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DADOS DE ODINRIGHT

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O I.O.U.
F. Scott Fitzgerald, 1920
Título original: THE I.O.U.
Publicação: The New Yorker
URL: goo.gl/KAbdfS
Issue March 20, 2017
Publicado em 13/03/17
Illustration by Seth
1

Este na capa não é meu nome verdadeiro — o sujeito


a quem pertence me deu permissão para usá-lo nessa
história. Meu nome verdadeiro não vou divulgar. Sou
editor. Aceito romances longos sobre o amor jovem
escrito por velhas empregadas domésticas de Dakota do
Sul, histórias de detetive sobre homens ricos e fêmeas
apaches com "grandes olhos escuros", ensaios sobre a
ameaça disso e daquilo e a cor da lua no Tahiti por
professores de faculdade e outros desempregados. Não
aceito romances de autores com menos de quinze anos.
Todos os colunistas e comunistas (nunca consegui pôr
essas duas palavras numa mesma linha) abusam de mim
porque dizem que eu quero dinheiro. Eu quero, eu quero
terrivelmente. Minha esposa precisa. Meus filhos usam o
tempo todo. Se alguém me oferece todo o dinheiro de
Nova York não devo recusá-lo. Eu prefiro publicar um livro
com venda antecipada de quinhentas mil cópias do que
ter descoberto Samuel Butler, Theodore Dreiser e James
Branch Cabell em um ano. Você também preferiria se
fosse editor.
Há seis meses contratei um livro que era sem dúvida
garantido. De Harden, o homem da pesquisa psíquica —
Dr. Harden. Seu primeiro livro — publiquei-o em 1913 —
correu como um caranguejo das areias de Long Island e
naquele tempo a pesquisa psíquica nem de longe era
moda como hoje. Anunciamos o lançamento como
documento poderoso. Seu sobrinho tinha sido morto na
guerra e Dr. Harden tinha escrito com distinção e
reticência um relato de sua comunhão psíquica com este
sobrinho, Cosgrove Harden, através de vários médiuns.
O Dr. Harden não era um intelectual. Era um distinto
psicólogo, Ph.D. em Viena, LL.D. em Oxford e professor
visitante tardio na Universidade de Ohio. Seu livro não
era nem insensível nem crédulo. Havia nele uma
gravidade fundamental subjacente. Por exemplo, ele
mencionou no livro que um jovem chamado Wilkins tinha
batido em sua porta alegando que o falecido lhe devia
três dólares e oitenta centavos. E pediu ao Dr. Harden
para descobrir o que o falecido queria fazer sobre isso. A
recusa do Dr. Harden foi firme. Seria como rezar aos
santos por um guarda-chuva perdido.
Levamos noventa dias preparando a publicação. A
capa do livro foi criada em três tipos alternativos e dois
desenhos para cada um foram encomendados a
caríssimos artistas antes de selecionarmos o melhor. A
prova final foi lida por não menos de sete revisores
especialistas, para que o mais leve tremor na cauda de
uma vírgula ou uma serifa mais fraca em alguma
capitular não ofendesse os olhos entediados do Grande
Público Americano.
Quatro semanas antes do dia marcado para o
lançamento, enormes caixas saíram para mil pontos do
país. Só para Chicago vinte e sete mil cópias. Para
Galveston, no Texas, sete mil. Cem cópias foram
lançadas com suspiros sobre Bisbee, Arizona, Red Wing,
Minnesota, e Atlanta, Georgia. As cidades maiores bem
contempladas, lotes dispersos de vinte e trinta e
quarenta foram deixados aqui e ali através do continente
como um artista de areia finaliza sua escultura com a
unha.
Só a primeira impressão tinha sido de três mil
exemplares.
Enquanto isso, o departamento de publicidade estava
ocupado das nove às cinco seis dias por semana
grifando, sublinhando, capitalizando, capitalizando em
dobro. Prepararam slogans, manchetes, artigos pessoais
e entrevistas; selecionaram fotografias mostrando Dr.
Harden pensando, meditando e contemplando;
escolheram instantâneos dele com uma raquete de tênis,
com um bastão de golfe, com uma cunhada, com um
oceano. Notas literárias foram preparadas aos montes.
Cópias de cortesia foram empilhadas e enviadas aos
críticos de mil jornais e semanários.
A data marcada era 15 de abril. No dia 14, um silêncio
aflito perpassava os escritórios; embaixo, na seção de
varejo, os balconistas olhavam nervosamente para os
espaços ainda vazios nas estantes e para as vitrines,
onde três estilistas experientes trabalhariam a noite toda
arrumando o livro em quadrados e círculos e corações e
estrelas e paralelogramos.
Na manhã de 15 de abril, às cinco para as nove, Miss
Jordan, a estenógrafa principal, desmaiou de emoção nos
braços de meu sócio júnior. À nove em ponto, um velho
cavalheiro de bigodes Dundreary comprou a primeira
cópia de "A aristocracia do mundo espiritual".
O grande livro estava na rua.

