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— Tá dizendo que eu não sou nada por que não tenho uma
posição alta no cartel?
— Não é isso. Vai embora, Leonardo. Não me procura mais,
isso já foi longe demais. Sabe as merdas que podem acontecer se
nos descobrirem? Você é meu inimigo.
— Agora eu sou seu inimigo?
— Eu nunca devia ter te fodido — Rafael grunhe, colocando
uma máscara arrogante e cruel. — Vai embora daqui.
Encarando os olhos assustados do meu melhor amigo, forço
o bolo grosso que se formou no meio da garganta a descer.
— Tá terminando comigo? — uma pergunta sem resposta. —
Você nunca me amou, não é?
— Para com isso, Leo. Sabe que não tem como essa relação
ir pra frente. Ou você acha que o Cartel vai me deixar no comando
se souberem o que eu sou?
Leo deixa escapar uma risada irônica.
— No fundo, eu sempre soube que escolheria o Cartel a mim.
— Nunca tivemos escolha — Rafael desabafa com o tom de
voz ameno, soando triste e sincero na mesma intensidade, e sem
entender, meu coração se aperta por causa desses dois.
Deve ser tão ruim e solitário viver assim, escondendo quem é
de verdade, estrangulando os sentimentos para agradar as pessoas
em volta. Tudo isso para ser aceito. Ou para não sofrer.
— O problema é que nessa relação... eu sempre me doei
mais. Amei mais. Sempre estive disposto a enfrentar todos por você,
Rafael, só que nunca foi recíproco.
— Não seja hipócrita, Leo. Você quer fugir pra não enfrentar
o seu irmão mais velho.
— Eu quero fugir, porque eu amo você e quero viver uma
vida normal.
— Vai embora, Leonardo. Não me procura mais. Isso é uma
ordem. — Um momento de silêncio intenso e, de repente, sinto o
clima entre nós mudar completamente. — Que merda é essa?
Abaixa essa arma. Agora! — um grito estridente que levanta os
pelinhos do meu braço.
Me atrevo a avaliar a situação e ouço o coração bombear alto
dentro dos meus ouvidos com a cena. Leo com a mão estendida,
uma arma compacta em riste, apontando para Rafael, que está
alguns passos de distância.
— Se você não for meu, não será do Cartel também — Leo
afirma e retorço os lábios, aflita. — Anda, saca a sua arma e vamos
nos matar, aqui e agora. Neste lugar em que nós fodemos tantas
vezes.
— Não fala merda.
Leo entreabre os lábios para falar e para meu espanto e
desespero, e azar também, meu celular começa a tocar, o som
ecoando por todos os lados. Com as mãos trêmulas, busco o
smartphone no bolso de trás do jeans.
— Quem tá aí? — Leo pergunta, fixando os olhos para o
lugar nas árvores em que Pedro e eu estamos escondidos.
Pedro avança em cima de mim para me ajudar a desligar o
aparelho, mas eu sei que é tarde demais. Nós fomos descobertos.
— O que a gente vai fazer? — pergunto com a voz baixa,
mas não há tempo do meu melhor amigo responder, porque sons de
socos e grunhidos flutuam até os nossos ouvidos.
Rafael e Leo estão brigando pela arma, num confronto físico
intenso e perigoso. Tomo um sobressalto quando Pedro entrega a
chave da picape na minha mão e me encara.
— Vai, foge, Pérola.
— Não sem você.
De repente, um estampido alto e agudo irrompe,
preenchendo o espaço ao nosso redor com uma onda violenta e
penetrante, vibrando nos meus ouvidos e ossos, me deixando em
choque por alguns segundos.
— Rafael! — Leo se esgoela, chorando. — Não, não. Por
favor, não. Olha o que você fez — continua choramingando.
— Vamos correr — peço com a voz falhando. Na verdade,
parece que tudo dentro de mim está falhando.
— Você consegue? — Pedro questiona e eu começo a chorar
em silêncio ao balançar a cabeça de um lado para o outro.
— Eu tô com medo. Não sinto as minhas pernas — admito,
paralisada por causa do pavor.
Não sou burra, eu sabia como a vida pode ser perigosa, mas
nunca pensei que fosse ficar de frente com algo tão sério. Um
assassinato. Dois homens envolvidos com o Cartel.
— Fica aqui escondida. Vou correr pro outro lado e chamar a
atenção dele. A gente se encontra no carro, tá legal? — Pedro
anuncia o seu plano e nem me dá tempo de contestar, ele começa a
correr.
Um segundo depois, Leonardo vai atrás de Pedro, correndo
também em meio as plantações, gritando para que ele pare
imediatamente. Um silêncio ensurdecedor toma conta do lugar e eu
respiro fundo, forçando o medo goela abaixo.
Com as pernas bambas, me forço a ficar de pé e antes de
começar a correr, eu olho para trás e a única coisa que vejo é uma
das pernas de Rafael. Sem saber muito bem o porquê, meus pés
me levam até ele e o ar escapa dos meus pulmões.
A vida é tão frágil. Há menos de um minuto, Rafael estava em
pé e conversando, agora, sangrando e estirado no chão, inerte, os
olhos abertos, só que completamente vazios.
— Sinto muito — murmuro, encarando o corpo no chão e
contendo a vontade de vomitar.
Deixo as vistas caírem até as minhas mãos e fixo a atenção
no celular e na chave da picape. Chorando em silêncio, eu tomo
coragem e saio correndo em meio as plantações, rezando a Deus
para que Pedro fique bem.
Bogotá, Colômbia
Muitas coisas mudaram desde o tempo do meu tataravô,
principalmente a forma como os negócios são geridos. Hoje, os
membros mais importantes do Cartel sabem muito sobre dinheiro e
como não serem notados pelas agências internacionais que
combatem as drogas, além de ter um nível educacional superior.
Não há como negar que nossa geração é mais inteligente e
habilidosa, mas a ambição incontrolável por poder e dinheiro ainda é
a mesma desde que o Cartel de Santa Fé surgiu.
E é claro, a maneira de lidar com traidores e inimigos não
mudou, apenas não deixamos os corpos mutilados espalhados
pelas ruas da cidade para que as pessoas comuns vejam.
Uma batida leve na porta desvia minha atenção dos papéis
em cima da mesa e dos meus pensamentos. Ergo os cílios a tempo
de ver Carmen entrar na sala com um sorrisinho travesso.
Um macacão de tecido preto, impecavelmente cortado,
abraça seu corpo como uma segunda pele, realçando as curvas de
maneira deliciosa. Há um decote discreto, revelando quase nada,
mas acentuando bem os seios grandes.
— Vim te buscar pra jantar.
O cabelo preto e com aspecto esvoaçante de Carmen
combinam com os olhos delineados.
— Não posso sair agora. Ainda tenho muita coisa pra fazer.
Remexo-me na cadeira de couro e afasto os olhos de
Carmen para encarar as paredes adornadas por tapeçarias e obras
de arte que ostentavam toda a riqueza e poder que há na família
Navarro.
— Por favor, não me faz ir sozinha — pede, juntando os
lábios cheios num bico ao mesmo tempo em que meu celular em
cima da mesa começa a tocar, me salvando de Carmen.
Noto uma pitada de irritação ultrapassar os olhos dela, mas a
mulher disfarça quase que de imediato.
Agarro o aparelho e levo até o ouvido ao atender. Do outro
lado da linha, reconheço o choro da minha mãe, o que me deixa
com uma queimação irritante na garganta.
— Mãe, o que aconteceu? — pergunto com a voz firme, mas
um pequeno tremor quase imperceptível me trai.
Tanta merda passa na minha cabeça.
Ela está machucada?
Aconteceu algo com Giovanna?
Meus irmãos estão bem?
Merda!
— Alejandro...
Meu coração acelera incontrolavelmente. Sinto os músculos
do meu rosto se tornarem rígidos, uma máscara de controle sobre a
tempestade interior que começa a se formar.
— Mamá, fala comigo — exijo.
— Rafael foi encontrado morto na fazenda — fala, a voz
carregada de pesar e ainda assim, sombria de um jeito que nunca a
ouvi.
Rafael está morto?
O impacto da notícia me atinge em cheio, como um soco
certeiro no estômago. Uma onda de choque percorre todo o meu
corpo, me congelando no tempo por alguns segundos.
Fixo os olhos num ponto vago à minha frente, enquanto a
mamá continua a chorar do outro lado da linha. As palavras apenas
ecoam dentro da minha mente, difíceis de serem entendidas.
Meu irmão.
— O que aconteceu? — Carmen quer saber e não tenho
vontade de falar com ela.
— Estou indo pra casa, mamá.
As emoções dentro de mim se misturam em um turbilhão
confuso de raiva e tristeza. E a sensação de impotência me
estrangula diante da notícia da morte do meu irmão.
Cerro a mandíbula com tanta força, que me sinto capaz de
quebrar os dentes. Engulo em seco e solto o ar que estava
prendendo sem perceber ao contar o que aconteceu à Carmen.
— Rafael está morto. Preciso ir.
Como o principal chefe do Cartel de Santa Fé, eu não posso
me dar ao luxo de demonstrar qualquer fraqueza. Mesmo que a
morte do meu irmão doa dentro de mim, preciso me manter firme e
estável.
Perder a cabeça agora é um prato cheio para os inimigos,
uma brecha que nunca poderia ser reparada.
Levanto da cadeira e pego o terno feito sob medida
pendurado no cabideiro de madeira escura, me forçando a manter o
controle das minhas emoções. Com um movimento firme, enfio os
braços dentro do terno e guardo o celular no bolso interno.
— O que vai fazer, Alejandro?
— Descobrir quem matou o meu irmão e fazê-lo pagar —
digo, simplesmente, fazendo Carmen suspirar e endireitar os
ombros.
Em passos firmes, o coração quebrado e a expressão
inabalável, eu saio do escritório, deixando Carmen para trás e
escondendo a dor insuportável de ter perdido o meu irmão dentro de
mim.
Escondendo a dor atrás da fachada implacável que o mundo
conhece tão bem.
Dominada por uma sensação de desespero e exaustão, eu
empurro a porta do bar do papá. A luz suave das lâmpadas do teto
ilumina o ambiente e a Safira em cima do palco, cantando uma
música romântica com melodia triste demais para o meu gosto.
Atravesso o salão, roubando os olhares da garçonete e da
minha irmã, o que ruboriza as minhas bochechas e esquenta as
minhas orelhas. Por um momento, é como se elas soubessem do
segredo sombrio que eu carrego.
Caminho direto para à cozinha e nem o aroma familiar de
madeira envernizada é capaz de me acalmar.
O inevitável acontece.
Alejandro precisa dar atenção aos seus convidados e se
afasta de mim, no entanto, eu não fico sozinha. Giovanna, Hortênsia
e por incrível que pareça, Mabel, se tornam o meu escudo.
— Achei que você não gostasse de mim — sou sincera com
Mabel, fazendo Hortênsia rir de leve.
— Mabel não gosta de ninguém — Hortênsia explica, fazendo
a irmã rolar os olhos de maneira exagerada.
— Quando eu achei que tinha matado o meu irmão, eu te
odiava. Mas agora que eu sei que é inocente, não tenho nada contra
você.
Sorrio.
— Justo — murmuro.
— Ela não para de olhar pra nós — Mabel comenta e sem
disfarçar, encara Carmen do outro lado da sala, que parece querer
me matar.
— Muita cara de pau aparecer sem ser convidada —
Hortênsia retruca.
— Quem não foi convidada? — Giovanna quer saber, mas
desconversamos e ela logo volta a atenção para o celular.
— Ela me odeia — falo baixinho.
— Claro — Mabel confirma. — Ela está na cola do meu irmão
há anos e perdeu pra você que chegou agora. Eu também te odiaria
por roubar o meu futuro homem.
