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Um corpo para o negro no cinema: experiências pedagógicas na Cultura

Visual do Ensino Médio

Túlio Henrique Pereira1


Claudianne de Oliveira Freitas de Lima2
Francisca Kaysa da Silva Ferreira3

RESUMO: Esta proposta tem como objetivo apresentar experiências a partir da Residência
Pedagógica ao longo do ano de 2023. A utilização do cinema enquanto ferramenta pedagógica no
ensino das ciências humanas e sociais, oportunizou estabelecer questões acerca da cultura visual e
da educação, especialmente quando se refere à curadoria fílmica e à recepção de conteúdos com
caráter étnico-racial. O Ensino Médio enquanto uma das etapas fundamentais no processo de
formação das experiências de mundo e da construção identitária, encontra na espacialidade da
escola pública questões que transpõem os currículos. Percebe-se que, embora haja esforço e
pesquisa, por parte de educadores, a compreensão das múltiplas identidades negras estiveram
relegadas às estereotipias, estabelecendo distanciamentos, quando nos referimos à recepção dos
discentes. A análise a partir de produções visuais que abordam personalidades negras ou que
quebram estereótipos criados e enraizados na sociedade é fundamental. Dos resultados adquiridos
a partir da imersão das residentes, entende-se que há uma nova e tímida construção social no
audiovisual, capaz de apresentar pessoas negras também como protagonistas de suas próprias

1
Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (DH/UFU), com pós-doutorado em História do
Brasil pela Universidade Federal do Piauí (PPGHB/UFPI), Professor Adjunto do Departamento de História, na cadeira
de História Afro-brasileira e Indígena da Universidade Regional do Cariri (DH/URCA) e do Mestrado Profissional em
Educação (ProfHistória URCA). Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Afrodiaspórica (GEPAFRO). Link
CV: http://lattes.cnpq.br/9301454984951367, e-mail: tulio.henrique@urca.br
2
Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (URCA),
membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Afrodiaspórica (GEPAFRO). Bolsista da Residência Pedagógica
(PIBID/URCA/CAPES). Link CV: http://lattes.cnpq.br/1362920213595923, e-mail: claudianne.oli@urca.br
3
Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (URCA),
membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Afrodiaspórica (GEPAFRO). Bolsista da Residência Pedagógica
(PIBID/URCA/CAPES). Link CV: http://lattes.cnpq.br/8197001000141213, e-mail: kaysa.ferreira@urca.br
narrativas. Por meio de aulas que abordam problemáticas pré-estabelecidas relacionadas à
representatividade negra, preconceito, discriminação, cultura negra, entre outros temas, foi possível
estabelecer diálogos elaborados com o intuito de envolver ativamente os estudantes, de forma
criativa, ao passo que eles passaram a compartilhar suas experiências, compreensões, dúvidas e os
impactos que a cultura visual relacionada à raça atravessam suas vidas.
Palavras chaves: Cinema e Cultura Visual; Representatividade Negra; Residência Pedagógica.

O corpo na Cultura Visual das experiências pedagógicas

O corpo se estabelece enquanto uma terminologia positiva a ser atribuída às representações


