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Rajchman
Prefácio
Annette Wieviorka
Diretora de Pesquisas do Centre National
de la Recherche Scientifique
Tradução
André Telles
A todos a quem não foi possível contar.
Andrés, Daniel, José Rajchman.
“Mesmo quando terrível, o escritor deve dizer a verdade,
e o leitor, conhecê-la. Esquivar-se, fechar os olhos, passar
adiante é insultar a memória dos que pereceram.”
VASSILI GROSSMAN
3. Descrição do campo
4. Viro tonsurador
Agradecimentos
Prefácio
“Os vagões tristes me carregam para lá. Eles vêm de toda parte: do leste e do
oeste, do norte e do sul. De dia e de noite, seja qual for a estação: primavera,
verão, outono, inverno. Os comboios chegam lá abarrotados, incessantemente, e
Treblinka prospera mais a cada dia que passa. Quanto mais comboios chegam,
mais Treblinka consegue absorvê-los.”
Desde a abertura deste depoimento, escrito originalmente em íidiche, língua
materna do narrador, o “eu” desaparece no encadeamento alucinado de trens
deslizando para um destino coletivo: Treblinka. Transportam para a usina da
morte incontáveis carregamentos de criaturas imediatamente tragadas pela
máquina.
Chil Rajchman foi um de seus raros sobreviventes. Após a insurreição do
campo, em 2 de agosto de 1943 – seu segundo nascimento, como ele diz num
depoimento –, ele vai de esconderijo em esconderijo, o último deles em
1
Varsóvia. A guerra ainda não terminou, e ele registra num caderno o relato dos
dez meses que passou em Treblinka. Esse texto pertence a uma categoria de
escritos reduzida e bastante particular: a daqueles redigidos na sombra trazida
pela morte, antes do fim da guerra, para preservar o rastro de acontecimentos
que desafiam a imaginação.
Dois outros textos desse gênero chegaram até nós. Calel Perechodnik, ex-
policial judeu no gueto de Otwock, um balneário a poucos quilômetros de
Varsóvia, escapou ao “expurgo” do local, refugiou-se – após diversas
peregrinações – na Varsóvia “ariana” e do esconderijo redigiu em polonês seu
livro, publicado sob o título Sou um assassino?. Simha Guterman, por sua vez,
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ANNETTE WIEVIORKA
Diretora de Pesquisas do Centre
National de la Recherche Scientifique
Notas
1. USC Shoah Foundation Institute, Los Angeles, 24 de outubro de 1994.
2. Calel Perechodnik, Suis-je un meurtrier?, trad. fr. do polonês de Aleksandra Kroh e Paul Zawadski,
prefácio de Jacques Burko e Annette Wieviorka. Paris, Liana Levi, 1995.
3. Simha Gutterman, Le livre retrouvé, trad. fr. do iídiche de Aby Wieviorka, org. e apres. Nicole Lapierre.
Paris, Plon, 1991.
4. Sobretudo o depoimento colhido pelo Holocaust Memorial Museum de Washington em 7 de dezembro de
1988.
5. Vassili Grossman, L’Enfer de Treblinka. Grenoble, B. Arthaud, 1945. O livro foi reeditado em 1966, na
esteira do sucesso do romance de Jean-François Steiner Treblinka e da polêmica por ele gerada. Acha-se
reproduzido em Le livre noir: Textes et témoignages, com testemunhos recolhidos por Ilya Ehrenbourg e
Vassili Grossman. Solin, Actes Sud, 1995, p.868-903.
a
O primeiro processo de Demjanjuk ocorreu em Cleveland, quando ele foi destituído de sua nacionalidade
americana pela decisão judicial de 23 de junho de 1981, num prelúdio para sua transferência para Israel e
seu processo em Jerusalém em 1987. Condenado, obteve indulto após recurso, “em benefício da dúvida”
sobre sua identidade, e liberado pela Justiça israelense.
b
No depoimento já citado colhido em Los Angeles em 1994, Rajchman evoca seu retorno, que ele data de
1945, perante a Comissão. Entre as 13 testemunhas judias interrogadas pela Comissão figurava com efeito
um certo Henryk Reichman. Ora, Chil se escondeu e permaneceu na Polônia sob o nome de Henry
Romanowski. Na Libertação, conservou o prenome Henryk ao lado do de Yechiel (Chil).
c
Um dos personagens de Shoah, obra de Claude Lanzmann, que com Richard Glazar e o SS Suchömel
revela o que foi Treblinka.
Eu sou o último
judeu
1
Em vagões chumbados rumo
a um destino desconhecido
Os vagões tristes me carregam para lá. Eles vêm de toda parte: do leste e do
oeste, do norte e do sul. De dia e de noite, seja qual for a estação: primavera,
verão, outono, inverno. Os comboios chegam lá abarrotados, incessantemente, e
Treblinka prospera mais a cada dia que passa. Quanto mais comboios chegam,
mais Treblinka consegue absorvê-los.
Estou com a minha irmã caçula Rivke, uma bonita garota de 19 anos, e um de
meus bons amigos, Volf Ber Rojzman, sua mulher e seus dois filhos. Conheço
quase todos os que estão no vagão. Eles vêm do mesmo shtetl , Ostrow Lubelski.
d
d
Shtetl: do iídiche, “lugarejo”, com maioria de população judaica. (N.T.)
2
Entramos num bosque. Uma imagem
da morte. Os homens à direita,
as mulheres à esquerda!
Ficamos ali por alguns minutos, até que todos os demais sejam levados. Em
seguida somos reconduzidos até as bagagens. Cada um de nós é obrigado a
carregar um fardo maior que o nosso tamanho. Quem escolher uma mala
pequena é chicoteado. Empurram-nos para uma esplanada. No caminho há
guardas dispostos um ao lado do outro como as argolas de uma corrente viva, a
fim de que nenhum de nós possa escapar ao chicote.