Pisco devagar e assinto.
— Ah, certo — é o que eu digo.
Carmen some do nosso campo de visão e eu me sinto um
pouco mais aliviada em não ter os olhos invejosos dela em cima de
mim. Decido mudar de assunto e pergunto algo que talvez, ninguém
vá me responder.
— Encontraram o cara que eu desenhei?
— Ainda não, porque ele sempre está um passo à minha
frente. Só que, mais cedo ou mais tarde nós vamos nos encontrar.
Ele voltou pra Colômbia. E a coisa vai ser feia para ele.
Respiro fundo e sinto meu estômago embrulhar.
— Aonde fica o banheiro? — pergunto e é Hortênsia quem
me explica e eu giro nos calcanhares, rumando para a direção que
me orientou.
A mansão é imensa e eu facilmente me perderia aqui dentro.
Parece impossível que apenas uma família more aqui, mas moram.
Entro num corredor bem iluminado com candelabros e fotografias da
família pendidos na parede.
Sorrio ao ver os irmãos Navarro crianças ostentando uma
moldura que lembra ouro.
Talvez seja ouro.
Antes de chegar no fim do corredor, desacelero os passos ao
ouvir a voz de Carmen.
— ... o que o senhor quer que eu faça?
Eu sei que não deveria escutar a conversa dos outros, mas
sou incapaz de interromper ou mover meus pés para o caminho
oposto.
— Como foi que deixou isso acontecer, Carmen? — a voz de
Eduardo, o pai dela, é tão áspera, que arrepia os pelinhos do meu
braço de maneira ruim. — Você é realmente uma imprestável.
— Papai, por favor — Carmen sussurra, quase
choramingando.
— Engula o choro — surpreendo-me ao ouvir a mãe dela
ordenar.
— Anos e anos bancando os seus luxos e a única coisa que
você tinha que conseguir era se casar com Alejandro, mas perdeu
para uma mulher sem classe. Que inútil você é — Eduardo continua
a falar.
— Eu não tenho culpa, pai. Eu tentei de tudo.
— Não tentou — a mãe dela retruca. — Sabe o quanto seria
importante para os nossos negócios termos a família Navarro do
nosso lado? Se soubesse, teria tentado de tudo.
Carmen chora.
— Mãe, eu estou sofrendo, porque eu amo o Alejandro e ele
só tem olhos pra caipira.
— Não seja tola. Amor? — Valeria rebate.
— Nem pra seduzir um homem você serve, Carmen. Que
desperdício — o pai dela solta e as palavras soam como um
palavrão e então, num rompante, o homem surge no corredor, me
assustando. — O que está fazendo aqui, criatura? No campo não te
ensinaram que é feio escutar a conversa dos outros?
Meu coração bombeia alto dentro dos ouvidos, mesmo assim,
não abaixo a cabeça.
— Não acho que o senhor saiba alguma coisa sobre
educação para falar comigo — retruco, mantendo o queixo erguido.
Com um copo de cristal meio cheio de vinho, Carmen surge,
depois, a mãe também, ambas surpresas ao me ver. Junto do
marido, Valéria vai embora, me deixando sozinha com uma versão
frágil e delicada de Carmen que nunca pensei que conheceria.
— Por que você não some da minha vida? — a mulher
pergunta, arisca.
— Eu sinto muito — digo, fazendo-a rir com um tom
sarcástico, quase cruel.
— Agora sente pena de mim? Não seja ridícula, pobretona de
merda — devolve e para meu espanto, acerta meu colo com o vinho
antes de dar as costas para mim.
Incrédula e boquiaberta com a atitude infantil dela, procuro o
banheiro para me limpar. E nem mesmo depois de encontrá-lo,
consigo amenizar o estrago que Carmen fez em mim.
Morrendo de vergonha, eu volto para a sala onde todos os
convidados estão e faço esforço para ignorar os olhares em cima de
mim. Alejandro me encontra e franze o cenho ao ver meu vestido
molhado.
— O que aconteceu com o seu vestido, Perrita?
— Pode me levar embora? — peço.
Mabel se junta a nós, afobada e excitada. Estreita o olhar
para o meu vestido e eu nego com a cabeça ao abanar com a mão,
pedindo em silêncio para deixar o assunto pra lá.
— Encontramos o Leonardo. Que tal esse presente de
aniversário, maninho?
Um brilho devasso e doentio se apodera dos olhos intensos
de Alejandro e o homem esquadrinha o meu rosto.
— Vá, você precisa ir — digo, compreensiva, embora tudo
que eu queira é ficar com ele no momento. — Martín me leva com
Giovanna.
Ele toma o meu rosto entre as duas mãos e me dá um beijo
suculento antes de se fastar e falar com Giovanna, que também é
compreensiva e ergue os olhos curiosos para mim, sorrindo de
maneira genuína.
Observo Alejandro atravessar a porta e me sinto deslocada
no meio da sala da mansão Navarro, rodeada de pessoas ricas que
eu não conheço. Sinto um alívio imediato quando Giovanna corre
para mim e segura minha mão, depois, Martín surge e se aproxima
de nós e informa:
— Senhoritas, vou levá-las para casa.
Mabel é esplêndida.
Se as coisas no nosso mundo fossem mais modernas, ela
seria meu braço direito. Não tenho dúvidas de que ela governaria o
Cartel de Santa Fé com punho de ferro e seria uma excelente
Patrona.[31]
E eu sei que Santiago morreria de raiva se me ouvisse falar
algo assim em voz alta.
Minha irmã liderou bem a missão de encontrar o assassino
de Rafael. Santiago esteve no seu encalço o tempo todo, mas ela
fez a maior parte do trabalho sozinha, porque é um pouco
individualista e está sempre querendo mostrar que é capaz de fazer
o trabalho dos homens.
Para ser honesto, ela quer provar para o nosso abuelo que
substituiria qualquer soldado dentro da organização, já que ele é o
único que não concorda com a sua participação ativa em algumas
atividades.
Para mim, Mabel não precisa provar nada, porque eu sei que
ela é capaz de qualquer coisa.
No galpão frio e com pouca luz, nós nos reunimos ao redor
do homem amarrado em uma cadeira velha. Eu trouxe todos
comigo. Hortênsia, Vicente, Santiago e Mabel. Exigi que todos
viessem para encarar o homem que causou tanta dor à nossa
família.
E agora, diante de nós, Leonardo está à nossa mercê.
Eu o encaro com uma intensidade fria, enquanto minha
mente viaja de volta a um passado recente.
Exatamente para a noite em que recebi a notícia da morte de
Rafael. Exatamente para a maldita dor que eu e minha família
sentimos ao perdê-lo.
Mabel se desfaz dos saltos altos e entrega a um dos
soldados, que mesmo cerrando o maxilar, segura.
— Cadê a minha maleta? — questiona, sem desviar a
atenção de Leonardo, que está amordaçado.
— Lá vai ela se exibir — Santiago reclama.
— Deixe a garota se divertir um pouco — devolvo e pela
visão periférica, noto Vicente endurecer.
É a primeira vez que eu o obrigo a ver uma tortura de perto.
Quando me tornei o Patrón, há dezessete anos, ele tinha apenas
dez anos. Sempre foi um garoto muito inteligente e quando me
pediu para cursar direito em Madrid, eu deixei.
Mas, agora, eu quero que ele conheça quem somos de
verdade.
Que faça parte da nossa família.
Um soldado entra no galpão trazendo a maleta de Mabel. Ele
para em frente dela e abre, exibindo um conjunto variado de facas
de arremesso. Com um sorriso perverso, minha irmã agarra uma,
passando o indicador na lâmina afiada.
— Do jeito que eu gosto — murmura e com os pés descalços,
se afasta da cadeira, e, de repente, gira o corpo, encarando o
Leonardo completamente indefeso. — Vamos brincar, gatinho.
Os olhos de Mabel brilham com determinação, enquanto se
fixam no alvo à sua frente. Com um movimento fluído e controlado,
ela se posiciona, sorrindo vitoriosa, como se já tivesse acertado o
inimigo mesmo antes de lançar a faca.
Contrastando a aparência delicada, ela segura a faça de
arremesso, sabendo exatamente que o objeto responderá ao seu
toque.
Mabel estreita os olhos, calculando o alvo e então, o braço
sobe um pouco e ela lança a faca afiada num gesto rápido e
preciso, acertando o ombro de Leonardo.
Ele geme de dor, o que parece satisfazer minha irmã.
— Quantos furos será que você aguenta? — pergunta,
agarrando outra faca e todos nós observamos o pequeno show de
Mabel.
Com um impacto suave, ela acerta outra faca nele, que se
crava no braço. Ele tenta gritar de dor e se remexe na cadeira,
tentando escapar. Mabel sorri satisfeita e continua atirando facas em
Leonardo, furando seu abdômen e canelas.
— Satisfeita? — Santiago quer saber.
— Ainda não — Mabel grunhe.
Respiro fundo e intercepto minha irmã, antes que pegue outra
faca. Se ela continuar furando o alvo, ele vai sangrar até morrer e
não vou ter tempo de ter uma conversa com ele.
— Já chega — ordeno.
Ela revira os olhos, mas obedece.
Faço um gesto com a mão para que tirem a mordaça da boca
de Leonardo e um dos homens pega a ordem no ar. Quando está
com a boca livre, as primeiras palavras que jorram de seus lábios
são insultos.
— Vocês são todos doidos! — esbraveja.
— Por que matou o meu irmão? — pergunto, cravando meus
olhos nos seus, sentindo uma mistura de raiva complexa e desejo
de vingança bombear o meu coração.
Ele chora e fico surpreso, porque parece arrependido.
— Não vão acreditar em mim.
— Tente — exijo.
— Foi um acidente. Eu amava Rafael. Eu amava — admite,
deixando Santiago tão furioso, que meu irmão retira uma das facas
de arremesso do seu ombro e enfia em um de seus olhos,
arrancando-o, fazendo Hortênsia curvar o corpo e vomitar.
Ela sempre soube o quão cruéis nós somos com os inimigos,
mas diferente de Mabel, ela é a nossa princesa e nunca presenciou
os atos brutais que fazemos na calada da noite.
— Meu irmão não era gay! — Santiago berra.
Leonardo chora, grita de dor e ri ao mesmo tempo.
— Sim, ele era. E me amava também. Vai, arranca meu outro
olho — provoca e Vicente segura Santiago para que não faça
exatamente isso.
— Por que matou meu irmão? — questiono novamente,
girando uma das facas cravadas em seu braço, arrancando gemidos
de dor do infeliz. — Prometi uma vingança de sangue à minha
família. Sabe o que isso significa, não é?
— Não! Por favor. Não! — implora. — Existe gente inocente
na minha família, por favor, não faça isso.
— Eu não me importo. Toda a sua família vai pagar pelo seu
erro. É isso que acontece quando você mexe com um Navarro —
grunho, girando a faca mais uma vez.
Leonardo se esgoela de dor e desespero.
— Foi um acidente! Foi um acidente! Eu amava o Rafael.
— Como aconteceu? Ele poderia ter sacado a arma, mas não
o fez — argumento ao endireitar a postura.
— Eu queria que ele fugisse comigo. Queria que vivêssemos
uma vida diferente, longe de tudo. Longe de vocês. Ele terminou
comigo e eu saquei minha arma, mas nunca tive a intenção de
matá-lo de verdade. Eu juro.
— Cale a boca ou vou cortar a sua língua — Santiago grunhe
e eu faço um gesto com a mão, exigindo que se acalme.
— Sabe, Leonardo? Talvez você amasse mesmo o meu
irmão e estou quase acreditando que não teve a intenção de matá-
lo, no entanto, você o fez. Matou o Rafael e o deixou lá, sozinho, no
meio das plantações com a boca cheia de formiga, como se fosse
um nada. Um pedaço de merda. Por isso, você sofrerá do mesmo
jeito. Sofrerá por todos nós. Sofrerá por toda a minha família.