Foi três semanas depois disso que eu decidi correr


para Joliet, Ohio, para visitar o Dr. Harden. Era um caso
de Maomé (ou era Moisés?) e a montanha. Ele era tímido
e retraído; eu precisava encorajá-lo, felicitá-lo, protegê-lo
dos possíveis avanços de editoras rivais. Eu pretendia
fazer os arranjos necessários para garantir seu próximo
livro e com isso em mente levei vários contratos bem
redigidos que tiraria de seus ombros todos os problemas
burocráticos desagradáveis para os próximos cinco anos.
Saímos de Nova York às quatro da tarde. É meu
costume quando em viagem colocar na pasta meia dúzia
de cópias do meu livro principal e estendê-los
casualmente a passageiros de olhar mais inteligente na
esperança de que o livro possa, assim, ser levado à
atenção de um novo grupo de leitores. Antes de
chegarmos a Trenton, uma senhora de lorgnette no meu
vagão estava suspeitosamente virando as páginas de seu
exemplar, um jovem sentado em frente a mim parecia
profundamente absorvido na leitura da cópia dele e uma
garota de cabelos avermelhados e olhos peculiarmente
suaves no outro lado do corredor fazia jogo da velha nas
costas do livro dela.
Acho que dormi. O cenário de New Jersey tinha
mudado sem espalhafato para o cenário da Pensilvânia.
Passamos por muitas vacas e um grande número de
bosques e campos e a cada vinte minutos mais ou menos
o mesmo fazendeiro aparecia, sentado em sua carroça ao
lado da estação da aldeia, mastigando tabaco e olhando
pensativo para as janelas do trem Pullman.
Devíamos ter passado por este fazendeiro umas dez
ou quinze vezes quando minha sesta foi repentinamente
interrompida e notei que o jovem na minha frente batia o
pé como um baterista de orquestra e emitia gritinhos e
grunhidos. Fiquei surpreso e satisfeito por ver que ele
estava muito empolgado pelo livro que apertava
firmemente em seus longos dedos brancos.
— Bem —, eu disse jovialmente —, você parece
interessado.
Ele olhou para cima. Em seu rosto fino estavam olhos
que são vistos em apenas dois tipos de homens: os que
estão acima no espiritualismo e os que estão abaixo no
espiritualismo.
Como ele parecia atordoado, repeti minha pergunta.
— Interessado! — gritou. — Interessado! Meu Deus!
Olhei para ele com cuidado. Sim, ele era claramente
um médium ou então um desses jovens sarcásticos que
escrevem histórias humorísticas sobre espiritualistas nas
revistas populares.
— Um trabalho... extraordinário — disse ele. — O
herói, por assim dizer, passou evidentemente a maior
parte do tempo desde sua morte ditando-o ao tio.
Eu concordei que devia ser isso mesmo.
— Seu valor, é claro — observou ele com um suspiro
—, depende inteiramente de que o jovem esteja onde diz
estar.
— Claro —, eu disse, perplexo. — O jovem deve estar
no paraíso e não no purgatório.
— Sim — concordou ele, pensativo —, seria
embaraçoso se estivesse no purgatório... e mais ainda se
estivesse num terceiro local.
Isso era demais.
— Não havia nada na vida do rapaz que indicasse que
ele poderia estar em... em...
— Claro que não. A região a que você se refere não
estava em meus pensamentos. Eu apenas disse que
seria embaraçoso se ele estivesse no purgatório, mas
ainda mais embaraçoso se fosse em outro lugar...
— Onde, senhor?
— Em Yonkers, por exemplo.
Aí eu reagi.
— O quê?
— De fato, se estivesse no purgatório, seria apenas
um pequeno erro... mas se estivesse em Yonkers...
— Meu caro senhor — interrompi com impaciência —,
qual a relação entre Yonkers e “A Aristocracia do Mundo
Espiritual”?
— Nenhuma. Simplesmente mencionei que se fosse
em Yonkers...
— Mas ele não está em Yonkers.
— Não, não está. — Ele fez uma pausa e suspirou. —
Na verdade, ele acaba de passar da Pensilvânia para
Ohio.
Desta vez eu pulei de puro nervosismo. Eu ainda não
tinha entendido o que ele estava pretendendo, mas senti
que seus comentários sugeriam algum significado.
— Você quer dizer — perguntei rapidamente — que
sente sua presença astral?
O jovem se ergueu ferozmente.
— Já chega disso — disse ele, intenso. — Parece que
no mês passado me tornei o esporte favorito das rainhas
crédulas e dos Basil Kings1 dos Estados Unidos inteiros.
Meu nome, senhor, é Cosgrove P. Harden. Eu não estou
morto. Eu nunca estive morto. E depois de ler esse livro
nunca mais me sentirei muito seguro de morrer!

