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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
GREICE DUARTE DE BRITO SILVA

POÉTICAS NEGRAS, FORMAÇÃO E PRÁTICA DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL:


ARTE E ESTÉTICA (EMPRE)TECIDAS

Niterói, RJ
2022

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GREICE DUARTE DE BRITO SILVA

POÉTICAS NEGRAS, FORMAÇÃO E PRÁTICA DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL:


ARTE E ESTÉTICA (EMPRE)TECIDAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação


Educação, da Universidade Federal Fluminense,
para obtenção do título de Doutora em Educação.
Linha de Pesquisa: Linguagem, Cultura e Processos
Formativos.
Grupo de pesquisa: FIAR- Círculo de estudo
e pesquisa Formação de professores, Infância e Arte.
Orientadora: Prof.a Dr.a Luciana Esmeralda Ostetto

Niterói, RJ
2022
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3
Projeto gráfico e diagramação por
Nathalia Serra

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GREICE DUARTE DE BRITO SILVA

POÉTICAS NEGRAS, FORMAÇÃO E PRÁTICA DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL:


ARTE E ESTÉTICA (EMPRE)TECIDAS

BANCA EXAMINADORA

Prof.a Dr.a Luciana Esmeralda Ostetto (orientadora) - UFF - Universidade Federal Fluminense
Prof.a Dr.a Rôssi Alves Gonçalves - UFF - Universidade Federal Fluminense
Prof.a Dr.a Marta Maia - UFF - Universidade Federal Fluminense
Prof.a Dr.a Lucimar Rosa Dias - UFPR- Universidade Federal do Paraná
Prof.a Dr.a Nelma Cristina S. B. de Mattos - IF Baiano - Instituto Federal Baiano

Prof.a Dr.a Ana Angélica Albano - UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas (suplente)

Aprovada em 08 de dezembro de 2022

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INSPiRaÇãO
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Figura 1 - Fotografia de
acervo pessoal. Avós.
Brito Silva, Greice (2017).

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AGRaDeCiMeNTOS
À rainha dos rios,
Senhora das águas que correm caladas
Água que faz crescer as crianças À intelectualidade negra da banca de qualificação.
Oxum das águas de todo som.
Às professoras doutoras Flávia Rios, Rôssi Gonçalves,
Lucimar Dias e Nelma Barbosa.

À orientação poética e política, ética e estética


da Professora Luciana Esmeralda Ostetto.

À luta pela Educação Infantil em Niterói e a valiosa


contribuição da Professora Marta Maia na banca de defesa.

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À ancestralidade por Maria Augusta de Brito,
Nely Duarte e Nelia Paula Duarte de Brito.

À irmandade de Queli e Thaís Duarte de Brito.

À saudade de Ive e Bem Duarte de Brito Silva.

Ao amor, Ricardo Augusto de Sousa Silva.


Às narrativas de formação estética das professoras
À amizade de Andrea Barros e Vanessa Coutinho. da Educação Infantil: Thayssa Menezes, Joana Oliveira,
Grace Anne Gomes, Fabina Rego, Thamyres Aparecida,
Cristina Santos, Camila Cordeiro, Carla Rodrigues, Eliete
Marcelino e Maria Letícia Felintro.

À fiação entre Formação de Professores, Infância e Arte tecida no FIAR,


círculo de pesquisa. Em especial à Xênia da Motta e Adriana Soares.

Ao apoio de todos os colegas do COLUNI-UFF.

Às contribuições teóricas e afetivas da comunidade acadêmica do Programa de Pós


Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.

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ReSuMO
Histórias, bordadas pelas vivências da negritude, re-existem nesta tese, pelos sentidos da memória. Irrompem a partir da poética de mulheres-artistas
negras, caracterizada pela beleza descolonizada, vívida e fértil, que vem de Oxum, orixá-símbolo do poder feminino. No coração da pesquisa, encon-
tram-se as artes visuais de Rosana Paulino, as escrevivências de Conceição Evaristo, as cirandas de Lia de Itamaracá, dentre outras que incorporam
culturas negras. Neste compasso, analisa a contribuição das poéticas de artistas negras para a formação docente, sob a perspectiva da relação entre
estética, arte e vida, que pela opção decolonial endossa a construção de subjetividades desmascaradas (GOMEZ e MIGNOLO, 2012; ACHINTE, 2013;
2017). Processos de formação docente, compreendidos a partir das histórias de vida e de narrativas autobiográficas (JOSSO, 2010, entre outros), foram
relacionados aos saberes ancestrais: como sankofa, símbolo traduzido pela volta ao passado em busca do que se esqueceu, e o poder da oralidade,
na tradição viva (BÂ, 1982). Tecida pelas veredas de uma metodologia errante (OSTETTO, 2019) e sob o cenário pandêmico, a pesquisa utilizou fer-
ramentas digitais para a produção de dados: a) formulário online, pelo qual uma consulta a professores e professoras da Educação Infantil da rede
pública do município de Niterói/RJ permitiu delinear um mapa dos hábitos culturais, com o conhecimento de artistas, espaços e/ou manifestações
culturais relacionadas às tradições africanas, afro-brasileiras e/ou cenários socioculturais do negro no Brasil; b) cinco encontros-ateliês narrativos,
via comunicação por vídeo, com seis professoras autodeclaradas negras, que dentre as respondentes, aceitaram o convite à interlocução. Como um
aquilombamento, a experiência de estar juntas, partilhando histórias e memórias, com suas dores e belezas, transversa ao encontro com a/na Arte e
Cultura Negras, expandiu-se em um campo formativo. O ato de compartilhar poéticas negras, abriu um campo dialógico fértil com as professoras: o
espaço para relatos de experiências de vida, provocados pelos saberes-fazeres de artistas negras, mostrou-se importante para um fazer/fazer-se liber-
tário. As narrativas evidenciaram tempos, territórios, figuras de ligação, vivências culturais, objetos biográficos das docentes e princípios estruturantes
de discursos pedagógicos. Revelaram, também, como uma escuta sensível, que considera princípios éticos, políticos e estéticos, pode conduzir a novas
situações pedagógicas, ampliando o trabalho com ERER na Educação Infantil. Incluir manifestações artístico-culturais, dar a conhecer artistas e espaços
culturais que inserem o indivíduo negrodescendente como profissional das Artes Visuais, Teatro, Dança e Música, são ações que podem desencadear
outros gestos, imagens e linguagens, fortalecendo perspectivas participativas e antirracistas. Nessa direção, os encontros-ateliês narrativos, foram vali-
dados como proposta metodológica de formação docente: ampliam a experiência com as linguagens artísticas e, quando mediados pelo contato com
poéticas de artistas negros e negras, intensificam o conhecimento acerca da arte e cultura negras, permitem apurar os significados de pertencimento
étnico-racial e alargar repertórios estéticos docentes. Confiar na poética de mulheres-artistas negras, como guia de um processo de pesquisa-
formação, reafirmou a experiência estética como processo cotidiano, tecido com os fios de uma estética que expressa um desejo de significar a vida
pela opção decolonial, no exercício de libertação de subjetividades que desloca a consciência de ser, de sentir, de pensar, de ver, de narrar-se. Uma
estética que ajuda a (empre)tecer à docência com crianças pequenas, acolhendo as diferenças, com dignidade e confiança, mesmo em condições
críticas.

Palavras-chave: Formação Estética Docente; Educação Infantil; Professoras Negras; Poética e Estética Negras; Abordagens (Auto) biográficas.

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ReSuMeN
Relatos, bordados por las experiencias de la negrura, reviven en esta tesis, a través de los sentidos de la memoria. Rompemos con la poética de las
mujeres-artistas negras, caracterizadas por una belleza descolonizada, viva y fértil, que vemos como Oxum, orixá-símbolo del poder femenino. En mi
investigación encontramos las artes visuales de Rosana Paulino, los escritos de Conceição Evaristo, las cirandas de Lia de Itamaracá, entre otras que
incorporan las culturas negras. En esta medida, analiza el aporte de las poéticas de los artistas negros a la formación docente, desde la perspectiva de
la relación entre estética, arte y vida, que a través de la opción decolonial avala la construcción de subjetividades desenmascaradas (GOMEZ y MIG-
NOLO, 2012; ACHINTE , 2013 ; 2017). Los procesos de formación docente, entendidos a partir de relatos de vida y relatos autobiográficos (JOSSO,
2010, entre otros), se relacionaron con saberes ancestrales: como el sankofa, símbolo traducido del pasado en busca de lo que falta, y el poder de la
oralidad, en la tradición viva (B, 1982). Instruida por los caminos de una metodología errante (OSTETTO, 2019) y bajo el escenario de la pandemia,
la investigación utilizó herramientas digitales para la producción de datos: la red del municipio de Niterói/RJ permitió trazar un mapa de dos hábitos
culturales, como el conocimiento de artistas, espacios y/o manifestaciones culturales relacionadas con las tradiciones africanas, afrobrasileñas y/o esce-
narios socioculturales de los negros en Brasil; b) cinco talleres-encuentros narrativos, vía videocomunicación, con seis docentes negros autodeclarados,
quienes, entre los entrevistados, aceptaron o invitaron al diálogo. Como conjunto, la experiencia de estar juntos, compartiendo historias y memorias,
con amantes y bellezas, transversales o encontradas con/en el Arte y la Cultura Negra, se expandió en un campo de formación. El acto de compartir
poéticas negras abrió un campo fértil de diálogo con los docentes: o espacio para relatos de experiencias de vida, provocados por el saber hacer de
los artistas negros, se mostró importante para un hacer/hacer libertario. Las narrativas mostraron tiempos, territorios, figuras de ligacion, experiencias
culturales, objetos biográficos de los docentes y principios estructurantes de los discursos pedagógicos. También revelaron cómo la escucha sensible,
que considera principios éticos, políticos y estéticos, puede conducir a nuevas situaciones pedagógicas, ampliando el trabajo con ERER en Educación
Infantil. Incluir manifestaciones artístico-culturales, dar a conocer artistas y espacios culturales que incluyan al afrodescendiente como profesional de
las Artes Visuales, el Teatro, la Danza y la Música, son acciones que pueden desencadenar otros gestos, imágenes y lenguajes, fortaleciendo espacios
participativos y antirracistas. perspectivas En esa dirección, los encuentros-taller narrativos fueron validados como propuesta metodológica para la for-
mación docente: amplían la experiencia con los lenguajes artísticos y, al ser mediados por el contacto con las poéticas de los artistas negros y negros,
intensifican el conocimiento sobre el arte negro. y la cultura, permiten indagar los significados de pertenencia étnico-racial y ampliar los repertorios
estéticos didácticos. Apoyarse en la poética de las mujeres-artistas negras, como guía de un proceso de investigación-formación, reafirmó la experiencia
estética como un proceso cotidiano, tejido con los hilos de una estética que expresa un deseo de significar la vida por la opción decolonial, en el ejercicio de
liberación de subjetividades que desplaza la conciencia de ser, de sentir, de pensar, de ver, de narrar. Una estética que ayuda a (empre)tejer la enseñanza
con los niños pequeños, acogiendo las diferencias, con dignidad y confianza, incluso en condiciones críticas.

Palabras llave: Formación estética del profesorado; Educación infantil; Profesores negros; Poética y estética negras; Enfoques (auto)biográficos
SuMáRiO
28 I. NO FIAR DAS LEMBRANÇAS 86 III. COMO UM MOVIMENTO SANKOFA
1.1 Imagens da arte falam de mim 34 3.1 Educação, Formação Docente
1.2 Só a palavra não basta: as artes e Abordagem (Auto) Biográfica 90
como formas de dizer 53 3.2 Narrativas De Si: Alma, Olho,
Mão Vibrando Forças Vitais 97

60 II. A POÉTICA DE NEGRAS E NEGROS


21 TEXTO,TECIDO,TEXTURA 2.1 Para aprender a ser o que se é: construir subjetividades desmascaradas 63
2.2 Experiências sensíveis da/na Arte e Cultura Negras 72
2.3 Do Rio Osun, na Nigéria: Beleza, Fertilidade e Poética Negra 81

14
134 V. ARTESANIAS DA PESQUISA-FORMAÇÃO 256 COM A POÉTICA DE
5.1 A metodologia errante transformada em fio 137 MULHERES-ARTISTAS NEGRAS:
5.2 Fio a fio, entrelaçando a pesquisa 139
5.3 A fortuna da cor nos hábitos culturais de professoras
VER E PERCEBER, VIVER E PENSAR
da Educação Infantil da Cidade de Niterói/RJ 143
5.4 Processos criativos (con)fiados em encontros-ateliês narrativos 156

100 IV. TRAMAS DA QUESTÃO RACIAL 176 VI. LEITURAS E INTERPRETAÇÕES 262 REFERÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL A PARTIR DE FORMAS VISUAIS BIBLIOGRÁFICAS
4.1 Na cidade de Araribóia, a Educação Infantil 6.1 Em estado de invenção: histórias em forma de artes 180
na Rede Pública
4.2 Relações Étnico-raciais na Educação Infantil
102
109
6.2 A escuta dá o tom ao bordado narrativo: tempos, territórios,
figuras de ligação, vivências culturais e objetos biográficos 240 278 ÍNDICE
4.3 Outras imagens, gestos e diferentes linguagens
para educar crianças 118

15
IMaGeNs
cm cada. Coleção particular.
Figura 12 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Detalhes da obra.
Coleção particular.
Figura 13 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Detalhes da obra.
Coleção particular.
Figura 1 - Fotografia de acervo pessoal. Avós. Brito Silva, Greice (2017). Figura 14 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Detalhes da obra.
Figura 2 - Fotografia de acervo pessoal. Postais do processo. Brito Silva, Coleção particular.
Greice (2020). Figura 15 - Estátua de Araribóia, na praça do mesmo nome, em frente à
Figura 3 - Sonia Gomes. Magia (2014). Costura, amarrações e tecidos estação das Barcas, em Niterói. Imagem retirada da internet.
diversos. 240 × 215 cm. https://www.premiopipa.com/pag/sonia-gomes/ Figura 16 - Painel de abertura da exposição “Histórias da infância" (2016).
Figura 4 - Rosana Paulino. Parede da Memória (1994-2015). Aquarela, https://masp.org.br/exposicoes/historias-da-infancia
manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados. Figura 17 - Pedro Peres. Fascinação (1909). Óleo sobre madeira, 35,7 X
Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. 31,2 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Figura 5 - Robinho Santana. Ibeji (2020). acrílica sobre tela, 110x130 cm. Figura 18 - Pierre-Auguste Renoir. As Meninas Cahen d'Anvers - Rosa e Azul
Acervo do Museu afro-Brasil. (1881). óleo sobre tela, 119x74cm. Acervo do Museu de Arte de São Paulo.
Figura 6 - Heitor dos Prazeres (1898-1966). Morro da Mangueira (1960). óleo Figura 19 - Bárbara Wagner, Sem título da série Brasília Teimosa (2005).
sobre tela - 100.00 cm x 120.00 cm. Acervo da Coleção Roberto Marinho. Jato de tinta, Coleção Pirelli MASP.
Figura 7 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977). “Prólogo” do caderno Um Figura 20 - Nigéria, tribo de Yoruba, região de Oyo. Exu (sem data). Madeira e
Brasil para os brasileiros (1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo outros materiais, 56 x 16,5 x 29,5 cm. Doação Cecil Chow Robilotta e Manoel
Instituto Moreira Salles. Roberto Robilotta, em memória de Ruth Arouca e Domingos Robilotta (2012).
Figura 8 - Fotografia de acervo pessoal. Negros Postais. Brito Silva, Greice (2020). Figura 21 - Foto-ensaio. Partilhas. Composto por fotografias compartilhadas pelas
Figura 9 - Grada kilomba. Table of Goods (2017). Making of da instalação. professoras durante a realização do projeto-piloto. Brito Silva, Greice (2020).
https://pinacoteca.org.br/programacao/grada-kilomba-desobediencias- Figura 22 - Renata Felinto. Nos braços da mãe Nanã o amanhã está seguro
poeticas/ (2020). Tamanho: 29,7 x 42 cm. https://projetoafro.com/
Figura 10 - Grada kilomba. Table of Goods (2017). Terra vegetal, cacau Figura 23 - Miniatura de diagramas sobre os hábitos culturais de professoras
em pó, chocolate, café moído, e em grão, açúcar e velas de cera. http:// de Educação Infantil da cidade de Niterói/RJ. Brito Silva, Greice (2021).
pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/AF06_gradakilomba_ Figura 24 - Diagrama 1: leituras. Brito Silva, Greice (2021)
miolo_baixa.pdf Figura 25 - Diagrama 2: peças teatrais. Brito Silva, Greice (2021)
Figura 11 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Instalação: impressão Figura 26 - Diagrama 3: sons e músicas. Brito Silva, Greice (2021)
digital sobre tecido, desenho, linóleo, costura, bordado. Tecidos: 180 x 68 Figura 27 - Diagrama 4: danças. Brito Silva, Greice (2021)

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Figura 28 - Diagrama 5: filmes e séries. Brito Silva, Greice (2021) patuá, do seu cartão “Pretinhosidades”, da sua tia Zete e do bilhete escrito
Figura 29 - Diagrama 6: exposições artísticas. Brito Silva, Greice (2021) para ela. Brito Silva, Greice (2022).
Figura 30 - Síntese-visual Lia de Itamaracá. Colagem digital composta por Figura 41 - Caroline: entre passado, presente e futuro. Série de três
imagens e narrativas sobre a artista. Brito Silva, Greice (2021). fotografias dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê
Figura 31 - Síntese-visual Rosana Paulino. Colagem digital composta por narrativo. Caroline Nascimento (2021).
imagens e narrativas sobre a artista. Brito Silva, Greice (2021). Figura 42 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977). “Prólogo” do caderno
Figura 32 - Síntese-visual Conceição Evaristo. Colagem digital composta Um Brasil para os brasileiros (1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus.
por imagens e narrativas sobre a artista. Brito Silva, Greice (2021). Acervo Instituto Moreira Salles.
Figura 33 - Bailarina Ingrid Silva. http://www.ingridsilvaballet.com/home-1 Figura 43 - Síntese-visual: Eliete, além da palavra. Composta com elementos
Figura 34 - Síntese-visual: Cristina, além da palavra. Composta com gráficos e quatro fotografias enviadas por Eliete: da sua mãe Lígia, da sua
elementos gráficos e fotografia digital de trecho da poesia escrita por avó Sebastiana, do bilhete escrito para ela e de uma boneca confeccionada
Cristina (2021). Brito Silva, Greice (2022) com materiais da caixa-convite. Brito Silva, Greice (2022).
Figura 35 - Cristina: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias Figura 44 - Eliete: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias
dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Cristina dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Eliete
Nascimento (2021). Marcelino (2021).
Figura 36 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977). “Prólogo” do caderno Figura 45 - Rosana Paulino. Parede da Memória, 1994-2015. Aquarela,
Um Brasil para os brasileiros (1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados.
Acervo Instituto Moreira Salles. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Figura 37 - Síntese-visual: Letícia, além da palavra. Composta com Figura 46 - Síntese-visual: Carla, além da palavra. Composta com elementos
elementos gráficos e quatro fotografias enviadas por Letícia: da criança, das gráficos e cinco fotografias enviadas por Carla: de seus registros durante
cartas de sua avó, do bloco de anotações dos encontros e de seus registros. os encontros, duas de sua avó com ela no colo, de seu patuá e do livro
Brito Silva, Greice (2022) “Crianças Negras”. Brito Silva, Greice (2022).
Figura 38 - Letícia: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias Figura 47 - Carla: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias
dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Maria dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Carla
Letícia Felintro (2021). Rodrigues (2021).
Figura 39 - Rosana Paulino. Parede da Memória (1994-2015). Aquarela, Figura 48 - Robinho Santana. Ibeji, 2020. acrílica sobre tela, 2020, 110x130
manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados. cm. Acervo do Museu Afro-Brasil.
Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Figura 49 - Síntese-visual: Camila, além da palavra. Composição com
Figura 40 - Síntese-visual: Caroline, além da palavra. Composta com fotografia enviada pela professora, de seu patuá sob sua mão. Brito Silva,
elementos gráficos e quatro fotografias enviadas por Caroline: do seu Greice (2022).

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ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil
CEB – Câmara de Educação Básica
CNE – Conselho Nacional de Educação
DCNEI - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
DCNERER - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
EDI – Espaço de Desenvolvimento Infantil
ERER - Educação das Relações Étnico-Raciais
FME - Fundação Municipal de Educação de Niterói-RJ
IESK – Instituto de Educação Sarah Kubitschek
IMS - Instituto Moreira Salles
IPN - Instituto Pretos Novos
MAC - Museu de Arte Contemporânea Niterói-RJ
MAR – Museu de Arte do Rio
MASP - Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
MnBA – Museu Nacional de Belas Artes
MUHCAB - Museu da História e Cultura Afro-Brasileira
NEST/FME - Núcleo de Estágios da Fundação Municipal de Educação de Niterói-RJ
PIBID - Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
SEEDUC-RJ – Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro
SME- Rio – Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro
UFPR - Universidade Federal do Paraná

SIGLAS E
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
UMEI - Unidade Municipal de Educação Infantil
UNIARP - Universidade Alto Vale do Rio do Peixe

ABREVIATURAS
UNIR - Universidade Federal de Rondônia

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ANEXOS
Anexo 1 - Quadro de resultados da base de dades scielo (2017-2021) - “Crianças”;
“Educação Infantil”; “Relações Étnico-Raciais”, a partir do índice “Resumos”.

Anexo 2 - Termo de compromisso da pesquisa - NEST/FME Níterói-RJ

Anexo 3 - Termo de consentimento livre e esclarecido

Anexo 4 - Índice de centros culturais destacados na consulta aos professores da


cidade de Niterói-RJ atuantes na educação infantil

19
20
TEXTO,
TECIDO,
TEXTURA
21
Abro a caixa-convite. Admiro as materialidades que estão dentro dela. São
miudezas que chamam à artesania. Entre botões, agulhas, retalhos de tecidos,
linhas coloridas, alinhavo as primeiras palavras para apresentar a pesquisa que
foi construída pelas bases criativas e sensíveis de uma professora das infâncias
que se faz pesquisadora, sonhando e tecendo seu próprio texto-tecido. Uma pro-
fessora-pesquisadora que admite a dúvida, desvia-se, comete erros e acertos ao
fazer pesquisa em Educação. É também uma mulher negra que viveu os dramas
inéditos de uma crise sanitária mundial provocada pela pandemia de Covid-19,
mergulhada nas telas, acompanhando a repercussão midiática a favor dos direi-
tos da população negra. Tudo isso é demasiado relevante, uma vez que se passa
durante a produção desta tese.
Texturas mais suaves, como o feltro colorido e o anis estrelado, com sua
forma e seu aroma delicados, também estão na caixa-convite que eu abro. Da
miscelânea que visualizo e sinto, saltam aos olhos as estampas africanas da
tricoline, como a apontar que há outras dimensões, bordadas pelas vivências
da negritude, a se considerar. Outras histórias, re-existentes pelos sentidos da
memória. Simbolicamente, esses elementos delineiam a tese, intitulada “Poéti-
cas Negras, Formação e Prática Docente na Educação Infantil: Arte e
Estética (empre)tecidas”, fruto da pesquisa de doutorado que pretendeu ana-
lisar a contribuição da poética de artistas negras para a formação docente, sob
a perspectiva da relação entre estética, arte e vida, propondo encontros-ateliês

22
narrativos como dispositivo de produção de dados. Configura- através de narrativas autobiográficas; 3) Promover encontros
da como pesquisa-formação, já marca um diferencial: a pro- com a poética de artistas negras e negros e analisar sua vali-
dução não é apenas de dados, pois ao compartilhar poéticas dade como forma de incorporar referências estéticas e ampliar
de artistas negras com um grupo de professoras, abre-se um repertórios artístico-culturais docentes; 4) Analisar a utilização
campo dialógico para suscitar narrativas autobiográficas e, ao de múltiplas linguagens e a experimentação de diferentes ma-
mesmo tempo, um campo formativo, seja na reflexão sobre terialidades como canais para a rememoração e para falar de
os repertórios artístico-culturais constituídos ao longo da vida, si; 5) Discutir a realização de encontros-ateliês narrativos como
seja na ampliação deles. metodologia de formação continuada e suas implicações a fa-
Algumas questões iniciais são como alfinetes na marca- vor da ERER na educação infantil.
ção do desenho deste estudo: A formação docente pode con- Botões coloridos, flores artesanais, folhas e flores secas,
tribuir para a educação das relações étnico-raciais (ERER) na retalhos, papéis, cartões, fios, linhas e fitas, materiais e objetos
educação infantil, considerando a dimensão estética? O que diversos que formam uma espécie de mini-ateliê portátil, aju-
dizem docentes da Educação Infantil sobre hábitos culturais, a dam a reunir sentido e inspiram o fazer à mão nesta pesquisa.
presença de artistas negros e negras e o acesso espaços e/ou No fiar das lembranças, o primeiro capítulo, teço me-
manifestações culturais que representem as tradições africa- mórias, provocadas por imagens e encontros com as artes de
nas, afro-brasileiras e/ou os cenários socioculturais do negro? maneira ampla e com as culturas negras. Detive-me no en-
É possível, aos professores e às professoras, incorporar refe- velope com os cartões postais, que estavam dentro da caixa
rências estéticas e ampliar repertórios artístico-culturais consi- mini-ateliê, para escrever a seção Imagens da Arte falam de
derando a interlocução com poéticas negras? mim, considerando a seleção de seis imagens da arte que, no
Conduzida pelos fios de curiosidade e provocações in- exercício de imaginação e articulação de sentidos, compõem
vestigativas, a partir de tais perguntas, tracei alguns objetivos: meu retrato. Essas reproduções carregam elementos das artes
1) Mapear informações sobre hábitos culturais e presença de visuais que, de maneira poético-figurativa, acionam fios con-
artistas, espaços e/ou manifestações culturais que represen- dutores às histórias da minha vida e que, por conexões sub-
tem as tradições africanas, afro-brasileiras e/ou os cenários jetivas, narram minhas experiências sensíveis como mulher,
socioculturais do negro; 2) Identificar experiências da forma- educadora, pesquisadora e negra, que toma para si a tarefa
ção estética de professoras que atuam na educação infantil, de se pensar para então pensar com outras mulheres suas exis-

23
tências e trajetórias de vida e formação. Em outra seção, Só a artístico-cultural de artistas negras contemporâneas.
Palavra Não Basta: As Artes Como Formas De Dizer, continuo a Na companhia de um chá, sem perder de vista os detalhes,
abordar sobre o encontro com as artes no entrelaçamento com sigo atenta aos processos formativos que envolvem a pessoa
as culturas negrodescentes, validando a conexão com outras na pessoa do professor, traço, no terceiro capítulo, como seu
linguagens, na busca de uma narrativa sobre o povo negro título indica, um Como um movimento Sankofa, onde en-
que implique uma desobediência poética. carnam-se os saberes ancestrais que ensinam a possibilidade
A poética de negras e negros, o segundo capítulo, de voltar atrás de si mesmo e de nós. Apresento inicialmente
afirma que a arte também é parte do modo africano de viver. as concepções que envolvem a Educação, Formação Docente
Por incorporar-se aos modos de ser e estar de gentes cariocas, e Abordagem (auto)biográfica, abordando sobre a educação
baianas, e de outras regiões do país, influencia grandemente como prática indispensável aos seres humanos, onde os sujeitos
a formação artística e cultural no território brasileiro. Pelo reco- dialógicos aprendem e crescem na diferença. Detenho o olhar
nhecimento e valorização de outras existências, principalmente para os processos formativos, considerando uma Abordagem
uma afirmação das gentes negras, a sessão de abertura traz Biográfica Da Formação, vislumbrando diálogos com os estu-
o tema Aprender A Ser O Que Se É: construir subjetividades dos das histórias de vida em formação a partir das abordagens
desmascaradas. Coloca em perspectiva a relação entre estética (auto)biográficas. Neste contexto, Narrativas De Si: Alma, Olho,
e vida, a autonomia da arte e a legitimidade das diferentes ati- Mão Vibrando Forças Vitais valoriza o exercício de narrar nas
vidades artísticas desenvolvidas pelas diversas culturas, a partir bases da tradição africana, no poder da oralidade e da pala-
da produção teórica que questiona a relação entre coloniali- vra pela tradição viva. Considerando uma estratégia discursiva,
dade/modernidade; considerando Experiências Sensíveis Da/ onde cada fala/narrativa entendida como um fio, revela em sua
Na Arte e Cultura Negras, que, na segunda seção, dá destaque trama uma atividade que é estética. É preciso um coração forte
para o caráter plural do termo cultura, que envolve elementos e imaginativo para caminhar para si e desvelar suas próprias
que compõem a matriz africana, reverberando no compromis- histórias. O chá aquece e favorece nesse sentido!
so da escola com as culturas dos povos originários. Do Rio Separar por cor as linhas tipo meada. Elas lembram que
Osun Na Nigéria: Beleza, Fertilidade e Poética Negra abor- a costura é atravessada pela coloração e suas bases. No caso
da a presença do orixá-símbolo do poder feminino da beleza, das linhas, é simplesmente uma questão de cor. Na Educação,
fecundação e continuidade da vida, valorizando a produção representa um complexo tecido entrelaçado pela diversidade

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étnico-racial de um país multiétnico e pluricultural como o Bra- -piloto realizado (que fora apresentado por ocasião do exame
sil. Assim, o quarto capítulo, Tramas da questão racial na de qualificação e fundamentou a continuidade da pesquisa), a
Educação Infantil, é composto por três seções. Na cidade de fim de experimentar os dispositivos escolhidos e analisar seus
Araribóia, a educação das crianças, oferece um quadro geral limites e possibilidades, em Fio a fio, entrelaçando a pesqui-
da cidade em que foi realizada a pesquisa, Niterói-RJ, traz o sa. A pesquisa realizou-se durante o contexto pandêmico, e
contexto da sua rede pública de ensino, a partir de um breve utilizou ferramentas digitais para a produção de dados. Ini-
histórico e de atos normativos que a regulamentam. Seguida- cialmente, um convênio, firmado com o município de Niterói-
mente, o tema das Relações étnico-raciais na Educação Infantil -RJ, tornou possível a realização de consulta (via aplicativo de
considera desafios e possibilidades para a reestruturação das gerenciamento de pesquisas do Google) aos professores da
relações étnico-raciais e sociais na educação infantil, garantin- Educação Infantil sobre hábitos culturais e presença de artis-
do as conquistas dos movimentos sociais e de intelectuais ne- tas, espaços e/ou manifestações culturais relacionadas às tra-
gras que destacam-se na implementação de ações afirmativas, dições africanas, afro-brasileiras e/ou cenários socioculturais
na direção do conhecimento e valorização da História e Cultu- do negro no Brasil. As informações compuseram um mapa co-
ra Africana e Afro-Brasileira. No que tange o fortalecimento do letivo, ajudando a perceber quais referências negras resistem
trabalho com ERER, uma escuta sensível, que considera princí- nos processos formativos e apresentam-se como referências às
pios éticos, políticos e estéticos no cotidiano e viabiliza a expe- escolhas pedagógicas dos professores, como podemos acom-
riência com artes e suas linguagens, revela-se como estratégia panhar em A fortuna da cor nos Hábitos Culturais De Professo-
acertada na Educação Infantil, de acordo com a seção Outras ras Da Educação Infantil De Niterói. Pela oportunidade de fiar
imagens, gestos e diferentes linguagens para educar crianças. histórias e alinhavar passado e presente, a última seção intitu-
Um fazer artesanal mobilizou os movimentos da pesquisa. la-se Processos criativos (con)fiados em encontros-ateliês nar-
Nas artesanias da pesquisa-formação é um capítulo que rativos. Detalha a continuidade da pesquisa, que contou com
assegura a sensibilidade e a criatividade como indispensáveis seis professoras, autodeclaradas negras, dentre as responden-
neste “fazimento” de professora-pesquisadora. Dispositivos te- tes do referido formulário que se dispuseram a participar como
órico-metodológicos da investigação ocupam o quinto capítu- interlocutoras-narradoras-colaboradoras em cinco encontros,
lo, onde exponho A metodologia errante transformada em fio realizados entre os meses de agosto e setembro de 2021, sus-
apresentando processos da pesquisa. Explico sobre o estudo- tentados e gravados pelo serviço de comunicação por vídeo

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desenvolvido pelo Google. Com a proposição de encontrar-se car as trajetórias de formação e suas implicações, identificar o
com a poética de três artistas negras: Lia de Itamaracá, Rosana quê nutriu esteticamente cada uma, quando, onde, como, com
Paulino e Conceição Evaristo, da caixa-convite à provocação quem alimentaram sua sensibilidade.
com diferentes linguagens para narrar-se, a pesquisa (con)fiou Como quem alinhava pontos, cheios e vazios, dou visibi-
na ideia de ateliê como lugar que acolhe processos criativos e lidade às marcas do sensível nas considerações finais Com A
incita a profusão de narrativas. Poética De Mulheres-Artistas Negras: Ver E Perceber,
Leituras E Interpretações A Partir De Formas Visu- Viver E Pensar repercute como essa interlocução abriu um
ais, sexto capítulo, abre-se ao diálogo com o campo da Arte, campo dialógico fértil com as professoras: o espaço para rela-
valorizando a dimensão artística na pesquisa em Educação. tos de experiências de vida, provocados pelo encontro com a
O contato com a arte traz inúmeras possibilidades e compre- arte e os saberes-fazeres de artistas negras, mostrou-se impor-
ensões sobre nós mesmos. Seguindo seu traçado, Em estado tante para um fazer/fazer-se libertário.
de invenção: histórias em formas de artes, aponta-se uma di- No tecido, na tese, imagens e palavras são incorporadas.
versidade de elementos simbólicos e materiais suscitados nos Ora independentes, ora compostas e ensaiadas com outras.
encontros com as três artistas negras referidas. No exercício Apresentam uma ideia, um pensamento visual, representando
de voltar-se para si, foi fecunda a utilização de múltiplas lin- a multiplicidade que caracteriza a diversidade. Não pretende
guagens e a experimentação de diferentes materialidades. A ser uma ilustração do tema. Caminha no diálogo com a pes-
partir dos sentidos reunidos nos materiais biográficos, apre- quisa científica que é também artística. Toda produção visu-
sento nesta seção: Energia de Cristina Santos, Vozes de Maria al foi realizada especificamente para essa pesquisa a fim de
Letícia Felinto, Sementes de Caroline Nascimento, Encantos de apurar os sentidos da pesquisadora que investiga a dimensão
Eliete Marcelino, Vôos de Camila Cordeiro, Heranças de Carla estética, tarefa nada fácil que demanda olhar, escutar e sentir
Rodrigues. Na seção Análise interpretativa de material biográ- no pensar e no fazer em relação.
fico em três tempos, tendo a escuta como princípio, apresento As páginas finais apresentam as referências bibliográficas
o trabalho co-interpretativo sobre os processos de formação utilizadas na formulação desta pesquisa. Apresento os anexos
anunciados nas narrativas, evidenciados entre tempos, territó- com quadros elaborados a partir da pesquisa e um índice dos
rios, figuras de ligação, vivências culturais e objetos biográfi- centros culturais em destaque no levantamento realizado junto
cos. Uma análise em três tempos permitiu entender e signifi- às professoras de Educação Infantil da Cidade de Niterói/RJ.

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Antes de fechar a caixa-convite, ob-
servo um código. Ele encaminha para a
lista de músicas CIRANDAR, disponível
no aplicativo spotify. Fácil de ser escane-
ado pela câmera do celular, mesmo sem
ter o aplicativo instalado. Antes ou depois
da leitura da tese, vale a pena conhecer
as músicas que fizeram parte da pesqui-
sa. Fica aqui o convite para acessar o có-
digo disponível ao lado, entrar na roda
e deixar o corpo embalar-se pelo ritmo,
conduzir-se pela voz de Lia de Itamaracá,
Clementina de Jesus, Mariene de Cas-
tro, Juçara Marçal, dentre outros. Mú-
sica, poesia e arte para apreciar, unir e
curar. Para dançar ciranda é preciso mais
gente! Anuncia uma das professoras, na
pesquisa. Imaginemos então a educação
como uma ciranda sem fim.