Endireito o meu corpo, sem desviar a atenção do assassino
do meu irmão.
— Vamos começar.
São as únicas palavras que eu preciso dizer para que um dos
meus capangas saia do galpão e volte meio minuto depois,
empurrando uma mesa de aço inox com seringas, alicates, tesouras
e arames.
Leonardo se remexe na cadeira, tentando se libertar.
— Rafael odiaria vocês se estivesse vivo. Ele me amava.
— Meu irmão não pode me odiar, porque você o matou —
grunho, encarando-o com veemência.
Entre lágrimas, ele berra:
— Foi um acidente!
— Nunca devia ter sacado a sua arma, Leonardo.
É a única coisa que eu digo a ele, em seguida, me aproximo
da mesa de inox e com cuidado, escolho uma seringa de aspecto
peculiar, mas resistente a produtos químicos corrosivos. Ela é longa
e fina, revelando uma composição translúcida, na extremidade, uma
agulha de aço inoxidável.
Repouso o polegar sobre o êmbolo e abro meio sorriso para
Leonardo ao cortar a nossa distância em passos precisos.
— O que é isso?
Sem responder a sua pergunta, enfio a agulha na sua coxa e
injeto o ácido sulfúrico em Leonardo, o fazendo gritar de dor e se
contorcer enquanto baba.
— A dose é pequena, mas vai te queimar de dentro pra fora.
Leonardo chora.
— Não acredito que você era irmão de Rafael, ele era
diferente de vocês.
Irritado com as palavras que saíram da boca dele, Santiago
pega mais uma seringa e perfura o seu braço, arrancando um grito
de dor alto do homem, que faz Hortênsia vomitar novamente.
— Pode me torturar o quanto quiser, nada vai apagar o fato
de que Rafael e eu nos amávamos — Leonardo fala, chorando de
tristeza e dor.
— Não tenho a pretensão de apagar nada, Leonardo, eu
apenas quero fazer você sofrer.
Ele balança a cabeça.
— Foi sem querer.
— Você matou o meu irmão. Matou Pedro Acevedo e foi atrás
da Pérola. Você fez tanta gente sofrer.
— Eu sei.
— E eu sei, mas... — a frase dele se perde no ar.
Ergo uma sobrancelha.
— Mas o quê?
— Me mata logo.
— Não, eu estou apenas começando. Vou queimar cada
centímetro da sua pele, de dentro pra fora. Vou machucar tanto
você, Leonardo, que no fim, não vai ter mais voz para gritar de dor.
Ele engole em seco e deixa os ombros caírem.
— Não queria que meu irmão soubesse que sou gay. Por isso
eu matei o Pedro e o culpei. Falei pro Ramiro que Pedro matou
Rafael e tentou me culpar. Foi uma mentira absurda, mas ele
acreditou.
Cerro os dentes.
— Covarde.
— Ele teria me castrado se soubesse que eu sou gay.
— Eu devia fazer isso — rebato.
— Eu não ia meter Pérola no meio, mas ela ligou para o
Pedro e meu irmão ouviu a mensagem que ela deixou na caixa de
voz do garoto, porque eu sou burro e fiquei com o celular dele.
Leonardo faz uma pausa e eu fico em silêncio, exigindo que
continue.
— Ele... ele só precisou de algumas ligações para saber que
Pérola é uma Navarro e... — Sacode a cabeça de um lado para o
outro, atordoado. — Meu irmão criou uma história dentro da própria
cabeça e eu dei corda para esconder o meu segredo.
— Como assim, Pérola é uma Navarro? — é Mabel quem
questiona, parando ao meu lado.
— Ela é filha do tio Camilo — é o que digo, chocando a todos
na sala, menos Leonardo, porque ele já sabia.
— Ramiro se convenceu de que Pedro matou Rafael e Pérola
também está envolvida. Ele quer culpar alguém por vocês estarem
atrás de mim, como não pode bater de frente com vocês, meu irmão
vai acabar com ela.
Sinto o coração afundar contra o peito.
— O quê? — grunho.
— Ele deve estar indo atrás dela agora. No seu apartamento.
— Aquele puto mentiu, Alejandro — Santiago resmunga.
— Por que eu mentiria? Vocês vão me matar de qualquer
jeito.
Com a fúria martelando nas têmporas, eu pego o arame em
cima da mesa de inox e enrolo no pescoço de Leonardo, que
esbugalha os olhos, assustado. Sem que eu tenha pedido, Santiago
vai para o ouro lado, pegando a ponta para me ajudar.
— Cabo de guerra? Como nos velhos tempo? — Santiago
provoca com um sorriso doentio estampado no rosto.
— Sim.
Com força, eu puxo o arame contra mim, do outro lado,
Santiago faz o mesmo, colocando a potência necessária para
decapitar a cabeça de Leonardo.
Rápido, Mabel se move para trás do assassino de nosso
irmão e agarra suas têmporas com as duas mãos, aplicando uma
pressão insuportável. Com um movimento preciso, ela enfia o
polegar no único olho restante de Leonardo, arrancando-o com
brutalidade.
O ar fica pesado enquanto eu e Santiago nos envolvemos em
um cabo de guerra mortal, brincando com a vida de Leonardo, o
homem que causou tanta dor a nossa família.
Com todas as minhas forças, puxo o arame na minha
direção, consciente de que a cabeça de Leonardo está por um fio.
Um grito de dor ensurdecedor irrompe dos lábios de
Leonardo e ele se contorce em agonia. O arame cortante dói em
minhas mãos, mas não o solto e nem Santiago o faz. Colocamos
mais força e então, a cabeça de Leonardo se separa do pescoço,
sujando o vestido de Mabel de sangue.
Respiro fundo e ofegante, satisfeito com o resultado.
— Você sabe o que fazer — digo a Mabel, que abre um
sorriso amplo.
— Acabarei com todos da família dele — garante, chutando a
cabeça de Leonardo para longe.
Vicente está impassível, nos encarando, enquanto Hortênsia
está chocada e assustada com a brutalidade que acabou de assistir.
— Leve-a para casa, Vicente — dou a ordem e meu irmão
assente, sem reclamar. — Hortênsia está em choque.
— Eu... eu... tô bem — Hortênsia balbucia, atordoada.
— Vá — ordeno de novo e eles saem juntos, Vicente
abraçando-a com carinho.
— Vai atrás de Pérola?
— Sim.
— Acreditou nele? — Mabel quer saber.
— Com certeza. Vou pra casa ver como minhas garotas
estão.
Meu olhar se fixa na saída do galpão.
Pérola e Giovanna estão no apartamento. Deixei Martín com
elas, mas eu preciso voltar pra casa, não posso permitir que elas
fiquem em perigo.
Eu vou protegê-las a todo custo.
Ainda não consigo entender como uma garota tão pequena
sabe tanto sobre computadores e afins. É como se Giovanna tivesse
um manual embutido dentro da sua cabecinha fértil.
Sentadas no chão, de frente para a mesinha de centro feita
em vidro, o silêncio é interrompido apenas pelas palavras tranquilas
de Giovanna enquanto me mostra os segredos do mundo virtual.
— ... e aqui, você consegue verificar as câmeras de
segurança do elevador privativo, do estacionamento e do corredor lá
fora.
Pisco, embasbacada.
— Como sabe tanto sobre essas coisas?
— Martín me ensinou. Ele disse que tenho que ficar atenta
sempre. E se encontrar algo estranho, ligar imediatamente para o
papai. Ou para ele.
Suspiro.
— Uau.
— E tem mais. Se eu apertar esse botão. — Giovanna aponta
para uma tecla do notebook. — As imagens vão direto para o celular
do papai. Enviam um tipo de alerta. Ou algo assim.
Enquanto ela continua a me ensinar, eu fico cada vez mais
impressionada com a sua esperteza. Tão novinha e acho que
nasceu com um dicionário cravado dentro do pequeno cérebro.
Ela abre a boca, bocejando.
— Tá ficando tarde, é melhor ir escovar os dentes e depois,
cama — ordeno, fazendo-a enrugar a testa em protesto.
— Não. Quero esperar o papá chegar.
— Talvez ele demore.
Giovanna boceja novamente, dessa vez, eu faço o mesmo,
contagiada pela garota. Chamo Amparo, que surge na sala sem
reclamar, o que me surpreende, para falar a verdade, e leva a
menina para o andar de cima.
Por causa do jantar de aniversário de Alejandro, ele
dispensou todas as funcionárias e a única na casa é a Amparo,
porque a mulher é quase como um cão de guarda, mas estou
aprendendo a lidar com ela.
Sozinha em frente ao computador, tentando lembrar das
coisas que Giovanna me ensinou, acabo pensando em Carmen e na
sua atitude infantil de jogar vinho no meu vestido.
No fundo, eu devo ser muito idiota, porque nem consigo
sentir raiva dela por ter feito algo assim comigo. Com aqueles pais
que ela tem, até eu teria crescido amargurada e esnobe.
Difícil ser uma pessoa boa em um lar sem amor. E
definitivamente, não acho que Carmen conheça o amor da forma
como eu conheço.
Distraída por causa dos meus pensamentos, nem sei o
momento exato que acontece, mas ao voltar os olhos para a tela
colorida do computador, percebo algo estranho nas câmeras de
segurança.
Do jeito que Giovanna me ensinou, uso os dedos para
arrastar a seta até a câmera pequena e ampliar. Meu coração gela e
a respiração fica presa na garganta ao ver Martín caído,
desacordado, e um homem estranho usando balaclava e com as
mãos sujas de sangue dentro do elevador privativo.
— Já escovei os dentes, mas não quero dormir agora.
Podemos ver um filme? — ouço a voz argumentativa de Giovanna
atrás de mim.
Num rompante, eu me levanto do chão e corro até Giovanna,
que arregala os olhos apreensiva.
— Vá para o quarto e se esconda. Tranque a porta. Rápido.
Rápido — digo e ela fica sem entender, mas eu a giro, forçando a
subir as escadas novamente.
Amparo nos observa, a expressão de confusão estampa em
seu rosto.
— Se escondam. Rápido! — digo entre os dentes, o coração
subindo até a garganta. — Amparo proteja a Giovanna.
A mulher parece entender o meu desespero e desce as
escadas correndo, segura os braços de Giovanna e a arrasta para o
andar de cima. Corro para a cozinha, procurando qualquer objeto
afiado dentro das gavetas do armário para nos defender.
Encontro uma faca de cutelo e a minha mão treme ao agarrar
o cabo, mas ainda assim, eu caminho para a sala, me escondendo
detrás da coluna grande de mármore que separa os cômodos.
O silêncio é quase ensurdecedor e quando ouço a porta do
apartamento se abrir, um nó aperta no meio do meu estômago.
— Alguém em casa? — a voz do homem soa pelo cômodo e
eu fico quieta, inclino a cabeça e observo as suas costas. — Eu sei
que tem alguém em casa. Caso contrário, o grandão lá embaixo não
teria lutado tanto.
Quando ele ameaça subir as escadas, meu coração acelera
descompassado com a ideia de ele chegar perto de Giovanna,
então, eu dou um passo para fora do meu esconderijo, com a faca
em riste.
— Quem você?
Lentamente, ele gira nos calcanhares e, então, retira a
balaclava, jogando-a no chão antes de olhar diretamente nos meus
olhos, um sorriso frio e calculista desenha os seus lábios.
— Oi, Pérola Sanchez — ele diz, dando um passo para
frente. Um brilho perverso dançando pelos seus olhos. — Ou devo
te chamar de Pérola Navarro?
— O que você quer?
— Não é óbvio?
