornozelo em uma pedra
escorregadia. Interações tão inocentes, tão infantis. De repente, ela
se sentiu muito pequena, e de alguma forma menor. Nesse batimento
cardíaco, ela teria trocado todos esses momentos por algo mais
sombrio, mais adulto.
— Natalia era gentil. — A bruxinha sardenta deu a Lina outro
sorriso de dentes espaçados e enrolou um cacho em volta do dedo
para mastigar a ponta. — E muito triste.
— Não, ela não era — disse a Miniatura Eva.
— Sim, ela era! Nem sempre, mas às vezes. Você também
seria, se tivesse que continuar alimentando a maré com os garotos
que amava.
— Não, eu não seria. É romântico se apaixonar por um garoto
que está condenado a morrer.
Lina abriu a boca para dizer algo e parou.
— A magia não funciona se a rainha não amar o sacrifício —
explicou a bruxinha sardenta. — Não é um sacrifício adequado se não
a machucar.
— A maré é louca para provar sua tristeza — disse Eva
Miniatura com entusiasmo macabro. — Ela tem fome de suas
lágrimas.
— É uma magia estúpida. — A bruxinha sardenta fechou os
punhos no cobertor de Lina. — Até Thomas disse que não era justo
conosco. É por isso que Eva disse que gostava dele.
— Eva gostava dele? — Lina sentou-se na beira do sofá-cama.
— Quando?
— Antes. Da última vez. Ele fez Natalia rir.
— Nós gostamos dele também, um pouco — admitiu Eva
Miniatura de má vontade. Ela pegou um dos sapatos de dança
prateados.
Lina estava muito distraída para protestar. — Se ela gostava
dele…
— Ele costumava tocar sua música para nós — disse a bruxinha
sardenta. — E cantar. Enquanto Yara tocava piano. Nenhum dos
outros meninos fez isso. Eles sempre tiveram muito medo. Passavam
o dia todo na varanda olhando para a cidade e a noite toda olhando a
lua.
Lina não achou isso surpreendente.
— Ela tentou salvá-lo.
A mandíbula de Lina quase bateu no chão. — Eva?
— Ela queria que Natalia fosse feliz. Porque ela realmente,
realmente, amava Thomas. Eva disse que uma rainha não deveria ter
que responder ao mar. Ela tentou encontrar outra maneira de acalmar
a maré escura. Thomas ajudou. E Yara. Procuraram toda essa magia
antiga, desenterraram os velhos grimórios da primeira rainha,
escreveram para bruxas estrangeiras e trocaram nossos feitiços
engarrafados por seus feitiços.
Lina não entendeu. — Então por que ela o odeia agora?
— Porque Thomas é um mentiroso — disse Eva Miniatura.
— Porque ele estava apenas fingindo se importar — disse a
bruxinha sardenta.
Um arrepio de mau presságio percorreu Lina e, apesar de toda a
sua curiosidade anterior, de repente ela não queria ouvir o fim dessa
história. Não queria ouvir como Thomas e Eva haviam sido amigos,
aliados, de certa forma. Não queria saber o que tentaram juntos e
como se separaram, quando Natalia morreu.
A bruxinha sardenta apertou o bracelete de conchas amarrado
ao redor de seu pulso ossudo. Lina tinha uma pulseira igual quando
era mais jovem, assim como Finley. Era um feitiço comum para
manter as crianças a salvo de danos. Um talismã contra a má sorte e
o infortúnio.
— Eles tentaram de tudo — disse a garotinha. —Todos os
feitiços que encontraram, mas nada funcionou. A maré continuava
subindo. Natalia estava com medo do que aconteceria com a ilha, e
era quase lua cheia. Estavam ficando sem tempo. Então Eva tentou
um último feitiço. Um feitiço de sangue. Ela costuma trabalhar com
cabelos e nós, mas pensou que se deixasse a maré beber seu
sangue...
— Ela deu muito de si mesma para isso. Perdeu a consciência,
começou a sangrar. Não apenas sangue… isso não importaria tanto,
é terrivelmente difícil matar uma bruxa. Mas Eva estava sangrando
sua magia no mar. Ela poderia ter desaparecido como as velhas
bruxas, como um sonho, mas Natalia a encontrou. Ela colocou Eva
em um transe de cura, e então esgueirou Thomas para os níveis mais
baixos do palácio e o deixou escapar em um barco. E então ela se
sacrificou para que ninguém pudesse protestar sobre isso. Tudo
enquanto Eva estava inconsciente. Natalia mandou os outros
acorrentá-la ao pilar. Ela disse que havia uma passagem em um dos
grimórios que Thomas havia lido que dizia que seu sacrifício poderia
acalmar a maré para sempre, um ato de amor verdadeiro para
quebrar a maldição. Só que, mais tarde, ninguém conseguiu descobrir
onde dizia isso. Thomas não tentou impedi-la. Ele a deixou fazer isso.
Eva poderia tê-lo perdoado se ele tivesse levado Natalia junto e
fugido, não importa o que isso significasse para a ilha e para todos os
outros. Mas ele não lutou por ela de jeito nenhum.
— Porque era o que ele queria o tempo todo — interrompeu a
Miniatura Eva, a voz como veneno. — Ele apenas fingiu amar Natalia
e fez com que ela o amasse demais. Ele não se importa com ninguém
além de si mesmo.
— Você não sabe disso. — A língua de Lina saiu para molhar os
lábios. Seu coração martelava contra suas costelas, batendo como se
ela tivesse participado de uma corrida. — Não tem como saber que
ele estava apenas fingindo, que ele não se importava.
Mas não era isso que todos na ilha suspeitavam há muito
tempo? Não era por isso que tantos o admiravam? Ele era o menino
que havia seduzido uma rainha. O menino que enganou uma bruxa e
ganhou sua liberdade. O único garoto que a Rainha das Bruxas já
havia soltado. Não foi por isso que ela pediu ajuda a ele, perguntou-
lhe como fazer uma bruxa se apaixonar? Porque ela queria que seu
irmão fizesse o mesmo, caso fosse levado?
Por que, então, parecia que alguém estava arrancando seu
coração?
Por que era tão diferente ouvir isso agora?
A brisa trazia no estrondo da maré da sacada, um rugido surdo e
ritmado.
Lina tentou se lembrar de quem ela estava sentindo pena: as
malvadas Rainhas das Bruxas de Caldella. As rainhas que roubavam
rostos e acorrentavam meninos a pilares para se afogarem nas noites
de lua cheia. Ela não deveria se sentir mal, não deveria se importar
que uma delas tivesse trocado tudo para salvar um garoto que talvez
não a amasse de volta. Mesmo que ela admirasse Natalia…
Eva e Natalia ainda eram bruxas. Pesadelos vivos.
E ela as odiou de repente, odiou tudo sobre isso. A história delas
havia tirado algo dela, algo que ela não sabia se poderia recuperar.
Era mesmo verdade? Eva tinha enviado as bruxas aqui para lhe
dizer isso?
Seria este outro presente?
— E agora ele está fazendo a mesma coisa com você — disse a
Miniatura Eva, a cobra do recife deslizando sinuosamente em seu
colo. — Usando você. Isso não faz você odiá-lo? Não te deixa com
raiva?
A raiva estava inundando Lina, quente como carvão.
— Eva mandou vocês aqui para me dizerem isso? Ela mandou?
— Era mais fácil ficar com raiva de Eva, mais fácil se agarrar àquela
fúria familiar.
As feiticeiras devem ter percebido a mudança em seu humor,
ouvido o tom letal em sua voz, porque ambas escaparam de repente,
corpos e vestidos pretos se dissolvendo na névoa do mar.
Elas deixaram o sofá-cama todo desarrumado. Os vestidos
enrugados. Lina não se importou. Ela não queria nenhum desses
presentes retorcidos e macabros. O violino encantado. A pequena
cobra de recife. Os sapatos de dança de prata perfeitos.
Ela pegou os sapatos, levou-os para a varanda. E, com o peito
arfando, a respiração tão sufocada que parecia que alguém tinha
colocado uma mão em volta de sua garganta, ela os arremessou no
ar, no mar.
Mas ela não conseguia desviar o olhar, não conseguia parar de
assistir enquanto caíam, brilhando com fogo branco, afundando em
sua sepultura aquosa.
Lina

Não houve novos presentes depois disso. Sem bandejas de


guloseimas ou bugigangas mágicas. Nenhum visitante sinistro vestido
de preto se aproximando na ponta dos pés do sofá quando Lina
estava de costas.
Ou, pelo menos, ela não esperava que aparecesse. Assim que
outro dia nasceu, ela saiu do quarto.
O que quer que Eva esperasse conseguir fazendo com que as
bruxas contassem sua história — fazer Lina se arrepender de sua
escolha, fazê-la odiar Thomas —, Lina tinha certeza de que o tiro saiu
pela culatra. Porque depois de uma noite revirando a história
repetidamente em sua mente, apenas uma parte dela ocupava seus
pensamentos agora, e era esta: Eva tentara encontrar outra maneira
de acalmar a maré negra, uma que não exigisse o sacrifício da vida
de um ilhéu.
E se ela tentou uma vez, se acreditou que havia uma chance
uma vez, então por que não tentar novamente agora?
Você não desistia simplesmente porque falhou no começo.
Tentava novamente. E de novo. E de novo. Você continuava, através
dos contratempos e dos dias ruins, nunca desistindo, porque a
derrota era inaceitável.
E era por isso que Lina não ia desistir agora. Mordendo a
bochecha em frustração, ela sacudiu uma maçaneta de latão. As
portas do Palácio das Águas ainda estavam brincando com ela,
conduzindo-a em círculos, reorganizando os quartos de acordo com
seus próprios caprichos inexplicáveis. Ela poderia vagar por este
labirinto para sempre. Perdida. Sozinha.
Mas, Lina teve que admitir de má vontade, nunca entediada.
Flores desabrochavam quando ela entrava em um solário que
também funcionava como um jardim secreto, com vegetação fresca
brotando onde quer que ela pisasse. Cada passo hesitante evocava
flores fantasmas e malvas violetas, anêmonas coradas e cravos-de-
defunto alaranjados. Como se ela fosse a Rainha de Maio, o espírito
da própria Primavera. Dançando para acordar o mundo de inverno,
chegando para despertar a terra estéril.
Gardênias perfumadas a seguiam como pegadas na areia
úmida. As rosas floresciam onde as pontas de seus dedos batiam três
vezes em uma parede de pedra fria para dar sorte. Azaleia, pêssego
e trílio amarelo-manteiga brotaram em anéis ao redor de seus
calcanhares enquanto ela girava, seu novo vestido rosa-açucarado se
espalhando, o queixo inclinado para o teto, tonta de admiração
culpada. O ar estava exuberante com o cheiro de folhas molhadas
pela chuva, inebriante com o cheiro forte de uma videira selvagem
esmagada sob a bota. Ela pisou suavemente, temendo que seus pés
nos chinelos pudessem queimar o chão.
Atravessou uma passarela coberta em seguida, pendurada no ar
como um colar ligando duas das torres do Palácio da Água, uma brisa
fresca soprando pelas colunas finas da ponte. A pedra balançando
como se fosse feita de corda.
E então ela estava passando pelos mosaicos de parede no
corredor onde encontrara Finley: imagens de rainhas mortas e
dançarinas domando serpentes marinhas feitas de lascas cintilantes
de concha e madrepérola. Cenas da história colorida de Caldella.
Sorrindo para as serpentes agora, Lina cantarolou enquanto
seus olhos se concentravam em um novo mosaico. Um que retratava
a história da garota que se recusou a entregar seu amante à Rainha
das Bruxas. A garota que segurou quando a rainha usou magia para
tentar roubá-lo, nunca o soltando, mesmo quando o menino se
transformou em uma serpente marinha, um urso monstruoso, uma
parede de fogo furiosa.
Esconda ele, esconda ele, fora de vista. Segure ele, segure ele,
segure firme.
Ela dançou a parte daquela garota uma vez em uma
apresentação de verão — ainda conseguia se lembrar dos passos até
agora. Foi um papel que ela lutou com unhas e dentes para ganhar,
porque era exatamente o tipo de história em que ela gostava de se
imaginar quando estava sonhando acordada durante uma aula chata
ou se preocupando se Mamis e Mainha voltariam para casa.
Às vezes ela se perguntava se escapava constantemente para
histórias, situações dramatizadas, apenas para manter a mente
ocupada. Sua imaginação era uma coisa tão vasta e ansiosa que, se
ela não a mantivesse ativa o tempo todo, a feiura do mundo real
ameaçava se infiltrar. Desaparecer nas histórias era uma maneira de
manter todos os pensamentos e medos frenéticos à distância.
Lina estendeu a mão para abrir outra porta.
Sua mão congelou a uma polegada da maçaneta. Uma vontade
que não era a dela puxou-lhe os dedos. Eles se espalharam, mais
largos, então se contorceram um pouco enquanto ela engasgava,
como se estivesse tocando piano no ar. Seus dedos se dobraram
tanto para trás que ela gritou, uma chama de agonia subindo por seu
antebraço.
Qualquer que fosse a vontade ou magia que a prendeu, soltou.
Lina embalou a mão no peito, os olhos ardendo com lágrimas.
— Ah, é você. Nossa pequena dançarina — Chinelos arrastaram
atrás de Lina. Marcin olhou para ela, mechas de cabelo ruivo caindo
em sua testa pálida, grandes conchas azuis estendendo-se por
abismos em seus lóbulos das orelhas. Ele era bonito daquele jeito
sem esforço que seu irmão e Thomas eram, mas havia algo nele que
fazia os cabelos finos da nuca de Lina se arrepiarem. Ela tinha a
nítida impressão de que ele não gostava dela, o que a deixou
ansiosa, porque não conseguia deixar de querer que todos
gostassem dela.
— Você não quer passar por essa — disse ele. — Onde você
está tentando chegar?
— Eu queria encontrar Eva. — Sua voz saiu tímida, e ela odiou
o som. — Preciso falar com ela.
— Talvez ela não queira falar com você.
Lina se eriçou.
— Posso abrir uma diferente para você. Mandar você direto para
a Torre da Rainha. — Marcin inclinou a cabeça em direção a uma
porta cintilante entre os mosaicos mais adiante no corredor. Estava
ao lado da imagem final da história que Lina estava seguindo: uma
menina e um menino envoltos em chamas.
Queimando vivos. Queimando até não sobrar nada.
Porque a garota não amava o garoto que ela estava tentando
salvar o suficiente para mantê-lo.
Lina desviou o olhar. — Mesmo?
— Se você me der seu coral-sangue como pagamento. Seu
colar.
As contas vermelhas brilhantes fizeram um pequeno barulho
quando Lina agarrou os fios. Ela tinha recebido tanta magia
ultimamente que tinha esquecido que geralmente havia um custo.
Esquecia que a magia era muito cara. O colar que Finley lhe dera…
ela não podia se separar dele.
Marcin sorriu.
— Ou um beijo.
Lina ficou tensa.
— Ou um olho. Você tem olhos muito lindos, pequena
dançarina. Assim como as nuvens de tempestade se reunindo lá fora.
O coração de Lina bateu em uma cadência de pânico.
— Não gostaria que você vagasse pelo nosso palácio para
sempre; não falta muito para a lua cheia, não é? Você não tem muito
tempo. Se eu fosse você, estaria focando em tentar fugir daqui.
— Fugir?
— Me avise se mudar de ideia. — Marcin começou na direção
oposta, chinelos batendo no chão, o som diminuindo conforme ele se
afastava.
Lina mordeu o interior de sua bochecha, então se virou e
avançou para a porta ao lado daquela imagem brilhante, passando a
mão sobre os glifos dourados que brilhavam inquietos na madeira
polida, implorando por ela.
Por favor.
Por favor, leve-me para onde eu quero ir.
Ela pensou que tinha falhado de novo quando se viu no escuro,
pisando em um degrau escorregadio e coberto de musgo, um suspiro
de ar frio raspando a camada superior de sua pele, conjurando
arrepios.
Mas então, seus olhos se ajustaram à turva luz esmeralda da
caverna do mar, e seus ouvidos reconheceram o suave shusha-
shusha da água salgada. Seu nariz enrugou com o cheiro pungente
de peixe. Um arrulho suave ecoou nas paredes da caverna do mar,
depois interrompeu abruptamente o silêncio.
Eva parecia uma das priminhas de Lina quando foram pegas
com as mãos na lata de biscoito encantada da tia Íris: nervosas,
envergonhadas, os lábios pegajosos de migalhas com gosto de beijos
perdidos e risadas cobertas de chocolate.
Ela estava parada em cima de uma pedra no centro da água
negra como tinta, em calças escuras e colete, inclinando-se com os
lábios entreabertos, claramente congelada no ato de conversar com
sua serpente marinha de estimação.
— Awwn — disse Lina, prolongando o som, cobrindo-o com
sarcasmo. — Você é tão repugnantemente adorável quando está com
ele.
Eva se endireitou.
Lina deu um passo muito cuidadoso para a próxima pedra na
trilha que atravessa a água. Eram escorregadias, e ela não podia
arriscar outra queda tão logo depois da última no convés do navio de
Eva. Ela teve que amarrar o tornozelo. Mas estava tendo um bom dia
hoje, saboreando a ausência de qualquer tipo de dor.
— Como está o monstro? Comeu alguém hoje? Tudo curado?
— Eu não sei — disse Eva, e ela parecia tão desamparada, tão
perdida, que se fosse qualquer outra pessoa, Lina teria feito algo
totalmente ridículo, como tentar envolvê-la com o braço. — Ele não
vem mais até mim.
— Ah. — Ah, isso não era... não era o que ela queria ouvir. Uma
estranha sensação de perda e pena escavou o estômago de Lina. A
serpente do mar era aterrorizante, mas gostou da dança dela. E havia
a maneira terrível como ela havia chorado, tão desnorteada, com
tanta dor quando Eva a havia forçado abaixo das ondas. Aquela
terrível dor no rosto de Eva.
Alcançando o passo mais próximo de Eva, o instinto natural de
oferecer conforto ainda perdurando em sua pele, Lina não pôde
deixar de estender a mão.
Eva ficou tensa, olhando para a mão de Lina como se ela fosse
a serpente vindo para mordê-la.
— O que você está fazendo — ela retrucou, a voz muito plana
para fazer uma pergunta.
— Eu… — Lina corou. Eu tenho esse impulso estúpido e
esmagador de fazer outras pessoas se sentirem melhor quando
parecem tristes. Ela deixou cair a mão, enfiou uma mecha de cabelo
atrás da orelha. — Eu estava pensando em te empurrar para dentro,
e então você poderia nadar e fazer as pazes com ele. Ou, sabe, ser
comida. Se tiver sorte.
Eva a encarou, olhos tão escuros e insondáveis quanto o mar à
meia-noite. E então os cantos de sua boca se ergueram em uma
pequena curva.
— Talvez eu devesse fazer você nadar. Como eu disse antes,
ele gostou de você.
— Isso é porque eu sou irresistível — disse Lina.
— Irritante é a palavra que eu teria escolhido.
— Faz quanto tempo? Cem anos? Mais? Desde a última vez
que um dançarino conseguiu domar um? — disse Lina, presunçosa e
aliviada por estar de volta ao pé familiar, trocando farpas. Ela não
precisava sentir pena da outra garota, não podia baixar a guarda. Mas
sua presunção desapareceu abruptamente, murchando como uma
lesma do mar encharcada de sal enquanto seu olhar descia do rosto
de Eva para baixo de seu corpo para o brilho de seus sapatos.
Um familiar par de sapatos de dança prateados, brilhando com
diamantes.
— Você não precisava jogá-los da sacada se não gostou—
disse Eva. — Você é tão desnecessariamente dramática.
— Porque você gosta de conversar? — Lina atirou de volta.
Desaparecendo em um turbilhão de fumaça escura, esgueirando-se
nas sombras, as roupas pretas, o batom vermelho-sangue. — Você
os pescou do fundo do mar só para me irritar.
A sugestão de um sorriso de Eva tornou-se um sorriso largo e
perverso.
— Funcionou. Se não gostou deles, você poderia ter pedido
outra coisa. É por isso que está aqui, para pedir outra coisa?
— Estou aqui porque as bruxinhas me contaram uma história —
começou Lina, o olhar patinando sobre a água escura como tinta, a
atenção capturando as visões esvoaçando em sua superfície.
O choque roubou as perguntas que ela veio fazer antes que ela
pudesse fazê-las.
Ela viu seu irmão. Círculos escuros espreitavam sob os olhos
cinzentos de inverno de Finley; barba áspera sombreava sua
mandíbula. Ele estava passando a mão pelo rosto, batendo o pé no
fundo de seu barco, enviando-o rapidamente através de uma camada
de névoa espessa, navegando ao redor do Palácio das Águas.
Tentando encontrar uma maneira de roubar de volta sua
irmãzinha.
Um nó quente sufocou a garganta de Lina. Há quanto tempo ele
estava lá fora? Quantas noites sem dormir ele passou tentando?
A cena era cristalina, como olhar através de uma janela, como
os murais pintados nas paredes dos mercados flutuantes que você
podia alcançar e tirar coisas.
Se ela tocasse a água, cairia direto e chegaria pingando pela
popa do barco dele?
Houve um pequeno respingo que poderia ser a serpente do mar
se mexendo. As ondulações resultantes lavaram a imagem de Finley
e seu barco, transformando-a em algo novo.
— Não olhe muito profundamente — avisou Eva, olhando,
procurando por seu animal de estimação.
— Eu não sou uma idiota —disse Lina, mesmo quando ela caiu
de joelhos e se inclinou para frente.
— As visões podem te engolir. Te enlouquecer, como um
marinheiro que ficou olhando por muito tempo para a água.
— Como eu disse, não sou uma idiota.
— A experiência ditaria o contrário.
Lina fez um gesto rude com a mão, que ela aprendeu com
Finley. Na nova visão, ela estava dançando.
Um vislumbre do passado? Do futuro? Como as bruxas sabiam?
— Você é muito boa — disse Eva lentamente depois de um
momento.
— Boa? — Lina ficou indignada. Boa? Ela era muito melhor do
que boa. Não podia se dar ao luxo de ser boa, nem mesmo muito
boa. Ela tinha que ser incrível. Tinha que ser a melhor. De que outra
forma ela justificaria se tornar uma dançarina para Mainha e Mamis e
seu Tio, em vez de se tornar uma marinheira como eles?
Ela olhou para Eva com tanta ferocidade que a Rainha das
Bruxas realmente recuou.
— Foi a palavra errada. Você é... É por isso que te dei os
sapatos. Uma dançarina tão talentosa quanto você merece um par
digno de sua habilidade. No navio, quando você dançou para a
serpente… — Eva hesitou, fazendo uma pausa. — Foi comovente.
Tirou o fôlego. Quase mágico. E incrivelmente tolo — acrescentou
ela, afiada, não encontrando os olhos de Lina. —, mas eu nunca…
nunca me senti assim vendo alguém dançar antes.
Calor correu para as bochechas de Lina. Seu rosto inteiro estava
em chamas. E suas orelhas. E seu pescoço.
— Isso é… — Ela não entendia por que estava corando tanto.
Não era isso que ela queria? Não era sempre elogiada por sua
dança?
Mas nunca por alguém que era, por todas as definições, uma
inimiga. Nunca por alguém tão distante e fria quanto a própria Rainha
das Bruxas sem coração. De alguma forma, um elogio de Eva parecia
significar mais. Como se ela tivesse ganhado alguma coisa.
Nunca me senti assim vendo alguém dançar antes.
— Não foi... Foi confuso. Tão confuso. — Lina estava
balbuciando e não conseguia parar. — Estou sem prática. Não danço
direito há meses. — Ela desviou o olhar, procurando... procurando
alguma coisa, realmente, qualquer coisa para não ter que olhar para
Eva. Ou os sapatos de dança prateados que Eva achava que
merecia, achava que eram dignos dela.
Ela se concentrou na água, nas imagens cambiantes que
tremulavam como as escamas de um peixe. A cor que correu para
seu rosto saiu tão rápido quanto veio.
Agora a água a mostrava parada no topo dos degraus de São
Dominic. Finley também estava lá. Cada um de seus gritos, cada
respiração áspera se transformando em neblina no ar gelado. Metade
da ilha os ouvira, alguma discussão estúpida e inútil sobre Thomas
Lin.
Deus, mas ela estava quase cansada de ouvir sobre ele.
A voz de Finley surgiu em sua memória, clara como um sino.
— Que tipo de homem deixa a garota que o ama ir para a morte
e não faz nada? Que tipo de homem deixa sua rainha morrer para
salvá-lo e não faz nada? Thomas Lin não é homem, Lina. Como ele
pode viver como se nada estivesse acontecendo? Como se nossas
casas não estivessem inundando, sabendo que ele pode ser a
causa?
Seu irmão mais velho não estava disposto a deixá-la sonhar
com o garoto que fez com que os sacrifícios parassem de funcionar.
Mas Lina não estava disposta a deixar seu irmão dizer quem ela
tinha permissão para gostar. Na imagem aquosa, ela balançou a
cabeça, passou por ele como uma tempestade, começando a descer
os degraus ainda escorregadios da maré alta.
Quando ela se ajoelhou na pedra, as mãos de Lina se fecharam
em punhos. Ela sabia o que estava por vir. Não queria reviver. Ela
não queria se lembrar. Queria gritar, berrar, avisar a si mesma.
Mas a água negra era implacável. Tudo o que ela podia fazer
era observar como os eventos se desenrolavam inalterados. Ver
como Finley a agarrou, aquele rosto amado ficou brutal e feio de fúria,
seu irmão enormemente alto, determinado a fazê-la ficar e ouvir,
caramba. O medo subiu por sua garganta e ela se afastou, torcendo-
se, rolando o tornozelo, escorregando, os pés encontrando apenas ar.
Ela parecia uma boneca de pano caindo. Cabelo da cor do sol
no mar, voando em uma auréola, lenço azul e casaco chicoteando
descontroladamente. Lábios rosados se abrindo em um O perfeito.
Suas orelhas ecoaram com o estalo úmido do osso.
— É terrível que uma parte de mim não queira perdoá-lo? —
Lina não percebeu que tinha falado em voz alta até que Eva
respondeu. E então ela ficou dolorosamente ciente de que Eva estava
lá e tinha visto tudo.
— Eu nunca vou perdoar Natalia.
Sim, mas isso é porque você é terrível.
Lina pegou o lábio inferior entre os dentes. Às vezes ela
desejava que ela fosse um pouco mais terrível. Facilitaria muito a
vida. E realmente desejava poder perdoar Finley completamente, e
não apenas porque ela queria tanto que ele parasse de se sentir
culpado. Mas mesmo sabendo até onde ele estava disposto a ir para
tentar consertar as coisas, apesar de toda a família constantemente,
incansavelmente lembrando-a o quanto ele estava tentando fazer as
pazes, como não era tudo culpa dele...
Quanto mais perdão era exigido dela, mais ela se recusava.
Por que deveria perdoá-lo? Por que ela tinha que ser a pessoa
maior? Não foi ela quem se machucou? Mesmo que ele se
arrependesse, mesmo que isso torturasse seus sonhos. Não era ele
que tinha que viver com as cicatrizes.
— Não deixe ninguém fazer você sentir que deve perdão a eles.
Nem mesmo a família. — Eva deslizou graciosamente de pedra para
pedra. — Você nem sempre tem que ser legal. Foi isso que quis dizer
quando disse que quebrou o tornozelo?
— Não é nada. Está tudo bem. Meu irmão tem um
temperamento. Ele não tem intenção de machucar ninguém. Eu
consigo lidar com isso. — Ela lidou com a raiva de sua família toda a
sua vida. Ela era forte. Estava acostumada com isso.
— Só porque você pode lidar, não significa que você deve, não
significa que você tem que fazer isso. — Os olhos de Eva brilharam
com o menor brilho maligno. — Gostaria que eu o punisse por você?
Lina bufou. Mas as palavras acalmaram uma dor profunda
dentro dela, uma que ela nem sabia que estava carregando.
— Isso é outro presente? Devo começar a agradecer por eles?
— Você pode beijar meus pés, se realmente sentir a
necessidade.
— Eu prefiro enfiar um anzol na minha bunda. E você é uma
hipócrita. Fala tudo isso, mas você puniu a pessoa que jogou fogo em
sua serpente ou ainda é muito complicado?
Eva não respondeu.
A imagem na água mudou novamente. Vislumbres da ilha
passando tão rápido desta vez que Lina mal conseguia pegá-los.
Água negra borbulhando pelas rachaduras entre os
paralelepípedos. Um cachorro magro encalhado em um telhado de
telhas vermelhas. Fumaça e nuvens ferventes no horizonte do
amanhecer. Um anel ao redor da lua.
Eva estava se afastando, mas agora se aproximava.
Lina podia sentir o gosto da chuva e sentir, como quando ela
segurou a tempestade engarrafada, o tamborilar fantasma de gotas
de chuva na pele nua.
Caldella não poderia resistir a uma tempestade séria. Não
agora. Não com a maré escura mais faminta do que nunca, subindo
mais rápido do que nunca. E se o sacrifício não der certo este ano...
— Eva.
— Lina — ela respondeu, quase como uma piada. Mas a voz da
Rainha das Bruxas ficou distante, fria. Qualquer indício de brincadeira
anterior selado no gelo. — Eu sei. Estou vendo.
Eva

Eva havia atingido seu limite de interação humana.