Chego à esplanada e fico horrorizado com o que vejo: montanhas de
bagagens de diferentes alturas. Levam-nos até uma delas, constituída de lenços,
cobertores e bolsas. Diante dos montes, realizam uma triagem. Constato que são
todos judeus e, correndo até eles, pergunto:
– Meus irmãos, digam-me o que está acontecendo.
Mas não obtenho resposta. Eles desviam a cabeça para não responder.
Pergunto-lhes de novo:
– Por favor, o que está acontecendo aqui?
Alguém me responde:
– Meu irmão, não faça perguntas: estamos perdidos!
Somos obrigados a correr tão rápido para ir e voltar de um lugar a outro que
estou completamente desorientado. Fazemos várias vezes o percurso até que a
plataforma seja desobstruída, depois somos levados até as roupas. Recebemos
ordens para pegar os sapatos amarrados por pares e levá-los para outro monte,
alto como um prédio de quatro andares, constituído unicamente de sapatos,
dezenas de milhares de pares de sapatos. Depois dos sapatos, é a vez das roupas
masculinas. Somos encaminhados até outro monte, constituído unicamente de
roupas. Quando terminamos de remover todos os pertences, somos empurrados
para dentro do galpão no qual as mulheres haviam se despido. As roupas dessas
pobres mulheres jazem no chão. Misturadas no meio delas, estão as da minha
irmãzinha. Olho em volta: não há mais ninguém. As mulheres foram todas
levadas. Num instante de desvario, pego um pacote muito leve e recebo uma
chibatada tão violenta que quase desmaio. O assassino muge em cima de mim:
– Cão imundo, isso é muito pouco!
Abaixo-me sem refletir, abro os braços o máximo possível e recolho às
pressas tudo que posso. Saio correndo, pois os últimos são impiedosamente
espancados.
Fazemos várias idas e voltas sempre correndo e as chicotadas caem sobre
nossas cabeças ao longo de todo o trajeto.
3
Descrição do campo
e
A passarela (“Schlauch”), apelidada pelos nazistas de “Himmelfahrstrasse”, “caminho do céu”, é uma
passagem em ângulo reto que desemboca nas câmaras de gás. Esse traçado tinha como objetivo ocultar − o
máximo de tempo possível e a fim de evitar qualquer revolta − instalações destinadas ao assassinato.
4
Viro tonsurador
Deixo-o em paz e continuo a verificar, como os outros, uma por uma, as roupas.
Baús estão dispostos à nossa volta e cada um contém um tipo de coisa. O
principal destina-se a receber o dinheiro encontrado nas costuras. Ele se enche
rapidamente de ouro, divisas e objetos preciosos. De tempos em tempos, passa
um operário, apelidado de Goldjude, Judeu de Ouro; vem para pegar os baús
cheios. Há também baús reservados a outros pequenos objetos de valor, aos
relógios por exemplo; baús para barbeadores, isqueiros ou papéis. Devemos
separar tudo de acordo com essas categorias.
Meu vizinho me aconselha a escolher tesouras bem afiadas para realizar
meu trabalho. Encontro um par de tesouras de barbeiro e digo ao meu amigo
Leybl para fazer a mesma coisa, já que ele tem tanta noção do ofício quanto eu.
O relógio dá 12h e ouve-se um toque de clarim. Todo mundo se dirige para
o lugar onde nos devem dar alguma coisa para comer. Eu e meu companheiro
nos esforçamos para ficar o mais próximo possível do nosso vizinho de trabalho,
pois não sabemos como se dá a coisa. Convém ficar o mais perto possível da
cozinha. Formamos filas de cinco. No fim de pouco tempo, avançamos para a
cozinha. Quando chegamos lá, o guichê ainda está fechado. Esperamos alguns
minutos; depois, em grupos de cinco, recebemos uma ração de sopa. Corremos
para comer. O mais rápido possível, já se ouve novamente o clarim. Temos que
formar. E fazê-lo imediatamente, pois aquele que não volta ao seu lugar a tempo
recebe chicotadas.
Reencontrei meu vizinho. Aproveitando alguns minutos de intervalo,
pergunto-lhe como vai ser com os cabelos.
Ele me explica: quando um comboio chega, um assassino, sempre o
mesmo, se apresenta. Ele está aqui há muito tempo, chama-se Kiwe. Ele berra:
– Os tonsuradores!
Devemos imediatamente nos identificar e somos levados até as câmaras de
gás, onde nossos irmãos e irmãs são assassinados. Meu vizinho me esclarece que
é preciso cortar os cabelos o mais rapidamente possível, pois tudo deve ser feito
muito rápido. Assassinos nos espreitam e aquele que demora muito é agredido.
O sinal toca de novo. Em seguida, cada grupo é inspecionado. Por fim, todos
voltam ao seu lugar e o trabalho recomeça.
Esforço-me para vasculhar as roupas o mais rápido que posso. Mas esqueço
que não podemos nos levantar. Passados alguns minutos, um bandido se
aproxima e me chicoteia com obstinação. Em seguida, me pergunta se sei por
que fui chicoteado. Respondo:
– Jawohl!
O canalha me feriu na cabeça e o sangue escorre pelo meu rosto. Encontro
uma garrafa d’água e me limpo com um pano molhado. Meu vizinho grita na
minha direção:
– Lembre-se de sempre abaixar a cabeça, senão vai levar chicotadas de
novo.
Curvo a espinha, seguro o pano molhado com uma das mãos e separo as
roupas com a outra. O sangue leva um tempo para estancar. Meu rosto está todo
lambuzado. Meu colega me diz para eu me limpar, pois eles matam os que têm
marcas no rosto.
Limpo-me e volto ao trabalho. O chefe do grupo me ordena que leve as
roupas para um entreposto. Me aponta o caminho e me explica que não devo
perder tempo, sobretudo quando volto de mãos vazias. Pego uma trouxa e me
dirijo ao entreposto dos casacos para homens. Deposito minha carga. Há uma
série de montes de roupas com uma tabuleta em cima indicando de que tipo são.