Meu coração parece querer escapar do meu peito e minhas
mãos tremem tanto, que tenho medo de dar mais um passo para
frente e derrubar a faca. Mas, não posso recuar, tenho que me
manter firme e proteger Giovanna e Amparo.
Preciso nos proteger.
— O que você quer?
— Eu quero você.
Ele se aproxima com passos lentos e calculados, seu olhar
gélido perfurando o meu. A adrenalina pulsa nas minhas veias ao
mesmo tempo em que me preparo para atacá-lo com todas as
minhas forças.
Infelizmente, antes que possa fazer algum estrago nele, o
homem segura o meu pulso com tanta força, que eu gemo de dor e
o cutelo cai no chão, o barulho ecoando por todo o apartamento.
— Não seja idiota, Pérola. Nem se fizesse esforço
conseguiria me ferir. É apenas uma presa indefesa.
— Vai se ferrar — grunho e cuspo no seu rosto, deixando-o
furioso. Ele me dá um tapa tão forte, que eu caio de joelhos no
chão. — Não sou como os Navarro. Mulher pra mim só serve pra
foder e dar filhos. Não passam de cadelas.
Preparo-me para xingá-lo, mas o cretino puxa os meus
cabelos e me força a ficar em pé.
— Aquele maldito desenho que você fez sentenciou o meu
irmão a morte. Agora estamos fodidos por sua culpa — fala com
tanto ódio que demoro um pouco para entender a situação.
Ele é o irmão do Leonardo.
— Agora, essa família maldita está atrás dele e tudo é culpa
sua. Só que adivinha, gracinha? Nós estamos atrás de você —
provoca, puxando meu cabelo para trás com força. — Olho por olho
e dente por dente. Vou te fazer sofrer por ter colocado meu irmão no
meio disso tudo.
— O quê? Eu não fiz nada.
— Não se faça de burra! — grita. — Eu sei que tudo isso não
passa de um plano seu.
— Do que você tá falando?
— Tá me fazendo perder a paciência.
— Foi Leonardo quem matou Rafael.
Ele me gira para buscar os meus olhos e a mão livre coberta
de sangue agarra o meu queixo, espremendo com força.
— Não. Quem mantou Rafael foi o seu amigo, o Pedro. Meu
irmão me contou tudo. Eu não sei qual é o seu plano de merda,
Pérola, mas vai pagar por ter nos colocado no caminho dos Navarro.
Enrugo a testa, incrédula.
Que história Leonardo contou para o irmão?
— Pedro não matou ninguém.
— Ah, não? E quem foi? — retruca, rindo histérico.
— Leonardo — repito.
— Para de falar merda, vagabunda. Por que meu irmão
mataria Rafael? — rebate, mas algo me diz que nem mesmo ele
está acreditando nas próprias palavras.
— Você não sabe o que aconteceu — disparo, minha voz
firme, mas ainda assim, meio trêmula. A tensão no ambiente é
quase palpável. — Ele não te contou a verdade — decido arriscar.
— Cala a boca! — ele grita e solta o meu rosto, apenas para
me acertar uma bofetada que me faz sentir gosto de ferrugem na
boca.
— Seu irmão é gay — solto de uma vez, sem me importar o
quão louco ele possa ficar com a nova informação. — Ele amava
Rafael e queria fugir com ele. Queria fugir de você. Queria fugir da
vida que vocês levam.
Ele fecha uma das mãos em punho e respira fundo,
expandindo as narinas.
— Pare de mentir ou eu vou cortar você em pedacinhos.
— Por que ele estaria na fazenda no dia da morte do Rafael?
Não seja burro. Você não quer enxergar a verdade. No fundo sabe
que o seu irmão é gay.
O cretino me arrasta pelo cabelo até o meio da sala e eu
tento me soltar dele, infelizmente, é em vão.
— Não fale merda do meu irmão, sua puta!
— É a verdade. Ele mentiu pra você.
— Meu irmão não é bicha — grunhe entre os dentes, e há
tanta raiva nele, que me faz estremecer.
Ele monta em cima de mim, colocando todo o seu peso sobre
o meu corpo e envolve as mãos ao redor do meu pescoço, enquanto
um sorriso cínico desenha o seu rosto horrendo, arrepiando a minha
espinha.
Conforme ele vai apertando, fechando os dedos em torno da
minha garganta, meus músculos tensionam e o peito dói. Minha
visão fica turva e os sons ao redor ficam cada vez mais abafados ao
mesmo tempo em que meu coração parece bater numa intensidade
avassaladora.
Esperneio e tento me soltar das suas mãos, uma tentativa
inútil e inalcançável de escapar dele.
As forças vão se dissipando do meu corpo e a dor em meu
peito vai ficando cada vez mais lancinante, impossível de suportar.
Estou quase cedendo e desistindo, pedindo desculpas em
silêncio ao papai e a Safira, mas de certa forma aliviada por
Giovanna estar segura, quando ouço tiro sobre tiro e as mãos no
meu pescoço afrouxam no mesmo instante em que um líquido
quente toca o meu rosto.
Ele cai para o lado e eu começo a tossir, me esforçando para
recuperar o fôlego. Me arrasto para longe dele e demoro alguns
segundos para sentir minha visão voltar ao normal.
Mãos firmes e familiares tocam o meu rosto, buscando os
meus olhos e ao erguer os cílios, encontro Alejandro.
— Perrita...
— Alejandro — minha voz sai fraca.
Ele pega um lenço branco de dentro do terno e passa no meu
rosto, e só então noto que o líquido quente que caiu em mim é
sangue. Olho por cima do ombro e sinto ânsia de vômito ao ver a
cabeça do homem deformada por causa de vários tiros.
— Não olhe — ordena.
— Giovanna... — balbucio.
— O que aconteceu?
— Ela está escondida no quarto. Ela e Amparo — digo e os
olhos de Alejandro brilham com uma comoção que não consigo
compreender. — Preciso ir lá.
Alejandro me ajuda a ficar de pé e ao olhar o redor, vejo que
há homens espalhados por todo o apartamento.
— Martín? Ele está bem?
— Ele vai ficar — Alejandro fala, me guiando para a
escadaria.
— Pérola! — Giovanna grita ao me ver e vem correndo para
mim, envolvendo os braços na minha cintura, enterrando o rosto na
minha barriga e caindo no choro. — Pensei que tivesse perdido
você.
— Eu estou bem, querida.
Faço carinho em seus cabelos macios, em seguida, seguro
seu rosto entre as mãos e limpo as suas lágrimas.
Giovanna vai de mim para Alejandro, que a pega no colo e
esconde o seu rosto propositalmente para que não veja o homem
morto na sala de estar. Eu e ele trocamos um olhar em silêncio e eu
assinto antes de subirmos as escadas.
— Vai ficar tudo bem, querida. Papai chegou e eu vou
proteger vocês duas — ele fala, assumindo o controle da situação,
como sempre faz.
Ouvir Alejandro Navarro dizer que vai nos proteger faz o meu
coração aquecer. Giovanna sempre será a sua prioridade e não há
nada de errado nisso. Para ser honesta, hoje, ela foi a minha
também.
Mas eu sinto que agora, eu sou prioridade de Alejandro
também.
Ele lança um olhar cheio de preocupação para mim e uma de
suas mãos encosta na base da minha coluna de maneira protetora e
possessiva, me guiando sobre os degraus até o corredor.
Nunca imaginei que meu destino se entrelaçaria de uma
maneira tão avassaladora com um homem, ainda mais um que é o
chefe de uma organização criminosa. Mas, eu sinto que apesar do
perigo, nós dois estamos mais unidos do que nunca.
Dias depois...
Nenhuma vingança de sangue trará meu irmão de volta, mas
a sensação de ter feito algo para vingá-lo é compensadora pra
caralho e esse sentimento ficará dentro de nós até sermos
enterrados a sete palmos do chão.
Com as coisas resolvidas em relação a morte de Rafael,
Pérola está pensando em voltar para Verdellano. Não gosto da
ideia, ainda mais porque o meu tio Camilo decidiu ficar uns tempos
na cidadezinha e lógico, o pai de Pérola me odeia.
Muito mais fácil mantê-la aqui, longe de todas as pessoas
que podem interferir na nossa relação, mas eu sei que ela está com
saudades de casa e por mais que meus instintos estejam em alerta,
gritando para dizer não a Pérola, sou incapaz de negar o seu
pedido.
Por outro lado, Giovanna, parece preocupada com a ida dela
e estou contando com a minha pequena princesa para fazer a
Perrita mudar de ideia.
— E se você for e não voltar mais? — Giovanna levanta o
questionamento durante o jantar. — Acho melhor você ficar aqui
com a gente.
Assinto, concordando com ela.
Pérola raspa a garganta e arqueia uma sobrancelha
desafiadora para mim.
— Eu vou voltar. Eu prometo.
— Mas e se não quiser voltar? — minha filha insiste e eu
observo Pérola, esperando uma resposta também.
— Eu quero voltar... pra vocês.
Giovanna prensa os lábios.
— Eu posso ir com você? Assim é mais garantido que você
volte pra cá — ela sugere e eu curvo os lábios, orgulhoso da sua
esperteza.
— Não. Você tem aula.
Giovanna hesita, preocupada com a escola e as suas
responsabilidades, mas suas preocupações duram apenas alguns
segundos.
— Sou uma das melhores alunas da classe. E a gente volta
logo, não é?
— Sim, mas... — Pérola perde as palavras e fica quieta,
refletindo.
— O que você acha, papá? Pode vir com a gente também?
— Giovanna pergunta, animada demais.
Não estou a fim de ir para a fazenda, mas, por outro lado,
ficarei perto da Perrita e da minha filha, e, também, será mais fácil
manter o tio Camilo longe do que é meu. Então, eu dou a minha
palavra final:
— Acho uma excelente ideia.
Os olhos de Giovanna brilham de alegria, e ela arrasta a
cadeira para longe da mesa e desce, em seguida, corre para fora da
sala de jantar, avisando que vai fazer as malas para a viagem.
— Alejandro... — ela murmura, suspirando. — Ela não pode
perder aula assim — emenda, realmente preocupada com a
educação acadêmica da minha filha.
— Giovanna vai ficar bem.
Ela anui, mordendo os lábios.
— Sabe que vai ser difícil pra eu voltar, não é? Meu pai e a
Safira vão fazer uma confusão.
— Ninguém vai me impedir de ver você, Perrita — digo, o tom
mais áspero do que eu esperava.
— Eu sei, mas eu preciso conversar com o meu pai sobre a
faculdade e tudo mais. Não acho que ele vai aceitar que eu venha
morar aqui com você assim, sem mais e nem menos. Ele é um
velho à moda antiga.
Agarro a taça de vinho e levo o cristal até os lábios, tomando
um gole generoso.
— Então casa comigo.
Lanço um olhar inquisitivo para ela, que engasga com a
própria saliva.
— Para de brincadeira.
— Estou com cara de quem está brincando, Perrita?
— Não acha que é cedo demais? — murmura, as bochechas
corando e os olhos brilhando para mim. — Não vai se arrepender?
Abro um sorriso para Pérola.
— Vem cá — ordeno.
Ela arreda a cadeira para trás e ajeita o vestido, que abraça
de maneira deliciosa as curvas salientes do seu corpo. Quando
chega perto o suficiente, eu a puxo para sentar no meu colo,
encaixando-a de maneira perfeita em mim.
— Perrita, eu tenho quarenta anos e uma filha de sete. Quero
aproveitar o tempo que me resta comendo a sua boceta e fazendo
você gozar no meu pau. Não tenho tempo pra desperdiçar. Você é
minha e será minha esposa, agora ou mais tarde. Por que eu me
arrependeria disso?
Meu olhar contra o dela é firme, cheio de determinação.
Há um momento de silêncio e então, ela sorri, um sorriso
radiante e cheio de amor.
