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NEGRITUDE EM JOGO:

TEATRO E IMAGEM COMO ARTE DA CONSCIÊNCIA E VALORIZAÇÃO 1

Cláudia Teixeira Pinto Araujo 2


Orientadora: Profª Ms. Alda Fátima de Souza3

RESUMO

O presente artigo tem como propósito refletir como o preconceito racial e a


discriminação se fazem presentes na sociedade jaguaquarense, reverberando até a
sala de aula, para isso o teatro, bem como outras formas artísticas viabilizaram o
conhecimento, a aceitação e a valorização do ser negro. Para tal, tomou-se como
objeto de estudo o trabalho desenvolvido com a turma do 4º Ano Técnico do Curso
de Agroindústria, do turno matutino, do Centro Estadual de Educação Profissional
em Alimentos e Recursos Naturais Pio XII, durante a realização do Estágio
Supervisionado II. Ficando evidenciado que ao fazer teatro por meio do jogo e
exercitar processos criativos por meio de atividades dramáticas os alunos
experienciaram uma nova alternativa para tornarem-se protagonistas de suas
histórias.

PALAVRAS-CHAVE: Discriminação; Opressão; Jogos; Improvisação.

INTRODUÇÃO

Jaguaquara é um município situado no sudoeste baiano, que em sua


tradicional história destaca os imigrantes italianos, japoneses e portugueses como
pilares para o desenvolvimento da cidade e na sua formação cultural;
negligenciando a importância da raça e cultura negra. Primeiramente, com o objetivo
de reconhecer a importância do negro para a história e cultura do município,
resgatando suas contribuições para o desenvolvimento de Jaguaquara como
também divulgar os feitos de alguns negros jaguaquarenses, foi desenvolvido um
1
Artigo entregue como requisito parcial para conclusão da Licenciatura Plena em Arte-Teatro, pelo
Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica – PARFOR, na Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB.
2
Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em Artes-Teatro, pelo Programa de Formação de
Professores (PARFOR), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Jequié, Bahia,
Brasil; especialista em Psicopedagogia, professora efetiva do Centro Estadual de Educação
Profissional em Alimentos e Recursos Naturais Pio XII. E-mail: claudia.raujo@hotmail.com.
3
Mestre em Artes Cênicas do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal da Bahia.
Professora auxiliar efetiva da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Jequié,
Bahia, Brasil. Artista Circense e Pesquisadora. E-mail: aldasouza.laborda@gmail.com.
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projeto fotográfico com os alunos do 4º Ano Técnico do Curso de Agroindústria, do
turno matutino, do Centro Estadual de Educação Profissional em Alimentos e
Recursos Naturais Pio XII, em que os alunos pesquisaram sobre a participação e a
importância do negro na construção da sociedade jaguaquarense, valorizando a
contribuição em vários setores, construindo assim sua verdadeira imagem.
Posteriormente, durante o estágio supervisionado realizado com esta mesma
turma, foi feito o estudo das principais características do teatro épico de Bertolt
Brecht, bem como do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, realizando-se jogos
teatrais, cenas dramáticas e a produção de uma montagem didática que foi
apresentada à comunidade escolar, tendo como principal tema o racismo.
A arte pode sempre constituir-se num instrumento disparador para a
diminuição das diferenças sociais, desta forma busca-se a compreensão de como o
teatro, entre outras manifestações artísticas no contexto do ensino aprendizagem,
podem auxiliar no reconhecimento, aceitação e valorização do ser negro, refletindo
sobre como o preconceito racial ainda se faz presente na sociedade, principalmente
na comunidade jaguaquarense, reverberando até as salas de aula.
Desta forma, pretende-se através desta pesquisa qualitativa, balizada numa
revisão bibliográfica, demonstrar a potencialidade do teatro no processo de
reconhecimento, aceitação e valorização do ser negro no contexto escolar, refletindo
como o preconceito racial e a discriminação apresentam-se na sociedade
jaguaquarense e na própria sala de aula, além de analisar a aprendizagem
significativa realizada por meio de jogos teatrais propostos, onde alunos vivenciaram
o jogo com o outro e com o espaço de criação, tomando-se como referência
norteadora toda a experiência desenvolvida com os alunos do 4º Ano Técnico em
Agroindústria.
A arte, e em especial o teatro, possibilitam que emoções, vivências e
sentimentos sejam transportados do imaginário para a realidade e vice-versa, ao
refletir sobre a discriminação racial, pretende-se enfatizar a aprendizagem
significativa, ao conscientizar o aluno da realidade na qual está inserido, ao tempo
em que oportuniza que o mesmo a modifique, ressaltando a importância de associar
as artes na aceitação e valorização do ser negro.