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28
NO FIAR
DAS LEMBRANÇAS
I 29
Desfiar, esgarçar, afastar. Se você reparar o tecido, a ausência de um viés é logo sentida. Fixado nas extremidades,
aquele aparato tem a função de evitar desgastes. É um item importante para a boa costureira. Ao mesmo tempo, pode ser
um recurso alternativo. É contínuo, compõe o tão sonhado acabamento da peça. Assim, na trama da educação infantil, não
é ousadia dizer que, às bordas, estão seus profissionais com fios de histórias de vida e suas experiências, nem sempre no-
tadas. Há quem acredite ainda que a professora negra é apenas um detalhe, como um viés decorativo. Indico a todos que
reparem bem na sua trajetória firme. É por este fio, que a presente tese tece a costura, o fazimento, a união e aproximação
de estética, arte e vida, na pretensa análise da contribuição da poética de artistas negras para a formação de professoras
da Educação Infantil.
Contrário ao esgarçamento, fiar é a atividade de fazer tecido. Ou, ter fé e confiar. Para mim, é dar forma à rememora-
ção da vida. Como quem costura o passado, alinhava experiências que fizeram/fazem a vida pulsar com pontos de estesia.
É nessa tessitura, com o frenesi de uma aprendiz, intensa e agitada, que faço costuras e rupturas. Uso a narrativa para,
através de minha voz, dar visibilidade aos sentidos de meu pertencimento étnico-racial, dando continuidade a um processo
iniciado anos atrás: foi trazendo o passado ao presente, na produção do memorial de formação durante o mestrado (SILVA,
2017), pela via da sensibilidade, encontrei minha avó Maria, sua casa-museu, meu quintal de brincadeiras; na cidade do
Rio de Janeiro, tracei meu mapa das artes, que passava pela Casa Daros; construí meu itinerário de formação da sensibi-
lidade, de percepção estética, no curso dessas experiências.

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Atenta aos detalhes, no processo de perceber meu perten- a proposição de encontros-ateliês narrativos, buscando oferecer
cimento étnico-racial, encontrei narrativas e poemas de Concei- às participantes materiais e canais expressivos, que contribuís-
ção Evaristo de Brito. Aquelas histórias com enredos fortes pare- sem para rememorar e para falar de si, que abrissem possibili-
ciam-me familiares. Contribuíram na ampliação do meu olhar dades de experimentação com diferentes materialidades e o uso
para a atividade de escreviver iniciada no mestrado. A escritora de diferentes linguagens. Iniciei este movimento por mim: para
assume que toda sua escrita é fruto de suas experiências de vida. compor este primeiro capítulo, abri uma das caixas-convite à
Na abertura de sua dissertação de mestrado (BRITO, 1996), afir- criação, que preparei para enviar às professoras-participantes.
ma que “A literatura negra é um lugar de memória”. Escreve as
Reparei nos materiais e objetos, detive-me no envelope com os
lembranças dos sofrimentos da escravidão, a luta cotidiana de
quinze cartões postais – uma série criada por mim.
mulheres negras e a esperança de novos tempos.
Ao abrir o envelope, meu olhar buscava por linhas e cores,
Eu me encontrei ali. Fui levada a pensar em minhas ex-
traços e técnicas, elementos das artes visuais, formas e conteúdo,
periências. Sempre tive prazer em estudar. Menina, passava
que de maneira poético-figurativa acionaram fios condutores às
tempo escrevendo histórias de personagens imaginários. E,
histórias da minha vida e que, por conexões subjetivas, suscita-
toda vez que “desperdiçava” papel com essas escritas que não
eram da escola, minha avó Maria repetia: _ Seu pai não ganha ram narrativas. As mãos selecionaram imagens que falam: seis

dinheiro sentado, menina! Para não gastar folhas de caderno, imagens da arte que compõem um retrato de mim.

ela me entregava papel de pão. Aquele papel grosso, pardo, A proposta de utilizar postais com imagens de obras de
mostrava-me a realidade difícil de nossa condição. Uma fa- arte foi inspirada no dispositivo utilizado por Ostetto (2021), a
mília de trabalhadores negros, que tinha a educação como que a autora chamou de “Como se fora meu retrato: a imagem
herança e esperança, não podia brincar com a sorte. Honran- da arte fala de mim”. Utilizado em suas aulas com estudantes
do essa herança, segui em frente. Fiz-me professora-pesquisa- de Pedagogia, a proposta sustentava-se no ato de oferecer ao
dora. Hoje, no processo de doutoramento, o que mais faço é grupo postais com reproduções de obras de arte, de diferentes
procurar formas de dizer, de falar, de escrever – para mim e artistas – dispostos em uma pequena caixa, que passava de
para os outros, comigo e com os outros. mão em mão –, convidar a apanharem, aleatoriamente, um
Como já anunciei na abertura da tese, e vou detalhar mais postal para, a partir dele, cada um falar de si “como se” a
adiante, o percurso metodológico deste trabalho foi traçado com imagem estampada fosse uma retrato de si.

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A mesma proposta foi utilizada na pesquisa de Ostetto e Levando em conta meus objetivos e a temática explícita, eu
Folque (2021), com o objetivo de aproximação a um grupo de mesma selecionei imagens de obras de artistas negros e negras,
professoras em formação, como um modo de apresentação compus cartões postais, encaminhei à gráfica para, depois, se-
pessoal e visando às primeiras narrativas de si. Nesse contexto, rem utilizados nesta pesquisa, nos encontros-ateliês a serem
depois de convidarem as participantes a pegarem um postal, desenvolvidos com professoras (dos quais falarei adiante). Foi
dentre vários disponibilizados, as pesquisadoras propuseram olhando para o conjunto de imagens impressas nos postais que
a cada uma: teci as narrativas que se seguem, nas quais vou articulando,

[...] olhar a imagem que lhe coube, convocar


também, conceitos-chave que dão sustentação à tese.
a imaginação e, em um exercício de reflexão
sobre características e modos pessoais de ser,
falar de si “como se”. E então, no diálogo com
as cores, as formas e os temas estampados no
cartão que tinham em mãos, as participantes,
uma a uma, apresentavam-se ao grupo como
se, ali, naquela imagem/obra, estivesse estam-
pado o seu retrato. Além de ser uma provoca-
ção para ampliar olhares sobre si mesmas e se
imaginar, estabelecendo conexões subjetivas,
pertencentes a cada uma em particular, era
um convite para que reavivassem histórias e
tecessem narrativas, enunciando ao grupo um
retrato de si, pela palavra falada. (OSTETTO;
FOLQUE, 2021, p.7).

Segundo as autoras, o dispositivo referido permitiu ativar


a imaginação das participantes, abrindo possibilidade para a
rememoração, puxando fios que conduzissem, de maneira po-
ético-figurativa, às histórias constitutivas de suas existências.
Considerei um caminho fecundo, utilizar postais para suscitar Figura 2 - Fotografia de acervo
narrativas, na minha pesquisa. pessoal. Postais do processo.
Brito Silva, Greice (2020).

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1.1 IMAGENS DA ARTE FALAM DE MIM

Minha avó Maria Augusta é reconhecida como uma figura forte na minha história
de vida e formação. Esta ancestral negra é minha inspiração. Ainda criança, minha
avó, teve que trabalhar como lavadeira nos riachos do morro da Pedra Branca. Ela ser-
via às famílias de proprietários da fábrica de Tecidos Bangu. uma importante indústria
de tecidos nacionais, localizada no bairro de Bangu, no Rio de Janeiro, que operou
entre 1889 e 2004. Foi na casa de uma dessas famílias que minha avó, quando moça,
aprendeu a escrever o primeiro nome. Mais tarde, teve registro civil e sobrenome so-
mente ao casar-se com meu avô. Sofreu abusos e violência no casamento. Criou meu
pai e mais seis filhos homens. Perdeu sua única filha. Educou ainda netos e bisnetos.
A relação com meus avós paternos e maternos foi fundamental para minha forma-
ção. Foi com eles que descobri, ainda criança, minha paixão por museus. E foi através
da minha avó Maria que passei a apreciar obras de arte. Não aquelas criadas por re-
nomados artistas, ela nunca me explicou sobre Arte. Mas levou meu olhar a contemplar
suas artes, aquelas “coisas” que ela tecia ou torcia, com amarrações e costuras, utili-
zando panos coloridos, plásticos e fios, pelo quintal. Ela passava seu tempo cuidando
da casa e das plantas, ao mesmo tempo que criava crianças e tornava mais agradável
o espaço em que eu e minhas irmãs brincávamos, onde a família se reunia e convivia.

Vez ou outra, alguém dizia “Vai lá no museu da sua avó vê se encontra algo
para brincar”. E eu fui tantas e tantas vezes! Minha avó guardava objetos
antigos e para tudo que entrava em desuso ela encontrava um uso. Aquele
era meu paraíso. Podia mexer e brincar; a regra era só depois colocar de
volta no lugar. Bolsas de casamentos, vestidos de festa, manta de nascimen-
to, cada objeto que desenterrávamos tinha uma memória e uma história que Figura 3 - Sonia Gomes. Magia (2014). Costura,
minha avó contava. (SILVA, 2017, p. 27) amarrações e tecidos diversos. 240 × 215 cm.
https://www.premiopipa.com/pag/sonia-gomes/

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COM A MAGIA DE SONIA GOMES,
REENCONTRO A ANCESTRALIDADE CRIADORA

Também fala de mim a obra Magia (2014), de Sonia Gomes. A artista mineira,
reconhecida como "mãos de ouro", tece sua produção por meio da costura, torções, con-
fluências e união de arame, rendas, tecidos, papel, linhas, papelão, bordados. Na sua
obra, diz, há uma fusão de muitas lembranças: traz a influência forte da avó, parteira,
benzedeira e useira de rodilhas na cabeça; da família, herdou a ruminação dos guarda-
dos, das fotos, dos retalhos de tecidos, diz.
Contemplar a magia de Sonia Gomes é reencontrar as criações de minha avó Ma-
ria. Vejo sua lata de biscoito transformada em estojo de costura e suas bolsas com ma-
lhas e tiras de chita. E ainda sinto o cheiro das roupas molhadas e sempre remendadas.
Tecidos e linhas lembram também a outra avó, que me ensinou as primeiras tramas de
crochê e do bordado. Recordam as peças de artesanato do nordeste brasileiro, como o
bumba meu boi que ficava na sala da casa da minha avó maranhense, dona Nely. Bem
como suas organzas, redes, mantas e rolos de linhas coloridas. Esta obra fala de mim e
reúne os guardados das minhas ancestrais, os afetos fragmentados de minhas duas avós.
Essas memórias dão provas de minha ligação com meus ancestrais, com as culturas
de arkhé. O termo grego arkhée é usado por Muniz Sodré (1988) para caracterizar as
culturas que, tais como a negra, se fundam na vivência e no reconhecimento da ances-
tralidade. A arkhé refere-se aos princípios inaugurais que imprimem sentido e força. A
arkhé está no passado e no futuro, é tanto origem como destino (SODRÉ, 1988, p.153).
É corpo, é alma, é inteireza. Trata-se de uma dimensão que não dissocia a natureza e a
cultura. E também se integra à comunidade e a comunidade é considerada um só corpo.
Reverencio meus ancestrais. Muito obrigada! Axé!
NA PAREDE DA MEMÓRIA DE ROSANA PAULINO,
VEJO MARCAS E RASTROS QUE ANIMAM A VIDA

Outra imagem de arte na qual me vejo representada é "Parede da memória” (1994-2015), da artista visual Rosana Paulino, obra
que materializa uma investigação de sua própria identidade a partir de seus ancestrais. Na apreciação: onze retratos que se multiplicam
e disparam memórias ancestrais. É composta pela costura de 1500 “patuás”, pequenas peças usadas como amuletos de proteção por
religiões de matriz africana. Fotos de família da artista, saídas de uma caixa, contam uma narrativa que poderia ser a minha.

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A memória é um cabedal infinito do qual só registramos pura (o espírito) e a pura exterioridade (a matéria). À primeira
um fragmento, diz Ecléa Bosi (1994). Lembrança puxa lem- filia-se a memória; à segunda, a percepção. Dotada de um es-
brança, diz a autora em sua tese sobre memórias de velhos, paço profundo e cumulativo, está a memória e no espaço raso
complementando que seria preciso um escutador infinito para e pontual da percepção imediata, a lembrança neste sentido,
ouvir vivas recordações que afloraram mesmo depois das en- como o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas, a me-
trevistas. No referido trabalho, a autora alcança uma memória mória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda
pessoal que é também grupal, familiar e social, tecida entre os e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 1994).
modos de ser do indivíduo e sua cultura. Conforme os estudos da autora, Bergson procede a uma análi-
Na esteira da fenomenologia das lembranças de Berg- se interna da memória, para explicar a existência de duas me-
son, a autora ainda nos leva a pensar na etimologia do verbo mórias: a memória-hábito, memória dos mecanismos motores,
"lembrar-se", em francês se souvenir, que significaria um mo- e a lembrança pura, ou imagem-lembrança, que ocorre de
vimento de "vir" "de baixo": sous-venir, vir à tona o que estava forma isolada, singular, independente de quaisquer hábitos e
submerso. Esse afloramento do passado combina-se com o constituem autênticas ressurreições do passado. Em síntese: “A
processo corporal e presente da percepção. Diz ela: imagem-lembrança tem data certa e refere-se a uma situação

Aos dados imediatos e presentes dos nossos sen-


definida, individualizada, ao passo que a memória-hábito já se
tidos nós misturamos milhares de pormenores incorporou às práticas do dia a dia.” (BOSI, 1994, p.11).
da nossa experiência passada. Quase sempre
No contexto da formulação de uma teoria psicossocial, no
essas lembranças deslocam nossas percepções
reais, das quais retemos então apenas algumas diálogo com Halbwachs (1993), Bosi irá na direção de uma
indicações, meros 'signos' destinados a evocar
realidade interpessoal das instituições sociais, valorizando di-
antigas imagens. (BOSI, 1994, p. 183-184).
ferentes instituições formadoras do sujeito e reconhecendo que
Ao ler Ecléa Bosi, tomo conhecimento de que os estudos a memória depende “[...] do seu relacionamento com a fa-
bergsonianos detém-se ao mundo da pessoa, e que nas rela- mília, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com
ções entre o corpo e o espírito defrontam-se a subjetividade a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de
referência peculiares a esse indivíduo.” (BOSI, 1994, p.17).
Figura 4 - Rosana Paulino. Parede da Memória (1994-2015). Aquarela,
Em interlocução com o sociólogo francês, argumenta que a
manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel
costurados. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. memória não é sonho, é trabalho, esclarecendo que “lembrar

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não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens
e idéias de hoje, as experiências do passado.” E complementa, A voz de minha bisavó
ecoou criança
Por mais nítida que nos pareça a lembrança de nos porões do navio.
um fato antigo, ela não é a mesma imagem ecoou lamentos
que experimentamos na infância, porque nós
de uma infância perdida.
não somos os mesmos de então e porque nossa
A voz de minha avó
percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias,
nossos juízos de realidade e de valor. (BOSI, ecoou obediência
1994, p.55). aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No quadro teórico traçado por Halbwachs (1993) e dis-
no fundo das cozinhas alheias
cutido por Bosi (1994), a memória da pessoa está amarrada debaixo das trouxas
à memória do grupo, aos seus quadros sociais que, por sua roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
vez, está ligada à esfera maior da tradição, que é a memória
rumo à favela
coletiva de cada sociedade. Tudo isso se faz através da lingua- A minha voz ainda
gem, instrumento socializador da memória (BOSI, 1994). Essas ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
ideias evocam os sentidos das memórias de Conceição Evaris- e
to (2017) em seus “Poemas da recordação”, que ligam sua avó fome.
a sua filha, e também a outras mulheres negras que comparti- A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
lham desses afetos. Pela poesia, Evaristo unifica e aproxima no recolhe em si
mesmo espaço histórico e cultural, a imagem lembrada e as as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
imagens da vigília atual.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(EVARISTO, 2017, p. 10-11).

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Ultrapasso os estudos clássicos que chegam até nós sobre partilhar experiências, pela marca do descartável, instantâneo,
a memória, e vou além: à tradição viva que está ligada à me- que escorre diluído no fazer habituado.
mória coletiva da sociedade africana, conservada a partir das Em minha narrativa, evidências do passado estão guar-
narrativas históricas que, segundo Hampaté Bâ (1982), continu- dadas em uma casa. Aquela de número 198, registrado no
am vivas e preservadas com fidelidade pelos chamados doma muro, e que tinha até pouco tempo atrás, a inscrição 1929
ou tradicionalistas. Integrante da primeira geração do Mali com na fachada. De lá vem as lembranças, pessoas, sentimentos e
educação ocidental, o filósofo nos ensina como, nas tradições afetos que constituem fortemente minha identidade.
africanas, tudo é história e como, a partir delas, os tradiciona- O meu cenário da infância é um quintal repleto de na-
listas mantêm viva a memória coletiva. Conhecidos como guar- tureza e objetos que contam a história da família Brito. Pelas
diões dos segredos das ciências da vida, são dotados de uma paredes, fotos e quadros de Seu Agnaldo, Dona Maria e seus
memória prodigiosa, como arquivistas de fatos passados trans- meninos - Agnaldo Filho, José Carlos, Sidnei, João Carlos,
mitidos pela tradição, ou de fatos contemporâneos. Paulo Roberto, Wanderlei e Wilson - e a menina, Maria Sônia.
De acordo com Bá (1982), uma das peculiaridades da Lembro bem de dois daqueles quadros com sete carinhas que
memória africana está em reconstituir o acontecimento ou a traziam os filhos ainda pequenos. Eu, que fui bebê, criança,
narrativa em sua totalidade, registrando toda a cena: cenário, moça e jovem nesta casa, apreciava com orgulho a pele negra
personagens, palavras e mínimos detalhes, como as roupas. retinta da minha família através dessas fotografias. Cresci me
Todos os detalhes animam a narrativa, diz. E contribuem para identificando enquanto negra a partir dessas imagens e dos
dar vida à cena. significados compartilhados no quintal da rua Carnaúba, que
A memória nas sociedades antigas arraigou-se nos valo- ainda guarda vestígios do passado, no bairro Senador Cama-
res ligados à práxis coletiva, à família extensa, no apego aos rá, na cidade do Rio de Janeiro.
objetos biográficos, que constituíam paisagens de uma vida Originalmente, essa casa pertencia à minha bisavó Batis-
inteira. Há de se criticar justamente a sociedade capitalista em tina, da qual só ouvi histórias. Entre meus antepassados, ela
que vivemos nos dias atuais, que pode ter bloqueado os cami- exerce um papel fundamental. É quem reúne a família, aproxi-
nhos da lembrança, arrancando seus marcos, apagando seus ma dezenas de tios e primos e educa firmemente as crianças.
rastros – seja pelo tempo acelerado, pela rapidez das informa- Na sala de sua casa havia a foto de uma moça negra que, me
ções ou ainda pelas poucas oportunidades de convivência, de parecia, sofria com uma mordaça no rosto. Reconheço Anas-

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tácia, a mulher escravizada, como protetora. Essa imagem
observou a mudança dos tempos na família, do matriarcado
de Vó Batistina ao de Vó Maria. Protegia a todos nós, como
também fazia a “santinha preta” Nossa Senhora de Aparecida.
Neste humilde lugar, estão os valores que aprendi. Tor-
nou-se espaço de afirmação e de restauração da dignidade
negra, pela força e união de várias gerações de mulheres da
família – bisavós e tias, avós e netas, mãe e filhas. Na agre-
gação e no sentido de comunidade, tornou-se meu quilombo.
A casa da família Brito foi e ainda é meu território de liberda-
de, nos sentidos anunciados por Beatriz Nascimento (1989,
s/p): “A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo.
Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.”

NADA EM MIM SE SEPARA: OS IBEJIS DE


ROBINHO SANTANA RELIGAM O ESPIRITUAL AO
MATERIAL

Observando os cartões-postais, sou capturada por outra ima-


gem da arte que fala de mim e é bastante representativa da cultura
e religião afro-brasileira: a obra “Ibejis” de Robinho Santana.

Figura 5 - Robinho Santana. Ibeji (2020). acrílica


sobre tela, 110x130 cm. Acervo do Museu afro-Brasil.

40
Esses dois meninos poderiam ser meus dois sobrinhos. para esse trabalho de pesquisa alteraram fortemente minha
Mas, lembram mesmo do altar para São Cosme e São Da- compreensão acerca disso.
mião que havia no meu quarto e de minhas irmãs. Oferecía- Racismo religioso é um tema tão sério, um termo que aca-
mos balas e doces no pratinho àqueles que nos abençoavam. ba sendo usado para reforçar as estruturas discriminatórias no
Lembro que eu criança me divertia achando que os santinhos Brasil. É preciso estar informado e atento, visto que cada vez
comiam as ofertas de doces. Em nossa casa havia ainda uma mais crescem as violações da liberdade de crença e religião no
pedra de Xangô e um banquinho de Preto Velho, represen- Brasil1. A narrativa de Makota Celinha, que é Coordenadora
tando símbolos religiosos. Lembro das festas religiosas onde do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasi-
o quintal transformava-se em terreiro. Um festejo para os ori- leira, para o jornal Nexo, reflete o contexto que eu e minha
xás-crianças, Ibejis e Erês. Eram festas alegres e bem cheias, família enfrentamos e muitas outras ainda enfrentam.
organizadas em setembro por minha mãe, que professava sua Ninguém se incomoda da mãe levar o filho
fé na umbanda. Nossa casa era cheia de roupas de santo, ha- para batizar no cristianismo quando é bebê. É
uma cerimônia bonita, celebrada, lembrada.
via uma pedra de xangô, velas, o cachimbo e banquinho dos Agora, todo mundo incomoda com a iniciação
pretos velhos, toda uma cenografia religiosa afro-brasileira. das crianças no Candomblé e na Umbanda.
Mesmo estando acompanhada de seus pais.
Descobri há pouco tempo a relação da família do meu Isso é o quê? Se não o racismo religioso?
avô com uma casa de Candomblé, cuidada por uma prima
da família Brito. Essa e outras histórias foram silenciadas pelos A recordação da casa, das festas, das manifestações cultu-
inúmeros preconceitos sofridos. Lembro que meu pai foi demi- rais e religiosas e do acervo de elementos da família Brito mos-
tido de uma empresa de grande porte nos anos 80 por conta tra como imagens e representações tiveram e têm importância
de um resguardo espiritual. Minha mãe sofria perseguições na construção do sentimento de pertencimento à população
por colegas professoras em uma escola sob rótulo de macum- negra e suas culturas. Reconhecer-se negro é um processo
beira. E, ainda tínhamos vizinhos pastores neopentecostais que atravessado por dimensões subjetivas, simbólicas e políticas,
entravam no meio da realização de eventos em nosso quintal. que entende sua construção nem sempre como positiva, mas
também pela consciência da exclusão de negros e negras da
Até que essa relação espiritual foi desfeita por meus pais. E, na
participação na sociedade.
juventude acabei fazendo parte de algumas igrejas evangéli-
cas, o que me fez negar esse passado muitas vezes. Hoje isso 1 Na reportagem veiculada, o jornal Nexo explica o que configura o racismo religioso,
mostra o que a legislação prevê sobre o tema e traz relatos, que vão do preconceito no
me dói! Apagar a história da minha família, renegar a nossa fé ambiente escolar a decisões judiciais que fazem com que filhos sejam separados dos
pais. Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/01/21/O-que-
por conta de um fundamentalismo religioso é brutal. As leituras -%C3%A9-racismo-religioso.-E-qual-seu-efeito-nas-crian%C3%A7as

41
Neste contexto, torna-se urgente aprofundar e ampliar o co- Outras práticas culturais de tradição africana e afro-bra-
nhecimento sobre a história e cultura africana e afro-brasileira, a sileira eram realizadas no quintal da família Brito. Tínhamos
fim de compreendê-las no contexto da história geral da humani- uma plantação de ervas, que eram usadas para fins medici-
dade. Compreender a vida social a partir do reconhecimento e nais e espirituais. Aroeira, carqueja, camomila, picão: para
valorização da riqueza cultural do povo brasileiro, especialmente cada dor havia um chá. Serviam também para o defumador
dos indígenas e dos afro-brasileiros, também contribui para sen- de guiné às sextas-feiras, para purificação e como proteção no
tirmo-nos orgulhosos de nosso pertencimento étnico-racial. banho com folhas de colônia. Integravam as garrafadas e ben-
Dentro da tradição oral africana, nada se separa. O mate- zedeiras contra espinhela caída e mau-olhado. Havia consulta
rial e o espiritual não se encontram dissociados: conhecimento, na medicina tradicional e na alternativa.
religião, iniciação à arte, ciência natural, entretenimento, toda O senso de pertencimento foi construído também nas
parte constitui a unidade primordial. A tradição viva, segundo referências musicais do povo preto. Escuto soul music desde
Bá (1982), funda-se na experiência e conduz o homem à tota- criança. Meu pai e tios formaram uma banda na juventude,
lidade. Envolve uma visão particular do mundo, onde tudo está tipo Jackson Five. Havia identificação com a música e o ritmo
interligado e interage. Neste contexto situa-se o respeito pela afro-brasileiro - seja na voz de Emílio Santiago, Tim Maia, San-
palavra, principal agente ativo da vida humana e dos espíritos, dra de Sá ou tantos outros. Passando por diferentes gerações.
transmitida e herdada de ancestrais ou de pessoas idosas das Minha irmã me influenciou com o Ritmo & Blues norte-ameri-
próximas gerações. A herança ancestral é o que mais se preza cano com Lauryn Hill e Alicia Keys. E por influência da maioria
na África tradicional. da família e de minha mãe especialmente, aprecio o samba.
No quintal da casa da minha família havia também outras Samba de roda, no terreiro ou na Sapucaí. Na palma da
celebrações tradicionais: como roda de samba, passos de dan- mão ou na ponta do pé. O som do batuque conduz meu corpo
ça ao som de soul music. Ainda posso ouvir o som do tambor e ao gingado. É a pulsação do coração a reverberar. Poesia mu-
da vitrola do meu pai. Também era comum celebrar a vitória do sicada por Cartola, Martinho da Vila, Toninho Geraes. Samba
samba enredo na quadra da escola de samba e festas à Zumbi é uma paixão! Em 2018 até encontrei samba no museu: a
dos Palmares no bairro. Um pouco pela cidade, mas fortemente exposição “O Rio do samba: resistência e reinvenção”2, esteve
no seio familiar, foi onde o valor das festas e das celebrações se por um ano no Museu de Arte do Rio, uma das minhas institui-
fortaleceram em mim. Pelas lembranças, vou reconhecendo que
2 Catálogo da Exposição “O Rio do Samba - Resistência e Reinvenção”
cresci em um contexto de afirmação da identidade negra. Den-
Museu de Arte do Rio (MAR) -28/abr/2018 https://issuu.com/marceloo-
tro do meu quilombo, era prazeroso e seguro ter cor na pele. reilly/docs/cat_logo-oriodosamba-resistenciaere

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ções culturais preferidas da cidade. A exposição trouxe aspec- Em direção contrária, a percepção de mundo dos povos
tos sociais, culturais e políticos da história do samba carioca africanos, segundo Oyèrónké. Oyěwùmí (2018), considera o
desde o século XIX até os dias de hoje. Com curadoria de Nei corpo e uma combinação de sentidos. A autora destaca que
Lopes, Clarissa Diniz, Evandro Salles e Marcelo Campos, “O a apreensão da realidade envolve, mais do que a percepção
Rio do Samba” contou a história social do samba carioca por visual, os muitos mundos que os seres humanos habitam, sem
meio de 800 itens, entre obras de arte, documentos, objetos e perder outros níveis e as nuances da existência, sem privilegiar
peças de vestuário. Dizem que a visão mais do que outros sentidos.

A ancestralidade do samba, fincada em suas O termo “visão de mundo” (worldview), que é


raízes africanas, se atualiza nos corpos, nas pal- usado no Ocidente para resumir a lógica cultu-
mas, nos pés, nas rodas. Nos terreiros, nas qua- ral de uma sociedade, captura o privilégio da
dras das escolas, nos quintais e nos muitos pal- visão ocidental. É eurocêntrico usar isso para
cos. Junto à música e à poesia, o que o samba descrever as culturas que podem privilegiar
inventa são formas de convivência, de alegria, outros sentidos. O termo “sentido de mundo”
de memória, de desejo e de luta cuja complexi- (world-sense) é uma forma mais inclusiva de
dade não se esgota na unidade de um gênero descrever os conceitos de mundo, pelos diferen-
musical, e que tampouco podem ser circunscritas tes grupos culturais. (OYĚWÙMÍ, p. 309, 2018)
a uma classe social. (LOPES et al, 2018, p.14)
Nesse estudo, os corpos aparecem. E, a partir deles, tudo se
Identifico, neste percurso, outras formas de pensar-sentir
liga e tudo repercute em tudo, pois a relação do indivíduo com
o mundo: cosmopercepções, referenciadas nas culturas africa-
o corpo e com o mundo é uma relação viva de participação.
nas. O termo “cosmopercepção” valoriza o pensamento dos
Na iniciação como grande mestre, de acordo com a tradição
povos iorubás e de outras culturas que privilegiam sentidos que
viva (Bá, 1982), pouco a pouco, o homem descobria a sua rela-
não sejam o visual, indo além da “cosmovisão”, um conceito
ção com a palavra falada e seu caráter sagrado. Era conduzido
contemplado na história das sociedades ocidentais que, sus-
para o autodomínio, o que o tornaria um homem completo. Os
tentadas pela documentação do pensamento racional, privile-
conhecimentos relacionados à iniciação, estariam ligados à ex-
gia a visão sobre os outros sentidos na concepção de realidade
e conhecimento. Onde valoriza-se a visão como ato do conhe- periência integrativa dos sentidos e formaria um tipo de pessoa

cimento, entende-se o conhecimento como ver e a verdade em particular. Onde, a tradição oral seria a grande escalada da
como luz, fecha-se à possibilidade de outras compreensões e vida, que dela recupera e relaciona todos os aspectos, integran-
leituras do mundo. do o comportamento cotidiano à comunidade.

43
DISTINTOS MODOS DE SER AFRO-BRASILEIRA:
PELA CENA CARIOCA, MORRO DA MANGUEIRA
COM HEITOR DOS PRAZERES

A produção cuidadosamente detalhada da exposição “Rio


do Samba”, comentada anteriormente, fez disparar meu cora-
ção. Os detalhes contavam a história do povo preto carioca.
Todo o trabalho curatorial dialogava comigo, com a minha his-
tória. Assim, também a obra “Morro da Mangueira” produzida
por Heitor dos Prazeres (1965).
Essa imagem da obra de arte também fala sobre minha
origem favelada: exibe a voz e a vez do morro e da comunida-
de, traduz o samba que, no passado e presente, agrega e re-
úne minha família, como escrevi na dissertação de mestrado:

O batuque do samba que me alegra, lembra o


passado com a história dos meus ascendentes
africanos e, nos dias de hoje, a luta e resistência
do povo negro favelado, do qual faço parte. (...)
tenho orgulho de narrar esta parte da minha
história – minha história e de minha família (SIL-
VA, 2017, p.30)

Samba que, com seu batuque, afirma minhas referências


afro-brasileiras: a diversidade de artistas, espaços e manifesta-
ções culturais que representam a mulher negra carioca que eu
Figura 6 - Heitor dos Prazeres (1898-1966). Morro da Mangueira sou. E talvez por este reconhecimento afirmativo, considero-me
(1960). óleo sobre tela - 100.00 cm x 120.00 cm. Acervo da Coleção aberta a experimentar e formar outros hábitos culturais, ain-
Roberto Marinho.
da mais, motivada por livros, espetáculos, exposições, filmes,
cenários socioculturais onde homens e mulheres negras têm dos africanos escravizados, dos europeus, asi-
áticos e de seus descendentes, na constituição
alcançado destaque. da sociedade brasileira. Esse é compromisso
Viver e crescer na favela horizontal, nas comunidades da a ser assumido por todos/as brasileiros/as, in-
dependentemente de suas raízes étnico-raciais.
zona oeste da cidade, significa viver à margem da beleza pro- (SILVA, 2016, p.21)
pagandeada da Cidade Maravilhosa. É viver o caos, conviver
É, sobretudo, desafiador reconhecer-se negro e “construir
com a desigualdade social, com a pobreza, desemprego, vio-
uma identidade negra positiva em uma sociedade que, histo-
lência policial e o poder paralelo. E, ainda, conviver com a de-
ricamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser
sinformação imposta à população. É ter nos direitos sociais e
aceito é preciso negar-se a si mesmo” (GOMES, 2003, p.171).
políticas públicas, a esperança por uma vida melhor. Contudo,
É um processo contínuo, significado pelos negros e negras nos
foi crescendo neste lugar, tendo as primeiras vivências sociais
vários espaços, institucionais ou não, nos quais circulam, seja na
ali, que me fiz estudante e professora.
família, na escola, na igreja, ao longo da vida. Essa construção
A maior herança que recebi da minha família foi insistir
envolve o negro na sua totalidade, refere-se ao seu pertenci-
na educação. Recordo que, desde cedo, levaram-me à escola
mento étnico, à sua condição socioeconômica, à sua cultura, ao
repetindo que era importante. Pelas lembranças, tomo consci-
seu grupo geracional, aos valores de gênero, dentre outros. De
ência que educar para a justiça social é, para a negritude, um
maneira consciente e inconsciente, implica a negociação duran-
movimento ancestral, histórico, cultural e político.
te a vida toda por meio de relações dialógicas com os outros.
Reconhecer a história, cultura e direito dos negros é cru-
Passando por experiências individuais e coletivas, que envolvem
cial para a formação cidadã, assim como é a valorização das
processos sociais, políticos e culturais vivenciados historicamente
peculiaridades da identidade e história de cada pessoa brasi-
pelo negro na sociedade brasileira, esse processo requer a ree-
leira, particularmente dos negros e povos indígenas, mantidos
ducação do olhar pedagógico sobre o negro.
à margem da sociedade desde o séc. XVI. Aprendo com a in-
Recordo dos diferentes jovens que participaram do pro-
telectual negra, Petronilha Silva (2016), que o reconhecimento
jeto interdisciplinar PIBID/FEUC3, que tinha por objetivo a im-
da diversidade fortalece expectativas de que brasileiras e brasi-
leiros vivam bem. De modo a fortalecer nossos distintos modos 3 O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) foi disponi-
bilizado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior
de ser brasileiros. Sem esquecer que, (CAPES), através do Ministério da Educação (MEC), prevendo a valorização da
docência no processo de formação de licenciandos. Como professora da rede
[...] tem de atentar para os desdobramentos ad- estadual do Rio de Janeiro, atuei como professora supervisora dos estudantes
vindos de preconceitos, opiniões equivocadas a da Fundação Educacional Unificada Campograndense (FEUC), que desenvolvia
respeito da participação dos povos indígenas, ações do Projeto PIBIC. Minha função era fazer a mediação dos licenciandos
com os discentes do ensino médio no Instituto de Educação Sarah Kubitschek.