— Sim — sussurra ao envolver as mãos no meu rosto e
encostar os lábios nos meus, selando o nosso compromisso.
— Vou comprar um anel.
Ela ri de um jeito meigo, balançando a cabeça de um lado
para o outro.
— Já?
— Eu devia estar com um anel agora, mas fiz o pedido
desprevenido — resmungo e ela estreita os olhos para mim,
desconfiada.
— Por que me pediu em casamento? Pra ter a certeza de
que eu vou voltar? Pra matar meu pai do coração? — zomba, mas
algo me diz que ela quer ouvir algo a mais e eu sei o que é.
Por que eu a pedi em casamento?
Simples.
Porque eu a amo.
— O que acha? — murmuro, esquadrinhando o seu rosto. —
Você lembra do que disse pra mim?
— Quando?
— Quando estava meio dormindo.
As bochechas dela ruborizam, mas assente.
— Achei que estivesse sonhando.
— Diz de novo — ordeno, fazendo-a arfar. — Quero ouvir
você falar olhando nos meus olhos.
Pérola umedece os lábios e solta um leve suspiro antes de
fazer o que eu mando.
— Alejandro... eu te amo.
Entrelaço a mão nos seus cabelos da nuca e trago o seu
rosto para mais perto de mim, enfio a língua dentro da sua boca e a
prendo num beijo, roubando um gemido manhoso da minha garota.
— Eu também te amo, Perrita. Eu também te amo —
sussurro contra os seus lábios, com a sensação de que sou incapaz
de viver sem ela.
O carro de Alejandro desliza suavemente pelas ruas
familiares de Verdellano. O ar fresco da região rural entra pelas
janelas abertas, fazendo-me fechar os olhos por um momento e
aproveitar a sensação.
É tão bom estar de volta.
O entardecer pinta o céu com tons de laranja e rosa, e a
paisagem ao redor é uma mistura de campos verdes e plantações
de café.
À medida que nos aproximamos do centro da cidadezinha,
meu coração acelera. Estou morrendo de saudade da minha família,
mas sei que papai vai pirar quando ver o anel extravagante de
diamante que Alejandro colocou no meu dedo como sinal de que
pertenço a ele.
Alejandro dirige com tranquilidade, mas uma vez ou outra o
seu olhar se fixa em mim, como se estivesse estudando as minhas
reações.
Chegamos de Bogotá e fomos direto para à Fazenda
Navarro, para deixar Giovanna descansar. Para a minha surpresa,
Pilar veio conosco e acho que está começando a gostar de mim ou
eu estou vendo coisas.
De qualquer forma, ela foi gentil.
Quando chegamos na mansão, o avô de Alejandro também
estava lá, o que não me surpreende. Embora ele não seja muito
sociável, ele sempre gostou da calmaria da fazenda.
Bom, é o que as pessoas falam na cidade.
O tio de Alejandro, o Camilo, também estava lá, junto da
esposa, mas o homem se manteve há metros de distância de mim,
embora estivesse visivelmente curioso sobre o anel brilhante que
descansa em meu dedo.
Conforme entramos no centro, sorrio ao perceber que tudo
está igual, do mesmo jeitinho de quando eu fui para Bogotá. A ruas
familiares, as lojas locais e os rostos sorridentes dos moradores,
tudo exatamente igual.
Alejandro estaciona o carro na frente do pequeno bar do meu
pai. As portas estão abertas, mas ainda não há movimento no
estabelecimento.
— Obrigada por me trazer, Alejandro.
Seu olhar profundo e caloroso encontra o meu, e ele inclina
um pouco o corpo para beijar os meus lábios.
— Volta pra mim, Perrita.
Engulo em seco e sem saber o motivo, meu coração aperta.
— Claro que vou voltar.
Desafivelo o cinto de segurança e desço do carro, sentindo o
solo familiar sob os meus pés. Os olhares curiosos dos vizinhos se
voltam para mim, mas ignoro e caminho até a portão velho da minha
casa.
Ao entrar, mal consigo conter o sorriso no meu rosto.
— Papá? Safira? — chamo.
Papai é o primeiro a surgir na sala e o choque de me ver de
volta deixa o meu velho sem palavras. Ele vem para perto e estende
os braços em torno de mim, me apertando com tanta força, que me
faz chorar.
— Perlita... mija.
Aperto meu pai de volta.
— Senti tanta saudade, papá.
— Você voltou — sussurra contra os meus cabelos, enquanto
alterna entre me apertar contra o próprio corpo e me beijar o rosto.
— Você está tão linda.
— Obrigada.
Ele se afasta um pouco, apenas para me olhar dos pés à
cabeça.
— E essas não são as mesmas roupas que você levou...
porque parecem caras — resmunga e eu reviro os olhos,
suspirando, mas logo rio e volto abraçá-lo bem forte, chorando em
silêncio.
Safira surge no final da escada também, os olhos cintilando
por causa das lágrimas. Solto-me do papai e corro para a minha
irmã, abraçando-a também. Sem dizer nenhuma palavra, ela chora
ao me segurar em seus braços.
— Senti tanta saudade de casa — sussurro e ela me aperta
ainda mais.
Ao me largar, ela me analisa dos pés à cabeça, franzindo o
cenho.
— Você está linda, Pérola.
— Obrigada — murmuro com um sorriso e antes que possa
contar a novidade, o olhar do meu pai é atraído para a joia no meu
dedo.
— O que isso significa, Pérola? — ele rosna.
— Eu posso explicar — falo a meu favor e Safira engole em
seco, chorando em silêncio.
Furioso, papai ruma para à cozinha.
— Ele te pediu em casamento... — Safira conclui e eu sinto
como se algo estivesse se partindo dentro dela.
— É tão ruim assim? — devolvo, na defensiva.
Ela abre um sorriso melancólico e também vai para à
cozinha.
A última coisa que eu quero é brigar com eles, mas,
infelizmente, não existe uma maneira de resolver essa situação sem
uma pequena discussão. E por mais que eu queira fugir, não tem
como.
Preciso enfrentar papai e Safira.
Na cozinha, meu pai está soltando fogo pelas ventas, falando
tantos palavrões, que fico me perguntando se é uma boa hora de
tentar resolver a nossa situação. Talvez seja melhor esperar o
sangue dele esfriar, porque meu velho parece prestes a explodir a
qualquer momento.
— Você se deitou com ele? — pergunta, grunhido.
— Papá, por favor, se acalme — Safira pede.
— Me responde, Pérola! — ele exige com um grito, me
magoando.
— Qual é o problema? Eu amo Alejandro — retruco, os olhos
ardendo e me sentindo tão idiota.
— ¡Dios mío! ¡Dios mío! ¡Dios mío! — papá fala sem parar.
Respiro fundo e tento controlar as lágrimas.
— Eu sei que o senhor não gosta dele, mas papá, eu...
— O problema é muito maior do que eu simplesmente não
gostar do Alejandro — resmunga, trocando um olhar pesaroso com
Safira.
— Não, papá. Prometemos que não contaríamos — ela pede.
— O que aconteceu? Qual é o problema? — quero saber.
— Não pode se casar com Alejandro Navarro — deixa
explícito em palavras a sua vontade, partindo o meu coração.
— Pai... — murmuro.
Ele respira fundo, como se estivesse reunindo coragem para
dizer alguma coisa.
— Não pode, Pérola — meu pai insiste e Safira começa a
chorar, sacudindo a cabeça de um lado para o outro.
Fico sem entender, mas não consigo abolir de dentro de mim
a vontade de chorar.
— Pérola...
— Não, pai! — Safira berra, enfiando as mãos nos cabelos e
começa a ficar tão desesperada, que eu fico sem reação. — Não
diga nada! A gente prometeu que não ia falar nada. Deixa tudo
como tá, por favor.
Papai me olha e engole em seco, parece estar se preparando
para dizer palavras que mudarão a minha vida para sempre.
—Tem algo que você não sabe — fala, aumentando o choro
de Safira, que é desconsolado. — Camilo Navarro, o tio de
Alejandro, aquela escória é o seu pai biológico.
Fico paralisada.
As palavras do meu pai ecoam em meus ouvidos, deixando a
minha boca com um gosto amargo. Sinto que estou dentro de um
pesadelo que não posso fugir, é como se o ar ao meu redor tivesse
se fechado sobre mim.
— Camilo Navarro é o seu pai, Pérola — papai fala outra vez
e as palavras parecem soar em câmera lenta, como um sussurro
sinistro.
O choque é tão grande, que eu perco o equilíbrio e quase
caio no chão, mas me seguro na parede e consigo me manter em
pé.
Meus olhos buscam o do papai, mas tudo está embaçado. As
lágrimas reprimidas deslizam pelo meu rosto e fazem caminho até a
minha boca. Elas têm gosto de fel.
— Não... — consigo finalmente dizer.
— Alejandro Navarro é o seu primo.
Balanço a cabeça de um lado para o outro, negando e noto
que Safira ainda está chorando. Chorando muito.
— Tem mais uma coisa — papá continua e fico atordoada,
com medo.
— Papá, por favor. Tá bom, já chega — Safira implora entre
as lágrimas.
— Chega de mentiras! — ele esbraveja. — Pérola merece
saber o quão podre a Família Navarro é.
Prenso os lábios, incapaz de verbalizar alguma coisa.
— Safira tinha quatorze anos quando foi abusada por Camilo
Navarro. Mas, é claro que ele não teve culpa, estava bêbado e nem
lembrava do que fez a minha ingênua filha — cospe as palavras de
maneira sarcástica, ácida. — Na época, o pai de Alejandro encobriu
tudo e ficou por isso mesmo. Meses despois, descobrimos que
Safira estava grávida de você.
Meu mundo inteiro parece ter desmoronado em um instante.
O ar se torna pesado e sufocante ao meu redor, meu corpo
parece pesar uma tonelada, enquanto meu coração se debate
contra o meu peito com a descoberta. Caio de bunda no chão,
completamente atordoada.
As palavras ecoam dentro da minha cabeça como um
redemoinho e me deixa surda. Camilo, Alejandro, Safira... palavras
que agora têm um novo significado na minha vida.
A verdade me atinge como um soco no estômago.
Minha vida...
Minha família...
Tudo não passou de uma mentira.
Sinto como se a verdade fosse capaz de me engolir inteira.
O que eu faço agora? O que eu faço? O que eu faço? O que
eu faço?
Ergo os cílios para encarar Safira, que chora, como se
sentisse culpada por tudo e papai, que exibe uma expressão furiosa,
capaz de destruir qualquer um agora.
— O senhor não é o meu pai? — balbucio, o coração partido
em tantos pedaços, que é impossível de colar. — Você é minha
mãe?
Safira choraminga e me dói pensar em tudo que ela passou
no passado. Ela foi violentada por um monstro. Um monstro que é
meu pai biológico. Ainda foi obrigada a conviver comigo e se
lembrar todos os dias do que aconteceu, incapaz de sarar a ferida
que aquele cretino causou.
Será que é por isso que ela não me ama?
— Eu sinto muito, Pérola — ela sussurra.
Com as costas das mãos, limpo as lágrimas do meu rosto e
me coloco de pé. Minha vida inteira foi uma grande mentira, então,
não haverá problema se eu condenar o meu destino a um final cruel
agora.
— Me dê a arma que você tem guardada — falo para Safira,
que nega com a cabeça e pergunta:
— O que tá pensando em fazer?
— O certo — retruco, saindo da cozinha e procurando a
chave do carro do papai, e a encontro em cima da mesinha de
centro velha na sala.
— Pérola, volte aqui — papá ordena e ao olhar por cima do
ombro, vejo que já está no meu encalço, junto da Safira. — Não vá
fazer nenhuma besteira.
Papá...
Eu ainda posso chamá-lo assim?
Ele é meu avô.