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IGUAIS OU NÃO?

Para o Estado todos os cidadãos são idênticos, entretanto negros e pardos


enfrentam desigualdades em uma sociedade tida como igualitária e muitos que
conseguem alcançar um grau de escolarização maior, ou passam a fazer parte de
uma elite econômica, muitas vezes discriminam também. O mesmo ocorre
igualmente na sala de aula, em que alguns alunos por não terem a pele tão escura,
não se identificam como negros e menosprezam colegas com traços da etnia mais
marcantes. Ao fazerem suas ponderações chegam a afirmar categoricamente que
“atualmente o negro não sofre discriminação”; o que vem a comprovar o que diz
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2007, p.492):

Não é raro que oriundos de grupos marginalizados pela sociedade, entre


eles negros, qualifiquem pessoas de seus grupos de origem como
preguiçosos, incompetentes, sem ambição. Revelam, eles, desconhecer, ou
conveniência em ignorar, as estruturas e relações que mantêm as
desigualdades sociais e étnico-raciais.

É função da educação possibilitar ao sujeito o acesso ao conhecimento do


que a humanidade já produziu, entretanto nem sempre aprender é prazeroso, às
vezes sendo até muito doloroso, pois sendo a escola justamente o espaço que
deveria priorizar a educação e o respeito, é ali que muitos negros sofrem
discriminação, através de xingamentos, menosprezos, descasos, injustiças; muitas
vezes ocorrendo o preconceito de maneira dissimulada, quase imperceptível. O que
leva a constatação de que sendo nítida a discriminação racial no Brasil, isto também
se reflete no âmbito escolar, e de acordo com Vanda Lúcia Sá Gonçalves (2007,
p.30):

Ao que tudo indica, a escola, que poderia e deveria contribuir para modificar
as mentalidades discriminatórias, ou pelo menos inibir as ações
discriminatórias, acaba contribuindo para a perpetuação da discriminação,
seja por atuação direta de seus agentes, seja por sua omissão perante os
conteúdos didáticos que veicula, seja pelo estímulo à segregação.

Por conseguinte, percebe-se a necessidade urgente de implementar ações


afirmativas e críticas que possibilitem a desconstrução de ideias estereotipadas, pois
apesar da Lei 10.639/2003 exigir a inclusão de conteúdos da história e da cultura
afro-brasileira nas disciplinas de História, Língua Portuguesa e de Artes nas escolas,

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nós professores da rede pública estadual não possuímos em nossas escolas
material específico para o estudo da cultura africana e sua influência na formação
cultural brasileira, o que acaba por dificultar a elaboração de propostas
metodológicas com um maior embasamento.
Na atual sociedade brasileira, a escola possui várias funções, que vão desde
desenvolvimento intelectual do aluno até torná-lo cidadão, e recai sobre nós
professores a complexa tarefa de lidar com as mais diversas ideias preconceituosas,
muitas vezes apresentadas de maneira velada, através de atitudes discriminatórias.
Assim sendo, a utilização de uma metodologia que contempla a proposta triangular,
apreciar-refletir-fazer, possibilita a construção de conhecimentos, levando os alunos
a estabelecerem relações com abordagens anteriores e experiências vivenciadas,
onde a retratação da realidade e a criatividade dramática propiciaram o pensamento
criativo e o desenvolvimento social, auxiliando na capacitação de sujeitos críticos e
emancipados.
A educação é um ato político, e como tal o trabalho na sala de aula é ao
mesmo tempo político e também prática, o que propiciou o desenvolvimento de
atividades em que os alunos foram instigados a refletirem sobre a contribuição do
negro na formação do município de Jaguaquara, a “folclorização” da colonização dos
imigrantes, e a construção, reconhecimento e valorização da identidade negra. A
linguagem teatral foi incitada e desenvolvida através da utilização dos jogos teatrais,
sendo utilizada como forma de organizar e compreender a realidade e, com o
aperfeiçoamento promovido pelas interações, conquistas e convívio com o coletivo,
auxiliou os alunos a lutarem contra as desigualdades, transformando-se em
ferramenta de empoderamento.