45
plementação das orientações e ações para a Educação das cola deverá problematizar a questão racial. Essa
problematização implica descobrir, conhecer e
relações étnico-raciais (BRASIL, 2006). Atuava como professo- socializar referências africanas recriadas no Bra-
ra de disciplinas pedagógicas na rede estadual de ensino do sil e expressas na linguagem, nos costumes, na
religião, na arte, na história e nos saberes da
Rio de Janeiro, no Curso Normal Instituto de Educação Sarah nossa sociedade. (GOMES, 2002, p.43)
Kubitschek (IESK) e a convite das professoras de Pedagogia da
Fundação Educacional Unificada Campograndense (FEUC), Outro desdobramento interessante foi a apresentação das
Janice e Glória, ingressei no projeto em 2015. Eu e mais qua- histórias com personagens negros no quintal do EDI Samira
tro professoras do IESK atuamos como supervisoras dos estu- Pires Ribeiro, unidade de educação infantil da rede municipal
dantes das licenciaturas. Puxando na memória, lembro ter sido do Rio de Janeiro, da qual eu era diretora na época. A favor
uma experiência que rendeu significativas articulações. da educação das relações étnico-raciais, reuni estudantes do
Foi marcante o trabalho com literatura infantil a partir do ensino superior e médio às crianças da creche e da pré-esco-
protagonismo dos negros em uma das praças de Paraty/RJ, la. Lembro da contação de “O tesouro de Monifa”, da autora
durante a FLIP- Feira Literária Internacional de Paraty (2015). Sonia Rosa (2009). A história narra o encontro de uma meni-
A cidade colonial que se desenvolveu durante o ciclo do ouro na brasileira afrodescendente com sua tataravó, Monifa, que
no século XVIII na força e na dor de negros escravizados, pode chegou ao país em um navio negreiro. Mesmo na condição de
ser palco de uma ocupação negra com outros papéis. Os es- escravizada, por meio das letras que aprendeu, Monifa deixou
tudantes engajaram-se nas leituras, dramatizações e rodas de um tesouro: passado de geração em geração, chega às mãos
conversa. Eram homens e mulheres, com diferentes corpos, da garotinha, que descobre a vida da sua tataravó e suas pró-
abordando e expressando impressões e representações sobre prias raízes. Nessa vivência, jovens e crianças e ainda os adul-
esse corpo, especificamente sobre seus cabelos. No diálogo tos, profissionais e professores da escola, conversaram sobre o
com crianças e adultos que participam da FLIP, puderam res- pertencimento racial, oriundo de uma ancestralidade africana.
significar experiências de discriminação racial e ainda empre- Neste trabalho com estudantes de licenciaturas e do cur-
ender ações de superação do racismo. Afinal, so normal, aparece Chimamanda Adichie, uma das primei-
ras intelectuais negras que me recordo, uma autora nigeria-
Mais do que simplesmente apresentar aos alu-
nos e às alunas dados sobre a situação de dis- na da atualidade. Sua palestra “O perigo da história única”
criminação racial e sobre a realidade social,
(ADICHIE, 2009) marcou minha trajetória como professora na
política eeconômica da população negra, a es-

46
formação de professores no ensino médio. No vídeo, a escri- plantação: episódios de racismo cotidiano” (KILOMBA, 2019)
tora ressalta como uma história única pode ser fonte de este- dispararam uma profunda conversa, entre nós e dentro de mim.
reótipos. Entende como perigosa a redução a um só aspecto, Rapidamente, neste bate-papo, discorremos sobre feminismo,
de toda a complexidade de uma pessoa e de seu contexto, e racismo, interseccionalidade, colonialismo, trauma, silêncio, ca-
narra como vivenciou isso com frequência, enquanto estudante belo, cultura. Pronunciei esses temas silenciados em voz alta,
nigeriana em uma universidade nos Estados Unidos. com mulheres brancas que eu admirava e demonstravam em-
Depois do vídeo, conheci as obras literárias de Chimaman- patia e consciência de seus privilégios. Um saboroso café e a
da Adichie. Comprei o ebook de “Americanah”, livro apontado leveza da literatura, abriram espaço para que minha voz fizesse
como uma das dez melhores obras de 2013. Um romance ecoar os temas que marcam minha subjetividade, abordados
sensível e necessário, que levanta questões raciais, de imigra- por autoras negras em suas ficções e autobiografias.
ção e de aceitação das próprias raízes. Histórias têm o poder Desfrutar do café foi saboroso, mas tem sido dura a vida
de humanizar, diz a escritora africana. Na leitura, a trajetória fora do meu quilombo. Sair da minha casa, da comunidade,
de Ifemelu tocou-me profundamente. Fez surgir a identificação trouxe à tona os recorrentes episódios de discriminação e injú-
em diversas situações vividas por ela, quando adolescente na ria racial. Essa é uma violência cruel e de gosto amargo. Logo
Nigéria. Ou mesmo, na idade adulta, ao sentir-se negra quan- que cheguei à universidade para trabalhar como professora,
do pisa na América. Esse sentimento chega para nós em algum ouvi “Vou mostrar qual é o seu lugar!”. Era meu primeiro mês
momento. Ainda estou a aprender sobre racismo e as discus- de trabalho, ainda não me conheciam. Após esse enquadra-
sões étnicas e raciais levantadas por autoras negras, além de mento, chorei muito! Constatei que não adianta ser competen-
Chimamanda Adichie, Toni Morrison, Maya Angelou, dentre te. Ser professora, em um corpo negro volumoso oriundo da
outras. Mas, já sei que reduzir a um só aspecto a complexidade periferia, incomoda. Ocupar uma vaga conquistada em con-
de uma pessoa e de seu contexto é extremamente perigoso. curso público em uma instituição federal de ensino, para mim
A nutrição deste repertório cultural, pela narrativa de mu- é conquista e para outros é afronta. Na sutileza das relações
lheres intelectuais negras, tem sido cultivada nas relações mais cotidianas, percebo atitudes e armadilhas. Mas, já decidi: mi-
improváveis. Certa tarde, em um café na padaria, com Luciana nha presença negra vai ocupar o lugar que eu quiser!
e Marta, professoras da universidade, foi que esta tese começou Aprendo com Neusa Sousa (1983) que saber-se negro é
a enegrecer. As impressões de uma delas, sobre “Memórias da viver a experiência de ser violentado de forma constante, con-

47
tínua e cruel. É um processo doloroso, marcado por afetos e Considera-se como preconceito racial uma dis-
posição (ou atitude) desfavorável, culturalmente
sentimentos de inferioridade, sentimento de culpa, defesa fó- condicionada, em relação aos membros de uma
bica e depressão. Devido à complexidade do ser negro em população, aos quais se têm como estigmatiza-
dos, seja devido à aparência, seja devido a toda
uma sociedade em que essa condição aparece associada à ou parte da ascêndencia étnica que se lhes atri-
pobreza, inferioridade, incompetência, feiura e atraso cultural, bui ou reconhece." (NOGUEIRA, 1985, p. 79).

tudo isso dói, endurece e emudece. Leva-nos a esconder cer-


Um ponto crucial desta reflexão está na permanência, no
tas histórias e não nomear alguns sentimentos. Mas, é preciso
desenvolvimento e na especificidade do preconceito racial no
falar – contra o racismo, o preconceito, a discriminação racial!
Brasil, que de acordo com Oracy Nogueira (1985), pode ser
De acordo com o professor Kabengele Munanga,
chamado de "preconceito de cor", ou "preconceito de marca",
[...] o racismo é uma crença na existência das
que se transforma em um tipo especial de preconceito racial,
raças naturalmente hierarquizadas pela relação
intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o in- que facilita a integração e a ascensão social dos imigrantes
telecto, o físico e o cultural. O racista cria a raça
europeus e retarda e impede a ascensão dos negros ao longo
no sentido sociológico, ou seja, a raça no imagi-
nário do racista não é exclusivamente um grupo da história.
definido pelos traços físicos. A raça na cabeça
Já a discriminação racial, segundo conceito estabelecido
dele é um grupo social com traços culturais, lin-
güísticos, religiosos, etc. que ele considera natu- pela Convenção da ONU/1966, sobre a Eliminação de todas
ralmente inferiores ao grupo a qual ele pertence.
as Formas de Discriminação Racial,
De outro modo, o racismo é essa tendência que
consiste em considerar que as características in- [...] significa qualquer distinção, exclusão, res-
telectuais e morais de um dado grupo, são con- trição ou preferências baseadas em raça, cor,
seqüências diretas de suas características físicas descendência ou origem nacional ou étnica,
ou biológicas. (MUNANGA, 2003, p. 12). que tenha como objeto ou efeito anular ou res-
tringir o reconhecimento, o gozo ou exercício,
O preconceito tem por base estereótipos, o julgamento de em condições de igualdade, os direitos huma-
nos e liberdades fundamentais no domínio po-
pessoas sobre outras. Trata-se de um fenômeno psicológico, lítico, social ou cultural, ou em qualquer outro
que atua nas relações interpessoais, na esfera da consciência e domínio da vida pública (PROGRAMA NACIO-
NAL DE DIREITOS HUMANOS, 1998, p. 12)
afetividade dos indivíduos. Por si só não fere direitos, contudo,
adverte-se que preconceitos podem tornar-se posicionamentos Altamente prejudiciais nas relações sociais, o racismo, o
ao longo da vida. De acordo com estudos de relações raciais, preconceito e a discriminação racial estão presentes na socie-

48
dade brasileira e são praticados contra pessoas desde mui- ENTRE VIDA E ARTE, SONHO E LIBERDADE,
to cedo. No que tange à afirmação de identidades, a escola
AMPLIO OLHARES COM CAROLINA DE JESUS
cumpre um papel importante, é reconhecida como o lócus de
relações sociais que estruturam e marcam o processo de so- Reconheço na minha história de vida a diversidade de co-
cialização. Neste sentido é fundamental articular “a educação res que vi na cidade de Salvador, os sonhos de paz tecidos pelo
vista como um processo de formação humana que extrapo- coletivo de mulheres de Mampujan, que apreciei na Colômbia,
la os muros da escola, e a identidade negra como processo e a beleza dos vitrais criados por Gaudí, máximo expoente
histórico, social e cultural” (GOMES, 2002, p. 46). E, assim, da arquitetura modernista, que admirei em Barcelona. Esses
oferecer respostas à demanda da população afrodescendente, elementos estão também incorporados às minhas experiências
no sentido de promover ações afirmativas na educação e criar e histórias de jovem negra que ousa viajar além de sua co-
estratégias pedagógicas na escola, tendo em vista reparações, munidade, descobrindo e tecendo todo um universo singular,
reconhecimento e valorização de sua história, cultura e identi- que faz parte de minha formação estética. Mas... Os caminhos
dade, como apregoa o Parecer introdutório das Diretrizes Na- sensíveis que atravessamos, nem sempre são de prazer e paz.
cionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino Enquanto “esfarrapados do mundo”, muitas vezes, temos ca-
da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira (BRASIL, 2004). minhos de dor e caos. Eis mais uma imagem da arte que pode
representar a dimensão estética na minha formação ao longo
da vida: o “Prólogo”, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977),
neta de pessoas escravizadas, beneficiadas pela Lei do Ventre
Livre. Desde a infância, sua trajetória foi marcada por exclu-
sões e dificuldades oriundas de sua origem social, visto que
sua família sempre morou na área mais pobre de Sacramento
- MG. A questão racial era uma marca que carregava consigo,
pois demarcava as hierarquias sociais da sociedade brasileira
(AZEREDO, 2018). Em sua obra mais famosa, "Quarto de Des-
pejo” (2004), a autora faz um exercício autobiográfico, reco-
nhecido como “escrita de si”.

49
Figura 7 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977).
“Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros
(1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo
Instituto Moreira Salles.

50
Na imagem do "Prólogo", com palavras escritas à mão, A paleta-leque de cores da minha professora também
a construção de uma narrativa que imprime um olhar sobre lembrava a cartela de cores das tintas do meu pai, que era pin-
sua vida, seu cotidiano, é apresentada. Carolina Maria de Je- tor. Desenhista industrial por profissão, trabalhou na empresa
sus, além de notável escritora, é uma multiartista: cronista, in- de construção civil do meu avô como pintor de paredes. No
telectual, poeta, compositora e letrista. Fez crônicas, contos, tempo da infância, eu brincava de escolher cores preferidas,
poesias, peças de teatro e letras de música. Muita diversidade aprendendo que amarelo, azul, vermelho não eram uma cor
artística para além da representação de uma mulher negra, da só! Afinal, tinha ao meu dispor matizes e nuances nas cartelas
favela do Canindé, mãe solteira com um lenço na cabeça. Ve- de cores da Suvinil.
mos no “Prólogo” a revelação dessa revolução que é Carolina, Homem negro da classe popular, meu pai, hoje, ainda é
mulher que ensina mulheres negras – criança, jovem, velha – pintor de ambientes, reconhecido como um profissional dife-
sobre sonho e liberdade conquistados através da arte. renciado, com seu gosto em criar formas, estudar texturas e to-
Também eu vou me revelando, também eu vou apren- nalidades. Eu, menina que brincava com latas de tintas, colas,
dendo a liberdade, também eu vou construindo sentidos com misturas, assim fui multi colorindo a vida: nos retalhos de lycra
a arte. Minha avó e meu pai trabalhador não estudaram arte, para as roupas de boneca, nas artes visuais na docência com
nem tampouco fruíram da produção cultural, mas influencia- as crianças, nos projetos gráficos que tanto me atraem, dando
ram meus caminhos de sensibilidade. Das lembranças da in- atenção aos detalhes, às percepções de cores que se tornam
fância, recordo que meu olhar para as cores do mundo foi possibilidades de criação e comunicação.
aguçado por minha professora na educação infantil. Na sala, Minha capacidade de sentir e perceber tem se ampliado:
antes da pintura de um desenho, ela abriu uma paleta com pela inclusão no caminho de pesquisa, que venho trilhando
cores, que parecia um leque. Aquele colorido todo ainda apa- desde o mestrado, dos múltiplos aspectos da vida e de minhas
rece tão nítido na minha memória! Sua pretensão era nomear histórias de formação, como adulta e como criança, assim
as cores e mostrar possibilidades de matizes para a pintura. Eu como o contato com música, artes visuais, dança, literatura
menina, entretanto, fiquei fascinada com aquele efeito, singu- que vou experienciando. Nesse percurso, sinto que são am-
lar, de todas as cores juntas. Era mesmo um espetáculo novo, pliados e refinados meus olhares, levando-me a desenhar ou-
nunca havia visto aquela composição multicor (SILVA, 2017). tros sonhos e experiências.

51
Ao ler a multiartista Carolina de
Jesus, sinto-me desafiada a ocupar lu-
gares que não foram pensados para
nós: sua palavra nos encoraja à ou-
sadia e nos ajuda a ressignificar afe-
tos individuais e coletivos, incentiva a
expressão por outras linguagens, nos
motivam a também contar nossas his-
tórias. Sua obra certamente contribui
para incentivar professoras de educa-
ção infantil negras, no refinar da sen-
sibilidade, no encontro e expressão de
suas múltiplas linguagens. É como se
Carolina dissesse: vocês podem narrar
– falar, escrever, registrar – sobre como
são afetadas nas relações interpesso-
ais, contar sobre sua presença no mun-
do e suas experiências com a Arte.

Figura 8 - Fotografia de acervo


pessoal. Negros Postais.
Brito Silva, Greice (2020).

52
1.2 SÓ A PALAVRA NÃO BASTA: AS ARTES COMO FORMAS DE DIZER

Na escrita memorialística que tracei e nos caminhos da pesquisa já anunciados em alguns conceitos
esboçados, é nítida a escolha pelo diálogo com artistas e as linguagens da arte. O diálogo entre Educação
e Arte pode ressignificar afetos individuais e coletivos. Acredito que linguagens expressivas podem ajudar a
contar as histórias de negros e negras, no refinar da sensibilidade e, dessa forma, como numa “desobediên-
cia poética”, representada também por outras figuras, nuances, para dizer quem somos. Pois, como diz a ar-
tista e escritora afro-portuguesa Grada Kilomba (2019), só a palavra, usada na linguagem tradicionalmente
colonial, não basta para contar a história negra que foi aniquilada.
A exposição “Grada Kilomba: Desobediências Poéticas” esteve na Pinacoteca de São Paulo 4 no ano de
2019. A instalação Table of Goods, de 2017, exibiu uma instalação composta de um monte de terra, posicio-
nado no centro da sala, que emerge do chão com pequenas porções de mercadorias coloniais, como açúcar,
café, cacau e chocolate. Como eixo principal, relembra séculos de mortes de trabalhadores africanos escra-
vizados em plantações para produzir os bens e os prazeres (the goods) das elites. Neste contexto, Kilomba se
utiliza do termo “indizível” como metáfora do trauma causado pelo colonialismo que, tal como uma doença,
nunca foi devidamente tratado na sociedade.

Gosto de criar instalações em que a audiência vem e não sabe o que é nem como é. Esse momento de
confusão é descolonização. É quando começamos a questionar o que é o conhecimento, o que eu sei e
o que eu não sei, e por que eu não sei e que relação isso tem com o ato de silenciar e invisibilizar. Na
arte, todas as peças são capazes de levantar essas questões. (KILOMBA, 2019)

4 A Pinacoteca de São Paulo é um Museu da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. No ano de 2019,
recebeu a exposição “Grada Kilomba: desobediências Poéticas” (2019), que teve por intenção de justapor, questionar e provocar no-
vas interpretações sobre a coleção de arte dos séculos XIX e XX do museu, a história da arte que ela pretende contar e as histórias que
permaneceram invisíveis.
Foi a primeira exposição individual no Brasil da artista portuguesa, com curadoria de Jochen Volz e Valéria Piccoli, diretor geral e cura-
dora-chefe do museu. Ver mais em: http://pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/AF06_gradakilomba_miolo_baixa.pdf

53
Figura 9 - Grada kilomba. Table of Goods (2017). Making of da instalação.
https://pinacoteca.org.br/programacao/grada-kilomba-desobediencias-
poeticas/

54
Figura 10 - Grada kilomba. Table of Goods (2017). Terra vegetal, cacau em pó,
chocolate, café moído, e em grão, açúcar e velas de cera. http://pinacoteca.org.br/
wp-content/uploads/2019/07/AF06_gradakilomba_miolo_baixa.pdf

55
A denúncia da omissão, do apagamento e da invisibilidade sob a guarda do Ipeafro, Instituto de Pesquisas
e Estudos Afro-Brasileiros, que fundei ao voltar
com a negritude pode ser identificada na experiência histórica
do exílio. (NASCIMENTO, 2009, p. 12)
brasileira: recordo o Teatro Experimental do Negro (TEN), que
teve por objetivo a valorização social do negro e da cultura afro- Por tudo o que fez no seu retorno ao país, Abdias segue
-brasileira. Criado por Abdias Nascimento (1914-2011), funda- contribuindo para a reconstrução da história da população ne-
do a partir de 1944, no Rio de Janeiro. Intelectual que não se gra, como é possível acompanhar na maior exposição dedi-
contentava com a reprodução de lugares-comuns destinados à cada ao trabalho visual do artista, exibida esse ano no MASP.5
população negra. Por isso, trabalhou pela valorização social do É na interlocução com Abdias Nascimento que a artista
negro no Brasil, através da educação, da arte e da cultura. plástica e pesquisadora Renata Felinto dos Santos (2019) criti-
Nas artes, Abdias teve ainda a valorização de sua carreira ca a palidez do sistema de arte no Brasil. Anuncia que Abdias
durante um período difícil. No período da ditadura no Brasil, Nascimento foi um dos primeiros ativistas do movimento ne-
enquanto esteve autoexilado em Nova York, iniciou seu proces- gro a pontuar assertivamente sobre as formas de eliminação
so de descobrimento e amadurecimento com a pintura, dando do povo negrodescendente, afrodescendente, afro-brasileiro,
ênfase à importância da cultura e da religião afro-brasileira. como queiram, a partir de sua obra O genocídio do negro bra-
Em diversas regiões dos Estados Unidos fez várias exposições sileiro, publicada em 1978 e reeditada em 2016. Nesta obra
em galerias, museus e universidades. Sobre sua descoberta que reúne uma coletânea de ensaios, ele aponta que “a eli-
pessoal como artista plástico, conta que minação do corpo físico do homem negro é a culminância de
um extenso e agressivo processo de invisibilização, omissão,
O I Congresso do Negro Brasileiro votou uma
resolução sobre a necessidade de haver um subordinação e humilhação dessa parcela da população”. E
museu de arte negra para estudar e mostrar
aprofunda sobre a urgência de revermos o currículo escolar e
a nítida, porém ocultada, ligação entre a arte
negra e a arte moderna ocidental expressa na a ausência de disciplinas que contemplem as populações afri-
arte contemporânea no Brasil. O TEN assumiu canas e afro-brasileiras e suas inestimáveis contribuições para
o projeto e eu me tornei curador dessa coleção.
Junto com Guerreiro Ramos, Ironides Rodrigues
a construção e sedimentação da história e cultura brasileira.
e outros do TEN realizamos um trabalho extenso
com as artes plásticas, em que tiveram e ainda
têm destaque o escultor José Heitor e o pintor 5 De 25 de fevereiro a 05 de junho de 2022: “Abdias Nascimento: um
Sebastião Januário. A coleção hoje encontra- se artista panamefricano”.
Saiba mais em https://masp.org.br/exposicoes/abdias-nascimento

56
Uma vez inseridos em uma sociedade plurirracial, a pes- Uno-me a essas referências negras - políticas, sociais, ar-
quisadora questiona: onde estavam e estão pessoas não-bran- tísticas, culturais - pela urgência de uma mudança profunda a
cas que atuaram no que chamamos de sistema da arte e que, favor da reeducação de atitudes, posturas e valores que edu-
como desdobramento e extensão, também diz respeito às quem cidadãos quanto à pluralidade. A fim de que ela seja
pessoas que educam a partir das Artes Visuais independente- transformadora no sentido de provocar adoção de estratégias
mente de sua origem étnico-racial. Considera a urgência, de pedagógicas de valorização da diversidade étnico-racial desde
fato, que os conteúdos que compõem os currículos escolares a Educação Infantil. O que nos faz questionar qual é a arte e
da Educação Infantil à Superior contemplem as participações e as linguagens que professores apresentam no dia a dia das
contribuições de todos os povos que historicamente constituem creches e escolas.
o povo brasileiro. Eu, professora das infâncias, tive os sentidos envolvidos
É no sentido de movimentar-se ao encontro das inteligên- em matizes mais escuras, voltados para a fortuna da cor ao
cias, inventividades e estéticas, que são nada ou pouco re- invés da palidez tão encontrada nas manifestações artísticas e
presentadas como histórias que discutem a nossa sociedade, culturais. Essas existências e suas estéticas fizeram emergir as
que pretendo seguir. A partir da criação artística oriunda do questões que me conduzem a esta investigação. O samba nas
segmento negrodescendente, como menciona Renata. Vou ao ruas cariocas, o ritmo do ijexá nas danças populares, as vozes
encontro das artes e das culturas negras, validando a conexão negras das literaturas, trazem o desejo de saber o que outras
com outras linguagens, buscando possibilidades de desobe- professoras guardam em seus repertórios, quem são suas re-
decermos poeticamente a narrativa sobre nós, como incentiva ferências negras.
Grada, que aponta para a urgência de se inscreverem conhe- Assim, sob perspectiva da relação entre estética, arte e
cimentos pensados por pessoas provenientes de outros corpos, vida, a pesquisa pretende analisar a contribuição de poéticas
mulheres negras. Através da experimentação de outras formas negras para a formação docente. Entendo que essa relação
criativas e expressivas para dizer-se e dar formas plurais à exis- constitui a formação em outras bases, considerando atravessa-
tência, a partir do reconhecimento da negritude que nos consti- mentos sensíveis, que de certa forma contribuem para tessitu-
tui. Devolver liberdade, prazer e contemplação, sensações não ras de identidades, para ampliação dos sentidos, constituição
permitidas às mulheres negras no Brasil, um país que segue de repertórios artístico-culturais em diferentes temporalidades,
estabelecendo suas opressões cotidianas. que possibilitam alargamento e/ou refinamento da leitura do

57
mundo, oferecendo também outras formas de nele atuar, criti- de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a
cando-o e transformando-o. ação política feminista e antirracista (CARNEIRO, 2003), assim
Neste quadro, uma outra escolha foi se anunciar: fazer conhecer histórias de professoras negras da educação infan-
pesquisa com mulheres negras. Pelo desejo de me aproximar til, no âmbito da formação de suas sensibilidades, coloca-se
e ouvir mulheres que muitas vezes passam despercebidas nas como desafio e necessidade, haja vista que as dimensões ética,
escolas, que sustentam econômica, afetiva e moralmente suas política e estética atravessam nossas existências.
famílias, e desempenham o papel mais importante, como re- Inclusive, do meu lugar de mulher negra, demonstrar inte-
petidamente afirmou Lélia Gonzalez. resse na relação entre estética, arte e vida, para algumas pes-

[...] sobretudo a mulher negra anônima, susten-


soas é motivo de espanto, devem pensar: uma mulher negra
táculo econômico, afetivo e moral de sua famí- periférica, formada em pedagogia, como pode interessar-se
lia, é quem, a nosso ver, desempenha o papel
mais importante. Exatamente porque com sua
por arte e cultura? Até nisso o preconceito racial perscruta-me!
força e corajosa capacidade de luta pela sobre- É mais uma forma de desumanização, como se todos os pre-
vivência nos transmite a nós, suas irmãs mais
afortunadas, o ímpeto de não nos recusarmos à
tos não tivessem interesses e só pudessem fazer pesquisa para
luta pelo nosso povo. Mais ainda porque, como denunciar a violência sofrida.
na dialética do senhor e do escravo de Hegel,
apesar da pobreza, da solidão quanto a um Nossos antepassados foram violentados e silenciados pe-
companheiro, da aparente submissão, é ela a las marcas da escravização. Neste tempo de discursos de ódio,
portadora da chama da libertação, justamente
porque não tem nada a perder (GONZALEZ, mulheres negras soltam as suas vozes, brigam por espaço e
2018, p.51). representação e se fazem presentes em todos os espaços de
importância para o avanço da questão da mulher brasileira.
Escolhi fazer pesquisa com mulheres negras pela cons-
Hoje, com elas, quero liberdade para dizer e desejar, ver e
tatação das inúmeras dificuldades estruturais existentes para
viver educação pela arte e com arte. Mulheres ativistas, como
seu reconhecimento e valorização. Por acreditar que relatos
Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Jurema Werneck e Vilma Reis,
biográficos destas mulheres podem provocar a discussão sobre
me incentivam.
formação de professores, trazendo especial contribuição da
Na mesma direção em que os anseios de hooks, a partir
poética de artistas negras, sob a perspectiva da formação esté-
da relação entre raça, gênero e políticas culturais, também me
tica. Uma vez que a luta das mulheres negras contra a opressão
contemplam:

58
Quero produzir uma obra que compartilhe com Uma força ancestral me conduz na trama desta pesquisa,
o público, particularmente com grupos oprimi-
dos e marginalizados, o sentido de agência e tenho certeza. Inicialmente, nutriram meus sentidos e a
empoderamento que a criação artística propor- inspiração nas águas, a divindade do marinheiro de minha
ciona. Quero compartilhar a herança estética
que me foi transmitida por minha avó e por mãe e das pedrinhas da criança que brincava no terreiro de
gerações de ancestrais negros, cujos modos de umbanda. Ao longo desses quatro anos, outros acontecimentos
pensar sobre esse assunto se desenvolveram na
escala global na diáspora africana, informa- trouxeram-me de volta ao meu fundamento, ao axé que me
dos pela experiência do exílio e da dominação. fortalece. A energia vital que cuida de mim e está no encanto
Quero reiterar a mensagem de que “precisa-
mos aprender a ver”. Ver significa aqui, em da natureza, na delicadeza das mãos, no sagrado do solo.
termos metafísicos, uma intensificação da ca- É quem me guia para educar outros sujeitos, para escutar
pacidade de experimentar a realidade por meio
do domínio dos sentidos. (hooks, 2019, p 119) suas histórias, seus desejos e medos. E, assim, produzir uma
teoria em Educação a partir das subjetividades que constituem
Mais uma vez, foi importante reconhecer meu itinerário de mulheres-negras professoras.
formação estética, acionar a dimensão sensível, refazendo ca-
minhos que constituem minha pessoa na pessoa da educadora
que sou. Enquanto me constituo como pesquisadora, a refle-
xão, acompanhada do movimento de puxar memórias, dizer
sobre histórias, escolher acontecimentos marcantes, constituiu
caminhos que me fizeram compreender quem sou, e ajuda-
ram-me a compreender o processo de ser e estar no mundo,
diante de violências e resistências. Confirmo o que escrevi em
minha dissertação de mestrado:

O conhecimento de si, das relações, dos encon-


tros, dos saberes, tem potencial de libertação e
ruptura, à medida que o sujeito amplia, forma
e transforma sua visão do mundo. Uma vez que
se permita ser influenciado, tocado ou marcado
por um saber, pode então, consciente disso, re-
conhecer os caminhos que foram formativos no
passado e no presente. (SILVA, 2017, p. 23-24)

59
60
A POÉTICA DE
NEGRAS E NEGROS
II 61
A canção de Nei Lopes e Wilson Moreira conta que o qui-
lombo pesquisou os momentos mais felizes, as raízes, de uma
raça singular. E, na ocasião precisa, veio mostrar sua pesquisa:
ao povo, em forma de arte! Esse é o título da bela composi-
ção desta dupla tão marcante, que inspira outras gerações no

Em toda cultura nacional samba e na música brasileira. A letra dos autores encoraja-me
a afirmar neste trabalho que arte também é parte do modo
Na arte e até mesmo na ciência
africano de viver. Expressões artísticas do povo negro, histo-
O modo africano de viver
ricamente, foram reconhecidas como primitivas pelo mundo
Exerceu grande influência
ocidental e assim desvalorizadas. Contudo, nossas manifes-
E o negro brasileiro tações, tal como o samba, as rodas de jongo, as ferrarias,
Apesar de tempos infelizes mesmo desprestigiadas, encarnaram-se nas ruas, nas gentes,
Lutou, viveu, morreu e se integrou influenciando grandemente a formação artística e cultural do
Sem abandonar suas raízes povo brasileiro.
Por isto o quilombo desfila As reflexões iniciais deste segundo capítulo abordam a ne-

Devolvendo em seu estandarte cessidade de valorização de outras existências. Aprofunda-se em


tons mais escuros, nos quais o protagonismo negro é destacado,
A história de suas origens
uma vez que carece de ser assumido por quem reconhece a
Ao povo em forma de arte
Educação como prática humanizadora. Assim, poéticas negras
atravessam e contribuem na discussão sobre educação estética,
na acolhida ao corpo, à sensibilidade e aos sentidos, que ali-
(Nei Lopes & Wilson Moreira)
mentam conexões e desejos. A defesa da educação estética le-
gitima processos formativos mobilizadores de saberes sensíveis
na ação docente e no curso da vida. Uma educação/formação
que aciona a imaginação e a criatividade, assim como convoca
à participação de todos os povos e suas expressões

62
Em Aprender a ser o que se é: construir subjetivida- aponto a necessidade ontológica e epistemológica da beleza
des desmascaradas, trago possibilidades de apropriação sig- na investigação sobre formação estética. Reverenciando poéti-
nificativa de conhecimentos através da educação de si mesmo, cas negras, a partir do trabalho de artistas negras contempo-
das relações com os outros e o mundo em sua abrangência e râneas, nesse ponto trago a presença de Oxum, que na mito-
infinitude. A relação entre estética e vida, a autonomia da arte logia iorubá é o símbolo do poder feminino da fecundação e
e a legitimidade das diferentes atividades artísticas desenvolvi- da continuidade da vida.
das pelas diversas culturas são discutidas a partir da produção
teórica do grupo de pesquisadores latino-americanos que nos
últimos anos questionam a relação entre colonialidade/moder- 2.1 APRENDER A SER QUE SE É: CONSTRUIR
nidade e propõe a liberação da estética e a libertação dos seres SUBJETIVIDADES DESMASCARADAS
humanos das verdades universais em torno da arte e da beleza.
A fim de construir um lugar concreto de enunciação de No caminho da pesquisa que abriu espaço para a escu-
vidas negras, as Experiências sensíveis da/na arte e cul- ta e acolhimento das memórias e narrativas de professoras,
tura negras são reconhecidas como capacidades criativa e trilhado ainda no mestrado (SILVA, 2017), foram incluídos os
expressiva dos indivíduos e coletivos humanos que constroem múltiplos aspectos das histórias de vida e formação no proces-

regimes de representação, como estéticas re-existentes. Cul- so de fazer-se docente. Neste sentido, foi dada visibilidade aos
tivadas através do tempo, nas relações e diferentes contextos itinerários de formação estética, pelos quais cada professora
em que nos situamos, como culturas negras, de caráter plural, individualmente significa e transforma a partir de seus modos
vivo e dinâmico. Na dinâmica social brasileira, elementos de próprios de vida, na relação com os outros. Esses itinerários re-
matriz africana são incorporados na linguagem, na cultura, velaram experiências sensíveis consideradas significativas pe-
na arte, contribuindo para a constituição do que é conhecido las narradoras. Acompanhar tais movimentos, contribuiu para
como cultura afro-brasileira. se (re)pensar a formação docente no contexto da Educação

Como um espaço de formação, a escola tem um papel Infantil contemporânea, a qual está a exigir professores e pro-
importante no reconhecimento, na valorização e no respeito às fessoras que, a partir da relação pedagógica estabelecida com
histórias e culturas africanas e afro-brasileiras. Do rio Osun as crianças, reparem seus modos próprios e singulares de ser
na Nigéria: beleza, fertilidade e poética negra é onde no mundo e de expressar o mundo (SILVA, 2017).