Ela podia sentir a tensão crescente em seus músculos, a
pontada afiada de irritação toda vez que outra pessoa falava, o desejo
crescente de arrancar um dos grampos de suas tranças e enfiá-lo na
garganta de alguém.
A câmara de audiências ecoou com o tilintar do sino dos ventos
dos feitiços dos mensageiros. Palavras carregadas em pequenos
ventos espiralados enviados da cidade. Ofensas. Reclamações.
Havia histórias de uma tempestade selvagem se formando — aquela
que ela e Lina tinham vislumbrado. Acusações e relatos de novas
inundações, de saques na costa norte evacuada, uma coisa difícil de
entender em um lugar tão encantado como Caldella. Os ilhéus
exigiam restituição, dinheiro e magia, pelos danos que seus barcos
haviam sofrido da serpente marinha dela no caos da regata. Estavam
exigindo saber o que estava acontecendo, exigindo que ela
devolvesse Lina, e também que entregasse Lina à maré agora, que
ela realizasse o sacrifício deste ano mais cedo.
Como se o ritual em si não fosse importante, como se Eva
pudesse se dar ao luxo de não esperar a lua cheia.
Como se estivesse pronta para deixar Lina Kirk partir.
Ela podia sentir todos na sala de audiências julgando-a, aquelas
bruxas bem vestidas pesando ela com os olhos, pensando que ela
era uma pobre substituta para a irmã que elas amaram, a rainha que
elas perderam.
Por causa dela.
Porque ela não tinha sido forte o suficiente para quebrar a
maldição da maré negra, forte o suficiente para encontrar outra
maneira de salvar sua irmã.
— Mas você não tem que ser Natalia? — Yara lhe dissera uma
vez com aquela voz rouca e questionadora. — Elas te amariam tanto
se você as deixasse conhecê-la. Se você as deixasse entrar.
Mas Eva não sabia como, não achava que poderia e não queria.
Ela não era esse tipo de pessoa.
— Você terá que encontrar outra maneira de governá-las, então.
Ela estava tentando. Passou as unhas roídas sobre os braços
de seu trono e se recostou nas almofadas de veludo preto. Ela não se
sentava aqui com frequência, preferindo fazer o que Natalia, em tom
de brincadeira, chamava de “arrumação” de um pequeno salão na
Torre da Rainha. O fantasma de Natalia tinha o hábito de enfiar a
cabeça por cima do ombro de Eva aqui, sussurrando em seu ouvido
que era indigno apoiar um pé em seu joelho, sentar de lado, fumar,
parecer entediada e responder perguntas estúpidas.
Havia algumas coisas que ela não sentia falta em sua irmã,
embora nunca admitisse em voz alta.
Mais tilintar, desta vez dos sinos entrelaçados nas mechas
prateadas de Cyla. A mulher jogou o cabelo para trás sobre o ombro,
lançando um olhar aguçado para Eva enquanto brigava alto com Jun,
que deu uma tragada frustrada no cigarro e soprou a fumaça que se
tornou uma criatura rondando o ar. Omar coçou o queixo barbudo e
ajustou as bandagens que usava para amarrar o peito. Sua voz
ressoou acima das brigas.
— Os ilhéus estão furiosos. Não gostam que estejamos levando
suas filhas agora. Eles soam como continentais, as coisas que estão
dizendo sobre bruxas. Não vai demorar muito para que se unam
contra nós. Os homens estão com medo.
Porque essa era uma desculpa aceitável.
Marcin sorriu para a expressão azeda de Eva, ignorando Jun,
que estava tentando chamar sua atenção.
— Marcin, acho que precisamos considerar…
Eva cruzou os tornozelos. Recruzou-os. Em vez disso, cruzou as
pernas na altura do joelho.
Eu tenho que sair daqui, ou vou matar alguém.
Mas não, ela era rainha. Por que ela deveria sair?
— Já chega — Ela levantou a mão antes que pudessem
continuar. — Todo mundo fora. Todos vocês.
As cabeças se viraram.
Eva inclinou a sua em direção a uma pequena mesa redonda no
estrado ao lado do trono. Conchas do mar estavam espalhadas pela
superfície de madeira escura.
— Eu vi o que está por vir e quero ouvir. O mar sempre tem
respostas.
Das nove bruxas presentes, três leram seu humor
instantaneamente e recuaram, e três hesitaram, trocando carrancas
enquanto faziam as malas deliberadamente devagar, esperando que
ela mudasse de ideia. A sétima e a oitava de suas irmãs tiveram a
ousadia de olhar para Marcin.
Ele acenou para elas e permaneceu depois que o resto se
retirou, o rangido clique-clique-clique de seus saltos cortando
abruptamente o silêncio enquanto as portas da câmara de audiência
se fechavam.
O silêncio era um presente.
Eva se levantou de seu trono, do trono de Natalia, e arrastou os
dedos pelas conchas espalhadas pela mesa. Berbigões e caramujos.
Osso de choco e pequenos búzios manchados. Abalone11 reluzindo
com a brilhante iridescência do arco-íris da madrepérola. Conchas
brancas da lua enroladas em caracol.
Ela pressionou a ponta do polegar na agulha afiada de uma
concha, saboreando a dor. O exterior era da cor de buttercream, o
interior um rosa salmão suave. Se ela a levasse ao ouvido, que
verdades o mar sussurraria? Que segredos, que fortunas sombrias?
O dia e a maneira de sua morte? O nome de seu verdadeiro amor ou
o da pessoa que um dia a trairia?
Marcin veio para ficar ao lado dela, o cabelo ruivo e os botões
azeviche de seu colete de lã preto brilhando sob as luzes âmbar. Ele
deu um puxão brincalhão na trança gorda que descia pelas costas
dela, como costumava fazer quando ela era apenas uma bruxinha.
— Você deveria estar na cama, docinho. Em repouso. Seu
animal de estimação deu uma grande mordida na sua coxa, caso
tenha se esquecido. E quanta magia você gastou tentando domá-lo?
Precisa ter mais cuidado. Você está nos deixando preocupados.
— Se eu quisesse uma palestra, teria pedido uma. — Ela estava
mais do que cansada das pessoas dizendo a ela o que fazer. Ela não
precisava descansar. O que ela precisava era que todos parassem de
duvidar de todas as suas escolhas, que parassem de miná-la. O que
ela precisava era saber quem poderia causar problemas, se punisse
Marcin por atirar fogo em sua serpente marinha.
Eva pressionou uma concha lunar fria na curva de sua orelha.
Ela fechou os olhos, o queixo inclinado em direção ao teto como se
estivesse inclinando a cabeça para trás debaixo d'água, absorvendo a
sensação do universo abafando, o mundo ficando quieto.
Eva ouviu.
Os segredos que o mar cantava para quem quisesse ouvir.
Os passos apressados e murmúrios ansiosos rastejando por seu
palácio.
Tudo que diziam sobre ela. Os pensamentos e medos ocultos de
seus irmãos, suas dúvidas e desejos sussurrados, as fraquezas que
admitiam apenas no escuro.
Havia a pulsação profunda do oceano, um tambor familiar sob
seus pés, um batimento cardíaco voraz subindo dos níveis do palácio
que haviam sido engolidos pelo mar. A maré sussurrou:
Você pode ter a cidade ou a pessoa que ama, mas não pode ter
os dois.
Os olhos de Eva se abriram.
Marcin circulou a mesa para ficar em frente a ela. Talvez
devesse puni-lo agora, rapidamente, enquanto eles estavam sozinhos
sem ninguém para ver.
Ele tirou um mapa do bolso do colete e o desdobrou.
Natalia tinha pegado dízimos das outras bruxas quando
causavam problemas, como a rainha antes dela tinha feito. Cortava
seus cabelos ou as pontas de seus dedos. Ela poderia usar essa
magia em vez da sua própria, então não se esgotaria.
Só de pensar nisso, um arrepio percorreu a espinha de Eva.
Porque era isso que os continentais faziam: cortavam bruxas em
pedaços e roubavam seu poder. Ferviam elas e esculpiam seus
ossos em encantos. Faziam amuletos de seus dentes, usavam seus
cabelos para lançar maldições.
Era a única maneira de ter magia se você não a comprasse e
ela não crescesse dentro de você.
Marcin empurrou as conchas para o lado e estendeu seu mapa
sobre a mesa, com ar profissional. A costa escarpada do continente e
o crescente afiado de Caldella foram gravados em carvão.
O olhar de Eva se desviou para os dois últimos dedos da mão
esquerda. Ou o espaço onde dois dedos deveriam estar. Dedos que
ele havia perdido para os famintos do continente quando tinha treze
anos, antes que ele, Natalia e Eva fossem resgatados pela Rainha
das Bruxas reinante.
Sempre foram inseparáveis, Marcin e Natalia. Fogo e fumaça.
Nenhum completo sem o outro.
Se fosse qualquer outra pessoa, Eva já os teria punido, mas a
morte de Natalia havia quebrado Marcin tanto quanto a ela. Eram
pessoas diferentes agora. Mais frios. Cruéis. Fazia dois anos e Eva
mal conseguia se lembrar da pessoa que tinha sido antes. Era tudo
isso e o fato de que ele nunca a perdoaria se ela roubasse pedaços
de sua magia do jeito que os continentais tinham.
E se ela tomasse mais de sua magia, quanto mais restaria? Ele
já era muito mais velho que ela, já tinha gasto tanto e sempre usava
com moderação. Quando ela era mais jovem, ele costumava enganá-
la para lançar feitiços por ele. Ele ainda fazia isso com alguns dos
bruxos, disse que era uma boa prática para eles. Eva não sabia se
conseguiria suportar a ideia dele desaparecer.
Em sua cabeça, ela podia ouvir Lina chamá-la de hipócrita, e em
sua mente ela podia ver Marcin, em pânico e estúpido e gritando com
ela do convés para fazer algo sobre a serpente marinha. Depois que
ele a deixou raiva. Nem se incomodou em gastar magia para controlá-
lo. Ele colocou todos em perigo. E agora seu animal de estimação
não se aproximava mais dela.
— Precisamos começar a evacuar.
Eva piscou duas vezes. — Evacuar?
Marcin bateu em uma estrela no mapa. — Seldoma. A cidade
continental mais próxima. Sonhei com um anel ao redor da lua, uma
tempestade selvagem está chegando. Pode quebrar em um dia ou
dois ou três, ou mesmo amanhã. Jun diz que já pode sentir o cheiro.
Vamos para lá.
— Nós não vamos embora.
— A ilha está perdida, Eva. Você ouviu os relatórios. A Torre
Leste está completamente inundada. A maré está roubando os níveis
abaixo de nós. Não podemos ficar aqui. Precisamos velejar antes que
a tempestade desapareça. — Marcin alisou o mapa. — Precisamos
colocar nossa família em segurança.
— E os ilhéus?
Marcin deu de ombros. — Eles podem vir conosco se quiserem,
se trabalharem para nós. Vamos reconstruir, assumir Seldoma
primeiro.
— Você quer começar uma guerra com os continentais.
— Quero nos levar para casa. Nascemos no continente. Quero
nos levar para longe deste lugar amaldiçoado. Os continentais podem
até se oferecer para nos ajudar.
— E se não se oferecerem? E se ainda machucam pessoas
como nós? Se eles não nos querem lá?
Marcin tinha essa atitude frustrantemente mercurial12 em
relação ao continente, um dia odiando ele e todos que moravam lá,
no outro ansiando insaciavelmente pelo lar. Outras bruxas que
fugiram de lá se recusaram a falar sobre isso.
Eva colocou a concha lunar que ainda segurava, sobre a mesa,
em cima do mapa, fazendo uma careta ao ver as três unhas que ela
havia roído até sangrar. Natalia saberia a melhor forma de responder.
Marcin nunca teria pressionado-a assim. Uma onda de desejo encheu
o vazio dentro do peito de Eva. A confissão escapou antes que ela
pudesse selar os lábios.
— Eu sinto falta dela.
Ela queria retirar o que disse. Mas foi, de fato, a jogada mais
inteligente que ela poderia ter feito. As palavras suaves entraram
como uma lâmina na manteiga. O fogo se acalmou nos olhos de
Marcin, deixando apenas sombras rodopiando em suas íris cor de
avelã.
Estranho como até a fraqueza às vezes pode ser usada como
uma arma.
Marcin massageou o tecido cicatricial da mão esquerda. Ele
parecia de repente mais velho. Vincos beliscaram os cantos de seus
olhos, desaparecendo em veias azuis espreitando através da pele
macia em suas têmporas. Ele era uma criatura feita de porcelana,
cheia de rachaduras.
— Por quê? — disse Eva. — Por que você jogou o fogo? Eu
tinha a situação sob controle. Queria que a serpente do mar atacasse
Lina? Me atacasse? Nunca uma rainha pareceu tão tola.
— Bem, isso não é verdade. E naquele ano em que o sacrifício
pulou do navio na regata e tentou escapar nadando até a praia?
Ainda posso ver o rosto de Natalia.
Eva o cortou.
— Yara quase foi ferida! Eu fui ferida!
O ar na câmara de audiências se engrossou. Eles mantiveram
os olhares um no outro. Marcin foi o primeiro a desviar.
— Achei que estava ajudando. Certamente não parecia que
você tinha tudo sob controle. Por que teve que deixá-lo sair em
primeiro lugar? Você queria assustar Lina? Se exibir para ela? Você
parece… — Ele fez uma pausa, olhando para baixo, alisando uma
dobra no mapa. — interessada nela, de uma forma que não estava
com o último garoto.
Interessada?
Eva endureceu. Calor subiu em suas bochechas.
— Mesmo agora você está se esgueirando para brincar com ela,
enchendo-a de presentes e magia.
Claro que ela estava. Estava fazendo o que se esperava dela,
para agradar o resto de sua família e para garantir que os últimos dias
de Lina fossem preenchidos com o máximo de magia possível, como
as rainhas sempre fizeram. Não era porque ela estava interessada.
Ela não era Natalia, se apaixonando pelos garotos que levava. O
próprio pensamento era absurdo.
Mas talvez não tão absurdo quanto deveria ter sido.
Eva tentou ignorar a pequena parte de si mesma que ainda
agora lembrava a dor de ver Lina dançar para a serpente do mar.
Ela soube naquele momento exatamente o que Thomas Lin viu
nela, soube a razão pela qual ele se atreveu a amar novamente
depois de Natalia. Ela sempre tinha entendido Thomas. No fundo,
eram iguais, criaturas frias e egoístas. Ambos fariam qualquer coisa:
mentir, fingir, sacrificar qualquer um para garantir sua própria
sobrevivência. Era por isso que ela o odiava com tanta paixão, porque
sabia que teria feito exatamente como ele se seus papéis tivessem
sido invertidos.
Mas Lina era diferente. Destemida. Altruísta. Tola e
completamente irritante. Eva agora entendia o desejo de Thomas de
aquecer as mãos naquela coragem, naquela chama, para tentar
roubar um pouco disso para si mesmo.
Ele não a merecia. E ela podia apenas imaginar o olhar em seu
rosto se descobrisse que ela e Lina estavam...
Ela meio que gostou da ideia de tirar Lina dele dessa maneira,
roubar alguém que ele gostava assim. Ela gostou muito.
— Não podia suportar a ideia de você começar a se importar
muito com ela. Eu temia que você acabasse cometendo o mesmo
erro que Natalia cometeu. Você até deixou Thomas Lin partir. Depois
que ele cuspiu nos nossos rostos dançando na festa com ela. Depois
de tudo que Natalia fez por ele. — A expressão de Marcin estava
escurecendo.
Eva se perguntou se essa era a verdadeira razão pela qual ele
havia atacado, como uma criança fazendo birra porque havia perdido
seu brinquedo favorito. Marcin ia perder sua preciosa chance de ver
Thomas Lin se afogar.
Eva cortou uma mão desdenhosa pelo ar. — Eu o deixei ir
porque queria que ele soubesse como era ter alguém que realmente
amava roubado dele. Mas se você o odeia tanto, vou deixar você
alimentar minha serpente com ele quando isso terminar. Isso faz você
feliz?
Um lampejo de incerteza cruzou o rosto de Marcin. Era tão raro
que ela o surpreendeu.
— Prometi que não o usaria como sacrifício deste ano, não
prometi mais nada. — E realmente, Lina foi uma tola por não ter
considerado isso, por nem mesmo perguntar. Mas as pessoas
tolamente boas muitas vezes tinham o hábito de pensar que todos
eram tão honestos e tolamente bons quanto eles.
Marcin a olhava fixamente. Eva manteve suas emoções sob
controle, nem um lampejo de sentimento em seu rosto. Ele a estava
vendo ou apenas procurando por Natalia no conjunto de suas
feições?
Eu não sou minha irmã. Não vou cometer os mesmos erros.
O voto silencioso passou pela mente de Eva tão rápido quanto a
luz, mas, ao mesmo tempo, uma bolha de dúvida surgiu das
profundezas de seu ser. Porque ela era e sempre seria uma criatura
de tudo ou nada. Ela não se importava nem um pouco ou se
importava inteiramente.
Se importar assim te matava.
— E eu quase me esqueci — disse Marcin lentamente —, que
você jogou fora seu coração.
Eva ajustou a gola. Ela desejou que Yara estivesse aqui para
apoiá-la. Mas ela tinha ido falar com o irmão de Lina, para convencê-
lo e ao resto da família de Lina a parar de navegar inutilmente ao
redor do Palácio da Água.
A presença de Yara provavelmente deixaria Marcin ainda mais
nervoso, de qualquer maneira. Natalia o havia enfeitiçado para dormir
na noite em que ela se sacrificou para que ele não pudesse impedi-la.
Eva também. E Yara tentou convencer Natalia a desistir, mas falhou.
Uma parte profundamente enterrada de Eva não podia perdoar
Yara por isso, assim como ela não podia perdoar seus próprios
fracassos, e ela sabia que Marcin também nunca perdoaria.
— Eu sei o que estou fazendo. — Ela se importaria o suficiente,
mas não muito.
— Não teria que fazer nada disso se nós partíssemos.
O temperamento de Eva se desgastou. Ela tirou o mapa da
mesa, amassou-o lentamente em uma bola. Natalia tinha feito ela
rainha, não ele. Ela tinha que acreditar que sua irmã tinha feito isso
por uma razão.
— Não estamos evacuando. Não vamos a lugar nenhum. — Ela
colocou o mapa arruinado na mesa. — O sacrifício vai funcionar este
ano. Faça Jun tecer mais escadas de bruxa para que possamos
mandar embora a tempestade. Diga aos outros para fortalecerem os
feitiços nos andares inferiores contra novas inundações. Sele as
portas. Não abandonaremos a cidade de nossa irmã.
Lina