OS JOGOS TEATRAIS NA SALA DE AULA

Imitar a realidade aprofunda a descoberta e é uma das primeiras atividades,


rica e necessária, no auxilio do processo de eclosão da personalidade e do
imaginário que constitui um meio de expressão privilegiado do ser humano, sendo o
teatro a arte de manipular os problemas humanos, apresentando-os e
equacionando-os.
Os jogos teatrais são sempre uma experiência criativa, exercendo um caráter
insubstituível na aprendizagem por proporcionarem uma espécie de experimentação
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no campo ficcional, podendo ser utilizados na sala de aula engajando os alunos num
processo de representação simbólica, desenvolvendo ações improvisadas, ensaios
com a vida. Para sua realização é necessário um acordo grupal, o estabelecimento
de uma realidade e a estrutura do Jogo Teatral, definidos pelos aspectos onde,
quem e o quê; geralmente predispondo a existência de uma plateia, podendo a
turma ser dividida e se alterar atuando e observando.
O teatro aplicado à educação possui o papel de mobilização de todas as
capacidades criadoras e o aprimoramento da relação vital do indivíduo com o mundo
contingente; as atividades dramáticas liberam a criatividade e humanizam o
indivíduo, pois o aluno é capaz de aplicar e integrar o conhecimento adquirido nas
demais disciplinas da escola e, principalmente, na vida. O objetivo da prática teatral
na escola é o crescimento pessoal e o desenvolvimento cultural do alunado, através
da descoberta do próprio corpo e do potencial criativo, além de favorecer a
aprendizagem também atua sobre questões emocionais, estimulando capacidades,
competências e habilidades cognitivas dos alunos. De acordo com Neves e Santiago
(2009, p.75);

Torna-se possível pensar que os jogos teatrais possam ser utilizados na


educação com objetivos que extrapolem as questões pedagógicas, e
possam atingir instâncias terapêuticas num sentido que favoreça a
aprendizagem, ou até mesmo possam atuar sobre questões subjetivas que
se mostrem relacionadas a alguns sintomas de fracasso escolar,
diagnosticados nos estabelecimentos educacionais. Tais problemas, muitas
vezes, localizam-se em questões emocionais das crianças e nem sempre
são percebidos dessa forma.

De acordo com Ingrid Koudela (apud SPOLIN, 2001, p.12), o jogo teatral na
educação é uma importante forma de aprendizagem cognitiva, afetiva e psicomotora
através do processo de transformação do egocentrismo em jogo socializador. A
criatividade dramática auxilia o pensamento criativo e desenvolvimento social, pois
efetiva a passagem do teatro como ilusão, para o teatro como realidade cênica.
Ainda nos anos 1960 e 1970, Viola Spolin realizou pesquisas desenvolvendo
trabalhos com crianças e em comunidades de bairros, em cidades dos Estados
Unidos, constituindo grupos de teatro improvisacional. Sempre comprometida com a
proposta educacional, promove o conceito da probabilidade do teatro acontecer fora
do palco e estabelece uma pedagogia fundamentada no exercício e na
experimentação de jogos teatrais.

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Alguns pontos são destacados por Spolin (apud KOUDELA, 2010, p.24) como
fundamentais para que o jogo teatral produza efeitos positivos: o foco4 para resolver
o problema proposto, a instrução dada pelo orientador, a plateia e a avaliação
coletiva ao final:

As instruções dadas pelo coordenador, enquanto o jogo está em processo,


pretendem atingir o organismo do atuante como um todo. Elas surgem
espontaneamente, a partir daquilo que emerge na cena. O coordenador é o
olho e o ouvido da plateia e, ao mesmo tempo, é um parceiro que participa
do jogo teatral através da instrução. [...] o jogo de regras promove a atitude
colaborativa. Como indivíduos, somos cada vez mais isolados,
fragmentados, solitários. O tempo presente do jogo, seja durante o ato de
acertar um cesto ou marcar o gol, é o estado do processo. O atuante se
transforma, assim, em jogador que exercita o aqui/agora.