Corro para voltar ao meu ponto de partida, e com tantas idas e vindas
familiarizo-me com o local: acabo sabendo o lugar de cada coisa. Mas tudo
acontece muito rápido. Sempre alertas, os assassinos estão ali com seus chicotes
e berram:
– Mais rápido, mexam-se!
De vez em quando, nos ordenam para nos deitarmos e desferem alguns
golpes violentos. Em seguida, temos que nos levantar rapidamente e voltar ao
trabalho.
Assim é o nosso trabalho.
5
A primeira noite no galpão. Moyshe
Etinger conta que sobreviveu e que não se
perdoa por isso. Outros fazem a prece
do fim do dia e recitam o kaddish.
f
Prisioneiros que ocupavam posições administrativas inferiores. (N.T.)
g
Em iídiche, “Chil” se escreve “Yechiel”. (Nota da tradução francesa, N.T.F.)
6
Trabalho como tonsurador. O vestido
da minha irmã. A última vontade de
uma velha senhora. As gargalhadas
de uma adolescente. Cantamos.
Uma jovem mulher está sentada à minha frente. Corto seus cabelos, ela pega
minha mão e me pede para lembrar que eu também sou judeu. Sabe que está
perdida, mas “lembre-se”, disse ela, “você vê o que fizeram de nós. Desejo que
você sobreviva para poder vingar nosso sangue inocente, que não conhecerá o
repouso…”.
Respondo-lhe em voz baixa:
– Cara senhora, o mesmo me espera. Sou judeu como a senhora.
A mulher não consegue se levantar e leva uma chicotada na cabeça, pois um
assassino passava entre os bancos. Escorre sangue sobre seu crânio raspado. Ela
dá um pulo e corre junto com as outras.
Terminamos nosso trabalho e ficamos por um instante de pé em nossos
lugares, a passagem está ocupada pelos homens nus que são despachados para a
câmara de gás. Eles correm entre duas fileiras de assassinos, chicotes e socos
chovem dos dois lados. Os judeus correm com os braços para cima, os dedos
afastados e clamam: “Shema-Israel, shema-Israel.” São empurrados para a
morte com essas palavras nos lábios.
Ele continua a me espancar, tenho espuma nos lábios. Sinto que as forças me
abandonam. Meus companheiros são submetidos ao mesmo tratamento. Um
assassino mantém-se à parte e observa como trabalhamos. No fim de uma hora,
o executor põe-se ao trabalho: um depois do outro, chama alguns de nós, ordena-
lhes que se dispam e desçam numa vala. A vítima deve se debruçar para a frente,
então recebe uma bala na cabeça e desmorona sobre os cadáveres que jazem no
fundo do buraco.
No fim de aproximadamente 15 minutos, noto a ausência de uns 20
companheiros. Nosso grupo foi dizimado: à minha volta, não há quase mais
ninguém. Me ocorre que logo será minha vez. Não sei de onde me vêm forças,
mas continuo meu trabalho com tamanha energia que o assassino do chicote me
diz: “Está trabalhando bem, não vou te matar.”
Vacilo, não aguento mais. O companheiro que trabalha ao meu lado me diz
para resistir. É um pouco mais forte que eu e me dá uma ajuda: enche meu
carrinho de mão a fim que eu possa descansar um minuto.
São umas 4h. Dos 30 companheiros que foram trazidos comigo, vejo
apenas seis sobreviventes. Os outros tiveram que se despir um a um e descer na
vala para receberem uma bala na cabeça. Não se ouviu sequer um gemido. Na
vala, dois judeus alinham os mortos.
De repente, surge outro assassino. Ele nos diz para guardar nossos carrinhos
e nos designa outra tarefa. Temos que pegar uma espécie de macas que se
parecem com uma escada, cobertas de sangue. Pegamos as macas em duplas. Ele
nos empurra para um galpão bem afastado. No interior, seres humanos inertes
formam montes de cerca de um andar de altura. São as pessoas asfixiadas.
Não temos mais tempo para refletir muito, pois os chicotes voam acima de
nossas cabeças. Não sei o que devo fazer. Olho à minha volta. Vejo judeus
correndo com macas vazias, largando-as de qualquer jeito e se precipitando para
um monte de cadáveres. Um pega o morto por um braço, o segundo pelo outro
braço, arrancam-no do monte, puxam-no até a maca e voltam a partir correndo.
Tento imitá-los, mas sinto engulhos, pois estou aterrado com o que vejo.
Agarro o braço de um morto que jaz sob outros, meu companheiro pega o outro
braço a fim de que consigamos puxá-lo do monte, mas não conseguimos. O
assassino notou que estamos tentando há vários minutos, corre até nós e nos
enche de pancada. Sangramos no rosto, mas não ligamos. Tentamos separar
outro morto do monte. Conseguimos. Captamos a técnica. Puxamos o cadáver
velozmente para a maca coberta de sangue e corremos na mesma direção que os
demais. Somos acompanhados pelo chicote dos assassinos, que se postam de
ambos os lados da passagem. Como somos novatos, temos dificuldade em nos
situar e recebemos mais vergastadas que os outros.
Desabo, não consigo mais me mexer. Fico deitado por um instante, depois ouço
um uivo que vem da cozinha: somos chamados para o café. Não consigo me
levantar. Somos arrancados do galpão e devemos entrar em formações de cinco
em frente à cozinha. Esperamos alguns minutos. O guichê é aberto e cada um de
nós recebe um pedaço de pão e um pouco de água turva que eles dizem ser café.
Estou morrendo de sede. Bebo o café e deixo o pão, sem tomar consciência do
fato de que também estou morrendo de fome. Olho à minha volta: estamos todos
extenuados e cobertos de sangue.