corporais de pessoas negras ao longo do processo histórico nacional. Pesquisas voltadas para as
visualidades, cuja corporeidade se apresenta em caráter secundário, ainda se ancoram por
referências estrangeiras, especialmente de autores franceses e alemães, ao exemplo de Georges
Didi-Huberman, Philippe-Alain Michaud, Aby Warburg, Georges Vigarello, entre outros. No
Brasil, destaca-se a tese de doutorado intitulada: Que coisa é essa, Yôyô? Cor e raça na imprensa
ilustrada da Bahia (1897-1904), a realizar investigação panorâmica na imprensa baiana sobre os
modos de representar a corporeidade negra nos primórdios da imprensa ilustrada da Bahia,
perpassando marcos centrais da produção visual corpórea produzida por viajantes em missão de
estudos no Brasil, a exemplo de Jean-Baptiste Debret, Nicolas Antoine Taunay, Auguste Marie
Taunay, Marc Ferrez, Frans Post, Albert Eckhout e Johann Moritz Rugendas.
Interessa-nos, todavia, compreender o modo como brasileiros passaram a construir
representações próprias dos corpos negros, a partir de referenciamentos estrangeiros, tais como as
politipias, as figuras de caixa e até mesmo os padrões europeus produzidos por Angelo Agostini.
Embora esses gravuristas, suas ilustrações, desenhos e grafismos tenham sido acusados de copiar
os estilos hegemônicos, consideramos que eles imprimiram peculiaridades em seus traços, a dar à
essas reproduções, modos de ressignificar o corpo e a corporeidade negra que passou a ser
representado no contexto nacional do Brasil, para além das cabeças de negros. Na Bahia se
destacaram dois nomes de gravuristas negros responsáveis por construir representações negras na
imprensa ilustrada, foram eles: Arthur Arezio da Fonseca e Fortunato Soares dos Santos, no
princípio do século XX. Já nas artes plásticas destacou-se, Antônio Rafael Pinto Bandeira,
niteroiense do final do século XIX.
A proposta deste ensaio, no entanto, não se volta para o aspecto visual das gravuras, das
pinturas ou da imprensa ilustrada, haja vista que nos propomos pensar o cinema e o seu poder visual
no processo de auxiliar identificações, comoção e o letramento racial.
Aqui, compreende-se o cinema enquanto ferramenta pedagógica no ensino das ciências
humanas e sociais, a estabelecer questões acerca da cultura visual e da educação, especialmente
quando se refere à curadoria fílmica e à recepção de conteúdos com caráter étnico-racial. A
proposta em tela tem como finalidade apresentar os relatos de experiência de duas estudantes do
curso de Ciências Sociais durante o estágio da Residência Pedagógica no Ensino Médio. Esta é
uma das etapas fundamentais no processo de formação das experiências de mundo e da construção
identitária, tanto das alunas quanto do alunado responsável por recepcioná-las.
A lei 10.639/2003 prevê o ensino de História e Cultura Afro-brasileira como componente
curricular obrigatório nos anos finais do Ensino Fundamental e Médio. Embora já se tenha passado
vinte anos do sancionamento da lei, ainda há uma dificuldade quanto a efetividade dela,
especialmente da manutenção do trabalho multidisciplinar e interdisciplinar incrementado à
temática racial, seja no aspecto ideológico, sociocultural, político, artístico e religioso. Mesmo
quando nos deparamos com instituições onde professores entrelaçam os conteúdos com a temática,
é comum existir um distanciamento dos estudantes quanto à identificação.
O autor Kabengele Munanga, nos comunica que para se construir uma educação
antirracista, não basta querer, existem outros atravessamentos que precisamos nos ater

nossos instrumentos de trabalho na escola e na sala de aula, isto é, os


livros e outros materiais didáticos visuais e audiovisuais carregam os
mesmos conteúdos viciados, depreciativos preconceituoso em
relação aos povos e culturas não oriundos do mundo ocidental. Os
mesmos preconceitos permeiam também o cotidiano das relações
sociais de alunos entre si e de alunos com professores no espaço
escolar (MUNANGA, 2005, p.18).