Todos os jogos teatrais realizados durante as aulas de Estágio


Supervisionado foram desenvolvidos desta maneira, sempre tendo como ponto de
partida o papel, a ação e o espaço, sem nunca perder de vista o objetivo; realizando-
se exercícios que despertaram a consciência corporal, procurando sempre deixar o
aluno à vontade para expressar-se e desinibir-se, entendendo sempre o fazer teatral
como uma prática saudável, onde o imaginário domina de uma forma espontânea,
uma vez que são fundamentais para que cada aluno aprenda sobre si, o outro e o
mundo que o rodeia.
Ao priorizar a improvisação e a ludicidade o aluno utilizava toda sua intuição,
permanecendo aberto a novas experiências, aprendendo de forma prazerosa,
pretendeu-se instigar no aluno a competência de demonstrar suas ideias, opiniões,
aspirações e vontades, ao tempo em que o teatro atua como auxiliar na formação da
personalidade, ampliando a auto expressão dos alunos, proporcionando
oportunidades para o aumento da imaginação, preparando para que atuem no
mundo criticamente.

JOGANDO COM BRECHT

Bertolt Brecht quebra paradigmas teatrais através de uma nova metodologia


de atuação, ao elaborar um teatro denominado por ele como “Épico”, onde prevalece

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Ponto de concentração, aspecto ao qual o jogador deve estar atento. O foco estabelece um
direcionamento que proporciona liberdade de criação imprescindível ao jogador, uma vez que sua
atenção estará voltada para um aspecto definido antecipadamente.
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a narrativa, que transforma o espectador em observador e desperta sua participação
ativa para modificar a realidade, se distinguindo do teatro dramático convencional,
no qual sobressai a ação, que envolve o espectador e desintegra a sua participação
ativa, sugerindo-lhe a inércia. O drama aristotélico, capaz de promover uma
verdadeira catarse e convencer o espectador de qualquer coisa pela emoção
também é evitado por Brecht, pois sua dramaturgia tem como base a filosofia
marxista, apresentando ao público problemas da modernidade, nos quais as
pessoas podem escolher uma solução individual, nunca se esquecendo de que
estão em um teatro, não havendo heróis no palco e sim personagens nos quais os
espectadores podem se reconhecer. Os textos devem apresentar atitudes humanas
tidas como habituais e o público é deixado à vontade para julgá-las e avaliar novas
possibilidades de agir em situações semelhantes.
Uma nova dramaturgia, um novo exercício de encenação e uma nova
metodologia de atuação são propostas com a criação da peça didática, que tem
como objetivo um processo de aprendizagem direcionado aos participantes, pois é
escrita com o intuito de ser vivenciada pelos atuantes. Ao invés de apenas transmitir
um conhecimento acabado, este precisa ser construído através da atuação e do
debate entre os participantes. Desta forma a peça didática ensina quando a pessoa
atua e não quando é espectador, além de conservar o prazer e diversão ao construir
o conhecimento, já que o objetivo primordial é gerar uma atitude crítica. De acordo
com Brecht (apud KOUDELA, 2010, p. 16), na peça didática, ao atuar é que se
aprende:

A peça didática ensina quando nela se atua, não quando se é espectador.


Em princípio, não há necessidade de espectadores, mas eles podem ser
utilizados. A peça didática baseia-se na expectativa de que o atuante possa
ser influenciado socialmente, levando a cabo novas formas de agir,
assumindo determinadas posturas, reproduzindo determinadas falas.

A intenção pedagógica de Brecht era trabalhar com amadores, grupos de


estudantes e operários, representando uma democratização no teatro. O processo
de aprendizagem é determinado pela forte ligação entre o gesto e o jogo de
imitação, que também estimula o comportamento político do participante,
equilibrando a ética e a estética. Ao entender a peça didática como o estímulo para
uma atitude socialmente ativa, onde participantes que produzem e não apenas
observam passivamente, procurando modificar a consciência dos envolvidos por