63
Advém dos resultados daquela pesquisa, a necessidade importância de levar o professor a ver arte, frequentar museus
de se pensar propostas de formação que provoquem todos os e espaços culturais, no estudo de Simone Bibian (2017); de de-
sentidos, o corpo inteiro, uma vez que, em tais itinerários, per- sopilar lugares escondidos, acolher e celebrar o encontro com
cebe-se que a formação do gosto, a apreciação da arte e do a criança interior e acessar nossos próprios saberes corporais
fazer artístico não foram propiciadas pela escola, mas fertiliza- sensíveis e intuitivos, como apontam os resultados da pesquisa
das na natureza, marcadamente na infância, com a família, e de Marina Duvidovich (2018); E, ainda, ampliar experiências
no olhar que foi passear no museu e instituições culturais, na estéticas, dentro e fora da escola, alimentando olhares, escutas
experimentação de tempos-espaços de formação continuada e e movimentos, nas possibilidades formativas apresentadas pelo
na relação profissional. Rememorar e promover vivências que estudo de Carla Correa (2018), em diálogo com a arte, entrela-
ajudem a mobilizar saberes sensíveis, potencializando a ima- çando formação de professores e infância.
ginação e o poder de criação de professoras é uma possibili- Podemos observar, através desses trabalhos, que as nar-
dade que vem sendo fertilizada pelo grupo de pesquisa FIAR , 6
rativas e histórias de vida falam dos processos de constituição
do qual faço parte. No diálogo com professores em exercício das subjetividades. Seguindo as perspectivas (auto)biográficas,
na Educação Básica, segue promovendo ações de formação é possível conhecer tempos, lugares e acontecimentos que
e pesquisa, problematizando a formação de professores com marcam possibilidades e limites da experimentação sensível de
foco na dimensão estética. professoras/es. Visto que
Dentre os estudos do grupo, algumas produções marcam a
[...] por meio da rememoração e da escrita de
importância de valorizar a percepção nas histórias de formação si, no exercício autobiográfico, os professores
podem (re)encontrar elementos constituintes
docente, dos quais destaco: o questionamento sobre outros es-
de sua sensibilidade, localizar e articular fatos,
paços de formação, como professores têm se relacionado com acontecimentos, relações, experiências; enfim,
que os ajudaram a serem quem são, perceben-
as crianças, pensando na criança simbólica e arquetípica que do o mundo e capturando seus sentidos, em
carrega em si a liberdade, a ludicidade e a inteireza, discuti- texturas, formas, tons, sabores que emanam
beleza. (OSTETTO, 2019, p. 59).
do na pesquisa de Cristiana Seixas (2018). A discussão sobre a

No âmbito dos estudos do FIAR, a estética é considerada


6 Círculo de Estudos e Pesquisa Formação de professores, Infância e Arte - como atitude sensível e necessidade vital, um fio que conecta o
FIAR, cadastrado no diretório de grupos de pesquisa do CNPq. Para saber
mais: http://fiar.sites.uff.br/ ser por inteiro e amplia suas relações com o outro. Tendo em

64
vista que “a estética não pode ser confinada em um conceito, jeta [...]” (GALEFFI, 2007, p.110), reconhecida como funda-
mas requer um contexto, ou circunstancialização histórica, em mento primeiro para todo e qualquer aprendizado, qualquer
que pode tornar-se operatória, fazendo algo emergir, cultivan- atividade, qualquer tarefa.
do algo, gerando cultura” (CARVALHO, 2010, p.79), em nosso Educar-se esteticamente teria relação com o cuidado sen-
grupo de pesquisa, o termo “formação estética” é cunhado no sível e a aprendizagem de si, como o sentido do corpo, onde
contexto da formação de professores em relação ao campo da toda sensibilidade é corpo vivente, marcada por acontecimen-
arte, da cultura e da infância. tos que deixam vestígios, como caminhos de sensibilidade. A
educação estética ocupar-se-ia do ato de conhecer ou das dú-
Falar em formação estética docente, pois,
conduz-nos a problematizar tempos, lugares e vidas que nos rodeiam, a começar por nós mesmos. De acordo
acontecimentos que possibilitam a experiência com Galeffi (2008), aprender de si tem a ver com a sensibilida-
(do corpo) sensível, implicada em processos de de, uma vez que tudo o que vive é sensível de múltiplas manei-
percepção, de imaginação, de interpretação, ras. E como poderíamos definir sensibilidade? Com o referido
no mundo e com o mundo, por meio dos quais
autor, entende-se que a sensibilidade
a sensibilidade é alargada; experiências que
contribuem para “acender coisas por dentro”. [...] é definitivamente uma primeira linguagem:
(OSTETTO, 2019, p.10). uma origem comum. Sensível é o que é afetado
em seu modo de ser e aparecer. Sensível é tudo
o que pode ser tocado e modificado em sua gê-
Os preceitos de uma educação que envolve a sensibili- nese primordial. Sensível é tudo aquilo que é
dade são anunciados pelo pesquisador Dante Galeffi (2007), tocado pelo acontecimento da linguagem: uma
invenção muito antiga, um acontecimento mui-
ajudam-nos a fundamentar o conceito como processo de to recente. (GALEFFI, 2008, p.98).
aprender a ser o que se é propriamente. Para o autor, educa-se
esteticamente à medida em que fazemos uma apropriação sig- Nesta direção, os processos pelos quais vai se dando a
nificativa de conhecimentos através da educação de si mesmo, formação estética, dizem respeito aos atravessamentos, às
das relações com os outros e o mundo em sua abrangência e múltiplas formas como somos afetados e como podemos afetar
infinitude. Nesta direção, a dimensão sensível torna-se “a ga- nas relações com o mundo, aos modos como vamos tecendo
rantia de que podemos nos tornar inteligentes quando aquilo e compartilhando experiências e saberes, cultivados nas rela-
nos toca nos ensina e nos transforma, potencializa e nos pro- ções e contextos em que nos situamos. Como pondera Ostetto

65
(2019, p. 10), esses processos, tempos e lugares engendram [...] tornou-se um lugar para pensar (e deco-
lonizar-se), sentir, olhar para si e para o outro
“modos singulares de apropriação cultural, fundando modos e agir: um espaço de relação, de cuidado, de
de pensar, de sentir e de elaborar significados sobre o mun- criação e de (re)invenção. Reinvenção! A pala-
vra que talvez sintetize esse movimento cons-
do''. Ou seja, nos percursos, marcado por relações de estra- truiu, no encontro, o desafio de continuar a vida
nhamentos e reconhecimento de similaridades, formamo-nos e o desejo de manter a conexão com o outro
por meio da arte, do compromisso formativo
estéticamente. que nos habita e constitui nossos fazeres. (OS-
No grupo FIAR, temos tecido um caminho de compre- TETTO et al., 2021, p.173-174)

ensão da formação estética que rompe as fronteiras do co-


As propostas encaminhadas versavam sobre Museus,
nhecimento artístico ou da fruição da arte, pois tal formação,
Educação e Arte, Literatura, Sons e Canções. Dedicaram-se,
como temos dialogado com Hermann (2014, p. 124): “[pode]
também, a abrir janelas virtuais com elementos artísticos e cul-
ocorrer também em situações cotidianas, assistindo a um jogo,
turais que pudessem criar possibilidades de formação e am-
vendo uma tapeçaria, diante de cenas da natureza, ouvindo
pliação de repertórios no enfrentamento ao racismo. Nesta
música, lendo uma poesia etc. A estética se relaciona com a
ação, integrei-me com a proposição “FIAR com propostas de
nossa capacidade de aprender a realidade pelos canais da
educação antirracista”, tecida a partir das discussões no sub-
sensibilidade”. Assim, buscamos diferentes formas de pesqui-
grupo composto com mais duas fiandeiras-pesquisadoras, que
sar, tecendo outros espaços para propostas de aprendizagem,
também são professoras da educação básica e realizam estu-
suscitando a interação com professores e outros interlocutores
dos de mestrado em Educação.
a fim de ativar a percepção de pontos de vista divergentes.
Considerando formação e pesquisa na virtualidade im-
Tomo, como exemplo, a proposta “Fiar com o FIAR na qua-
posta durante o distanciamento, as propostas divulgadas às
rentena”, desenvolvida enquanto ação de ocupação/formação
sextas-feiras poderiam inspirar a criação de outras estraté-
virtual no contexto imposto pela reclusão pandêmica. Realizada
gias na direção de uma educação antirracista. No conteúdo
entre os meses de maio a setembro de 2020 na página do gru-
publicado, foram articulados texto, imagem e indicações de
po de pesquisa no Facebook7, essa ação durou cerca de vinte
páginas virtuais destinadas ao público em geral. A proposta
semanas e, como analisamos em artigo publicado a respeito:
foi uma das ações mais acessadas na página do Facebook
do grupo e, da fiação de propostas em trama antirracista na
7 https://www.facebook.com/fiaruff

66
virtualidade, produzimos um artigo no qual tecemos algumas acontecimentos e espaços que destacavam positivamente as
considerações, das quais destaco: culturas negras. Valorizar histórias de vida e a presença de

A arte trouxe para nós a oportunidade de cuida-


artistas, das artes e da cultura afrodescendente, pode bem ser
do e curadoria da forma e do conteúdo, provo- um modo a educar a favor das relações étnico-raciais.
cadora de diálogos na pandemia; ajudou-nos
a ressignificar afetos individuais e coletivos,
Então, pelas experiências e análises produzidas, fica evi-
tão importantes no caminho da consciência do dente que formação estética não significa apenas trabalhar
racismo; permitiu-nos perceber o outro pelas
lentes da sensibilidade; contribuiu no reconhe-
“com as diferentes linguagens, ouvir uma música, pintar uma
cimento da negritude que constitui a população tela, representar um papel em uma peça teatral, ou mesmo
brasileira; e, ainda, trouxe possibilidades de
identificação enquanto negros na declaração
apreciar a produção artística na cidade” (OSTETTO, 2019,
política e/ou nos modos de ver e viver. A partir p.10). Antes, como discute a autora, relaciona-se ao modo
das publicações do FIAR e seu alcance, vimos o
corpo negro no centro do interesse. O cabelo,
como nossos sentidos vão sendo acionados e refinados nas
principal alvo das atitudes discriminatórias, foi interações e experiências que vivemos na sociedade, além da
abordado em suas múltiplas formas, sentidos e
saberes, desde a cultura ancestral até os nossos arte, com as produções e manifestações culturais, com o meio
dias. (MELLO; SILVA; NEVES, 2021, p.582) natural, que se apresentam como oportunidades de aguçar a
sensibilidade atuando no/com o mundo. Nesta perspectiva,
Para este diálogo, foram escolhidos artistas negros e ne-
valoriza-se a atividade da percepção e da sensação, ou seja,
gras. Na maioria, artistas contemporâneos, pela diversidade e
de todos os sentidos mobilizados com o/pelo/no corpo.
pluralidade de materiais, linguagens e dimensões estéticas co-
O vocábulo “estética” remete à raiz grega aisthesis, que
locadas em discussão em seus trabalhos. Principalmente pela
na tradição filosófica clássica significa sensopercepção, per-
visibilidade de suas produções, seus espaços, acontecimentos
cepção e/ou conhecimento pelos sentidos; o termo ramifica-
pessoais e profissionais que, nos diálogos/provocações trama-
-se em aistheton (sensação, sensível), que significa também
dos, afetam pessoas negras e não negras. Considerando o
"absorver", "inspirar", conduzir o mundo para dentro (HILL-
entrelaçamento entre Arte, Formação de Professores e Infân-
MAN, 2010). A criação da estética como disciplina, acabou
cia, linhas que se apresentam nas tramas do nosso grupo de
por ditar normas para a crítica e criação artísticas na Europa
pesquisa, fizemos a aposta em reunir Educação e Arte para
no século XVIII. No Ocidente, a Estética é a área da Filosofia
compor narrativas antirracistas, que viabilizassem trajetórias,
que pensa a arte. O termo empregado neste trabalho, dis-

67
tancia-se daquele cunhado na perspectiva filosófica moder- saciones, y que fuera aprovechado como figu-
ra retórica en el modernismo poético/literario.
na, fundado por Alexander Baumgarten (apresentado em sua A partir del siglo XVII, el concepto aesthesis se
obra Aesthetica, em 1750). restringe, y de ahí en adelante pasará a signifi-
car “sensación de lo bello”. Nace así la estética
Para esta investigação foi necessário ampliar os estudos como teoría, y el concepto de arte como prácti-
acerca do conceito de estética e de arte. Buscava-se um sig- ca. (MIGNOLO, 2010, p. 13)

nificado para além do que consagra a produção intelectual


Sua crítica da estética ocidental-europeia é feita através de
europeia-ocidental de séculos, que para além de um processo
um quadro de referência da modernidade/colonialidade, que
civilizatório, deixou-nos um rastro de subordinação, exclusão e
considera a Europa o ponto de origem da modernidade, res-
morte por mais de quinhentos anos. Faz todo sentido rever os
ponsável por uma narrativa complexa que constrói a civilização
referenciais conceituais, tendo em vista a produção de uma te-
ocidental e celebra as suas conquistas, ao mesmo tempo em
oria que valoriza a existência de negras e negros e da vida em
que esconde o seu lado mais sombrio (MIGNOLO, 2017). Não
diversidade. Por isso, outras perspectivas foram consideradas,
há modernidade sem colonialidade, diz o autor, visto que por
menos opressivas e imperiais, mais humanizadoras e plurais,
detrás do relato de salvação, heroísmo, justifica-se a violência
a fim de responder às diversificadas manifestações artísticas e
colonial. O autor integra, com outros pesquisadores, o grupo
culturais produzidas pelas gentes do Brasil, da América Latina,
que coloca em xeque visões predominantemente eurocêntricas,
tão pouco visibilizadas. Buscou-se, assim, valorizar a arte e a
questiona e critica o sistema estabelecido impregnado nos con-
estética que inclui afrodescendentes.
ceitos e no imaginário social. Como resposta, propõe a decolo-
Em seu artigo “Aiesthesis Decolonial”, Walter Mignolo
nidade, a desconexão do poder que surge entre o Renascimento
(2010), contextualiza a adoção do vocábulo aisthesis , do berço
e o Iluminismo durante a colonização das Américas, que opera,
grego, mais amplo, a sua restrição. Cito o autor diretamente:
dentre outros, no controle do conhecimento e da subjetividade.
La palabra aesthesis, que se origina en el griego Complementando a crítica de Tlostanova (2011) segundo
antiguo, es aceptada sin modificaciones en las
lenguas modernas europeas. Los significados o qual a estética européia teria colonizado aesthesis, com o
de la palabra giran en torno a vocablos como
objetivo de reprimir as subjetividades locais, Mignolo (2010)
“sensación”, “proceso de percepción”, “sensa-
ción visual”, “sensación gustativa” o “sensación argumenta que aesthesis é um fenômeno comum a todos os
auditiva”. De ahí que el vocablo synaesthesia se
organismos vivos, já a estética é uma versão ou teoria particu-
refiere al entrecruzamiento de sentidos y sen-

68
lar de tais sensações relacionadas à beleza. Para ele, o termo las emociones y el intelecto” no son considera-
dos artísticos, y tal consideración se legitima en
estética, utilizado largamente nos campos da arte, da filosofia el discurso filosófico que define la estética como
e também da educação, relacionado com o belo e com a con- la disciplina que se ocupa de investigar el sen-
tido del arte. (GOMEZ, MIGNOLO, 2012, p. 9)
cepção europeia de arte e de história da arte, ocupou lugar de
destaque entre as elites e contribuiu no processo civilizatório Na perspectiva de investigar o significado da arte a fim
entre as colônias. de libertar subjetividades, a estética decolonial apresenta-se
Segundo Gomez e Mignolo (2012), pode-se dizer que a como opção, como uma amostra de “operações com elemen-
estética e a arte moderna são constituídas e constituintes do tos simbólicos” que buscam desmantelar o mito ocidental es-
problema da modernidade, expressam seu poder em seus mo- tabelecido para liberar as subjetividades que devem orientar
dos de representação, em seus corpos discursivos, em suas ins- suas ações, atendendo aos critérios da arte e estética. Seja pela
tituições e em seus modos de distinção e produção de sujeitos. operação com elementos simbólicos (instalações, sons, corpos,
Os termos classificam e desqualificam tudo o que pode ser arte cores, linhas, desenhos etc.) ou pela conceituação decolonial,
ou estética, e excluem o que não se enquadra nem cumpre a uma estética decolonial propõe expandir os processos de des-
universalidade pretendida da definição. Na tentativa de cons- colonização de saber, sentir, pensar e ser.
truir alternativas, os autores Importante considerar que a estética decolonial não é
[...] buscan descolonizar los conceptos cómpli- uma nova forma de colonização da estética. Nesta lógica, li-
ces de arte y estética para liberar la subjetivi-
bera-se aiesthesis, abrindo-se a uma perspectiva que promove
dad. Si una de las funciones explícitas del arte
es influenciar y afectar los sentidos, las emocio- a formação de subjetividades desobedientes aos princípios do
nes y el intelecto, y de la filosofía estética en-
discurso filosófico-estético.
tender el sentido del arte, entonces las estéticas
decoloniales, en los procesos del hacer y en sus Las estéticas decoloniales, en su doble trayec-
productos tanto como en su entendimiento, co- toria, tienen una importancia fundamental en
mienzan por aquello que el arte y las estéticas los procesos de transformación y formación de
occidentales implícitamente ocultan: la herida subjetividades y sujetos decoloniales. Descolo-
colonial. La herida colonial influencia los sen- nizar la estética para liberar la aesthesis no es
tidos, las emociones y el intelecto. En el caso ya un hacer que busca la catarsis ni el refina-
del arte y de la estética, la herida es sentida y miento del gusto, sino la liberación de los seres
sufrida (en las emociones y en el intelecto) por humanos de los diseños imperiales en sus varia-
aquellas personas cuyo hacer operando con dos rostros. La decolonialidad, recordemos, es
“elementos simbólicos que afecten los sentidos, una opción que, al presentarse como tal, revela

69
las verdades universales en opciones. Y es una Para a viabilidade de uma re-existência como práxis de
opción que promueve la dignidad y la sobe-
ranía de las personas y las comunidades por
liberdade decolonial, de acordo com o autor colombiano, é
sobre el simple bienestar económico. (GOMEZ; preciso construir subjetividades desmascaradas, com sujeitos
MIGNOLO, 2012, p.15)
capazes de reconhecer as marcas coloniais de negação, su-
bestimação, dentre outras. A re-existência, como práxis, en-
Esta posição está também presente no pensamento de
frenta as formas de dominação, exploração e discriminação.
Adolfo Albán Achinte (2017), artista, professor e ativista colom-
Constrói a consciência de ser, de sentir, de ter, de pensar, desde
biano, que em busca de uma práxis decolonial, apresenta uma
um lugar concreto de enunciação da vida, através de fazeres
forma de vida alternativa ao projeto hegemônico eurocêntrico.
que conduzem a “descolonizar, su imaginario, su imaginación,
Argumenta: a produção da não existência, a partir da nova su capacidad creadora para reconstruirse ontológicamente,
entidade geográfica chamada Índias Ocidentais, que levou su- para insistir en construir u ocupar un lugar en la sociedad con
jeitos que tiveram sua humanidade negada para exploração a su derecho a ocupar un lugar en la sociedad con su lenguaje”
encontrar seu espaço de existência, produziu a re-existência, (ALBÁN ACHINTE, 2017, p.21). Sua capacidade criativa deve
como forma de levar ao fracasso a tentativa eurocêntrica de ser decolonizada, deve estar livre para reconstruir-se ontolo-
homogeneizar para controlar, dominar e explorar. Os povos gicamente, para insistir em construir ou ocupar um lugar na
originários não só fazem resistência, mas criam formas de en- sociedade com seu direito, ocupando com sua própria lingua-
frentamento, inventando a existência. Em suas palavras: gem. Assim, entendo a práxis decolonial da re-existência como
uma decisão consciente de construir a vida, mesmo nas condi-
Es importante considerar que tanto los pueblos
indígenas como los pueblos africanos esclavi- ções mais críticas, como uma fazer libertário.
zados, no solamente resistieron al poder domi- A busca por outra forma de existir tem clara relação com a
nante, sino, que por el contrario desarrollaron
Aisthesis. Continuando uma leitura proposta por Albán Achin-
formas altamente creativas para continuar in-
ventandose la existencia incluso por fuera de los te (2017), vemos que o evento de colonização das Américas
marcos legales, pero también jugando con el trouxe implicações ontológicas, epistêmicas e estéticas. Impli-
sistema establecido. Tanto en el pasado como en
el presente estos pueblos y comunidades man-
cações que operam na ordem das representações através de
tienen y desarrollan esas formas de existencia imagens construídas e, de forma preponderante, na concep-
cotidianamente, a este acto lo he denominado ção de beleza, de puro e de dignamente possível, tornando a
re-existencia. (ALBÁN ACHINTE, 2017, p. 20)
brancura como fundamental à existência. Assim,

70
El arte como acto de reflexión perma- re-existência, segundo o autor, enfrentando o padrão hegemô-
nente - y no solamente como el hecho nico estético ocidental imposto.
de realizar objetos artísticos - debe
Concordo que a arte deva ser um ato de reflexão per-
contribuir a ensanchar los escenarios
de discusión en torno a la exclusión so- manente. Neste sentido, compreendo que aprender a ser o
cial, la racionalización, la violencia ge- que se é relaciona-se com um pensar-sentir, no movimento
nocida, la reafirmación de los estereo-
de se perceber e reexistir. Diz respeito ao autoconhecimento
tipos y el autoritarismo. De lo contrário
- y quizá sea válido también - el arte e à autoafirmação, atravessando processos de libertação e
se convierte en un ejercicio narcisista emancipação. A arte, incluída nesta transformação, traz pos-
que nos lleva a producir objetos para sibilidades de representar, imaginar e compreender o mundo,
la auto-satisfacción del campo del arte
interrogando projetos de poder. Amplia capacidades criativas
y todas las contingencias que lo acom-
pañan. (ALBÁN ACHINTE, 2017, p. 23) e expressivas de modo crítico, contribuindo para produzir ino-
vações, fortalecimento e pertencimento entre comunidades ét-
nicas, para além das representações modernas que estigmati-
A defesa da relação entre estética e vida, da autonomia
zam, folclorizam e exotizam sujeitos.
da arte e da legitimidade das diferentes atividades artísticas
Nessa dinâmica, vai se fundamentando a perspectiva de
desenvolvidas pelas diversas culturas em nosso planeta, são
formação estética a qual tenho defendido, como um mergulho
contribuições importantes do autor referido para fundamentar
de dentro para fora e de fora para dentro, que envolve per-
o que pretendo afirmar como estética nesta tese: para além
cepção com todos os sentidos, ou seja, de corpo inteiro. Onde
da manifestação do belo, a conceituação de estética é tecida
não se separa cabeça do corpo, nem visão de sensopercep-
como capacidade criativa e expressiva dos indivíduos e coleti-
ção. Que inclui a experiência de ser, saber e sentir de comuni-
vos humanos que constroem regimes de representação (ALBÁN
dades e sujeitos étnicos. E, aposta na re-existência, enquanto
ACHINTE, 2017, p.29). O que inclui o potencial de criação e
prática reflexiva do sentido de ser humano, permitindo que “la
expressão de afrodescendentes, de modo a romper com a cro-
imaginación habla a favor de nuestra propia subjetividad” (AL-
mática de poder estabelecida, que se transforma e sofistica ao
BÁN ACHINTE, 2017). A formação estética como um ato que
longo do tempo em um sistema de exclusão. Neste sentido, a
interpela as narrativas de exclusão, decoloniza mentes e, pela
arte como um sistema que interpreta, simboliza e problematiza
arte, imagina outras formas de narrar-se e re-existir.
o mundo, deve atuar como uma pedagogia decolonial e de

71
Da discussão tecida, a partir da opção por estéticas decoloniais (GOMEZ, MIGNOLO, 2012) e práticas de resistir, re-existir e reviver
(ALBÁN ACHINTE, 2013), pergunto: Como a Arte pode visibilizar e pôr em evidência a pluralidade de existências que se encontram e
desencontram no cenário pluriétnico da contemporaneidade?

2.2 EXPERIÊNCIAS SENSÍVEIS DA/NA ARTE E CULTURA NEGRAS

72
Entre 1525 e 1851, período do tráfico escravagista do continen-
te africano para o Brasil, cerca de 4.800.000 (quatro milhões e
oitocentos mil) seres humanos foram transportados e escraviza-
dos. Não se inclui nesse cálculo a quantidade de pessoas que
pereceram em captura ou durante a longa e insalubre travessia
marítima. Era grande o número de crianças entre os cativos. Os
homens e mulheres trazidos para o Brasil eram originários de
diferentes regiões da África, e de países tão diversos como os
atuais Benin, Nigéria e Togo. Vieram também etnias de países
como Gana, Senegal e Serra Leoa e ainda, em grande quan-
tidade, os oriundos de territórios da África Central, Oriental e
Meridional, configuração atual de Angola, Namíbia, República
Democrática do Congo, Zâmbia, Uganda e Moçambique. A
contribuição desses escravizados e escravizadas impactou di-
ferentes elementos da cultura brasileira. (PAULINO, 2013, p..5)

Figura 11 - Rosana Paulino.


Assentamento (2013). Instalação:
impressão digital sobre tecido, desenho,
linóleo, costura, bordado. Tecidos: 180 x
68 cm cada. Coleção particular.

Figura 12 - Rosana Paulino.


Assentamento (2013). Detalhes da obra.
Coleção particular.

Figura 13 - Rosana Paulino.


Assentamento (2013). Detalhes da obra.
Coleção particular.

73
Possibilidades de enunciação de afro brasileiros não é Assentar, como nos mostra o dicionário Aurélio,
é também o ato de xar-se ou de estabelecer re-
uma ação simples. Envolve a experiência de ser negro no Bra- sidência em algum lugar. Transplantados à for-
sil, que circunda uma grande ferida aberta e exposta. Desde a ça, os africanos e africanas que aqui chegaram
trouxeram seus saberes e práticas. Assentaram
travessia dolorosa pelo Atlântico até a discriminação e explo- aqui sua força, seu axé. A última definição para
ração de sua força de trabalho, a população negra é atormen- assentamento encontrada no dicionário Aurélio
diz respeito a:“Bras. Rel. Ser, ou objeto onde
tada. Contudo, no cenário contemporâneo, com as dificulda- assenta a energia sagrada de qualquer entidade
des sociais, economicas, educacionais enfrentadas, é possível religiosa afro-brasileira; assento.” Assentaram,
portanto, elementos que permearam nossa
encontrar uma pluralidade de existências sendo representadas fala, culinária, comportamento e, principal-
por artistas negros e negras. mente, boa parte de nossa religiosidade. (PAU-
LINO, 2013, p.4)
Rosana Paulino8 promove a enunciação de uma Poética
e Estética Decolonial. Expõe feridas coloniais, que continuam Uma das imagens exibe a representação de uma mulher
abertas e sangrando, através das Artes Visuais. Descentraliza negra. A fotografia é de autoria de Augusto Stahl (1828-1877)
lógicas, evidencia o corpo negro feminino e denuncia a violên- e foi encomendada pelo zoólogo e geógrafo Louis Agassiz,
cia colonial com ténicas e materiais reveladores. Através de um em 1865, com o objetivo de comprovação sua tese referente
ato político, marca um importante posicionamento com sua à superioridade da raça branca em detrimento das demais. A
potência negra criadora. Como uma intelectual negra, urbana mulher em questão é registrada em três posições, de frente, de
e periférica assumida, ela afronta o mundo moderno/colonial/ costas e de lado, revelando o “caráter científico” da aborda-
interseccionado. E, de acordo com a pesquisadora Lucy Cristi- gem. Não há informações sobre o seu nome.
na Ostetto (2020), com sua poética, ela evidencia vidas, con-
Imagine você estar ali entre os seus, e ser se-
tra-discursos e histórias que foram silenciadas e matizadas por questrada, levada para outro país, tendo que se
relações de poder, produzindo uma estética negra libertadora. refazer, porque não há saída para isso: ou você
se refaz ou morre. Esse não é um refazimento
Assim, as imagens que abrem esta seção fazem parte do sem trauma, e é a questão do trauma que estou
trabalho artístico de Rosana Paulino. O título da obra: Assenta- trabalhando ali. A costura em Assentamento é
extremamente violenta até no material: a su-
mento (2013), remete, inevitavelmente, aos sinônimos do ver- perfície em que escrevo a imagem é uma lona
bo assentar. usada para banner, que imprimi pelo avesso,
para ficar com a qualidade de impressão que
eu queria, e machucava a minha mão para cos-
8 https://rosanapaulino.com.br/

74
turar, é pesado, aquilo é uma lona grossa, que Ainda, o trabalho artístico desenvolvido para a exposição
tem uma camada plastificada nela, que serve
para o tecido não enganchar na máquina. Cos- Assentamento (2013) foi apresentado como material educa-
turar aquilo era difícil, tinha que fazer força. Ali tivo, sustentado em três eixos: a obra, o texto e as práticas
é uma sutura, porque essa sutura mostra que
não é possível avançarmos, enquanto país, sem interdisciplinares, agregando discussões e questões propostas
tratarmos dessas questões. Faço ali uma sutura pela lei 10.639/039.
política, estou lidando com um trauma da es-
cravidão. (PAULINO, 2019, p.21) Sob o estigma da escravidão, a colaboração afrodescen-
dente não se destaca nas contribuições para a construção do
Rosana Paulino apropria-se dessas fotografias para res- país, por isso foi regulamentada
significá-las. Com a imagem ampliada em tamanho natural,
[...] a obrigatoriedade do estudo sobre História
a artista recorta e remonta com uma sutura grossa, feita com da África e dos africanos, a luta dos afro-brasi-
linha preta, salientando uma costura agressiva. Ela amplia, leiros, a pluralidade da cultura negra e sua in-
fluência na formação da sociedade, resgatando
desmonta e remonta as imagens do corpo através de linhas de a contribuição do povo negro nas áreas: social,
costura. Nota-se uma gradação acentuada no uso da técnica econômica e política pertinente à História do
Brasil (BRASIL, 2003).
da costura. Expõe, assim, a violência da colonização e da es-
cravidão. Sua poética visual impactou-me a partir da imagem O estudo, indicado pela legislação, favorece a criação
daquele coração suturado com linha vermelha, na costura de- de identidade e de autoimagem positiva, a partir das relações
sencontrada que marca o corpo da mulher negra nua. É uma
entre África e Brasil, pois apesar da ferida colonial, permane-
representação de corpo inteiro e encontra-se fragmentada,
ce em nós a relação ancestral com aqueles que chegaram na
com tonalidades em preto e branco onde apenas o coração da
América há séculos atrás. Contribui para desvelar que mulhe-
personagem feminina, destaca-se em cores. As raízes estão em
res e homens africanos e seus descendentes, juntamente com
negro e sangue. A artista recupera seu coração, devolve-lhe
indígenas escravizados, movimentaram a economia brasileira
vida e dignidade: ela diz que esse corpo é síntese e retrato da
por séculos. Sujeitos oriundos de África, berço dos antepas-
cultura brasileira, reconhece a contribuição de mulheres que
sados do homem, que produziram riquezas com seu trabalho
trouxeram riqueza e vitalidade, gerando uma cultura pulsante
graças à heterogeneidade daqueles que a compõem. O deta- 9 Educativo - Possibilidades de trabalho para a ação educativa estão ba-
lhe da obra envolve mesmo metamorfose, reconstrução, devir- seadas nos três eixos que sustentam a exposição Assentamento (PAULINO,
2013). Saiba mais em https://pdfslide.tips/documents/assentamento-rosa-
-mulher, como pretende a artista. na-paulino-pdf-educativo.html

75
escravizado não remunerado, também produziram riquezas versidade cultural, diante da distribuição geográfica do Brasil e
culturais que penetraram na história nacional. de sua realidade etnográfica, considerando nossas diferenças
África, continente que tem grande contribuição para a hu- regionais, seja no campo da religiosidade, da música, da culi-
manidade, especialmente pela cultura, um termo plural, de cará- nária, da dança, das artes visuais, dentre outros.
ter vivo e dinâmico, que implica a uma infinidade de sociedades, Acerca da Arte torna-se importante destacar que não há
constituídas por diferentes práticas, costumes, linguagens, modos uma definição que seja comum a todas as sociedades. Para
de viver. Cultura diz respeito “ [...] às vivências concretas dos sujei- Silva e Calaça (2006), o conteúdo e a forma da arte refletem
tos, à variabilidade de formas de conceber o mundo, às particula- as aspirações de uma dada sociedade e seus valores. Sabe-se
ridades e semelhanças construídas pelos seres humanos ao longo que, durante séculos, os povos africanos tradicionais produzi-
do processo histórico e social.” (GOMES, 2003, p.75). ram objetos, formas consideradas as mais instigantes expres-
No Brasil, em uma sociedade que tende a discriminar e sões da humanidade, pinturas rupestres, máscaras, esculturas
tratar desigualmente as diferenças, adjetivar o termo cultura é em pedras e madeiras, figuras em argila, bronze, ouro e prata.
uma construção social, política, ideológica e cultural, que Sem a pretensão de produzir obras de arte, na acepção euro-

[...] possibilita aos negros a construção de um


peia, produziam Arte Africana: Música, Dança, Teatro e Artes
“nós”, de uma história e de uma identidade. Visuais, conectadas ao sagrado, cumprindo sua função religio-
Diz respeito à consciência cultural, à estética, à
corporeidade, à musicalidade, à religiosidade,
sa, para transmitir conceitos e valores civilizatórios africanos
à vivência da negritude, marcadas por um pro- (SILVA; CALAÇA, 2006).
cesso de africanidade e recriação cultural. Esse
“nós” possibilita o posicionamento de negro
Os estudos sobre história da arte foram realizados no
diante do outro e destaca aspectos relevantes Ocidente, assim deve-se atentar aos perigos na generaliza-
da sua história e de sua ancestralidade. (GO-
MES, 2003, p. 78-79)
ção do que seria arte africana, considerando a dimensão do
continente e sua maior diversidade de povos e culturas que
Chamam de “cultura negra”, no singular, as culturas que outros. No Brasil, como resultado da diáspora e das condições
fazem parte do pluralismo cultural do Brasil, segundo o pro- de escravização ocorridas entre os séculos XVI e XIX, muitos
fessor Kabengele Munanga (2020). Diferentes culturas foram elementos de origem africana tornaram-se parte da dinâmica
partilhadas e consumidas pelos brasileiros, independentemen- social brasileira e tem contribuído para a constituição do que
te de sua origem étnica. Com isso, percebe-se uma ampla di- é conhecido como cultura afro-brasileira (CONDURU, 2020).

76
Apesar da descontinuidade dos processos, essas experiên- relevante contribuição do artista, curador e pesquisador bra-
cias e as reflexões que elas exercem sobre nós, influenciaram sileiro Emanoel Araújo (ARAÚJO, 1988). Acompanhando este
também o mundo artístico, estabelecendo, mais do que uma movimento, as designações de arte “afro-brasileira” e “afro”
renovação das linguagens artísticas, diferentes modos de in- alternavam-se com “negra”, “preta” e suas derivações. Neste
corporação dos afrodescendentes com os atributos sociocultu- estudo, aderi aos termos “Arte Afro-Brasileira” e “Arte Negra”,
rais afro-brasileiros. Entendendo a africanidade e brasilidade considerando a influencia da cultura, religião e arte africana
como questões culturais resultantes da dinâmica histórica, o nas obras juntamente a autoria de profissionais negros e ne-
pesquisador Roberto Conduru, considera que gras. Destacando que, na sociedade brasileira, a cor da pele

O processo de representação de pessoas de


e os traços fenotípicos ainda são decisivos nos processos de
ascendência africana no Brasil variou ao longo exclusão social e discriminação de afrodescendentes.
do tempo e do espaço. A partir do séc XVII, a
figuração iconográfica foi dominante. Durante
Assim, considero “qualquer manifestação plástica e visual
os anos de 1960 e 1970, as Áfricas brasilei- que retome, de um lado, a estética e a religiosidade africanas
ras continuaram sendo representadas por meio
de ícones. No entanto, naquele período, novos
tradicionais e, de outro, os cenários socioculturais do negro
caminhos foram abertos na Bahia por Rubem no Brasil” (SALUM, 2000, p.113) como Arte Afro-Brasileira. E,
Valentim e por Deoscóredes Maximiliano dos
Santos, conhecido como Mestre Didi. (CONDU- também, as conexões entre as subjetividades forjadas nas re-
RU, 2020, p. 144) lações raciais brasileiras, envolvendo diálogos entre matrizes
indígenas, negras e africanas (MATTOS, 2014).
Em 1969, no início de seu auto exílio nos Estados Unidos
A ideia de arte afro-brasileira que temos hoje
durante a ditadura civil-militar no Brasil, Abdias Nascimento
nos permite entender que é uma arte produzi-
referiu-se à sua produção artística como “Afro-Brazilian art” da no âmbito das religiões de matriz africana;
é elaborada por quem experimenta as culturas
(arte afro-brasileira). Ao invés de arte negra, que considerava
negras no Brasil ou feita a partir do uso da te-
a marcação étnica a partir de um fenótipo, as cores de pele mática negro-brasileira. Seus limites com a
identidade nacional são tênues. Por isso, a dis-
dos autores das obras, deu ênfase na ascendência africana
cussão sobre o conceito de arte afro-brasileira
dos autores e/ou no africanismo dos temas das obras. consolida-se como um palco de múltiplas ideias
e de abordagens interdisciplinares. (MATTOS,
Ao longo das décadas, os modos de relacionar África,
2014, p. 129)
Brasil e Arte se adensaram, mobilizados principalmente pela

77
A compreensão de que ser artista afro-brasileiro envol- pensar e respeitar uma expressão literária que
emerge de fora dos centros acadêmicos, que in-
ve trajetórias e processos criativos próprios e a necessidade depende da elite letrada e não anseia por uma
de estudo e registro para se reconhecer sua produção artística legitimação das instâncias nobres, porque ela-
bora outros meios de visibilidade. Essa poética
como afro, implica também enfrentar o racismo, visto que a das ruas evidencia o quão potentes são os no-
abordagem racista impacta em todo o sistema oficial da arte, vos lugares de fala de minorias subalternizadas,
uma vez que as rimas insurgem-se como dis-
legitimando o que é ou não arte. cursos de resistência a um projeto hegemônico.
Ampliando o conceito de arte afro-brasileira para outras (GONÇALVES, 2015, p.57)

linguagens, incluo produções redefinidas a partir da matriz afri-


Neste movimento, destaca-se que adultos, jovens e crian-
cana. Por exemplo, a música, que se transforma em identidade
ças, ocupam o espaço público com arte e ativismo e desenvol-
negra nos blocos afro-baianos (LACORTE DA SILVA, 2018);
vem seus processos criativos. A poesia urbana constrói um mo-
as danças negras criadas e recriadas em território brasileiro,
vimento plural, protagonizado por cantores, poetas, músicos,
especialmente a dança cênica, criada por Mercedes Baptista
grafiteiros e artistas plásticos. Envolvidos por essa manifestação
(DIAS, 2021); e, ainda, o teatro negro e o conjunto de manifes-
cultural complexa e criativa, que propicia a formação de uma
tações originadas na Diáspora (LIMA, 2011). Abordam como
rede de poetas das ruas e complexifica o fazer poético, que
artes, artistas e linguagens atuam como meio de expressão,
segundo a pesquisadora, provoca um debate acerca das possi-
recuperação, resistência e afirmação da subjetividade negra,
bilidades que a literatura tem atualmente. Expressões culturais
expressões legítimas neste tempo de luta pela igualdade racial.
como as rimas, o rap, as modalidades do hip hop, margina-
Na cena contemporânea, acompanho com a pesquisa-
lizadas pela sociedade, destacam a negritude. Esses MCs que
dora Rôssi Gonçalves (2015 ), a expressão poética que advém
estão em evidência, rimando na cena cultural contemporânea,
das rimas das ruas. Marcada por coloquialismos, gírias, pro-
são nossos estudantes ou pertencem ao seu grupo social.
núncias incompletas, informalidades, envolta em uma comu-
Pelas contribuições de Gonçalves (2015) tomo consciência
nicação, onde é compreendida como uma estética resistente.
de que essa estética apropria-se de cidades e acaba por elabo-
Entendam-se as rimas das ruas como perfor-
rar um campo literário que tensiona lugares de fala. Acredito
mance. E para isso é preciso buscar outra pers-
pectiva de análise, libertar-se de uma tradição que, essas vozes emergentes, de maioria negra, podem rever-
excludente que reconhece por literatura ape-
berar na educação e incorporar-se às práticas pedagógicas.
nas o texto escrito. Mais que isso: é permitir-se

78
Incluindo a performance, o corpo, e demonstrando como os de manifestações, expressões e percepções variadas, quer seja
estudos literários não precisam estar limitados e dependentes nos museus, nos teatros, nas bibliotecas, nos espaços culturais.
dos cânones. Onde, aproximar crianças e artistas, que são negros e indíge-
Assim, desejo que escolas e creches aprendam mais com nas, pode ampliar a fruição e a curiosidade de quem indaga
os saraus, que aceitam essa demanda da literatura da periferia e aprende com um mundo pluriétnico. Visitar espaços e intera-
e produzem um ambiente favorável para os novos narradores. gir com obras, espetáculos, performances, plurais e inclusivas,
Apesar de utilizar, por vezes, ferramentas de discriminação e pode provocar outros sentidos e aprendizagens.
exclusão, espaços escolares podem acolher expressões poéti- Neste sentido, educadores devem superar os padrões
cas, ancestrais e atuais, portadoras de estéticas resistentes e hegemônicos e avançar no reconhecimento e valorização da
re-existentes feitas de arte e cultura negras. Por meio de uma arte e cultura negras. Libertar-se de um padrão universal, pela
educação estética pelos diferentes segmentos da Educação Bá- atenção aos detalhes e inclusão daquilo que está às margens,
sica, em especial na articulação com a Arte, Literatura e Histó- entre princípios e conceitos não-ocidentais. Deve-se atuar de
ria do Brasil, como preveem as DCN- ERER: forma engajada, a partir de ferramentas plurais e distintas das

3° O ensino sistemático de História e Cultura


canônicas com poesia e literatura e também com música, artes
Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro. Como
nos termos da Lei 10639/2003, refere-se, em
especial, aos componentes curriculares de Edu-
antes anunciado, é possível construir uma pedagogia que in-
cação Artística, Literatura e História do Brasil. corpore outras lógicas, pela oferta de possibilidades aos estu-
dantes de vivenciarem situações criativas, quando se entende
§ 4° Os sistemas de ensino incentivarão pesqui- que a criação é um ato consciente onde articulam-se a condi-
sas sobre processos educativos orientados por
valores, visões de mundo, conhecimentos afro- ção do sujeito em interagir com seu meio sociocultural (ALBÁN
-brasileiros, ao lado de pesquisas de mesma na- ACHINTE, 2017).
tureza junto aos povos indígenas, com o objetivo
de ampliação e fortalecimento de bases teóricas Na direção de uma pedagogia decolonial, resistente e
para a educação brasileira. (BRASIL, 2004) criativa, encontramos um grande desafio: É de acordo com o
que professores conhecem que as escolhas pedagógicas são
Em cooperação, outros espaços, como centros culturais
feitas, e estas escolhas favorecem ou não a interação com con-
e museus, podem seguir fortalecendo seu papel social e edu-
tra-discursos e histórias silenciadas pelas relações de poder.
cativo, sob ótica multicultural. Contemplando a co-existência

79
Como pesquisadora-professora que recentemente tem amplia- negra. Dificilmente a escola reconhece, e compartilha, obras e
do suas referências, provoco: Os ritmos e rimas das ruas ocu- artistas além dos modelos hegemônicos, pautados no padrão
pam as experiências vividas em creches e escolas? As imagens branco-europeu. Por isso, é importante se colocar em posição
de Rosana Paulino e outros artistas contemporâneos são reco- de escuta dos professores e professoras: o que pensam e di-
nhecidas pelas professoras? Entre as artes, qual é selecionada zem sobre hábitos culturais e a presença, em sua trajetória de
para compor as propostas? Têm origem africana ou afro-bra- vida e formação, de artistas, espaços e/ou manifestações cul-
sileira as obras que aparecem em ações educativas curricula- turais que representem as tradições africanas, afro-brasileiras
res? Estes questionamentos são pertinentes, uma vez que e/ou os cenários socioculturais do negro?