____________
1 William Benjamin Basil King (1859-1928) era um

clérigo anglicano canadense que escrevia romances


espíritas muito populares na época.
2

A garota do outro lado do corredor ficou tão assustada


com meu grito de dor e surpresa que colocou um x em
vez de um o no seu jogo.
Tive uma visão imediata de uma longa fila de pessoas
que se estendia da Rua Fortieth, onde fica minha editora,
até o Bowery — quinhentas mil pessoas, cada uma
abraçando uma cópia de "A Aristocracia do Mundo
Espiritual", cada uma exigindo a devolução de seus dois
dólares e cinquenta centavos. Pensei rapidamente se
poderia trocar todos os nomes e até mudar o livro de
não-ficção para ficção. Mas era tarde demais para isso.
Trezentas mil cópias estavam nas mãos do público
americano.
Quando consegui me recuperar, o jovem me contou a
história de suas experiências desde que tinha sido
declarado morto: três meses numa prisão alemã; dez
meses num hospital com febre cerebral; outro mês antes
que pudesse se lembrar de seu próprio nome. Meia hora
depois de sua chegada a Nova York, encontrara um velho
amigo que o olhou, sufocado, e então caiu desmaiado.
Quando ele recobrou os sentidos, foram juntos comprar
umas bebidas e em uma hora Cosgrove Harden ouviu a
história mais surpreendente sobre si mesmo que um
homem jamais escutou.
Tomou um táxi para uma livraria. O livro que ele
procurava estava esgotado.
Imediatamente tomou o trem para Joliet, Ohio, e por
um golpe raro da sorte o livro tinha sido posto em suas
mãos.
Meu primeiro pensamento foi de que ele era um
chantagista, mas comparando-o com a fotografia na
página 226 de "A Aristocracia do Mundo Espiritual" vi que
era sem dúvida Cosgrove P. Harden. Mais magro e mais
velho do que no retrato, o bigode tinha ido embora, mas
era o mesmo homem.
Suspirei profunda e tragicamente.
— Exatamente quando vendia melhor do que um livro
de ficção.
— Ficção! — Ele respondeu com raiva. — É ficção!
— De certo modo... — admiti.
— De certo modo? É ficção! Cumpre todas as
exigências da ficção: é uma longa e doce mentira. Você
chamaria isso de fato?
— Não — respondi calmamente. — Eu chamaria de
não-ficção. A não-ficção é uma forma de literatura a meio
caminho entre ficção e fato.
Ele abriu o livro ao acaso e emitiu um breve grito
pungente de angústia que fez a garota ruiva fazer uma
pausa no que deveria ser a semifinal de seu torneio de
jogo da velha.
— Olhe! — Ele gemeu miseravelmente. — Olhe! Aqui
diz "segunda-feira". Considere minha existência neste
“outro lado” na segunda-feira. Eu lhe peço! Veja! Eu
cheiro flores. Eu passo o dia cheirando flores. Você vê,
não é? Na página 194, no alto da página, eu cheiro uma
rosa...
Levei o livro com cuidado até o nariz.
— Não sinto nada —, eu disse. — Possivelmente a
tinta...
— Não cheire! — exclamou ele. — Leia! Eu cheiro uma
rosa e tenho dois parágrafos de arrebatamento sobre a
nobreza instintiva do homem. Um simples cheiro! Depois
dedico mais uma hora às margaridas. Deus! Nunca mais
vou poder participar de uma reunião da faculdade.
Virou algumas páginas e gemeu novamente.
— Aqui estou eu com as crianças... dançando com
elas. Passei o dia inteiro com elas e dançamos. Nem
temos um balanço decente. Fazemos alguns volteios
estéticos. Eu não sei dançar. Eu odeio crianças. Mas mal
eu morro me transformo num cruzamento de babá com
corista.
— Olhe aqui — arrisquei reprovadoramente —, essa
foi considerada uma passagem muito bonita. Veja, ele
descreve suas roupas. Você está vestido... vejamos...
bem, com uma espécie de short... translúcido. Que flutua
atrás de você...
— Uma espécie de roupa de baixo flutuante —, disse
ele, em tom zangado — e minha cabeça está cheia de
folhas...
Tive que admitir... as folhas estavam implícitas.
— Ainda assim — sugeri —, pense que podia ser pior.
Ele podia ter feito você realmente ridículo se perguntasse
dos números no relógio do seu avô ou dos três dólares e
oitenta centavos que você devia no pôquer.
Houve uma pausa.
— Sujeito engraçado, esse meu tio — ele disse,
pensativo. — Acho que ele é um pouco doido.
— De jeito nenhum — assegurei. — Tenho lidado com
escritores a vida toda e ele é o mais sadio com quem já
tratamos. Nunca tentou nos pedir dinheiro emprestado;
nunca nos pediu para demitir nosso departamento de
publicidade; e nunca afirmou que seus amigos não
conseguiam achar o livro dele em Boston,
Massachusetts.
— Ainda assim vou pegar o corpo astral dele para
uma surra daquelas.
— Isso é tudo que você vai fazer? — perguntei
ansiosamente. — Você não está pensando em reaparecer
com seu verdadeiro nome e estragar a venda do livro,
está?
— O quê?!
— Certamente você não faria isso. Pense no
desapontamento que causaria. Você faria quinhentas mil
pessoas infelizes.
— Tudo mulher — ele disse, sempre zangado. — Elas
gostam de ser infelizes. Pense na minha garota... a
garota de quem eu estava noivo. Como você acha que
ela se sentiu com essa minha jornada florida desde que
eu a deixei? Você acha que ela aprovou minha cirandinha
com um monte de crianças por toda a página 221? E nu!
Eu estava em desespero. Queria saber o pior de uma
vez.
— O que... o que você vai fazer?
— Fazer? — exclamou descontroladamente. — Ora, eu
vou mandar meu tio para a cadeia, junto com editor dele
e o assessor de imprensa e toda a equipe, até o diabo do
impressor que assentou os malditos tipos.