Dezenas de velas tinham sombras estranhas dançando pelas


paredes do escritório forrado de livros. Junto com as chamas
bruxuleantes, elas faziam companhia a Lina. Ela bateu um dedo na
lombada de cada livro enquanto tentava decidir qual poderia ajudar,
qual dos incontáveis grimórios poderia conter uma resposta. Os
únicos sons na sala eram aquele e a respiração dela, um ping-ping-
ping-ping distante, mas constante de água pingando, e um súbito
arrastar abafado que poderia ser os sapatos de alguém marchando
pelo tapete.
Sua mãe nunca te ensinou a não usar sapatos dentro de casa?
— O que pensa que está fazendo? — Eva gritou. — O que você
fez com a biblioteca?
Lina sorriu sem se virar. — Está ficando tarde. Só acendi
algumas velas. Estava tão sombrio e escuro aqui.
— Eu gosto do escuro.
Lina arrastou um volume pesado da prateleira e se afundou de
pernas cruzadas no tapete, de costas contra a borda de uma cadeira
baixa, folheando cuidadosamente as páginas. Mais livros formavam
torres desordenadas de cada lado dela, diários centenários
empoeirados, grimórios encadernados em couro e tabelas de marés,
suas páginas dobradas ou marcadas. — Estou pesquisando.
— Na minha biblioteca particular.
Agora, Lina se virou, olhando para cima, olhos cinzentos
arregalados e inocentes.
Eva usava uma coroa de verdade, uma coisa estreita de aço
chamuscado e espinhos, e seu cabelo estava solto. Cabelos
compridos, longos e escuros como em contos de fadas, ondulando
pelas costas em ondas impossíveis. Lina teve um súbito desejo
terrível de emaranhar as mãos nele.
Em vez disso, ela lançou um olhar ao redor do escritório,
absorvendo tudo: o leve cheiro persistente de fumaça agridoce, o
toca-discos no canto, o prato giratório ainda girando. Um telescópio
de bronze para observação de estrelas. Um casaco descartado e um
chinelo perdido, uma mensagem lacrada dentro de uma garrafa turva.
Pequenos vislumbres proibidos da vida de Eva.
Havia tanta coisa que Lina ainda não sabia sobre ela. Mas a
satisfez de alguma forma saber que a infame Rainha das Bruxas de
Caldella era tão bagunçada quanto ela. O fato a trouxe para o nível
de Lina.
— As portas me trouxeram aqui. Não sabia que era privado. —
Embora ela tenha percebido, com grande alegria, que finalmente
conseguiu encontrar o caminho para a Torre da Rainha. Depois
daquele vislumbre da tempestade que se aproximava na caverna do
mar, Eva desapareceu tão abruptamente como sempre, antes que
Lina tivesse a chance de fazer qualquer uma de suas perguntas.
— Isso é da loja de Jada nos mercados flutuantes? — Ela
apontou para a garrafa com a mensagem lacrada dentro. Não era o
tipo de garrafa que você esperaria encontrar na casa de uma bruxa.
Não uma garrafa de feitiço de fundo redondo cheia de dentes de leite
e desejos.
A garrafa em questão era velha. Ancestral. Verde turvo e
crostoso, tapada com cera e cortiça. O tipo de garrafa que pode ter
sido trazida de um naufrágio como um tesouro afundado ou
descoberta enterrada na areia ao longo da costa rochosa de Caldella.
Uma garrafa cheia de cartas de amor em ruínas ou confissões
assassinas enroladas e amarradas com barbante. Nunca foi feita para
ser lida, lançada nas profundezas implacáveis do mar. Décadas, até
séculos de idade.
— Adoro ir lá — disse Lina. Cada uma das garrafas de Jada
tinha sua própria história secreta selada dentro.
Eva pareceu assustada, depois desconfortável. — Eu também.
— Mesmo?
— Sempre achei algo…
— Romântico — incitou Lina.
— Trágico — disse Eva, contraindo os lábios. — Macabro.
Sobre selar algo dentro de uma garrafa e lançá-la ao mar. Ou talvez
eu apenas me preocupe que minha própria garrafa vá parar lá um dia.
— Sua garrafa? — Lina não conseguia imaginar Eva escrevendo
uma carta de amor para alguém. Uma confissão assassina, por outro
lado...
O pensamento atravessou sua mente em tom de brincadeira,
mas estragou enquanto permanecia, trazendo ela de volta a si
mesma, à razão pela qual estava aqui.
Era tão fácil por um momento, nesta sala cheia de sombras e
iluminada por velas, com um grimório empoeirado no colo, fingir que
eram apenas duas bruxas discutindo feitiços.
Tão fácil fingir que ela não era uma prisioneira aqui — uma
prisioneira por livre e espontânea vontade — e que a lua não estava
ficando mais gorda e cheia, e que cada respiração não era mais um
grão de areia escorrendo no fundo de uma ampulheta. A vida dela, se
esgotando.
Uma nova onda de pânico fez a pele de Lina ficar quente e
depois fria novamente.
Ela esfaqueou as páginas do grimório em seu colo com o dedo.
— Estou encontrando outra maneira de acalmar a maré negra.
Uma que não exige que alguém morra.
Eva deslizou para longe do salão baixo e de Lina.
— Não há outro caminho. — As palavras tinham o tom de um
ditado muitas vezes repetido, uma finalidade, uma nota cansada de
resignação.
— Talvez haja. — Lina pegou a alça da camiseta escorregando
de seu ombro quando Eva parou diante de uma das paredes forradas
de livros e muito deliberadamente começou a apagar as velas que
repousavam nas prateleiras, apertando as chamas entre o polegar e o
indicador. Uma silhueta temperamental em um vestido longo de renda
preta em cascata. Estava rapidamente se tornando aparente que ela
era alérgica à cor.
Lina tinha tirado vários livros daquela prateleira; estavam no
chão à sua esquerda, em cima de um texto iluminado do continente,
um códex tão grande que Lina poderia ter se enrolado dentro de suas
capas douradas e puxado as páginas sobre si mesma como um
cobertor.
Ela pegou tudo e qualquer coisa que pudesse encontrar que
tivesse a ver com sacrifício humano. E sacrifício de animais. Sacrifício
sem sangue. Oferendas feitas para evitar secas, incêndios florestais,
tempestades. Libações13 para aplacar terremotos e vulcões.
Sacrifícios feitos para boa sorte, para boas colheitas. Para agradar
deuses malévolos e espíritos vingativos.
— Aqui. — Lina ergueu um grimório diferente, virando para uma
página que ela havia marcado. — Um tipo diferente de sacrifício. “As
bruxas de Skani cortaram os cabelos loiros de seus crânios e com
eles teceram uma rede de cabelos para lançar sobre as ondas,
acalmando o mar vingativo” — ela leu.
— Você quer que a gente raspe todo o cabelo — disse Eva
categoricamente.
— Também há dentes! — Lina pegou um grimório com bordas
douradas. — As bruxas no continente do deserto costumavam
preparar uma poção, há uma lista de ingredientes aqui. Elas
adicionavam alguns dentes e despejavam a mistura no sopé do
Monte Coroban a cada solstício para impedir que o vulcão entrasse
em erupção.
— Não para impedi-lo de entrar em erupção, para honrá-lo. O
vulcão é a deusa deles. Eles não veem destruição na erupção,
apenas beleza. Força.
— Bem, há mais coisas também — disse Lina, determinada.
Esse distanciamento entediado não era a reação que ela esperava.
Uma pequena parte dela até queria que Eva ficasse impressionada
por ela ter pensado nisso, que pulasse na abertura que ela estava lhe
dando. — Há muitos outros exemplos: bruxas abrindo mão de suas
vozes, de sua beleza, trocando suas memórias, sacrificando suas…
— E por que é — disse Eva, estreitando os olhos perigosamente
—, que em todos os seus grandes esquemas, somos nós quem
temos que desistir de algo? Nosso cabelo. Nossos dentes. Nossas
vozes.
Lina pressionou ambas as palmas das mãos nos joelhos nus. —
E quantas de nossas vidas nós desistimos? Todo ano. Todo mês de
maio. Por centenas de anos. Somos apenas nós, ilhéus, que…
— Só vocês? Está esquecendo da minha irmã? A garota que
você tanto admira e aspira ser? Eu estava querendo perguntar, sua
vida é realmente tão chata que está determinada a viver a dela por
ela? Mesmo indo tão longe a ponto de lamentar pateticamente pelo
garoto que ela amava?
O calor escaldou as bochechas de Lina mesmo quando as
palavras fizeram sua mente disparar. Natalia se sacrificou, e isso
acalmou a maré por um tempo. O sacrifício funcionaria novamente
com outra bruxa?
Por que as bruxas nunca pagaram o preço com uma delas?
— Todo ano, nossa rainha entrega pedaços de si mesma —
disse Eva, como se pudesse ler a mente de Lina. — Só a destruição
da cidade ou seu sofrimento podem saciar a fome da maré. Suas
lágrimas. Nossa magia. Nós nos gastamos, trocando pedaços até não
sobrar nada. Até que não tenhamos mais magia e desapareçamos.
Nós já damos o suficiente. Nós salvamos esta ilha.
— E ao fazer isso, você fez do mar um monstro! — Lina abriu
mais um livro, levantando-se. — Eu tenho lido esses diários antigos.
— Ela provavelmente deveria ter prestado mais atenção antes, em
vez de apenas revirar os olhos na aula e quando Finley tagarelava
sobre suas teorias sobre por que a ilha estava afundando. Deveria ter
ouvido suas tias, que falavam sobre a maré como se fosse uma
criatura gentil cultivando seu poder. — A ilha já estava inundando há
duzentos anos, sim, e quase se perdeu. Mas a maré não era assim
antes da primeira rainha lançar seu feitiço. Vocês, bruxas, deram-lhe
vida. Deram poder. E agora continuam alimentando ela.
Com mais vidas, com tristeza, nutrindo-a de lágrimas.
— No passado, nem precisava haver um sacrifício todos os
anos. Um ilhéu era dado à maré uma vez a cada década. — Lina
fechou o diário.
Eva ficou imóvel como uma pedra. Era possível que Lina
estivesse prestes a ser amaldiçoada, ou pior. Eva poderia convocar o
vento ou a areia para limpar a carne de seus ossos, esfregá-los como
vidro marinho.
Lina baixou o olhar.
— Desculpa. Eu só... tenho que encontrar outra maneira.
Eu realmente, realmente não quero morrer.
— Eu deixei você ir — disse Eva com firmeza, passando o dedo
para cima e para baixo na borda da prateleira, de costas meio
viradas. — Você pediu isso. Queria ficar no lugar de Thomas. Eu te
disse para se colocar em primeiro lugar.
Ela disse, e a mesma frustração que pintava o tom de Eva
estava dando nós em Lina.
— Não me arrependo. — Ela fez as pazes com isso. Mesmo
depois de ouvir a história das bruxas sobre como Eva quase morreu
tentando encontrar outra maneira de acalmar a maré por causa de
sua irmã, com quem ela até lutou para salvar Thomas. Da mesma
forma que Lina lutou por Thomas e por Finley.
A forma como Thomas não lutou por Natalia ou, ao que parecia,
por ela.
Thomas, que talvez não fosse quem ela pensava que era.
Mas o que ele tinha feito e estava fazendo agora não tinha
influência na escolha dela. Talvez ele não arriscasse sua vida por ela,
como havia feito por ele. Não trocaria a vida dele pela dela, como
Natalia havia feito por ele. Mas isso era ele e com o que ele poderia
viver.
— Não vou me sentir mal por salvar a vida de alguém. Não
importa o quanto eu esteja com medo agora, ainda faria a mesma
escolha. Prefiro morrer sabendo que salvei a pessoa que amei do que
viver sabendo que a abandonei para me salvar. Mas isso não significa
que eu quero morrer — Lina torceu seu colar em um
estrangulamento. — Quero que haja outra maneira. Eu preciso que
haja.
Eva pressionou o polegar no lábio inferior em pensamento, em
frustração, em um gesto estranhamente familiar.
Familiar porque era um gesto que Thomas sempre fazia. Um
gesto, Lina percebeu com um sobressalto, que Eva deve ter adquirido
dele. Ou foi algo que Thomas pegou de Eva quando esteve aqui pela
última vez?
Ela se afastou daquele pensamento, roendo o interior de sua
bochecha. Se ela não encontrasse uma maneira, se não sobrevivesse
a isso... havia uma parte dela que Thomas levaria com ele? Uma
parte que a próxima garota que ele beijasse não saberia que
pertencia a Lina Kirk? Seu hábito de mastigar sua bochecha? O jeito
que ela cantarolava quando estava nervosa?
Que parte de mim você vai compartilhar com outra pessoa
quando eu partir?
Seus olhos seguiram a mão de Eva quando ela caiu e a outra
garota se abaixou, pegando um livro aberto do tapete, os dedos se
destacando nas páginas amareladas.
Quais partes de você eu conheci através dele?
— Vou encontrar outra maneira — disse Lina.
Eva fechou o livro com uma palmada e desenhou um círculo na
capa empoeirada, a ponta do dedo saindo com um filme prateado
como se ela tivesse beliscado uma mariposa.
— Você acha que é a primeira a tentar? Acha que é coincidência
que haja tantos livros e cartas aqui sobre o assunto? Diários e
grimórios de todo o mundo, todos aqui no meu escritório. — Sua voz
era suave, uniforme, mortal. — Você pensa tão pouco de nós, que
não tentamos tudo antes?
— Eu sei que você tentou. — A voz de Lina era igualmente
uniforme. — As bruxinhas me contaram o que você fez, o que tentou.
Mas você desistiu. Você falhou e então parou de lutar.
Os olhos de Eva brilharam com tanta fúria que Lina encolheu um
pouco dentro de sua pele. A raiva de Eva poderia envergonhar até a
de Finley; fervia como a maré em uma tempestade.
— Não preciso ouvir isso de alguém que nunca lutou antes. Há
ilhéus que protestaram contra o sacrifício, ilhéus que pediram à
Natalia, mas nunca vi você ou seu nome listado entre eles. Você
estava feliz o suficiente para deixar vidas serem tiradas até que fosse
a vida de alguém com quem você se importasse. Até que fosse você.
E agora ousa me dar um sermão? Você, que nunca lutou e perdeu
alguém? Você, que nunca tentou mudar nada?
O coração de Lina disparou. Sua boca se abriu e se fechou.
Uma pontada de vergonha torceu seu estômago.
Porque era verdade, e ela realmente desejava que não
precisasse que Thomas fosse escolhido e preso aqui para perceber
que talvez devessem tentar encontrar outra maneira. Em vez de
simplesmente aceitar o sacrifício anual como algo necessário. Nunca
questionando, porque era assim que as coisas sempre foram feitas.
— Você não sabe de nada — disse Eva. — Você ouviu uma
história e não entendeu nada.
— Certo — Lina jogou as mãos para cima, caindo de volta no
chão, dobrando uma perna debaixo dela. — Tudo bem, eu não sei.
Mas eu vou. Vou continuar procurando um caminho. Eu sei que
deveria ter feito antes. Sei que provavelmente é tarde demais agora.
Mas não vou desistir.
— E você acha que vou deixar você ficar aqui a noite toda,
mexendo em todos os meus pertences particulares?
— Se você quer que eu vá embora, vai ter que me arrastar —
disse Lina, ficando tensa um segundo depois, quando começou a se
perguntar se Eva realmente tentaria arrastá-la para fora do escritório.
Mas um segundo batimento cardíaco passou, e depois outro.
Das estantes de livros veio uma expiração longa e exasperada. Lina
relaxou um pouco, puxando uma pilha de cartas dobradas em seu
colo, folheando suas páginas rachadas.
Ela as descartou quando percebeu que estavam escritas em
outro idioma, um que ela não reconhecia. Ela pegou outro diário em
vez disso.
A raiva ainda estava cantando através dela, e as palavras eram
quase um borrão. Embora, para ser justa, as palavras muitas vezes
pareciam assim para Lina: parágrafos grossos de letras pretas
rabiscadas como enguias, tentando nadar para fora da página. Ela
adorava histórias, mas preferia ouvi-las ou vê-las dançando no palco.
Não era uma grande leitora.
Ela mordeu a bochecha, tentando se concentrar. Mas enterrada
sob aquela canção de raiva, havia uma decepção aguda e
penetrante. Por que pensou que Eva era algo mais do que um
pesadelo sem coração? Por que ela tinha tantas esperanças? Por
que queria tanto que ela fosse algo mais?
Ela não conseguiu evitar dar uma última olhada pela sala.
Eva estava desajeitada em uma poltrona de espaldar alto e
estava roendo uma unha do polegar, olhando atentamente para o teto
e ignorando Lina.
Lina olhou para o teto também.
E depois de volta.
E então se afastou rapidamente quando ela pegou Eva fazendo
o mesmo, lançando um olhar furtivo para ela.
Seus olhos se encontraram por uma breve batida estranha.
As bochechas de Lina aqueceram, e ela realmente se
concentrou no texto desta vez, procurando por pistas, por soluções
mágicas escondidas em linhas delicadas de letras curvas enquanto
as velas lentamente derreteram em tocos. Esfregando os olhos
ardendo e cantarolando para se manter acordada.
A Rainha das Bruxas vem nas asas da noite.
A Rainha das Bruxas tem o deleite do seu coração.
Ela adormeceu em algum momento, acordando minutos ou
horas depois, sua baba fazendo a tinta escorrer por uma página. Era
muito provável que Eva a afogasse só por isso.
Mas a poltrona estava vazia e, quando Lina se sentou, um
cobertor com um leve cheiro de fumaça escorregou de seus ombros.
Espirais de fumaça escura estavam se dissolvendo exatamente
no espaço onde alguém poderia estar, se tivesse se aproximado na
ponta dos pés para enrolá-lo suavemente ao redor dela.
Lina piscou, o coração caindo em um ritmo estranho e instável.
Ela agarrou o cobertor, sem saber se queria arrancá-lo ou envolvê-lo
confortavelmente. No final, ela o colocou confortavelmente em torno
de si, acendeu novas velas e continuou a pesquisar.
Lina

Ela não encontrou nenhuma resposta no estúdio de Eva.


Nenhuma solução ou feitiço para tentar, porque já haviam sido
tentados.
Então, ela implorou às portas do Palácio da Água para levá-la a
outro lugar, a qualquer lugar, a qualquer lugar dentro de suas paredes
onde ela pudesse descobrir um novo tipo de magia para acalmar a
maré negra. Ela usou as pérolas negras que impregnavam sua voz de
doçura melosa, bajulando, elogiando cada uma em seus belos glifos
brilhantes e cintilantes e moldura de madeira escura polida.
Aparentemente, as portas respondiam bem à bajulação, porque
com apenas alguns desvios maliciosos, eles a levaram a mais
estantes, a deixaram em salas de trabalho escondidas, em quartos
onde grimórios estavam escondidos secretamente sob travesseiros
de penas.
Ela se aventurou em cofres gotejantes e arquivos empoeirados,
foi expulsa de ambos por bruxas furiosas empunhando vassouras.
Mas ela não deixou que isso a impedisse.
Afinal, sempre que uma bruxa particularmente irada a ameaçava
— como Marcin, cujos preciosos diários manuscritos ela poderia ter
pegado emprestado sem pedir e depois derramado chá por toda parte
—, Eva aparecia para resgatá-la.
Lina era o sacrifício deste ano; não tinha como deixar ninguém
mais acabar com ela.
Se abaixando para dentro de um salão cheio de fumaça
enquanto passos batiam em uma aproximação sinistra, Lina apertou
dois livros contra o peito e sorriu. O primeiro era um diário
esfarrapado contendo um feitiço de transformação rabiscado que ela
achava que poderia funcionar, e o segundo... bem, ela mesma não
havia escolhido aquele livro.
Ao longo dos últimos dias — dias que ela mal conseguia passar
—, livros estranhos e cartas perdidas e fechadas haviam caído em
suas mãos, caindo inocentemente das prateleiras que ela estava
procurando, juntando-se ao fundo das pilhas que carregava,
deslizando sob pergaminhos que ela tinha acabado de pegar.
Lina odiava se permitir ter esperanças, mas tinha quase certeza
de que sabia quem estava por trás disso.
Era como se, no fundo, Eva realmente quisesse ajudar, quisesse
continuar a busca que começou há dois anos, mas estava com muito
medo de se permitir. Lina não conseguia decidir se isso a deixava
ainda mais frustrada, ou divertida, ou irritada, e até mesmo um pouco
triste.
Ela podia se sentir seguindo os passos de Eva. Metade do
tempo ela descobria as anotações de Eva já rabiscadas nas margens
dos grimórios que ela anotava. Ela se distraía então, traçando aquela
caligrafia perfeita com os dedos, cada linha cuidadosamente
desenhada a lápis tão fraca que era como se as palavras fossem os
sussurros da outra garota soprados na página.
Uma batida hesitante soou na porta do salão. Lina deslizou
apressadamente por poltronas e uma sala baixa, parando quando um
braço de repente serpenteou do nada e a arrastou para uma alcova
sombria.
— Ainda quero perguntar quem está perseguindo você desta
vez? Você sabe, Marcin cuspiu na cara da última pessoa que o irritou
e essa pessoa foi transformada em um pássaro.
— Ah, que fofo. É quase como se você realmente se importasse
com o que acontece comigo. — As costas de Lina estavam
pressionadas contra a parede. Ela estava presa entre ela e Eva, um
rubor rastejando em suas bochechas, de repente dolorosamente
consciente de seu próprio batimento cardíaco.
Ela culpou tudo nos livros que estava lendo.
Enquanto procurava desesperadamente por soluções, também
procurou aquela passagem de que os bruxos haviam falado, aquela
que disseram que Thomas havia lido para Natalia sobre como se ela
se sacrificasse em vez dele, isso poderia acalmar a maré de uma vez
por todas. Para todo sempre. A passagem que ninguém conseguiu
encontrar depois.
Lina também não tinha encontrado.
Mas ela tinha lido repetidamente que a rainha tinha que amar o
sacrifício para que a magia funcionasse. Ela tinha que se importar o
suficiente com essa pessoa para chorar lágrimas genuínas.
Então, por quê, na cabine do navio, Eva disse que o sacrifício
tinha que ser Lina? Que não poderia ser ninguém além dela?
— Talvez — disse Eva —, eu só não queira entrar para a
história como a rainha que teve que sacrificar uma gaivota. Mas, por
outro lado, isso significaria que poderia mantê-la em uma gaiola até a
lua cheia, então talvez eu deva deixar quem quer que seja, pegar
você.
Lina ajustou seu aperto nos livros que estava segurando,
expressão se tornando travessa. — Ah, mas estão tentando me
pegar?
Pela primeira vez, Eva parecia vagamente desconcertada.
Lina empurrou a parede, avançando para o espaço de Eva. —
Não estou fugindo de ninguém. Eu estava procurando por você. E
uma bruxinha me disse que uma certa rainha gosta de se esconder
aqui e fumar quando deveria estar…
Eva pressionou um dedo frio nos lábios de Lina quando outra
batida forte soou na porta do salão.
O coração de Lina disparou.
— Encontrei um feitiço que poderia funcionar — ela sussurrou.
— Quero tentar.
— Que parte do ‘fica quieta’ você não entendeu?
— É um feitiço de transformação. — Lina ergueu o diário.
— Não vai funcionar.
— Você não sabe disso. Olhe — Lina agarrou a mão de Eva, a
que ela usou para pressionar silenciosamente nos lábios de Lina. —,
se me der uma mecha de cabelo e algumas de suas cordas
vermelhas, suas pulseiras, eu mesma vou tentar. Sei fazer nós. Você
viu, ontem. — A tempestade havia quebrado na manhã anterior. Lina
havia pausado sua busca para ajudar duas tias bruxas a tecer uma
gigantesca teia de escadas de bruxas, segurando os laços enquanto
davam nós para direcionar o pior do vento e da chuva para longe da
ilha.
Lina olhou para cima no meio do caminho e viu Eva observando-
a, uma expressão ilegível em seu rosto — um olhar que se
transformou rapidamente em uma diversão indisfarçável quando Lina
decidiu se exibir um pouco e, em vez disso, se amarrou na teia.
Ela se empolgava assim às vezes, quando sabia que as
pessoas estavam assistindo. Principalmente outras garotas. As
garotas mais velhas e descoladas do Conservatório. Ela não
conseguia parar de fazer coisas estúpidas como falar muito alto,
dançar, exibir suas habilidades.
Ela não conseguia parar de falar agora.
— Mainha brinca que eu poderia ter sido uma bruxa, tenho uma
memória muito boa para nós.
Eva ergueu uma sobrancelha e inclinou a cabeça para o lado.
— Quando você nasceu?
Lina esvaziou um pouco, mas não soltou o pulso de Eva.
— Manhã. Meio dia. — Quando o sol de verão estava brilhando
mais alto. Às vezes ela desejava que a magia fosse uma habilidade
que você pudesse dominar, se apenas trabalhasse duro nela e não
algo que floresceria dentro de você por acaso, dependendo da hora
em que você nasceu. — Quando você…
— Meia-noite. Em ponto. — Lábios carmesins se curvaram em
uma meia-lua. — Na noite mais longa e escura do ano.
Claro que foi.
Um verdadeiro pesadelo, então. No entanto, parecia
estranhamente apropriado, espelhando a maneira como elas se
encaravam agora. A manhã desafiando a meia-noite.
— Não vai funcionar — repetiu Eva.
— Como sabe antes mesmo de tentarmos?
— Porque eu já tentei de tudo antes. — Eva saiu da alcova, Lina
em seu encalço. O telhado do salão era um tambor para a chuva,
mas cortinas grossas fechadas em todas as janelas escondiam a
tempestade que rugia lá fora. Um relâmpago cintilou através de uma
abertura e Lina virou em direção a isso.
— Então vai se esconder aqui e fumar? O que aconteceu com
mandar embora a tempestade? Você desistiu disso também? Não se
importa com o que acontece com a ilha? A inundação já é ruim o
suficiente, não vamos conseguir sobreviver a isso.
Parecia que Caldella estava presa entre dois monstros, lutando
contra uma tempestade voraz e o mar. Mas se o mar era um monstro
que engolia sua presa inteira, então essa tempestade era uma fera
que espreitava as ruas da cidade, esmagando os ossos de sua
vítima.
O estrondo de um trovão, o grande ressoar de um tambor alto o
suficiente para acordar os céus, um som ensurdecedor que Lina
sentiu estremecer por entre os dentes.
— Não pode me deixar tentar? — Ela abraçou os livros contra o
peito.
Eva parou em uma escrivaninha encostada na parede, de costas
para Lina, juntando mechas de barbante vermelho e cabelo preto
comprido, enrolando tudo nos dentes afiados de um pente de
madrepérola.
— Você tem medo de falhar de novo? É isso? Como falhou da
última vez? Como seu último sacrifício falhou — Havia ácido
queimando na parte de trás da garganta de Lina. E medo. Aquela vida
desperdiçada… um menino da idade do irmão dela, da idade dela,
que nunca teve a chance de crescer.
Sua voz parecia sussurrar para ela, um companheiro de
sacrifício, seus dedos úmidos envolvendo seu coração.
Uma vida roubada antes que pudesse ser vivida. Uma vida
inocente sacrificada por nada. Porque Eva devia saber que ela não o
amava, não? Enquanto ela o acorrentava ao pilar, enquanto o
alimentava a maré com ele? Dá para saber quando você ama
alguém, não dá?
Você afogou um garoto inocente por nada.
Como ela se afogaria por nada.
— Se você não quer tentar o feitiço que encontrei — Lina falou
—, então me diga como o seu vai funcionar. Porque eu sei que você
realmente tem que se importar comigo para o sacrifício fazer qualquer
coisa.
Eva se virou. — Você veio aqui só para me irritar? Porque essa
parece uma maneira bastante triste de passar seus últimos dias.
— Talvez eu tenha pensado que poderíamos passar nossos
últimos dias juntas, já que vai deixar a maré afogar todos nós.
Podemos trançar o cabelo uma da outra, trocar histórias sobre nossas
tendências autodestrutivas.
A expressão de Eva azedou. Ela jogou o pente de madrepérola
em Lina. Lina deixou cair os livros enquanto lutava para pegá-lo.
— Se você soubesse esperar um pouco.
Lina piscou.
— E então? Não quer a magia agora? — Eva tirou uma escada
de bruxa de uma gaveta da escrivaninha: um novelo de cordão
prateado amarrado com conchas e penas de gaivota. — Você supõe
que não vou te deixar tentar só pra te fazer calar a boca. Você
assume que conhece meus sentimentos. — Ela puxou dois feitiços
engarrafados de uma prateleira e saiu da mesa, abrindo as cortinas
para revelar portas com janelas que davam para uma varanda
devastada pela tempestade. — Vai ficar aí e continuar me insultando
ou vai me mostrar que você pode trabalhar com corda bem o
suficiente para ser chamada de bruxa?
Lina