O autor nos alerta sobre a importância de perceber essas diferentes condições que cruzam
o caminho e a nós mesmos, antes de ensinar. Tencionando uma análise, principalmente, dos
conteúdos a serem trabalhados. Ao pensarmos o audiovisual como recurso didático de ensino, não
podemos esquecer que o que é produzido serve a uma classe, logo, é construído majoritariamente
por pessoas brancas enquanto protagonistas e com uma única narrativa sobre uma história. Isso não
significa dizer que só haja produções com esse viés e esses enredos. Enquanto educadores ou
futuros educadores, é importante estarmos atentos a esse material e buscarmos
afrorreferenciamentos e atualização constante dos saberes teóricos e extensionistas, a fim de
pluralizar as representações visuais e culturais.
Enquanto participantes do programa Residência Pedagógica, projeto de Política Nacional
de Formação de Professores do Ministério da Educação, buscou-se trabalhar e explorar temáticas
relacionadas a uma educação antirracista dentro do Ensino Básico, designadamente das aulas de
sociologia e eletivas dos colégios. Buscou-se utilizar o cinema como instrumento pedagógico
durante o estágio das regências, pois se compreende essa metodologia, como uma abordagem
eficaz para a desconstrução de facetas negativas introjetadas no imaginário da sociedade brasileira.
A regência não se ancorou apenas na exibição de filmes, haja vista que o relato das experiências se
deu como um conteúdo de apoio, capaz de aproximar as alunas regentes aos alunos assistidos,
dentro das escolas Governador Adauto Bezerra, e Prefeito Raimundo Coelho Bezerra de Farias, a
fim de ilustrar discussões e embates sobre a imagem do negro em produções audiovisuais.
Além disso, buscou-se destacar a importância do trabalho de desconstrução de estereótipos
dentro das salas de aula, a promoção de narrativas positivas de heroísmo, e importância da
representação corporal de protagonistas negros, tanto fisicamente quanto intertextualmente, de
modo que suas narrativas, contextos históricos, fossem trazidos de forma mais ampliada,
diferentemente do modo como foram apagadas ou alteradas pela indústria cinematográfica ao longo
dos anos.
Optou-se por utilizar produções fílmicas, tais como O Nascimento de uma Nação (1915),
dirigido por D.W. Griffith, obra cinematográfica extremamente racista que glorifica a Ku Klux
Klan. Nela um movimento extremista de ideologia de supremacia branca se apresenta enquanto
protagonistas, de modo que o filme retrata os negros de forma estereotipada e negativa. E o filme
O Nono Mandamento (1956), a retratar a história bíblica de Moisés e a libertação dos hebreus do
Egito, com uma representação de atores brancos maquiados a representarem os povos egípcios.
Ação entendida como popularmente como “black face” de origem estadunidense, durante as
políticas segregacionistas das leis Jim Crow.
Na tentativa de se discutir a representação do corpo e da corporeidade do negro no cinema
brasileiro, optou-se por trabalhar durante a regência, um curta-metragem que representasse as
pessoas negras, não apenas no corpo de atores, mas na construção criativa, direção, autoria,
fotografia, corpo técnico, temática, argumento e roteiro. Foi escolhido o curta-metragem de
etnoficção Kbela (2015), dirigido pela cineasta, Yasmin Tainá, e a série Heróis de todo o mundo
(2014). O filme e a série foram trabalhados em duas turmas das disciplinas de Educação
Antirracista na Escola de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra, em Juazeiro do Norte, e na
escola Prefeito Raimundo Coelho Bezerra de Farias, em Crato, ambas cidades do cariri cearense.

Kbela: o cinema em debate no programa Residência Pedagógica

Perceber o modo como a indústria cinematográfica construiu estereótipos de pessoas


racializadas, determinou espaços de subalternização, sub-representações, apagamentos,
deturpações identitárias e visuais da corporeidade afrodiaspórica na cultura visual. E essa atitude
construiu a desvalorização social e estética dos corpos e das narrativas afrodiaspóricas, de modo
que a coletividade de pessoas negras ficou marcada pela ausência de suas representações integrais,
ou seja, núcleos familiares completos, narrativas lineares ou densas a respeitos de aspectos
geracionais, com início, meio e fim. Ausência de importância para o núcleo central da trama,
desconexão afetiva, econômica, política e emocional.
A marcação do negro no cinema hollywoodiano, a partir dos blockbusters, filmes com
grande apelo comercial, ou seja, aqueles que visam grandes bilheterias, demarcou com um sinal de
menos as representações dos corpos e das corporeidades de pessoas, personagens e histórias negras,
os apresentando majoritariamente enquanto selvagens, malandros, cuidadores, somíticos,
avarentos, zoomorfos, sexualizados, submissos, míticos, folclóricos, deturpados, e em sua grande
maioria, personagens com funções laborais físicas e de pouca inteligência. Enquanto, em sentido
oposto, a branquitude se viu erigida com um sinal de mais, no qual ela representa o poder, a classe
elevada, a temperança, o ideal de beleza, as emoções equilibradas, a inteligência, a moral, o ideal
de riqueza e de enlace afetivo, tal como nos apresenta Araújo,
O inconsciente racial coletivo brasileiro não acusa nenhum incômodo
em ver tal representação da maioria do seu próprio povo, e
provavelmente de si mesmo, na televisão ou no cinema. A
internalização da ideologia do branqueamento provoca uma
‘naturalidade’ na produção e recepção dessas imagens, e uma aceitação
passiva e concordância de que esses atores realmente não merecem
fazer parte da representação do padrão ideal de beleza do país
(ARAÚJO, 2008, p. 984).