[...] nosso país conforma uma rica geografia de


As experiências sensíveis de uma pesquisadora negra, que
identidades étnico-raciais, culturais e religiosas ansiava pelo cultivo dos sentidos na educação das crianças,
de sorte que segundo o último recenseamento
geral a população negra representa mais da
trouxeram a conscientização de que a educação em todos os
metade dos brasileiros, há cerca de 250 etnias níveis é desafiada pela diversidade. Anseio e desafio deram o
indígenas, sem olvidarmos do pluralismo reli-
gioso, dos cidadãos que não professam crença
impulso para, na pesquisa, escutar professoras como um pon-
religiosa, das crianças e adolescentes portado- to de partida, como possibilidade de identificar como a negri-
ras de deficiências e daquelas que provêm de
famílias cujo núcleo difere do antigo padrão tude ocupa, ou não, sua história de formação.
homem/mulher. (HEDIO JR, 2012, p.72) Acredito que mapear os hábitos culturais dos professores
pode contribuir para conhecermos as referências negras que
Como apontam algumas pesquisas (MARTINS; LOMBAR-
resistem em seus processos formativos e apresentam-se como
DI, 2015; OSTETTO; SILVA, 2018), no percurso formativo do-
referências às suas escolhas pedagógicas. Além de preceito
cente, em cursos regulares, o contato com a arte é raro, ou
legal, é nosso compromisso enquanto pesquisadores e edu-
mesmo ausente, e, de modo geral, há poucas oportunidades
cadores imersos em uma sociedade plurirracial e multiétnica,
para a ampliação de seus repertórios estéticos para as experi-
empretecer as políticas e ações educativas na Educação Infantil
ências de fruição e de produção artístico-culturais. Se há essa
e nos cursos de Pedagogia, na Educação Básica e na Forma-
lacuna relacionada à arte de forma geral, no contexto da for-
ção de Professores.
mação docente, pergunto-me qual seria a situação com re-
A fim de educar com base em outra cor torna-se
lação ao conhecimento acerca da produção artístico-cultural
imprescindível conhecer a presença negra nos diferentes

80
campos da expressão artística e cultural no Brasil. Foi através éticas negras, no contexto deste estudo. Nas tradições, encontro
da pesquisa que encontrei o dossiê “Outros tons para o os mitos – denominados itans11 – que os povos africanos funda-
debate afro-diaspórico na arte e a fortuna da cor”10. Nessa ram e se basearam para construir sua cultura e suas histórias.
encruzilhada, o debate proposto acabou por acentuar meu Houve um tempo em que os orixás masculinos
desejo de perseguir as tantas potencialidades negras que se reuniam para discutir sobre a vida dos mor-
tais e não deixavam as deusas participarem das
traduzem-se em fortuna da cor. Pelas diferentes técnicas,
decisões. Aborrecida com isso, Oxum fez com
detalhes, abordagens da produção negra, descortinadas que as mulheres ficassem estéreis e então tudo
neste tempo, que são verdadeiras riquezas. Constato que deu errado na terra. Os orixás foram consul-
tar Olorum e ele explicou que sem a presença
muitas dessas artes fundam-se na dimensão espiritual e vem
de Oxum com seu poder sobre a maternidade,
fertilizando outras reflexões e novos pensamentos. Reforçam nada poderia dar certo. Os orixás, então, con-
assim a ideia de que o sagrado afro-brasileiro não deve ficar vidaram Oxum para participar das reuniões: as
mulheres voltaram a ser fecundas e todos os
de fora desta pesquisa. projetos dos orixás tiveram bom resultado.12

Na mitologia iorubá, Oxum é o símbolo do poder femini-


2.3. DO RIO OSUN NA NIGÉRIA: BELEZA, FERTILIDADE E no da fecundação e da continuidade da vida. Espelha a bele-
POÉTICA NEGRA za. Orixá do ouro, do mel, da beleza, do amor e da gestação.
Sem Oxum, não há fertilidade, não há prosperidade, não há
Das sociedades africanas com concepções próprias de seu vida. Representa um arquétipo predominantemente feminino,
tempo, dos fatos acontecidos e da vida, busco conhecimentos segundo o professor José Zacharias (1998), que aborda a
que fundamentam os conceitos de beleza e fertilidade. Consi- representação arquetípica composta pelos Orixás. Trago sua
derando a herança africana, acredito que aspectos das religiões
presença para abordar sobre a necessidade ontológica e epis-
afro-brasileiras podem ajudar no entendimento acerca das po-
temológica da beleza na investigação sobre formação estética.
10 Volume 7, número 1, ano 7, Abril de 2021. Organizado pela Profa. E, ainda, para reverenciar poéticas negras, a partir do trabalho
Dra.Renata Felinto; Prof. Dr. Alexandre Araujo Bispo; Profa. Ma. Fabiana
Lopes. A Revista APOTHEKE é uma publicação eletrônica de caráter acadê- de mulheres, artistas negras contemporâneas.
mico-científico, editada pelo Grupo de Estudos Estúdio de Pintura Apotheke,
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universida-
de do Estado de Santa Catarina (PPGAV/UDESC). Saiba mais em: https:// 11 Itã (em iorubá: Ìtan) são os relatos míticos (lendas) da cultura iorubá.
www.revistas.udesc.br/index.php/apotheke/issue/view/832/312 12 https://mensageirosdearuanda.org/oxum/

81
A alma é nossa base poética, segundo o analista junguiano mesmo arquétipo, porque estão consteladas em culturas especí-
James Hillman (1993), e sua forma visível é a beleza. Revelado- ficas, a grega e a africana. Fiquemos, portanto, com a imagem
ra da essência das coisas, alma e beleza são inerentes, uma vez feminina da deusa da fertilidade e da beleza como necessidade
que a alma nasce na beleza e alimenta-se de beleza. Na teoria existencial, ressaltando, para o tema em discussão nesta tese, a
que propõe, reporta-se ao belo como no pensamento neopla- presença de Oxum como guia.
tônico, como um cosmo afrodítico. Debruça-se na imagem da Essa discussão liga-se, também, ao entendimento de esté-
deusa Afrodite, a Deusa do Amor e da Beleza para os gregos: tica como sinônimo de poética, em sua percepção sensorial, da
ela, enquanto uma figura arquetípica no interior da anima da sedução, do prazer, da atração. Como bem propõe a italiana
beleza, significa a forma como as coisas são apresentadas. As- Vea Vecchi (2018), ao falar de educação infantil, uma estética/
sim, diz o autor, sem Afrodite o mundo e as coisas particulares poética se faz necessária para colocar em relação o sujeito com
tornam-se partículas atômicas sem sentido (HILLMAN, 1993). as coisas e as coisas entre si. Como possibilidades de agregar
Para mim, a beleza recorda Oxum e sua presença nas qualidade e alimentar conexões, estética e poética expressam
águas doces: a beleza é negra e corporifica-se na deusa africa- juntas um desejo de significado, de sentido, de maravilhamento:
na do amor, que nos faz reconhecer sua presença e poder sobre caminham em sentido contrário à indiferença e à negligência,
a fecundidade. Reconhecidamente, esses arquétipos constela- contrariam a falta de ação e de emoção (VECCHI, 2018).
dos em Oxum e Afrodite possuem também seus lados sombrios, Na interlocução com essas referências, do campo da
como a fúria de Afrodite por Psique, no mito grego, e a inveja de psicologia analítica e das práticas pedagógicas da Educação
Oxum que mata Iansã por competitividade, como conta o ítan Infantil, entendo que a concepção de estética apontada se
iorubano. Essas simbologias, presentes em culturas tão distintas, articula à crítica do ponto de vista decolonial, discutida ante-
portam saberes que nos fazem compreender a luz e a sombra riormente: ela não está sustentada em um modelo, em regras
que constituem nossas vidas, assim como reconhecer a beleza disciplinares, mas na relação com os atos da vida, nas relações
e o amor como forças propulsoras, que fecundam a existên- com o mundo, os objetos, as pessoas, as culturas.
cia, tensionando os pares de opostos: há alma em todas as coi- Dada a complexidade do ser negro em uma sociedade
sas, a qual é ativada a partir da estética, aquele sopro, aquele em que essa condição aparece associada à pobreza, inferiori-
inspirar, que nos faz trazer o mundo para dentro, animando-o dade, incompetência, feiura e atraso cultural, torna-se impres-
(HILLMAN, 2010). Eu diria que são nomeações diferentes para o cindível reafirmar e agregar qualidade à existência de homens

82
e mulheres, crianças e jovens, produtos e produções, do povo De que poéticas negras estou falando? Daquela que exala
preto. É considerando a humanização do outro, como sujeito a Beleza Negra que desfila na noite do Ilê Aylé, como recorda-
de si mesmo, e afirmando positivamente a presença negra, -se Lélia Gonzalez (2020). Em suas palavras, é Beleza Negra
que indico, para a educação e a formação docente, a neces- ou Ora-yê-yê-ô! que transmite “a dignidade, a elegância, a
sidade de uma estética/poética negra, dando um tratamento articulação harmoniosa do trançado do cabelo com o traje, o
digno às contribuições histórico-culturais dos povos africanos. dengo, a leveza, o jeito de olhar ou de sorrir, a graça do gesto,
Poéticas, na literatura, são recursos expressivos contidos na quebrada do ombro sensual, o modo doce e altaneiro de
nos versos. Poética negra, neste trabalho, diz respeito às co- ser” (GONZALEZ, 2020, p.216). É poética de mulheres ne-
nexões entre linguagens expressivas contidas em cada corpo gras: saberes, fazeres, modos de ser e dizer, formas de criar e
negro que carrega em si parte do território africano. Levam expressar sentidos, de anunciar e de denunciar condições vivi-
consigo culturas, atitudes no mundo, de uma região ou de um das, de tecer re-existências com as marcas culturais da ances-
lugar a outro. É o corpo, que poeticamente se expressa e con- tralidade negra, que tem tudo (ou pelo menos um pouco) des-
tribui para a reconstrução da população negra, para o perten- sa beleza descolonizada, vida e fertilidade que vem de Oxum.
cimento que deve ser construído na coletividade étnico-racial, Não por simples representação, mas por re-existência.
a partir das conexões com nossas experiências pessoais. Entre tantas, está a poética visual de Rosana Paulino, refle-
Passa pelo sujeito poético, o desejo de construção de uma tida no peito da mulher desconhecida com as linhas do cora-
identidade afro-brasileira, segundo Conceição Evaristo de Bri- ção em cores. A beleza da visualidade desta artista mulher ne-
to (2011). A escritora põe fé que gra, também reside nos detalhes de seu processo criativo, que

A poesia é uma viagem regressiva que o poeta


estão profundamente ligados à memória, às raízes, à condição
exercita no tempo, mas também a conjugação no mundo e ao trauma da escravidão. E, ainda, à criação de
do presente, a fala do cotidiano, a marcação
do aqui e do agora, lugar de sonhar, de pla-
mecanismos visuais que expressam a importância da mulher
nejar o futuro. É a sua ferramenta para soldar negra na sociedade brasileira: Mães de santo, benzedeiras,
o elo da corrente rompida. É o exercício reme-
morativo que leva o poeta a querer retornar ao
parteiras, comerciantes, depois professoras, atrizes, doutoras,
útero materno, lugar de necessário regresso, pesquisadoras etc. Com diversos materiais e o uso de outras
para que ele possa ser, ter-se, ver-se, dizer-se
por inteiro. (BRITO, 2011, p.23)
técnicas, juntamente com a gravura, é impossível apreciar suas
imagens sem ser capturada por elas.

83
Poética negra é também a poética literária de Maria da
Conceição Evaristo de Brito, que me atravessou pela primei-
ra vez na leitura de seus poemas. Entre as suas importantes
obras, destaco “Poemas da recordação e outros movimentos”
(EVARISTO, 2017), uma antologia poética em que a autora mi-
neira traz memória, feminilidade e resistência negra, a partir
de suas “escrevivências”, termo cunhado por ela para dizer
que toda sua escrita é fruto de suas experiências de vida.
Marcaram-me as escrevivências registradas em “Becos da
Memória” (2006), especialmente pela figura de Vó Rita, pela
forte imagem do matriarcado negro.

Vó Rita entrou devagarinho no quarto. De


repente. Calada. Ela que não tinha a voz calada
nunca, pois, se não estava falando, cantando
estava; que nunca chegava de repente, pois se
sabia de longe que Vó Rita estava chegando.
E eis que ela chegou pé ante pé. Grandona,
gorda, desajeitada. Abriu a blusa e através do
negro luzidio e transparente de sua pele, via-se
lá dentro um coração enorme.

E a cada batida do coração de Vó Rita nasciam


os homens.

Todos os homens: negros, brancos, azuis,


amarelos, cor de rosa, descoloridos...

Do coração enorme, grande de Vó Rita, nascia


a humanidade inteira. (EVARISTO, 2006, p. 131)

Figura 12 - Rosana Paulino. Assentamento (2014).


Detalhes da obra. Coleção particular.
84
Conceição Evaristo, romancista, contista e poeta, nascida As poéticas destas artistas negras ajudam-me no sonhar
na cidade de Belo Horizonte, em 1946, no Estado de Minas e no compor uma teoria em Educação em que Oxum está
Gerais, pontua sua ancestralidade de maneira crítica em sua presente, para trazer fertilidade ao pensamento na criação de
poesia. Toma partido da cultura negra de forma lírica e política. processos formativos nutridos com beleza. Ajudam-me a tecer
A poética feita na ciranda, na cantiga de roda, também elementos de uma filosofia enegrecida, que considera a beleza
se constitui uma poética negra. Na beleza do timbre forte de na matriz africana, alimentadora de sentidos e percepções pre-
Maria Madalena Correia do Nascimento, ecoa a ciranda, para sentes na base poética de mulheres-artistas negras. Essa estéti-
além dos mares de Pernambuco: ca/poética negra é forjada pelo ouro de Oxum, a grande mãe
entre os orixás, aquela que recebe o título de Ialodê: Yalodê,
Eu sou Lia da beira do mar
Morena queimada do sal e do Sol Ìyálodè, ìalodê ou Yalodé, uma palavra de origem iorubana
Da Ilha de Itamaracá. (Ciranda de Lia, 2000) que significa aquela que lidera as mulheres na cidade e/ou
a dona do grande poder feminino. Representa a elegância,
Cantou-me e encantou-me na Praia Vermelha, na cidade
a beleza, a estética e a poética que carregam artistas negras.
do Rio de Janeiro. Quem seria aquela mulher que mora na Ilha
Rosana. Conceição. Lia. Mulheres que em suas produções
de Itamaracá? Perguntava-me a cada dança de ciranda, junto
artístico-culturais, musicais, literárias ou visuais, revelam mais do
ao grupo de professores e estudantes, embalados pelo cortejo
que obras, geram vida e expressam a poesia de ser. Artistas ne-
da Companhia Folclórica do Rio (UFRJ).
gras que dizem de seus temores, coragens, alegrias e dores, cor-
Essa ciranda quem me deu foi Lia porificados em produções artísticas e culturais que dignificam sua
Que mora na Ilha
existência e materializam sua importância. Entre tantas mulheres
De Itamaracá. (Domínio público)
brasileiras contemporâneas que, pela arte, afirmam sua existên-
Lia de Itamaracá é dançarina, compositora e cantora de ci- cia no mundo, são referências de meu repertório artístico-cultural,
randa brasileira. Nascida na Ilha de Itamaracá em Pernambuco conforme já sinalizei. Essas três mulheres – Rosana Paulino, Con-
no ano de 1944. Ainda criança começou a participar de rodas ceição Evaristo e Lia de Itamaracá – e suas obras são importantes
de ciranda. Trabalhou como merendeira em escola pública. De- nas culturas negras, constituem a cultura brasileira, em suas his-
dicou-se a cantar e compor cocos de roda e maracatu. É a mais tórias singulares e diversas, expressas nas diferentes obras e lin-
célebre cirandeira do Brasil, patrimônio vivo de Pernambuco. guagens artísticas produzidas. Tomei as três por companhia para
a pesquisa empreendida. Adiante voltarei a falar delas/com elas.

85
86
III
COMO UM MOVIMENTO SANKOFA

87
As cosmopercepções do povo da antiga Costa do Ouro
servem como referência para a trama desta investigação.
O conceito de Sankofa (Sanko = voltar Acompanho o movimento do pássaro, tal como em Sankofa

fa = buscar, trazer) origina-se de um (Sanko = voltar; fa = buscar, trazer), de acordo com os signifi-
cados apregoados pela pesquisadora Elisa Larkin Nascimento
provérbio tradicional entre os povos de
(2008), citado inicialmente.
língua Akan da África Ocidental em Gana,
Observar a imagem-conceito desse adinkra13 denomina-
Togo e Costa do Marfim. Em Akan “se wo
do Sankofa, faz imaginá-lo em deslocamento. Sua imagem:
were fi na wosan kofa a yenki” que pode
[...] denota um estado de presença e consciên-
ser traduzido como “não é tabu voltar atrás cia, pois tanto nos expressa um movimento de
caminhar e ao mesmo tempo de flexibilidade
e buscar o que esqueceu”. Como símbolo de se voltar e buscar intencionalmente algo que
Adinkra, Sankofa pode ser representado está atrás dela. Assim, o que passou e é reto-
mado por seu movimento de volta não é ela
como um pássaro mítico que voa para mesmo em si, mas apenas o que Sankofa deci-
de buscar para seguir em movimento. (MORA-
frente, tendo a cabeça voltada para trás
ES, 2021, p.24)
carregando no seu bico um ovo, o futuro.
Também se representa como um desenho Na articulação com uma abordagem biográfica da for-
mação, considero Sankofa um caminhar para si, que traz sen-
similar ao coração ocidental. Os Ashantes
tidos para pensar e refletir a respeito da formação profissio-
em Gana usam os símbolos Adrinkra para
nal: retornar ao encontro de histórias pessoais vivenciadas em
representar provérbios ou ideias filosóficas.
outros tempos, na infância e juventude; nas relações com o
Sankofa ensinaria a possibilidade de voltar
outro, com a arte, a natureza e a cultura; em tantos espaços
atrás, às nossas raízes, para poder realizar
nosso potencial e avançar 13 Sistema filosófico, cultural e de escrita ideográfica de origem da
África Ocidental, através do qual se associa um conjunto de símbo-
los gráficos e provérbios tradicionais para a orientação da vida das
(NASCIMENTO, 2008, p. 31) pessoas e seus povos. Constitui uma arte nacional em Gana. São
mais de 80 símbolos e cada um traz um conteúdo epistemológico
simbólico”, de acordo com Elisa Nascimento (2008, p.31).

88
e instituições em que forjamos a identidade profissional, enquanto professora e professor na escola,
em instituições outras e ainda nos deslocamentos geográficos realizados. Voltar atrás para conhecer
também a história dos povos originários do Brasil, assim como de nossos ancestrais africanos e indí-
genas e/ou refugiados e imigrantes. Retornar aos saberes das raízes afro-brasileiras. E,
então, conectados com a totalidade de si, definir escolhas e seguir em frente.
Deste modo, o terceiro capítulo deste estudo é integrado por três
partes. Em Educação, Formação Docente e Abordagem (Auto)
Biográfica discute-se a educação como possibilidade de amplia-
ção da percepção do mundo e de organização para atuação
nele de forma crítica e humanizadora. Com o olhar para os
processos formativos, vislumbra-se diálogos com as con-
tribuições das abordagens (auto)biográficas, onde uma
abordagem biográfica da formação colabora com uma
teoria da formação de adultos em uma abordagem expe-
riencial. Neste sentido, Narrativas De Si são utilizadas
como estratégia discursiva, considerando a importância
da oralidade e da palavra nas bases da tradição africa-
na e pelo caráter artesanal de comunicação. No âmbito da
formação, o uso das narrativas configura-se como estratégia
formadora de consciência numa perspectiva emancipadora,
uma vez que o ato de narrar torna possível desvendar modelos e
princípios que estruturam discursos pedagógicos.

89
favor da autonomia da prática, estimulando uma pedagogia
3.1 EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO DOCENTE E ABORDAGEM
fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria autono-
AUTOBIOGRÁFICA mia do educando (FREIRE, 1996). Autonomia que vai se cons-
tituindo na experiência de várias decisões tomadas, em que
Nas bases desse estudo está a Educação como prática so-
vamos nos assumindo eticamente responsáveis; impregnada
cial, uma vez que somos seres históricos e culturais, capazes de
de nossa curiosidade, nosso gosto estético, nossa identidade
produzir e partilhar conhecimentos em rede de relações. É pela
em processo, onde destaca-se a dialogicidade como via.
educação que podemos ampliar nossa percepção do mundo e
É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira,
nos organizar para atuar nele de forma crítica e humanizadora.
em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença,
A educação é aqui entendida nos termos freireanos: “Como pro-
sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coeren-
cesso de conhecimento, formação política, manifestação ética,
temente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como
procura da boniteza, capacitação científica e técnica, a educa-
tais, se tornam radicalmente éticos. Trata-se de fundamentos im-
ção é prática indispensável aos seres humanos e deles específica
prescindíveis neste período de tantas informações e mudanças,
na História como movimento, como luta”. (FREIRE, 2001, p. 10)
em que avança a barbárie, onde o respeito à autonomia de
Educação é prática necessária ao enfrentamento da vio-
cada um e à vida com dignidade deve ser um imperativo ético,
lência e discriminação racista, e também classista, sexista,
como ele dizia, e não um favor que podemos ou não conceder
transfóbica, espalhada na sociedade; a ética é inseparável da
uns aos outros (FREIRE, 1996). Considera ainda que uma rigo-
prática educativa, compondo princípios que balizam o comba-
rosa formação ética se dá ao lado sempre da estética. De mãos
te a toda manifestação discriminatória, não importa se traba-
dadas com a decência e com a seriedade deve se achar a boni-
lhamos com crianças, jovens ou adultos. É pela educação, no
teza, de modo a evitar que processos formativos ocorram indi-
quadro dos princípios éticos, políticos e estéticos, que podemos
ferentes à beleza e à dignidade: estar no mundo, com o mundo
inspirar a criação de outros gestos, palavras e vivências a favor
e com os outros, exige de nós uma estética e uma ética. Este é
da diversidade nas escolas.
o posicionamento coerente com o que há de fundamentalmente
No que diz respeito à formação de educandos e educa-
humano no exercício educativo: o seu caráter formador, onde
dores, Paulo Freire segue como referência: formação docente
educar seria substantivamente formar.
ao lado da reflexão sobre a prática educativo-progressiva, em
Ao priorizar os sujeitos sociais, me situo no campo da pes-

90
quisa sobre formação docente no diálogo com as abordagens A abordagem biográfica reforça a ideia de que é sempre a
(auto)biográficas. Na direção inaugurada pelas chamadas própria pessoa que se forma, e forma-se à medida que elabo-
abordagens (auto)biográficas da pesquisa, busca-se uma ra- ra e compreende seu percurso de vida. De acordo com Nóvoa
cionalidade pedagógica que acolha as múltiplas dimensões, (2014), as histórias de vida e o método biográfico integram-se
que envolvem a construção dos saberes e da própria vida dos na ideia de que "ninguém forma ninguém" e que “a formação
sujeitos. Com o olhar para os processos formativos, o interesse é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos
está na pessoa, com suas perspectivas plurais de existência, da vida” (NÓVOA, 2014, p.153). Nesta direção, o adulto é
adultos profissionais, sujeitos da experiência, que vivenciam capaz de (re)construir sua formação com base num balanço da
aprendizagens e conhecimento de si ao longo da vida. Con- vida, através do que se tem chamado de reflexividade crítica,
sidero significativas, porém não únicas, as contribuições dos assumindo o comando de sua formação, por meio da consci-
estudos das histórias de vida em formação, a partir de Gaston ência contextualizada, que implica sua ação no presente. Para
Pineau (2005), Pierre Dominicé (2014), Marie-Christine Josso o autor, a consideração do processo de formação por essas
(2010) e António Nóvoa (1992; 1995). vias é responsável por desencadear também uma reflexão teó-
Os estudos com as histórias de vida em formação e as rica sobre o processo de investigação dos adultos, colaboran-
narrativas autobiográficas, situam-se numa perspectiva epis- do na criação de uma nova epistemologia da formação.
temopolítica, como afirmam Pineau e Le Grand (2012), pois Ao falarmos em processos de formação, pre-
propõem um novo tipo de conhecimento e um novo posicio- tendemos sublinhar que os adultos se formam
por meio das experiências, dos contextos e dos
namento político em ciência. Possuem um caráter descoloniza- acontecimentos que acompanham a sua exis-
dor, visto que consideram a experiência narrada e as múltiplas tência. Pensamos, em função da nossa própria
experiência no domínio da formação (e da au-
formas de histórias íntimas como legítimas, mergulham nas toformação), que a ação educativa só adquire
práticas da vida cultural, de onde trazem novidades no que se capacidades formadoras quando consegue in-
teragir com uma certa lógica da evolução pes-
refere à capacidade humana de saber e de poder em relação soal de cada um. A formação contínua deve ser
à vida. Um outro aspecto a ser destacado sobre as histórias de entendida como uma contribuição exterior que
pode modificar certas trajetórias de vida pelas
vida em formação e as narrativas autobiográficas, refere-se à quais os adultos se constroem pouco a pouco.
potencialidade de produzir dispositivos de intervenção social e (NÓVOA, 2014, p. 159).

de autoformação (PINEAU; LE GRAND, 2012).

91
No campo da Educação, especificamente na educação de surge uma variedade de temas que entrecruzam memórias,
adultos, como é o caso da formação de professores, a biogra- percursos de formação, questões de gênero, trajetórias de
fia torna-se um instrumento de investigação tanto quanto um aprendizagens que articulam a formação para a docência. Em
instrumento metodológico (DOMINICÉ, 2014). Seu uso depen- suas palavras:
de de alguns elementos, como um contexto educativo favorá- O princípio ético orientador das pesquisas com
vel: para o trabalho com percursos biográficos, segundo o au- histórias de vida é que as narrativas da expe-
riência, longe de comunicar o que já se sabe,
tor, o contexto da formação contínua torna-se mais adequado, constituem-se verdadeiros processos de desco-
considerando a maior idade e riqueza das experiências sociais berta e reinvenção de si. A dimensão heurística
e autopoiética dessa reflexão permitiria trans-
e profissionais vividas pelos adultos participantes. formar saberes implícitos em conhecimentos.
No Brasil, o uso das autobiografias e histórias de vida em E no processo permanente de interpretação e
reinterpretação dos acontecimentos, para dar
investigações sobre formação de professores e profissão do- sentido às experiências, a pessoa que narra
cente esteve em crescimento nos anos de 1990 (BUENO et al, reelabora o processo histórico de suas apren-
dizagens e se reinventa. É nesse sentido que se
2006). Ao colocar as histórias de vida e trajetórias profissionais pode conceber o uso das histórias de vida, ou
no centro dos debates, atendendo ao clamor das reformas que de narrativas autobiográficas, como processos
de formação docente. (PASSEGGI; SOUZA,
propunham a redefinição do perfil e da formação do professor, 2017, p. 14)
a intensificação de tais metodologias permitiu renovar a pes-
quisa educacional. As primeiras publicações defendiam o ca- Os paradigmas da pesquisa-formação aparecem nos
ráter formador das histórias de vida, entendidas também como anos 2000, nas propostas dos pioneiros das histórias de vida,
fontes para a compreensão das peculiaridades da formação e sobretudo Gaston Pineau (2005), que indaga: Quem faz a
especificidades das situações educativas formais e informais. história de vida de quem? Por quê? Para quê? Com o quê?
Os trabalhos que foram sendo desenvolvidos aqui no Bra- Quando? Até onde? Em função de que regras e de quais sa-
sil, voltam-se para a formação docente e situam-se na vertente beres? Envolvendo uma aposta biopolítica da reapropriação,
da pesquisa (auto)biográfica que recorre às histórias de vida pelos sujeitos sociais, da legitimidade de seu poder de refletir
e às narrativas autobiográficas como fonte e método de in- sobre a construção de sua vida, aposta-se na superação da
vestigação qualitativa. Segundo Souza e Passeggi (2017), das visão aplicacionista da Educação, marcada pela dicotomia te-
narrativas de professores, em formação inicial ou continuada, oria-prática. O texto de Maria da Conceição Passeggi e Elizeu

92
Souza (2017) deixa claro a diferenciação da perspectiva de [...] a vida pode ser vista como uma espiral, que
prossegue para um futuro aberto: enquanto se
pesquisa-formação de outros modelos de pesquisa. vive, tudo pode acontecer… fatos que hoje po-
dem ser doloridos e cheios de sofrimentos dei-
Se no modelo clássico, o objetivo é depreender
xam sinais e cicatrizes, mas podem se transfor-
leis e princípios aplicáveis à ação educativa, na
mar em recursos para enfrentar acontecimentos
pesquisa-formação, destacam-se como objeti-
sucessivos. Nos cuidados, isso parece ser uma
vos a compreensão da historicidade do sujeito e
regra: o desejo de acudir alguém nasce de uma
de suas aprendizagens, o percurso de formação
ferida […] (FORMENTI, 2008, p.61)
e, sobretudo, de emancipação, promovida pela
reflexividade autobiográfica que, superando a
curiosidade ingênua, cede lugar à curiosidade É com os sentidos para com os cuidados experimentados
epistemológica e a constituição da consciência
em primeira pessoa, que a presente tese avança. Analisar a
crítica. A pesquisa passa a fazer parte integran-
te da formação e não alheia a ela. (PASSEGGI; contribuição da poética de artistas negras para a formação
SOUZA, 2017, p. 14)
de professores, propondo encontros-ateliês como dispositivo
de pesquisa-formação, dá-se a partir de linguagens diversas
Na perspectiva da pesquisa-formação, a capacidade do
que ajudam a ir além dos limites da palavra. Neste percurso,
sujeito – pesquisado e pesquisador – em pensar seu processo
busca-se por sujeitos em total entrega, disponíveis com o cor-
de formação e descobrir possibilidades e limites do narrar é
po, com os sentimentos e com as emoções para exercitá-las e
potencializada. E ainda, evidencia-se nela a oportunidade de
senti-las, zelosos pelo encontro, gerando e recebendo cuidado.
fomentar a criação de uma conexão entre saberes e identida-
É também, e sobretudo, o corpo que está em questão e
de, entre experiências vividas e realidade, revelando relações
relação nos percursos formativos. No seio de uma pesquisa-
constituídas do saber viver: consigo mesmo, com os outros,
formação, Jeanne-Marie Rugira (2008) defende a ideia de que
com o mundo (FORMENTI, 2008). No trabalho de acompa-
a relação com o corpo é um pilar dos processos de formação
nhamento autobiográfico, a pesquisadora italiana Laura For-
e de criação coletiva do sentido, assim como do conhecimento
menti, coloca em questão a dimensão da existência e indaga
e da saúde. A pesquisadora dos eixos biográfico e somático,
o modo como as competências de cuidado são aprendidas.
dialógicos e interculturais na formação, oriunda da cidade de
Aponta que saber cuidar nasce da história vivida, da experi-
Ruanda, na África Ocidental, defende que um procedimento
ência de cuidados recebidos e dados. Reconhece que o zelo
biográfico demanda por uma “pedagogia corporificada”. A
faz parte do cotidiano, do familiar, que são as dimensões mais
relação com o corpo sensível e a atualização das capacidades
invisíveis na vida de uma pessoa. Deste modo, diz,

93
de atenção, percepção e reflexão constituem condições prévias citar narrativas autobiográficas. E, ao mesmo tempo, configu-
para a enunciação biográfica. Cito sua argumentação: ra-se como um campo formativo pela abertura dos sentidos,