Ouvimos estertores, de todos os lados. Cada um de nós chora sua própria
desgraça. Sinto-me aniquilado pela dor e choro pelo que acabo de suportar. Bem
ao meu lado, um outro geme da mesma forma. Pergunto-lhe quem é. É de
Czestochowa, chama-se Yankel. Nos apresentamos e ele me conta um segredo:
faz dez dias que está aqui. Ninguém sabe disso, pois as pessoas não se
conhecem. É raríssimo alguém resistir tanto como ele. Diariamente eles abatem
algumas dezenas de deportados, que são substituídos por outros egressos de
comboios mais recentes, a fim de que não se estabeleçam relações. Ele me conta
que dois dias antes mais de cem homens foram abatidos. E que, se alguém fica
marcado no rosto, está irremediavelmente perdido, e por isso devo prestar muita
atenção e sempre proteger o rosto. Conto-lhe por que fui espancado e ele zomba
de mim: nada mais pode surpreendê-lo, está acostumado. Geme a cada palavra:
– Oy, dói tudo…
Proponho-lhe uma parceria. Ele se recusa, pois corre o risco de levar mais
golpes por minha causa, por eu ainda ser novo por aqui. Suplico-lhe e lhe
prometo que farei tudo que ele me disser para fazer. Ele aceita e esclarece que
devo me colocar ao lado dele, durante a chamada, na manhã seguinte, pois no
momento de correr para o trabalho é um verdadeiro inferno e aquele que fica
sem parceiro é chicoteado.
Conversamos ainda por uns instantes, e meu companheiro Yankel adormece
a despeito da dureza das tábuas. Estou deitado ao lado dele, meu corpo inteiro
dói. Ignoro como vou conseguir levantar na manhã seguinte. Onde estou? Estou
no inferno, um inferno povoado de demônios. Esperamos a morte que pode
chegar a qualquer instante, no melhor dos casos dentro de alguns dias. E, por
alguns dias de sobrevida, temos que suar as mãos e assessorar esses bandidos em
sua tarefa. Não, não temos esse direito!
Cochilo, sonho com a minha mãe, mulher honesta e leal, morta há 15 anos. Eu
tinha 15 anos. Choramos juntos a nossa sorte. Ela morreu jovem, tinha 30 anos
quando foi arrancada de nós e nos abandonou. Esperar essa morte? Não
deveríamos antes não sofrer tudo isso? Que bom que minha mãe não viveu até os
sofrimentos, os guetos, as privações, a fome e, por fim, Treblinka − que não lhe
rasparam os cabelos, que ela não foi para a câmara de gás nem atirada numa vala
comum com dezenas de milhares de outros. Felizmente ela não viveu mais muito
tempo.
h
O monóxido de carbono era produzido por um motor a diesel proveniente de um tanque soviético
recuperado pelos nazistas. (N.T.F.)
11
Sou lotado na brigada dos dentistas.
Quarenta e oito horas nas câmaras de gás.
A corrida louca antes e depois do gás.
A técnica “dentária”. Sou espancado por
ter deixado passar dentes de ouro.
espaço, eis por que as mesas eram empilhadas na marcenaria. Tomamos todos
um pouco d’água da bacia e corremos para o trabalho.
Na praça diante da rampa, é um inferno. Quando as portas se abrem, as
primeiras emanações são perigosas. Os cadáveres, de pé, estão tão espremidos
uns nos outros, os braços enlaçados e as pernas umas sobre as outras, que os
subalternos, na rampa, correm risco de vida enquanto não conseguirem retirar as
primeiras dezenas de cadáveres. Em seguida, o monte se desagrega e os corpos
se soltam por si sós. Essa compressão se dá porque as pessoas ficam apavoradas
e se abraçam umas às outras quando são obrigadas a entrar na câmara de gás.
Elas prendem a respiração para entrar e encontrar espaço. O corpo incha depois,
durante a sufocação e a agonia, de maneira que os cadáveres não formam nada
mais senão uma massa.
i
O extermínio dos judeus da Polônia era organizado no âmbito de um programa denominado “Aktion
Reinhardt” e era dirigido a partir de Lublin, onde ficava o estado-maior. (N.T.F.)
j
Nascido em 1889, Yankel Wiernik foi deportado para Treblinka em 23 de agosto de 1942. Marceneiro de
profissão, participou da construção de vários galpões no campo. Durante a revolta, conseguiu fugir e
alcançar Varsóvia, onde se escondeu. Em 1944 escreveu um curto texto sobre Treblinka difundido pela
resistência clandestina e transmitido ao governo polonês no exílio em Londres. Depois da guerra, Yankel
Wiernik emigrou para Israel, onde testemunhou no processo de Adolf Eichmann em 1961. (N.T.F.)
12
Os judeus de Ostrowiec são levados à
noite para as câmaras de gás. Eles resistem.
Mathias, comandante do campo, é ferido…
Uma nova distração. Escaramuça
dentro das câmaras de gás.
Quando havíamos tratado uma parte dos cadáveres, reuníamos os dentes em dois
recipientes e dois dentistas transferiam-nos para a bacia. Enxaguavam-nos antes
de os devolverem a nós para a sequência do trabalho. No nosso barraco havia
permanentemente uma reserva de dentes e, caso não tivéssemos limpado o
sangue e os restos de gengiva neles agarrados, eles teriam acabado por
empestear o ambiente.
Se nos acontecia fazer uma pausa, quando tínhamos liquidado uma câmara de
gás e outra ainda não terminara seu trabalho, seja porque as pessoas no interior
ainda davam sinais de vida, seja porque ainda se ouviam gritos, os animais nos
obrigavam, durante essa breve trégua, a dançar e cantar ao ritmo da orquestra
composta de judeus que tocava permanentemente nas proximidades do nosso
galpão.
No fundo das valas de onde haviam sido exumados os cadáveres, foi preciso
espalhar uma fina camada de cinza, depois uma fina camada de areia e assim por
diante até cerca de 2m abaixo do solo. Os 2m restantes eram preenchidos com
areia. Era assim que os assassinos pretendiam apagar para sempre o vestígio de
seus crimes.
Os judeus designados para a limpeza das valas não perdiam uma
oportunidade de deixar restos de ossadas humanas na terra. O fundo das valas
era mais estreito e a terra caía dos lados. Qualquer distração de um alemão ou
um delator era aproveitada para enterrar o máximo de ossadas possível.