Pensando na influência que os filmes causam nas pessoas, este projeto pedagógico
foi concebido e colocado em prática com o objetivo de apresentar contextos de forma
concisa que promovam discursos inclusivos no sistema educacional e estimulem
discussões em sala de aula. A meta foi viabilizar produções cinematográficas
protagonizadas por pessoas negras, com a finalidade de moldar a mídia e destacar e
perpetuar novas histórias mais igualitárias e justas.
Percebeu-se, no entanto, que, embora haja esforço e pesquisa, por parte de
educadores, a compreensão das múltiplas identidades negras estiveram relegadas às
estereotipias, estabelecendo distanciamentos, quando nos referimos à recepção dos
discentes.
A lei Jim Crow foi construída no seio da cultura sulista escravagista do sul
dos Estados Unidos da América, o conjunto de leis orientou comportamentos forjados
para representar uma ideia de masculinidade preta e malandra em oposição aos
códigos da cultura e da moral religiosa anglicana/protestante. Algumas das
estereotipias criadas pelo cinema estadunidense ainda estão presentes no imaginário
mundial, especialmente no Brasil. E essa construção segue sendo reproduzida por
novos criadores de cinema, telenovelas, teatro, literatura e propaganda publicitária,
quando não, no discurso e no imaginário popular (DIJK, 2008). O próprio palhaço Jim
Crow, a mommy, o negro mágico, white savior, blackface, são personagens criadas para
reproduzirem uma estereotipia negativa dos tipos de negros idealizados pela branquitude
estadunidense, por exemplo.
O cinema é compreendido metodologicamente enquanto fonte do audiovisual ou
fonte fílmica. Esse material nos é tomado enquanto uma fonte complexa porque ele possui
múltiplas linguagens: a estética do visual, a película, a fotografia, o roteiro, a atuação, o
plano de câmeras, o cenário, a cena, o frame, a atuação e sua reprodutibilidade, assim
como o seu caráter discursivo e simbólico a representar, ao mesmo tempo em que orienta
padrões de vida, comportamentos, ideologias, aspectos que transcendem o consumo pelo
puro entretenimento.
O filme é tomado aqui a partir da compreensão do historiador francês Jacques
Aumont, enquanto representação, respeitando o seu carácter ficcional e a sua linguagem
estética. O método utilizado nos permite a concentração na imagem fílmica a partir do
seu conteúdo qualitativo, visual, sonoro e textual, estabelecendo observações, seleção de
frames, cenas e diálogos para que se possa comparar e analisar o seu caráter estético,
visual e suas intenções. Desse modo trata-se de uma metodologia das visualidades, dentro
de uma compreensão qualitativa de carácter exploratório.
Yasmin Tainá, cineasta brasileira, produziu e dirigiu o curta-metragem Kbela a
partir do seu conto literário Mc kbela, entrelaçando com vivências de outras mulheres que
também já tinham sofrido racismo por conta do cabelo, onde mostra esse processo de
embranquecimento, sofrimento, mutilação e superação que esse grupo está sujeito. A
escolha por trabalhar essa questão estética com mulheres, sugere como esse grupo sofre
uma maior repressão social em existir nas subjetividades e expressões identitárias, como
aponta bell hooks, em Alisando o nosso cabelo:

Juntos racismo e sexismo nos recalcam diariamente pelos meios de


comunicação. Todos os tipos de publicidade e cenas cotidianas nos
aferem a condição de que não seremos bonitas e atraentes se não
mudarmos a nós mesmas, especialmente o nosso cabelo. Não podemos
nos resignar se sabemos que a supremacia branca informa e trata de
sabotar nossos esforços por construir uma individualidade e uma
identidade (HOOKS, 2005, p. 7).