Quando chegamos a Joliet, Ohio, às nove da manhã


seguinte, eu já o tinha acalmado um pouco. Seu tio era
um homem velho, eu lhe disse, um homem equivocado.
Ele tinha se enganado, não havia dúvida. Seu coração
pode ser fraco e a visão do sobrinho chegando
subitamente a sua porta podia acabar com ele.
Naturalmente, na minha mente eu achava que
podíamos fazer algum tipo de acordo. Se Cosgrove
pudesse ser persuadido a ficar fora do caminho por cinco
anos ou por uma soma razoável, as coisas ainda podiam
dar certo.
Assim, quando saímos da pequena estação, evitamos
a aldeia e, num silêncio deprimente, atravessamos a
metade do caminho para a casa do Dr. Harden. Quando
estávamos a cem metros, parei e me virei para ele.
— Espere aqui — eu disse. — Preciso prepará-lo para o
choque. Volto em meia hora.
Ele protestou no início, mas finalmente se sentou
sombriamente no mato na beira da estrada. Secando
minha testa suada, subi o caminho até a casa.
O jardim do Dr. Harden estava cheio de sol e botões
de magnólia japonesa floresciam nas árvores e deixavam
cair lágrimas cor-de-rosa sobre a grama. Eu o vi
imediatamente, sentado perto de uma janela aberta. O
sol estava entrando, criando formas quadradas na mesa,
na pilha de papéis espalhados e no colo do próprio Dr.
Harden, até sua cabeça desgrenhada e branca. Na
escrivaninha havia um envelope marrom e seus dedos
magros mexiam nos recortes de jornal que ele acabara
de pegar.
3