Lina parou na soleira da varanda, entre as cortinas pretas


esvoaçantes.
Relâmpagos enlaçaram os céus, iluminaram as nuvens
escassas por baixo, deixando o céu brilhando como a barriga pálida
de alguma besta gigantesca. O cabelo de Eva voou de sua cabeça
como uma chama, fluindo atrás dela no vento uivante. No entanto, a
própria chuva não se atreveu a tocá-la. Nenhuma gota de chuva
brilhava em sua pele oliva, beijava a linha dura de seu pescoço,
acumulava-se na curva escura de suas clavículas. Seu vestido preto
ficou seco enquanto ela se recostava na balaustrada na altura do
quadril, desatando um nó na escada de bruxa, as feições sombreadas
e afiadas com malícia repentina.
Lina podia sentir o fluxo e refluxo da magia saindo dela, um
pulso constante que marcava o ritmo de seu próprio coração, que
vibrava entre seus dedos, onde ela agarrou o pente de madrepérola
enrolado com laços de barbante vermelho.
— O que está esperando? — A voz de Eva estava meio abafada
pelo trovão. — Um feitiço de transformação, não era? Forme uma
rede. E desta vez, tente não se enrolar nela.
O relâmpago estalou.
Lina deu um passo hesitante para frente. Um tamborilar gelado
martelou no topo de seu crânio, grudando seu cabelo dourado em
suas bochechas. Ela deslizou de volta para baixo do toldo da
varanda.
Um sorriso perverso puxou os lábios de Eva, o mesmo sorriso
que ela usou na véspera de Santa Walpurga, pouco antes de
desaparecer em um uivo vicioso de fumaça.
— Está com medo?
— Não! — Um pouco. E eu não te entendo. O que Eva quis
dizer com “Você supõe que conhece meus sentimentos?”
— Só não quero me molhar. — Era mais autoconsciência agora
do que medo. Seus dedos ficaram repentinamente desajeitados,
úmidos, excessivamente grandes e todos polegares com Eva olhando
tão atentamente. Lina queria gritar com ela para não olhar enquanto
soltava um laço de barbante vermelho trançado com mechas de
cabelo preto, enfiando o pente na frente de seu vestido e em seu
sutiã.
— Uma rede.
— Eu sei. — Um rubor subiu pelo pescoço de Lina. Os fios do
cabelo de Eva eram escorregadios como seda, o cordão vermelho
muito mais delicado que linha de pesca, mil vezes mais fino que
corda. Juntos, eram tanto um emaranhado quanto seus pensamentos,
como as emoções se retorcendo e se entrelaçando em sua cabeça.
Era como tentar brincar de berço de gato com teia de aranha.
Lina xingou quando os fios escorregaram e emaranharam. As
bruxas faziam parecer tão fácil.
— Não tenha pressa — O tom de Eva era surpreendentemente
paciente. Ela abriu um dos feitiços engarrafados, colocando a garrafa
no chão e recuando enquanto espirais de fumaça pálida subiam dela
para alimentar as nuvens, na esperança de saciá-las.
Parte da tensão saiu dos ombros de Lina. Algo como excitação
se insinuou. Que feitiço Eva estava tendo em seu trabalho? Se ela
provasse que era capaz, Eva a ajudaria com o feitiço do diário? Ela
começou de novo, testa franzida com concentração. Mantendo os
longos fios paralelos, tecendo uma das formas mais simples do Jogo
das Bruxas, a rede do pescador.
— Por que fio vermelho? — Ela sempre quis saber por que
algumas bruxas faziam magia de um jeito e outras de outro. — Por
que cabelo?
— Eu tenho muito — disse Eva com uma cara tão séria que Lina
levou um segundo para registrá-lo.
— Você acabou de fazer uma piada? — Ela quase deixou cair
os laços de corda.
Outro pequeno sorriso puxou a boca de Eva, mas um sorriso
verdadeiro desta vez, não de provocação, ódio ou maldade, o tipo de
sorriso que aparecia não importa o quanto você lutasse para
escondê-lo.
O estômago de Lina revirou com um tipo estranho e inquieto de
orgulho.
— É preferência pessoal. Existem até bruxas estrangeiras que
dançam sua magia. Abriam as pontas dos pés com facas. Alguns
gostam de dizer que há mais poder no sangue, cuspe e osso, mas é
um risco gastar tanta magia de uma só vez. E é bagunçado. Mechas
de cabelo combinam bem com a tradicional magia de nós de Caldella,
e a corda vermelha é… Boa. Você precisará formar o peixe em
seguida e depois a torre.
Lina esticou os laços, odiando a emoção indefesa e inebriante
que a atravessou da cabeça aos pés enquanto os fios brilhavam
quentes.
— Agora a torre — disse Eva — para mudança e transformação.
— O que estamos transformando?
— A chuva, já que você está tão preocupada com isso.
E depois, a maré, prometeu Lina silenciosamente.
Tanto poder nas pontas dos dedos. Ela não conseguia acreditar
que estava fazendo mágica. Como uma bruxa. Com uma bruxa. Em
uma tempestade no topo de uma torre, sozinha, exceto pelo mar
vingativo quebrando muito, muito abaixo e a Rainha das Bruxas
observando-a com olhos que brilhavam como a lua na água escura.
— Você tem que olhar assim?
— Assim como?
Como se estivesse planejando me comer.
Lina abaixou a cabeça e se concentrou apenas em formar a
forma final. Ela e Finley sempre se demoravam nos mercados quando
as bruxas vendiam o vento para Mainha em torções de barbante e
cabelo, tentavam memorizar os movimentos de seus dedos.
Seu irmão adoraria isso. Se Eva a deixasse ficar com o pente,
ela guardaria algumas das voltas de barbante restantes para ele. Ela
meio que desejava que ele estivesse aqui agora, mesmo que ficasse
com raiva e franzisse a testa e a chamasse de tola por gostar de fazer
mágica com Eva. Ela não conseguia se lembrar de um tempo sem
Finley. Não conseguia imaginar um futuro onde eles não estivessem
próximos.
O vento aumentou, puxando seu vestido, abanando as cortinas
pretas atrás dela.
— Vai se esconder nas cortinas para sempre?
Lina lançou um olhar para Eva. A torre que ela moldara entre os
dedos brilhava como brasas acesas, como pontas acesas de cigarros.
Seus ouvidos se encheram de um rugido, um novo tipo de trovão
vindo de todos os lugares ao mesmo tempo. Sua pele formigava. Seu
coração se enfureceu. Mas foi uma correria. Uma febre e emoção que
a iluminou. Pura magia.
E então, a luz se apagou, os fios de cabelo e o barbante
vermelho se transformaram em cinzas, em nada.
Lina olhou de seus dedos vazios e formigantes para o céu.
Mas não havia mudado. Os relâmpagos ainda dançavam
exibidamente através das nuvens desoladas. O trovão ainda
retumbava.
Seu estômago afundou. Ela falhou.
Eva estendeu a mão. Lina aceitou desamparadamente, se
juntando a ela na balaustrada, curvada, preparada para o vento, para
o frio gelado da chuva.
Algo quente pousou em seu ombro nu. Ela se encolheu, mas o
calor simplesmente derreteu em sua pele, enviando pequenas ondas
de quentura. Algo incrivelmente brilhante atingiu a ponta de seu nariz.
Fogo a cumprimentou quando ela jogou a cabeça para trás, os olhos
se arregalando. Pequenas lágrimas de chamas escorriam do céu,
pequenas faíscas no lugar da chuva, apagando-se assim que
atingiam a pele ou a pedra da varanda.
O pedaço de céu logo acima estava em chamas, uma única
nuvem de tempestade chorava laranja, carmesim e ouro. Lina abriu a
boca, pegando pingos de fogo com os lábios, na ponta da língua,
quente e apimentado. Eva roçou contra seu lado, um tipo diferente de
calor, inclinando-se para ser ouvida acima do trovão retumbante,
cabelos rebeldes ao vento.
— Um pouco mais emocionante do que trançar o cabelo uma da
outra, não? — Seu tom era tão presunçoso que Lina queria empurrá-
la para fora da varanda.
Mas ela não conseguia parar de brincar com a chuva de fogo
caindo sobre elas como estrelas cadentes. Ela juntou as mãos em
concha e pequenas línguas de fogo se juntaram entre as palmas das
mãos.
— Não há razão para não podermos fazer as duas coisas. Não
poderíamos fazer isso com a maré, transformá-la em outra coisa? E
se trabalhássemos juntas assim? Posso te ajudar. Me deixe te ajudar.
O fogo também estava se acumulando entre as palmas das
mãos de Eva, pequenas lágrimas laranja dançando.
— Você não desiste nunca, né? — Seu tom era tanto
exasperado quanto algo mais. — Nunca descansa?
— Não. — O medo não me deixa.
E ela teve que segurar seus medos, manter o foco, porque era
tão fácil se distrair aqui, por tudo isso, por todas as suas perguntas
não respondidas.
Por que disse que o sacrifício não poderia ser ninguém além de
mim?
Eva moldou as chamas que ela pegou em uma banda, uma
argola de fogo dançante e mutante que ela colocou na cabeça de
Lina. Uma coroa de luz para combinar com a sua escura.
— Para uma bruxa em potencial — Havia algo tão solene, tão
deliberadamente grandioso no gesto que Lina quase riu.
Em vez disso, seu estômago revirou. Elas estavam muito perto.
As mãos de Eva na argola, roçando suas têmporas, emoldurando seu
rosto. O queixo de Eva está inclinado para baixo, o dela inclinado
para cima. Quase como se... como se estivessem prestes a... A
respiração de Eva engatou como se ela também tivesse acabado de
perceber...
— Por que você teve que vir aqui? — Ela parecia zangada.
— O que você quis dizer com… — disse Lina.
Uma boca pressionou contra a dela. Suave. Firme. Insistente.
Ah.
As mãos de Eva se enroscaram no cabelo de Lina. Os lábios de
Lina se separaram em surpresa. O calor mergulhou através de seu
centro. Seu coração batia tão forte que ela podia senti-lo por todo o
corpo.
Ela chupou o lábio inferior de Eva em sua boca, o sangue
correndo por ela como chamas quando Eva inalou bruscamente. Algo
escuro e violento se enrolou em seu estômago. Uma emoção, cruel e
chocante como a vitória. Suas mãos agarraram os quadris de Eva
com força suficiente para deixar hematomas. Dedos apertados e
atados no cabelo de Lina, quase dolorosos, puxando-a
impossivelmente para mais perto. E algo dentro dela se soltou, a
fechadura arrancada de uma porta que ela não sabia que existia,
infinitas possibilidades se espalhando. Por que nunca tinha pensado
nisso? Ela era a chuva… transformada. Flutuando e queimando e
caindo, caindo, caindo.
O raspar das unhas enviou arrepios em seu couro cabeludo.
Seus narizes bateram. As chamas estavam chovendo ao redor delas.
Lina não conseguia recuperar o fôlego. Ela não sabia se estava
fazendo isso certo ou se...
Eva mordiscou o lábio e uma sacudida serpenteou através de
Lina como um relâmpago. As partes macias e curvas dela pareciam
se encaixar e se ajustar e pressionar nas partes macias e curvas de
Eva, como se fosse para isso que foram feitas. Ela estava em
chamas, tonta com a sensação da boca de Eva se fechando sobre a
sua, a necessidade escalando. Ela precisava chegar mais perto,
precisava…
Lina se afastou para respirar. Eva olhou para ela. Lábios
inchados. Olhos abertos. O cabelo preto em um emaranhado
selvagem, puxado para trás, expondo seu rosto chocado. Ela olhou
para Lina como se ela fosse algo surpreendente, algo estranho, como
nada que já tinha visto antes.
Os lábios de Lina latejavam. Seu coração batia em um ritmo
doloroso.
O que você está fazendo?
O que você está fazendo o que você está fazendo o que você
está fazendo?
Ela estava quase agradecida pelo grito.
Isso fez as duas pularem. Um grito fraco e penetrante de algum
lugar dentro do Palácio da Água.
Lina se livrou do toque de Eva, correndo para dentro,
tropeçando pelas cortinas grossas e atravessando o salão nebuloso e
adocicado, passando rapidamente pela mesa, pela sala baixa, sem
saber se estava correndo em direção ao som ou para longe de Eva.
Seu coração bateu contra sua caixa torácica.
O que você está fazendo o que você está fazendo o que você
está fazendo?
Ah, Deus.
Ela não queria isso. Não queria se sentir assim. Era tudo culpa
de Eva.
O arrastar de suas meias no tapete se tornou um esmagar.
Lina parou, olhou para baixo.
O tapete estava vermelho-vinho, ficando mais escuro para uma
cor de sangue velho enquanto a água escorria pela fresta entre o
chão e a porta do salão com glifos brilhantes, uma grande meia-lua
sangrando para fora.
Eva passou correndo, os sapatos de dança prateados que ela
ainda usava pisando levemente, brilhando com fogo de diamante
enquanto abria a porta. Ela não agiu contra a sua vontade. Uma
parede de horror e som frios as atingiu enquanto elas irrompiam,
corpos colidindo com um bando de bruxas e bruxos gritando, fugindo
por um corredor escuro enquanto altas ondas negras como tinta
quebravam em uma curva.
A maré negra veio para colher o que lhe era devido, para pegar
o que lhe foi prometido, o que lhe foi negado por dois longos anos.
Sangue drenou do rosto de Lina. A água se movia como uma
coisa viva que respirava. Serpentina e voraz. Derramando-se pelo
corredor com intenção deliberada, jorrando ansiosamente pelo chão,
alcançando, tocando, provando. A escuridão líquida arranhou os
dedos pretos e molhados. Dentes de espuma e esponja rasparam ao
longo das paredes, ficando brancos e mordendo.
Lina não se moveu rápido o suficiente. Ondas quebravam em
sua cabeça com força suficiente para varrer ela do chão, arrastar ela
para baixo, engolir ela inteira. Ela caiu em uma bola, água salgada
inundando seu nariz, sua boca, suas orelhas. Espirrou e esbofeteou
outros corpos gritando, se contorcendo e se afogando.
Mãos ásperas a agarraram pelos cabelos, rasgando seu couro
cabeludo, puxando-a para cima. Ela engasgou quando explodiu do
porão da água. Ela agarrou Eva por sua preciosa vida.
— Marcin! — Eva estava gritando enquanto cabelos ruivos
passavam. A água fervia, sibilando sua fome, turvando e girando em
torno de seus joelhos, suas cinturas. Luz ondulando em sua pele
escura como breu, teia sobre o teto.
Marcin estava lutando para ficar de pé contra a ondulação,
lutando contra o empurrão e puxão feroz das ondas. Ele pescou um
bruxinho fora da correnteza, puxou o menino por cima do ombro.
O aperto de Eva afrouxou no cabelo de Lina. Ela empurrou Lina
de volta pela porta de onde tinham acabado de sair, uma pequena
onda indo com ela, vomitando no salão, encharcando mais o tapete
vermelho-vinho.
Lina tropeçou, pegando-se contra a parte de trás do salão baixo.
Eva agarrou a beirada da porta, o rosto sombrio enquanto ela a
fechava.
— Fique aqui.
Lina

Lina não ficou.


A inação era uma agonia. Não havia uma força na terra que
pudesse mantê-la quieta. Seus dedos se curvaram ao redor da
maçaneta da porta um segundo depois que Eva a empurrou para a
segurança.
Ela fugiu do salão, o medo perseguindo-a porta após porta e
após porta, através de salas alegremente livres daquela onda
retorcida e viva. Ela correu até se encontrar de volta em seu quarto
com piso de mármore, tropeçando pelas telas de âmbar e folha de
ouro, desmoronando, tremendo, em um sofá-cama em estado de
choque.
Ninguém a perseguiu.
Minutos se passaram. Então horas. Horas em que sua mente se
recusava a parar de girar. Seus pensamentos inundaram com muitos
cenários terríveis para banir com uma barganha mágica ou um toque
na parede.
Tinha sido assim para Thomas quando ele foi levado? Ele se
sentiu tão perdido e sozinho, tão assustado? Tão confuso? Tão
indefeso? Os olhos de Lina queimaram. Ela bateu furiosamente em
seu rosto enquanto uma lágrima escapou para escorrer por sua
bochecha.
A pequena cobra de recife que Eva lhe dera deslizou de debaixo
de um travesseiro, enrolando suas listras em torno de seu pulso e
dedos como se fosse apertar sua mão.
Lina libertou a pequena criatura, andando para cima e para
baixo, para cima e para baixo, ignorando a dor crescente no
tornozelo, quase gostando, porque ela merecia dor e porque, pelo
menos, isso era familiar, isso ela conseguia lidar. Seus olhos
deslizaram sem ver o caos de presentes mágicos enquanto ela lutava
para pensar em algo, qualquer coisa, além do que havia acontecido
na varanda de Eva antes que a maré escura viesse reivindicar o que
era devido.
Para reivindicá-la.
O que o mar quer, o mar terá, como diziam os marinheiros.
De repente, ela não suportou as roupas ainda úmidas grudadas
nela. Parecia que ela tinha sido lambida, engolida, provada e depois
cuspida. Lina se despiu, colocando um vestido verde curto e brilhante,
com luvas combinando. Ela amarrou suas contas de coral vermelho
em um nó duplo em volta do pescoço e se sentiu um pouco mais no
controle. O ritual familiar acalmou seus nervos. Era como se maquiar
antes de uma performance, como colocar uma armadura, como se
preparar para a guerra.
Ela penteou a franja, escovou o cabelo liso e úmido,
estremecendo com o estado de suas raízes. Passou batom, blush nas
bochechas, pintou os olhos com sombra.
Continue se movendo. Faça alguma coisa. Não pense.
Não pense.
Um zumbido atravessou sua pele enquanto ela pegava o pente
que Eva lhe dera, o polegar deslizando sobre o barbante vermelho e
os sedosos fios pretos enfiados nos dentes brilhantes. O calor
inundou as bochechas de Lina, e ela hesitou, depois enfiou o pente
de volta no sutiã. Um presente era um presente. E sempre era útil ter
um pedaço de magia de emergência, não importava de onde viesse.
Não importa a bruxa de onde veio.
Onde estava Eva agora? Aquelas ondas negras a levaram
embora, a afogaram nos corredores escuros de seu próprio palácio?
Afogaram todas as bruxas? Talvez Lina fosse a única aqui viva.
Talvez fosse o melhor. Agora que estava mais calma, Lina
achava que nunca mais conseguiria encarar ninguém, especialmente
Eva.
Seus dedos se ergueram interrogativamente para traçar seus
lábios, como se ela pudesse recapturar a sensação da boca de Eva
caindo sobre a sua.
O que foi mesmo aquele beijo?
E por que ela gostou?
Lina sabia como deveria ser o amor. Ela sabia o que deveria
querer, quem ela deveria querer. Foi criada com histórias
arrebatadoras de carícias suaves e doces, histórias de mãos dadas,
borboletas flutuando no estômago e romance épico e de língua presa.
Ela não queria segurar a mão de Eva. Ela queria empurrá-la
contra a parede e gritar.
— O que você fez comigo? — Ela queria machucar os quadris
quando a beijou. Gostou de quão poderosa ela se sentiu. Quando
pensava em Eva, não havia borboletas; apenas este bater quente em
seu estômago, como uma emoção, como adrenalina. Este violento
ritmo desigual de seu coração.
Tentando conciliar o que ela estava sentindo naquele momento
com todas aquelas histórias suaves e doces, com todas as cenas que
ela havia ensaiado em sua cabeça, com tudo o que ela sabia... Ela
não sabia mais. E se o que pensava ser amor não fosse o que
qualquer outra pessoa sentia quando dizia a palavra? Como ela
poderia saber se o que estava sentindo estava certo? Era amor de
verdade?
Lina caminhou para a varanda. A chuva ainda caía, mas agora
como névoa, não como fogo. Nuvens cinzentas comuns se agitaram e
se prepararam para o próximo ataque brutal.
A sombra de uma ave marinha solitária se enfiou na escuridão.
Lina agarrou a balaustrada na altura do quadril, a única coisa entre
ela e o mar abaixo.
As ondas pareciam mais próximas do que um dia atrás? A água
escura estava subindo mais alto?
E o que dizer da lua? Na noite anterior, o céu devastado pela
tempestade a havia escondido. Quão cheia e maior ela tinha
crescido?
Ela tentou se distrair com uma história, buscando refúgio na
fantasia e imaginações selvagens, se vendo em um tempo diferente,
em um lugar diferente.
Não funcionou.
A varanda dava para a cidade e, mesmo na penumbra nublada,
Caldella era claramente visível, uma tapeçaria desbotada em tons
pastéis de casas urbanas e ruas sinuosas de paralelepípedos. A ilha
crescente parecia frágil de alguma forma, esguia, como a lua no dia
antes de escurecer. Ondas com dentes brancos roeram suas bordas,
engolindo distritos pedaço por pedaço. A água negra serpenteava em
direção ao centro da cidade em veias inchadas e doentias.
Algo ficou preso na garganta de Lina. Sua bela cidade de conto
de fadas. Sua cidade naufragando. Sua casa.
Afundando.
Ela se afastou da balaustrada, os dedos brancos.
Pelo menos se Eva... Eva realmente se importava? Seria
possível que ela realmente...
Era terrível da parte de Lina querer acreditar nisso, querer isso,
seu estômago revirar com o pensamento? Pensar que ela, de todas
as pessoas, poderia ter capturado o coração da malvada Rainha das
Bruxas? Uma garota que as pessoas diziam não ter coração?
O próprio coração de Lina pulou uma batida.
Ela afastou o pensamento.
Pelo menos se a magia funcionasse, sua morte significaria
alguma coisa. Finley estava lá fora, e tio e Laolao e todas as tias e
primos dela, e Mainha e Mamis estavam navegando para casa.
Garantir a felicidade e a sobrevivência deles era menos um sacrifício
e mais um dever dela, não era? Se ela pensasse dessa maneira...
Não. Ela não deveria estar pensando dessa maneira. Deveria
estar pensando em como poderia usar a afeição de Eva a seu favor
para se salvar. Se Eva se importasse com ela, como poderia escolher
entre salvar a pessoa que amava e salvar a todos? Seria como com
Thomas e Natalia.
E, no entanto, só de pensar nisso, pensar em tirar vantagem dos
sentimentos de alguém assim, alguém que ela poderia até...
Algo dentro de Lina se rebelou. Uma explosão de pânico como
um pássaro apanhado esvoaçando dentro de sua caixa torácica.
Uma voz flutuou para a varanda, chamando seu nome. Lina se
virou, lutando contra as cortinas da varanda, rendas finas presas
como teias de aranha em seus braços, seu rosto, vendando-a antes
que ela tropeçasse no abraço caloroso da sala.
Um menino estava passando pelas telas de âmbar e folha de
ouro, um menino com pele bronzeada e cabelo beijado pelo sol. Um
menino com roupas encharcadas e molhadas pela tempestade. O
menino que uma vez a carregou para casa quando ela torceu o
tornozelo. Lina parou congelada. Thomas correu para a frente.
Lanternas âmbar balançando no teto desbotaram a cena como uma
fotografia antiga.
Ele não parecia real. Parecia alguém de um sonho, alguém que
ela estava lutando para lembrar, para agarrar a forma. Quem era
Thomas Lin? Quão bem ela realmente o conhecia?
Ele parou diante dela.
— Lina.
A maneira como ele disse o nome dela, como uma oração ou
um desejo, transformou suas pernas em geléia. Toda a sua antiga
timidez voltou. Mil perguntas passaram por sua mente, mil coisas que
ela desejava dizer, queria gritar. Uma parte estranha dela queria se
desculpar. Mas o que saiu foi uma pergunta. A última que ela
esperava perguntar.
— Você se importava com ela? Natalia?
Você a amou? Ela te beijou? Você gostou?
Ou eu sou a única estranha, tendo todos esses sentimentos
confusos por uma bruxa?
O rosto de Thomas se fechou. Seu olhar caiu para o chão. Ele
ficou em silêncio por um longo, longo momento.
Um momento em que Lina mal conseguia respirar.
— Não sei — Thomas passou a mão na nuca. —
Verdadeiramente. Mas o que mais eu poderia fazer? Pensei que, se
eu a fizesse se importar o suficiente comigo, ela não iria continuar
com isso, e eu rapidamente percebi que poderia fazê-la se importar.
Eu sei o que as garotas gostam. Sei que garotas gostam de mim. E
ela era fácil. Mesmo que fosse a Rainha das Bruxas e as pessoas
dissessem que ela era má. Ela era quieta e um pouco tímida.
Algo dentro de Lina se estilhaçou.
— No começo, eu a odiava. Na festa, pensei que estava
beijando essa garota que eu gostava, e então o rosto de Ula mudou,
e então eu estava aqui. Encurralado. Esperando para morrer como
todos aqueles outros garotos. Acho... acho que odiava todo mundo na
época. Todo mundo deixa isso acontecer ano após ano, e ninguém
tenta impedir. Apenas aceitam, celebram, como se não tivéssemos
outra escolha. Mas depois… — A expressão de Thomas era de dor.
— Quando você está agindo como se estivesse apaixonado o tempo
todo, é impossível não… não… tudo começa a se confundir, o que é
verdade e onde a mentira termina.
Desempenhe um papel por tempo suficiente e ele começa a se
tornar real.
Lina engoliu o nó na garganta. Ela sabia a verdade disso
dançando, sabia disso pelas fantasias que criava para si mesma,
quando ela roubava coragem da imagem de Natalia segurando forte
contra a maré, quando ela cantarolava a canção da garota que tinha
segurado seu amante através de encantamento e fogo, fingindo que
era corajosa até que ela fosse corajosa.
Ela conhecia o poder de fingir.
Thomas respirou fundo.
— Disseram que queriam que isso parasse também. Eva tentou
encontrar outra maneira de acalmar a maré para que eu não tivesse
que ser sacrificado, para que eu pudesse ficar com Natalia. Todos
nós tentamos, Natalia e Eva e outra bruxa chamada Yara, e eu. Isso
nos uniu, esse desespero, mais do que qualquer outra coisa poderia
ter. Mas Eva está diferente agora. Mais fria.
Por sua causa, Lina queria dizer, mas não disse. Soava muito
como uma acusação.
E talvez fosse.
— Eu nunca esperei… nunca pensei que as coisas terminariam
do jeito que terminaram. Eu pensei que se fizesse Natalia se importar
comigo, ela me deixaria ir. Isso era tudo que eu queria. Eu tentei tanto
ser forte, mas Deus me ajude, eu estava com tanto medo. Não queria
morrer. E quando nada estava funcionando, pensei que se contasse a
ela... Aqueles livros diziam tantas coisas. Ela prometeu que não me
deixaria… — A voz de Thomas falhou.
A dor começou em algum lugar no fundo da medula de Lina.
Thomas se aproximou, apertando ambas as suas mãos nas
dele, as palmas calejadas e quentes através das luvas.
— Eu sei que não sou uma boa pessoa, Lina. Não como você. E
quando aconteceu tudo de novo com você, continuei sendo um
covarde. Eu ainda não queria morrer. Não conseguia me mexer. Eu
deixei você tomar o meu lugar como ela fez. Mas eu quero mudar.
Falhei com você na regata, mas não vou falhar agora. Finley tem um
barco...
— Finley? — Lina levou a mão à boca.
Finley em seu barco navegando desesperadamente ao redor do
Palácio da Água.
Porque seu irmão era tão teimoso em não desistir quanto ela.
Por um instante, a expressão de Thomas ficou triste, e a leve
descoloração sob seu olho esquerdo de repente parecia muito com
uma contusão desaparecendo.
— Seu irmão tem bastante temperamento. Mas ele não ia
recusar a ajuda. Conheço melhor o palácio. Ele está distraindo Yara
enquanto eu busco você. — Ele puxou as mãos dela. — Venha,
temos que nos apressar antes que a tempestade aumente. É quase
uma lua cheia.
Os pés de Lina estavam enraizados no chão.
— Mas a ilha.
— Se sacrificar não vai resolver nada. Salvar Caldella significa
apenas outro sacrifício no próximo ano. E no ano seguinte, e no ano
seguinte. Mais vidas inocentes. Esta ilha é amaldiçoada. Isso nunca
vai acabar. Você realmente quer fazer parte disso? — As bochechas
de Thomas escureceram de cor. — Venha comigo. Na festa você
disse que iria me segurar. Sei que nunca… não tive coragem de dizer
como me sentia antes. Mas eu preciso de você, Lina. Você veio atrás
de mim, não foi? Estava disposta a desistir de tudo por mim.
O coração de Lina disparou.
— Eu… — Por um segundo ela viu, sonhou, viveu, uma versão
do mundo onde ela pegava a mão dele e deixava o palácio, escapava
da bruxa malvada e da maré faminta, a ilha amaldiçoada, e navegava
para longe com o menino que ela…
Amava?
As palavras ficaram presas em sua garganta.
Ah, por que ele não veio antes? Por que não veio buscá-la antes
que as coisas ficassem confusas?
— Lina?
Um estrondo distante de trovão a salvou de responder.
Thomas lançou um olhar cauteloso por cima do ombro.
— Precisamos ir agora. — Ele foi até o sofá-cama, vasculhando
seus presentes. — Te deram presentes, não? Magia? — Ele jogou
um vestido no chão. Uma garrafa de feitiço caiu atrás dele,
quebrando. A pequena cobra do recife soltou um silvo mordaz.
Thomas pulou e jogou um travesseiro nela.
Lina estremeceu.
— Não! — Havia algo de violador sobre ele destruir todas as
coisas que Eva lhe dera.
— Aqui, vamos levar isso. — Ele pegou um punhado de pérolas
negras e pegou a mão dela novamente. — São boas para encantar
as portas. Aqui. — Ele entregou a ela um remo de madeira que havia
deixado encostado em uma das telas de âmbar. Os barcos-vassouras
não precisavam deles; ele trouxe como uma arma?
— Vamos, seu irmão está esperando. — Ele sorriu suavemente
então, tão orgulhoso e tão cheio de esperança. — Viemos te resgatar.
Lina não conseguiu dizer nada quando ele a puxou pela sala e
saiu pela porta.
Eva

Salpicos, e o suave tilintar dos sinos de vento alcançaram Eva


antes que Cyla se apressasse à vista. Água negra escorria sob todas
as portas fechadas deste nível do palácio, um dos mais baixos. Poças
florescendo sombriamente, comendo o chão. A luz âmbar da lanterna
brilhou em sua superfície vítrea.
A maré lambeu os calcanhares de Eva, os brilhantes sapatos de
dança prateados que ela ainda não havia tirado. Ela protegeu este
andar, não foi? Selou essas portas? Desceu aqui apenas alguns
minutos atrás? Sal espalhado, areia despejada misturada com o
sangue de seus irmãos em círculos deliberados, empurrando o mar
para trás com pura vontade selvagem enquanto lutava para tomar a
fortaleza que a terceira Rainha das Bruxas ergueu das profundezas e
fez seu lar.
Ela esteve nisso por horas e horas. A pressa ansiosa da água
vivia dentro dela agora. Era tudo o que ela podia ouvir, aquele
sussurro amaldiçoado, aquele tamborilar das ondas batendo em uma
praia distante.
— Precisamos seguir o ritual. Faça o sacrifício. — O rosto de
Cyla estava tenso de preocupação. Ela colocou seus cachos
prateados sobre um ombro, espirrando nas poças, chegando mais
perto.
— Ainda não é lua cheia.
— Não vai importar. A maré está voraz, Eva. Marcin tem metade
do palácio fazendo as malas para partir. Se você quer que fiquemos,
se quer que a sigamos e não ele…
Uma onda de irritação incendiou o sangue de Eva. Ela disse a
Marcin que não iam abandonar a ilha. Ela disse a ele para proteger as
portas contra novas inundações. E, no entanto, quando suas
próximas palavras escaparam, não havia calor ou convicção real por
trás delas. Seus braços e pernas estavam pesados, âncoras pesadas
pesando sobre ela. Sua coroa era uma faixa de pressão ficando cada
vez mais apertada enquanto circundava sua testa.
Ela estava tão dolorosamente cansada.
— Oferecer um sacrifício sem a lua cheia para desenhar, sem
um amplificador natural, sem o balanço da lua sobre o mar —
começou ela. — tomaria muito de mim.
A magia não era inesgotável. Você tinha tanto quanto tinha,
você era tanto quanto era, e quando uma bruxa se consumia, ela
desaparecia da existência como os fios de um sonho ao acordar. Jun,
que obviamente estava do lado de Marcin, protestou em voz alta
quando ela ordenou que ele mandasse a tempestade embora,
dizendo que era muito violenta, muito vasta.
— Magia desse tamanho e escala? Me extinguiria banir tudo.
Posso acalmar partes, talvez, com ajuda. Vou precisar de todos para
tecer escadas para mim.
Eva também tinha usado muita magia ultimamente, tinha sido
imprudente com isso. Ela sempre foi imprudente, se recusando a
receber o dízimo porque era vaidosa o suficiente para pensar que
tinha tanta magia que não precisava roubar dos outros.
Ela estava usando constantemente para impressionar Lina.
Porque ela gostava do jeito que Lina olhava para ela quando ela fazia
magia, como se ela fosse pura magia. Era terrivelmente fácil ficar
viciada em olhos que olhavam para você dessa maneira.
Eva olhou para a areia que estava espalhando, como se
tentasse ler suas linhas em busca de presságios e sinais. Pela
milésima vez, ela tentou esquecer Lina. Toda vez que pensava na
outra garota, seu corpo reagia como se ela fosse pega novamente
naquele momento na varanda, o fogo caindo como chuva ao redor
delas, a pele ganhando vida onde quer que tocassem, o coração de
Lina batendo tão rápido, tão forte que ela podia sentir. Um trovão
compartilhado que encheu o vazio dentro de seu peito. Como se o
coração de Lina estivesse batendo por ambos.
— Nós podemos te ajudar — disse Cyla. — Te emprestar nossa
força, nossa magia. Pegar um pouco do fardo. Nós costumávamos
fazer isso, com Natalia. É você que nunca nos deixa ajudá-la.
Suor frio escorria pelas costas de Eva. As poças lambiam seus
sapatos. Ela podia ver Lina de repente naquela água estranhamente
ondulante. Aqueles olhos cinza-tempestade comidos por caranguejos,
aqueles cabelos dourados como o sol emaranhados com capim-
enguia e conchas de ostras, resmas de velhas linhas de pesca. Os
lábios pintados de um frio azul cadavérico.
Ela piscou, e a visão desapareceu.
— Um sacrifício deve ser feito para apaziguar a maré — disse
Cyla. — Escolha bem. Não cometa o mesmo erro que sua irmã
cometeu.
Eva se encolheu. Ela não cometeria. Nunca cometeria o mesmo
erro. Ela faria como todas as rainhas de Caldella fizeram durante
séculos: sacrificaria seu coração para salvar sua cidade. Pagaria o
preço do sangue para proteger sua casa, proteger sua família, seus
súditos.
Não importa o que sinto, Natalia costumava dizer. Eu sou a
rainha da ilha. Tenho um dever.
Um dever de sacrificar uma vida para salvar milhares de outras.
Eva sempre soube que chegaria a isso. Lina também não sabia?
Ela não tinha causado isso a si mesma?
Ela não estava desesperada para encontrar outro caminho? Não
disse que não queria morrer?
Eva tinha um pressentimento muito forte de que Lina iria
encontrar uma maneira de voltar e assombrá-la. Mas isso, no mínimo,
tornaria a vida interessante.
Até suportável.
Eva engoliu a onda de emoção em sua garganta.
— Chame Yara — Sua voz vacilou. De repente, ela precisava de
Yara. Precisava muito dela. Não sabia se poderia fazer isso sozinha,
não queria ficar sozinha quando Lina...
Isso a chocou, porque ela sempre quis ficar sozinha. Preferia.
Eva não gostava de pessoas.
Mas também havia uma pequena parte dela que ansiava por ser
conhecida, que ansiava por companhia em pequenos lapsos entre
meses de solidão satisfeita. Iria explodir sobre ela como a luz do sol
depois de uma tempestade, essa súbita fúria de desejo.
O que Yara estava fazendo? Onde ela estava? Ela a enviara
para lidar com o irmão de Lina, para enviar seu barco de volta, para
lembrá-lo de que o que ele estava tentando era traição. Era
necessário um sacrifício. Lina se ofereceu para fazer isso.
Eva pressionou o polegar no lábio inferior, mordendo com força.
Omar não disse que os ilhéus estavam se voltando contra as bruxas?
Se o irmão de Lina tivesse ousado atacar Yara... ou Yara estava
apenas distraída por seu rosto bonito?
Cyla colocou a palma da mão insistente no antebraço de Eva.
— Tome a decisão certa. Você sabe o que está em jogo.
— Eu sei. Eu vou — Eva retrucou.
Isso, tudo isso, foi por isso que ela abandonou seu coração.
Porque apesar de suas melhores tentativas de não deixar ninguém
entrar, pessoas irritantes continuavam se esgueirando pelas
rachaduras de alguma forma. Ela ainda se importava, ainda amava.
Ainda doía.
— Natalia te fez rainha por um motivo — disse Cyla.
Porque a irmã dela deve ter acreditado que ela era forte o
suficiente para fazer isso. Ela havia confiado a Eva a ilha que amava.
No entanto, uma parte de Eva não conseguia acreditar que
Natalia a havia prendido voluntariamente nesta jaula da qual ela
estava tão ansiosa para escapar.
Eva foi até a porta mais próxima, segurando a maçaneta com
força mortal, dando um único aceno de cabeça.
— Reúna o que for necessário, quem for necessário. Prepare-se
para partir para a Praça de São Casimiro. Faremos o sacrifício mais
cedo. Não vou deixar nossa casa afundar. Eu mesma levarei Lina
Kirk.
O alívio apareceu claramente no rosto de Cyla.
Eva abriu a porta, entrando com um pequeno jorro de água, os
saltos batendo no chão frio de mármore, ignorando a dor agonizante
no buraco onde seu coração estivera. Seu olhar se ergueu a
contragosto, pulando pelas telas de âmbar e folha de ouro, patinando
sobre o sofá-cama vazio. Observando o feitiço engarrafado
estilhaçado no chão.
Uma onda de inquietação a invadiu.
Cyla verificou a sacada. Retornou, os sinos em seu cabelo
soando em seu rastro. Soando como sinos funerários.
— Ela não está aqui. Para onde ela iria?
Eva mordeu a ponta do polegar novamente.
— Não sei. Apenas encontre-a.
Lina

As portas não estavam cooperando.


