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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
F553e Fitzgerald, F. Scott
Eu morreria por ti e outras histórias / F. Scott Fitzgerald ; ilustrações por Virgilio Dias ;
tradução por Leonardo Alves. – Rio de Janeiro : Antofágica, 2022.
ISBN: 978-65-86490-59-6
1. Literatura americana. I. Dias, Virgilio. II. Alves, Leonardo. III. Título.
CDD: 813 CDU: 821.111(73)
DANIEL LAMEIRA
LUCIANA FRACCHETTA
RAFAEL DRUMMOND
&
SERGIO DRUMMOND
SUMÁRIO
II
A moça do outro lado do corredor ficou tão atônita com meu
grito de angústia e espanto que trocou bola por xis.
Imediatamente me veio a visão de uma imensa fila de gente
desde a rua 40, onde fica minha editora, até a Bowery —
quinhentas mil pessoas, cada uma agarrada a um exemplar de
A aristocracia do mundo dos espíritos, cada uma exigindo o
reembolso de seus 2,50 dólares. Ponderei rapidamente se seria
possível mudar todos os nomes e transferir o livro do catálogo
de não ficção para o de ficção. Mas já era tarde demais até para
isso. Havia trezentos mil exemplares nas mãos do Público
Americano.
Quando me recuperei razoavelmente, o jovem me relatou a
história de suas experiências desde que fora declarado morto.
Três meses em uma prisão alemã, dez meses hospitalizado
com febre cerebral, mais um mês para conseguir se lembrar do
próprio nome. Meia hora depois de chegar a Nova York,
encontrara um velho amigo que o encarara, engasgara e se
estatelara no chão. Quando ele recobrou os sentidos, os dois
foram juntos a uma farmácia para obter um tônico, e, no curso
de uma hora, Cosgrove Harden ouviu um relato absolutamente
chocante sobre si.
Ele pegou um táxi até uma livraria. O livro que queria estava
esgotado. Imediatamente, pegou o trem para Joliet, Ohio, e, por
um raro golpe de sorte, o livro caiu em suas mãos.
O primeiro pensamento que me ocorreu foi que ele era um
chantagista, mas, comparando-o com a fotografia na página 226
de A aristocracia do mundo dos espíritos, vi que, sem dúvida,
era Cosgrove P. Harden. Ele estava mais magro e mais velho do
que no retrato, tinha raspado o bigode, mas era o mesmo
homem.
Dei um suspiro — profundo e trágico.
— Justo quando está vendendo mais que livro de ficção.
— Ficção! — retrucou ele, furioso. — É ficção!
— De certa forma… — reconheci.
— De certa forma? É ficção! Atende a todos os critérios de
uma ficção: é uma longa e bela mentira. Você chamaria isso de
fato?
— Não — respondi, com calma —, eu chamaria de não
ficção. Não ficção é uma forma de literatura que fica no meio do
caminho entre a ficção e o fato.
Ele abriu o livro em uma página aleatória e emitiu uma
ligeira exclamação de angústia que fez a moça ruiva parar no
meio do que devia ser, no mínimo, a semifinal de seu
campeonato de jogo da velha.
— Aqui! — bradou ele, transtornado. — Aqui! Está dizendo
“segunda-feira”. Considere minha existência nessas “praias
distantes” na “segunda-feira”. Estou lhe pedindo! Aqui! Estou
cheirando flores. Passo o dia cheirando flores. Está me
entendendo? Na página 194, no começo da página, cheiro uma
rosa…
Levo o livro cuidadosamente até as narinas.
— Não estou sentindo nada — falei —, talvez a tinta…
— Não cheire — gritou ele. — Leia! Cheiro uma rosa e isso
me lança em um êxtase de dois parágrafos sobre a nobreza
instintiva do ser humano. Um cheirinho! Depois dedico mais
uma hora às margaridas. Céus! Nunca mais vou poder ir a um
encontro de ex-alunos da faculdade.
Ele virou algumas páginas e deu outro gemido.
— Aqui estou com as crianças… dançando com elas. Passo
o dia inteiro com elas, e dançamos. E não é nem um shimmy2
razoável. Dançamos umas coisas estéticas. Não sei dançar.
Odeio crianças. Mas é só eu morrer que me transformo em uma
mistura de babá e bailarino.
— Ora, vamos — arrisquei, em tom de reprovação —, esse
trecho foi considerado muito bonito. Veja, está descrevendo
suas roupas. Você está vestido com, vamos ver, bom, uma
espécie de traje diáfano. Ele se estende para trás do seu
corpo…
— …uma espécie de roupa de baixo flutuante — disse ele,
melancólico —, e estou com a cabeça toda coberta de folhas.