Eu tinha chegado muito perto, meio escondido pelas


magnólias, e estava prestes a falar com ele quando vi
uma garota num vestidinho púrpura se aproximando
através das macieiras de galhos baixos que ficavam no
lado norte do jardim, caminhando pela grama em direção
à casa. Eu me afastei e observei quando ela chegou à
janela aberta e falou sem hesitação ao grande Dr.
Harden.
— Quero conversar com você — disse ela
abruptamente.
Dr. Harden olhou para cima e um pedaço da imprensa
de Filadélfia voou de sua mão. Perguntei-me se seria o
recorte que o chamava de “o novo São João”.
— Sobre essas coisas! — continuou a garota, bem
agressiva. — Ela tirou um livro de baixo do braço. Era “A
Aristocracia do Mundo Espiritual”. Eu o reconheci pela
capa vermelha com os anjos nos cantos.
— Sobre essas coisas! — repetiu, zangada de verdade,
e então jogou violentamente o livro num arbusto, onde
ele deslizou entre duas rosas silvestres e pousou
desconsoladamente entre as raízes.
— Por que, Miss Thalia?
— Por que, Miss Thalia? — ela o imitou —, seu velho
tolo, você devia estar totalmente chapado ao escrever
esse livro.
— Chapado? — A voz do Dr. Harden expressava um
pálido desejo de que aquilo fosse alguma nova honraria.
Ela não deixou que ele ficasse muito tempo na dúvida.
— Chapado! Você me ouviu! Drogado! Deus do céu,
você não entende inglês?
— Eu não conhecia — o Dr. Harden replicou friamente
— nenhum precedente do uso desse substantivo como
verbo transitivo. Quanto ao livro...
— É a pior desgraça do mundo!
— Se você ler esse clipping...
Ela colocou os cotovelos no parapeito da janela e se
movimentou como se quisesse pular para dentro e, de
repente, deixou cair o queixo nas mãos e, olhando para
ele de olhos arregalados, começou a falar.
— Você tinha um sobrinho —, disse ela. — Esse foi o
azar dele. Era o melhor homem que já viveu e o único
homem que eu amei ou amarei.
Dr. Harden sacudiu a cabeça como se fosse falar, mas
Thalia bateu seu pequeno punho no peitoril da janela e
continuou.
— Ele era corajoso, correto e calado. Morreu de
ferimentos numa cidade estrangeira como Sargento
Harden, do 105º de Infantaria. Uma vida tranquila e uma
morte honrosa. E o que você fez? — A voz dela subiu de
tom ligeiramente até que tremeu e vibrou doloridamente
pela janela. — O que é que você fez! Você fez dele uma
chacota! Você o chamou de volta à vida como uma
criatura de fábula que envia mensagens idiotas sobre
flores e pássaros e o número de obturações nos dentes
de George Washington. Você...
Dr. Harden se levantou.
— Você veio aqui — começou ele, em voz mais alta —
para me dizer o que...
— Cale a boca! — Ela gritou. — Eu vou dizer o que
você fez, e você não pode me parar nem com todos os
corpos astrais deste lado das Montanhas Rochosas.
O Dr. Harden voltou a se acomodar em sua cadeira.
— Vá em frente — disse ele, com um esforço de
autocontrole. — Fale com essa sua mente geniosa.
Ela parou por um momento e virou a cabeça para o
jardim. Eu podia ver que ela estava mordendo o lábio e
piscando para segurar as lágrimas. Então fixou os olhos
escuros novamente nele.
— Você o pegou — disse — e o usou como massa
desse seu médium desonesto, e fez uma torta para todas