Compreendendo o que a bell hooks nos diz sobre essas cenas cotidianas, optou-se
por utilizar Kbela em sala de aula, numa perspectiva em que se pudesse trabalhar com um
conteúdo a possibilitar à maioria daqueles estudantes identificação com as narrativas
apresentadas, de modo que eles compreendessem os elementos que constroem e
desconstroem suas identidades. A mediação aconteceu em duas turmas da disciplina de
Educação Antirracista na escola Governador Adauto Bezerra, localizada em Juazeiro do
Norte, Ceará. Local onde opera o programa da Residência Pedagógica com subnúcleo de
Sociologia da Universidade Regional do Cariri (URCA).
Os estudantes da disciplina eletiva, já haviam tido contato com a temática do
racismo, momento em que se trabalhou os temas: O que é racismo estrutural?
Discriminação; Preconceito racial, e demais pontos que o autor Silvio Almeida
sistematiza em seu livro Racismo Estrutural (2019).
Durante a exibição do curta-metragem Kbela, a primeira turma teve uma dispersão
maior, com mais estudantes dormindo e apáticos, sendo preciso interromper a cena, para
darmos início à discussão. Posteriormente foi dado continuidade a exibição e, apesar
dessa questão, os estudantes captaram um dos principais pontos abordados no enredo: as
questões em torno do embranquecimento. Eles argumentaram ter sido um processo pelo
qual o Brasil pós-abolicionista passou, embora seja uma realidade persistente, de forma
“mascarada” no contexto social.
A tomada mais forte do filme Kbela, a denunciar o processo de
embranquecimento, é a cena em plano fechado e sequencial, quando a câmera está situada
próxima da personagem, a partir do tronco para cima, dando maior dimensão dramática
à cena. Enquanto isso a câmera é posicionada em ângulo frontal, mirando o nariz e as
expressões faciais, a boca e os olhos da personagem a confrontar o espectador com
dureza. Trata-se de uma mulher preta retinta de colo desnudo, a pintar a pele com tinta
branca. A cena retrocede, de modo a fazer com que o espectador visualize a mulher no
ato de remover a tinta branca da própria pele; logo, a se apresentar integralmente limpa
em seu tom retinto.
Há um jogo técnico de pós-produção no qual a tomada surge após corte seco, em
que a cena avança e retrocede dando dimensões especiais à cena, um efeito visual. O
plano performático se dá com a dramatização intensa das expressões faciais da
personagem. A cena se inicia com corte seco e fundo musical do batuque de um tambor
a conectá-la à cena anterior. O tambor é um elemento de percussão que insere mais
dramaticidade e tensão à cena. Todavia há o silenciamento da trilha sonora, prevalecendo
o som da fricção das mãos da personagem manuseando a tinta branca em sua face, colo e
pelos corporais, o som da sua respiração, e o som ambiente do cantar de pássaros, pessoas
conversando ao fundo e o quase imperceptível barulho do vento a balançar as folhas das
árvores.
A sonoplastia infere caráter dramático à cena. Quando do ato de se limpar da tinta,
ou do retroceder da tomada, se inicia o som seco de uma escaleta, instrumento de sopro
com teclados. A feição da personagem atenua a rigidez do olhar ao fechar os olhos por
segundos. Todavia, ela volta a confrontar a lente da câmara após observar as mãos
entintadas com o branco da tinta. Não há clemência ou resiliência. O corte seco não
permite que haja conclusões bucólicas, embora a dureza da personagem também seja
atravessada pela poesia sonora da escaleta a entoar notas melódicas com bucolismo.

Após o comentário de um estudante acerca dessa cena, a discussão girou em torno


da temática do embranquecimento, e dos modos como essas práticas e dispositivos (mídia
televisiva, propagandas indoor e outdoor, dispositivo de embelezamento presentes nos
smartphones, filtros para fotos e vídeos nas redes sociais, influenciadores, produtos
cosméticos, realities, cinema, música, literatura, revistas etc.) afetam as orientações,
práticas, sensibilidades, identidades, a relação com o corpo, o reconhecimento
afrorreferenciado, o despertar da consciência, e as corporeidades da população negra.
A mediação realizada pelas graduandas possibilitou o debate sobre a violência
simbólica e na prática cotidiana, no que diz respeito aos processos racializadores e
marginalizadores. E, na tentativa de aproximar a turma e deixá-los à vontade para
compartilharem suas experiências ao falarem “de si”, em primeira pessoa, foi solicitado
a partilha das vivências, incialmente realizada pelos residentes. A interação inicial se deu
por um dos residentes que pôde discorrer acerca da sua vivência enquanto homem negro
atravessado por condicionamentos estéticos da sua corporeidade racializada pela
branquitude, como o tom escuro da sua pele preta e seus cabelos crespos. A partir do
primeiro relato, muitos estudantes narraram inquietações próprias e as experiências de
pessoas próximas a eles.
A segunda turma em que o filme Kbela foi exibido teve maior número de
participantes, sendo a maioria da turma composta por pessoas do gênero feminino.
Constatou-se, a partir da observação, maior atenção e menos dispersão durante a exibição
do curta-metragem, o que reverberou em mais interações durante o debate posterior ao
filme.
A turma identificou a questão do embranquecimento, discutiu sobre racismo
interiorizado (introjeção do racismo),4 e foi estimulada a falar de suas próprias
experiências sensíveis. Foram trazidas ao debate, experiências que interseccionam o
racismo aos traumas provocados pelos ajustes corporais, a exemplo do alisamento
químico dos cabelos crespos, a partir dos sete anos de idade, e a rejeição ao crespo nos
intervalos necessários ao procedimento.
Dentro das circunstâncias narradas, observou-se que quando criança, a jovem que
tinha os cabelos alisados aos sete anos possuía referenciais estéticos que não
correspondiam à sua corporeidade negra, mas sim ao imaginário da branquitude tomada
como o ideal de belo. Ao ser acolhida por pessoas negras conscientes racialmente, a
jovem pôde aceitar a estética do seu fenótipo negróide com um pouco menos de
distorções, todavia, sem grandes transformações, como sugere a cena sobre o
embranquecimento no curta-metragem Kbela. Nesse momento foi possível relacionar, a
partir da narrativa do curta, uma situação do cotidiano de pessoas que estão nesse
processo de descolonização de seus corpos, mentes e da autoimagem que construíram
sobre si mesmas.