Não importava como Thomas implorava enquanto Lina ficava
muda ao seu lado. Era como se o Palácio da Água soubesse o que
estava acontecendo e estivesse reorganizando seus quartos para
impedir que seus convidados escapassem. Quando Lina saiu de uma
sala de chá vazia para um corredor familiar forrado de varandas, seu
estômago apertou com o menor indício de alívio culpado.
Mas não é isso que você queria?
Ela apertou o remo de madeira contra o peito, tentando não
imaginar o que aconteceria se Eva os pegasse fugindo juntos.
Tentando não se sentir culpada por estarem fugindo. Ela não deveria
se sentir culpada. Eva foi quem lhe disse para ser mais egoísta, mais
terrível, para se colocar em primeiro lugar. Era isso que Eva queria.
Portas pontilhavam a parede oposta à linha de sacadas. Thomas
pegou outra maçaneta de latão, mas ela se soltou de sua mão e foi
aberta por alguém do outro lado.
Lina não poderia dizer quem parecia mais surpreso, Thomas ou
Marcin. Um relâmpago brilhando lá fora iluminou seu cabelo ruivo,
reluzindo em seus grandes olhos castanhos.
— Bem, isso eu definitivamente não estava esperando. —
Quando a porta se fechou atrás dele, o olhar de Marcin passou entre
eles, seus lábios se curvando. — Mas suponho que lhe disse — disse
ele a Lina —, para concentrar sua energia em fugir daqui. E Thomas
Lin, você realmente não consegue ficar longe. Isso é bom. Não,
excelente. Eu teria odiado deixar a ilha sem te dar o adeus que você
merece.
Thomas ficou tenso.
— Deixar? — Lina se moveu na frente de Thomas, pulso
acelerado. — O que quer dizer com deixar? E você não pode tocá-lo.
Eva prometeu.
— Eva prometeu que você poderia tomar o lugar dele como
sacrifício deste ano. Nada mais. Nada menos. E ela me prometeu que
eu poderia alimentar sua serpente de estimação com ele assim que
você morresse. — Marcin sorriu quando a cor sumiu do rosto de Lina.
Não era verdade. Ele estava mentindo. Eva não faria isso.
— Nossa adorável rainha não tem coração, pequena dançarina.
Ela rasgou-o fora. — Marcin agitou a mão, enxotando-a de lado.
Lina não se mexeu. Seu aperto no remo de madeira aumentou.
Ela alcançou as costas com uma mão, encontrando o antebraço de
Thomas, pressionando uma mensagem urgente em sua pele: Vá.
Ele só precisava abrir outra porta. A próxima no corredor. Ela se
manteria entre ele e Marcin, um escudo. Ainda era o sacrifício deste
ano. Eles ainda precisavam dela. Marcin não poderia machucá-la.
Um som exasperado retumbou da garganta de Marcin. A raiva
real penetrou em sua voz agora.
— Você realmente vai se desperdiçar com ele? Ele não vale a
pena. Ele não faria o mesmo por você. Ele te deixou aqui.
— Pode ser — Lina respirou fundo. — Mas ele também voltou, e
mesmo que não tivesse… — Mesmo que não tivesse, não importava.
Ela estava fazendo a coisa certa, protegendo alguém porque ela tinha
o poder de fazer isso. Não importava se ele faria o mesmo ou se ela
estava ou não apaixonada por ele. — Você realmente acha que vou
ficar aqui e não fazer nada? Não me insulte. — Ela pressionou os
dedos mais fundo no braço de Thomas, a irritação surgindo através
dela quando ele não se moveu.
O olhar de Marcin não deixou o dela enquanto ele enfiava a mão
no bolso em busca de um cantil, tomou um longo gole e engoliu. Seus
movimentos eram firmes e controlados. Então ele lambeu um dedo e
pintou uma forma no ar tão rapidamente que ela quase não viu. A
magia ondulava pelo ar como calor. Alcançando-a, alcançando o
passado.
— Lina. — O medo na voz de Thomas a atravessou. Ele soltou
um suspiro de dor e se dobrou, batendo em suas omoplatas, jogando-
a para frente.
Ela girou em direção a ele, então de volta para Marcin,
articulando, girando com toda a graça fluida de uma dançarina.
Puxando o remo, empunhando-o como faria com uma lâmina em uma
dança de batalha.
A parte plana cortou o ar, atingindo a mandíbula de Marcin com
um crack ensurdecedor.
Um grunhido irrompeu de seus lábios quando sua cabeça caiu
para trás. Ele cambaleou contra o batente da porta, deixando cair o
frasco, xingando, sangue manchando seus dentes. Ele pegou o remo
em um aperto de deixar os nós dos dedos brancos, quando Lina
bateu nele uma segunda vez. Sua outra mão atacou, pegando-a
pelos cabelos, batendo com o rosto dela na parede de pedra.
A visão de Lina explodiu em faíscas. Fogo e agonia explodiram
em sua testa, seu nariz. Suas pernas dobraram sob ela, o mundo em
espiral preto. Sangue quente jorrou furiosamente de seu nariz, sobre
seus lábios e abaixo de seu queixo.
Do outro lado do chão, Thomas gemeu.
— Só por isso… — Marcin puxou o braço de Lina para cima,
arrancando sua luva e cuspindo em sua mão. Desenhando um
símbolo na saliva quente, desenhando magia em sua palma.
Lina tentou rolar para o lado, para usar o impulso para se
libertar, gritando quando ele torceu seu pulso violentamente. O
sangue encheu sua boca. Seu aperto era de ferro.
— Você não pode. — Suas palavras eram grossas. Seu rosto
latejava. — Eva precisa de mim. Eu preciso ser o sacrifício. A ilha vai
afundar!
— Que afunde — As palavras curtas de Marcin ecoavam as de
Thomas de antes. — Esta cidade é amaldiçoada. Tudo pode acabar
aqui se deixarmos.
Lina chutou as canelas de Marcin, fazendo-o tropeçar e cair
metade em cima dela.
— Eva não vai…
— Eva nem precisa saber que você se foi — finalizou Marcin
para ela.
Uma batida concisa soou na porta que se fechou atrás dele. Lina
abriu a boca para gritar.
— Não fale — sussurrou Marcin.
A palma dela queimava como uma marca. Uma centena de
pequenos ganchos afundaram em seus lábios e os selaram
firmemente.
— Não resista.
A ordem deslizou por seus ouvidos, penetrando profundamente
em sua medula, puxando cada fibra de seu ser. Como quando ele
roubou o controle de sua mão, puxando seus dedos para trás; uma
vontade que não era sua própria puxada por músculo, sangue, osso.
Não.
Lina esticou o pescoço. Thomas estava esparramado no tapete,
mas se arrastava.
Marcin cuspiu na própria mão e cerrou o punho.
Os lábios de Thomas se separaram, pressionaram juntos,
formaram as formas das palavras, mas nenhum som escapou. Seus
olhos ficaram frenéticos. Uma mão voou para sua boca, sua garganta.
— Olhe para mim — disse Marcin.
E Lina olhou, algo dentro dela estalando, esticado até o ponto de
ruptura. Ela virou a cabeça.
A batida concisa veio novamente, martelando no ritmo de seu
coração.
A cena nadou, ondulou, mudou, do jeito que tinha acontecido na
festa depois que Eva vestiu o rosto e beijou Thomas. As arestas
duras das feições de Marcin se suavizaram. Tranquilizaram-se. O
vergão violento que crescia em sua mandíbula desapareceu. Os
lábios pálidos ficaram rosados. As bochechas pálidas se aqueceram
em um tom arenoso. Os olhos cor de avelã ficaram cinza como uma
tempestade fria, o vermelho desvanecendo-se do cabelo curto até
ficar apenas dourado.
O sangue borbulhava do nariz de Lina, pingava de seus lábios
horrorizados, de seu queixo. Um carmesim profundo salpicava o
tapete cremoso, desabrochando como flores. O rosto dele era um
espelho do dela, menos o sangue e a angústia.
— Estou indo! — Marcin gritou, e sua voz agora era dela
também, aguda e melodiosa. Seu terno preto estava se
transformando. Ele se inclinou para perto, respiração quente e úmida
contra a orelha de Lina. — Está vendo? Ninguém vai saber que você
se foi. Aquela varanda ali? Você vai rastejar para ela. E então vai se
lançar para fora dela, no mar. Entendido? Agora acene.
Lina assentiu, e quando Marcin soltou seu braço e se virou para
a porta, virando-se para sorrir docemente para Thomas, ela começou
a rastejar em direção à sacada.
Eva

Para onde ela desapareceu, para onde foi? Eva tinha dito a Lina
para ficar quieta. Disse a ela para ficar segura no salão com a
varanda onde elas... Ela pensou que Lina havia voltado para seu
quarto, mas não estava lá.
Ela estava se escondendo?
Tinha fugido?
Uma parte de Eva estava quase feliz.
— Ah! — exclamou Cyla, olhando para trás, para a ampla
escada curva que elas tinham acabado de subir, então recuou depois
de encontrar as portas duplas no topo trancadas.
Era raro que qualquer sala no Palácio da Água fosse trancada
para Eva. Ela meio que desejou não ter dito a seus irmãos para selar
as portas nas seções inundadas do palácio. Significava fazer desvios
agora. Significava que as próprias portas estavam confusas e não
podiam conduzi-la através de suas passagens habituais.
As portas no topo da escada suspiraram suavemente agora
enquanto se abriam; Lina apareceu em um vestido verde-mar e luvas,
bochechas coradas, olhos brilhantes de malícia.
— Onde? — Eva explodiu, e a palavra foi como uma adaga
lançada, explodindo dela, arremessada no alvo mais próximo. Ela
estava ao pé da escada em um instante, passando por Cyla,
chapinhando na água escura que subia uma polegada de
profundidade pelo chão. — Para onde você foi? Por que não ficou
onde eu mandei?
Lina piscou.
— O que te deixou com tanto humor?
Você.
Sempre você.
Desde a noite da festa.
Desde o dia em que invadiu meu palácio.
Natalia tinha enfeitiçado Eva para dormir quando ela se
sacrificou, e Eva sempre sentiu como se nunca tivesse acordado
completamente daquele feitiço. Ele a manteve ali em estase,
paralisada de fúria e afogada em dor. O mundo inteiro desmoronou
com sua irmã, afundando nas profundezas, e Eva ficou lá sonhando
desde então, desmoronando como um naufrágio lentamente
apodrecendo em pedaços.
Até que Lina forçou sua entrada e fez a história se mover
novamente, um príncipe entrando em um castelo para quebrar uma
maldição. Arrancando Eva de seu sono, fazendo-a lembrar, jogando
os cobertores para trás e arrastando-a assobiando e vacilando para a
luz.
Lina desceu as escadas, parando no último degrau,
mergulhando um dedo do pé em uma poça de tinta com uma
expressão de mau gosto.
— Está muito molhado aqui, não?
Eva cerrou os dentes, torcendo as mãos no tecido do vestido só
para ter algo para fazer com elas. A água escorria do teto, pingava
como saliva pelas paredes espelhadas.
— Cyla — ela chamou. — Pode reunir os outros agora. Diga a
Marcin que ele deve ficar para trás e conter essa inundação sozinho.
— Marcin — disse Cyla.
— Marcin? — perguntou Lina. — Esse é o bonitão, certo? Aonde
vocês estão indo?
Bonitão.
A pálpebra de Eva se contraiu.
— O inútil, você quer dizer. — Ela disse a ele para proteger as
portas, disse a ele que não iam deixando a ilha. Por que ele teve que
lutar com ela? Por que estava deixando a família deles em pânico,
usando o medo deles para colocar todos contra ela? Convencê-los a
sair porque ele queria sair? Foi por isso que Natalia não o deixou no
comando, porque ele não amava a ilha do jeito que ela amava. Não
era confiável para proteger sua casa do jeito que Eva faria.
— Diga que se ele não fizer isso, vou pegar um dízimo de magia
dele até que ele não tenha mais nada.
Lina endureceu.
Eva cortaria as pontas dos dedos restantes. Ela cortaria os fios
de seu cabelo vermelho fogo. Tomaria litros de seu sangue para
pingar em feitiços engarrafados, como Natalia tinha feito com as
bruxas que causavam problemas para ela. Ela tomaria toda a sua
magia. Ela ergueu o queixo em direção ao teto e fechou os olhos.
Não importa o quanto o amasse, ela o puniria desta vez, mesmo que
isso matasse uma parte dela, mesmo que isso matasse outra parte
dele.
Cyla murmurou algo inaudível e saiu, correndo escada acima,
desaparecendo pelas portas no topo.
Eva soltou um longo suspiro, recuando enquanto dedos frios
cobriam sua bochecha, afastando uma mecha de cabelo escuro de
seu rosto.
Lina colocou a mecha atrás da orelha de Eva, os dedos roçando
sua coroa. Aquela coisa pesada de aço queimado e pregos que
Marcin uma vez riu dela por escolher. Ele deu um puxão brincalhão
em sua trança e beliscou um espinho, levantando-o de sua testa.
— Por que uma coroa que alguém poderia facilmente arrancar
sua cabeça?
— Porque eu arrancaria da minha própria cabeça primeiro —
Eva retrucou, afastando as mãos dele com um tapa. — E os
esfaquearia se sequer pensassem em tentar.
Lina deixou cair a mão. Na outra, ela segurava um frasco
prateado, levando-o agora à boca.
— Onde você conseguiu isso?
— Isso? Não me deu como um dos seus presentes? — Lina
tomou um longo gole antes de oferecer a Eva. — Parece que você
poderia usar um estimulante.
O nariz de Eva enrugou.
— Você acabou de cuspir nele?
— Não. Por que eu faria isso?
Eva pegou o frasco e saboreou o calor enquanto o uísque de
malte queimava sua garganta. Ela quis ser como uma pedra, fazer de
seu rosto uma máscara.
Você consegue fazer isso. Não há outra escolha.
Ela já havia enviado Cyla na frente para reunir os outros.
— É quase lua cheia…
Talvez fosse porque elas estavam sozinhas no salão de baile
frio e pingando, cercadas por espelhos gelados, o teto alto subindo na
sombra, mas as palavras pareciam ecoar com uma terrível finalidade.
Como últimas palavras.
Eva tomou um segundo gole do frasco, mordendo os lábios.
Estavam formigando. Sua pele formigava, piscando quente-frio-
quente-frio com os nervos. De repente, ela ficou com medo de dizer a
coisa errada, de dizer a Lina para ir, correr, com medo de que ela
decidisse deixar o mundo se afogar para salvar a garota na sua
frente.
Ela empurrou o pensamento para baixo. Não havia tempo para
isso, para tristeza, para arrependimentos. — É quase lua cheia e a
maré está...Você precisa entender, eu não posso, não há outro jeito…
— Eva cambaleou. Gaguejou. Sua língua estava dormente. O mundo
estava tombando, tombando, tombando. — O que você…
O que havia no frasco?
Ela o deixou cair, o metal batendo no chão com um estrondo.
Lina a firmou, um braço em volta da cintura, segurando-a na posição
vertical com força surpreendente.
Há quanto tempo ela estava planejando isso?
As pernas de Eva se dobraram, os joelhos batendo no chão com
um estalo que ela não causou. A água encharcou seu vestido,
encharcou suas meias de seda enquanto Lina ajudou a descê-la e a
colocou ao pé da escada.
Ela segurou o rosto de Eva com as duas mãos, um aperto quase
doloroso.
— Eu teria tirado você de tudo isso. Queria tanto, mas você é
tão teimosa. Tentei te orientar com as escolhas certas. Eu tentei te
segurar. Mas não aguento mais seu peso, Eva, não se isso significar
manter minha própria cabeça acima da água. Não se isso significar
evitar que todos nós nos afoguemos. Não posso ver esta ilha destruir
você. Não consegue ver o que ela fez com você? Está te devorando
viva como fez com Natalia.
Lábios frios pressionaram um beijo em sua testa.
— Você teria até mesmo levado minha magia. Cortado pedaços
de mim de bom grado. Sabe como é ter sua magia roubada de você?
Ver como seus ossos são reduzidos a pó e aspergidos em poções?
Você me fez fazer isso. Você não me deu escolha.
As pálpebras de Eva tremeram, as palavras não faziam sentido.
A consciência era uma vela gotejante. No entanto, ela não pôde
deixar de sorrir, uma última torção agridoce de seus lábios, um
estranho triunfo cantando em suas veias enquanto ela deslizava
lentamente na escuridão. Ela não havia dito desde o início que se
importar só te machucava, que se importar te matava?
Havia uma certa satisfação selvagem em saber que ela estava
certa, mesmo agora, no final.
Porque era o fim. Lina atravessou o salão, abrindo as portas do
outro lado do salão de baile, deixando entrar uma grande onda de
água negra, parando para dar as boas-vindas à maré.
Eva podia sentir o cheiro de algas velhas, peixes velhos. O
cheiro picante da caverna do mar. A porta deve ter se aberto nela.
Sua visão focava e desfocava. Ela se concentrou uma última vez em
Lina enquanto ela corria de volta, perseguida pela água que agora
estava caindo sobre Eva, escapando pela escada, deixando-a lá para
se afogar.
Lina

Lina não podia lutar contra aquilo.


Aquela varanda ali? Você vai rastejar para ela. E então vai se
jogar para fora dela, no mar.
A vontade de Marcin era como um peso pressionando seu
corpo, dedos ásperos forçando seu caminho em sua mente,
arrancando o controle de músculos e ossos, ordenando que ela
rastejasse, forçando-a a continuar.
Ela não conseguia se conter. Não conseguia parar seu corpo.
Ela era uma prisioneira dentro dele, gritando até ficar rouca. Coisas
terríveis estavam acontecendo com Thomas, com Eva, e não havia
nada, nada, que ela pudesse fazer para impedir.
Por que você é tão fraca? Por que está deixando isso
acontecer? Lute contra isso. Resista.
O vestido de Lina se arrastava pela pedra escorregadia pela
chuva, joelhos e palmas das mãos arranhados. Por que ela não
conseguiu parar? Por que não era tão forte quanto as garotas das
histórias?
Mas isso não era uma história. Isso estava realmente
acontecendo, e ela era muito fraca.
Suas unhas se partiram e sangraram enquanto ela lutava para
cravá-las no chão, para cravá-las em alguma rachadura, tentando
desesperadamente, lutando contra cada centímetro de movimento
enquanto seu corpo se arrastava para ficar de pé e escalava a
balaustrada gelada e escorregadia.
Por um instante, ela parou ali, sentada escarranchada, como se
tivesse simplesmente saltado para fora para ficar ociosa e balançar
as pernas sobre os salpicos tempestuosos do mar. O cabelo molhado
cobria suas bochechas. Cada nervo gritava não. A chuva escorregou
entre seus lábios enquanto ela balançava, inclinada, esbofeteada pelo
vento. Ela olhou para baixo e sabia, sabia que ia quebrar quando
atingisse aquela escuridão líquida turva lá embaixo. Sabia que
sentiria, ouviria, aquele terrível estalo úmido enquanto ela quebrava
as ondas.
Por favor. Não.
Seu corpo não ouviu. Não havia ninguém lá para ajudar. Lina
inclinou-se para a frente, as pernas e o corpo deslizando,
escorregando da balaustrada com um sussurro, um suspiro
arrependido de seda.
Ela caiu como uma estrela, mais rápido que a chuva,
mergulhando, despencando em direção à água negra da meia-noite.
Momentos passando em batimentos cardíacos rápidos, vento
gritando em seus ouvidos. Caindo para baixo, para baixo, para baixo.
O mar correu para encontrá-la, a superfície escura se separando em
ondas com cristas brancas, cada pequena ondulação individual
lançada pela chuva.
A maré subiu. Ansiosa. Com fome.
Das profundezas, dois grandes braços aquáticos se projetavam
para o céu, finos e elegantes como trombas d'água. O contorno de
pulsos e mãos feitos de água e espuma do mar, delicadas unhas em
meia-lua gravadas em renda do mar. Duas palmas gigantes em
concha, pegando Lina como ela, uma vez, pegou o fogo.
Ela se acumulou na curva líquida daquelas palmas por um
instante, outro batimento cardíaco agonizante. O mar estranhamente
sólido estava frio e vivo contra sua pele nua, pulsando como se
sangue corresse por ele.
A maré escura estava tão ansiosa para saboreá-la que não
esperou que ela caísse, mas a arrancou do céu como uma fruta
madura.
Mas não a engoliu, não a engoliu. As mãos abaixaram
suavemente e a derrubaram com um pequeno tapa molhado no fundo
de um familiar barco-vassoura vermelho e dourado. Uma poça se
formou sob seu corpo chocado, água salgada lavando as lágrimas de
seus olhos.
— Bem, olha só — disse Finley trêmulo. — Você está com uma
aparência péssima — Mas sua voz falhou. E os olhos dele estavam
vidrados.
A água empoçada abaixo de Lina rodopiava e se acumulava,
recuando sobre a amurada do barco-vassoura como se fosse de uma
praia arenosa. Seu corpo era dela novamente. O peso vil daquela
vontade distorcida finalmente a deixou ir.
E Finley, Finley estava aqui. Seu irmão a puxou para o círculo
quente de seus braços estúpidos e fortes, esmagando-a contra seu
peito duro com tanta força que todo o ar saiu de seus pulmões e sua
garganta queimou com o cheiro daquele perfume terrível e
avassalador que ele derramou ao lado da garrafa. Baunilha, fumaça e
cedro picante. Porque ele achava que isso o tornava irresistível para
as garotas.
Lina começou a chorar. Não lágrimas de frustração ou fúria, não
uma ou duas lágrimas escapando para deslizar silenciosamente por
sua bochecha, mas soluços ásperos, estrangulados, de corpo inteiro.
Torturante e cru e dolorido. Seu nariz era uma massa tenra de carne
inchada. Parecia que alguém tinha dado uma martelada em seu rosto.
A dor pulsava através dela quando ela tentou respirar. Tudo doeu
tanto, tanto. Ela estava tão, tão assustada.
Finley a abraçou com mais força.
— O que ela estava pensando? — Uma voz rouca estava
perguntando a ele. — Esse era seu plano para resgatá-la? O que
aconteceu com o rosto dela?
Lina piscou rapidamente, a sombra borrada pairando sobre ela e
Finley espiralando lentamente em foco. Lábios pintados de forma
escura contra a pele morena. Cabelos pretos em ondas perfeitas,
esculpidos para emoldurar um rosto questionador. Um longo vestido
preto esvoaçando ao vento.
Uma bruxa.
O peito de Lina se contraiu. O medo paralisante transformou seu
corpo inteiro em gelo, vomitando em sua garganta antes que o
reconhecimento estalasse. Yara. Yara, que disse que seu irmão era
bonito, que se certificou de que nenhum mal lhe acontecesse no
palácio.
— Por que diabos você pulou de lá?
Finley ficou tenso.
— Não grite com ela!
— Não estou gritando. — Gotas grandes de chuva caíam do
céu, descendo pelo pescoço de Yara como pequenos diamantes,
pingando da ponta do nariz de Lina.
Em um punho de nós dos dedos brancos, Finley agarrou um
pedaço de cabelo trançado e barbante, atado e enfiado com
madrepérola e osso. A escada de bruxa que ele ganhou todas
aquelas noites atrás na festa para Mamis e Mainha, um amuleto para
navegar com segurança em meio a tempestades.
O barco balançou enquanto ele lutava para tirar sua capa de
chuva, colocando-a sobre Lina como um cobertor. Um pequeno cão
branco se enfiou entre suas canelas — o cachorro da tia Van, Tam,
enfiando o focinho gelado e molhado na dobra do joelho de Lina,
cheirando, cheirando, cheirando.
— Só quero saber o que aconteceu? — A voz de Yara, aquela
voz que soava no final de cada frase, fazendo cada frase soar como
uma pergunta, não combinava com a intensidade de seus olhos, a
rigidez ansiosa de sua coluna. Ela se empoleirou como a figura de
proa de uma sereia, feroz e frágil. — Você disse que Thomas foi
buscá-la.
Dedos frios apertaram a garganta de Lina. As lágrimas turvaram
sua visão.
— Marcin. Foi Marcin. Ele quer que a ilha afunde. Ele vestiu meu
rosto. Disse que Eva... ele levou… — Ela engasgou com as palavras,
com o nome de Thomas.
O rosto de Yara estava sombrio. Seu cabelo preto derreteu na
sombra envolta em chuva do palácio além, suas torres malvadas a
coroando. Ela xingou alto, fluentemente, então se inclinou para bater
os nós dos dedos com urgência contra a lateral do barco, tentando
conduzi-lo, impeli-lo para a frente. Mas o pequeno esquife estava
encantado para seguir as ordens de Finley, enfeitiçado para ouvir ele
e Lina e Mainha e Mamis apenas.
Gritos e latidos agudos em staccato, mais altos que trovões,
tremeram no ar. Um relâmpago queimou a cena nos olhos de Lina:
Tam correndo de uma extremidade do barco para a outra, o rabo
abanando loucamente. Yara batendo com o punho na madeira,
gritando com Finley que ele lhe devia pela magia que ela acabara de
fazer, por salvar Lina. Finley gritando de volta que Yara devia a ele
por salvá-la da serpente marinha de Eva. A luz âmbar da lanterna
piscando nas janelas do palácio à frente como velas gotejantes.
— Não vamos entrar lá — Finley berrou. — Eu não vou levá-la
de volta para lá. Lina, o tio está evacuando. Não se preocupe, não
vamos voltar.
Lina não queria voltar.
O barco-vassoura rolou nas ondas, o mar batendo contra seus
lados. A água bateu no casco, estourou na proa. Ela poderia
adormecer com aquela cadência familiar. Queria tanto. Queria se
aconchegar ali, nos braços fortes de seu irmão, coberta pela capa de
chuva de oleado, e deixar Finley levá-la para casa. Ela queria deixar
suas pálpebras se fecharem e afundarem na escuridão pacífica, não
pensar, esquecer tudo, imaginar que tudo tinha sido apenas um
pesadelo.
Mas ela não fez isso. Não podia. Ela estendeu a mão trêmula e
bateu os nós dos dedos contra a lateral do barco.
Lina