essas histéricas que acham você um grande homem.
Você, grande? Sem respeito algum pela dignidade e a
reticência da morte? Você é um velho covarde, um fraco
que usa o pretexto do luto para brincar com a
credulidade de muitos idiotas. Isso é tudo, acabei.
Com isso, ela se virou e, tão repentinamente como
chegou, voltou de cabeça erguida pelo caminho, em
minha direção. Esperei até que ela estivesse a uns vinte
metros de distância da janela.
Então eu a segui pela grama macia e falei com ela.
— Miss Thalia.
Ela me encarou, um tanto assustada.
— Miss Thalia, quero lhe dizer que há uma surpresa
para você nesse caminho, alguém que você não vê há
muitos meses.
Seu rosto não mostrou compreensão.
— Não quero estragar nada — continuei —, mas
também não quero que fique assustada se em alguns
instantes você tiver a maior surpresa de sua vida.
— O que você quer dizer? — perguntou calmamente.
— Nada — eu disse. — Apenas continue a caminhar,
pense nas coisas mais bonitas do mundo e de repente
algo incrível vai acontecer.
Com isso, eu me inclinei para ela com o chapéu na
mão e fiquei sorrindo benevolentemente.
Ela me lançou um olhar maravilhoso e depois se virou
lentamente e foi embora.
Num instante sumiu atrás das magnólias.
Levei quatro dias — quatro dias de ansiedade — para
pôr alguma ordem no caos e conseguir organizar uma
reunião de negócios. O primeiro encontro entre Cosgrove
Harden e o tio foi a tensão nervosa mais tremenda da
minha vida. Sentei-me por uma hora na beirada
escorregadia de uma cadeira velha, preparado para pular
cada vez que via os músculos do jovem Cosgrove se
estufando sob a manga do paletó. Na verdade, eu
tentava instintivamente pular, mas de cada vez
escorregava, impotente, da cadeira e aterrissava sentado
no chão.
Dr. Harden finalmente encerrou a entrevista se
levantando e subindo as escadas. Consegui levar o jovem
Harden para seu quarto, à força de ameaças e
promessas, e arranquei dele um voto de silêncio de vinte
e quatro horas. Usei todo o meu dinheiro disponível para
subornar os dois velhos empregados. Eles não deveriam
comentar nada, avisei aos dois, porque o Sr. Cosgrove
Harden acabava de escapar de Sing Sing. Tremi quando
disse isso, mas havia tantas mentiras no ar que mais
uma ou menos uma faria pouca diferença.
Se não fosse Miss Thalia eu teria desistido no primeiro
dia e voltado a Nova York para aguardar o desastre. Mas
ela estava em tal estado de felicidade absoluta e
beatífica que ficou disposta a concordar com qualquer
coisa. Propus a ela que se ela e Cosgrove se casassem e
vivessem no Oeste sob um nome diferente por dez anos,
eu os sustentaria liberalmente. Ela pulou de alegria.
Aproveitei a oportunidade e pintei com cores brilhantes
um bangalô de amor na Califórnia, com clima ameno o
ano todo, Cosgrove chegando para o jantar, e românticas
casas antigas na vizinhança e Cosgrove chegando para o
jantar, e a Golden Gate ao crepúsculo de junho e
Cosgrove chegando para... e assim por diante.
Enquanto eu falava, ela dava gritinhos de alegria e
estava disposta a partir imediatamente. No quarto dia,
convenceu Cosgrove a se juntar a nós na sala para a
reunião. Avisei à governanta que não nos incomodasse e
nos sentamos para resolver a coisa toda.