A cinza era espalhada em finas camadas: uma camada de cinza e uma
camada de areia. Os que haviam carregado a cinza e a areia da manhã à noite
alisavam o solo com os pés.
No início, era muito raro que os detentos se conhecessem entre si, pois
diariamente recém-chegados substituíam os que haviam sido eliminados. Depois,
como o trabalho não avançava suficientemente rápido em virtude da
inexperiência dos novatos, os assassinos mudaram de tática.
Vivíamos na sujeira. De dia, usávamos as mesmas roupas e os mesmos
calçados cobertos de sangue. À noite, os enrolávamos sob nossas cabeças.
Dormimos espremidos uns nos outros. Usamos a mesma camisa durante meses e
nosso corpo estava coberto de vermes. Não podíamos mais lavar nossas camisas.
Os celerados haviam despachado vagões inteiros cheios de roupas e não
tínhamos nada para pôr sobre a pele. Morríamos de fome. Só recebíamos uma
parte dos víveres que os judeus haviam trazido com eles. A fome era tanta que
detentos comiam o pão encontrado entre os cadáveres que eles retiravam das
câmaras de gás.
Na metade do décimo segundo mês, o trabalho tornou-se irregular. Os
comboios foram menos frequentes e o ritmo diminuiu. Grande parte dos SS
havia partido de licença. Era época em que o tifo grassava, e vários detentos
tinham 40°C de febre. Tínhamos dificuldade para nos manter sobre nossas
pernas, mas temíamos nos comportar como doentes.
Durante uma chamada, o assessor do comandante do campo, Karol
Spezinger (um SS com patente de Vorführer), anuncia que os doentes devem ir
consultar o médico, que não lhes fará nenhum mal e que poderão ficar deitados.
Ele diz que o galpão que se acha na aleia do fundo será transformado em
Lazarett para receber os doentes.
l
Isso não nos tranquiliza. Contudo, vários doentes declaram-se como tais,
pois de toda forma não conseguem mais se aguentar de pé. No fim de alguns
dias, o Lazarett está lotado, recebendo mais de cem doentes. Sou um deles.
Ficamos deitados, ardendo de febre. Não recebemos nenhum tipo de tratamento.
Mas já é ótimo podermos ficar deitados durante alguns dias. O celerado cumpriu
a palavra, como cumpriram-se todas as outras ignóbeis promessas dos alemães.
Alguns dias mais tarde, por volta das 5h, SS chegam e dão ordens para
tirarem 90 doentes do Lazarett. Os ucranianos penetram no galpão e os retiram
de seus estrados um depois do outro, puxando-os pelos pés.
Chega minha vez: um assassino me agarra pelos pés, mas consigo me
desvencilhar. Flexiono as pernas. No fim de 15 minutos, os assassinos já
retiraram mais de 90 doentes. Estes não tiveram tempo de se vestir e levam as
cobertas sob as quais estavam deitados. De cem doentes, somos agora apenas 13.
Os outros estão reunidos na praça. Em poucos minutos, as metralhadoras
começam a crepitar…
Nós, os sobreviventes, estamos convencidos de que nossa vez chegará no
dia seguinte. Declaramos que estamos curados. O médico dá ordens para nos
entregarem roupas de baixo. Temos que nos despir para nos lavarmos. A porta e
as janelas do galpão estão escancaradas, deve estar fazendo uns 20 abaixo de
zero, e nos lavamos. Tento me vestir, mas não me sustento nas pernas. E meus
companheiros acham-se no mesmo estado. São 4h da tarde. Às 6h temos que nos
apresentar à chamada. Essa dura uma hora, somos obrigados a cantar. Karol
Spezinger é grande amante de música. Também aprecia recitações. O
companheiro Szpigel, que era ator em Varsóvia, deve declamar acompanhado
pela orquestra.
Após esse intermédio, troa uma ordem:
– Abtreten, rechts um! Debandar, direita volver!
Caminhamos em fila pela praça da chamada. O SS Gustav manda retirarem
da formação os que têm dificuldade de caminhar a fim de brindá-los com
algumas balas. Um dos convocados, sabendo o que o esperava, sai da fila
sorrindo e despede-se de nós em voz alta:
– Desejo que sobrevivam lá aonde não cheguei.
Um instinto selvagem apodera-se do assassino, que o abate com uma bala.
Faço o possível para levantar os pés e desfilamos cantando até nosso
galpão, mais mortos do que vivos.
Em virtude da sujeira, a sarna espalhou-se pelo campo e nos contaminou.
Como não tínhamos nenhum remédio, utilizamos gasolina, o que nos provocou
abscessos por todo o corpo. As dores eram insuportáveis. Mas em Treblinka
também era preciso suportar isso…
k
Na realidade, eram 30 ou 40 os SS lotados em Treblinka. Se levarmos em conta o revezamento das
licenças e substituições, havia apenas uns 20 permanentemente no campo. Quanto aos guardas ucranianos,
eram entre 90 e 120. (N.T.F.)
l
Havia um lugar chamado Lazarett em Treblinka. No desembarque dos trens, as pessoas doentes ou com
dificuldade para se deslocar eram encaminhadas para esse prédio que parecia uma enfermaria. Uma vez lá
dentro, eram imediatamente executadas a bala. Esse procedimento tinha com finalidade não atrasar as
operações da câmara de gás. Aqui, o autor parece fazer referência a outro galpão, que teria sido
transformado temporariamente em enfermaria para fazer face à epidemia de tifo. (N.T.F.)
14
O Obersturmführer Franz e seu
cachorro Bari. Os assassinos bebem
em homenagem à chegada de judeus
ingleses. Um novo “especialista”.
10.000 oficiais poloneses, que pareciam ter sido mortos pelos soviéticos. Era a
razão pela qual eles queriam queimar os cadáveres, a fim de que não restasse
vestígio de seus excessos.
por desempenhar perfeitamente seu papel. Não há igual para dar sumiço nos
cadáveres. Quando chega, precipita-se para as valas. Ri ao contemplá-las, está
contente consigo mesmo e com seu trabalho.