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meio de exercícios gestuais e maneiras em que trabalhem as suas vivências sociais,
os não profissionais se integram na prática teatral, sendo introduzidos em um
espaço lúdico que amplia o processo de “desalienação” social, dedicando a atuação
a sua própria aprendizagem.
Durante o estágio supervisionado foi utilizado o texto teatral “Isto é Racismo”
como modelo de ação que serviu como ponto de partida para a exploração das
relações humanas, enfatizando a discriminação racial, sofrendo reflexões feitas pela
turma, que não estava submissa aos ditames da peça. Os alunos puderam fazer
críticas, indagações e alterações, possuindo autonomia para reescreverem cenas,
aceitarem, se moldarem, refletindo sobre as ideias propostas e não apenas sendo
subordinados às mesmas; visto que o objetivo maior era a aprendizagem e não a
apresentação para uma plateia no encerramento do estágio.
A realização de jogos envolvendo improvisações foi fundamental para que os
alunos deixassem fluir suas indignações, medos, traumas, reivindicações; como
quando um grupo encenou um fato ocorrido com uma das alunas, sendo
discriminada na escola que estudou anteriormente, apesar de ter conseguido por
meios judiciais demitir a professora, estudando na nova escola há quatro anos, esta
aluna nunca contou a ninguém, por sentir-se marcada e temerosa de ainda sofrer
racismo. A partir de um direcionamento dado, os alunos improvisaram, criaram,
recriaram e segundo Koudela (2010, p. 17), Brecht propõe exatamente isso, a
interlocução entre sentidos atribuídos a diferentes formas de agir e de pensar:

O princípio da improvisação é entendido como um projeto desenvolvido por


um grupo de indivíduos que se reúnem para fazer um experimento a partir
de uma moldura predeterminada (fornecida pelo texto). Nesse contexto,
“trechos de invenção própria e de tipo atual podem ser introduzidos”. O
princípio da improvisação é contraposto à forma “árida” da peça didática, ou
melhor, justifica a estrutura dramatúrgica dessas peças. Através da
combinação entre invenção própria e moldura do texto, dá-se o processo de
comportamento livre e disciplinado.

O intuito maior da peça “Isso é Racismo”, adaptada e apresentada pelos


alunos do 4º Ano de Agroindústria era proporcionar um debate que conduzisse à
conscientização, servindo como porta-voz da necessidade de criticar e modificar o
comportamento da sociedade frente à discriminação racial. A plateia certamente
também foi beneficiada, uma vez que a experiência enquanto espectador foi uma
prática educativa, pois conforme Flávio Desgranges (2010, p.32):

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Ao rever os fatos de sua história, no ato de análise da obra, o espectador,
além de refletir sobre os acontecimentos da cena, formula pensamentos
críticos acerca de sua própria trajetória, detendo-se de maneira distinta,
renovada ante as suas experiências pessoais, estando em condições de
produzir respostas inesperadas para as mesmas questões, revendo e
recriando possibilidades para sua existência.

IMAGINANDO AUGUSTO BOAL

Augusto Boal, ainda nos anos 1960, combatendo todas as formas de


opressão, criou o Teatro do Oprimido, uma metodologia desenvolvida durante
variados estágios de sua vida, tanto na América Latina quanto na Europa, que faz
uso do teatro como instrumento de trabalho político, social, estético e ético, a favor
dos explorados e oprimidos, colaborando para a transformação social; uma
ferramenta eficiente para a apropriação de uma consciência de libertação para a
cidadania.
O jogo é a base do Teatro do Oprimido, que apesar das regras permite uma
liberdade criativa, capaz de remover a mecanização do corpo e da mente alienada
às ocupações do cotidiano, havendo uma variedade de técnicas que constituem sua
riqueza enquanto metodologia de libertação. A pretensão é transformar o
espectador, que apesar de pensar e refletir criticamente sobre a realidade
observada, assume uma forma passiva diante do teatro convencional, em espec-
tator, sujeito atuante, protagonista e transformador da ação dramática
No Teatro-Imagem intenciona-se ensaiar uma transformação da realidade,
utilizando imagem corporal. Sem o uso da palavra, trata-se sobre um problema que
tenha significado para a maioria do grupo participante. No início, as técnicas
utilizadas eram muito simples, quase intuitivas, posteriormente foram desenvolvidas
outras mais elaboradas e complexas.

A assim chamada imagem de transição tinha por objetivo ajudar os


participantes a pensar com imagens, a debater um problema sem o uso da
palavra, usando apenas seus próprios corpos (posições corporais,
expressões fisionômicas, distâncias e proximidades etc.) e objetos. (BOAL,
2009, p. 5)

Meio século após o surgimento desta forma de fazer teatral, percebe-se o


quanto ela é atual, traduzindo anseios que não se encontram palavras para exprimir
facilmente. Durante a realização no estágio do jogo Imagem Viva, a turma foi