Nossos pontos de vista eram radicalmente


divergentes.
O jovem Harden era muito parecido com a Rainha
Vermelha. Se alguém errasse tinha que pagar
imediatamente. Já tínhamos muitas falsas mortes na
família, e logo haveria uma verdadeira se alguém não se
cuidasse!
O ponto de vista do Dr. Harden era que tudo tinha sido
uma confusão terrível e ele não sabia o que fazer a
respeito, bem sabe Deus, e ele desejaria estar morto.
O ponto de vista de Thalia era que ela tinha dado uma
olhada na Califórnia em um guia e o clima era adorável,
Cosgrove chegando para o jantar...
Meu ponto de vista era que não havia nó tão apertado
que não desse jeito de sair do labirinto — e outras
metáforas bem mais misturadas, que só deixavam todos
mais confusos.
Cosgrove Harden insistiu em que pegássemos quatro
cópias de “A Aristocracia do Mundo Espiritual” e
conversássemos a respeito. O tio disse que a visão do
livro o deixaria mal do estômago. A sugestão de Thalia
era de que todos devíamos ir para a Califórnia resolver a
questão lá.
4

Peguei quatro livros e os distribuí. Dr. Harden fechou


os olhos e gemeu. Thalia abriu seu exemplar na última
página e começou a desenhar bangalôs celestiais com
uma jovem esposa em pé na porta de cada um. O jovem
Harden correu furiosamente para a página 226.
— Aqui estamos! — exclamou. — Bem em frente à
foto de “Cosgrove Harden, no dia anterior a sua partida,
mostrando a pequena verruga acima do olho esquerdo”,
vemos o seguinte: “Essa verruga sempre preocupou
Cosgrove. Ele tinha a sensação de que os corpos
deveriam ser perfeitos e que esta era uma imperfeição
que, na ordem natural, deveria ser eliminada”. Hmm!
Não tenho verruga.
Dr. Harden concordou.
— Talvez tenha sido uma imperfeição no negativo —
sugeriu.
— Caramba! Se no negativo não aparecesse minha
perna esquerda, você provavelmente me faria chorar o
livro inteiro ansiando por uma perna esquerda... mas vá
agora ao Capítulo 29.
— Olhe só — interrompi — não podemos chegar a um
entendimento? Ninguém sabe que você está na cidade...
O jovem Harden me encarou com expressão feroz.
— Eu ainda nem comecei. Eu nem mencionei o
desprezo aos sentimentos de Thalia.
— Desprezo! — protestou o Dr. Harden. — Por quê? Eu
nem a cito... Ela me detesta. Ela...
Cosgrove riu amargamente.
— Você se dá muita importância. Acha que eu estou
com ciúme de seus velhos cabelos grisalhos? Estou
falando do desprezo aos sentimentos dela em relação ao
que é dito de mim no livro.
Thalia inclinou-se para a frente com fervor.
— Meus sentimentos nunca vacilaram, Cosgrove ...
nunca.
— Vamos, Thalia — disse Cosgrove, um tanto mal-
humorado. — Eles devem ter sido ligeiramente abalados.
Que tal na página 223? Você pode amar um homem que
usa cuecas flutuantes? O que é... o que é translúcido?
— Eu estava de luto, Cosgrove. Quer dizer, eu estaria
de luto se acreditasse, mas eu não acreditei.
— Nem um abalo? — O tom dele era de
desapontamento.
— Nenhum, Cosgrove.
— Bem — disse Cosgrove com ressentimento —, eu
estou arruinado politicamente, de qualquer maneira...
quero dizer, se eu decidisse entrar na política, nunca
poderia ser presidente. Não sou nem mesmo um
fantasma democrata... sou um esnobe espiritual.
O rosto do Dr. Harden estava afundado nas mãos em
atitude de profundo abatimento.
Interrompi desesperadamente, falando tão alto que
Cosgrove foi obrigado a parar e ouvir.
— Eu lhe garanto dez mil por ano, se você for embora
por dez anos!
Thalia bateu palmas e Cosgrove, olhando-a de soslaio,
começou a mostrar, pela primeira vez, um ligeiro
interesse.
— E depois de dez anos?
— Oh — eu disse esperançoso — Dr. Harden pode
estar... pode estar...
— Fale — disse Harden tristemente. — Posso estar
morto. Eu sinceramente espero.
— ...aí você pode voltar ao seu próprio nome — eu
continuei, insensível. — Enquanto isso, concordamos em
não publicar nenhuma nova edição do livro.
— Hmm. Suponha que ele não esteja morto em dez
anos — Cosgrove questionou, suspeitoso.
— Oh, vou morrer — Harden garantiu rapidamente. —
Não precisa se preocupar.
— Como sabe que vai morrer?
— Como alguém sabe que alguém vai morrer? É da
natureza humana.
Cosgrove o olhou com amargura.
— Não há espaço para humor nesta discussão. Se
você fizer um acordo honesto para morrer, sem reservas
mentais...
Harden assentiu sombriamente.
— Posso fazer também. Com o dinheiro que tenho,
nesse meio tempo morro de fome.
— Isso seria satisfatório. E quando o fizer, pelo amor
de Deus, providencie para ser enterrado. Não fique
deitado morto aqui na casa esperando que eu volte e
faça todo o trabalho.
Harden reagiu com um olhar amargo e Thalia, que
estava em silêncio, ergueu a cabeça.
— Ouviram alguma coisa lá fora? — perguntou,
curiosa.
Eu tinha ouvido alguma coisa — quer dizer, eu tinha
subconscientemente percebido um murmúrio... um
murmúrio crescendo, misturado ao som de muitos
passos.
— Eu ouvi — disse. — Esquisito...
Houve uma súbita interrupção — o murmúrio do lado
de fora aumentou até as proporções de um canto, a
porta se abriu e uma empregada de olhos arregalados
entrou correndo.
— Dr. Harden! Dr. Harden! — ela gritou aterrorizada.
— Tem uma multidão lá fora, talvez um milhão de
pessoas vindo pela estrada para cá. Estarão na varanda
em um...
Um aumento do ruído mostrou que eles já estavam.
Fiquei em pé de um pulo.
— Esconda seu sobrinho! — gritei ao Dr. Harden.
Barba tremendo, olhos lacrimejantes, o dr. Harden
segurou Cosgrove pelo cotovelo.
— O quê? — ele hesitou.
— Eu não sei. Leve-o para o sótão imediatamente,
coloque folhas sobre ele, ponha as coisas velhas da
família em cima dele.