A relação com o corpo e com o movimento inter-


através do corpo, que concentra nossa forma de desejo. A di-
no é assim, para mim o suporte primeiro de meu reção é a de uma abordagem integradora, cuidadosa, criativa
próprio processo de transformação e de minha
prática biográfica na formação, na pesquisa e
e formadora, com os aportes conceituais da abordagem expe-
na intervenção. A relação com meu corpo não riencial, no âmbito de um projeto de formação de adultos e,
me dá somente acesso a um movimento, mas,
sobretudo, a uma consciência de um movimen-
em específico, de formação continuada de professores.
to. Graças ao corpo sensível, tenho consciência Em uma abordagem experiencial, a centralidade no sujei-
não apenas de uma presença para mim, mas,
acima de tudo, de uma presença em mim. Uma
to aprendente, em interações com outras subjetividades, está
consciência que traz em si um potencial de per- presente na teoria da formação, como a formulada pela es-
cepção, de ação de qualidade de presença e de
expressão que pede apenas para se manifestar,
pecialista neste campo, a pesquisadora Marie-Christine Josso
bastando que uma atenção treinada se detenha (2010). Ela discute o lugar que ocupam as experiências pelas
sobre ela. (RUGIRA, 2008, p. 84)
quais se formam e transformam nossas identidades e subjeti-
Nesta pesquisa com professores, reconheço a importância vidades e propõe que um processo de investigação-formação

de uma educação da atenção, compreendida nas condições implica a pessoa na sua globalidade de ser, abarca dimensões

extracotidianas (RUGIRA, 2008), pela relação com o silêncio e sensíveis, afetivas e lógicas.

a conversão do olhar para a interioridade do corpo, de modo A formação pode ser descrita por meio de gê-
neros de aprendizagem e de conhecimento tais
a permitir uma articulação entre o sentir e o pensar, com a per-
como as aprendizagens psicossomáticas, as
cepção e o pensamento no centro da relação. Na experiência aprendizagens relacionais e técnicas, as apren-
dizagens reflexivas e os conhecimentos cor-
de si, como diz a autora referida, na atenção do sujeito que
respondentes. Esses gêneros designam outras
aprende a deixar-se refletir sobre estar no mundo, para então, tantas tomadas de consciência de nosso modo
de ser em relação a nós mesmos e ao nosso
narrar, vislumbrando uma abertura de caminhos de transfor-
ambiente natural e humano. Essa descrição se-
mação interior, ao mesmo tempo, de projeção nas relações ria incompleta se não lhe juntassem os diferente
registros e referências, como o psicológico, o
que queremos tecer com o mundo. psicossociológico, o sociológico, o econômico,
A proposta de compartilhar poéticas de artistas negras o político, o cultural e o espiritual, que expri-
mem também outras tantas tomadas de consci-
lança-se como aposta em um campo dialógico capaz de sus-

94
ência dos discursos possíveis sobre nosso estar Sem um trabalho especificamente centrado
no mundo. (JOSSO, 2010, p.314) nas tomadas de consciência de nossas ideias,
nossas crenças, nossas convicções etc., para as
quais o trabalho biográfico sobre as histórias
Neste quadro teórico, descrever a formação implica ter o
narradas de formação é uma das vias possíveis,
foco nos processos, que em quaisquer ritmos e temporalida- nós continuaremos profundamente prisioneiros
de nossos destinos socioculturais e sócio-históri-
des, constituem a trama da vida e as simbologias elaboradas.
cos. (JOSSO, 2002, p. 436)
A autora explica que pode ocorrer uma tomada de consciência
pela narrativa de situações e acontecimentos vividos: as expe- Nesta concepção está a ideia de que a tomada de cons-
riências trazidas à tona são tão variadas, que a melhor forma ciência individual daquilo que constitui nossa subjetividade,
de as descrever consiste em narrar acontecimentos, atividades, pelos processos de formação ou pelos temas dinamizadores,
situações ou encontros que servem de contextos para determi- seja capaz de introduzir uma mudança qualitativa na relação
nadas aprendizagens. Deste modo, centrar-se nas narrativas, consigo mesmo e com seu meio ambiente, que permite proje-
permite estabelecer marcos importantes no estudo dos proces- tar-se e guiar transformações. Considerando uma perspectiva
sos de formação. de formação como autoformação, a pesquisadora introduz a
As experiências que evocamos em nossa vida são consi- ideia de uma progressão na ampliação e no aprofundamento
deradas inesgotáveis. Como a pesquisadora afirma, ao longo da consciência. Partindo desta premissa, traz sentidos impor-
da vida algumas vivências têm intensidade particular, que se tantes a partir da ideia de “caminhar para si” (JOSSO, 2010),
impõem à nossa consciência e nos são úteis nas relações co- como perspectiva de formação de adultos e de professores.
nosco e com os outros. Essas são reconhecidas experiências Com foco na atividade do sujeito, traz uma significativa repre-
formadoras, enquanto processo de conhecimento. Trata-se de sentação do processo de conhecimento da existência: como
vivências que atingem o status de experiências a partir de um uma viagem, ao longo do caminho o viajante pode reconsti-
certo trabalho reflexivo sobre o que nos passou, o que foi ob- tuir o itinerário e os diferentes cruzamentos com caminhos de
servado, percebido e sentido. Assim, tomo o conceito de expe- outros – as paradas longas, os encontros, desencontros, acon-
riência formadora (JOSSO, 2002), na compreensão de que os tecimentos, explorações e atividades –permitindo-lhe compre-
relatos de uma narrativa de formação podem vir a ser trans- ender o que o orientou. Como viajante, também pode fazer o
formadores, já que inventário de sua bagagem: recordar sonhos, contar cicatrizes,
descrever atitudes e comportamentos. Enfim, na bela síntese

95
da autora: “Ir ao encontro de si visa a descoberta e a compreensão de que viagem e viajante são apenas um.”
(JOSSO, 2010, p.53).
Importante destacar que no processo de conhecimento de si está em jogo não apenas os processos formativos
ao longo da vida. Tem-se em vista a tomada de consciência de que reconhecer a si mesmo como sujeito, permite
encarar o itinerário da vida, articular de forma mais consciente suas experiências formadoras, seus desejos e seu
imaginário nas oportunidades socioculturais que soube aproveitar, criar e explorar. A fim de que haja transforma-
ção da vida sociocultural, com uma maior lucidez, diz a autora:

O processo de caminhar para si apresenta-se, assim, como um projeto a


ser construído no decorrer de uma vida, cuja atualização consciente pas-
sa em primeiro lugar, pelo projeto de conhecimento daquilo que somos,
pensamos, fazemos, valorizamos e desejamos na nossa relação conosco,
com os outros e com o ambiente humano e natural. (JOSSO, 2010, p. 59)

Tais proposições também ganham acordo com Nóvoa (2021), para o qual o lugar das experiências de vida na
formação de professores reside na compreensão de que tornar-se professor implica integrar dimensões pessoais e
profissionais, e ainda o desenvolvimento de uma vida cultural e científica própria, em espaços e tempos que permi-
tam um trabalho de autoconhecimento, de autoconstrução. O professor António Nóvoa afirma que há uma ligação
forte entre aquilo que somos e a maneira como ensinamos, justificando que

[...] os professores, como pessoas, devem ter um contacto regular com a ciência, com a literatura,
com a arte. É necessário ter uma espessura, uma densidade cultural, para que o diálogo com os alu-
nos tenha riqueza formativa. Facilmente se compreende que quem não lê, muito, dificilmente poderá
inspirar nas crianças o gosto pela leitura. E o mesmo se diga da Matemática, ou da História, ou das
Artes… (NÓVOA, 2021, p.1122)

96
Em suas considerações, o pesquisador rei- maior a capacidade de acolher as múltiplas dimensões da vida
tera que a formação é fundamental para cons- dos sujeitos. Entremeia-se pelo campo da formação docente
truir a profissionalidade docente, não servindo como movimento, dando valor à consciência e um estado de
apenas para preparar os professores do ponto presença, imprescindíveis para o conhecimento e a prática de si.
de vista técnico, científico ou pedagógico. Afirma É a expressão da caminhada, ao mesmo tempo da flexibilidade,
que não pode haver boa formação de professo- com que se pode voltar e buscar intencionalmente algo que está
res se a profissão estiver enfraquecida, mas tam- atrás dela para projetar o futuro. É movimento, é diálogo, é co-
bém insiste que não pode haver uma profissão nhecimento. É a percepção de um passado-presente-futuro, um
forte se a formação de professores for desvalori- tempo-lugar da formação.
zada e reduzida apenas ao domínio das discipli-
nas a ensinar ou das técnicas pedagógicas.
Deste modo, as abordagens biográficas em
3.2 NARRATIVAS DE SI: ALMA, OLHO, MÃO VIBRANDO
pesquisa e em educação apresentam-se como FORÇAS VITAIS
uma via de conhecimento que enriquece o re-
Se a narrativa é um pressuposto nas abordagens (auto)
pertório epistemológico e metodológico de edu-
biográficas da pesquisa, reconheço também o exercício de
cadores. Lembrando que não há construção de
narrar nas bases da tradição africana, no poder da oralidade
uma identidade pessoal sem ancoragens coleti-
e da palavra pela tradição viva. O vínculo com a tradição oral
vas – vivências e relações na família, pertenças
do povo fula – nação de pastores nômades que conduz seu
a grupos diversos –, uma vez que o atravessa-
rebanho pela África savânica –, levou o pesquisador Hampa-
mento com cada um guarda uma marca e uma
té Bá a buscar o reconhecimento da oralidade africana como
possível história. fonte legítima de conhecimento histórico. Com este escritor
À procura da inteireza, Sankofa contribui malinense, aprendo sobre a amplitude da fala e da escuta,
para uma abordagem biográfica da formação, um conhecimento total, que envolve a totalidade do ser: “[...]
ampliando suas bases, a partir de uma perspecti- sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda
va cuidadosa, criativa e, sobretudo, ancestral. As- manifestação de uma só força, seja qual for a forma que as-
sim, amplifica a ideia de caminhar para si. Torna suma, deve ser considerada como sua fala. É por isso que no

97
universo tudo fala: tudo é fala que ganhou forma e corpo”. na referência de Walter Benjamin (1993, p. 221). A narração
(BÂ, 1982, p. 185) envolve a alma, o olho e a mão, “em seu aspecto sensível,
Sinônimo da fala, a narrativa é reconhecida como uma não são de modo algum o produto exclusivo da voz” (BENJA-
forma artesanal de comunicação pelo filósofo Walter Benjamin MIN, 1993, p.222), pois toda ação faz vibrar forças vitais e,
(1993). Ele diz que narrativas contam os fios de nossa história segundo a tradição viva, pode-se dizer que todo ofício manual
e aponta que a construção da experiência é possível através da esculpe o ser do homem.
narratividade. Considera sua capacidade transformadora, ao Pela sua vitalidade, defendo que narrativas de si precisam
mencionar que a verdadeira narrativa não se esgota, conserva ser amplificadas, ser percebidas em suas tramas. E por isso,
suas forças mesmo depois de muito tempo e ainda é capaz de devemos torná-las visíveis, transformar vozes em palavra/cor-
desdobramentos. po, a fim de exaltar a qualidade das experiências, destacar a
A tradição viva percebe e qualifica o processo de falar dimensão da existência, elevando assim a constituição de sua
como sagrado, que está ligada aos ofícios tradicionais artesa- humanidade. Deste modo vislumbrei a pesquisa: com profes-
nais, junto aos ferreiros, tecelões e artesãos. O pensador ale- soras de Educação Infantil, no tempo-espaço de encontros-a-
mão, por sua vez, refere-se ao tempo passado, aos artesãos, teliês biográficos, a fertilização de narrativas – orais e escritas,
no meio dos quais o narrador revive e expressa suas histórias bem como musicais, fílmicas, visuais e imagéticas –, geradoras
com o sentido de comunicar. Ambas as filosofias relacionam de movimento e ritmo, vida e ação de acordo com o poder
as formas artesanais à atividade narradora. Falam do ato de criador da fala humana.
narrar como uma relação viva de participação, que vem da O uso das narrativas, no âmbito da formação, configu-
reunião de saberes e fazeres, e não apenas de passiva utiliza- ra-se como estratégias formadoras de consciência numa pers-
ção de bens produzidos. Afirmam como o conhecimento pode pectiva emancipadora, como já me referi em outro momento.
incorporar-se aos gestos e ações e à totalidade da vida através E aqui trago outra contribuição:
da oralidade, de uma história contada-ouvida.
O professor constrói sua performance a partir
Cada fala/narrativa entendida como um fio, revela em de inúmeras referências. Entre elas estão sua
sua trama uma atividade que é estética, onde, traçar, matizar, história familiar, sua trajetória escolar e aca-
dêmica, sua convivência com o ambiente de
carrega em si uma dimensão própria de quem enuncia, que
trabalho, sua inserção cultural no tempo e no
deixa uma marca, “Como a mão do oleiro na argila do vaso”, espaço. Provocar que ele organize narrativas

98
destas referências é fazê-lo viver um processo seja na entrada pessoal, a partir de relatos e diários, ou tem-
profundamente pedagógico, onde sua condição
poral, considerando memórias e lembranças. Trata-se da vida
existencial é o ponto de partida para a constru-
ção de seu desempenho na vida e na profissão. singular e plural, privada e pública. A vida, compreendida em
Através da narrativa ele vai descobrindo os sig- sua polissemia, a partir do interesse, da dificuldade e da plu-
nificados que tem atribuído aos fatos que viveu
e, assim, vai reconstruindo a compreensão que
ralidade de formas da existência, para além do eu, nos laços
tem de si mesmo. (CUNHA, 1997, p. 2) com o outro e o mundo.
O cheiro da morte ainda nos ronda e permanecemos afo-
Através das narrativas de si, ou narrativas (auto)biográfi-
gados, devastados. Até hoje seguimos sem conseguir respirar.
cas, é possível desvendar modelos e princípios que estruturam
E, por isso, na pesquisa, é preciso ultrapassar limites, derra-
discursos pedagógicos. Souza (2008) reitera que o ato de lem-
mar-se em busca de ar, por outros caminhos, como propor
brar e narrar possibilita ao sujeito-professor reconstruir expe-
a um grupo de professoras buscar, em si mesmas, a beleza
riências e criar espaço para refletir sobre sua prática. O pes-
das experiências sensíveis. Isto seja: chamar a participação
quisador destaca ainda a perspectiva colaborativa da pesquisa
em vivências que (re)conduzam a encontros com as histórias e
com narrativas de formação, onde pesquisador e colaborador
culturas negras que acendem nossa humanidade, que fazem
questionam suas ideias e práticas à medida que escutam e
sair das bordas a sensibilidade para manifestar a vida. Desse
leem a narrativa do outro, instalando um efeito formador que
modo, poderemos re-existir, além de resistir e sobreviver.
possibilita apreender conhecimentos específicos sobre as traje-
tórias individual e coletiva.
Na prática de quem pesquisa, apresenta-se como desa-
fio a comunicação das narrativas (auto)biográficas, de modo
a tornar visível a construção da experiência do sujeito na di-
nâmica da vida, a partir de histórias pessoais, em interações
com outras subjetividades, percebendo, no centro das narrati-
vas de vida, como a formação se anuncia. Narrar histórias de
vida significa construir um novo espaço-tempo para a busca
do sentido da vida, de acordo com Pineau e Le Grand (2012),

99
100
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
IV
TRAMAS DA QUESTÃO RACIAL

101
A costura da Educação Infantil segue como um com- de Niterói/RJ, com base em atos normativos. Em seguida, des-
plexo tecido entrelaçado pela diversidade étnico-racial. taca marcos e concepções que envolvem a educação em Re-
Os sofrimentos que assolaram, e ainda assolam, o Brasil lações étnicorraciais na Educação Infantil, considerando
no sombrio período entre 2018 e 2022, tempo do meu a relevante atuação do Movimento Negro e a participação de
doutoramento, exigem de mim e de nós, mais do que pesquisadores na implementação de políticas que envolvem as
nunca, um olhar cuidadoso à vida pregada nas margens. crianças de zero a cinco anos; articula, ainda, as contribuições
Reivindicam atenção à presença daqueles e daquelas de estudos recentes sobre Crianças, Educação Infantil e Relações
que asseguram a educação das infâncias, que apontam Étnico-raciais. Levando em conta a prática de ERER, o capítulo é
a continuidade e viabilidade de seguir por entre os defei- finalizado com a discussão e proposição de Outras imagens,
tos da tela e desafios da vida. A Educação Infantil, que gestos e diferentes linguagens para educar crianças.
move esta teia, é a primeira etapa da Educação Bási-
ca, de acordo com a legislação nacional LDBEN/1996,
e refere-se ao atendimento de crianças de zero a cinco
4.1 NA CIDADE DE ARARIBÓIA, A EDUCAÇÃO INFANTIL
anos, em instituições do tipo creches e pré-escolas. Assim, DA REDE PÚBLICA
ao refletir sobre lembranças das creches em que atuei,
dos profissionais e familiares que conheci, pude perceber Em cada canto do Brasil há uma história de luta dos povos

que as crianças me trazem o sentido do fio. São elas que negros e indígenas, apesar de quase sempre serem focados

orientam meu posicionamento, na direção das escolhas e no passado, e de forma secundária, nos livros. Por isso, como

cortes necessários, no tecido da vida. dispõe a lei 11.645/08, torna-se importante abordar o tema
Tramado junto aos fios desta peça, a Educação Infan- da diversidade étnico-racial afirmando traços históricos e cul-
til, este capítulo aborda questões conceituais e históricas turais considerados significativos na formação da sociedade
em três partes que integram o âmbito da pesquisa. Ini- nacional, resgatando as contribuições de negros e indígenas
cia pelo contexto em que a investigação foi realizada: Na nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do
cidade de Araribóia, a educação Infantil na Rede Brasil. Neste sentido, ao pensar na cidade que é cenário para
Pública apresenta breve histórico e organização curricular esta investigação (haja vista que as professoras participantes
da Educação Infantil da rede pública de ensino da cidade atuam nas unidades de educação infantil da rede pública de

102
Niterói), chama atenção o protagonismo de Araribóia na única
cidade do Brasil fundada por um indígena.
A primeira lembrança que tenho de Niterói é da estátua
de Araribóia na praça no Centro da cidade. Eu tinha por volta
de sete anos e atravessei a baía de barca com meu pai para
passear em Jurujuba, bairro localizado em uma enseada da
Baía da Guanabara, que abriga uma antiga colônia de pesca-
dores. Lembro que na saída da estação das barcas do centro
da cidade, encontrei a estátua do indígena. Ele está nu? Pensei,
ao olhar a escultura. Até hoje, lá ele segue, como costumam
dizer pela cidade: com os olhos voltados para a baía de Gua-
nabara e protegendo a cidade de Niterói as suas costas.

Figura 15 - Estátua
de Araribóia, na
praça do mesmo
nome, em frente à
estação das Barcas,
em Niterói. Imagem
retirada da internet.

103
O cacique Araribóia foi um chefe da tribo dos temiminós, de vida do estado. É um dos principais centros financeiros e
grupo indígena tupi que habitava o litoral brasileiro no Século comerciais do estado do Rio de Janeiro. Por exemplo, no setor
XVI. Seu nome em tupi-guarani significa "Cobra da Tempesta- de petróleo, a região responde por 70% do parque do setor,
de". Araribóia ajudou os portugueses na conquista da baía de instalado no estado, concentrando desde empresas de offshore
Guanabara frente aos tamoios e franceses, em 1567. Como a estaleiros. Tem a renda e a educação como responsáveis pela
recompensa, os portugueses lhe cederam uma região. Dizem melhoria nas condições de vida da cidade.
que o cacique tupi apontou para o outro lado da baía e disse Niterói é também a cidade brasileira que desponta no
que queria aquela região de "águas escondidas", que viria a ranking como campeã em segregação racial, de acordo com
dar origem à atual cidade de Niterói, da qual é considerado o mapa da segregação racial15 de 2015. O ranking mostra a
o fundador. O local era conhecido como "Band’Além". E foi distribuição da população no país, onde brancos e negros não
para lá que Araribóia levou sua tribo, fundando a vila de São ocupam os mesmos espaços. Revelando dificuldades para a
Lourenço dos Índios. Ele foi um personagem importante para mobilidade social, acesso a serviços básicos e oportunidades
a história de Niterói e também da colonização portuguesa no para o trabalho, o que faz, por exemplo, o niteroiense negro
Brasil. Tornou-se um personagem controverso, tido por alguns pobre segregado do Morro do Caramujo continuar sendo um
como herói e por outros como traidor, como ressalta a pesqui- negro pobre segregado. Na cidade, é possível identificar vá-
sadora Lia Bastos (2018), no livro “Niterói, terra de índio”. rias contradições, apesar do cenário suntuoso. Inclusive, certo
Esta investigação foi delimitada à cidade de Araribóia, mu- afastamento, invisibilidade e negação das referências indíge-
nicípio de Niterói , que integra a região metropolitana do esta-
14
nas ancestrais.
do do Rio de Janeiro, no Brasil. Foi capital estadual fluminense No tocante ao fomento da produção cultural, a cidade de
até a fusão entre os estados do Rio de Janeiro e da Guanabara Niterói conta com as ações da Secretaria Municipal das Cultu-
em 1974. Banhada pelas águas da Baía de Guanabara, osten-
ta um dos mais elevados índices de desenvolvimento humano 15 A análise da segregação espacial tomou como base o indica-
dor de raça e cor (colhido pelo IBGE, que classifica as respostas
do país e se destaca como o primeiro município em qualidade de acordo com a autodeclaração dos entrevistados); em conjunto
com outros indicadores se tornou um modo eficiente de demonstrar
que para entender as dinâmicas sociais no Brasil, levar em conta
14 Niterói é um município brasileiro da Região Metropolitana do Rio sua constituição de raça e cor é fundamental. Fonte: https://www.
de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro. Ver mais em https://pt.wi- nexojornal.com.br/especial/2015/12/16/O-que-o-mapa-racial-do-
kipedia.org/wiki/Niter%C3%B3i -Brasil-revela-sobre-a-segrega%C3%A7%C3%A3o-no-pa%C3%ADs

104
ras (SMC)16, órgão que planeja, coordena e executa políticas do de Carvalho (na sede da Fundação), a Companhia de Ballet
públicas culturais, estimulando o resgate e o reconhecimento da Cidade de Niterói e a Biblioteca Parque de Niterói. Vale res-
das expressões artísticas e identitárias, na sua diversidade, em saltar que as instituições e equipamentos de cultura estão con-
diálogo com a sociedade civil e os movimentos artísticos dos centrados no eixo Centro e Zona Sul da cidade.
territórios da cidade. O “Programa Cultura é um Direito” en- Da cena cultural da cidade, também faz parte o Centro de
globa diversas ações estruturantes da SMC, que perpassam Artes da UFF18, mantido pela Universidade Federal Fluminense19
vários projetos de políticas públicas culturais da cidade. Em no- e localizado no prédio de sua reitoria, no bairro de Icaraí. Em
vembro de 2021, criou-se uma Carta de Direitos Culturais, um sua estrutura, com um teatro, um cinema e uma galeria de arte,
pacto social para consolidar os direitos, promover, valorizar e que abrigam exposições, shows, concertos, ciclos cinematográ-
estimular a democratização da cultura em uma época propícia ficos, peças teatrais e apresentações diversas, promove uma
para avaliar o acúmulo dos últimos anos e as urgências real- verdadeira e produtiva interação artístico-cultural com a comu-
çadas pela pandemia de Covid-19. nidade. Os vários campi da UFF confundem-se com a geografia
A Fundação de Arte de Niterói (FAN) é uma instituição vin- da cidade, localizados em vários bairros - Centro, São Domin-
culada à Secretaria Municipal das Culturas, que tem a finalida- gos, Ingá, Santa Rosa, Vital Brasil - e incorporados à rotina dos
de de estimular e promover manifestações de caráter artístico moradores. Costuma-se dizer que a universidade está para a
e cultural de interesse do município. São unidades da FAN, de cidade assim como a cidade está para a Baía de Guanabara.
acordo com seu portal17, na categoria museus: o Museu de Arte Pode-se dizer que a UFF e a cidade de Niterói formaram
Contemporânea (MAC) e o Museu Janete Costa de Arte Popular ao longo dos anos uma parceria bem-sucedida. Em Niterói,
(MJCAP). Em teatros: o Teatro Municipal João Caetano, o Tea- por exemplo, ficam situados o Hospital Universitário Antônio
tro Popular Oscar Niemeyer e a Sala Nelson Pereira dos San- Pedro, a Reitoria, o Núcleo de Documentação, a Editora Uni-
tos. Com relação aos espaços Culturais: a Sala Carlos Couto, o versitária, dentre outros. A maioria dos cursos de graduação,
Centro Cultural Paschoal Carlos Magno e o Solar do Jambeiro. especialização, mestrado e doutorado são ministrados no mu-
E ainda: a Igreja de São Lourenço dos Índios, a Sala José Cândi-

18 Para saber mais: https://www.facebook.com/centrodeartesuff/


16 https://www.culturaniteroi.com.br/cultura http://www.centrodeartes.uff.br/?fbclid=IwAR2HL8QNGASRRnkslE-
17 https://culturaeumdireito.niteroi.rj.gov.br/fundacao-de-arte-de- SA9PX_y47r7_0fS65b1moeEkUCNG9nV3EpJ8aGvac
-niteroi 19 https://www.uff.br/

105
nicípio. A universidade marca não apenas a cena urbana de cunho comunitário ou filantrópico e jardins de infância ligados à
Niterói, mas também influencia a trajetória de formação de Secretaria de Educação do Estado. Nesse contexto:
seus profissionais. Muitos estudantes, egressos dos cursos da O movimento de encarar crianças de zero a seis
universidade, trabalham nos serviços públicos da cidade. Em anos como cidadãs de direitos e de garantir sua
educação começa a ser discutido efetivamente
especial, os professores da Educação Básica são formados, em em Niterói a partir de 1994, quando se inicia
grande parte, pelos cursos de licenciatura da UFF. processo de responsabilizar e transferir para a
Secretaria e a Fundação Municipal de Educação
Retomando o destaque ao escopo desta reflexão, a Edu- o trabalho nas creches e pré-escolas, que antes
cação Infantil na cidade de Niterói, vale dizer que o atendi- eram administradas pela Secretaria de Bem-Es-
tar Social. (NITERÓI, 2010, p.13).
mento educacional em creches e pré-escolas acompanhou de
certa forma a mobilização nacional pela conquista do direito Em decorrência, no ano de 1994 foi criado o Programa
social das crianças de zero a seis anos à educação, a partir dos Criança na Creche (Decreto Legislativo Nº 287/94), que marca
movimentos de mulheres e comunitários, bem como das lu- o início da municipalização de creches e pré-escolas e a inser-
tas dos próprios profissionais da educação. O reconhecimento ção das creches comunitárias conveniadas à rede de educa-
da Educação Infantil como dever do Estado, de acordo com a ção pública. O ano de 1996 traz a elaboração do documen-
Constituição de 1988, possibilitou a construção de uma nova to “Construindo a Educação Infantil do Município de Niterói”,
identidade às instituições que cuidam e educam das crianças por meio de parceria da antiga Divisão Materno-Infantil, das
pequenas, sejam creches ou pré-escolas, apoiando a busca equipes técnicas das Unidades de Educação Infantil com a UFF
contínua da superação de perspectivas de educação assisten- (através do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa, Extensão e Es-
cialista e preparatória para o ensino fundamental. tudo da criança de 0 a 6 anos). Destaco este documento por
No documento Referenciais Curriculares para a Rede Muni- considerá-lo à frente do tempo, pela reunião de pressupostos
cipal de Ensino de Niterói: Educação Infantil – Uma construção que orientam o trabalho na Educação Infantil, antes mesmo das
coletiva (NITERÓI, 2010), localizamos alguns acontecimentos orientações nacionais, como o Referencial Curricular Nacional
que marcam a história da Educação Infantil na cidade. Segundo para a Educação Infantil - RCNEI (1998) e as Diretrizes Curricu-
o documento, até a regulamentação nacional, que reconhece as lares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (1999; 2009).
crianças pequenas como cidadãs e com direito à educação, o Observa-se que o município de Niterói acompanha os mo-
atendimento a essa população era realizado por instituições de vimentos históricos e legais da Educação Infantil no país e os

106
órgãos competentes tomam a tarefa de aprofundar a discussão tos constitucionais, reafirmados na legislação educacional
sobre concepções e práticas para a Educação Infantil, dentre LDBEN/1996. Na direção de uma Educação Infantil compro-
as quais, inclusive, está a renomeação dos estabelecimentos metida com os direitos das crianças, diz respeito ao reconhe-
públicos de educação infantil: no ano de 2000, os “Jardins de cimento da constituição plural das crianças brasileiras, pois as
Infância ou Casas da Crianças passaram a se chamar Unidades orientações reconhecem e indicam a necessidade de as pro-
Municipais de Educação Infantil (UMEIs)” (NITERÓI, 2010, p.13) postas reconhecerem e respeitarem as especificidades indivi-
, responsáveis pelo atendimento do ciclo infantil, que passou a duais e coletivas de todas as crianças.
atender crianças de 4 meses a 5 anos e 11 meses. Tais determinações e orientações legais atravessam a luta
De 1998 a 2009 houve amplo debate entre profissionais coletiva de profissionais na defesa de uma educação de quali-
para a instituição do Plano Municipal de Educação de Niterói, dade como direito dos pequenos niteroienses. A produção de
para a definição de rumos e elaboração de proposta peda- documentos para a educação da primeira infância no municí-
gógica visando especificamente a educação infantil. Nesse pio é marcada pela participação coletiva e, mobilizadas pelas
percurso, percebe-se a articulação com as determinações e ações da Coordenação de educação Infantil, refletiram-se em
orientações nacionais como, por exemplo, as DCNEI, cujo tex- avanços legais.
to estabelece de forma clara que as propostas pedagógicas A fim de garantir os conhecimentos indispensáveis à inser-
nesta etapa da Educação Básica devem respeitar as diferentes ção social e cultural das crianças, foram estabelecidas apren-
identidades e proteger a dignidade da criança como pessoa dizagens esperadas na Educação Infantil, a partir da Portaria
humana, o que passa por apoiar as crianças, desde cedo e ao FME N˚ 085/2011, que institui na Rede Municipal de Ensino,
longo de todas as suas experiências educacionais, no seu inte- as Diretrizes e os Referenciais Curriculares e Didáticos. No dis-
resse e curiosidade pelo conhecimento do mundo, possibilitar posto para a Educação Infantil, o documento esclarece que
o acesso a diferentes linguagens e, sobretudo, contribuir para não se deve pautar em conteúdos compartimentalizados, mas
o fortalecimento de sua autoestima e também a aceitação e basear-se em conceitos que constituem pressupostos de todo
acolhimento das diferenças entre as pessoas. o trabalho com as crianças: os eixos temáticos de estudo e
O documento sustenta uma concepção de infância como pesquisa - Linguagens, Tempo e Espaço, Ciências e Desenvol-
sujeito de direitos, como não poderia deixar de ser, haja vis- vimento Sustentável -, devem ser atravessados pelos pressu-
ta que a legislação deve guardar coerência com os precei- postos transversais - brincar, cuidar/educar, relação espaço/

107
tempo, múltiplas linguagens, letramento, coletividade e singu- O referido documento esclarece ainda que os profissionais
laridade, autonomia, sensibilidade e afetividade, diversidade que atuam nas UMEI têm a formação mínima em Magistério,
cultural e cidadania -, que perpassam, conectam e comple- modalidade Normal, ainda que grande parte tenha formação
mentam os eixos curriculares com o propósito de alinhavar as em nível superior. As unidades também dispõem de pedagogos,
práticas cotidianas. merendeiros, profissionais de apoio e auxiliares administrativos.
O documento que venho apresentando para compor um Existe grande preocupação com a formação continuada e em
traçado geral da história da Educação Infantil pública de Ni- serviço dos profissionais, no sentido de produção do conheci-
terói (NITERÓI, 2010), exibe uma proposta curricular voltada mento no campo teórico de atuação e ainda na qualificação das
para a cidadania e para a diversidade cultural, tendo por pres- ações pedagógicas em creches e pré-escolas. Nessa direção, de
suposto que as crianças são sujeitos múltiplos e diversos e a acordo com o documento citado, semanalmente nas UMEI, às
infância é reconhecida como tempo de direitos e deveres. Nes- quartas-feiras, por 2 horas, acontecem as reuniões de planeja-
sa direção, o trabalho pedagógico realizado com grupos de mento que tem caráter informativo, organizacional, avaliativo e

crianças organizados exclusivamente por idade, deve levar à formativo, constituindo-se, também, como espaço para a For-

“[...] constituição de sujeitos ativos, formuladores de hipóteses, mação Continuada dos seus profissionais.
Em contato com profissionais da rede, tive conhecimen-
criativos, reflexivos e transformadores.” (NITERÓI, 2010, p.22).
to que desde o ano de 2019 os Referenciais Curriculares da
A cidadania é entendida como um pressuposto fundamen-
Educação Infantil da Rede Municipal de Niterói estão sendo
tal das práticas educativas emancipatórias: segundo as orien-
revistos e atualizados. Considerando a chegada de novos pro-
tações, a partir da reflexão de suas práticas cotidianas, educa-
fissionais, a criação de novas unidades e as mudanças da di-
dores das infâncias precisam romper com padrões dominantes
nâmica social, as Unidades de Educação Infantil foram convi-
recriando uma nova visão de homem e das relações sociais.
dadas pela Diretoria de Educação Infantil - FME/Niterói-RJ a
Salienta a importância de preocupar-se com os saberes das
compartilharem suas leituras e reflexões sobre os referenciais
populações do campo, das florestas, indígenas, quilombolas e
anteriores, suas percepções sobre as orientações do Ministério
afrodescendentes, contemplando a diversidade cultural cons-
da Educação de 2017 (Base Nacional Comum Curricular –
titutiva da sociedade. Entende que a Educação Inclusiva será
BNCC), a pertinência de potencializar temas já presentes no
possível, a partir de oportunidades de aprendizagens sensíveis
documento de 2010 e a possibilidade de abordar questões
ao que é próprio de cada grupo.
atuais que envolvem a Educação Infantil.