Eu precisava admitir: as folhas estavam implícitas.
— Ainda assim — propus —, pense que poderia ter sido
muito pior. Ele poderia ter feito você parecer ridículo se o
pusesse para responder perguntas sobre o número no relógio
do seu avô ou os 3,80 que você devia de uma partida de
pôquer.
Um instante de silêncio.
— Gozado, o meu tio — disse ele, pensativo. — Acho que
está ficando meio doido.
— Nem um pouco — prometi. — Lidei com escritores
durante a vida inteira, e ele deve ser o mais sensato com quem
já trabalhamos. Nunca tentou pedir dinheiro emprestado, nunca
pediu que demitíssemos nosso departamento de publicidade e
nunca jurou de pés juntos que seus amigos não conseguiam
encontrar nenhum exemplar de seu livro em Boston,
Massachusetts.
— Seja como for, o corpo astral dele vai levar uma baita
surra.
— É só isso o que você vai fazer? — indaguei, ansioso. —
Não vai aparecer com seu nome verdadeiro e estragar as
vendas do livro dele, não é?
— O quê?!
— Você não faria isso. Imagine o sofrimento que causaria.
Arruinaria a felicidade de quinhentas mil pessoas.
— Todas mulheres — disse ele, melancólico. — Elas
gostam de ser infelizes. Veja a minha garota… minha antiga
noiva. O que acha que ela pensou dos meus devaneios floridos
desde que a deixei? Acha que ela gostou de me ver dançando
com um monte de crianças por todo canto… por todo canto da
página 221? Despido!
Eu estava desesperado. Precisava saber o pior
imediatamente.
— O que… o que você vai fazer?
— Fazer! — exclamou ele, inflamado. — Ora, vou
despachar meu tio para a penitenciária junto com o editor, o
publicitário e todo aquele bando, até o auxiliar da gráfica que
carregou as malditas chapas de impressão.
III
IV
1 A palavra “apaches” não se refere à tribo indígena da América do Norte, mas sim a
uma gangue de jovens parisienses armadas com facas no início do século XX. [N. de
T.]
2 Estilo de dança de salão surgido nos Estados Unidos no início do século XX, em
que os dançarinos sacudiam e tremiam o corpo. [N. de E.]
FAZER O QUÊ
I
II
III
IV
II
III
IV
De volta ao banco com Roger, Atlanta olhou para a multidão que
se afastava, recusando-se a acenar ou a se alegrar. Caía uma
garoa leve de novo, e as pessoas vestiam casacos e cobriam a
cabeça com jornais; carros buzinavam de forma imperativa nas
vagas e as bandas se calavam uma a uma nas esquinas, à
medida que seus instrumentos emitiam os últimos sinais antes
de serem abrigados contra a chuva que apertava.
O grupo do lago Lure correu da alegoria para o carro —
Atlanta se sentou na frente, ao lado de Roger. Quando deixaram
Isabelle no apartamento dela, Roger perguntou:
— Você não quer sentar lá atrás?
— Não.
Eles saíram da cidade fitando, em silêncio, o aguaceiro no
para-brisa.
— Quero conversar com você — disse ela, enfim —, mas
você está muito bravo comigo.
— Não mais — disse Roger. — Não consigo ficar assim
duas vezes.
— Bom, aconteceu algo que parece terrível e…
— Que pena — interrompeu ele, com delicadeza. — Mas,
como você vai voltar para a sua mãe daqui a só uma semana,
pode contar para ela.
Diante da rispidez dele, Atlanta começou, por instinto, uma
espécie de retoque de emergência, limpando a maquiagem de
fantasia do rosto, tirando os enchimentos da cintura, sacudindo
o cabelo molhado e penteando-o como uma aura em torno da
cabeça. Depois, curvando-se para a luz fraca do painel, pediu a
ele:
— Deixe-me fazer uma pergunta.
— Hoje não, Atlanta. Ainda não me recuperei do choque.
— Que choque?
— O choque de descobrir que você é só mais uma mulher.
— Vou fazer uma pergunta: alguém já se matou mesmo por
amar demais uma pessoa? Quer dizer, você acha possível?
— Não — disse ele, com firmeza. — Por quê? Está
pensando em se matar pelo sr. Deluxe?
— Não fale tão alto. Mas escute, teve gente que fez isso,
não é?
— Não sei. Pergunte para um dos roteiristas lá no oeste…
eles vão saber. Ou pergunte a Prout. Ei, Prout…
— Não faça cena de novo!
— Então é melhor não conversarmos.
O carro passou pela Chimney Rock e virou para o hotel sob
um silêncio gotejante. Eles levaram uma hora na estrada, mas
para Atlanta parecia ter passado só um minuto desde que ouvira
a voz de Isabelle Panzer no carro alegórico. Ela não estava com
raiva — sua emoção era de tristeza profunda —, e no meio de
tudo ela sentia uma pena perversa de Delannux.