Depois de alguns dias, começa a trabalhar seriamente. Ordena que
desmontemos a fogueira e zomba das instalações. Garante ao chefe do campo
que tudo irá melhorar daqui para frente. Manda instalar trilhos de ferrovia ao
longo de 30m. Algumas muretas de cimento, de cerca de 50cm de altura, são
fincadas no solo. A largura da fogueira mede 1,50m. São colocados seis trilhos
sobre essas muretas, e é tudo. O Artista ordena que disponham uma primeira
camada de mulheres, mulheres particularmente gordas, a barriga sobre os trilhos,
e depois que acrescentem o que vier: homens, mulheres e crianças. As camadas
são superpostas em pirâmide até 2m de altura.
Os mortos são arremessados por uma brigada especial apelidada de
“brigada do fogo”. Dois elementos agarram um cadáver que foi trazido por
carregadores. O primeiro pega uma mão e um pé de um lado, o segundo do
outro, e arremessam o corpo. São colocados até 2.500 corpos sobre a fogueira.
Em seguida, “o especialista” ordena que disponham lenha bem seca sob o monte
de cadáveres. O fogo é ateado com um palito de fósforo. Minutos depois, o fogo
é tão violento que é difícil se aproximar a menos de 50m. A primeira fogueira
funcionou: o teste é conclusivo. O estado-maior do campo vem parabenizar o
inventor. Mas ele ainda não está plenamente satisfeito, apenas uma fogueira está
em atividade. Ordena que a retroescavadeira que servira para escavar as valas
seja utilizada para exumar os corpos enterrados nos últimos meses…
A pá mecânica começa a desenterrar mãos, pés, cabeças. O Artista, grande
especialista na matéria, exige que a máquina despeje seu conteúdo em vários
círculos. Os carregadores, cujas macas agora são equipadas com caixas para
evitar que os pedaços de corpos caiam, devem correr, pegar os restos humanos,
encher suas macas e carregá-las o mais rápido possível até a fogueira.
O trabalho é mais penoso do que antes. O cheiro é pestilento. O líquido que
espirra dos cadáveres lambuza os carregadores. Frequentemente o condutor da
retroescavadeira despeja de propósito cadáveres em cima deles e os cobre de
sangue. O chefe, ao ver um deles no chão, coberto de sangue, pergunta-lhe o que
aconteceu. Quando o carregador responde que recebeu o conteúdo da
retroescavadeira sobre a cabeça, recebe uma ração extra de chicotadas.
Mas o Artista está louco de raiva, pois o trabalho não anda tão rápido
quanto deveria.
Encomendam imediatamente duas escavadeiras suplementares. Os
assassinos estão contentes, pois seu trabalho vai ser considerado tadellos,
impecável. No dia seguinte, todas as pás mecânicas entram em atividade. Para
nós, é um verdadeiro inferno. Somos o mesmo número para servir essas três
máquinas canibais. A cada investida, elas recolhem várias dezenas de cadáveres
que devemos imediatamente evacuar para a fogueira.
O assassino-especialista modifica então o sistema: cria uma pequena
brigada cujo trabalho consiste em colocar os mortos sobre as macas a fim de que
os carregadores não percam tempo com isso. Eles enchem as macas com
pedaços humanos com a ajuda de forcados, e os carregadores não têm mais um
instante, de manhã à noite, para descansar.
Constata-se que os cadáveres desenterrados queimam nitidamente melhor
que os corpos das pessoas recém-chegadas das câmaras de gás. Diariamente,
novas fogueiras são construídas. Logo são seis. Uma equipe é designada para
cada uma delas e a alimenta.
Mas o Artista continua insatisfeito. Constata que o ritmo do trabalho
diminuiu, pois o fogo impede que os homens se aproximem da fogueira. Os
horários de trabalho são alterados. As fogueiras são alimentadas de dia e acesas
às 5h30 da tarde.
m
Em abril de 1943, a rádio alemã anuncia a descoberta de 4 mil cadáveres de oficiais poloneses na floresta
de Katyn, perto de Smolensk, assassinados pelo Exército Vermelho. A URSS contesta a acusação, objeto de
uma polêmica internacional ao longo de toda a Guerra Fria. Apenas em 1990 Mikhail Gorbatchev irá
finalmente admitir a responsabilidade soviética. (N.T.F.)
n
Lotado sucessivamente em Belzec, Sobibor e Treblinka, o SS Herbert Floss (1912-1943) é considerado um
especialista na cremação de corpos. Segundo o depoimento de Arthur Matthes durante seu processo, é ele
quem põe em prática novas técnicas em Treblinka, em 1943. (N.T.F.)
15
Cerca de 250.000 corpos esfumam-se
no ar. Comboios de judeus búlgaros.
E sempre a música…
Chove sem parar desde a manhã, mas temos que fazer nosso trabalho mesmo
assim. Estamos encharcados. Os assassinos abrigaram-se sob um alpendre e
gritam para nós “Schneller! Tempo! Mais rápido! Mantenham o ritmo!” De vez
em quando, um SS acorre e distribui umas chicotadas. O solo está movediço.
Não demora a virar um lamaçal. Temos cada vez mais dificuldade para correr. O
comandante ordena que espalhemos algumas dezenas de carrinhos de mão de
cinzas ao longo do nosso percurso. A lama absorve o sangue humano. De tempos
em tempos, temos que acrescentar cinzas, pois a chuva cai cada vez mais forte.
O dia chora conosco.
Como as retroescavadeiras são em número de três, somos divididos em três
grupos. Um dia uma pá mecânica para e o conserto leva alguns minutos.
Paramos também. Surge o Artista e nos pergunta calmamente por que estamos
de braços cruzados quando, perto das fogueiras, montes de cinzas esperam para
ser transportados. O chefe de grupo diz que a pá não vai demorar a funcionar. O
Artista responde que temos tempo para dar uma volta olímpica (ele usa o termo
“Ehrenrunde”) com as cinzas.