Havia muitas escadas no Palácio da Água. Muitas escadas e


muitas portas e muitos corredores inundados, sem fim para alguém
ainda se recuperando de um tornozelo quebrado. Alguém que tinha
torcido aquele tornozelo pela centésima vez enquanto corria para
dentro. Alguém com o nariz quebrado. Alguém cujo corpo inteiro
estava doendo.
Lina xingou enquanto subiam uma escada em espiral, xingou
quando cruzaram um patamar vazio sob um teto decorado com
estrelas leitosas, xingou enquanto passavam por retratos
emoldurados de bruxas carrancudas apenas para encontrar outro
lance de escadas girando em direção ao céu, outro quarto vazio inútil,
outra porta maldosa e gravada com glifos.
Ela xingou o mundo e qualquer pessoa estúpida que construiu
aquele palácio, xingou as bruxas por desenhá-lo das profundezas do
mar, por alimentar as portas com tanta magia que adquiriram mentes
próprias. Ela xingou a si mesma e seu corpo e sua total inutilidade
agora. Xingou Yara por fugir assim que correram para dentro, sem
dizer a eles que caminho seguir.
— Você nem está fazendo o maldito trabalho! — Finley bufou,
ofegante, suor escorrendo de suas têmporas, descendo pela parte de
trás de seu pescoço, seu rosto bonito ficou vermelho de raiva por
carregá-la nas costas pelo que parecia ser metade do maldito palácio.
Lina ajustou seu aperto de macaco em seus ombros.
— Você poderia ir mais devagar?
— Você poderia perder algum peso? — ele atirou de volta,
soando exatamente como uma de suas tias.
Lina resistiu ao desejo extremamente tentador de fechar os
braços em volta da garganta dele e estrangulá-lo.
Mas então, quem iria carregá-la?
— Por favor — Ela fechou os olhos, mordeu o lábio. Não tinha
lutado por tanto tempo e tão duramente por nada. Thomas. Eva.
Marcin.
O que ele estava fazendo enquanto usava o rosto dela? Ele
machucaria Eva do jeito que a machucou? Eva o impediria de
machucar Thomas? Thomas estava…
Não pense.
O rugido e o correr da água, vozes altas e baixas, raivosas e
assustadas, filtravam-se pelas paredes. O som de passos em
execução. Os sons inconfundíveis de discussões em pânico. Todas
evocavam imagens, cada uma mais sombria e horrível que a anterior.
Lina tentou não pensar, e então tentou pensar em coisas boas
para bloquear os pensamentos ruins: ser nomeada Melhor Dançarina
por dois anos seguidos; ganhar um solo na performance de outono; o
fato de Finley estar aqui, de ter vindo resgatá-la; ter feito mágica com
Eva; ter bebido potes fumegantes de ensopado Caldellano com
Mainha no cais; o sorriso cheio de promessas de Thomas.
Mas sua mente nunca foi cooperativa ou hábil em se apegar às
coisas boas. As memórias se transformaram em pesadelos; seus
prêmios brilhantes se transformaram em armas manchadas de
sangue. O sorriso de Thomas tornou-se um grito.
As escadas se curvavam para cima e para cima e para cima.
— Eu sei que você o odeia. Sei que você pode odiar Eva
também, mas ela só me fez o sacrifício porque eu…
— Lina — Finley rangeu. — Estou indo o mais rápido que posso,
está bem?
Lina sacudiu para cima e para baixo enquanto seu irmão subia
os degraus de dois em dois. Suas roupas encharcadas de chuva
grudadas em sua pele. Cada respiração parecia que ela estava
inalando agulhas.
— E eu, sobre Thomas… — A angústia aprofundou a voz de seu
irmão. — Ainda não gosto dele. E ele ainda é muito velho para você.
Ele merecia aquele olho roxo. Ai, não bata! — O aperto de Finley
aumentou em seus joelhos, engatando-a mais alto em suas costas. —
Mas ele veio para te resgatar. Deveria ter vindo bem antes. Mas ele
admitiu isso também. E sei como é querer desesperadamente
compensar algo imperdoável que fez.
Lina encostou a testa na nuca dele.
— Eu teria aceitado a ajuda do diabo, se isso significasse salvar
você — disse Finley.
A porta no topo da escada não tinha uma maçaneta de latão
para girar, nem maçaneta de ouro para balançar. Estava selada por
algum cadeado ou ferrolho visível. Lina agarrou-se enquanto Finley
batia com o ombro na madeira escura e cintilante.
A porta raspou, cedeu um pouco, emperrou.
Lina soltou um rosnado de pura frustração animal. Gutural. Cru.
O eco diminuiu para o som da respiração irregular de Finley.
Ele jogou todo o seu peso contra a porta Lina bateu com os
punhos acima da cabeça dele, suplicando, bajulando. Não se mexeu.
Finley praguejou, pressionando a testa contra a madeira, o peito
arfando. Lina respirou fundo.
E lembrou.
Ela enfiou uma mão frenética na frente de seu vestido, em seu
sutiã, desenterrando o pente de madrepérola com as pulseiras de
cordão vermelho de Eva e cabelos pretos como tinta. Aquela
sensação curiosa, aquele zumbido que parecia cantar através dos
fios como uma corda dedilhada, formigou em seus dedos e perseguiu
seu braço.
— Me ponha no chão! Me ponha no chão!
— O quê?
— Agora! — Finley se ajoelhou e Lina meio caiu, meio tropeçou
nas costas dele. Seus dedos estavam ocupados soltando um laço de
barbante, tentando não pensar na última vez que fizera mágica com o
cabelo de Eva na varanda durante a tempestade.
— Onde conseguiu isso? — respirou Finley.
— Você não é o único que recebe magia de presente. — Lina
esticou a corda vermelha e quebrou seu cérebro. Um nó seria mais
rápido do que fazer formas, como aquelas que Eva havia amarrado
em sua escada de bruxa durante a tempestade. Mas que nó você faz
para forçar a abertura de uma porta? Que nó amarra para te levar
onde você quer? Um nó de recife? Um laço? Um engate de leme?
Ela poderia fazer qualquer um deles com os olhos fechados.
Tinha uma memória de elefante, gostavam de dizer os instrutores do
Conservatório. Ela nunca precisou ver um conjunto de passos duas
vezes. Mas não sabia o que cada nó significava. Ela não sabia como
falar com a magia. Era como saber as palavras de uma língua
estrangeira, mas não em que ordem colocá-las.
— Deixe-me.
Lina se afastou do irmão, apertou as cordas entre os dedos,
fechou os olhos e lembrou-se da sensação de fazer mágica com Eva.
Aquela emoção inebriante e aterrorizante. Aquela sensação tentadora
de poder absoluto.
Por favor.
Ela formou um laço. Por favor. Por favor, abra, por favor, me
leve para onde preciso ir.
Ela imaginou o suave arranhão que a porta faria ao se abrir.
Desejou que o encanto funcionasse com tudo que ela tinha.
A porta permaneceu fechada.
Finley olhou para trás e para frente entre ela e a porta enquanto
empurrava. Os padrões que decoravam a madeira escuramente
polida brilhavam e se moviam inquietos. Zombando.
Raiva e desespero sufocaram Lina, e ela engoliu os dois. Bateu
a palma da mão contra a madeira, a garganta apertada, os olhos
ardendo. Ela deu um nó de sangue e prendeu a respiração quando a
corda e o cabelo começaram a brilhar em um laranja ardente.
Começou nas pontas de seus dedos: um leve formigamento
como alfinetes e agulhas, florescendo em um calor abrasador. Fogo
completo. Lina soltou um grito quando ele a engoliu. Houve um
lampejo de branco ofuscante, o calor no centro de uma estrela.
Por favor, ela sussurrou para a magia.
E desta vez, ela escutou.
Lina apoiou seu peso na porta e caiu por ela, tão sem esforço
quanto a luz do sol caindo através do vidro, recuperando o equilíbrio
no topo de outra grande escadaria. Houve um doloroso “Inferno!”
enquanto Finley a seguia e tropeçava. A porta havia desaparecido
completamente, deixando apenas um arco vazio. A luz ofuscante da
magia estava desaparecendo, revelando detalhes: um lustre âmbar
brilhante, escadas claras descendo para um salão de baile inundado
com água negra. A ondulação batia contra as escadas, subindo até a
metade do topo, até onde eles estavam.
Havia algo nadando nela. Algo escamoso e escuro e sinuoso,
algo que gemia horrivelmente enquanto tentava empurrar algo menor
e igualmente escuro para os degraus. Um corpo virado para baixo na
água escura, a cabeça coroada com aço chamuscado e espinhos.
Não.
Lina voou escada abaixo enquanto Finley a agarrava, tentando
pará-la e estabilizá-la.
— Não se atreva. Não ouse! — Ela caiu de joelhos, arrastando
Eva para as escadas, a parte superior do corpo fora da água. O hálito
da serpente marinha estava quente em sua nuca, fedorento e podre.
Seu lamento sem fim a fez estremecer. — Finley!
A cabeça de Eva pendeu. A água escorria por suas bochechas e
lábios. Lábios sem sangue. Pele cinzenta. Olhos fechados. Cílios
crescentes de carvão.
Lina passou a mão pela boca de Eva, pelo nariz, sentindo
abaixo do queixo. Sem batimentos cardíacos. Sem fôlego.
— Vou buscar ajuda. Vou chamar… — Finley já estava subindo
as escadas correndo, passando pelo arco onde a porta estivera, seus
chamados por Yara ecoando.
“É terrivelmente difícil matar uma bruxa”… não foi isso que as
bruxinhas disseram? Eva não sangrou no mar e sobreviveu? Ela não
enfrentou essa mesma serpente marinha e sobreviveu?
Mas Natalia não se afogou? Lina não a tinha observado?
Isso era diferente, ela disse a si mesma… isso era magia gasta,
magia sacrificada. A magia não morreu, apenas foi usada. Eva ainda
estava aqui. Não tinha sumido. As bruxas não desapareceram como
sonhos ao nascer do sol quando morreram?
Então ela não deve estar morta. Não poderia estar.
Ela não tinha coração… era o que diziam os ilhéus. O que
Marcin havia dito. Ela o selou dentro de uma garrafa e o jogou no
mar. Ela era como o gigante do mar naquela velha, velha história,
aquela que escondeu seu coração fora de seu corpo para que não
pudesse ser morta.
Lina olhou para o brilho cinza e quase translúcido da pele de
Eva.
— Não se atreva a ir. Não se atreva. — Um soluço irregular
rasgou de sua garganta.
Ela cravou as unhas nos ombros de Eva. Na pele fria e úmida.
Ela pressionou a boca contra a boca indiferente de Eva, respirando
fundo, batendo no peito de Eva, tentando se lembrar do que Mainha
lhe ensinara a fazer quando um marinheiro caía no mar.
Ela olhou para cima quando soaram passos.
— Finley?
Mas era uma figura esbelta, de cabelos grisalhos, de preto, de
pé no topo da escada. Jun. O bruxo cujo cantarolar e cantar havia
tirado sua dor na cabine do navio após a regata. Ele olhou para ela e
Eva com horror óbvio, olhou além de ambos para a serpente marinha
nadando pelo salão de baile inundado em círculos agitados e
ansiosos, agitando ondas que quebravam com um respingo contra o
lado de Lina.
— Ajude! — Lina resmungou. — Por favor, ajude! — Ela estava
arrancando mechas de cabelo da cabeça de Eva agora, amarrando-
as desesperadamente, desejando, implorando mais uma vez com
magia. Os fios começaram a brilhar.
A sombra de Jun se derramou sobre ela.
— Marcin, ele usou meu rosto e… — Lina jurou que sentiu Eva
estremecer.
Jun caiu de joelhos. Um braço rijo serpenteou pela cintura de
Lina, puxando-a para trás e encostando no peito firme dele, longe de
Eva.
Lina se contorceu quando uma mão cobriu sua boca, a pele
pegajosa de suor esmagou contra seus lábios.
— Silêncio. Calma, agora. Ah, inferno, Marcin, sério? Uma coisa
é dizer que estamos deixando Eva para trás porque ela é teimosa,
outra bem diferente é… — Hálito quente fez cócegas na orelha de
Lina enquanto Jun falava seus pensamentos em voz alta. — Sinto
muito, realmente sinto, mas não posso deixar você contar a ninguém.
Lina se contorceu furiosamente, um grito abafado passando pela
mão suada que cobria sua boca.
O braço ao redor dela apertou.
A serpente do mar levantou a cabeça da água e lamentou.
As luzes se apagaram.
O salão de baile ficou escuro. Totalmente escuro. A escuridão
de uma noite sem lua, quando tempestades e fumaça bloqueavam as
estrelas.
O braço em torno de Lina afrouxou. Soltou. A palma que cobria
sua boca se desprendeu.
Ela respirou fundo e estremeceu. O ar estava tão pesado e
cheio de magia que ela podia sentir o gosto de cinzas na parte de trás
de sua língua. Não conseguia ver um centímetro à sua frente, não
conseguia ver suas próprias mãos.
Mas ela podia sentir — algo despertando. Pois não era uma
escuridão vazia.
Houve passos cambaleantes atrás de Lina, depois um grito, mas
foi interrompido. Um rasgo horrível e dilacerante, como um pano
rasgado ao meio.
Mas ela não achava que o que estava rasgando fosse tecido.
Era algo mais grosso, mais suculento, mais carnudo. O coração de
Lina disparou mais rápido, mais rápido. Algo roçou seu lado. Ela se
encolheu, mas não se atreveu a se mexer.
Alguém gemeu.
A luz voltou lentamente, suavemente no início, quando a neblina
se dissipou, enquanto a fumaça negra se fundia em uma rainha e o
mundo voltava ao foco.
Eva estava de pé ao lado de Jun. Uma coroa de aço
chamuscado em uma das mãos, carmesim lúgubre pingando de suas
pontas na escada pálida.
Lina não queria pensar no que tinha feito com aquela coroa, não
olhou de perto para a forma encolhida e amassada de Jun. Ela
manteve o olhar fixo em Eva, cujos olhos estavam abertos. Aberto e
vazio, como o de uma boneca oca. Lina tinha visto Eva com ar
presunçoso, tinha visto seu olhar chocado, furioso, travesso, frio e
indiferente.
Ela nunca tinha visto seu olhar perdido, parecendo nua,
parecendo assombrada.
Algo em Lina lhe disse para se afastar, se afastar rapidamente.
Elas não eram nada uma para a outra, na verdade. E, no entanto,
algo quebrou dentro dela ao ver Eva com aquela aparência, e de
repente ela ficou terrivelmente assustada com o pensamento de
nunca mais ver aquele sorriso afiado familiar, aquela versão travessa
e presunçosa da outra garota. O pensamento era, de alguma forma,
insuportável.
Lina se levantou, o peso em sua perna forte. As palavras saíram
antes que ela pudesse pensar melhor, um eco das primeiras palavras
de Eva para ela, de volta à caverna do mar.
— Você gostou de se afogar?
Eva não se mexeu, não piscou.
Mas havia um lampejo de algo nas profundezas daqueles olhos
escuros. Uma faísca. Como fogo. Como o brilho da luz das estrelas
no mar à noite. Lina viu a cor voltar ao rosto de Eva com um alívio
que a deixou fraca, e outra coisa que ela ainda não estava disposta a
nomear fez seu peito ficar apertado.
Eva se aproximou, o ping-ping-ping do sangue das pontas
implacáveis de sua coroa. Sua mão livre atacou, envolvendo a
garganta de Lina antes que ela tivesse tempo para respirar, e
apertou.
— Ficou triste por não ter assistido?
Eva

Pés desciam as escadas. Mãos ásperas arrancaram Eva de


Lina, empurrando-a para encarar um segundo par de impiedosos
olhos cinza-tempestade.
— O que diabos está fazendo, sua monstra? Ela veio te ajudar.
Uma voz rouca e baixa e trêmula de fúria, mas levemente
familiar. Como o resto das feições do menino eram dolorosamente
familiares. Aqueles olhos, aquelas maçãs do rosto, aquelas
sobrancelhas estranhamente quadradas.
O irmão de Lina sacudiu Eva com tanta força que parecia que
seus dentes iriam bater.
— Finley! Espere, Finley! — Lina tinha caído para trás, uma mão
na garganta, tossindo. Sua outra mão se estendeu em um apelo
ansioso.
Lina Kirk, sempre colocando outras pessoas antes de si mesma.
— Finley! — Outra voz. Yara estava voando escada abaixo atrás
dele. — E, graças a Deus, eu pensei…
— Finley — Lina implorou ao irmão. Seu irmão, que veio buscá-
la, salvá-la, como Natalia havia salvado Eva.
O vazio dentro do peito de Eva se expandiu. Sua mão esquerda
se apertou ao redor do aço, ao redor das pontas afiadas de sua coroa
manchada de sangue. Quando a água da caverna do mar inundou e a
magia a envolveu como correntes, arrastando-a para dentro da
escuridão, ela se perguntou: veria Natalia antes do fim? Ela sonharia
com sua irmã?
Como ela queria. As pessoas diziam que acontecia, que falavam
com os mortos à medida que suas próprias mortes se aproximavam.
Que seus entes queridos vinham oferecer-lhes paz, perdão. Que os
incitavam a viver, a amar, a seguir seus sonhos.
Engraçado como o que os mortos queriam era sempre o que os
vivos mais desejavam.
Natalia não tinha visitado Eva, não tinha ido buscá-la como o
irmão de Lina. Não havia nada além da mordida gelada da água e da
escuridão. E ela decidiu então que, se ela voltasse, não ofereceria
perdão a ninguém. Não desejaria que ninguém vivesse ou amasse.
Ela iria assombrar todos eles. Cada um deles.
Thomas Lin, a quem ela havia confiado sua irmã. Lina Kirk, que
a deixou para se afogar.
Para ser comida por sua própria serpente marinha de estimação.
Só que não a tinha comido.
Seu monstro leal, a única criatura em que podia confiar.
O olhar de Eva deslizou para longe de Finley, uma pequena
ruga se formando entre suas sobrancelhas enquanto ela absorvia
detalhes que sua mente não havia registrado antes. Uma quietude
apertada e mortal a invadiu, apertando seu peito e tornando sua voz
um silvo, um sussurro.
— Quem fez isso com você?
Aquela não era a Lina que ela se lembrava de colocá-la no chão,
de dar as boas-vindas à maré. Os hematomas profundos florescendo
sob aqueles olhos, na ponte de seu nariz; o sangue formando crostas
acima do lábio, descendo pelo queixo; o cabelo dourado desgrenhado
e encharcado… Eva mataria quem quer que tivesse feito isso.
— Marcin — disse Yara baixinho, puxando a manga de Finley,
tentando fazê-lo soltar os braços de Eva.
— Ele usou meu rosto. — Os olhos de Lina estavam
avermelhados e vidrados. — Eu… — A culpa beliscou suas feições.
Ela forçou as palavras. — Thomas veio atrás de mim. Marcin nos
impediu de escapar. Ele me forçou a pular de uma das sacadas.
Disse que você não precisaria saber que eu tinha ido embora. Não sei
o que aconteceu depois. Finley me trouxe de volta para que eu
pudesse te avisar. Não sei o que... não sei se Thomas... — Sua voz
falhou, o olhar passando por Eva como se achasse que poderia
encontrar Thomas Lin à espreita nas curvas da escada do salão de
baile. Como se não fosse tarde demais. — Você ia entregá-lo a
Marcin? Ia deixar Marcin dá-lo para sua serpente assim que eu
partisse? Mesmo que eu... pensei que nós…
Eva encarou. Um relâmpago de irritação quente a atravessou,
da cabeça aos pés. Isso realmente importava agora? Essa era
realmente a pergunta a ser feita agora?
Marcin.
O nome deslizou entre suas costelas como uma lâmina,
afundando na carne macia para perfurar algo vital.
Marcin, que cuspiu em seu cantil prateado e ofereceu a ela.
Marcin, que havia falado aquelas palavras sem sentido.
Não posso ver esta ilha destruir você. Não consegue ver o que
ela fez com você?
Você me fez fazer isso.
Marcin, que a trouxera para a ilha como uma bruxinha, que
ainda fazia suas tranças, embora já fosse adulta, embora fosse
rainha. Marcin, que a criou ao lado de Natalia, que era mais
verdadeiramente sua família do que qualquer outra pessoa que ela
deixou.
A traição cortava bem mais fundo quando você amava a mão
que segurava a faca.
Uma parte dela se recusou a acreditar. Não conseguia.
E Lina continuou olhando para ela com aqueles olhos,
esperando, procurando uma resposta para sua pergunta. Uma
resposta que Eva não queria dar.
Um pedido de desculpas que ela não queria dar.
Mil palavras balançavam na ponta da língua de Eva, mas não
sabia como dizer nenhuma delas. Ela nunca foi boa em se desculpar
ou se explicar; uma rainha nunca precisava.
E uma parte dela achava que não tinha nada para se desculpar.
O rosto de Eva era uma máscara enquanto ela se recolhia. Ar
frio e sombras a envolveram como uma capa, beliscando qualquer um
que ousasse chegar perto.
Finley finalmente a soltou. Yara correu para passar um braço de
apoio em volta da cintura de Eva. Finley deu um passo para trás com
um aviso final.
— Se machucar minha irmã novamente, bruxa ou não, eu vou te
matar.
— Não quero machucar ela — Uma mentira. Eva queria
machucá-la. Queria machucar ele. Agora ela queria machucar o
mundo inteiro. Queria encontrar Marcin e destruir ele. Queria rasgá-lo
em pedaços minúsculos e rasgar aqueles pedaços em pedaços ainda
menores. Ela o queria a seus pés machucado e sangrando.
Implorando.
O rosto de Lina se fechou.
Atrás de Eva, alguém gemeu. Jun, abrindo os olhos. Ainda
encolhido, ainda enrolado em si mesmo.
Mais bruxas estavam chegando, exclamando, surgindo através
do arco vazio no topo da escada, derramando-se em uma maré negra
viva. Ecos ricocheteavam estranhamente na água e nas paredes. A
cena se desenrolando com uma sensação lenta, surreal, quase
onírica. Tantas vozes tocando e se fundindo em uma.
— Eva! Graças a todos os deuses. Yara disse que Marcin
atacou você?
— As portas foram seladas. Não conseguimos encontrar você.
Marcin disse...
— Onde ele está? — Lina os cortou.
Eles a ignoraram.
— Vamos realmente deixar a ilha? Cyla diz que vamos à Praça
de São Casimiro, que vamos realizar o sacrifício agora.
À menção da Praça de São Casimiro, Finley avançou.
— Não é lua cheia. Não dá para fazer a mágica sem a lua cheia.
E Yara me contou como você tentou encontrar outra maneira de
acalmar a maré.
As palavras cortaram como uma segunda traição. Desta vez,
uma traição de Yara, revelando o passado de Eva, seus segredos,
seu fracasso. Yara, que não a olhava nos olhos. Yara, que talvez
estivesse trilhando com Finley o mesmo caminho que Eva tinha com
Lina.
Outra maneira. Eva recolocou lentamente a coroa em sua
cabeça enquanto Finley balbuciava, enquanto o resto de suas bruxas
olhava para ele sem expressão.
— De onde ele veio? — alguém murmurou.
Outra maneira sem preço de sangue.
— E se todos nós dermos alguma coisa? — disse Finley. —
Cada um de nós é de Caldella. Um dízimo tirado de cada pessoa,
jovem e velho. Um dos nossos tesouros. Algo que dói perder. A maré
negra tem gosto pelo sofrimento. Então, cada um de nós dá alguma
coisinha para saciar. Só precisamos coletar as oferendas. Só
precisamos de tempo para convencer as pessoas.
Não havia tempo.
Um choque de água preta gelada espirrou na parte de trás das
pernas de Eva. Sua serpente mexendo, agitando a água branca de
preto. Uma fome estranha penetrou em seus ossos junto com a
umidade e o frio, um desejo que ela não achava que fosse seu.
Ela podia ouvir de novo, aquele tambor, aquele batimento
cardíaco voraz. E sabia que se saísse do salão de baile, saísse para
uma das inúmeras sacadas do palácio e olhasse para a cidade,
ouviria sirenes de inundação passando pela tempestade.
Não havia tempo.
Ela não podia se dar ao luxo de falhar.
Não havia garantia de que a maré pudesse ser saciada com
nada além da vida da própria rainha ou da pessoa com quem ela se
importava.
Outra maneira.
Quando ela parou de lutar por isso? Quando abaixou a cabeça
para a maré? Uma rainha não deve responder a ninguém. Quando
ela decidiu dar ao mar mais do que desejava?
— Então, onde você viu Marcin pela última vez?
Eva se virou. Lina estava com a mão em punho no tecido do
casaco de Omar. A visão pode tê-la surpreendido uma vez; Omar
tinha bem mais de um metro e oitenta de altura com músculos que
rivalizavam com os de um pirata. Mas esta era Lina, a garota que
invadiu seu palácio, que enfrentou uma serpente marinha e ofereceu
sua própria vida para salvar o garoto que amava.
A garota que dançou mágica no convés manchado de sangue
do navio de Eva, que a fez sentir coisas que ela não achava possível
para alguém sem coração. A garota que voltou para avisá-la, salvá-la,
mesmo sabendo que Eva a havia enganado, em vez de aproveitar
sua única chance de escapar do sacrifício.
A tola e irritante Lina Kirk.
— São Casimiro — Omar bufou. — Ok, moça? Marcin ouviu
nossa conversa e disse que iria em frente para verificar se estava
tudo bem.
Claro que ele tinha.
Provavelmente o havia divertido: Eva fora de serviço e Thomas
em suas mãos, todos falando sobre realizar o sacrifício.
Os sinos nos cachos prateados de Cyla tilintaram quando ela
veio para ficar com Eva e Yara, algo como um entendimento
passando entre as três em um olhar. Porque elas também sabiam
para onde Marcin iria. Ele não seria capaz de resistir ao desejo de
realizar um pequeno sacrifício no lugar de Eva, em afogar Thomas
Lin, como ela havia prometido no início.
A cabeça de Lina virou para Eva.
Cyla colocou um casaco pesado — preto, como sempre, com
gola e punhos de pele — nos ombros de Eva, depois entregou-lhe
várias mechas de cabelo trançado: castanho, loiro e preto, vermelho
vivo e prata pálido. Eva podia ver a magia nos fios. Um piscar e você
perderia o brilho. Um fio de teia de aranha pegando uma inclinação
da luz do sol de inverno. Um brilho fantasmagórico.
Dízimos de suas irmãs para ajudar com a magia, para fortalecer
a própria Eva enquanto ela oferecia o sacrifício, para ajudar a lançar o
feitiço que acalmaria a maré escura sem a influência da lua cheia
sobre o mar.
— Não dá mais para esperar — disse Cyla. — Leve Lina com
você. Salve a ilha primeiro. Lide com Marcin quando terminar.
Yara deu uma olhada para onde Finley estava discutindo com
Omar agora, os lábios entreabertos, parecendo ansiosa.
— E, o que Finley disse…
Cyla empurrou uma pequena garrafa verde venenosa na palma
da mão de Eva. Um calafrio a percorreu, uma pitada de gelo
florescendo em sua pele, uma sensação de que magia espreitava por
dentro. — Para mantê-la quieta se ela causar problemas.
Para segurar Lina enquanto Eva a acorrentava ao pilar.
O frio se arrastou até sua medula.
Talvez, no final, ela fosse mais parecida com Natalia do que
qualquer um deles pensava.
— Vocês todos devem esperar aqui. Estou indo na frente para
lidar com Marcin. — A voz de Eva continha uma ordem que
atravessou o salão de baile inundado, depois baixou demais para
qualquer um, exceto Yara, ouvir.
Os lábios de Yara formaram um O enquanto Eva sussurrava em
seu ouvido. Os olhos de Cyla se estreitaram.
— Estou indo também! — disse Lina, aproximando-se.
Finley explodiu em protestos. Mas Eva pegou a mão de Lina,
incapaz de resistir a entrelaçar seus dedos pela primeira e última vez.
Lina