108
Nota-se, pelos movimentos implementados e pelos do- tema “Racismo/Relações Étnico-Raciais” desde 2011, segundo
cumentos produzidos, que na rede municipal de Niterói há a análise de micro dados do SAEB. Considerando uma radio-
preocupação para que o atendimento às crianças guarde a grafia do município de Niterói, sob um olhar qualitativo, a pes-
qualidade necessária. Nota-se, também, que nos últimos anos quisadora aponta algumas ausências.
houve um crescimento na rede física vinculada à expansão da No âmbito da Educação Infantil, revela a generalidade
educação infantil na cidade. No ano de 2020, a Rede Mu- dos temas entre os projetos temáticos que circulam na muni-
nicipal de Educação Infantil de Niterói contava com um total cipalidade. Nota-se que as propostas oferecidas, entre brin-
de 78 instituições, distribuídas em 42 Unidades Municipais de cadeiras, oficinas, contações de histórias, não apresentam o
Educação Infantil (UMEI), 03 Núcleos Avançados de Educação devido destaque para as questões étnico-raciais. Segundo a
Infantil (NAEI), 20 Creches Comunitárias conveniadas e 13 Es- pesquisadora, pode se dizer que houve crescimento de pro-
colas de Ensino Fundamental com Educação Infantil. 69 unida- jetos temáticos, mas ainda há ausência de comprometimento
des funcionam em horário integral, 12 das quais atendem às com a valorização da identidade, da cultura e da história de
crianças a partir de quatro meses de idade. negros e indígenas (RIOS, 2021). Há propostas direcionadas
às crianças de zero a seis anos, contudo não há identifica-
ção com a cultura popular ou para com as culturas negras e
4.2. RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO indígenas, tampouco aparecem aprofundamentos acerca da
INFANTIL diversidade étnico-racial.
Contudo, sabe-se que o sucesso das políticas públicas de
Um levantamento realizado e apresentado pela pesqui- Estado, institucionais e pedagógicas, depende necessariamen-
sadora Flávia Rios (2021) , aponta que as escolas da Educa-
20 te de condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas favorá-
ção Básica da rede municipal de Niterói vêm aumentando de veis para o ensino e para as aprendizagens. Avançar depende
modo expressivo a realização de projetos específicos com o também da reeducação das relações entre negros e brancos,
conforme postulam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
20 Informações obtidas por meio de palestra da Prof. Drª. Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2004).
Flávia Rios (UFF) no Ciclo de conversas do FIAR/2021: Tramas afro-
-Brasileiras, na pauta: "A aplicação das leis 10.639/03 e 11.645/08 Assim, é importante salientar que creches e escolas têm um
na cidade de Niterói". Disponível em https://www.facebook.com/fiar. papel importante a cumprir: educar para as relações étnicorra-
pesquisa/videos/317536950067089

109
ciais positivas no compromisso em promover a igualdade racial LDBEN/96, a partir da lei n. 10.639/2003, que estabelece o
na educação das crianças. O que implica não silenciar diante ensino da História da África e da Cultura afro-brasileira nos sis-
dos preconceitos e discriminações raciais e ainda promover prá- temas de ensino, e da Lei 11.645/2008, que dá a mesma orien-
ticas e estratégias de promoção da igualdade racial no cotidiano tação quanto à temática indígena. Ambas, são reconhecidas
das escolas e creches. Professores e educadores devem assumir como instrumentos de orientação no combate à discriminação e
verdadeiramente esse compromisso. A escola tem a responsa- reconhecem que indígenas e negros convivem com problemas
bilidade social e educativa de compreender a complexidade da de mesma natureza, embora em diferentes proporções.
identidade negra, respeitá-la e lidar positivamente com a mes- Para firmar o compromisso com a educação de relações
ma, o que demanda saber mais sobre as histórias e as culturas étnico-raciais positivas e com intenção de regulamentar a
africana e afro-brasileira. Para romper com a ideia de “paraíso alteração trazida ao art. 26-A e 78-B da LDBEN/96, institui-
racial” e implementar ações afirmativas, a escola pode e deve -se as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
contar com as contribuições do Movimento Negro. Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultu-
O Movimento Negro reivindica condições dignas de vida ra Afro-Brasileira e Africana - DCN-ERER, através do Parecer
e oportunidades iguais para toda a sociedade, principalmente 03/2004, de 10 de março, aprovado pelo Conselho Pleno do
para os grupos sociais e étnico-raciais que vivem um históri- Conselho Nacional de Educação (CNE). Vale lembrar que as
co comprovado de discriminação e exclusão. Desde os anos diretrizes são reconhecidas como dimensões normativas, regu-
1980, luta pela implementação de políticas sociais específi- ladoras de caminhos que devem ser pavimentados na garan-
cas que contemplam políticas de igualdade racial. Um marco tia, no reconhecimento e na valorização das histórias e culturas
de sua organização foi a Marcha de Zumbi dos Palmares em plurais que compõem a nação brasileira.
1992. Desde lá, foram produzidos conhecimentos importantes Neste contexto, a presente tese utiliza o termo diversida-
a favor da valorização da cultura, da história e dos saberes de étnico-racial considerando o conceito de etnia empregado
construídos pela comunidade negra, da interpretação crítica por intelectuais como Cashmore (2000, p.196), que o defi-
sobre a realidade racial brasileira e das lutas da população ne como “Um grupo possuidor de algum grau de coerência e
negra em prol da superação das desigualdades. solidariedade, composto por pessoas conscientes, pelo menos
Entre as conquistas a partir de mobilizações coletivas, em forma latente, de terem origens e interesses comuns”. Na
no âmbito das políticas públicas, destaca-se a alteração da abordagem sobre diversidade étnico-racial, refere-se ao per-

110
tencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros grupos A educação das relações étnico-raciais na Educação In-
em nossa sociedade. fantil foi objeto de discussão, ainda nos anos 2000, a partir da
O termo Educação das Relações Étnico-raciais aparece articulação de diferentes órgãos na produção de um Plano Na-
pela primeira vez no texto do parecer que aprova as DCN-E- cional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais
RER, e faz referência ao objetivo de: para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afrobrasileira e Africana (2009). Acerca do
[...] divulgação e produção de conhecimentos,
bem como de atitudes, posturas e valores que papel da Educação Infantil, afirma-se que
eduquem cidadãos quanto à pluralidade étni-
co-racial, tornando-os capazes de interagir e Os espaços coletivos educacionais, nos primei-
de negociar objetivos comuns que garantam, a ros anos de vida, são espaços privilegiados
todos, respeito aos direitos legais e valorização para promover a eliminação de qualquer forma
de identidade, na busca da consolidação da de preconceito, racismo e discriminação, fazen-
democracia brasileira. (BRASIL, 2004, p. 1) do com que as crianças, desde muito pequenas,
compreendam e se envolvam conscientemente
em ações que conheçam, reconheçam e valo-
Educar crianças, negras e não-negras, para que se re-
rizem a importância dos diferentes grupos etni-
conheçam na cultura nacional exige professores qualificados co-raciais para a história e a cultura brasileiras.
(BRASIL, 2009, p. 47-48)
e capazes de conduzir a reeducação das relações entre dife-
rentes grupos étnico-raciais. Para isso, é fundamental que es-
O documento destaca ainda a importância dos professo-
tejam comprometidos com a educação de negros e brancos,
res que atuam na educação infantil, reconhecendo que estes
sendo capazes de corrigir posturas, atitudes e palavras que
devem desenvolver atividades que possibilitem e favoreçam as
impliquem desrespeito e discriminação. Essas são medidas que
relações entre as crianças na sua diversidade. No eixo “Princi-
devem ser compartilhadas pelos sistemas de ensino, estabele-
pais Ações para a Educação Infantil”, recomenda-se “Assegu-
cimentos, processos de formação de professores, comunida-
rar formação inicial e continuada aos professores e profissio-
de, professores, alunos e seus pais. Desde a Educação Infantil,
nais desse nível de ensino para a incorporação dos conteúdos
primeira etapa da Educação Básica, as Diretrizes ERER trazem
da cultura Afrobrasileira e indígena e o desenvolvimento de
orientações, princípios e fundamentos para o planejamento,
uma educação para as relações etnico-raciais”. (2009, p.48)
execução e avaliação da Educação, a serem observadas pelas
Em outra ação, recomenda-se: “explicitar nas Diretrizes
Instituições de ensino, em todos os níveis e modalidades da
Curriculares Nacionais de Educação Infantil a importância da
Educação Brasileira.

111
implementação de práticas que valorizem a diversidade Art. 7.º V - construindo novas formas
étnica, religiosa, de gênero e de pessoas com deficiên- de sociabilidade e de subjetividade
cias nas redes de ensino”. Este ponto resultou em en- comprometidas com a ludicidade, a
frentamento de desafios e importantes conquistas, como
democracia, a sustentabilidade do pla-
discorrem as pesquisadoras Lucimar Dias e Maria Apa-
neta e com o rompimento de relações
recida Bento (2007), ao abordarem sobre as conquistas
de dominação etária, socioeconômica,
entre os desafios, acerca da relação entre Educação In-
étnico-racial, de gênero, regional, lin-
fantil e Relações Raciais.
guística e religiosa. (BRASIL, 2009)
As autoras contam que nos debates sobre a revisão
e atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação Infantil21, articularam-se a Coordenação Ge-
ral de Educação Infantil (COEDI), o Centro de Estudos Importante trazer o discurso que atravessa o Parecer CNE/
das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e o CEB nº 20/2009, que aprovou as referidas DCNEI, pela sua cla-
Grupo de Trabalho 21 – Afro-brasileiros e educação, da reza e força de enunciação sobre questões ainda não superadas
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em e, por isso mesmo, regulamentadas em lei. O parecer destaca:
Educação (ANPEd). Este movimento resultou em uma ar- A valorização da diversidade das culturas das
ticulação nacional com vistas a defender que as DCNEI diferentes crianças e de suas famílias, por meio
de brinquedos, imagens e narrativas que pro-
contemplassem a diversidade étnico-racial, até que na movam a construção por elas de uma relação
positiva com seus grupos de pertencimento,
discussão do novo texto, indicou-se de forma explícita
deve orientar as práticas criadas na Educação
que as propostas pedagógicas da educação infantil de- Infantil ampliando o olhar das crianças desde
cedo para a contribuição de diferentes povos e
vem considerar, dentre outros, o seguinte princípio:
culturas. Na formação de pequenos cidadãos
compromissada com uma visão plural de mun-
do, é necessário criar condições para o estabe-
lecimento de uma relação positiva e uma apro-
priação das contribuições histórico-culturais dos
21 As audiências aconteceram em São Luís (MA), Brasí-
povos indígenas, afrodescendentes, asiáticos,
lia (DF) e São Paulo (SP), entre julho e outubro e as Diretrizes
europeus e de outros países da América, reco-
foram aprovadas pela resolução RESOLUÇÃO Nº 5, DE 17
nhecendo, valorizando, respeitando e possibili-
DE DEZEMBRO DE 2009.

112
tando o contato das crianças com as histórias e contrados trabalhos dos anos 2017, 2020 e 2021. Foram en-
as culturas desses povos. (BRASIL, 2009, p.10)
contrados quatro artigos em coleções do Brasil e Portugal entre
A partir de mobilizações coletivas, vários documentos ofi- os anos de 2018 e 2019, publicados no idioma português em
ciais foram instituídos, sendo estes fundamentais para construir três revistas científicas: (2) Educação & Sociedade; (1) Educar
no dia a dia das creches, pré-escolas e escolas, atitudes efeti- em Revista; (1) Revista Portuguesa de Educação. As informa-
vas e intencionais que podem demonstrar o compromisso com ções dos artigos estão disponíveis no anexo 01, por ordem de
a questão racial. Contudo, sabe-se que a garantia legal dos publicação, a partir do ano, título, autoria e palavras-chave.
direitos não promove sua concretização. Aqui, faço um apanhado geral dos conteúdos identificados nas
Das conquistas realizadas desde a alteração na LDBEN/96, produções levantadas.
com a Lei n.º 10.639/03 e a lei n.º 11.645/08, e da imple- “O mito da ausência de preconceito racial na educação

mentação de documentos norteadores das políticas educacio- infantil no Brasil” (MARQUES; DORNELLES, 2019), é resultado

nais nacionais, com as DCN-ERER (Parecer CNE/CP nº. 03 de de estudo que teve o propósito de investigar o modo como

10 de março de 2004) e as DCNEI (Parecer CNE/CEB nº. 20 as culturas africanas são apresentadas às crianças de zero a

de 09 de dezembro de 2009), temos evidenciado a impor- três anos, no sentido da implementação do Art. 7º, inciso V,

tância da educação das relações étnico-raciais na Educação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil

Infantil e a relevância do aprofundamento do tema em estudos (DCNEI). A investigação foi realizada em 11 escolas de Educa-

e pesquisas. De tal modo, considerei importante, a partir de ção Infantil que atendem crianças de zero a três anos, sendo

sugestões da banca de qualificação, fazer um levantamento três públicas (EMEI) e oito de iniciativa privada (EEI) da cidade

de trabalhos recentes sobre a temática, no sentido de analisar de Porto Alegre. O trabalho mostrou que a maioria dos profis-

contribuições e ressonâncias das deliberações legais, na pes- sionais desconhece as DCNEI, após dez anos de promulgação

quisa e na prática pedagógica. das DCNEI, como vemos na seguinte formulação:

Fui à base de dados SciELO - Scientific Electronic Library Ainda com relação às DCNEI, documento ela-
borado pelo MEC, que deveria orientar a cons-
On-line e, para a busca, utilizei os descritores “Crianças”;
trução dos PPP, somente três gestoras entrevista-
“Educação Infantil”; “Relações Étnico-raciais”, a partir do ín- das afirmaram conhecer e já terem trabalhado
com esse material em reuniões pedagógicas
dice “Resumos”, em busca de publicações dos últimos cinco (GE1, GE4 e GE5). As demais não conhecem
ou não souberam responder. Uma das gesto-
anos (2017-2021). Nos resultados da busca, não foram en-

113
ras, que é graduada em Psicologia (GE7), afir- nadas ao tema em questão. (MARQUES; DOR-
mou não ver necessidade de trabalhar as DC- NELLES, 2019, p. 102)
NEI com seu grupo de professoras. (MARQUES;
DORNELLES, 2019, p. 100).
As experiências de crianças pretas em pesquisas acadê-
Sobre este ponto, problematizam as autoras: micas e na literatura infantil são evidenciadas no artigo “Vozes
de crianças pretas em pesquisas e na Literatura: esperançar
Conhecer esse e outros documentos, tais como
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- é o verbo” (ARAÚJO; DIAS, 2019). Considerando a criança
nal (1996) e o Estatuto da Criança e do Adoles- como um ser integral, que elabora, refuta e reconstrói hipóte-
cente (1990), é, ou deveria ser, um mote para
a problematização das questões raciais que ses acerca de si e do mundo à sua volta, referencia-se nas vo-
atravessam as rotinas e os espaços da Educa- zes de crianças pretas que acionam novos sentidos acerca de
ção Infantil no país. (MARQUES; DORNELLES,
2019, p. 101) suas trajetórias, a partir da literatura infantil selecionada. Isso
instigou a identificar em algumas pesquisas o que as crianças
Os profissionais afirmaram que não ocorrem problemas pensam sobre a questão racial e suas identidades, em diálogo
raciais na Educação Infantil, justificando que as crianças nesta com suas visões acerca do mundo e de seus pares.
idade são pequenas e não percebem tais diferenças. O estudo Segundo as autoras, elementos acerca das curiosidades e
também identificou que praticamente não há materiais didá- indagações das crianças sobre a cultura africana e afro-brasi-
ticos e imagens de pessoas negras nos espaços das escolas leira foram captados em algumas das pesquisas levantadas, o
pesquisadas. que as leva a ponderar sobre a necessidade de ouvir as crian-
O cenário torna-se ainda mais agravante, visto que ças para a criação de pedagogias de combate ao racismo e a
No que se refere a ações antirracistas no dia a discriminações. Como apontaram, em diálogo com as pesqui-
dia das escolas, as gestoras entrevistadas afir-
sas analisadas,
maram que promovem essas ações e aponta-
ram os dias 13 de maio [2] e 20 de novembro [...] é parte da construção de uma pedagogia
[3] como os momentos em que elas acontecem. antirracista ouvir os sujeitos sobre o que querem
Somente uma dessas gestoras (GE3) afirmou aprender pois, como foi possível constatar [em
que tais ações ocorrem no cotidiano. Ao serem uma das pesquisas], as crianças pautaram ques-
indagadas sobre quais documentos orientam tões muito significativas e que abrem caminhos
essas ações, nenhum dos referidos foi elencado frutíferos para um efetivo trabalho com a cultura
por elas. Entre as professoras, apenas P6 e P8 africana e afro-brasileira sob perspectivas distin-
afirmaram já ter desenvolvido práticas relacio- tas do que comumente tem sido oferecido a elas:

114
um olhar histórico e cultural com foco na escra- parte de crianças maiores, é um dos aportes
vização. (ARAÚJO; DIAS, 2019, p. 5) culturais mais acessíveis e acessados no espaço
escolar. Assim, ela pode contribuir efetivamente
para a proposta de ampliação dos repertórios
Ao se pensar a escola e a educação das relações étnico-
culturais, de interpretações sobre o mundo e so-
-raciais, outro aspecto importante a ser considerado diz respei- bre si mesmas. (ARAÚJO; DIAS, 2019, p. 10).
to à própria formação de professores.
Portanto, aspectos da formação docente são apontados,
Não há dúvidas de que a presença adulta entre as
crianças, ratificada pela condição de autoridade
com destaque especial à necessidade de uma educação literá-
docente, dizendo como elas devem se dirigir às ria que contemple a diversidade étnico-racial, uma vez que “no
outras, impacta de modo crucial suas identida-
des, incidindo na direta valorização de pessoas tocante aos processos formativos de professoras e professores,
brancas, que teriam cor de pele, e subalternizan- elas [as crianças] denunciam, alertam e constrangem, eviden-
do as demais, sobretudo pretas. Tal contexto, que
deveria ser uma exceção à regra, considerando ciando o quanto, acerca da educação das relações étnico-ra-
os anos já passados desde a aprovação da lei ciais, não é mais possível improvisar” (ARAÚJO; DIAS; 2019,
10.639/2003, revela-se mais comum do que se
espera. (ARAÚJO; DIAS, 2019, p. 7) p.18). Neste sentido, as autoras reafirmam ser necessário e
urgente trabalhar na direção do que defende as DCN-ERER:
As autoras assinalam que as crianças pretas falam e, a "[...] desfazer mentalidade racista e discriminadora secular,
partir da escuta dessas vozes, somos instigados a pensar sobre superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações
suas experiências. étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos"
[..] a predominância das falas ressalta um qua- (BRASIL, 2004, p. 6).
dro negativo que aciona para a necessidade
O artigo “Questões Raciais para Crianças: resistência e
de uma escuta ativa sobre o que nos dizem as
crianças acerca da violência simbólica que per- denúncia do não dito” (MOTTA; DE PAULA, 2019) resulta da
meia suas experiências e lhes provocam dor. E
quando pensamos principalmente nas crianças pesquisa desenvolvida entre 2014 e 2016 numa creche vincu-
pequenas, as imagens, as brincadeiras e o lúdi- lada a uma instituição federal do Rio de Janeiro, que versou
co ganham maior importância pois é por meio
desses aportes culturais que elas interagem com sobre os efeitos de uma educação antirracista para a subjetivi-
o mundo e constroem seus repertórios, suas dade das crianças. Teve por objetivo identificar os aspectos de-
histórias de vida e suas possibilidades de exis-
tência. Entendemos que a literatura, ainda que correntes do Parecer CNE/CP 003/2004, da Lei 10.639/2003
a despeito de uma suposta desvalorização por nas práticas educacionais da educação infantil e discutir como

115
as questões raciais influenciam a vivência das práticas peda- tinha o brinquedo retirado de sua mão por ou-
tras crianças. (MOTTA; DE PAULA, 2019, p.11).
gógicas nos espaços educativos voltados à primeira infância.
Sobre a existência ou não de uma educação antirracis- O estudo concluiu que, embora a creche analisada se
ta na creche, os autores apontam que foi necessário tratar as adeque à legislação ao inserir a temática das relações étni-
questões relativas à raça e ao racismo a fim de desvelar o não co-raciais como tática para a educação, é necessário ainda a
dito, ou seja, o sentimento racista presente na sociedade, que presença de um corpo técnico consciente da temática antirra-
pode ser tomado como algo que se enuncia, sem palavras e cista. “Há que se mobilizar todos(as) envolvidos(as) no proces-
sem a assinatura responsável daquele que o formula. so. Construir um projeto de dizer antirracista que se materialize
Nessa tensão de construção identitária, foi pos- no fazer cotidiano.” (MOTTA; DE PAULA, 2019, p. 16)
sível encontrar o não dito em vários textos: nas O artigo “As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e
fichas de matrícula que não solicitavam a infor-
mação cor/raça, nas interações entre pares, nas Juvenil” (ARAÚJO, 2018) reúne a síntese dos resultados de pes-
ações pedagógicas que, embora tratando em quisas sobre a produção literária infantil e juvenil na dimensão
vários momentos de diversidade, não traziam
explicitamente as questões relativas ao racismo, das relações étnico-raciais. Trata-se de um breve panorama,
e nos projetos de trabalho, que seguiam cami- complexo e dicotômico, traçado a partir da análise de 13 tra-
nho semelhante. (MOTTA; DE PAULA, 2019, p.9)
balhos acadêmicos (teses e dissertações) do campo da Educa-
Entre as crianças, foi possível observar a ação da cultura ção, desenvolvidas entre os anos 2003 a 2014, que investiram
de pares e a forma como se apropriaram do racismo. o olhar sobre a Literatura Infantil e Juvenil na dimensão das
relações étnico-raciais.
Digno de nota é a oferta de bonecas negras pre-
sentes nos brinquedos da escola. Para educação A partir dos dados quantitativos, foi possível identificar os
antirracista, é fundamental a presença delas locais predominantes de produção acadêmica com tais temáti-
como opção de reconhecimento e valorização
das crianças negras. Deixadas à disposição, en- cas, bem como os anos mais produtivos no campo. As regiões
tretanto, sem uma ação que afirme seu valor e brasileiras de onde provieram as teses e dissertações foram:
sua beleza, perdem o sentido antirracista deseja-
do. Isso ficou comprovado ao ser verificado que
Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste, com três trabalhos cada, e
a única aluna negra da sala não era plenamente Sul, com quatro. O ano predominante da produção foi 2012,
aceita pelas outras crianças. Ela tentava se en-
turmar, porém era constantemente excluída ou
com cinco pesquisas.

116
Os estudos indicaram um consenso sobre mudanças, ain- No âmbito da educação de crianças de zero a cinco anos,
da que diminutas, na representação de personagens negras a os estudos apontam alguns desafios para a Educação das Re-
partir de publicações literárias mais recentes, embora negras lações étnico-raciais. Apesar das reivindicações contínuas do
e negros ainda sejam minoria como personagens no universo campo, alguns temas ainda se apresentam como pautas neces-
literário infantil e juvenil de modo geral. Segundo a autora: sárias. No que tange às políticas públicas, a implementação de

[...] no universo geral dos acervos, ainda se ações a favor da ERER, principalmente para a formação conti-
pode categorizar as personagens negras em nuada de professores, envolvendo a ampla divulgação de do-
condições de sub-representação, além de uma
reiteração da branquidade normativa (VENÂN- cumentos norteadores, estudos e pesquisas de modo a promo-
CIO, 2009; OLIVEIRA, V.C., 2010) operando verem o debate acerca da pauta racial nas instituições escolares
tanto na melhor elaboração de personagens
brancas, como na pressuposição de leitoras e públicas e privadas de Educação Infantil. Nas discussões sobre
leitores brancos. Também foi possível observar, currículo, a construção coletiva do Projeto Político Pedagógico
pelos resultados das pesquisas, que quanto
mais antiga seja a obra, maiores são as chan- das unidades, com a participação de professores e profissionais,
ces de conter estereótipos negativos e racismo
considerando princípios éticos, políticos e estéticos, bem como
implícito ou explícito. (ARAÚJO, 2019, p. 73)
a inclusão da diversidade étnico-racial nas propostas pedagógi-
E entre as lacunas identificadas por este levantamento, cas, como orientam as DCNEI. Com relação à prática pedagó-
está o pouco investimento de estudos na recepção da leitura gica, a conscientização e valorização de ações promotoras da
literária, em especial com crianças pequenas. igualdade racial em creches e escolas, no dia a dia, para além
Mais do que evidenciar o racismo, o estereóti- da data de 20 de novembro instituída por lei. Sobre a concep-
po, estigmatização ou a valorização da cultura ção de criança, a compreensão da criança negra como um ser
africana e afro-brasileira ou, ainda, a beleza
estética e literária nos enredos e nas ilustrações, integral, que elabora, refuta e reconstrói hipóteses acerca de si e
o que os resultados dessas poucas pesquisas
do mundo à sua volta, inclusive de sua identidade nas relações
demonstraram é a necessidade de investigação
de como o público leitor, principalmente em for- que estabelece com seus pares. Na construção de pedagogias,
mação, interpreta tais obras e quais as possibili-
dades de ampliação dos referenciais de mundo.
acolher as vozes dos sujeitos e seus interesses sobre o que que-
Acrescenta-se o caso da educação infantil que rem saber acerca da história e cultura dos povos originários,
pouco foi considerada, tanto nas análises sobre
o livro como, de modo algum, na recepção por assumindo perspectivas participativas e antirracistas.
parte das crianças. (ARAÚJO, 2019, p. 74)

117
De modo específico, no interesse desta investigação, apre- presente tese, que se compromete com a valorização
senta-se o papel de professores da Educação Infantil, no que da identidade, da cultura e da história da população
tange à sensibilidade, visto a necessidade de uma escuta ativa negra e apresenta como contribuição para se pen-
das experiências das crianças acerca da violência simbólica sar/fazer formação docente em íntima relação com
que permeia suas experiências e lhes provoca dor. A atuação os princípios éticos, políticos e estéticos referenciados
da professora está na organização de tempos, espaços e brin- em poéticas negras.
cadeiras que incluam a diversidade étnico racial e promovam
a educação das relações étnico-raciais; no zelo e cuidado na
seleção de imagens, personagens, brinquedos, materiais e li- 4.3. OUTRAS IMAGENS, GESTOS E DIFERENTES
vros de literatura infantil, para que no cotidiano, possibilitem o LINGUAGENS PARA EDUCAR CRIANÇAS
acesso das crianças ao acervo e à circulação de obras literárias
com temática africana ou afro-brasileira. E, ainda, o acréscimo Primeiro andar do Museu de Arte de São Paulo
de outros aportes culturais, considerando o papel da escola no Assis Chateaubriand - MASP, no painel de abertu-
alargamento dos repertórios culturais de crianças e adultos, de ra da exposição “Histórias da infância"22, realizada

interpretações sobre o mundo e sobre si mesmas. em julho de 2016, mostrava três obras de arte. No
A conscientização de que a educação em todos os níveis é conjunto, víamos a exibição de representações da
desafiada pela diversidade provoca-nos a compor uma teoria infância de diferentes maneiras, a partir de pinturas
educacional que destaque aquilo que nos une sem perder de e fotografias. Fascinação (1909), uma pintura de

vista o que nos diferencia. O debate acerca das questões raciais Pedro Peres; Rosa e azul - As meninas Cahen d’ An-

e a análise da realidade desafiam-nos a uma discussão criadora vers (1881), pintura de Pierre-Auguste Renoir; a fo-
capaz de produzir pedagogias da diversidade (GOMES, 2017), tografia sem título da série Brasília Teimosa (2005),
pois tensiona, desse modo, a pedagogia tradicional. de Bárbara Wagner.
Esses elementos identificados, pelas pesquisas e publica-
ções consultadas, como desafios e possibilidades para a reestru- 22 Na equipe da exposição: organização e curadoria
de Adriano Pedrosa, diretor artístico; Fernando Oliva,
turação das relações étnico-raciais e sociais na educação infan- curador; Lilia Schwarcz, curadora-adjunta de história do
til, garantindo os preceitos legais, corroboram a relevância da MASP. Confira: https://masp.org.br/exposicoes/histo-
rias-da-infancia

118
Figura 16 - Painel de abertura da exposição
“Histórias da infância” (2016). https://masp.
org.br/exposicoes/historias-da-infancia

119
Figura 17 - Pedro Peres. Fascinação (1909).
Óleo sobre madeira, 35,7 X 31,2 cm. Acervo
da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Figura 18 - Pierre-Auguste Renoir. As


Meninas Cahen d'Anvers - Rosa e Azul
(1881). óleo sobre tela, 119x74cm. Acervo
do Museu de Arte de São Paulo.

Figura 19 - Bárbara Wagner, Sem título da


série Brasília Teimosa (2005).Jato de tinta,
Coleção Pirelli MASP.
O contraste entre as imagens impressiona: um quadro ex- rebaixada em até 30 cm em relação à convenção do eixo de
põe duas meninas brancas e europeias, vestindo roupas ricas visão do espectador nos museus. A mostra incluiu histórias das
e elaboradas com laços de cetim azul e rosa, obra reconheci- próprias crianças, considerando que há o que aprender com
da como ícone do acervo do MASP. Ao seu lado direito, uma essas trocas. Assim, em pé de igualdade com os demais tra-
fotografia apresenta uma dupla de crianças negras sob o sol, balhos, foram expostos desenhos feitos por crianças nos anos
vestindo sungas vermelha e azul, no despojamento e ao ar 1970, anos 2000 e mais recentemente em 2016, todos do
livre do Brasil. No seu lado esquerdo, uma pintura de peque- acervo do museu.
nas dimensões mostra uma criança negra vestida de maneira É muito significativo, sem dúvida, um museu reconhecer a
simples, um vestidinho leve, em tom rosa, que parece se as- infância como um conceito plural. Na educação, esforçamo-
sustar com uma boneca branca ricamente vestida de azul, em -nos contra a universalização do conceito, a favor das muitas
posição sentada numa cadeira. Basta olhar a justaposição das infâncias existentes. Seguimos em luta pelo processo de reco-
obras e artistas para identificarmos um viés político, questio- nhecimento de subjetividades e direitos das crianças. Pela par-
nando o assentamento de narrativas da história da arte e pro- ticipação ativa, pelo protagonismo na prática pedagógica, tal
movendo novas visibilidades de sujeitos e personagens, como como preconizado nos documentos legais. Nos estudos reno-
argumenta o curador da exposição, Adriano Pedrosa (2016). vados de diferentes áreas, história, antropologia, psicologia,
Nesta perspectiva, aproxima a excepcional coleção de arte eu- filosofia, sociologia e também pedagogia, a criança é carac-
ropeia do museu à realidade brasileira. terizada como ativa, capaz, produtora de cultura, que porta
Segundo o catálogo da mostra “Histórias da infância" (PE- saberes e fazeres próprios, construídos em suas múltiplas rela-
DROSA et al, 2016), a proposta teve a pretensão de integrar ções na cultura em que está inserida.
um programa mais amplo de exposições sobre diferentes his- A cena principal da exposição evidencia ser possível
tórias, múltiplas, diversas e plurais, para além das narrativas pensar a infância e a criança tendo como mote a diferença,
tradicionais. Incluiu grupos, vozes e imagens que foram re- como sugerem Abramowicz e Oliveira (2012). As autoras nos
primidas ou marginalizadas, nas quais se inserem as crian- ajudam a aprofundar a discussão, afirmando que meninos e
ças e sua maneira de ver o mundo. Por exemplo, durante a meninas constroem imagens de si e são construídos em suas
exposição em busca de uma relação mais próxima do olhar infâncias, marcados pelas questões racial e de classe. Sugerem
e do corpo da criança, a altura média das obras expostas foi que tais questões devem ser pensadas como linhas que atra-

122
vessam a pesquisa com crianças, dado os impactos do racismo gras infantis podem (e devem!) ressoar no âmbito da docência
e da desigualdade social na realidade brasileira, justificando e da formação docente. Assim, é decisivo escutar e acolher as
que a socialização é “um processo social de exercício de po- vozes e histórias de crianças, como já vem sendo amplamente
der e saber que se impõe sobre a criança, para produzi-las” discutido no campo dos estudos da criança. Sim, concorda-
(ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2012, p.50). Deste modo, reiteram mos, é fundamental
a importância de se considerar [...] produzir escutas ativas que observem como
as crianças, em especial as crianças pretas, têm
[...] criança e infância a partir daquilo que as dife-
enfrentado dramas e conflitos que as condicio-
rencia. Isso quer dizer que, nos processos e práti-
nam muitas vezes a categorias raciais inferiori-
cas sociais que incidem e constituem as crianças,
zantes e excludentes. Mas também, sobretudo
desde o início, há o recorte de gênero/sexualida-
por meio da literatura e da educação literária,
de, etnia, raça e classe social produzindo diferen-
que as vozes ecoem indicando caminhos para a
ças. (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2012, p.52).
construção, no espaço escolar, de um ambiente
propício para a produção de subjetividades e
As concepções de infância e de crianças destacam-se identidades positivas, fortalecidas por laços de
alteridade, respeito e reconhecimento. (ARAU-
também nas reflexões de Araújo e Gomes (2016), quando dis-
JO; DIAS, 2019, p.3)
cutem a relação entre infância, Educação Infantil e relações
étnico-raciais. As pesquisadoras consideram a importância de Deste modo, professores e professoras devem ter compro-
se trabalhar as questões étnico-raciais na escola de maneira misso na produção de novas formas de sociabilidade e de sub-
mais geral, de problematizar as concepções de criança e in- jetividades a favor da participação da criança negra. Devem
fância orientadoras das práticas pedagógicas e políticas edu- zelar pela democracia e cidadania, pela dignidade da pessoa
cacionais da educação infantil, aprofundando o conhecimen- humana, uma vez que o ato normativo firmado com a revisão
to acerca das condições de vida das crianças existentes nas das DCNEI, indica especificamente o rompimento de relações
escolas e creches conforme sua origem étnico-racial. Assim, de dominação étnico-racial, dentre outras, que ainda marcam
estudar e pesquisar crianças negras pode ajudar a entendê-las nossa sociedade.
como diversas em suas constituições históricas e culturais, nas O conteúdo deste documento reafirma a necessidade de
identidades étnico-raciais, bem como de gênero. se elaborar novas ações pedagógicas para o combate ao ra-
Pensar e ouvir crianças negras pode nos ajudar a perceber cismo e as discriminações na sociedade brasileira e, ainda,
o tempo da infância na Educação Infantil brasileira. Vozes ne- para educar as relações étnico-raciais na escola, já estabeleci-

123
das nas Diretrizes ERER (BRASIL, 2004). A busca por criar situa- “o reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das
ções educativas para o reconhecimento, valorização e respeito crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasi-
da diversidade étnico-racial está posta, então, desde o âmbito leiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação”
da Educação Infantil, cujas propostas pedagógicas devem ter (BRASIL, 2010, p.21). O respeito à dignidade da criança como
por objetivo segundo vemos no artigo oitavo das DCNEI: “ga- pessoa humana e o zelo por sua proteção contra qualquer for-
rantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação ma de violência são formas de garantir tais preceitos.
e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes Contudo, sabe-se que as condições objetivas e subjetivas
linguagens [...]” (BRASIL, 2009). No cumprimento da função da criança negra se dão de forma desigual no processo edu-
sociopolítica e pedagógica, creches e pré-escolas devem: cativo, e a escola através de práticas sutis, quiçá inconscientes,
[..] assumir a responsabilidade de torná-las por vezes oferece à criança negra e à branca oportunidades
espaços privilegiados de convivência, de cons- diferentes de desenvolvimento, como denuncia, dentre outros,
trução de identidades coletivas e de ampliação
de saberes e conhecimentos de diferentes na- o estudo de Neri Silva (2002). Há 20 anos a autora afirmava
turezas, por meio de práticas que atuam como que nem sempre a comunidade escolar está consciente e pre-
recursos de promoção da equidade de oportu-
parada para compreender e enfrentar os problemas gerados
nidades educacionais entre as crianças de dife-
rentes classes sociais no que se refere ao acesso pelos preconceitos vividos pela criança negra.
a bens culturais e às possibilidades de vivência
Também Oliveira e Abramowicz (2010) ao analisarem as
da infância.
práticas educativas que ocorrem na creche, verificaram que ha-
oferecer as melhores condições e recursos cons-
via uma comparação/classificação entre as crianças, com situ-
truídos histórica e culturalmente para que as
crianças usufruam de seus direitos civis, huma- ações de discriminação, onde crianças negras eram "excluídas"
nos e sociais e possam se manifestar e ver essas
do "carinho" das professoras. O estudo, além de apresentar de-
manifestações acolhidas, na condição de sujei-
to de direitos e de desejos. (BRASIL, 2009, p.6) núncias, incentiva o enfrentamento de práticas pedagógicas de
homogeneidade e racismo ao apontar, por exemplo, que “[...]
Na observância das Diretrizes, propostas pedagógicas professores necessitam escapar da ordem hegemônica pro-
devem integrar o tema da diversidade, de modo que as insti- dutora de desejos, estéticas, prisioneiros para realizar práticas
tuições prevejam condições para o trabalho coletivo e para a educativas que acolham e produzam diferença, como estratégia
organização de materiais, espaços e tempos que assegurem pedagógica.” (OLIVEIRA; ABRAMOWICZ, 2010, p.224)

124
Em que pese as determinações legais, as pesquisas re- que participaram de processos de formação na área de rela-
velam que ainda há, nas práticas docentes, o apagamento/ ções raciais. A autora constata que os participantes consegui-
apaziguamento das diferenças no discurso da igualdade: atra- ram desenvolver práticas eficazes na promoção da igualdade
vés de um fazer acrítico, professores e professoras interferem racial e, com os elementos identificados em tais práticas, ela-
negativamente na constituição da autoestima das crianças ne- borou cinco pressupostos pedagógicos para o trabalho
gras. Essas considerações impõem um complexo desafio aos de ERER na Educação infantil, que apresento a seguir.
profissionais que atuam na Educação Infantil e nas escolas, no
que concerne à construção de novas formas de sociabilidade 1. o trabalho com o tema deve ser contínuo e fazer
parte do dia a dia;
e de subjetividade já que, entre políticas e práticas, organizar
o trabalho pedagógico está nas mãos de professores e pro- 2. o trabalho com a Educação das Relações Étnico-
-raciais exige coragem do educador e essa deve ser
fessoras. Por isso, o papel docente na abordagem das dife-
estimulada;
renças, atribuídas ao pertencimento racial, é muito importante
3. o trabalho no contexto da Educação das Relações
para educar as relações na educação Infantil que passa pela
Étnico-raciais com crianças pequenas deve pautar-se
composição dos currículos e dos projetos pedagógicos com te-
pela ludicidade;
mática racial e por outros componentes, como planejamento
4. o trabalho deve procurar construir a ideia de dife-
escolar; materiais didáticos; espaços e imagens, brinquedos e rença como algo positivo;
vocabulário (CAVALLEIRO, 2010). Essas escolhas têm relação 5. O trabalho deve oferecer às crianças elementos
direta com as referências das professoras, advindas de suas que colaborem na construção de sua identidade
experiências sociais e culturais, assim como das reflexões da racial de modo positivo, já que essa identidade é
formação inicial e, ainda, dos questionamentos sobre a prática construída por ela, não podendo ser imposta. (DIAS,
que elaboram. 2007, p.287)
Sobre a educação das relações étnico raciais no trabalho
pedagógico com crianças pequenas, o importante estudo da No atendimento à criança e à sua capacidade criadora, é
professora e pesquisadora Lucimar Dias (2007) oferece contri- necessário a construção de outras atitudes, a partir da aprendi-
buições significativas para ampliar a discussão e traçar possibi- zagem do olhar e da escuta do professor. Em diálogo com os
lidades, sobretudo porque parte da observação de professores pressupostos elencados por Dias (2007), o princípio da escuta já

125
vem sendo anunciado como essencial, pois de modo geral, não ouvimos o que o outro fala. Por vezes, vemos e ouvimos
apenas o que nos agrada. Damos pouca atenção ao outro, até mesmo à criança e aos grupos com os quais convivemos.
Então, referendo que, para educar, considerando a diferença étnica, é preciso ter práticas que se conectam ao outro e
esboçam ações pedagógicas que contemplem os princípios éticos, políticos e estéticos, desencadeando outras atitudes
com as crianças na escola, fundadas na escuta sensível.
Chamo atenção, também, para o trabalho com artes e diferentes linguagens, com outras imagens, pela possibi-
lidade que oferecem ao desenvolvimento da dimensão expressiva e humana, ao produzir subjetividades que afirmam
a diferença, acolhem o estranho e não tenham medo do incomum. Além da literatura, sobretudo a infanto-juvenil,
que sendo muito utilizada nas propostas pedagógicas na Educação Infantil, dispondo-se de um acervo crescente de
títulos que abarcam não apenas as temáticas, mas a presença de protagonistas negros e negras, com qualidade e
representatividades, as artes visuais oportunizam apresentar imagens, homens e mulheres, negros e negras, como
artistas – sujeitos sensíveis e poéticos. Neste caso, é fundamental pensar e garantir a aproximação de creches e esco-
las aos espaços culturais e à produção artística negra, para que se possa promover vivências de identificação positiva
entre crianças pretas e pardas, que podem seguir além, no desenvolvimento de suas múltiplas linguagens. Tudo isto
é benéfico entre crianças produtoras de cultura, que vivem, apreendem e expressam o mundo com todos os sentidos.
Neste ponto, volto à mostra “Histórias da Infância" (PEDROSA et al, 2016). Na ocasião da exposição, estudantes
de 8 a 10 anos, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima e do Colégio São Domin-
gos, conversaram sobre algumas obras presentes nas exposições e no acervo em transformação.
Diante da obra Exu (sem data), três estudantes de nove anos, em
momentos distintos, teceram considerações acerca da escultura africana.