— Cadê a arma, Safira? — pergunto ao vê-la atrás do nosso
pai, nossos olhos se encontrando. — É por isso que você a guarda,
não é? Para o caso de um dia aquele monstro voltar?
— Pérola... — ela murmura, prensando os lábios e chorando.
— Tudo bem, eu me viro.
Estou prestes a sair e papai me intercepta ao segurar o meu
braço, me impedindo de continuar, mas rápido, me desvencilho da
sua mão e saio de casa, correndo na direção do seu carro.
Nem que eu me mate, eu vou matar Camilo Navarro.
Cada curva que dou na estrada que me leva à Fazenda
Navarro é como um ruído doloroso na minha mente. No peito, o
coração pesa tanto, quase como se fosse feito de chumbo.
Aperto o volante do carro com tanta força, que os nós dos
meus dedos ficam brancos e sinto o leve desconforto no pulso, mas
nada é capaz de me parar.
Estaciono o carro de qualquer jeito dentro da propriedade dos
Navarro e ao descer do veículo, Martín vem ao meu encontro, me
cumprimentando com um olhar. Ele faz uma pergunta, mas mal
consigo registrá-la, apenas passo por ele e rumo as escadas da
varanda da mansão.
Com passos firmes e a raiva martelando nas minhas
têmporas, eu entro no campo minado de segredos e verdades
dolorosas que a mansão esconde. Que essa família esconde.
Assim que chego na sala, vejo que estão todos lá, sentados
no sofá, conversando como se não tivessem nenhuma culpa sobre
nada. Pilar, Hernando, o respeitável avô de todos, Alejandro, Camilo
Navarro e a sua esposa.
Meus olhos encontram os de Alejandro, que ficam confusos
ao me ver. Ele se levanta, uma mistura de curiosidade e expectativa,
mas não consigo focar nele, apenas encaro Camilo Navarro, o
monstro que abusou da Safira.
Lágrimas ardentes e salgadas começam a escorrer pelo meu
rosto e meu peito parece um vulcão em erupção, queimando em
uma mistura de raiva e ódio acumulados.
— Perrita... — Alejandro me chama e eu sou incapaz de
responder a ele.
Conforme me aproximo de Camilo, a pressão dentro da
minha cabeça se torna insuportável.
— Você... — grunho.
— Alejandro — ouço a voz de Pilar ao fundo chamando o
filho.
— O que está acontecendo? — Camilo questiona.
— Filho da puta desgraçado — rosno as palavras presas na
garganta. — Como pôde fazer aquilo? Como...
— Do que está falando, garota? — ele rebate, alternando a
atenção de mim para os olhos atrás da minha cabeça.
— Me desculpe — ironizo, um sorriso cínico brotando nos
meus lábios. — Eu esqueci que deve ser fácil pra você esquecer
das merdas que faz. Mas quer que eu te lembre, Camilo Navarro?
— Pérola, por favor — é Pilar quem fala ao se aproximar de
mim, tenta pegar o meu braço, mas Alejandro ordena que se afaste
de mim.
— Há vinte anos, você estuprou Safira Sanchez. Estava
bêbado demais, não é? Bêbado demais para saber que era errado
abusar de uma garota de quatorze anos! — grito entre as lágrimas.
— Não sei do que está falando — ele devolve, claramente
mentindo, incapaz de assumir os seus erros.
Monstro!
— Pare! Seja homem e admita os seus erros!
— Olha o jeito que fala comigo, garota — rebate, endireitando
os ombros. O cretino nem teve a descendência de se levantar do
sofá para me encarar.
Engulo o caroço no meio da garganta e encaminho minha
atenção até o seu Hernando, que me observa em silêncio. Não sei
ler de que lado ele está, mas não parece feliz com a situação.
Minha mente viaja até o dia em que nos encontramos no
escritório e a forma como ele me olhou, como se me conhecesse.
— O senhor sabia, não é? Que Safira estava grávida de
mim?
— Sim — admite.
— Aquela menina ficou grávida? — Camilo questiona, ficando
de pé pela primeira vez.
— O que você acha? — rebato, cravando os olhos nele.
— Você é minha filha?
Minha nuca arrepia ao vê-lo tentar se aproximar de mim, mas
quando dou um passo para trás, o homem paralisa. Odeio ver o
sorriso de felicidade que brota no seu rosto horrendo.
Não é possível que ele esteja feliz.
— Eu tenho uma filha, uma herdeira — repete, como se fosse
a melhor coisa do mundo. — Você é minha filha.
— Pare de fingir que isso é uma coisa boa. Não sou sua filha.
Nunca serei — digo entre os dentes, a voz carregada de
ressentimento e uma profunda dor que parece dilacerar o meu peito.
— Por que esconderam isso de mim? — Camilo interpela,
olhando para todos na sala, como se estivesse no seu total direito.
— Por quê?
— Você está mesmo perguntando isso, Camilo? — é a
mulher dele quem fala, pela primeira vez, nitidamente magoada.
— Perrita... — Alejandro murmura ao parar do meu lado,
tocando o meu braço com carinho.
— Você sabia?
Lanço um olhar para ele e há tanta confusão nos seus olhos
avelãs, que meu coração dói.
— Vamos conversar a sós — pede. Pela primeira vez,
Alejandro pede algo, no entanto, não quero conversar com ele no
momento.
— Me dê a sua arma, Alejandro. Eu sei que tem uma. Me dê
a sua arma, porque eu vou acabar com esse desgraçado.
Cruzo meu olhar com o de Camilo, que ri com desdém, o que
me faz prensar os lábios com força.
— Não seja ridícula, garota. Sabe quem eu sou? Sabe o que
represento para esta família? Para o cartel? Querida, essa é a
minha família, acha mesmo que um Navarro ficará contra mim?
Suas palavras só fazem minha raiva crescer.
Sinto uma chama dentro de mim, me consumindo,
queimando cada parte do meu ser como se eu fosse feita de
pólvora. Fixo os olhos em Camilo... o monstro de Safira.
Agora, o meu também.
Penso nela, nos momentos cruéis que passou por causa
desse homem.
Meus olhos ardem, não só de frustração e tristeza, mas de
fúria também.
Alejandro desliza uma das mãos sobre os meus dedos,
atraindo minha atenção. Sinto-o prender uma mecha de cabelo
detrás da minha orelha ao colocar uma arma compacta na minha
mão.
Sinto o peso do objeto contra a palma, a frieza do metal
parece penetrar a minha pele. Ajusto os dedos ao formato da arma
compacta, a sensação é estranha.
— Que merda, Alejandro — Camilo protesta.
— Faça o que tem que fazer, Perrita.
Respiro fundo, cada sopro é uma luta para controlar a
explosão que está prestes a acontecer dentro de mim, ameaçando
me dominar.
Encaro Camilo com terminação e levanto a arma, apontando
para ele. Não faço ideia do que fazer e me surpreendo ao sentir as
mãos de Alejandro me guiando ao destravar a arma.
Meu coração afunda contra o peito.
— Alejandro, por favor — é a esposa de Camilo quem fala,
mas ele a ignora, mantendo a atenção fixa em mim.
— Alejandro, não pode fazer isso! — Camilo esbraveja,
finalmente instigando a atenção do sobrinho. — Eu sou da família.
Eu sou o seu tio.
— Eu sou o Patrón, Camilo. Minha palavra é lei e ninguém
ousará ir contra as minhas vontades.
Camilo encaminha atenção para o seu Hernando.
— Papá, por favor.
— Não posso ir contra o Patrón. Eu fiz um juramento de
sangue, mi hijo — é o que diz, acelerando o meu coração.
— Que merda! Não é possível que estão todos de acordo
com isso? — ele se esgoela, levando as mãos até os cabelos ralos.
— Alejandro, pense. Não vale a pena, isso é... ridículo.
Afasto-me de Alejandro e me aproximo de Camilo, a arma em
riste o dedo no gatilho. Cada passo na direção dele é como um soco
na boca do estômago. O cretino começa a tagarelar, mas não
consigo assimilar suas palavras.
— Você fez tanto mal a ela — minha voz trêmula escoa na
sala, enquanto encaro os olhos de Camilo cheios de indignação. —
Como você pôde? Como você pôde machucá-la daquela maneira?
Não há nenhum vestígio de remorso em sua expressão, o
que me deixa ainda mais furiosa.
Chorando, eu aperto o gatilho. O estampido preenche os
meus ouvidos e vibra no meu corpo, recuo um pouco para trás por
causa do impacto da arma. Camilo grita de dor e eu abaixo as
mãos, me sentindo fracassada por não conseguir matá-lo.
Sou tão fraca por não conseguir tirar a vida desse
desgraçado.
— Minha perna! — Camilo grita com as mãos no buraco que
eu fiz.
— Peguem toalhas limpas, por favor — a esposa dele pede
aos berros e antes de sair da sala, Pilar pede permissão a Alejandro
para ajudar Camilo.
— Me tira daqui, por favor — imploro entre as lágrimas.
Com carinho, Alejandro pega a arma compacta de mim e com
as mãos na base da minha coluna, me guia para fora da sala.
Inconsolável, eu me deixo ser guiada por ele, pensando em
toda dor que Camilo causou em Safira e como deve ter sido difícil
para ela conviver comigo, sempre lembrando da ferida.
Ao sairmos da mansão, Alejandro pede a chave do carro do
meu pai e nem presto atenção no que faz, mas me permito ser
conduzida até o seu carro. Me acomodo no banco do carona e é ele
mesmo quem me prende com o cinto de segurança, enquanto eu
choro.
O caminho até a minha casa é carregado de um silêncio
pesado, mas dentro de mim, tudo parece barulhento demais. Está
tudo tão bagunçado que tenho vontade gritar, de sumir.
As lágrimas continuam escorrendo pelo meu rosto, fazendo
uma trilha até meus lábios. São quentes e amargas, uma
combinação horrível.
Quando finalmente chegamos em frente à minha casa, estou
tão magoada que nem consigo olhar nos olhos de Alejandro.
— Você mentiu para mim — digo com a voz tremida,
embargada por causa do choro. — Por que não me contou?
— Porque eu não queria te perder.
— Não devia ter escondido isso de mim.
Alejandro solta uma baforada de ar e bate no volante do
carro.
— Você teria saído correndo se eu tivesse te contado a
verdade, Pérola — explica e eu apenas enterro o meu rosto entre as
mãos, sufocando meus soluços. — Eu sou egoísta pra caralho e
não queria perder você.
— Ele abusou da Safira. Ela era apenas uma criança.
— Eu não sabia. No fundo, eu desconfiava, Pérola... eu...
merda!
Arfo entre meus fungos de choro.
— Nem consigo olhar pra você agora.
— Não faz isso, Perrita.
Ele estica a mão e envolve os dedos no meu queixo, me
obrigando a olhá-lo. Pisco com força, incapaz de encarar Alejandro.
— Olhe pra mim.
Deixo meus ombros caírem e suspirando, eu bato os cílios
devagar, encarando o homem que eu amo, mas que agora, está me
deixando tão confusa, magoada.
— Me desculpa, Perrita.
Choro mais ainda, porque algo dentro de mim diz que é a
primeira vez que ele diz essas palavras e elas são tão honestas,
que me atingem em cheio. Ainda assim, não são capazes de apagar
o que Camilo fez com Safira.
Desvio a atenção de Alejandro.
— Eu tenho nojo de mim — admito, prensando os lábios com
força. — Deve ter sido tão difícil pra Safira ter de viver comigo. Eu
não devia ter nascido, Alejandro. Eu sou fruto de um estupro.
— Pérola... — ele repreende.
— É só nisso que consigo pensar agora.
Balanço a cabeça de um lado para o outro, atordoada.
— O que você quer que eu faça? Me diz, Perrita. Me diz que
eu faço — murmura, a voz tão grossa e carregada de... amor
mesclado à tristeza.