Finley estava gritando e investindo em sua direção, mas Eva


puxou Lina para perto. Não havia tempo para segundas intenções,
não havia tempo para hesitação, não havia tempo para medo. Se
houvesse a menor chance de não ser tarde demais...
O estômago de Lina deu uma pequena reviravolta, e então ela
estava se desfazendo, sendo desfeita, dobrando-se em mechas de
fumaça preta com apenas a sensação dos dedos de Eva
entrelaçados nos seus como âncora.
Elas vagaram pelos ossos do Palácio da Água, penetrando
através de pedra, madeira e argamassa, passando por salões
abandonados e corredores inundados, serpenteando sob as
aberturas, sob portas cintilantes gravadas com glifos. Movendo-se
como ar e escuridão, como sombra e fumaça, como um.
Lina não se atreveu a respirar ou falar ou engolir, para não
quebrar a magia e ficar para sempre presa como algo nem sólido,
nem espectral. Como forma e nada, ambos e nenhum e algo no meio.
Era assustador, inebriante. O tipo mais sombrio de emoção.
Pura magia.
Seu coração — se é que ela tinha um coração agora — batia
forte o suficiente para estourar.
E então, de repente, elas estavam do lado de fora, girando entre
as torres perversas do Palácio da Água, a brisa da noite as esfriando,
soprando-as mais alto, teias de aranha prateadas de nuvens baixas
deixadas rasgadas e torcendo em seu rastro. A lua nascente cravava-
se nas fissuras, tão luminosa, tão perto de estar cheia agora, que
cravava diamantes na superfície escura do mar.
As ondas pareciam tão planas daqui de cima. A maré escura
não era nada além de um palco escuro e cintilante para dançar. A
chuva se transformara em névoa perolada. Luzes piscavam na cidade
devastada pela tempestade enquanto o vento as empurrava cada vez
mais perto.
A Rainha das Bruxas vem nas asas da noite...
Nunca a letra pareceu tão verdadeira. Desceram na Praça de
São Casimiro em uma grande nuvem de fumaça preta rodopiante.
Nada de fogueiras ali agora, nada de dançarinos. Sem tambores
selvagens ou lamentos de gaitas, apenas o grito distante e
desesperado das sirenes de enchente.
A magia trouxe Lina de volta à existência, ar e escuridão se
derramando nos contornos de uma garota com cabelos loiros curtos,
olhos cinzentos e um queixo teimoso.
Eva soltou sua mão e a súbita ausência daquele toque deixou
Lina estranhamente desolada.
Mas ela imediatamente começou a correr, mancando, gritando.
Lojas desertas passando rapidamente, seus passos escorregando em
pedras escorregadias. Ela passou voando pelas arcadas ladeadas de
colunas que cercavam a praça por todos os lados, exceto por um,
caindo na longa sombra projetada pelo pilar no centro, correndo para
a figura prostrada acorrentada aos seus pés.
Thomas.
Ela chegou na metade.
A água negra atacou, um chicote líquido serpenteando em torno
de seus tornozelos e puxando-a para fora de seus pés. Seu queixo
bateu contra o paralelepípedo, mas o ardor quente em suas palmas e
joelhos atingiu primeiro. A agonia explodiu com o impacto quando
Marcin se materializou das sombras.
O vento soprou, empurrando-o para trás, para longe dela. Eva
passou, se unindo do mar ao céu em um turbilhão selvagem de
cinzas e vento, cabelos pretos esvoaçando, um único fio brilhante de
barbante vermelho flutuando livre de seus dedos, sapatos de dança
prateados pousando com um clique letal.
Marcin cambaleou até ficar de joelhos, cuspiu e passou a mão
pelas pedras em um único gesto fluido. A pedra abaixo de Eva
amoleceu, desmoronou em areia. Ela afundou até o tornozelo,
perdendo o equilíbrio. Mais paralelepípedos arrancados da terra.
Sólidos. Brilhantes. Afiados. Disparando como balas.
Lina jogou os braços para cima, cobriu a cabeça com as mãos.
Eva se dissolveu em fumaça, se separando dos projéteis,
libertando-se da areia. Em uma respiração, o ar enfumaçado e furioso
mantinha a forma vaga de um corpo. Uma forma e um rosto
inexpressivo. Em seguida, se transformou em um ciclone negro alto e
ruidoso, caindo sobre Marcin.
Areia e pedra se ergueram para formar uma parede ao redor
dele. Mas o ar e a escuridão atravessavam as rachaduras, enviando
gavinhas, espetando seus braços, sua garganta.
Lina aproveitou a chance, ficando em pé, cruzando a última
distância para Thomas. Suas correntes chacoalharam quando ela as
puxou. Estavam enroladas em torno de seu peito, sua cintura, seus
tornozelos, o ferro esfregando a pele bronzeada em carne viva onde
seus pulsos estavam algemados.
A ferrugem escalou e grudou nas palmas das mãos e nos
dedos, um gosto metálico afiado queimando o fundo de sua garganta.
Uma suspeita doentia deu um nó em suas entranhas. Essas eram as
correntes que Natalia usava? As correntes que a prendiam ao pilar
enquanto a maré escura desabou, enquanto as ondas negras varriam
para tomar o que lhes era devido?
O mar rugiu, batendo e se chocando contra a borda da praça
que levava direto para as ondas, enviando cristas arrebatadoras de
espuma de cristal, derramando e cuspindo espuma do mar sobre os
paralelepípedos.
Longe demais para sentir.
Mas Thomas estava se afogando de qualquer maneira.
Tossindo e engasgando e vomitando água salobra em sua frente
enquanto a magia enchia seus pulmões com água salgada. Seu
corpo estremeceu contra as correntes, um olho esbugalhado, o outro
inchado e fechado.
— Eva! — O grito saiu de Lina. Ela caiu de joelhos, os dedos
arranhando o chão, procurando por um paralelepípedo solto, algo
para usar para quebrar as correntes. Sabendo com uma certeza
penetrante e de partir o coração que Eva não ajudaria.
Porque ela não se importava. Porque ela sempre planejara dar
Thomas a Marcin.
Ela sentiu de novo, aquele mesmo terrível estilhaçar no peito
quando procurou o rosto de Eva no salão de baile inundado,
esperando e torcendo desesperadamente por uma negação. Porque,
alguma parte tola dela, começou a confiar na outra garota, porque,
alguma parte tola dela, começou a se importar.
Lina pegou uma ponta solta da corrente, trazendo-a para baixo
nas algemas que ligavam os tornozelos de Thomas. Ferro enferrujado
guinchou e retiniu como um sino de novo e de novo, faíscas
disparando do metal.
Tudo isso enquanto Thomas ainda estava se afogando, ainda
engasgando, água salgada jorrando pela frente, salpicando a base do
pescoço dela, o topo da cabeça curvada.
Ainda se afogando, até que ele não estava mais.
O primeiro grande suspiro de ar trêmulo dividiu a noite.
Lina olhou para cima, olhou para trás. Aquela tempestade
selvagem de fumaça escura se derramou de volta em um corpo. O
mundo inteiro parou quando ela encontrou os olhos de Eva.
E então Marcin estava passando por Eva, em direção a ela, o
cabelo tão selvagem quanto o fogo. Raiva ondulando fora dele como
calor. Elegantes roupas pretas e tortas e a pele tão pálida que parecia
mais um fantasma do que uma criatura viva.
Ele estava começando a desaparecer? Tinha tão pouca magia
sobrando?
— Você até tiraria isso de mim. — Ele cuspiu na mão.
E, novamente, Eva se moveu entre eles como um escudo, um
passo na frente de Lina, um passo longe de Marcin. Fios de fumaça
preta enrolando em sua pele oliva como vapor.
— Ah, eu vou tirar muito mais de você do que isso — ela disse.
E ainda assim ela não se moveu.
Os dedos de Eva estavam congelados no meio do feitiço;
mechas de cabelo e fios vermelhos esticados, mas ela não deu um
nó. Era como se alguma força invisível a estivesse segurando.
Lina queria gritar com ela. Ele tentou te matar. Ele tentou me
matar. Ele quer deixar a ilha afundar.
O suor brilhava nas têmporas de Marcin. O inchaço em sua
garganta subia e descia.
— Eva, por favor. Você acha que isso é o que Natalia gostaria?
Que a gente brigasse assim? Que acabássemos nos esgotando,
nossa magia, em uma briga boba?
— Briga boba? — disse Eva. — Você me deixou para me
afogar.
— Você não me deu escolha! Fiz isso porque você nos deixaria
afogar. Porque eu não queria que você sofresse mais. Fiz isso porque
me importo com você. Porque eu não suportaria te ver magoada. Me
dê Thomas Lin, Eva. E então vamos voltar para o palácio. Ele é a
razão pela qual perdemos Natalia. E esta ilha foi o que a destruiu.
Esta cidade amaldiçoada a devorou pedaço por pedaço, assim como
devorou a você. Acha que ela queria isso para você? Acha que ela
queria te acorrentar aqui, sempre à mercê da maré? Para você sofrer
ano após ano, como ela sofreu? Você não foi feita para ser a rainha
desta ilha. Nunca deveria ter sido rainha.
Marcin deu um único passo à frente.
— Você ajudou a matá-la, Eva. Você e Yara. Toda aquela
conversa sobre encontrar outro caminho, dando-lhe esperança e
depois falhando tão espetacularmente e arrancando aquela
esperança dela.
O rosto de Eva estava ferido. Marcin cutucou a ferida.
— Ela nunca teria feito o que fez, se você não a tivesse
encorajado primeiro.
O lábio de Eva tremeu, a visão fazendo algo apertar dentro de
Lina.
— Se Natalia tivesse me deixado no comando, — finalizou
Marcin — poderíamos ter escapado de tudo isso.
Lina cambaleou para ficar de pé, as mãos nos ombros de
Thomas em busca de apoio. Ele caiu contra as correntes, contra ela,
as pálpebras trêmulas. O nome dela uma exalação suave.
O olhar de Marcin estalou para ela, e seu coração deu uma
guinada.
— É por isso que não vai me deixar matá-lo? — ele disse. —
Por causa dela? Você realmente conseguiu se importar com um dos
sacrifícios, não foi? Com alguém além de si mesma. — Seu tom era
meio incrédulo, quase chocado.
Lina olhou para Eva, seu pulso entrando e saindo do ritmo.
— E ainda assim ela ama outra pessoa — Marcin enxugou uma
bochecha ensanguentada com o polegar, cuspiu na mão. — Mas ela
o ama o suficiente?
A cabeça de Eva virou em direção ao pilar de pedra, em direção
a Lina. Ela arrancou uma garrafa de vidro do bolso de seu casaco,
jogando-a em Marcin. Vidro explodiu a seus pés, nuvens de neblina
soltando-se dos cacos. Onde o líquido respingou, formou-se geada,
um esmalte pálido manchando suas botas, subindo pelas pernas,
torso, endurecendo como gelo.
Mas não antes de pintar o ar com sangue, cuspe e vontade, não
antes de um sorriso selvagem esticar seus lábios e a magia vibrar
pelo ar como fogo.
Lina se preparou, uma luz ofuscante iluminando o choque em
seu rosto, mas a magia não foi direcionada a ela.
Lina

Tudo o que ela se lembrava depois era um lampejo de luz e a


súbita ausência de som. Um silêncio abrangente, um zumbido
ensurdecedor em seus ouvidos, o silêncio e a quietude que seguiam
a nota final de uma performance. Aquele batimento cardíaco ansioso
antes dos aplausos. Ondas negras atingiram a borda de pedra da
Praça de São Casimiro, spray de sal mantendo uma pose no ar, um
milhão de cacos de vidro congelados.
Então, o mundo voltou correndo, e Lina sabia o que estava
acontecendo antes mesmo de acontecer. Ela havia cantado essa
música. Havia dançado essa história. Ela conhecia tão bem quanto
seu nome. Correntes ressoaram e se partiram. Músculos e ossos se
moveram sob suas mãos. Gritos agonizantes saíram da garganta de
Thomas quando suas articulações estalaram e ligamentos se
romperam. Suas costas arquearam, a pele esticando e rasgando,
desbotando para um cinza horrível. Endurecendo em crostas,
escamas escorregadias do mar.
Ele virou uma víbora gigante se contorcendo em seu abraço.
Uma serpente marinha encalhada em terra. Um monstro ascendente
e sinuoso com presas venenosas gotejantes. Assobiando e torcendo.
Lina segurou firme. Ela tinha jurado que faria isso, todas aquelas
noites atrás. Mas seus braços não podiam mais caber em torno de
seu corpo, e suas unhas arranhavam freneticamente, inutilmente para
encontrar um aperto em suas escamas. Ela deslizou e escorregou,
agarrando-se ao pescoço do monstro enquanto ele se desenrolava,
enquanto ele e ela subia alto no ar.
Ela cravou as unhas. Não iria perdê-lo agora, não quando
chegou tão longe, não depois de tudo. Ela não perderia aqui.
A serpente bateu sua cabeça contra o chão, o impacto sacudiu
seus ossos, sacudindo seus dentes. Algo em sua caixa torácica
gritou. Lina apertou a mandíbula.
Era uma ilusão. Era magia, um feitiço lançado para fazê-la se
soltar. Ela sabia o que estava segurando. Conhecia a verdadeira
forma do menino que segurava nos braços.
— Thomas. — Seu nome era um suspiro irregular.
O monstro estremeceu e derreteu em seus braços. Uma massa
pulsante de tendões e pele quentes. Cresceu pelo. Pele emaranhada
cheirando a podridão e almíscar, picando e arranhando suas palmas
e bochechas. Seus olhos lacrimejaram com o fedor. Ele era um urso
pardo raivoso. Olhos revirando, mandíbula estalando, garras varrendo
cicatrizes pelas pedras.
Uma voz gritou para ela se lembrar do que estava segurando. E
ela lembrou, lembrou, ela estava segurando Thomas Lin. O menino
que ganhou sua liberdade de uma bruxa. O garoto que ela admirou
por dois longos anos. Um menino com cabelo beijado pelo sol e pele
bronzeada pelo mar, com olhos castanhos escuros que guardavam
uma centena de segredos incontáveis.
Lina mordeu o lábio inferior. Sangue quente escorria por seu
queixo.
O urso sacudiu a cabeça. Seus braços pareciam prestes a
quebrar.
Segure firme.
O urso cheirou o ar. Sua espinha se contorceu. Torceu.
Desapareceu.
Ela estava de pé, segurando fogo. Um carvão em brasa
queimando brilhante entre as palmas das mãos em concha.
As chamas envolveram Lina. Queimaram as camadas de sua
pele como se fosse papel, enrolando-a, escurecendo-a,
transformando-a em cinzas brilhantes. Onda após onda de calor
furioso. Suas bochechas ficaram cheias de bolhas.
Ela girou, agitando-se de terror, tentando afastar as chamas.
Onde…
As chamas rosnaram. Um mar de vermelho e laranja turvo se
estendia em todas as direções, sem fim. Um fogo que nunca se
apagaria. A ilusão se tornou real porque ela começou a acreditar nela.
Os olhos de Lina ardiam de fumaça. Ela tropeçou e caiu, apertou os
olhos para as palmas das mãos e as encontrou vazias.
Seus dedos se contraíram, abrindo e fechando no ar e nas
chamas. No vazio.
Se foi.
Thomas estava...
Quando a rainha transformou o rapaz em fogo, o coração da
garota falhou. Ela se perdeu no medo e esqueceu o que estava
segurando. Ela e o rapaz foram queimados vivos. Queimados até não
sobrar nada.
A garganta de Lina apertou com angústia, com pânico de partir o
coração. Ela tentou recapturar a sensação dele em seus braços, seu
peso, sua forma. Mas era como tentar abraçar o reflexo da lua no
mar, agarrar fumaça ou dar as mãos a uma sombra.
Quem foi Thomas Lin? Quão bem ela realmente o conhecia?
Ela se imaginou abraçando-o, beijando-o, como havia imaginado
tantas vezes antes, seu devaneio favorito. Quantas vezes ela
imaginou em sua cabeça como isso aconteceria, como tudo se
desenrolaria? Os detalhes e o cenário mudaram, mas o final era
sempre o mesmo... exceto dessa vez.
Porque agora ela só conseguia lembrar de beijar Eva. A onda de
calor em seu estômago, a emoção escura de lábios e dentes e língua.
De um céu incendiado e olhos que brilhavam como a luz das estrelas
no mar à noite. A sensação sedosa do cabelo preto emaranhado
entre seus dedos.
Thomas Lin sempre foi um devaneio. Um sonho que se
empalidecia em comparação com uma memória que era muito mais
real.
Ela o havia perdido. Ela queimaria aqui para sempre. Porque
seu coração e coragem falharam com ela. Porque ela não tinha
aguentado. Porque tinha soltado, e o fogo estava ao redor dela,
queimando-a em cinzas. Ela não o amava o suficiente para mantê-lo.
Nem sabia se o amava.
Lina soltou um soluço. O calor ferveu as lágrimas de suas
bochechas.
Braços serpentearam ao redor de sua cintura por trás. Mãos em
concha nas dela, frias, firmes e inabaláveis. — Você sabe o que está
segurando. Me causou tantos problemas por causa dele por nada?
Você ousa pensar que pode desaparecer de mim sem terminar o que
começou? Continue lutando.
Lina sentiu como se estivesse se desfazendo e voltando a se
recompor.
Ela fechou os olhos e se lembrou da explosão de calor em seu
peito quando Thomas a levou para casa, se lembrou dele seguindo-a
na festa apesar de seus medos, se lembrou dele vindo resgatá-la com
Finley. Ela se agarrou a essas memórias, se agarrou a ele.
Thomas. Estou segurando Thomas Lin.
Talvez ela não sentisse por ele o mesmo que antes. Mas esses
sentimentos ainda eram reais, mesmo que tivessem virado outra
coisa, mesmo que tivessem mudado. Amor ou não, ingênuo ou não,
tolo ou não, o que ela sentia por ele ainda era real. E ela tinha vindo
de tão longe para salvá-lo, então o salvaria. Ela lhe fez uma
promessa. Ela o arrastou de novo para tudo isso e iria tirá-lo daquilo.
A escuridão sufocou as chamas. A fumaça preta despenteou
seu cabelo.
Ela segurou a forma dele enquanto Eva a segurava. A Rainha
das Bruxas queimando com ela, o abraço apertado a mantendo
segura e inteira. O calor escaldante desapareceu. A fumaça começou
a subir.
O ar tinha gosto de sal e mar, de chuva, e daquela primeira
inspiração fresca depois da chuva, depois que a tempestade limpou o
mundo. Lina se ajoelhou ao pé do pilar de pedra com Thomas nos
braços. Seus olhos estavam fechados, mas ele estava respirando.
Eva relaxou seu aperto em Lina.
Tudo ficou quieto, exceto pelas ondas batendo famintas contra o
lado da praça de São Casimiro. As sombras ficaram mais profundas,
mais escuras e mais aveludadas, nuvens perseguindo a superfície da
lua quase cheia.
Mas um brilho fraco ainda vazava, delineando as palavras
esculpidas profundamente na pedra do pilar com prata. Marcin,
observando-os, leu em voz alta:
— ‘Nosso amor nos impede de nos afogar’, ou deveria ser
‘Nosso amor nos impede de queimar’? Vendo como você pularia no
fogo por ela. — Ele olhou além de Lina. — Então, Eva, o que você vai
fazer agora?
Eva

— Eu teria poupado você da escolha. — O cabelo de Marcin se


retorceu na brisa salgada. O resto de seu corpo estava imóvel, as
pernas firmemente presas ao chão com gelo, no gelo que parecia
negro ao luar. — Não queria que você se apegasse. Não queria que
você tivesse que se machucar.
Então por que não ajudou quando Natalia ainda estava viva?
Quando tentei encontrar uma maneira de quebrar o domínio da maré
sobre a ilha e quase morri?
— Se você tivesse me deixado cuidar das coisas, se Natalia
tivesse me deixado no comando, eu teria te libertado disso, mas você
não me deixou. Sabe o custo para acalmar a maré negra. Você sabe
o que a magia exige.
Claro que ela sabia. O feitiço foi queimado em Eva, listado como
os ingredientes de um livro de receitas ou de um velho grimório.
Tire a vida de quem você ama e misture com as lágrimas que
derramou por ele. Adicione três gotas de sangue, três fios de cabelo e
alimente tudo no mar à luz da primeira lua cheia de maio.
E assim chegaram ao momento, do qual não havia escapatória.
Eva se levantou, olhou para baixo, o olhar fixo no de Lina. A
respiração de Lina engatou.
Era amor, essa dor lancinante no buraco dentro de seu peito?
Esta torção horrível em seu intestino? Essa recusa absoluta em
permitir que essa vida se extinga por causa de Thomas Lin?
Certamente havia algo que ela queria aqui — a devoção feroz de Lina
a Thomas que ela invejava e desejava para si mesma.
Eva suspeitava que havia arruinado qualquer chance disso
simplesmente por ser ela mesma.
Água negra borbulhava pelas rachaduras entre os
paralelepípedos. Fitas de escuridão líquida se desenrolando como
fumaça faminta. Espalhando e engolindo o chão. Engolindo a Praça
de São Casimiro. Pronta para engolir o resto da ilha.
Ela não podia se dar ao luxo de falhar novamente.
Ela não falharia novamente.
Mas também não daria mais nada à maré além do que estava
disposta a dar.
— Você vai fazer como Natalia e se acorrentar ao pilar no lugar
dela? — disse Marcin. — Ou vai deixar a cidade afundar para salvar
vocês duas?
Eva desviou o olhar de Lina, o olhar voltando para aquela chama
de cabelo ruivo, para aqueles olhos cor de avelã ardentes. Para
Marcin, que a criou, que a traiu, que a afogaria, a puniria, porque ela
não fazia as escolhas que ele queria que ela fizesse.
Marcin, que havia tirado um pedaço de seu coração muito antes
de ela tê-lo selado dentro de uma garrafa e lançado ao mar.
— Você esqueceu — Eva arrancou uma de suas pulseiras de
cordão vermelho e deu um nó, e depois outro, e outro, e outro, dedos
se atrapalhando com os laços. Correntes deslizavam pela água rasa,
ferro triturando, raspando sobre pedra. — Você esqueceu que eu
também te amo. Que de todos, exceto Natalia, eu te amei mais.
Se ela não o amasse, teria tomado a magia dele no segundo em
que voltaram da regata de primavera; ela o teria jogado na caverna
do mar e teria alimentado sua serpente com ele. Se ela não o
amasse, não teria hesitado e suas mãos não estariam tremendo
agora.
E se ela não tivesse hesitado, as coisas nunca teriam ido tão
longe. O Palácio da Água não teria inundado. Suas irmãs não ficariam
em pânico, divididas. Lina não teria se machucado. Ela não teria se
machucado.
Porque era isso que se importar fazia, no final. Baixava sua
guarda e te machucava, te matava.
Era mais seguro nunca se importar.
Correntes se enrolavam nas pernas de Marcin, arrancando
lascas de gelo negro como a noite, serpenteando ao redor de seu
torso.
— Você esqueceu que eu vou sofrer pela sua perda do jeito que
você não sofreria pela minha.
Tire a vida de quem você ama e misture com as lágrimas que
derramou por ele.
Se havia uma pessoa que Eva tinha certeza de que amava...
Deveria parecer uma vitória. Um alívio. Um mês atrás, isso nem
seria uma possibilidade. Ondas negras rugiam, destruindo-se contra a
borda da Praça de São Casimiro. Batendo, clamando, subindo mais
alto. Derramando.
A maré escura veio para pegar o que lhe era devido.
A vida de Natalia a acalmou. A vida de uma bruxa funcionaria.
Ela faria como as rainhas de Caldella fizeram por séculos. Ela
deixaria o mar comer sua tristeza, provar o sal de suas lágrimas. Uma
última vez.
Os olhos de Marcin estavam arregalados como pires quando ela
se aproximou, dedos frios alcançando uma mecha de cabelo de sua
testa pálida. Uma única lágrima escorreu pelo seu rosto, mas quando
Eva falou sua voz estava firme.
— Minha cidade não vai afundar. A cidade de Natalia não vai
afundar. Porque vou usar sua vida… a sua, Marcin, para salvá-la.
Lina