4
Entende-se por introjeção do racismo, pessoas racializadas, como negros, indígenas, asiáticos que
desenvolvem ação de assimilação da branquitude enquanto ideal civilizatório e universalizante para si.
Desconhecendo ou invisibilizando suas características étnico-raciais, passando a defender a inexistência
das diferenças e reproduzir discursos com teor racialista, como por exemplo: a ideia da fealdade, odor,
bestialidade, falta de inteligência, sexualidade aflorada e sensualidade inatas à raça negra. Para mais
informações acerca do processo de introjeção do racismo, negação do negro pelo próprio negro, e do
condicionamento psicológico a impedir o reconhecimento do negro da sua própria identidade enquanto
cidadão negro, pesquisar os autores: Roger Bastide (1983); Nilma Lino Gomes (2006); Françoise Dolto
(2012).
Kabengele Munanga ao escrever sobre esse imaginário, oferece repertório capaz
de inquerir a nós, a responsabilidade enquanto educadores, na busca por maneiras capazes
de transformar a percepção de mundo de nossos alunos durante nossas aulas, intervenções
e processos de ensino-aprendizagem, de forma a modificá-la, embora o processo da
educação formal, não seja sozinho, capaz de operar todas as mudanças necessárias em
nossas sociedades, em especial, na percepção de mundo imaginado:

Como educadores, devemos saber que apesar da lógica da razão ser


importante nos processos formativos e informativos, ela não modifica
por si o imaginário e as representações coletivas negativas que se tem
do negro e do índio na nossa sociedade. Considerando que esse
imaginário e essas representações, em parte situados no inconsciente
coletivo, possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão onde
brotam e são cultivadas as crenças, os estereótipos e os valores que
codificam as atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas e
linguagens capazes de superar os limites da pura razão e de tocar no
imaginário e nas representações (MUNANGA, 2005, p. 21).

Bell hooks e Kabengele Munanga são pesquisadores que nos faz compreender que
trabalhar apenas a razão ou as compreensões teóricas, não são ações suficientes para a
promoção de uma educação libertadora. Ao se pensar na educação antirracista, estamos a
falar de um gênero específico de saberes, que são gerados por meio da experiência vivida,
das práticas e do pragmatismo na ação dos dias de sujeitos atravessados pela imposição
das inúmeras estereotipias negativas formuladas sobre eles, seus ideais de mundo, corpos,
corporeidade, identidades e fenótipos. Limitações cunhadas a partir da
interseccionalidade entre gênero, raça, classe, etnia e sexualidade.