Mas quando ele perguntou no saguão se todos estavam
totalmente determinados a ir dormir — uma pergunta
obviamente destinada a Atlanta —, ela se apressou a
responder:
— Vou tomar um banho. Nunca me senti tão desconfortável.
Mas ela não conseguiu dormir. Pela primeira vez na vida,
para o bem ou para o mal, estava emocionalmente insone,
tentando ora analisar sua paixão pelo homem, ora se convencer
a tirá-lo da cabeça, ora pensar no que fazer. Se não fosse pela
preocupação de Roger, ela teria ido lá e perguntado — mas
agora não havia ninguém. Era quase manhã quando ela
cochilou — e acordou sobressaltada antes das sete. Uma
olhada pela janela escura lhe disse que ninguém trabalharia nas
próximas horas de qualquer jeito, e a camareira confirmou esse
fato ao chegar. Atlanta vestiu o traje de banho sem empolgação
e desceu para dar um mergulho no lago, nadando em uma
superfície irreal que existia entre um mundo de água que
parecia um nevoeiro e um firmamento precipitante de ar. Então
subiu para o hotel e tomou café e se vestiu, e com isso já eram
quase nove horas. Lá embaixo, ela leu uma carta da mãe e
passou um tempo com Prout na varanda.
— Roger está de mau humor — anunciou ele. — Espalhou
peças de câmera pela cama toda.
— Talvez ele tenha sorte por arranjar alguma coisa para
fazer em um dia de chuva.
Em seguida ela foi para o saguão e pediu o número do
quarto do sr. Delannux. Quando bateu à porta e ele atendeu
com um “Pois não?”, ela gritou:
— Por que você nunca se levanta? Você passa o dia todo
escondido? É uma coruja?
— Entre.
Passando pela porta, ela parou. O quarto estava um caos
de bagagens, e Carley estava ocupado ajudando um menino a
fechar uma mala.
— Achei que você fosse descansar — disse ele. — Achei
que num dia de chuva…
— O que você está fazendo? — perguntou ela.
— Fazendo? — Ele parecia um pouco culpado. — Ah, para
falar a verdade, estou indo embora. A questão, Atlanta, é que
agora é seguro, para mim, voltar para o mundo lá fora.
— Você disse que levaria mais uma semana.
— Você deve ter entendido errado. — Ela continuou parada
no meio do quarto enquanto ele falava. — Quando você bateu
na porta, eu levei um susto. Podia ser o oficial de justiça, afinal.
— Você disse que tinha mais uma semana — repetiu ela,
teimosa.
O menino negro fechou a mala com um estalo. Os olhos
dele se voltaram em interrogação para Delannux…
— Volte daqui a quinze minutos — disse Carley.
O menino fechou a porta atrás de si.
— Por que você está indo embora? — perguntou Atlanta. —
E sem falar nada para ninguém? Eu chego e vejo suas malas
todas prontas. — Ela balançou a cabeça, impotente. — É claro
que não é da minha conta o que você faz.
— Sente-se.
— Não vou me sentar. — Ela já estava quase chorando. —
Parece até que você fez as malas em dez minutos… olhe esse
monte de sapatos. O que acha que vai fazer com eles?
Ele deu uma olhada nos sapatos esquecidos dentro do
armário, depois virou-se de novo para Atlanta.
— Você ia embora sem se despedir — acusou ela.
— Eu ia me despedir.
— Sim… depois de colocar todas as malas no carro,
quando já não tivesse mais jeito.
— Eu tinha medo de me apaixonar por você — disse ele,
delicadamente. — Ou de você se apaixonar por mim.
— Não precisa se preocupar com isso.
Ele olhou para ela com um lampejo de humor.
— Chegue mais para cá — disse ele.
Uma vozinha dentro de Atlanta disse que ele estava
tentando usar algum poder nela, que era só um joguinho
perverso. Então outra voz, aparentemente mais forte, o perdoou
por isso e a levou a interpretar a ordem como um pedido
desesperado.
Ele repetiu:
— Venha cá.
… e ela deu um passo à frente.
— Mais perto.
Atlanta o tocou, e de repente o rosto dela alcançou o dele.
Então, após o beijo, ele a segurou pressionando as mãos por
dentro dos braços dela…
— Então você entende por que eu acho melhor ir embora.
— Isso é um absurdo! — exclamou Atlanta. — Quero que
você fique! Não estou apaixonada por você… juro! Mas, se você
for, vou passar o resto da vida achando que foi por minha
causa.