No fundo, eu entendo as razões de Alejandro. Entendo
mesmo, só que é difícil. Mesmo que ele tenha feito isso para não me
perder, não consigo encarar seus olhos agora. Não quero ficar perto
dele agora, porque é como se algo dentro de mim tivesse sido
quebrado.
— Preciso de um tempo, Alejandro. — As palavras escapam
dos meus lábios, fazendo o homem grunhir de raiva. — Não acho
que consiga ficar com você agora.
— Perrita.
Engulo em seco.
— Não consigo, Alejandro. Como vou ficar com você
sabendo que a qualquer hora posso esbarrar com aquele monstro?
Nem forte o suficiente eu fui pra matá-lo.
— Não faz isso, Perrita. Hoje de manhã você disse que
voltaria pra mim.
Fecho os olhos, chorando.
— Me desculpa, mas eu não posso. Não consigo ficar com
você agora, Alejandro. Eu te amo, mas tá doendo tanto.
Pela visão periférica, noto o seu maxilar cerrar.
— Não posso deixar você.
— Por favor — imploro.
— Perrita.
— Eu te amo, Alejandro — murmuro ao virar meu rosto para
ele e encostar meus lábios nos seus de leve. — Preciso ficar
sozinha.
— Perrita...
Antes que me arrependa da minha decisão, desafivelo o cinto
e saio do carro, deixando o homem que eu amo para trás.
Meus pés reproduzem um som pesado pelos corredores da
mansão. Cada passo é carregado de fúria e frustração, como se o
meu próprio corpo se rebelasse contra as emoções que tento conter
dentro de mim.
Eu sou Alejandro Navarro, o Patrón, o líder indomável do
Cartel, o homem que sempre se ergueu aos momentos tenebrosos,
não importa o quão difíceis tenham sido. Mas aqui e agora, dentro
destas paredes repletas de lembranças, eu sinto que estou prestes
a explodir.
A raiva me consome com força, crua e incandescente, parece
prestes a me detonar a qualquer momento.
As últimas palavras de Pérola ainda ecoam dentro da minha
cabeça. Perdê-la é como um punhal perfurando o meu peito, me
arrancando a respiração.
É tudo culpa de Camilo.
Assim que entro na sala principal, me deparo com o meu tio
Camilo sentado no sofá, a sua esposa cuidando do ferimento em
seu joelho, enquanto a minha mãe e meu avô o observam em
silêncio.
Ele ergue os olhos enrugados para mim, exibindo uma
expressão de resistência.
— Alejandro, niñito — mamá fala, tentando chamar minha
atenção.
Não desperdiço um segundo sequer, meto a mão detrás do
meu casaco e saco a minha arma, a mesma que Pérola apontou
para ele e deu um tiro em seu joelho.
O velho me observa com uma mescla de perplexidade e as
rugas que marcam seu rosto parecem se aprofundar, traçando mais
linhas de apreensão.
— Alejandro, o que você está pensando em fazer? — Camilo
quer saber, o rosto que sempre foi tão decidido e firme, agora, não
passa de uma névoa cheia de incerteza.
Destravo a minha arma, cravando meus olhos nos seus.
— Papá, faça alguma coisa — pede.
Aproximo-me de Camilo e todos se afastam, repelidos com a
minha intensidade. Com a mão livre, seguro o seu pescoço com
tanta força, que os olhos dele esbugalham. Soco o cano da minha
arma na sua boca, fazendo-o engolir e estremecer.
Com o meu rosto a centímetros do dele e os meus olhos
queimando por causa da fúria, eu começo a articular:
— Escute bem, porque eu só vou falar uma vez, Camilo.
Você acaba de me fazer perder algo precioso e estou com tanto
ódio de você, que explodiria a sua cabeça aqui e agora. Mas em
consideração a minha mãe e ao meu avô, eu não o farei. No
entanto, você vai embora da Colômbia. Nunca mais pisará neste
país, entendeu? Se eu souber que voltou pra cá, ah, Camilo, vou
tratar você como um traidor. E sabe bem como eu trato meus
traidores.
Forço o cano mais ainda contra a sua boca, fazendo-o ter
ânsia de vômito.
— Balance a cabaça se me entendeu.
Ele assente e eu me afasto, tirando a arma da sua boca.
Camilo respira fundo, me encarando por cima dos olhos, incrédulo.
— Você acabou de me exilar?
— Achei que tivesse entendido — retruco e emputecido por
causa do questionamento, miro a arma no seu outro joelho e atiro,
arrancando um grito de dor dele. — Da próxima vez que me
questionar, passará o resto dos seus dias numa cadeira de rodas.
Lamentando-se de dor, Camilo olha para o meu avô, que está
em pé, sustentando o peso do corpo na bengala.
— Quando seu irmão encobriu o que fez no passado para
manter a salvo o seu casamento, eu disse que um dia você teria que
enfrentar as consequências do seu ato. Você sempre foi um
problema, Camilo. Nunca consegui domá-lo, infelizmente, nem o
seu irmão.
— Mas eu sou o advogado do Cartel, vocês precisam de
mim.
Camilo engole em seco e os músculos de seu maxilar se
contraem.
— Não precisamos. — Curvo a boca num sorriso perverso
para Camilo. — Você acaba de ser rebaixado. Vicente assumirá o
seu lugar.
— E o que ele sabe sobre os nossos negócios?
Aponto a arma compacta para Camilo novamente, dessa vez
encosto o cano na sua testa.
— Abra a boca de novo e eu estouro os seus miolos — minha
voz soa dura, cortante, carregada de autoridade. — Antes do sol
nascer, eu quero você fora do meu país, Camilo Navarro. Entendeu?
A contragosto, ele assente ao falar:
— Irei embora antes do amanhecer.
Giro nos calcanhares para sair da sala e o abuelo vem atrás
de mim. Entramos juntos no escritório e eu espero que opine sobre
a minha decisão. Ele nunca questionaria minha autoridade na frente
dos outros, mas em quatro paredes, não duvido que o faça.
— Cuidado com o que vai dizer, abuelo.
Ele respira fundo e se acomoda na cadeira de frente para à
mesa, enquanto eu sirvo uma dose generosa de whisky num copo
de cristal.
— Não estou aqui para criticá-lo. Quando eu fui o Patrón,
cortei a língua de todos que me desafiavam. Mesmo que não
concorde com você, não vou criticar a sua liderança, Alejandro.
— Ótimo.
— Camilo sempre foi difícil e, honestamente, dei um cargo
importante para ele na organização porque é meu filho, mas não
acho que tenha potencial.
— Não tem potencial pra porra nenhuma. — Bebo a bebida
toda de uma vez e encaminho a atenção para o meu avô. — Vou me
casar com Pérola, se ela quiser a cabeça de Camilo, eu darei,
abuelo. Nada me impedirá de fazer isso.
— Espero estar morto quando isso acontecer. Mesmo que ele
seja um idiota, não quero ver meu filho morrer.
— Ela quase o matou — lembro-o.
Meu avô deixa escapar uma risada seca.
— Não se engane, Alejandro. Aquela menina é pura demais,
não é uma assassina como nós. E ela nunca será. Por mais
doloroso que seja, por mais que ela esteja sofrendo, Pérola não o
mataria. No instante em que ela pegou a arma, eu sabia que não
conseguiria.
— Mas eu sim.
Ele anui, sério.
— Eu sei.
— E o senhor ficaria contra mim?
— Nunca, mi nieto. Mas como eu disse, não quero que se
matem. Foi uma decisão sábia mandá-lo embora. Dentro da
organização não fará diferença, sempre fez o trabalho dele malfeito.
— Abuelo, eu amo o senhor e o respeito. Mas se Camilo
voltar para Colômbia, eu o matarei.
— Não tenho dúvidas disso.
Há um momento de silêncio tenso entre nós.
— E Pérola?
— Ela vai ficar bem.
É a única coisa que digo, fazendo meu avô assentir. Não
tenho certeza sobre como as coisas entre mim e a Perrita irão se
resolver, contudo, eu estou disposto a tudo para protegê-la.
Disposto a tudo para tê-la de volta.
Mesmo que isso significa deixá-la em paz por algum tempo.
Dias depois e as únicas vezes que saí do meu quarto foram
para tomar banho. Me trancar e não falar com ninguém nem de
longe é a melhor escolha, mas como enfrentar Safira? Como
encarar o papai? Como lidar com a saudade que sinto de Alejandro?
Eu me sinto tão culpada por amá-lo.
Não sei como consertar as coisas.
Não sei como consertar a minha vida.
Deitada na cama, fixo os olhos na luz suave da tarde que
atravessa a janela do meu quarto. Tudo está tão triste, é como se o
meu coração fosse incapaz de se recuperar do baque.
Nos últimos dias pensei tanto em Safira, nas lembranças da
minha infância. Não é que ela tenha sido ruim para mim, mas agora,
eu entendo a sua recusa comigo. Eu a fazia sofrer. Eu a lembrava
da dor que Camilo causou nela.
Eu era o que infeccionava a ferida.
Eu era o lembrete que aquele monstro roubou a sua
inocência.
Sei que não existe nada que eu pudesse ter feito para salvar
Safira de Camilo, só que ainda assim, o peso da culpa é
avassalador e eu o sinto deteriorando os pedacinhos do meu
coração.
Quando as lágrimas escapam dos cantos dos meus lábios
mais uma vez, mordo o lábio inferior e solto um suspiro longo e
cansado. Estou tão cansada de chorar, mas é a única coisa que
posso fazer.
Queria que Pedro estivesse aqui, ele saberia o me dizer e
como me consolar, mas até ele me deixou também.
Remexo no colchão e viro de lado, minha atenção se fixa na
fotografia que repousa em cima da cômoda. O porta-retratos de
madeira é velho e desgastado, mas está carregando uma foto de
família.
Mamãe, papai, Safira e eu.
Estamos sorrindo, mas agora não sei se é apenas fingimento
ou se um dia nós fomos felizes de verdade.
Uma leve batida na porta e então, Safira entra no quarto de
mansinho, trazendo uma bandeja com suco, frutas e arepas. Só de
olhar para tudo isso, meu estômago embrulha e tenho vontade
vomitar, mas engulo a ânsia e forço um sorriso depois de limpar
minhas lágrimas e me sentar no colchão.
Safira coloca a bandeja em cima da cômoda ao lado da cama
e por um momento, encara a nossa foto de família, depois,
suspirando, afunda a cama ao sentar na beirada, bem ao meu lado
e me lançar um olhar cheio de compaixão e tristeza.
— Precisamos conversar.
— Não precisamos, Safira. Não precisa me dizer nada.
Ela engole em seco.
— Eu preciso.
— Eu sei que dói e tudo bem, você não tem culpa de nada.
Eu que não devia estar aqui — murmuro, fazendo Safira chorar em
silêncio. — Tudo bem, não vou cobrar nada de você. Eu entendo de
verdade.
— Pérola...
Ela ergue a mão para fazer carinho no topo da minha cabeça.
— Eu amo você.
Sinto minhas vistas arderem.
— Não precisa mentir pra eu me sentir melhor, Safira. Não
faça isso com você, por favor — imploro, prensando os lábios.
— Eu tive uma gravidez complicada, não vou mentir sobre
isso. Não tinha ideia do que era ser mãe e eu estava pronta pra doar
você quando nascesse — admite, fazendo meu queixo tremer por
causa do choro. — Mas assim que você nasceu e eu ouvi seu
choro... você era tão pequeninha, quente. A enfermeira te colocou
nos meus braços e você segurou o meu dedo, Pérola. E eu soube
que seria difícil, porque a ferida ainda doía dentro de mim, mas eu
queria você. E a mamãe também... ela se apaixonou por você e
então, decidimos que seria melhor que ela fosse sua mãe.
Engulo em seco, a garganta amargando.