Experiências na escola Prefeito Raimundo Coelho Bezerra de Farias

As experiências narradas a partir da prática durante a residência nas escolas de


ensino médio Governador Adauto Bezerra, e na Escola Prefeito Raimundo Coelho
Bezerra de Farias, popularmente conhecida como Liceu do Crato, uma instituição
privada, localizada no bairro Seminário, na cidade do Crato, Ceará oportunizaram a
observação de muitas camadas. A instituição oferece uma disciplina optativa chamada
Negritude, Cinema e Educação, disciplina escolhida pelas residentes juntamente com a
preceptora e responsável pelo programa.
Após a discussão e a escolha pela disciplina optativa, foram realizadas reuniões,
nas quais a preocupação trazida se deu em torno da seleção dos filmes a serem exibidos
aos alunos, e a metodologia a orientar os temas abordados por eles, de forma a fomentar
o debate.
O primeiro filme selecionado foi um capítulo da série documentário: Heróis de
Todo Mundo – A cor da cultura (2014). Trata-se de um filme de etnoficção em série com
pequenos capítulos a misturar evidências históricas com curtas biografias de brasileiros
afrodescendentes atuantes na história da cultura, ciência e política do país. As múltiplas
biografias são narradas por atores, pesquisadores e personalidades negras prestigiadas na
atualidade do Brasil.
O produto com 47 personalidades negras homenageadas, se trata de uma série de
interprogramas produzida em parceria com a Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Centro Brasileiro de Informação e
Documentação do Artista Negro (CIDAN), Ministério da Educação, através da SECADI,
e Ministério da Cultura, por meio da Fundação Palmares, Fundação Roberto Marinho,
através do Canal Futura e Rede Globo de Televisão, e a Petrobrás.
A série narra a vida de cidadãos negros celebrados pelo Movimento Negro
Unificado (MNU), e ativistas da luta antirracista e em prol do letramento racial. Muitas
dessas personalidades, não são, todavia, amplamente reconhecidas, e quando o são, como
no exemplo do escritor Machado de Assis, esses têm sua negritude apagada, tanto pela
historiografia quanto pelo discurso midiático hegemônico.
Nossa ideia principal era proporcionar aos alunos a compreensão de que existem
heróis negros que tiveram papel fundamental na história do Brasil. Pois entendemos que
a mídia, em muitos momentos, apenas corrobora pela manutenção do discurso
hegemônico e eurocentrado. Explanou-se o fato de vivermos em uma sociedade cujo
poder é majoritariamente definido e mantido pelos ideais da branquitude, e, portanto,
apenas pessoas brancas decidem caminhos, orientações, leis e representações. Desse
modo, no entanto, não temos a representação qualitativa e integralizadora da negritude,
seja nos espaços de poder políticos, econômicos ou no campo simbólico das
representações midiáticas, literárias, afetivas e jurídica.
Nos encontramos presos a narrativas meramente criadas e impostas, nas quais uma
pequena minoria se beneficia e colabora para contribuições em contextos fabricados:
“essa manipulação intencional da linguagem audiovisual é aceita plenamente pelo
público em geral, e seu objetivo principal é o de criar uma verossimilhança com a
realidade, passa-se pelo mundo real” (GUBERNIKOOF, 2009, p. 69). Foi no conjunto
das aulas da residência pedagógica, o espaço em que se buscou desconstruir parte desse
processo.
Após a exibição do documentário Heróis de Todo Mundo, introduzimos uma
atividade, a ideia inicial era que os alunos formassem duplas e escolhessem uma
personalidade negra para narrar sua autobiografia, prestando atenção aos detalhes de suas
histórias, como marcos significativos, frases impactantes que ressoam até o tempo
presente, como o famoso discurso popular a propalar que: “no Ceará não se embarcam
mais escravos”, e informações sobre suas profissões. Essa atividade transcorreu de forma
tímida a princípio, mas de forma qualitativa.
Nas primeiras discussões, tentamos questionar os alunos ao máximo, se eles
reconheciam a personalidade retratada pela série, se eles sabiam que aquela pessoa era
negra. Um aluno mencionou o Dragão do Mar, uma figura famosa entre os cearenses, e
confirmou que o conhecia. Quando questionado sobre onde havia ouvido falar dele pela
primeira vez, o aluno respondeu: “Em uma aula de sociologia sobre a história que nunca
foi contada”. Esse relato intensificou ainda mais o desejo de efetivar ações com
metodologias capazes de implementar as narrativas e as múltiplas histórias do povo negro
brasileiro.
Durante a mesma aula, alguns alunos demonstraram confusão em relação a cor de
pele de figuras como Machado de Assis. Esse desconhecimento acerca da cor de pele do
autor literário mais prestigiado do Brasil, levou-nos às reflexões acerca do apagamento
da história e das subjetividades e corporeidades dessas personalidades, não percebidas
em sua completude e humanidade. Essa atividade foi apenas uma introdução ao que
pretendíamos abordar nas aulas.
Na semana seguinte, planejamos uma atividade com o filme Uma História de
Amor e Fúria (2013), dirigido e roteirizado pelo cineasta brasileiro Luiz Bolognesi.
Optamos por exibir e analisar esta animação que aborda diversos períodos da história do
Brasil, desde a invasão dos colonizadores, perpassando as guerras e confrontos contra os
povos indígenas, até uma cena futurista do Brasil. O filme proporcionou uma visão
histórica, lúdica e ficcional do país, incluindo eventos frequentemente negligenciados,
como o genocídio de indígenas e o período escravagista.
O cinema é visto como uma ferramenta pedagógica poderosa, não apenas como
entretenimento, mas também para promover a discussão de imagens e desafiar narrativas
em combate às estereotipias negativas relacionadas ao povo negro.
Após a exibição do filme, conduzimos um questionário focado nos personagens
principais, explorando questões sobre quem eram os oprimidos, a cor dos oprimidos e dos
opressores, bem como suas classes sociais. O objetivo principal desse debate era estimular
uma discussão crítica sobre as injustiças sociais e raciais no Brasil.
Além disso, os alunos receberam pequenos cadernos com folhas pautadas para
que pudessem registrar suas “escrevivências”. Esse termo, criado por Conceição Evaristo,
combina o ato de escrever com a vivência, e vai além de narrar experiências individuais,
enfatizando a importância da vivência coletiva. Esses cadernos não apenas servem como
método avaliativo no final da disciplina, mas também como um meio de coletar as
experiências e reflexões compartilhadas durante as discussões em sala de aula.
Esses relatos demonstram o quanto é relevante proporcionar uma imagem positiva
do corpo negro aos alunos, suas reflexões e pensamentos são compartilhados de forma
oral e em discussões após exibição dos filmes, onde conceitos são questionados e
reflexões são encorajadas.
Tivemos alguns contratempos nessa aula, pois parecia que os alunos encontraram
dificuldades em compreender a mensagem do filme em relação aos personagens que eram
oprimidos. Tentamos estabelecer uma conexão entre o período histórico, a cor de pele
dessas personalidades e suas classes sociais. Entretanto, isso nos fez refletir sobre uma
das maiores dificuldades que encontramos nessa segunda aula, a ideia em torno do
entretenimento político, em que muitas coisas que nos afetam, principalmente as questões
de injustiça racial, são naturalizadas e suas intencionalidades, desconhecidas.
Desse modo, nos questionamos sobre quais métodos utilizar para desconstruir
essas limitações, uma vez que muitas dessas ideias foram construídas em outras fases da
experiência vivida desses estudantes, e, também, por meio de narrativas criadas na mídia
e projetos cinematográficos que frequentemente contam histórias que refletem apenas a
perspectiva do branco. Construímos referências de mundo e identificações ou
distanciamentos, por meio daquilo que consumimos, o cinema oportuniza com mais
facilidade essa catarse, e esse fenômeno se dá de forma homogeneizada e embranquecida.