Quando a lua cheia finalmente subiu acima de Caldella quatro


dias depois, não havia ondas escuras para cumprimentá-la.
Apenas um mar esmeralda brilhante, uma cidade suspirando de
alívio e música. Baixa e sombria. Músicas que eram mais dolorosas
do que um som. Réquiens14, animados pela brisa salgada,
serpenteando pelo arco-íris empilhado de casas da cidade, tocados
em um violino solitário. Tocava para todos os garotos que perderam
suas vidas na maré em noites de luar como esta, garotos corajosos e
assustados, e para todas as bruxas que sacrificaram seus corações e
egos para manter a ilha segura.
Lina bateu nas venezianas azuis da janela do quarto de sua
prima Ivy enquanto a nota final de Finley tocava, um pequeno feitiço
para banir pensamentos ruins, para abafar aquele medo rastejante
dentro dela. Uma vez. Duas vezes. Três vezes, porque três era o
número certo. Ela deslizou uma tiara que brilhava como estrelas em
seu cabelo e alisou seu vestido prateado com lantejoulas. Colocou
um boá de penas pálidas sobre os ombros e amarrou suas contas de
coral-sangue em um nó duplo elegante em volta do pescoço.
Ela cantarolou junto quando uma nova música começou. Desta
vez, uma melodia mais turbulenta, uma melodia como liberdade e
fogo, uma melodia de esperança. Sua prima mais velha, Julie, estava
com um cachimbo, no andar de cima no jardim do terraço do tio,
sentada entre as laranjeiras sob o toldo de lona onde Laolao gostava
de fumar.
No andar de baixo, as tias marcavam o tempo; Lina podia
distinguir o estalido constante e febril dos ladrilhos de mah-jong,
mesmo com a porta do quarto fechada. Ela foi abrir.
Estava trancado.
— Finley!
Nenhuma resposta. Apenas o som distante e familiar do tio
limpando a garganta.
— Finley! — Lina sacudiu a maçaneta da porta. — Ivy! David?
Outra pausa, mais longa, e finalmente um arrastar de passos.
— Não é tão divertido quando você está do outro lado da porta,
não é?
Lina xingou e bateu a palma da mão contra a madeira. Ela podia
ver a sombra de seu irmão se movendo pela fresta na parte inferior
da porta.
— Eu vou pular pela janela — ela ameaçou.
— É mesmo? E cair e morrer? — A fechadura estalou, e Finley
abriu a porta um pouquinho, uma lasca travessa de rosto bonito
espreitando.
Lina agarrou a maçaneta da porta e puxou, se inclinando para
trás em um calcanhar, jogando todo o seu peso nela. Finley fez o
mesmo do seu lado, sorrindo.
— Eu juro por Deus! — Lina tentou encaixar um ombro entre a
porta e o batente. Finley soltou a maçaneta, e Lina foi lançada para
trás com um grito quando a porta se abriu, caindo de bunda com um
baque. Um pequeno cão branco correu para dentro da sala, latindo e
tentando ansiosamente lamber seu rosto. — Tam! Pare com isso!
Finley a ajudou a se levantar.
Lina fez uma careta.
— Você desenhou sua sobrancelha torta.
— Não, é minha sobrancelha real. Ela cresceu de volta.
Lina olhou para o rosto de seu irmão e foi tristemente forçada a
admitir que a sobrancelha em questão era de fato a coisa real.
— Bem, cresceu torta.
— Acho que você vai notar que isso me dá um charme
malandro.
— Nojento. — Lina deu uma cotovelada, assobiando para que o
cachorro de tia Van a seguisse.
— E para quem você está toda arrumada? O tio diz que você
está de castigo.
E era por isso que estavam ficando com ele e Laolao e o resto
da família próxima do tio. Para que a tia Van pudesse cumprir a
sentença de prisão de Lina, bem como entrar no quarto que Lina
estava dividindo com Ivy a cada dez minutos para fazer confusão,
repreendê-la e acariciá-la, como se quisesse assegurar a todos que
Lina não era um fantasma.
Lina parou no topo do patamar do terceiro andar e piscou
fortemente os cílios com rímel.
— Gostaria de me carregar para baixo?
Finley apoiou o quadril no corrimão e cruzou os braços.
— Não, na verdade, não.
— Mesmo que meu tornozelo esteja um pouco dolorido hoje e
seja sua culpa que eu o quebrei?
Seu irmão endureceu. O coração de Lina batia fora do ritmo. Os
canos que gemiam do telhado de repente ficaram extremamente
altos. Mas...
O inchaço na garganta de Finley balançou.
— Você vai usar essa desculpa para tudo agora, não é? Nunca
vou conseguir te recompensar por aquilo.
— Certo pra caramba — disse Lina. — Vou usar isso contra
você pelo resto de nossas vidas. Seremos velhos, enrugados e
encolhidos do tamanho de ervilhas, ambos andando com gravetos, e
eu ainda estarei choramingando: ‘Finley, seu babaca, me compre
aquele colar aí, você me deve. Lembra daquela vez que você
quebrou minha perna?
A boca de Finley se contraiu.
Eles iam ficar bem. Estaria sempre lá, a memória de sua queda
do alto dos degraus de São Dominic, grudada como tecido cicatricial.
E talvez fosse estranho tentar fazer disso uma piada, mas ajudava a
quebrar o gelo. Eles ficariam bem. Continuariam trabalhando nisso,
como Finley trabalharia para dominar seu temperamento e Lina
trabalharia em seus exercícios, até que encontrassem uma nova
maneira de seguir em frente.
Finley deu um tapa em seu topete.
— Então se apresse.
— O quê? — Ela realmente não precisava ser carregada.
Ele se ajoelhou, com as mãos atrás das costas, pronto para
carregá-la.
— Vai subir ou não?
Lina subiu.
Finley fingiu cambalear e soltou um gemido exagerado. Lina deu
um tapa nele. Ele subiu as escadas com cuidado, uma de cada vez,
passando pela sala de estar e depois pelo saguão do primeiro andar,
passando pelas tias rindo, reclamando e fofocando, suas vozes tão
altas que provavelmente eram ouvidas até no palácio da Rainha das
Bruxas. Eles se esquivavam dos tios escondidos em poltronas com
seus dedos gordos entrelaçados em cima de suas barrigas
arredondadas; primos e outras crianças aleatórias, bocejando e
parecendo entediados, jogando cartas ou mijando, mastigando
biscoitos de gengibre e os restos de tortas de ovo.
Deles, apenas Jana olhou para cima e estreitou os olhos. A
prima deles empurrou o que Finley chamava provocativamente de
óculos de médico, no nariz.
Lina abaixou a cabeça. Ela já tinha recebido a maior bronca no
retorno deles para cuidar melhor de si mesma. Jana lhe dera ordens
estritas para descansar e um novo conjunto de exercícios de
fortalecimento do tornozelo.
Finley passou direto para fora da casa e para a rua, com a
promessa de que estavam apenas saindo para verificar a maré. Lina
ficou irracionalmente irritada por eles terem acreditado nele, por terem
deixado ele sair. Porque é claro que seu irmão conseguiu escapar de
ser punido por qualquer coisa que tivesse acontecido. Ele voltou com
ela do Palácio da Água como uma espécie de herói.
O cachorro da tia Van, Tam, correu atrás deles.
— Onde você está…
— Para onde você estava planejando escapar? — Finley
interrompeu. — Josef me disse que Thomas Lin está deixando a ilha
esta noite em uma traineira de pesca com destino a Skani, sem
planos de voltar. Ele também disse que ouviu Lin pedir a uma certa
pessoa para ir com ele.
As passarelas de madeira que desciam para o cais rangeram,
gemeram. A queda dos passos de Finley e o clique das garras de
Tam foram lavados pelo suave silenciar da água salgada batendo nas
tábuas.
A água não é mais negra como a meia-noite mais profunda, tão
escura quanto um céu sem estrelas e sem lua, mas calma, rasa e
brilhante. Um verde esmeralda brilhante incendiado pelas lanternas
âmbar presas entre os telhados das casas da cidade como
bandeirinhas. Água de uma cor que Lina só tinha visto nos meses
após um sacrifício bem-sucedido.
O primeiro sacrifício bem sucedido em dois longos anos.
E o último, se os rumores fossem verdadeiros. A Rainha das
Bruxas de Caldella havia mandado uma mensagem: ela não se
curvaria mais à maré. Não iria alimentá-la com mais vidas. Eles
encontrariam outra maneira de quebrar essa maldição anual que
atormentava sua ilha.
Nada mais de meninos dados ao mar. Nada de glorificar a morte
e fazer barganhas sangrentas com a maré. Nada de trocar vidas
inocentes por segurança.
Lina respirou fundo.
— E o quê, acha que eu vou com ele? Assim? Com apenas as
roupas nas minhas costas? Como Mamis se escondendo no navio de
Mainha?
— Você sempre gostou de uma boa história — Finley a colocou
ao lado do poste listrado de vermelho e branco onde seu barco-
vassoura estava ancorado.
Lina hesitou, mas quando seu irmão não fez nada, ela começou
a desamarrá-lo, a corda pousando no fundo do barco com um baque
antes de parar uma segunda vez, puxando uma mecha de cabelo
recém-tingido. Ela ainda não tinha certeza sobre sua nova cor
prateada brilhante. Talvez ela devesse ficar natural, ou deixar crescer,
ou cortar tudo. Nunca conseguia se decidir. Por um segundo, ela
encarou as torres cinzentas do palácio da Rainha das Bruxas, que
dava para ver, não importa de onde estivesse na ilha. Então, seus
olhos voltaram para seu irmão.
Finley se agachou para pegar um punhado de água, deixando-a
escorrer por entre os dedos, como se ainda esperasse que a
escuridão voltasse. Como se esperasse que a água ao redor do barco
ficasse repentinamente preta, gavinhas de sombra serpenteando pela
superfície, espalhando-se como um derramamento de óleo.
— Você não vai me impedir? E se tivesse dito que ia com ele?
Finley olhou para cima quando Lina subiu no barco. Havia algo
solene em seus ombros, uma severidade fora do comum em seus
olhos cinza-tempestade. E então ele sorriu, um lampejo de dentes
perfeitos, estendendo a mão para colocá-la em sua cabeça e
bagunçar seu cabelo, provocando um guincho indignado. Ele chutou
o barco para longe do cais. Tam latiu.
— Você não vai a lugar nenhum.
A reação de Lina foi imediata.
— Você não sabe disso!
— Claro que sei. Eu sou seu irmão. — Finley estalou o pescoço.
— Uma hora, e então vou assobiar para o barco voltar. Você sabe
que o tio vai esfolar você viva.
Lina encolheu os ombros quando o barco balançou na corrente.
— Já enfrentei coisas piores.
— Por enquanto — Finley disse atrás dela. — Mamis e Mainha
atracam ao amanhecer. Você vai ter que enfrentá-las.
Ao amanhecer. Uma emoção de saudade, alívio e nervos
percorreu Lina. Suas mães em casa amanhã, em casa e seguras. Ela
fez uma careta para Finley e bateu na lateral do barco com os nós
dos dedos, fazendo-o sair pela água. Havia tantas coisas que ela
tinha que dizer a elas, tantas coisas que ela nunca iria dizer a menos
que quisesse ficar de castigo por mais um milhão de anos.
Ela podia imaginar o que o resto da família diria. Um dia, Lina
jurou, ela deixaria de ser a prima sobre a qual todos fofocavam, a
história de advertência que as tias sussurravam para seus próprios
filhos.
Havia coisas que ela precisava perguntar a Mamis e Mainha
também, mas não sabia se poderia. Lina admirava muito suas mães,
e ela não se importaria de ser como elas, mas ao mesmo tempo, não
queria ser elas. Ela queria ser ela mesma. Queria sua própria história.
Ela queria ser diferente.
E uma parte dela tinha certeza de que era diferente delas,
porque ela também gostava de Thomas. Ela não achava que iria
parar de gostar de garotos, mesmo que quisesse beijar garotas
agora, também. E ela não tinha certeza se isso a tornava, bem, o
suficiente para se encaixar no mundo de suas mães.
Lina balançou a cabeça rapidamente. Ela não queria pensar
nisso. Gostar de meninos ou de beijar meninas. Beijar bruxas. Beijar
Eva. Ela não queria nem pensar em Eva.
Porque não era como se Eva estivesse pensando nela.
A Rainha das Bruxas não olhou para Lina uma vez enquanto ela
realizava o sacrifício. Nem quando acorrentou Marcin ao pilar. Nem
quando ela ficou rígida e silenciosa enquanto alimentava o mar.
Lina estava ocupada também, arrastando um Thomas
semiconsciente para o abrigo das arcadas alinhadas em colunas de
São Casimiro, enquanto as ondas negras desabavam.
Mas mesmo depois, quando ela o deixou, chapinhando na água
em direção àquela figura curvada com seus cabelos esvoaçantes e
coroa de aço queimado e pregos, Eva não se virou. E, quando Lina
conseguiu chegar ao lugar onde ela estava, não havia nada além de
cachos de fumaça desaparecendo.
Também não houve nada no dia seguinte. Nenhum sinal de
nenhuma das bruxas. Nenhuma das habituais celebrações festivas
que aconteciam depois de um sacrifício bem sucedido.
Lina ficou com um tipo de vazio estranho e oco, e ela se
perguntou se conseguiria um vislumbre de Eva, caso se juntasse à
festa um ano depois. Um vislumbre da malvada Rainha das Bruxas
enquanto ela dançava entre os foliões disfarçada, aparecendo um
segundo como a pessoa que você amava, transformando-se no
próximo na pessoa que o garoto ao seu lado amava, enganando você
para pegar a mão dela, enganando você para beijá-la.
Lina mordeu os lábios e sentiu gosto de sal.
Ela se perguntava agora se era realmente verdade que não
haveria mais sacrifícios. Se realmente não haveria mais folias e
fogueiras e danças na véspera de Santa Walpurga. Ela se perguntou
se algum dia veria Eva novamente.
Ela não deveria querer, mas queria. Seu coração batia mais
rápido quando ela imaginava isso, e sua mente continuava vagando,
evocando imagens de uma garota com um sorriso tão afiado que
deixava marcas de dentes em seus devaneios. Ela não sabia o que
era essa coisa entre elas. Não sabia se havia algo entre elas, o que
Eva realmente sentia por ela.
Mas ela queria descobrir. E tinha a sensação de que o que quer
que acontecesse, não importa se fosse o desastre mais completo e
espetacular, seria uma história que valeria a pena contar depois.
Uma nuvem passou sobre a lua quando Lina se aproximou de
seu destino, o píer mais longo de Caldella. O spray gelado acariciou
suas bochechas, pôs cristais em seus cílios.
O barco-vassoura balançava ao lado das tábuas de madeira,
diminuindo a velocidade à medida que se aproximava de uma figura
caminhando ao longo da beira do píer. Um menino com cabelo
dourado e pele bronzeada pelo mar. Um menino com um estojo de
violão pendurado nas costas.
Os passos de Thomas Lin também diminuíram.
— Você fez alguma coisa com o seu cabelo?
A mão de Lina foi automaticamente para sua cabeça.
— Mais ou menos. Ainda não tenho certeza se gostei.
— Ficou bom.
— Obrigada.
O cais rangeu. A brisa sussurrou, farfalhando o vestido de Lina.
Um silêncio tomou conta deles. Thomas deu passos cada vez
menores. Não dá para congelar um momento ou impedir que o
mundo gire, mas dá para aguentar o maior tempo possível,
absorvendo cada último suspiro antes que as coisas mudem.
Um nó se formou na garganta de Lina, e ela estava cheia da
mesma tristeza transbordante que sentia quando chegava ao fim de
uma história, quando percebia que algo estava terminando.
— Ouvi dizer que está frio em Skani — ela tentou.
Obviamente. É a terra da geada e do gelo. Pare de falar. Só
pare de falar.
— Eu falei sério — disse Thomas —, quando perguntei se você
gostaria de vir comigo.
— Eu sei, mas… eu sei, mas não posso. — Lina não conseguia
dizer em voz alta que não queria, que não estava disposta a desistir
de sua família, seus amigos, que não deixaria a ilha que amava por
ele, a ilha onde ela aprendeu a dançar. Sua cidade afundando com
seu mar voraz, suas bruxas e encantamentos.
E ela não achava que poderia dizer a ele que não tinha certeza
se ainda queria ele. E que talvez ela quisesse descobrir mais sobre o
que queria e quem ela era primeiro, antes de tomar esse tipo de
decisão.
Thomas parou e se sentou de repente na beira do píer, o estojo
do violão raspando na madeira, as pernas compridas balançando
sobre a água. Lina cambaleou para ficar de pé no barco.
A maré estava alta e suas cabeças estavam quase no mesmo
nível. Thomas se inclinou para frente, estendendo a mão. Por um
segundo selvagem, Lina pensou que ele ia beijá-la. E por um
segundo, parecia que ele também pensava assim.
Seu coração pulou uma batida. Mas Thomas hesitou e o
momento se rompeu.
Ele estendeu a mão em vez disso.
Lina pegou, seus dedos entrelaçados com os dele. Palma
áspera, quente e um pouco pegajosa.
— Perguntei tarde demais, não foi? Se tivesse dito algo sobre
como me sentia antes de tudo isso… — Ele olhou para o céu, para a
lua cheia, soltando o fôlego, soltando. — Eu nunca poderei te
recompensar.
— Não precisa.
— Mesmo assim. — Thomas apertou a mão dela. — Não vou
esquecer. Nada disso. Não vou esquecer como dançamos na festa.
Eu não vou esquecer como você veio atrás de mim. Não vou te
esquecer, Lina Kirk. Nunca. Enquanto eu viver.
Lina engoliu.
Thomas desembaraçou a mão dela. Ajustou a alça do estojo do
violão mais alto no ombro e, girando sobre os pés vacilantes,
caminhou rápido desta vez, sem olhar para trás.
Lina esperou até que ele alcançasse a sombra da traineira de
pesca, então bateu no barco-vassoura com os nós dos dedos e
partiu.
Eva

Era a hora das bruxas. A hora da escuridão e da meia-noite.


Uma hora em que coisas sombrias saíam para brincar, e a Rainha
das Bruxas de Caldella gostava de pensar que ela era a mais sombria
de todas.
Os passos de Eva ecoaram enquanto ela seguia pela passagem
estreita e inclinada até os níveis mais baixos do Palácio da Água, até
o ar mofado se misturar com o cheiro de sal e mar. O vento libertou
mechas negras de sua coroa de tranças, e ela parou quando a
passagem terminou abruptamente, a maré mordiscando suavemente
a pedra em ruínas.
Ela saiu para a superfície da água esmeralda, para a luz da lua
cheia. Sapatos encantados deixaram uma corrente de ondulações
com bordas prateadas atrás dela enquanto cruzava as ondas escuras
da noite e caminhava sobre as ruínas afundadas da cidade velha.
A cidade viva assomava à frente, sombras crescentes e luz
dourada quente piscando em centenas de janelas como punhados de
estrelas espalhadas lançadas por um deus descuidado. A vida e o
riso fluíam por aquelas janelas também, dos jardins, dos telhados e
das portas abertas, um alívio palpável na brisa. Eva ouviu
atentamente enquanto caminhava para aqueles sons carregados,
para as esperanças e medos dos ilhéus, para seus sonhos e desejos
secretos. Vozes emaranhadas em sua cabeça, e ela as separou,
seguindo cada fio até o fim, gastando um pouco de magia para
procurar uma voz em particular.
No momento não estava falando, mas cantando, uma melodia
que irritou os ouvidos de Eva.
A Rainha das Bruxas vem nas asas da noite,
A Rainha das Bruxas tem o deleite do seu coração.
Segure ela, segure ela, segure…
Calor inundou suas bochechas. Yara caiu em gargalhadas
impotentes quando ouviu a mais nova versão da famosa canção, as
bruxinhas soltando risadinhas quase histéricas. Os primeiros sons
brilhantes no palácio desde...
Os passos de Eva vacilaram e depois continuaram. Ela não
conseguia decidir se queria proibir os ilhéus de cantar a música, usar
magia para roubar todas as suas vozes, apagar as palavras de suas
memórias ou apenas transformá-los em gaivotas.
— Mas se você fizer isso — Yara havia apontado —, quem
sobraria para você governar?
E o que era uma rainha sem seus súditos? Uma rainha caída.
Uma rainha do nada e de ninguém.
Ainda assim, ela não precisava gostar disso e não precisava
concordar com o que a música estava insinuando. Eva preferia ver o
fato de ter pulado no fogo atrás de Lina Kirk como um momento de
insanidade passageira, um efeito colateral atrasado do sonífero de
Marcin, um infeliz subproduto de quase se afogar no salão de baile
inundado. Quanto a poupar Lina e sacrificar Marcin...
Bem, não foi Lina quem tentou matá-la.
— Elas temem você agora, sabe — Cyla sussurrou, referindo-se
a todas as outras bruxas. — Preocupam-se com o que você fará, se
eles saírem da linha.
Bom.
Saber disso não incomodou Eva tanto quanto deveria, tanto
quanto poderia ter feito uma vez. Se ela deveria governar através do
medo em vez do amor, então que assim fosse.
Deixe eles temerem ela. Ela nunca seria sua irmã.
Ela seguiu o canto, que acabou se transformando em zumbido
quando se aproximou da velha torre do sino. Ela passou a ponta do
dedo pelos tijolos em ruínas. O pináculo da torre projetava uma
sombra sobre o barco-vassoura balançando abaixo de sua cúpula
enferrujada, sobre uma garota de vestido prateado e boá de penas
esvoaçante, seus olhos cinza-tempestade fixos na lua cheia. Uma
garota com o cabelo do pálido brilho de diamante da luz das estrelas
no mar.
Lina pulou, quase caindo do banco do barco quando Eva se
esgueirou silenciosamente ao seu lado e acendeu um cigarro, a luz
laranja acendendo de repente.
— Minha nossa senhora! Você... não dava para dizer algo
primeiro? — Lina se inclinou para fora do barco e jogou uma grande
onda de água em Eva.
Eva saiu agilmente do caminho, depois entrou no barco como se
fosse a dona.
— Eu poderia mandar te executar por isso.
— Parece um desperdício depois de tudo que passou para me
salvar.
— Talvez eu me arrependa de ter salvo você. — Ela se
arrependeu das palavras no segundo em que saíram de sua boca.
Lina pareceu encolher. Ela jogou a ponta de seu boá de penas
sobre um ombro de uma forma despreocupada, mas sua coluna
estava rígida.
Eva sacudiu a cinza da ponta do cigarro. Se ela ainda tivesse
um coração, ele poderia ter batido um pouco mais rápido. Mas ela
não tinha. Então ele não bateu. Ela afundou no banco ao lado de
Lina.
— Não me arrependo de ter salvado você. Eu faria isso de novo.
Quantas vezes necessárias.
Uma batida ansiosa se passou em que ela debateu se deveria
ou não pular para fora do barco ou se transformar em fumaça.
Em vez disso, ela deu uma tragada rápida e estendeu o cigarro.
— Eu prefiro charutos — disse Lina suavemente, mas ela pegou
o cigarro de qualquer maneira, colocando o filtro manchado de batom
entre os lábios.
Eva soltou um suspiro e observou-o subir em espiral para o céu.
Uma estranha sensação de formigamento, como alfinetes e agulhas,
mas por toda parte, estava rastejando sob sua pele, e ela ficou
alarmada ao perceber que era pânico.
Ela cruzou os tornozelos, pernas longas vestidas com calças
alinhadas com as de Lina, suas coxas quase se tocando porque o
banco era muito pequeno. Ela deveria ir embora. Deveria voltar por
onde veio. Voltar ao Palácio da Água. Aquela foi uma ideia estúpida e
tola. Yara deveria tê-la impedido. Cyla deveria tê-la impedido. Que
tipo de família eram, se não a impedissem de parecer uma tola?
É mais seguro não se importar.
É mais seguro nunca se importar, porque se importar machuca,
e se importar te mata.
Mas Eva sempre foi um pouco imprudente com a magia e com o
coração. Ela sangrou suas veias no mar por amor à irmã, arrancou o
próprio coração por causa da dor e, mesmo agora, quando não tinha
coração para falar, ainda não conseguia resistir ao risco.
— É proibido fumar dentro do palácio agora? — disse Lina — E
é por isso que você tem que se esconder aqui como uma criminosa
ruim?
— Na verdade, dava para ouvir seu canto e o som era tão
terrível que todos me imploraram para vir aqui e fazer parar.
Lina fez uma careta.
Um sorriso afiado puxou os lábios de Eva, então morreu.
— Ouvi dizer que Thomas Lin estava deixando a ilha, zarpando
na maré da meia-noite.
E achei que você iria com ele.
— Por favor, me diga que você não veio aqui para afundar o
navio dele — disse Lina.
— Não tinha pensando nisso. Mas agora que você mencionou…
Lina lançou a Eva um olhar que era meio exasperado, meio...
outra coisa.
— Achei que você iria com ele. — Ela baixou o olhar ao dizer
isso, tentou não fazer uma pergunta muito desesperada.
— Não. Não vou.
Um nó dentro do peito de Eva se desfez e depois se apertou mil
vezes mais.
— Sem mais sacrifícios? — disse Lina, quebrando o silêncio.
Uma pequena faísca laranja, a ponta acesa do cigarro passou entre
elas.
Eva assentiu. Sem mais sacrifícios.
— Yara disse… — Ela não sabia por que estava contando para
Lina. Não era como se ela fosse entender. — Ela disse que talvez
tenha sido por isso que Natalia me fez rainha. — Não porque ela
confiava em Eva para fazer o que ela tinha feito para a ilha, mas
porque... — Porque eu tentei encontrar outra maneira de acalmar a
maré, e ela pensou que eu continuaria lutando por isso. — Natalia
não esperava que Eva desistisse. — Ainda pode não ser possível —
acrescentou. — Talvez não exista maneira.
— Vamos continuar tentando encontrar uma — disse Lina. —
Juntas. Por mais que demore.
— Isso não foi um pedido de sua ajuda.
— Que pena — Lina se mexeu, o corpo inclinado para o lado de
Eva, deixando sua cabeça descansar no ombro de Eva.
Eva quase engoliu o cigarro.
— Venha me ver dançar quando puder novamente, quando meu
tornozelo estiver mais forte.
Eva deu uma tragada longa e trêmula, inclinou a cabeça para
trás e levou um tempo para soprar a fumaça, apreciando a forma
como Lina começou a se agitar com impaciência.
— Só se você for dançar para a serpente do mar.
Lina soltou seu colar. Ela poderia estar sorrindo, dava para ouvir
em sua voz.
— Porque ela gosta de mim?
— Porque eu gosto de você — disse Eva, antes de acrescentar
rapidamente: — Não sei por quê.
Lina estava definitivamente sorrindo agora, a cabeça ainda
apoiada no ombro de Eva, mas o rosto erguido para o céu noturno.
Ela tamborilou os nós dos dedos na lateral do barco-vassoura,
fazendo-o balançar para a frente, conduzindo-as através de ruínas
sombreadas e iluminadas pela lua. Elas compartilharam a fumaça
restante, sem nenhum outro som para perturbá-las além do suave
shusha-shusha da maré.
Agradecimentos

Honestamente, não há palavras para expressar minha gratidão


por todas as pessoas que ajudaram a transformar The Dark Tide em
um livro real.
Em primeiro lugar, um obrigada gigante para Aully Qian, que leu
essa história primeiro e todas suas várias, várias versões seguintes.
Sou abençoada por poder te chamar de minhe amigue. Não teria
chegado aqui sem você e mal posso esperar para ver o seu trabalho
publicado pelo mundo um dia!
Para minha agente verdadeiramente mágica, Rena Rossner —
você fez meu sonho virar realidade! Não consigo agradecer o
suficiente por ter acreditado em mim e na minha história.
Para minha editora fabulosa, Annie Berger, por ter dado uma
chance para o livro queer de bruxas do meu coração. E para Cassie
Gutman, Sarah Kasman e todo mundo na Sourcebooks Fire que me
ajudou a fazer essa história brilhar. Fico grata por meu livro ter
encontrado um lar tão maravilhoso!
E para minha editora Aussie15, Amy Thomas — seu entusiasmo
por essa história significa o mundo para mim.
Para Naomi Hughes, pelo seu feedback maravilhoso logo no
começo, por todos os seus conselhos e para uma maravilhosidade
em geral.
Para todes ês minhes amigues por seu apoio entusiástico e
infinito, e por entender quando eu precisava sumir da face da Terra
para terminar as coisas. Sou muito sortuda por conhecer cada ume
de vocês!
Para minha avó — por favor, me perdoe por mencionar seu
sapato de couro. Eu te amo para todo o sempre.
E, é claro, para minha mãe, pai e irmã — obrigada por
aguentarem todas as minhas esquisitices e sempre me amarem e me
apoiarem.
E, finalmente, para todes ês leitores que seguiram a história de
Lina e Eva até a última página, obrigada do fundo do meu coração.
Notas
[←1]
Sequência de notas rápidas, sem nenhuma continuidade, ou seja, cada nota
difere da outra.
[←2]
Um cachimbo é um instrumento de sopro tubular em geral, ou vários
instrumentos de sopro específicos.
[←3]
Regata é um evento esportivo que consiste em uma série de corridas de barco à
vela, a motor ou a remo .
[←4]
É como um delineador, usado principalmente antigamente.
[←5]
Hip flask: Um pequeno frasco para licor, destinado a ser carregado no bolso da
cintura.
[←6]
Pontoon é um flutuador de fundo chato ou cilíndrico, usado em dois ou três,
para sustentar o convés de determinados modelos de barco.
[←7]
Mastro colocado obliquamente na proa de um navio.
[←8]
vela que se encontra no mastro com o mesmo nome. É a vela de maior
dimensão do mastro de vante (proa).
[←9]
o ponto mais alto alcançado em um som gradualmente crescente
[←10]
Uma composição curta de um personagem romântico ou sonhador sugestivo de
noite, tipicamente para piano
[←11]
Abalone: é um gênero de moluscos gastrópodes marinhos da família Haliotidae
e o único gênero catalogado desta família.
[←12]
Mercurial: sujeito a mudanças repentinas e imprevisíveis de humor ou mente.
[←13]
Libações: uma bebida derramada como oferenda à uma divindade.
[←14]
Um Réquiem ou Missa de Réquiem, também conhecida como "Missa para os
fiéis defuntos" ou "Missa dos fiéis defuntos", é uma missa da Igreja Católica oferecida
para o repouso da alma
[←15]
Aussie é uma gíria para australiano.

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