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separada em grupos, elaborando situações que queriam demonstrar em forma de
imagem e apresentando para os colegas. Ao analisar as imagens exibidas, os
alunos perceberam que os temas mais recorrentes foram a violência e a
discriminação, seja ela racial, de gênero ou social, muito provavelmente por estarem
vivenciando as mesmas no seu dia a dia, encontrando no teatro uma forma de
denunciar, desabafar, protestar, reivindicar seus direitos.
Boal (2005, p. 34) alerta sobre a necessidade de ampliar o sentido da visão,
enxergando-se além das aparências, dando significado ao que é visto:

Essa necessidade baseia-se, porém, na enorme diferença que existe entre


olhar e ver. Estamos habituados a usar nossos olhos para olhar tudo e
sempre, mas, em geral, vemos muito pouca coisa [...] Estamos habituados a
olhar imagens que não nos deixam ver outras imagens, as quais poderiam
passar diferentes informações.

Fazendo uma pequena analogia, com o avanço tecnológico, todos os alunos


possuem uma câmera fotográfica em seus celulares e demonstram através de suas
próprias imagens muitos dilemas pelos quais atravessam cotidianamente, mas ao se
reunirem com outros colegas/amigos manifestam sentimentos/mazelas que muitas
vezes não dizem respeito apenas a eles particularmente, mas a outros pares,
retratando problemas sociais, existenciais. Capturando a imagem do negro
jaguaquarense e suas contribuições para a formação do município, os alunos
transformaram a escola num espaço formidável para a construção de identidades
sociais. Ao deixarem apenas de assistir aos fatos e colocarem-se em cena como
protagonistas, mesmo que timidamente, esses alunos já começam a conscientizar-
se que são seres autônomos.
Os jogos do Teatro do Oprimido foram utilizados com os alunos no estágio
como um ensaio para a vida, uma oportunidade para experimentar variadas
maneiras de atuação, de reivindicar soluções para situações de opressão,
dialogando e refletindo sobre circunstâncias da realidade a qual estão submetidos.
Posicionando-se como opressores ou como oprimidos, através de suas ações,
discutem formas de opressão e maneiras de combatê-las; ao darem voz às mazelas
sofridas, praticam possibilidades para a superação, resolução do problema, desta
forma ensaiam alternativas para a modificação de suas realidades, sempre atentos
para saberem seus papéis sociais dentro e fora do palco, pois são seres
transformadores.

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Creio que o teatro deve trazer felicidade, deve ajudar-nos a conhecermos
melhor a nós mesmos e ao nosso tempo. O nosso desejo é o de conhecer
melhor o mundo que habitamos, para que possamos transformá-lo da
melhor maneira. O teatro é uma forma de conhecimento e deve ser também
um meio de transformar a sociedade. Pode nos ajudar a construir o futuro,
em vez de mansamente esperarmos por ele. (BOAL, 2009, p. 5)

É imprescindível que não sejam desperdiçadas as chances de travar diálogo


com as situações de discriminação racial, utilizando ações, reações, posturas e
ideias para dialogar com as opressões, seja enquanto oprimidos e até opressores,
uma vez que, até pela fragilidade humana, é mais fácil posicionar-se sempre como
vítimas, merecedores de compaixão e solidariedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola é um espaço, em que além de aprender conteúdos diversos,


também são compartilhados valores, crenças, hábitos, preconceitos e
discriminações, fazendo-se necessário então que a educação ocorra como um
processo de humanização, tendo-se o cuidado de não reforçar estereótipos. Ao
instigar no aluno a competência de demonstrar suas inseguranças, aspirações,
traumas, complexos, opiniões e reivindicações, atribuindo à arte a capacidade de
agir como facilitador da formação da personalidade e da cultura, propiciou-se o
processo de construção da identidade negra e valorização da etnia, priorizando a
ação do aluno no seu meio social, através de atividades que ampliaram sua
autoexpressão, oportunizando o aumento da confiança, fortalecimento do
conhecimento, preparando-o para agir no mundo com criticidade.
Há milênios o encantamento promovido pela imitação do mundo exterior
tornou-se um fator essencial para o homem se expressar e se comunicar com seus
pares e com a própria natureza, além de transmitir as sensações e experiências que
o mundo a sua volta lhe proporcionava, isto ainda hoje é proporcionado pelo teatro;
assim sendo a dramatização foi utilizada como forma de organizar e compreender a
realidade e, com o aperfeiçoamento provindo das interações, conquistas e convívio
com o coletivo, auxiliou os alunos a irem se adaptando às complexidades do mundo,
reivindicando seus direitos de forma efetiva.
O uso dos jogos teatrais no âmbito da educação promove e estimula as
funções cognitivas envolvidas nos processos de aprendizagem, auxiliando na