Ela estava sendo tão transparente que não sentia nem
vergonha — queria que ele visse a verdade sob a superfície.
— Não tenho ciúme da srta. Panzer. Por que teria? Não
quero saber o que você fez…
— Eu entendo que Isabelle ache que gosta de mim…
porque ela não tem mais nada. Mas você tem tudo. Por que
teria interesse em uma ruína decadente?
— Eu não… é, acho que tenho. — Ela teve um rompante de
eloquência atípica. — Não sei bem por que… mas, de repente,
você virou o único homem do mundo para mim.
Ele se sentou — seu rosto estava cansado e abatido.
— Você é jovem. — Ele deu um suspiro. — … e é bonita.
Tem seu trabalho… e pode conseguir qualquer homem que
quiser. Lembra quando eu disse que pertencia a outra época?
— Não é verdade — lamentou ela.
— Quem dera não fosse. Mas como é, qualquer coisa entre
você e eu seria ultrapassada… meio embolorada. — Ele se
levantou, inquieto. — Você acha que eu poderia viver em seu
mundo agradável e jovial de trabalho e amor. Bom, eu não
poderia. Nossa relação duraria um mês, mais ou menos, e
depois você ficaria amargurada e decepcionada… e talvez eu
me importasse. E isso pode ser difícil para mim.
Ele levantou o rosto e fitou o amor impotente dela.
— Você não consegue imaginar alguém que tenha tido as
melhores experiências do mundo e não queira mais… não
queira que o amor seja verdadeiro? Dá para imaginar isso? Eu
invejo até sua beleza, porque agora estou velho… mas já tive o
necessário para amar uma garota como você…
Alguém bateu à porta. Era Prout, e o olhar dele foi de um
para o outro.
— O tempo está clareando lá fora — disse ele. — Roger me
mandou achar você logo.
Atlanta se recuperou. Na porta, ela parou e disse para
Carley:
— Volto já. Não vá embora antes que eu venha. Promete?
— Claro.
— Então daqui a pouco eu volto. Você pode me levar até a
Chimney Rock.
Pouco depois, no quarto de Roger, ela ouviu as instruções
dele como se estivesse com a cabeça nas nuvens. Assim que
ele terminou, ela subiu correndo a escada e, com uma batida
ligeira na porta, entrou no quarto de Carley.
Mas estava vazio.
VI
VII
1 Chimney Rock é um esporão de granito com quase cem metros de altura situado
junto ao lago Lure e o distrito de Rutherford, na Carolina do Norte, nos Estados
Unidos. [N. de E.]
2 John Dillinger (1903–1934), gângster de Chicago que planejou e executou uma
série de assaltos a bancos nos anos 1930. Foi traído e entregue ao FBI pela amante
Anna Sage, em troca de não ser deportada. [N. de E.]
3 Poema de Algernon Charles Swinburne (1837–1909), que na verdade se chama
“Atalanta in Calydon”. Em tradução livre: “Se a Primavera lança ao Inverno seus cães
/ O farfalhar de folhas e o vigor do orvalho / Daquela que é mãe das estações / Se
infiltram nas sombras e no borralho…”. [N. de T.]
4 Letra da música “I’d climb the highest mountains if I knew I’d find you” (1926), de
Lew Brown e Sidney Clare. Em tradução livre: “Eu escalaria a maior das
montanhas…”. [N. de T.]
5 Letra da música “Cheek to cheek”, de Irving Berlin, indicada ao Oscar de Melhor
Canção Original após ser interpretada por Fred Astaire no filme O picolino, de 1935.
Em tradução livre: “Adoro escalar montanhas / E chegar ao cume mais alto”. [N. de T.]
6 The Gumps, Tillie the Toiler e Moon Mullins eram séries de quadrinhos criadas nos
anos 1910 e 1920, respectivamente por Sidney Smith, Russ Westover e Frank
Willard. [N. de E.]
7 O termo correto é Capias ad Respondendum. Trata-se de um mandado judicial que
determina que o réu em um processo civil — que tenha faltado à audiência ou fugido
— se apresente ao tribunal. O mandado é entregue por um oficial de justiça, que
então tem a obrigação de levar o réu a uma autoridade policial, a menos que seja
paga a fiança estipulada. [N. de E.]
8 Sesame and Lilies é uma coletânea de célebres textos de John Ruskin sobre arte e
cultura. A retórica de Ruskin fazia associações entre mulheres e flores, algo
tradicional para a época vitoriana. É possível que Fitzgerald também esteja
remetendo às pinturas pré-rafaelitas que Ruskin apreciava e promovia, como a Ofélia
de John Everett Millais, em que a trágica heroína shakespeariana flutua no riacho,
segurando flores na mão. [N. de T.]
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