O mês de abril começa com trens provenientes do estrangeiro,
principalmente da Bulgária. o
o
No início da guerra, 48 mil judeus viviam na Bulgária, cujo governo alia-se ao III Reich. Vítimas de
medidas antissemitas, foram todavia poupados as deportações, em consequência das pressões da sociedade
civil e da Igreja. Onze mil e 300 judeus residentes nos territórios da Trácia e da Macedônia, anteriormente
administrados pela Grécia e a Iugoslávia, foram mesmo assim deportados, em sua maioria para Treblinka.
(N.T.F.)
16
Uma fogueira ainda mais eficaz é construída.
Alguns dias sem comboios.
Somos informados da revolta do gueto de
Varsóvia. Os vestígios da matança
são apagados. Plantamos tremoços.
Himmler visita Treblinka.
No mês de maio, apareceu um novo SS. No dia seguinte à sua chegada, ele foi
ao barraco dos dentistas para que consertássemos seu relógio de pulso. Um de
nós, relojoeiro de profissão, faz o reparo. Nosso chefe de grupo aproveita a
oportunidade para pedir ao SS que providencie alguns baús do campo nº 1 a fim
de guardarmos o ouro. Ele promete fazê-lo (mas não sabe que é proibido passar
do campo nº 1 para o campo nº 2). À tarde, o alemão volta, acompanhado de um
interno do campo nº1, para trazer os baús. Quer em seguida despachar de volta
seu acompanhante para o campo nº 1, mas, na porta, o comandante Mathias o
detém, faz-lhe um sermão e xinga-o de todos os palavrões: ninguém pode passar
de um campo para o outro. Mathias ordena ao interno que faça meia-volta, tire a
roupa e desça para uma vala comum. Abate-o.
Fazia muito calor nesse dia. Alguns SS tinham voltado de 15 dias de folga. Em
virtude de suas difíceis condições de “trabalho”, esses celerados tinham direito a
24 dias de licença a cada seis semanas. Quando saíam, vestiam roupas civis e
deixavam seus sacrossantos uniformes no campo. De volta de seu “tratamento de
repouso”, eram sempre cruéis. Um dia, surpreendemos uma conversa: um SS
contava a outro que a cidade da qual ele retornava era bombardeada dia e noite e
que as bombas tinham feito numerosas vítimas. Observamos igualmente que eles
estão com a cara pior quando retornam de suas licenças: na terra deles, a vida é
mais dura. Aqui, em Treblinka, eles podem compensar tudo, pois não falta
dinheiro: as vítimas sempre chegam a Treblinka com um pecúlio.
Esse dia é particularmente difícil. O Unterscharführer Chanke, que
apelidamos de Chicote por ser perito na matéria, está de mau humor. Seu colega,
o Unterscharführer Lefler, tampouco envergonha-se de seu sadismo. Seus olhos
são temíveis, e todos receamos uma coisa: que seu olhar nos encare, pois nesse
caso estamos perdidos. Apesar do cansaço da viagem, eles não param de bater.
Lembro-me de uma situação: dois carregadores negligenciaram as ordens e,
em vez de carregarem sua maca com um grande cadáver, colocaram três
criancinhas. O Unterscharführer Lefler ordenou-lhes que parassem, chicoteou-os
violentamente e berrou:
– Cães, por que estão carregando essas bugigangas? (Era assim que eles
chamavam as criancinhas.)
O carregadores de “bugigangas” tiveram que fazer meia-volta e recolher um
cadáver de adulto.
O ritmo se acelera. As valas são esvaziadas com uma frequência cada vez maior
com o correr dos dias. Comunicamos ao campo nº 1 que, se eles não se
apressarem para organizar o motim, tentaremos executá-lo nós mesmos antes
que seja tarde demais. Entre nós, as opiniões estão divididas. Alguns acham que
devemos nós mesmos libertar o campo, outros opõem-se a isso: acham que essa
tentativa está fadada ao fracasso.
Não podemos mais esperar. Um dia parece um ano. Decidimos dar um
ultimato ao campo nº 1 e, se não obtivermos uma resposta clara, estipulando a
data do levante, não iremos mais esperar.
Respondem-nos para aguardamos mais uns dias.
Finalmente recebemos uma resposta clara do campo nº 1: o levante está
programado para 2 de agosto às 4h30 da tarde. Esperamos esse dia com
impaciência.
Sim, vivi um ano nas piores condições em Treblinka. Após o levante do campo,
perambulei durante dois meses até alcançar Piastow. Em seguida, após a
insurreição de Varsóvia, passei três meses e meio num bunker da capital, até ser
libertado em 17 de janeiro de 1945.
Sim, sobrevivi e sou livre, mas para quê?, pergunto-me com frequência.
Para contar o assassinato de milhões de vítimas inocentes, para dar testemunho
de um sangue inocente, derramado por assassinos.
Sim, sobrevivi para dar testemunho deste grande abatedouro: Treblinka.
Chil Rajchman era o primogênito de uma família de seis filhos. Sua mãe, Java, morreu em consequência de
uma doença alguns anos antes da guerra. O paradeiro de seu pai, Abraham Froim, após a eclosão da guerra
é desconhecido. Salvas milagrosamente, essas fotografias são os únicos testemunhos dos anos do pré-
guerra.
No outono de 1941, Himmler decide pela criação de três campos da morte: Belzec é inaugurado em março
de 1942, Sobibor em maio e Treblinka em junho. Foi para este último que mais de 330 mil judeus do gueto
de Varsóvia foram deportados.
Kurt Franz entrou para a SS antes da guerra. Serviu em diversos centros de eutanásia e foi enviado para
Treblinka no início do outono de 1942, tornando-se assessor do comandante seis meses antes de sucedê-lo.
Costumava incitar seu imenso cachorro, Bari, contra os prisioneiros, gritando: “Homem, morda esse cão!”
Preso na Alemanha em 1959, foi condenado à prisão perpétua em 1965.