Com isso, saí, deixando os três em pânico confuso.


Atravessei o corredor e corri até a varanda. Não cheguei
a tempo. A varanda já estava cheia de homens, jovens
de paletó xadrez e chapéus moles, velhos de sapatos
antigos e colarinhos puídos, todos aglomerados e aos
empurrões, cada um acenando e me chamando acima da
multidão. Sua única marca comum era um lápis na mão
direita e um bloco na esquerda — blocos abertos, em
branco, sinistramente ameaçadores.
Atrás deles, no gramado, havia uma multidão maior —
açougueiros e padeiros em seus aventais, mulheres
gordas de braços cruzados, mulheres magras levantando
crianças sujas para que pudessem ver melhor, garotos
berrando, cachorros latindo, garotinhas horríveis que
pulavam para cima e para baixo gritando e batendo
palmas. Mais atrás ainda, numa espécie de anel exterior,
os velhos da aldeia, desdentados, olhos cheios de
remela, bocas abertas, as barbas cinzentas fazendo
cócegas no alto das bengalas. Atrás deles todos, o pôr-
do-sol, vermelho-sangue e terrível, banhando trezentos
ombros que se torciam.
Depois da explosão de ruído que sucedeu minha
chegada, caiu um silêncio — um silêncio profundo,
grávido de significado — e desse silêncio veio uma dúzia
de vozes dos homens com cadernos na minha frente.
— Jenkins do Toledo Blade!
— Harlan do Cincinnati News!
— Mc‘Gruder do Dayton Times!
— Cory do Zanesville Republican!
— Jordan do Cleveland Plain Dealer!
— Carmichael do Columbus News!
— Martin do Lima Herald!
— Ryan do Akron World!
Era estranho, esquisito — um mapa enlouquecido de
Ohio em que os quilômetros evitavam se juntar e as
cidades pulavam de um condado para o outro. Meu
cérebro tremeu.
Então, novamente o silêncio caiu. Notei uma comoção
no meio da multidão, uma espécie de onda flutuando
pelo centro, como uma fina linha de vento soprando
através de um campo de trigo.
— O que vocês querem? — gritei, num gemido.
Uma só voz saiu de mil gargantas.
— Cadê Cosgrove Harden?
Eles sabiam! Os repórteres me invadiram, implorando,
ameaçando, exigindo.
— Manteve-o bem escondido, não? Quase conseguiu!
Deu para pagar as contas? Ele não vai dar entrevista?
Traga o velho farsante!
Então aquele estranho vento no campo de trigo de
repente chegou à frente e parou. Um jovem alto, de
cabelos amarelos e pernas parecidas com pernas
emergiu da multidão e dezenas de mãos o empurraram
em minha direção até a varanda. Ele subiu os degraus.
— Quem é você? — gritei.
— O nome é Elbert Wilkins — ele disse, ofegante. —
Sou o cara que contou tudo a eles.
Ele fez uma pausa e seu peito inchou. Era seu grande
momento. O mensageiro imortal dos deuses.
— Eu o reconheci no dia em que chegou! Você vê...
você vê... — Todos nos inclinamos para a frente
ansiosamente. — Eu tenho o I.O.U.1 dele. Três dólares e
oitenta centavos que ele perdeu para mim no pôquer, e
eu quero meu dinheiro!

Sou editor. Publico qualquer tipo de livro. Estou


procurando um livro que venda quinhentas mil cópias.
Esta época é boa para romances com reviravoltas
psicológicas. Se possível, preferiria algo de um
materialista fervoroso sobre um clubman rico e uma
pequena apache morena — ou algo sobre o amor. O amor
é uma coisa certa — leva um homem vivo a amar.♦

____________
1 Iniciais de I Owe You (U sendo o som da palavra You)

= Eu devo a você. Dívida escrita num papel qualquer


com valor de promissória.

— 1920
Tradução/formatação

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