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resolução de questões relativas à subjetividade. O que pode, acertadamente, se
configurar como uma prática pedagógica e uma prática subjetiva, constituindo-se
como uma possibilidade de valorização e crescimento da autoestima, assim sendo,
esta foi a principal proposta oferecida durante o estágio, ou seja, fazer teatro por
meio do jogo e exercitar processos criativos por meio de atividades dramáticas. As
práticas teatrais aconteceram em diversos espaços, o palco não foi visto como fator
preponderante para a existência do teatro, pois teatro é jogo, é troca entre pessoas,
entre plateia e atores, entre atores e atores que jogam, que encenam e sentem
alegria em assistir/criar/fazer uma cena. As aulas oportunizaram o encontro entre
professor/aluno/colega como parceiros de jogo, que interagiram, comunicando,
experimentando, respondendo e descobrindo, em variados espaços como o pátio, a
sala de jogos, sala de aula, a cantina, o pomar.
O teatro é uma maneira de apresentar à sociedade os fatos cotidianos a fim
de que o espectador os julgasse, servindo como depoimento e documentação. Na
peça “Isso é Racismo”, apresentada pela turma do 4º Ano Agroindústria ao final do
estágio, os alunos aprenderam enquanto atuaram, além de conservar o prazer e
diversão ao construir conhecimento. As turmas que assistiram ao espetáculo
também demonstraram terem entendido a proposta, inquietando-se com os
questionamentos, angustiando-se com as situações de racismo apresentadas e
concordando ao final que muitas vezes, nas ocasiões mais corriqueiras, eles
próprios discriminavam ou eram discriminados.
Se por um lado houve desafios, por outro ocorreu a oportunidade de enfrentá-
los e vencê-los, chegando ao reconhecimento da importância do ensino do teatro,
que se torna relevante ao proporcionar uma aprendizagem significativa por meio da
vivência e da experimentação individual e coletiva, oportunizadas pela criação
artística. Consequentemente é encantadora a possibilidade que o teatro possui de
intervir positivamente na formação dos alunos, estimulando o processo de
aprendizagem e desenvolvimento dos mesmos, em seus planos cognitivos, afetivos
e psicomotores. Desde a Grécia Antiga, quando os opressores perceberam o poder
da arte, pois a mesma era utilizada para manifestar as insatisfações do povo,
passaram a utilizá-la como forma de manipulação, o que ocorre até os dias atuais.
Assim sendo, por que não utilizar as mesmas armas para combater as situações de
opressão? Uma vez que o ser humano aprende a partir do que percebe, do que
experiência, o teatro deve ser utilizado como canal para a libertação.
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A pretensão não era formar ou despertar atores, mas sim auxiliar no processo
de reconhecimento, aceitação e valorização do ser negro, refletindo como o
preconceito racial e a discriminação apresentam-se na sociedade jaguaquarense e
na própria sala de aula, fortalecendo o empoderamento e armando os alunos para a
luta contra as desigualdades.
Quando a negritude está em jogo, entra em cena o teatro como promotor da
consciência e da valorização, criando a imagem de sujeitos críticos e emancipados
ao tornar os alunos protagonistas de suas próprias histórias.

REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2009.

_____, Augusto. O Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. Editora


Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2005.

DESGRANGES, Flávio. A experiência teatral como prática educativa: a posição


do espectador. In: Provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2010.

GONÇALVES, Vanda Lúcia Sá. Tia, qual é meu desempenho? Percepções de


professores sobre o desempenho escolar de alunos negros. (Coleção Educação e
Relações Raciais,7) –Cuiabá: EdUFMT, 2007.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. 2ª ed. São Paulo:


Perspectiva, 2010.

NEVES, Libéria Rodrigues; SANTIAGO, Ana Lydia B. O uso dos jogos teatrais na
educação: possibilidades diante do fracasso escolar. SP: Editora Papirus, 2009.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no


Brasil. Educação. Porto Alegre/RS, ano XXX,n.3(63), p. 489-506, set./dez.2007.

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SPOLIN, Viola. Jogos teatrais na sala de aula: um manual para o professor.
Tradução Ingrid Dormien Koudela. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

______, Viola. O jogo teatral no livro do diretor. São Paulo: Perspectiva, 2001.

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