No fim de agosto de 1942, Franz Stangl assumiu a direção do campo por um ano, ordenando a construção
de dez novas câmaras de gás e incrementando o processo industrial de assassinato. Preso no Brasil e
extraditado para a Alemanha, foi julgado em Düsseldorf em 1970 e condenado à prisão perpétua.
Cercado por arame farpado, o terreno do campo de Treblinka tinha dimensões relativamente reduzidas:
600m × 400m. A zona de extermínio localizava-se no interior. Em dezembro de 1942, uma falsa estação foi
posta diante da plataforma a fim de ludibriar os que chegavam quanto à natureza das instalações. O campo
funcionava então com seu rendimento máximo, recebendo por dia até seis comboios, prontamente
dizimados.
No início de 1943, um embrião de organização clandestina formou-se entre os detentos do campo nº 1, em
torno de Zhelo Bloch, Rudolf Masarik, Yankel Wiernik (acima) e, em especial, do engenheiro Galewski
(próxima foto). O plano de insurreição previa penetrar no depósito de armas, dominar os guardas, destruir
os principais dispositivos e transpor os domínios do campo para alcançar as florestas próximas.
De início enterrados em imensas valas comuns, no final de 1942 os judeus mortos em Treblinka passaram a
ser incinerados. Para isso, inclusive, prisioneiros escavaram as valas com as próprias mãos para transferir
restos de corpos e roupas para as fogueiras. Todos os vestígios da execução em massa deviam desaparecer.
As fotografias dos detentos e das ossadas eram formalmente proibidas. Esta é a única foto conhecida
mostrando uma vala de Treblinka em atividade, em 1943. Estima-se entre 700 mil e 900 mil o número de
vítimas desse campo.
De outubro de 1964 a agosto de 1965, dez antigos SS de Treblinka foram julgados pelo tribunal de
Düsseldorf. Embora Kurt Franz, Arthur Matthes, Willy Mentz e August Miete tenham sido condenados à
prisão perpétua, Albert Rum, Erwin Lambert, Franz Suchömel, Otto Sadie e Gustav Müntzberger receberam
penas de três a 12 anos de prisão. Otto Horn foi inocentado.
Chil Rajchman (à esq.) e seu irmão Moñek – que ele convencera a fugir para o leste da Polônia, para a zona
ocupada pelos soviéticos – foram os únicos sobreviventes de sua família. Quando se reencontram após a
guerra, Chil esperou algum tempo antes de entregar seu caderno com as memórias de Treblinka para ele ler.
Bibliografia
ARAD, Yitzhak. Belzec, Sobibor, Treblinka. The Operation Reinhardt Death Camp. Bloomington, Indiana
University Press, 1987.
GROSSMAN, Vassili. L’Enfer de Treblinka. Grenoble, B. Arthaud, 1945.
LANZMANN, Claude. Shoha. Paris, Gallimard, col. Folio, 1987.
SERENY, Gitta. Au fond des ténèbres. Paris, Denoël, 2007.
WILLENBERG, Samuel. Révolte à Treblinka. Paris, Ramsay, 2001.
Créditos iconográficos
Chil Rajchman
Mémorial de la Shoah/CDJC
Landesarchiv NRW Düsseldorf
Ullstein Bild/Roger-Viollet
Beit Lohamei Hagheatot
Mémorial de la Shoah/CDJC
TopFoto/Roger-Viollet
Chil Rajchman
Agradecimentos
A publicação deste livro jamais teria se concretizado sem Raoul Velazco. Amigo
fiel da família de Chil Rajchman, ele é o fio condutor da aventura que levou à
publicação desse texto inédito. Durante longos anos, conservou consigo esse
testemunho, fez com que o lessem à sua volta e pediu conselhos. Cada um de
seus encontros o fez refletir e enfim se convencer de que este relato deve ser lido
e traduzido no mundo inteiro.
Entre seus numerosos apoios, ele faz questão de agradecer especialmente a
Hugo Burel, Mario Labrin, Mirta Gordon, Maribel Chenin, Abraham Bengio,
Denis Peschanski, Emmanuelle e Christian Eggers, bem como a Isabelle e Pierre
Cellier, Geneviève Sakarovitch, Martine Poirier e Rémi Duffourd. Sem esquecer
Daniel, José e Andrés Rajchman por sua amizade e confiança sem limites.
Título original:
Je suis le dernier juïf
(Treblinka 1942-1943)
***
"Um manifesto para fazer com que a comida sem culpa seja prazerosa para
todos." Nigella Lawson
"Deve ser lido por todos os pais, e é um bom recurso para adultos com desordens
alimentares ou problemas mais prosaicos como efeito-sanfona. Traz ideias bem
úteis e nada da pseudociência que costuma infestar livros de dieta." The Wall
Street Journal
A África tem sido cobiçada por suas riquezas desde sempre. Nos séculos
passados, ouro, marfim e tráfico de escravos atraíram caçadores de fortunas,
mercadores e conquistadores de todos os lugares. Nos tempos modernos, o foco
passou a ser o petróleo, ao lado de diamantes e outros minerais valiosos.
Do Antigo Egito aos dias de hoje, Meredith descreve a vida de reinos e impérios
ancestrais; lendas e mitos históricos; a disseminação do cristianismo e do
islamismo; a caça ao ouro e a outras riquezas; o tráfico de escravos; os feitos de
exploradores e missionários; o impacto avassalador da colonização europeia; e a
tão aguardada independência. Examinando também os Estados africanos
modernos pós-coloniais, o autor conclui com uma projeção de seu futuro.
"É provável que mesmo o especialista de longa data aprenda muitas coisas por
conta da quantidade extraordinária de terreno que o autor abrange.” The Wall
Street Journal
"Este é o novo padrão de referência pelo qual as histórias futuras serão
analisadas.” Publishers Weekly
Entre tudo poder ser arte e qualquer coisa de fato ser arte reside uma diferença
fundamental. Esse livro discute o papel e os lugares da crítica na atualidade, bem
como sua participação no processo de criação e disseminação de sentido,
deslocando-a da posição de juiz para a de testemunha.