Considerações finais

As experiências nas escolas Governador Adauto Bezerra e Prefeito Raimundo


Coelho Bezerra de Farias, oportunizaram o trabalho com a exibição do cinema de
temática racial produzido no Brasil, a partir da criação de argumentos e direção
majoritariamente negras. Entendeu-se o cinema enquanto uma ferramenta pedagógica no
processo de letramento racial. A combinação de produções audiovisuais com discussões
e diálogos junto aos alunos, bem como a escrita de suas próprias experiências,
desempenha um papel crucial na desconstrução de facetas do colonialismo presente nas
mentes e nos corpos do alunado.
A estratégia de utilizar autobiografias e filmes de ficção científica que apresentam
o corpo negro em contextos e espaços de poder, heroísmo e protagonismo, difere das
narrativas, em que muitos alunos estão acostumados. Isso é particularmente relevante, já
que a mídia frequentemente perpetua produções sistematicamente racializadas em
desfavor dos corpos e das corporeidades negras. A maior parte dessas produções são
consumidas sem a mediação adequada, para a compressão das intencionalidades
presentes em suas produções visuais e narrativas, que muitas vezes reforçam estereótipos
negativos construídos sobre o povo negro.
É plausível que docentes do ensino básico estruturem, mediem e perpetuem
discussões em torno da indústria cinematográfica, de modo a promover ainda mais
narrativas inclusivas, justas e, principalmente, autênticas nas mídias que consumimos.
Entendemos, portanto, que apesar de haver tímida construção social antirracista no
audiovisual, é necessário que haja mais engajamento em favor da efetivação da lei
10.639/03, por parte do poder público e da iniciativa privada, movimentos esses que
unidos serão capazes promover transformações socioculturais profundas, ressiginificando
imaginários para oportunizar novas maneiras de sociabilidade.

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