— Por que não me abortou? Por que não acabou de uma vez
com isso?
— No começo... eu queria, mas um dia antes de ir à clínica,
eu sonhei com você me pedindo pra te deixar viver. Talvez tenha
sido a minha culpa de tirar você de dentro mim, mas eu sabia que o
bebê que crescia dentro de mim não tinha culpa de nada.
Desvio a atenção de Safira.
— Não sei como consegue olhar pra mim.
— Pérola, olhe pra mim — pede e me esforço para fazer o
que ela pede. — Eu sempre fui rígida com você não por me lembrar
do que Camilo fez comigo, mas porque tinha medo de que algo
parecido acontecesse com você. Eu te amo, tá bem?
— Eu também te amo.
Contorno o corpo de Safira com os braços e a aperto com
força, chorando entre os seus cabelos.
— Vai ficar tudo bem, nós sempre teremos uma à outra.
— Obrigada por não me odiar — murmuro e ela me aperta
mais ainda, aumentando o meu choro.
— Nunca vou te odiar. — Ela encosta os dedos no meu rosto
e limpa as minhas lágrimas, colocando mechas de cabelos detrás
da minha orelha. — Agora coma um pouco, faz dias que não se
alimenta.
Concordo com um aceno de cabeça.
— Cadê o papá?
— Na cozinha.
— Preciso falar com ele.
Com um coração um pouco mais leve por causa da nossa
conversa, eu saio dos braços de Safira e desço da cama, com os
pés descalços, eu saio do quarto e desço as escadas correndo,
rumando para a nossa cozinha.
Encontro o papai sentado à mesa, ocupado com alguns
papéis, que deixa de lado ao me ver. Seus olhos cansados brilham
ao se fixarem nos meus e ele abre um sorriso doce.
Ainda chorando, eu me aproximo dele, que fica de pé.
Apenas alguns passos de distância nos separam, mas não consigo
mais me mover, parece que meus pés criaram raízes no chão.
— Papá... — murmuro com a voz trêmula, a garganta
apertada. — Eu... eu...
— Tudo bem, Perlita. Eu sei.
Ele corta a distância que falta e me abraça calorosamente,
me fazendo soluçar. Aperto-o com tanta força, que sinto sou incapaz
de soltá-lo.
— Papá, obrigada por ter me criado. Obrigada por ter me
feito sentir parte da sua família.
Ele arreda um pouco, apenas para me encarar. Suas mãos
tomam o meu rosto, enquanto os olhos me esquadrinham.
— Escute uma coisa, Pérola e nunca esqueça disso, ok? Não
importa o que digam, o único pai que você tem sou eu. Apenas eu
— retruca, firme e carinhoso ao mesmo tempo. — Você sempre será
a minha filha, minha menina.
Concordo com um aceno de cabeça.
— Obrigada, papá. Por tudo.
— Não chore mais, Perlita. Seu pai está aqui pra você.
Ele limpa as minhas lágrimas com os polegares e eu abro um
sorriso amplo, grata por ele me amar incondicionalmente.
— Eu te amo, papá.
— Eu também te amo, Perlita.
Ele volta a me abraçar com força e eu respiro fundo. Em seus
braços, eu tenho a certeza de que não importa o que Camilo
Navarro tenha feito de ruim para nós, Safira, papai e eu vamos
superar e vamos continuar juntos.
Vamos ser uma família como sempre fomos.
E isso ninguém pode destruir.
Um pouco mais de um mês depois...
Seguir com a minha vida, tentando reconstruir o que foi
desfeito pelos últimos acontecimentos, não foi fácil. O tempo
pareceu se arrastar e embora eu tenha me acertado com o papá e a
Safira, há um vazio persistente dentro de mim.
Um vazio que só Alejandro Navarro pode preencher.
Eu venho o ignorando desde aquela noite em que ele veio me
deixar em casa e eu pedi um tempo. Terminar com ele foi uma das
coisas mais difíceis que eu fiz, mas foi a coisa certa naquele
momento.
Ainda assim, é impossível esquecê-lo.
Alejandro é o dono do meu coração e ficar sem ele é como
uma ferida que nunca vai cicatrizar completamente, mas talvez, com
um pouco mais de tempo, eu supere e o esqueça de vez.
Merda.
Quem estou tentando enganar?
Sinto tanta falta dele que parece que falta um pedaço de
dentro de mim e a cada minuto me sinto tentada a retornar às suas
ligações e mensagens. Às vezes acho que não vou conseguir ser
forte o suficiente para viver longe dele.
E eu sinto tanta falta de Giovanna também e da sua doçura.
Não queria fazê-la sofrer por ter me afastado, mas nem sou capaz
de responder as mensagens que manda para mim.
Isso só torna tudo mais amargo e cruel.
Ainda nem fui capaz de tirar do dedo o anel de noivado que
Alejandro me deu, porque eu sinto que quando o fizer, acabou de
verdade.
— Cansei de te ver sofrendo de amor — Safira resmunga ao
entrar no quarto, trazendo uma xícara fumegante em suas mãos.
O aroma de café invade o quarto e mais uma vez, o enjoo
que me atormenta há semanas ataca meu estômago. Num
rompante, levanto da cama e corro da direção do banheiro,
passando por Safira sem dizer nada.
Mal tenho tempo de alcançar o vaso sanitário antes de tudo
sair. O gosto amargo do vômito se mistura com o cheiro do café e
torna tudo mil vezes pior.
Safira logo se põe atrás de mim, preocupada, ela segura o
meu cabelo, enquanto tento me recuperar. Depois que a verdade
veio à tona, algo mudou entre nós e nos tornamos mais próximas.
Irmãs mais próximas.
E eu a amo ainda mais por isso.
Mesmo que seja minha mãe biológica, Safira sempre será
minha irmã mais velha.
— Pérola, você precisa fazer um teste de gravidez.
Nego com a cabeça.
— Não.
— Não adianta fugir.
Respiro fundo, me sentando no chão do banheiro e limpando
a boca com as costas das mãos.
— O papai vai pirar se der positivo.
— Faça logo esse teste de gravidez — Papá surge na porta
do banheiro, assustando-me.
— Me desculpe — murmuro.
— Se estiver grávida, criaremos essa criança. Não se
preocupe — é a última coisa que fala ao me deixar sozinha com
Safira.
[1]
“Minha mamãe” em espanhol, é uma forma mais carinhosa e informal de se referir à
mãe.
[2]
Significa "menininho" ou "garotinho”.
[3]
“Desgraçado” em espanhol.
[4]
Barranquilla é a capital do departamento Atlântico da Colômbia, está localizada na costa
do Mar do Caribe, reconhecida por sua vitalidade econômica e cultural. Seu papel como
centro industrial e comercial é marcado pela proximidade com o oceano, o que a torna um
relevante porto marítimo.
[5]
No contexto colombiano, um "departamento atlântico" refere-se a uma divisão
administrativa localizada na região costeira do país, próxima ao Oceano Atlântico. Esses
departamentos possuem autonomia governamental e são equivalentes a estados ou
províncias em outros países.
[6]
Perlita é o diminutivo de Pérola em espanhol. Seria algo como “Perolinha”.
[7]
Verdellano é uma cidade fictícia que eu criei para este universo de Herdeiros de Sangue.
[8]
Quieta, pirralha em espanhol.
[9]
Perlita é o diminutivo de Pérola em espanhol. Seria algo como “Perolinha”.
[10]
Cumbia é uma dança tradicional e folclórica originária da Colômbia e também é popular
em muitas regiões da América Latina. A dança e a música cumbia têm raízes culturais
profundas e são frequentemente realizadas em festivais, celebrações e eventos sociais.
[11]
Moeda corrente oficial na Colômbia.
[12]
Significa raivosa ou furiosa.
[13]
É um grande tambor de duas peles tocado com as mãos, frequentemente usado em
ritmos como a cumbia e outros gêneros musicais tradicionais.
[14]
É o braço direito do Patrón e assume as suas responsabilidades na ausência dele. A
quantidade de “Tenentes” dentro do cartel pode variar significativamente, dependendo da
estrutura, tamanho e complexidade da organização. No Cartel de Santa Fé há mais de um
tenente.
[15]
Perrita significa filhotinho de cachorro ou cachorrinha e pode ser usado como apelido
também.
[16]
“Linda garota” em espanhol.
[17]
Tataravô em espanhol.
[18]
“Então não fale besteira” em espanhol.
[19]
Arepas são como panquecas redondas feitas de massa de milho. Elas são populares
na Colômbia e em outros países da América Latina. As arepas podem ser cozidas,
grelhadas ou assadas, e podem ser recheadas com queijo, carne, ovos ou outros
ingredientes. Elas são uma comida básica e versátil que pode ser consumida como lanche
ou como acompanhamento para outras refeições.
[20]
Sapo é uma gíria que se refere a alguém que está delatando, espionando ou sendo um
informante para as autoridades ou para pessoas que não são confiáveis. Portanto, se
alguém é considerado um "sapo" na Colômbia, significa que está agindo como um
informante ou dedurando algo para outras pessoas.
[21]
Pasca, está situada em Cundinamarca, é uma cidade cercada por paisagens
montanhosas, que é rica em belezas naturais e os eventos festivos atraem visitantes
interessados em explorar a essência autêntica dessa região.
[22]
Os compositores de "Unidas para Siempre" são Nicolás Uribe e Sebastián Luengas,
quem canta é a atriz Laura Londoñoa. A música foi lançada em 2021 e fez parte da trilha
sonora de uma novela colombiana.
[23]
Tradução do trecho: “Às vezes discutimos e também nos afastamos. No fundo nós dois
sabemos que sempre seremos dois e não importa o que aconteça, eu sempre canto. Oh,
como é bom ter você. Saiba que eu tenho você e tenho seu amor. Há dias tão cinzentos,
que tudo é difícil, mas você está comigo e eu conto com você.”
[24]
Tradução do trecho: “É a magia do seu corpo ou o perfume do seu hálito. É o fogo da
sua fogueira que me deixa prisioneira. O veneno doce do seu encanto ou é a chama que
vai me queimando. É o mel da sua ternura a razão de minha loucura.”
[25]
Danilo Salvatore é o protagonista de “Entregue ao Mafioso”, primeiro livro da sério
“Império Salvatore”. É isso mesmo, Maria Mafiosa, parece que os mafiosos da
Brendolândia coexistem no mesmo mundo!
[26]
"Malört" é um licor amargo criado em 1934 por Carl Jeppson em Chicago, conhecido
por sua intensa amargura e sabor desafiador.
[27]
É o braço direito do Patrón e assume as suas responsabilidades na ausência dele. A
quantidade de “Tenentes” dentro do cartel pode variar significativamente, dependendo da
estrutura, tamanho e complexidade da organização. No Cartel de Santa Fé há mais de um
tenente.
[28]
Giancarlo é o protagonista de Resgatada pelo Mafioso, segundo livro da série “Império
Salvatore”.
[29]
“Minha Pérola” em espanhol.
[30]
O Cholado é uma refrescante sobremesa colombiana composta por gelo picado, frutas
frescas, leite condensado e, ocasionalmente, sorvete, oferecendo um sabor tropical e uma
explosão de texturas.
[31]
Patrona" em português significa "Chefe" ou "Líder" quando se refere a uma mulher que
ocupa uma posição de liderança ou autoridade em uma organização, empresa, grupo ou
contexto específico. Portanto, em um contexto de liderança, "Patrona" se refere a uma líder
ou chefe feminina.
[32]
Pai ou papai em italiano.
[33]
O chefe dos chefes. Título máximo na hierarquia da máfia italiana.
[34]
Consigliere ou também conselheiro é às vezes visto como o braço direito do Don.
Participam da mediação de disputas, atuam como representantes da família em situações
de risco e frequentemente são a ligação entre o Don e o aspecto judiciário ou político.