Para ouvir a íntegra do relato produzido pela equipe do MASP


em parceria com as professoras, escaneie o código com a câmera
do celular. Você será encaminhado para a página MASP áudios:
Histórias da infância, no SoundCloud.

126
Figura 20 - Nigéria, tribo de Yoruba,
região de Oyo. Exu (sem data).
Madeira e outros materiais, 56 x
16,5 x 29,5 cm. Doação Cecil Chow
O primeiro dos três áudios, apresenta a conversa sobre a obra, com a
Robilotta e Manoel Roberto Robilotta,
em memória de Ruth Arouca e estudante Rosa Magalhães Ribeiro, de nove anos. Ela conta que na convivên-
Domingos Robilotta (2012).
cia com sua avó paterna, conheceu Exu, esse deus/pessoa. Relata que sua
família tem religiões diferentes, mas que aprendeu com sua avó a gostar dos
orixás. Envolvida na apreciação da obra, ela descreve detalhes e seus saberes
a respeito dos orixás. Encontrar a obra Exu no acervo do MASP trouxe à tona
a identificação de Rosa com as práticas religiosas vivenciadas na família. Seus
saberes demonstram a importância das interações entre crianças e produções
artísticas plurais e diversas, principalmente as vivências promovidas pelos es-
paços culturais que valorizam as matrizes africanas e afro-brasileiras.

Outros dois estudantes, João Iadu Vieira de Souza


e Matheus Neves Husek, de nove anos, apresentam
no segundo áudio (2/3), informações acerca do orixá
representado na escultura africana.

Em conversa sobre a obra, os meninos explicam os


motivos que os levaram a escolher falar sobre a obra.
No caso de um dos meninos, os estudos da mãe sobre
o Candomblé, influenciam sua escolha. Eles falam do
interesse em conhecer mais sobre os orixás. Detalham
as características desse deus da terra, segundo eles.
Contam sobre os búzios e outros materiais identificados
na peça em exposição e seus sentidos.

127
Seja no catálogo, seja na página do museu, no material por ela, na cumplicidade da construção do projeto, na cumpli-
elaborado e disponibilizado, notamos que o setor educativo do cidade pedagógica.” (FREIRE-WEFFORT, 1996, p.3).
MASP acredita que temos muito a aprender com as histórias e Na ausência da cumplicidade pedagógica, se não ou-
as trocas entre as crianças. É dada a devida atenção aos diá- vimos o que o outro fala, como elaborar propostas lúdicas,
logos e interações entre as crianças com as obras, os espaços participativas e reveladoras de múltiplas linguagens, aquelas
e a exposição. desenhadas nas políticas e desejadas no trabalho educativo?
Diante de tal confiança, pergunto-me: Será que a profes- Para tal, é preciso ver e olhar não a partir do que pensamos
sora teria mediado essa aproximação entre crianças e Exu, na sobre o outro, sobre o grupo, mas, a partir de um olhar e uma
escola? Dificilmente, penso eu, cá com meus botões… Como escuta conectados à realidade de crianças, educadores e famí-
disse Madalena Freire Weffort (1996) nosso olhar cristalizado lias. Nos episódios cotidianos, tanto feiuras, quanto belezas,
em estereótipos, produziu em nós cegueira, paralisia e ponde- requerem de nós respostas. Se escutamos a nós mesmos, o ou-
ra: “Só podemos olhar o outro e sua história se temos conosco tro, o grupo e a realidade, a ação docente muda. Pode, ainda,
mesmo uma abertura de aprendiz que se observa (se estuda) completar-se com as vozes e expressões de crianças negras, de
em sua própria história.” (FREIRE-WEFFORT, 1996, p.2). As protagonistas negros não canônicos da literatura, do cinema,
crianças possuem essa abertura de aprendiz, têm um olhar das artes visuais, da dança, acolhendo e abrindo espaço para
curioso e atento para o mundo. conhecimentos não hegemônicos, saberes que estão à mar-
Os adultos devem aprender mais acerca da aprendiza- gem do que é reconhecido como central.
gem do olhar, uma vez que não fomos educados para olhar Nesta trama, quais gestos conectam-nos ao outro e po-
pensando o mundo, a realidade e nós mesmos, por isso a dem inspirar novas situações pedagógicas? Implicados na en-
observação é apontada por Freire-Weffort (1996) como ferra- trega ao outro, tarefas isoladas ou projetos temáticos apenas
menta básica no aprendizado de escutar o outro. É considera- no novembro negro, já não bastam. As práticas que dialogam
da como ferramenta básica no aprendizado da construção de com a arte e a cultura da diversidade, que adotam o exercício
um olhar que sente e pensa; um olhar que envolve atenção e da observação, da escuta e da participação, trazem a possi-
presença, que abarca a exigência de entrega ao outro. Deste bilidade de educar as relações a partir de outras atitudes na
modo, “Observar uma situação pedagógica não é vigiá-la mas escola, cumprindo o que já temos nas DCNEI, de caráter man-
sim, fazer vigília por ela, isto é, estar e permanecer acordado datório, que estabelecem princípios éticos, políticos e estéticos

128
como base para as propostas e ações pedagógicas, com vistas A ética de que falo é a que se sabe traída e
negada nos comportamentos grosseiramente
a garantir à criança, conforme apontado, acesso a processos imorais como na perversão hipócrita da pureza
de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e ou puritanismo. A ética de que falo é que se
sabe afrontada na manifestação discriminatória
aprendizagens de diferentes linguagens (BRASIL, 2009). de raça, de gênero, de classe. É por esta ética
Princípios éticos estão relacionados à valorização da au- inseparável da prática educativa., não importa
se trabalhamos com crianças, jovens ou adultos
tonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito que devemos lutar.
ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas,
identidades e singularidades; os políticos, dizem respeito aos Dizem respeito ao princípio político, direitos e deveres de
direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito cidadania e participação: a criança tem direito a expressar-se
à ordem democrática; e os princípios estéticos evidenciam a com liberdade, a dizer-se de diferentes formas e ainda questio-
valorização da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e nar a realidade que a cerca. Implica, no interior das creches, o
da diversidade de manifestações artísticas e culturais. No co- reconhecimento da criança negra enquanto sujeito dos mesmos
tidiano da Educação Infantil, não basta apenas ler o que está direitos, como cidadã. Aquela que é ativa e competente, e deve
escrito na lei; é essencial traduzir os princípios e relacioná-los ser acolhida na manifestação de suas necessidades, interesses e
ao vivido (OSTETTO, 2017). desejos. Aquela que diz que o pertencimento étnico-racial per-
Corresponde ao princípio ético a visão da criança como passa suas experiências escolares (ARAÚJO, DIAS; 2019). E, por
um sujeito histórico e cultural, de direitos; um sujeito que se isso, exige participar, tomar parte e compartilhar de modo po-
faz criança no seu tempo e, na atualidade, num tempo em sitivo das vivências na creche. Sendo encorajada por adultos,
que reivindicamos um Brasil multiétnico e plural. Reconhece os na compreensão de que escutar crianças torna-se um modo de
direitos humanos, afirma suas diferenças sem reproduzir desi- pensar as subjetividades, os corpos e modos de existir das crian-
gualdades. Guiar-se pelo princípio ético é garantir a dignidade ças negras, como ressaltam as referidas autoras.
das crianças e reconhecer aliados contra o preconceito e a Princípios estéticos correspondem à valorização da sen-
discriminação racial. Esta dimensão coloca-nos a favor de uma sibilidade, da criatividade, da ludicidade e da diversidade de
ética inseparável da prática educativa, como nos falava Paulo manifestações artísticas e culturais. Referem-se à dimensão da
Freire (1997, p.16-17): percepção, da experimentação e refinamento dos sentidos,
que pode enriquecer a construção de novas formas de socia-

129
bilidade e de subjetividade. Próximos do campo da arte e da rança que pode nos oferecer a rota conhecida
(como aquela pasta com moldes de “trabalhi-
cultura, os princípios estéticos evidenciam a diversidade das nhos” para passar para as crianças, ainda tão
manifestações simbólicas dos diferentes grupos sociais e, por comum entre os educadores!), caminha passo a
passo com a impossibilidade da criação. (OS-
isso, é uma direção que pode contribuir para a ampliação da TETTO, 2008, p. 5)
leitura do mundo e o desenvolvimento das capacidades ex-
pressivas das crianças negras e não-negras. Há, na ponderação da referida autora, uma concepção
Neste sentido, podemos falar, com Ostetto (2008), de de arte que vai além do fazer e reproduzir um modelo, mas
uma educação estética, constituída pelo enriquecimento de ex- é território de imaginação, criação, experiência. Ela lembra,
periências, pela ampliação de repertórios artístico-culturais e em diálogo com Albano (2002), que a arte para as crianças
possibilidades de expressão pelas crianças. A autora diz que não interessa enquanto produto, mas como processo vivido e
o trabalho pedagógico na educação infantil deve articular as marcado na experiência, à qual se entrega com o corpo intei-
experiências e saberes sensíveis que as crianças já possuem, ro. Por meio de interações e brincadeiras, dando atenção aos
com a ampliação de referências artístico-culturais, promoven- detalhes, as crianças desenham, pintam, constroem, produzem
do encontros com a arte, a natureza e a produção cultural dis- marcas, contam histórias que carregam possibilidades de lan-
ponível, de modo que construam a confiança em seu processo çá-las para frente, de projetar-se além do imediato.
criativo-autoral e possam fazer escolhas, para que possam ir Tendo um instrumento que deixe uma marca:
além. Para um trabalho nesta perspectiva, chama atenção a a varinha na areia, a pedra na terra, o caco
de tijolo no cimento, o carvão nos muros e nas
autora, é preciso enfrentar, e romper, os limites nos tempos, es- calçadas, o lápis, o pincel com a tinta no papel,
paços e propostas assumidos nas instituições educativas, com a criança brincando vai deixando sua marca,
criando jogos, contando histórias. (ALBANO,
relação à arte. Em suas palavras: 2002, p. 15)

É evidente a dificuldade da escola (creches e


pré-escolas também!) em lidar com a arte, com É preciso, pois, atentar para essas marcas, que é também
a poética da vida – que pressupõe espaço para uma forma de escuta. As propostas com linguagens artísticas
a imaginação, a experimentação, a criação e,
como parte do processo, espaço para a dúvida podem ser um meio privilegiado para o reconhecimento da
e para o erro. Mas, a tranquilidade que pode própria identidade e para a abertura ao conhecimento do ou-
nos trazer o domínio do já estabelecido (um
modelo, um manual, uma técnica) e a segu- tro, afirma a mesma autora em outro trabalho publicado (AL-

130
BANO, 2018), do qual seleciono o belo (e provocante) relato, ções e descobertas cotidianas. É imprescindível
acolher e documentar o que elas dizem, sen-
que corrobora sua afirmação: tem, pensam e fazem com todos os seus senti-
dos, de corpo inteiro. ( BERNARDES; OSTETTO,
Recordo-me, ainda hoje, da frase que ouvi de
2016, p.45)
uma criança, no início da minha carreira do-
cente, quando trabalhava com crianças bem
pequenas. A cena que minha memória gravou, Professores e professoras têm a necessidade de olhar a
aconteceu entre duas crianças de 4, 5 anos, tra-
criança, observá-la e revelá-la, na sua singularidade. Porém,
balhando no meu ateliê. O menino, que devia
ter uns 5 anos de idade, olhou o desenho da dirigir esse olhar para a criança real e concreta não é tarefa fá-
colega e disse: “Eu acho que o que você está
cil, visto que o docente está acostumado a ver as imagens ide-
fazendo é horrível, mas gosto é gosto, e você
pode estar achando lindo!” [...] esta criança, de alizadas e universais das crianças que aparecem nos manuais
uma forma bem direta e simples, disse o que
(OSTETTO; BERNARDES, 2019). Representações que ocultam
discutimos com tantas palavras e tantas teorias:
o outro é diferente de mim e é no reconheci- crianças reais, que camuflam a existência da criança negra,
mento desta diferença que se constrói a alteri-
indígena, quilombola ou com deficiência. E, assim, bloqueiam
dade. (ALBANO, 2018, p.15)
a percepção da diferença, das diversidades.
Contudo, as linguagens das crianças não costumam ser Na experiência lúdica, que se faz ampliação de ações
validadas pela sociedade, pela cultura e pela escola. Para legi- no mundo, cabe ao adulto estar presente, observar, dar visi-
timar suas expressões, experiências e hipóteses, e ainda contri- bilidade às linguagens da criança, acolher e responder dia-
buir para seu cultivo e ampliação, Bernardes e Ostetto (2016) logicamente às questões que se apresentam. Sem dúvida, a
afirmam ser fundamental, na escola, reparar nos meninos e promoção de experiências expressivas a meninos e meninas,
nas meninas reais e concretos que estão atrás do produto final. a mediação artístico cultural, passam, entre outros aspectos,
As autoras ressaltam um aspecto comumente negligenciado: pelas ações docentes, pelas possibilidades (e sensibilidades, e
na infância, o produto é o processo! conteúdo vivencial, e repertórios) que professores e professoras
oferecem. Uma vez que, por meio de ações culturais podem
Para seguir com as crianças, ajudando-as a
construírem o seu discurso e a darem forma às ampliar os horizontes de experiências de vida no cotidiano da
suas ideias, é essencial observar seus modos
próprios de ser, conhecer, se relacionar e falar
Educação Infantil, professoras são responsáveis pela organi-
sobre o mundo; é fundamental ouvi-las, acom- zação de vivências que garantam experiências e interação das
panhar suas buscas, testemunhar experimenta-
crianças com diversificadas manifestações de música, artes

131
plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e litera-
tura produzida por homens e mulheres negros.
A inserção nas propostas pedagógicas de artistas negros e ne-
gras, de forma contextualizada, além de fundamental como oportuni-
dades para a constituição da autoestima positiva das crianças negras,
contribui para uma ruptura na palidez do sistema da arte, para
utilizar as palavras certeiras da artista plastica Renata
Felinto dos Santos (2019). A pálida história das Artes
Visuais no Brasil, repercute no embranquecimento do
ensino de artes na escola e na educação das crianças,
que apreciam mais o Abaporu de Tarsila do Amaral
(1886-1976) do que o cotidiano revelado nas pinturas
de Maria Auxiliadora da Silva (1935-1974). Em meio a
essas disputas e supressões, aposta-se na inserção do
indivíduo negrodescendente como profissional das Artes
Visuais, Teatro, Dança e Música (SANTOS, 2019). Con-
siderando na Educação, a multiplicidade de cores que
transbordam de suas obras de artes.
Com o olhar para o trabalho com artes na
Educação Infantil, pergunto: como garantir os
princípios determinados pelas DCNEI? Como
fazer valer, nos projetos pedagógicos da Edu-
cação Infantil, o acesso aos patrimônios histó- rico-
culturais e às práticas que caminhem para o
rompimento de relações de dominação étnico-racial? As
escolhas pedagógicas são feitas de acordo com o que pro-

132
fessores conhecem e valorizam; assim sendo, com relação à garantia de acesso aos bens e aos
patrimônios culturais e artísticos, será fundamental o reconhecimento, a valorização e o respeito
às histórias e às culturas africanas e afro-brasileiras. Os professores precisam, então, conhecer tais
bens e patrimônios, para que escolhas pedagógicas sejam pautadas a favor da diversidade.
Pelo rumo da discussão que venho tecendo, podemos enfrentar a questão afirmando que a
Educação Infantil demanda profissionais que incorporem as questões artísticas, culturais, éticas e
estéticas na prática pedagógica; um interlocutor atento e responsável, que assegure o direito de
meninas e meninos às múltiplas formas de expressão, ao acesso a bens artísticos e patrimônios
simbólicos para a ampliação de seus repertórios culturais. Da mesma forma, um enfrentamento é
assumir ações pedagógicas com aprofundamentos acerca da diversidade étnico-racial, baseadas
em princípios éticos, políticos e estéticos, cumprindo o compromisso de valorização da identidade,
da cultura e da história de negros e indígenas.
A construção de outros gestos, partindo de práticas que conectam as crianças e o grupo à
produção artística e cultural, de ontem e de hoje, de diferentes origens étnicas, encontra possibili-
dades férteis na educação do olhar da professora, do cultivo de sua sensibilidade e ampliação do
repertório: o papel de professoras e professores a favor das relações étnicorraciais na educação
das infâncias é estratégico. Cá está uma forte razão que justifica a pesquisa.

133
134
ARTESANIAS DA
PESQUISA - FORMAÇÃO
v
135
Um fazer artesanal mobilizou os movimentos da pesquisa, ativando a imaginação para a criação de outros es-
paços formativos, nos quais mulheres negras se reconheçam no campo da Educação na proposição de pedagogias
da diversidade, decoloniais e de re-existência. De tal modo, a pesquisa se fez no encontro, para provocar memórias,
encorajar a narrativa e, por isso, exigiu o oferecimento/planejamento de um território discursivo digno, coerente e
empático. Por tratar-se da reunião de mulheres negras, considerei a criação desse espaço na pesquisa como um ato
de aquilombamento – lugar para circular histórias e forças na conexão com territórios negrodescentes, em uma busca
de um tempo/espaço de paz.
Na partida, estavam as seguintes questões: A formação docente pode contribuir para a educação das relações
étnico-raciais (ERER) na educação infantil, considerando a dimensão estética? O que dizem professores e professoras
sobre hábitos culturais, a presença de artistas negros e negras e o acesso aos espaços e/ou manifestações culturais
que representem as tradições africanas, afro-brasileiras e/ou os cenários socioculturais do negro? Aos professores e
professoras, é possível incorporar referências estéticas e ampliar repertórios artístico-culturais considerando a inter-
locução com poéticas negras?
Conforme já anunciado, a presente investigação tem como interlocutoras professoras de educação infantil e,
como foco, os caminhos sensíveis percorridos por elas, ao longo de suas trajetórias de vida e formação. Sob a pers-
pectiva da relação entre estética, arte e vida, pretendeu, como objetivo geral, analisar a contribuição da poética de
artistas negras para a formação docente. Assim, alguns objetivos específicos foram traçados: 1) Mapear informações
sobre hábitos culturais e presença de artistas, espaços e/ou manifestações culturais que representem as tradições
africanas, afro-brasileiras e/ou os cenários socioculturais do negro; 2) Identificar experiências da formação estética
de professoras que atuam na educação infantil, através de narrativas autobiográficas; 3) Promover encontros com a
poética de artistas negras e analisar sua validade como forma de incorporar referências estéticas e ampliar repertórios
artístico-culturais; 4) Analisar a utilização de múltiplas linguagens e a experimentação de diferentes materialidades
como canais para a rememoração e para falar de si; 5) Discutir a realização de encontros-ateliês narrativos como
metodologia de formação continuada de professores e suas implicações a favor da ERER na educação infantil.

136
arriscando olhares renovados. Neste sentido, não há o méto-
5.1 A METODOLOGIA ERRANTE TRANSFORMADA EM FIO
do correto, único, pois não depende tanto do caminho, mas
Tecer começa com um fio se tornando tecido. Inúmeras dos modos de caminhar” (OSTETTO, 2019b, p.61). Para tan-
são as variedades e as escolhas que devem estar relacionadas to, continua a autora, é essencial cultivar atitudes de abertura
com a funcionalidade, a qualidade e a estética do produto fi- e receptividade, “[...] marcadas pela escuta, pela espera e pela
nal. Assim, desenvolver uma coleção tem nesta decisão uma utilização de outras linguagens, envolto em busca e mistério,
tarefa de grande importância. O mesmo cuidado e zelo foi justamente características da experiência estética.” (OSTETTO,
dedicado às escolhas metodológicas desta pesquisa, de modo 2019b, p.61).
que a “metodologia errante” foi aprovada como fibra resisten- Como já fora anunciado, o movimento biográfico no Brasil
te, que ao movimento exigido no processo de pesquisa, trans- tem mobilizado a pesquisa e a reflexão sobre a formação de
formou-se em fio. professores, o ofício profissional e suas relações com aspectos
A ideia de errância, “do latim errantiae, desvio, afasta- concernentes às narrativas da história de vida e do trabalho do-
mento; derivação do verbo errare, vagar, andar sem destino, cente. Parte da importância de narrativas enunciadas pelas pes-
perder-se ou desviar do caminho” (HOUAISS, 2015 citado por soas sobre como vivem, compreendem e enfrentam os desafios
OSTETTO, 2019b), dialoga com um movimento resiliente da sociais de produzir a existência, e busca apreender a constitui-
fibra, que permite seguir sem arrebentar. Considerando ain- ção de um espaço que é, a um tempo, espaço de contar o vivido
da sua capacidade elástica, que recupera a forma após sofrer e também possibilidade de compreender os sentidos do vivido.
estiramentos, afinal “[...] Não basta saber. É preciso vivê-lo. E As histórias, que alguém conta a alguém, inauguram um tempo
aprender a vivê-lo” (GAILLARD, 2010, p. 139-141). de descobrir, uma afirmação com possibilidades de reconheci-
Nas pesquisas do grupo FIAR, temos experimentado tecer mento e interpretação de percursos próprios.
metodologias errantes, nas quais o elemento “deixar acontecer” Deste modo, pelo traçado de um percurso teórico-meto-
pode nos conduzir ao acesso e/ou à descoberta de elementos dológico errante, aberto à exploração de novos territórios de
não previstos, de conteúdos preciosos que só se deixam revelar saberes, disponível à escuta de narrativas e à articulação de
fora do campo já esquadrinhado. Assumir a errância no percur- movimentos internos e externos à pesquisadora, esta investiga-
so de realização de uma pesquisa, requer “[...] disponibilidade ção articula a tradição oral africana (BÁ, 1982) às abordagens
para explorar novos territórios, dentro de nós e ao nosso redor, (auto)biográficas (FORMENTI, 2008; RUGIRA, 2008; JOSSO,

137
2002; NÓVOA, 2021) na proposição de encontros-ateliês nar- educativa forjada pela e na práxis vivida social e historicamen-
rativos, como espaço estruturado para o encontro com pro- te, em busca de sua transformação. Destaco um dos sentidos
fessoras de educação infantil, para a escuta e o diálogo, para da práxis: “ação e reflexão dos homens sobre o mundo para
fertilização de narrativas e, também, como dispositivo de pro- transformá-lo” (FREIRE, 2001, p. 52), sendo imprescindível o
dução de dados biográficos. compromisso com a formação humana voltada para a certifi-
Segundo Hampaté Bá (1982), a tradição bambara do cação da liberdade, da humanidade, da capacidade de enten-
Komo ensina que a palavra, kuma, é uma força fundamen- der para de criar e tecer mudanças.
tal, ela é o instrumento da criação. Na tradição, os gestos de Assumindo esses elementos, a pesquisa se fez no contexto
cada ofício reproduzem o mistério da criação. Diz-se que: “O de encontros-ateliês narrativos, realizados com mulheres ne-
ferreiro forja a Palavra; O tecelão a tece; O sapateiro amacia- gras, que atuavam ou atuaram, nos últimos dez anos, como
-a curtindo-a” (BÁ, 1982, p.185). Enquanto falamos, criamos professoras na educação infantil na rede pública municipal de
uma ligação de vai-e-vem e, assim, uma fala criativa em ação Niterói-RJ. O dado temporal (2010-2020) configura um perío-
é simbolizada pelo ofício do tecelão, que com pés que sobem e do subsequente à implementação das diretrizes que norteiam
descem, produzem movimento e ritmo no tear, portanto geram o currículo na educação infantil.
força, criação e vida. Os encontros-ateliês narrativos, que serão detalhados
O diálogo é pressuposto de uma narração enquanto ato adiante, configuraram-se como território de encontro para
criativo, e recorro ao conceito de práxis, presente na Peda- conversas-reflexões-rememorações-narrativas, mobilizadas
gogia do Oprimido (FREIRE, 2001), fundada no diálogo, na pela articulação entre fruição artística e processos expressivos.
reflexão, na conscientização e em ações dos homens sobre a Para suscitar reminiscências, na realização dos encontros-ateli-
realidade visando a sua transformação. As ideias debatidas ês foram projetados movimentos que conduziram ao encontro
por Paulo Freire denotam o respeito pelas diferentes culturas, da poética de artistas negras, considerando a expressão por
pelo contexto em que se está inserido e a crítica à invasão múltiplas linguagens e a experimentação de diferentes mate-
cultural; suas ideias dão forma a uma pedagogia que se faz rialidades como canais para a rememoração e para falar de si.
num “esforço permanente através do qual os homens vão per-
cebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que
é em que se acham” (FREIRE, 2001, p. 100), uma proposta

138
éticas e sanitárias pelo devido distanciamento social, que nos
5.2 FIO A FIO, ENTRELAÇANDO A PESQUISA
fez abrir janelas à (re)invenção – dos modos de viver, de edu-
Dado o caráter experimental, artesanal e errante da pes- car, de pesquisar. No percurso da pesquisa, a cada uma das
quisa, nos termos já descritos, consideramos prudente, eu e experiências que me aconteciam, uma janela era aberta, uma
minha orientadora, realizar um projeto-piloto, com cinco pro- nova paisagem podia ser visibilizada, um jeito diferente de ser
fessoras de educação infantil autorreferenciadas negras. As- pesquisadora era praticado. Recolhi muitas histórias, pude en-
sim, entre os meses de julho e agosto de 2020, foram realiza- tão sentir o que movimentava meu olhar-pensar-sentir.
dos cinco encontros-ateliês, pelo serviço de comunicação por Os encontros-ateliês narrativos realizados no âmbito do
vídeo do Google, com duração de uma a duas horas cada um. projeto-piloto, como um ensaio para uma viagem mais pro-
Entre tantas mulheres brasileiras contemporâneas que, pela funda, indicaram preciosas lições: 1) Mais do que os conteúdos
arte, afirmam sua existência no mundo, os encontros-ateliês que poderiam ser identificados nas narrativas orais, escritas e
do projeto-piloto trouxeram as poéticas de Conceição Evaristo, plástico-expressivas, mais do que os dados configurados para
Rosana Paulino e Lia de Itamaracá, três mulheres importantes possíveis análises, revelou-se a importância do espaço criado
para a arte e cultura afro-brasileiras, que possuem histórias para a interação, para a partilha de histórias e para o reconhe-
singulares e diversas, expressas nas produções e linguagens cimento de questões comuns; 2) Os traços de uma pesquisa
artísticas e que fazem parte do meu repertório e de minhas errante foram evidenciados: ir lá onde não se conhece, com
afinidades eletivas. abertura, disposição, atitude de escuta, permite a criação, a
O estudo-piloto realizado, apresentado como parte do experimentação e o acolhimento de outros modos de ver (OS-
texto de qualificação da tese, mostrou-se pertinente e neces- TETTO, 2019b). Essas atitudes possibilitaram viver a surpresa e
sário, pois a partir dele, percorrendo os desafios da errância o espanto, desalojando posições confortáveis de pesquisadora
e da constituição do campo de pesquisa com as participantes, e das participantes, forjando bons elementos para se pensar
pude exercitar o olhar e todos os sentidos de uma pesquisa- a continuidade da pesquisa; 3) As narrativas orais das partici-
-formação, pude experimentar os dispositivos escolhidos para pantes sobre o modo como vivem, compreendem e resolvem
a investigação e analisar seus limites e possibilidades. seus problemas sociais, incluindo a discriminação e o racismo,
Sua pertinência se mostrou, também, em vista do cenário revelavam uma densa carga emocional e, neste sentido, a ati-
pandêmico, que nos impôs o cumprimento de recomendações vidade biográfica, realizada por meio do diálogo e da elabo-

139
ração de narrativas no grupo, foi validada em seu aspecto de
partilha, acolhimento e identificação. Contar sobre si, dores e
alegrias, foi reafirmada como uma das formas privilegiadas
de atividade reflexiva, pela qual a pessoa pode representar e
compreender a si mesma, implicada no seu ambiente social e
histórico; 4) As produções artístico-culturais de artistas negras
compartilhadas na dinâmica dos encontros-ateliês foram con-
firmadas como oportunidades de amplificar a rememoração e
narrativas de si.

Figura 21 - Foto-ensaio. Partilhas.


Composto por fotografias compartilhadas
pelas professoras durante a realização do
projeto-piloto.
Brito Silva, Greice (2020).

140
Essas lições apreendidas com a realização do projeto-piloto, somadas às contribuições das
professoras que compuseram a banca de qualificação de tese, foram essenciais para revisar o per-
curso, os dispositivos e os conteúdos viabilizados e proceder a alguns ajustes nos movimentos sub-
sequentes da pesquisa, sobretudo considerando que “a espera, o acolhimento e o cultivo da beleza,
são qualidades da errância da pesquisa” (OSTETTO, 2019b, p.62). Enfim, o projeto-piloto permitiu
que o desenho metodológico da pesquisa, implicado na dinâmica virtual, fosse ressignificado com
a colaboração das participantes.
Na pesquisa de base narrativa e autobiográfica, é importante detalhar os percursos, as idas e
vindas, as mudanças de rumo, os recuos, os avanços. E aqui aponto algumas mudanças. O projeto
de pesquisa levado ao exame de qualificação pretendia ter como grupo de participantes-colabora-
doras, 10 (dez) professoras, oriundas de diferentes regiões do Brasil. O convite seria feito através de
redes virtuais, a partir de grupos de professores e/ou de pesquisas ligadas à Educação. A recomen-
dação das professoras participantes da banca, realizada em dezembro de 2020, foi delimitar com
outros critérios o campo, para melhor aproveitamento do trabalho e contribuição direcionada às
secretarias municipais de Educação, suscitando a ampliação de estudos, fortalecimento de debates e implementação de ações
afirmativas e políticas públicas no que diz respeito à formação de professores, à educação infantil e às relações étnico-raciais.
Acolhi a recomendação e, assim, a investigação foi delimitada aos professores atuantes na Educação Infantil da Rede Pú-
blica Municipal de Niterói-RJ, haja vista a possibilidade de acesso, considerando projetos e parcerias para o desenvolvimento
da cidade realizados entre a prefeitura e a Universidade Federal Fluminense, que incluem ações desenvolvidas na Faculdade
de Educação (FEUFF). Destaque-se que o FIAR, grupo de pesquisa do Programa de Pós-graduação em Educação, já referen-
ciado anteriormente, realiza de forma sistemática atividades de ensino, pesquisa e extensão, contribuindo para a formação
inicial e continuada de professores da Educação Básica nas redes de ensino de Niterói e outras cidades próximas.
Outro ajuste diz respeito à forma de localização, dentre o grupo já delimitado (professoras de Educação Infantil da rede
pública de Niterói), de possíveis participantes dos encontros-ateliês narrativos. A busca se fez por meio de consulta, via for-
mulário digital com questões sobre autodeclaração racial e produção cultural afro-brasileira. Nesta consulta, também foram inseridas
questões que contribuiriam para mapear informações sobre hábitos culturais e presença de artistas, espaços e/ou manifestações culturais
relacionadas às tradições africanas, afro-brasileiras e/ou cenários socioculturais do negro no Brasil.

141
Assim, com vistas à continuidade da investigação, no ano de 2021, foi firmado acordo através de termo
de compromisso e cumprimento às normas regimentais do Núcleo de Estágio, da Secretaria Municipal de Edu-
cação, Ciência e Tecnologia (SMECT) e da Fundação Municipal de Educação (FME) do município de Niterói-RJ.
Em parceria com a Diretoria de Educação Infantil, que por mudança organizacional na atual gestão passou
a chamar-se Coordenadoria de Educação Infantil, houve o devido encaminhamento para realização do tra-
balho. O interesse detinha-se na participação voluntária de ocupantes do cargo de Professor I de Educação
Infantil, que de acordo com a Lei Nº 3067/201323, são os professores da FME que exercem atividades profis-
sionais, especificamente, na educação infantil e pertencem ao Grupo Magistério, constituído por servidores de
nível médio (NM) e de nível superior (NS) ocupantes de cargo de provimento efetivo e nomeados, mediante
concurso público.
Com o apoio da Coordenadoria de Educação Infantil - Niterói/RJ, que possibilitou o contato com as
Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEI), através do e-mail institucional, o formulário digital foi
enviado em formato de link para o e-mail de cada UMEI, e ficou disponível por 36 dias, entre 06/04 a
12/05/2021. Produzido no aplicativo de pesquisas do Google, estava composto por quatro seções: 1) Con-
vite à participação: antes de decidir sobre a participação, torna-se importante entender a importância e o
que envolvia o estudo; 2) Informações Pessoais: comunica que dados pessoais e outras informações pessoais
serão mantidos em sigilo; 3) Cultura Afro-brasileira Nas Rotas De Formação: remete à busca por tempos,
territórios, figuras de ligação, vivências culturais e objetos biográficos, a presença ou não de elementos de
matriz africana e/ou afro-brasileira; 4) Próxima Etapa Da Pesquisa: marca o desejo de continuar participan-
do da pesquisa.
Trinta e sete professoras responderam ao formulário. Pela relevância dos dados reunidos, optei por apre-
sentá-los no item a seguir, como uma primeira leitura sobre o grupo que se dispôs a responder às questões.

23 LEI Nº 3067, DE 12/12/2013 - Institui O Novo Plano Unificado De Cargos, Carreira E Vencimentos Dos Servido-
res Da Fundação Municipal De Educação De Niterói
https://leismunicipais.com.br/a/rj/n/niteroi/lei-ordinaria/2013/306/3067/lei-ordinaria-n-3067-2013-institui-o-novo-
-plano-unificado-de-cargos-carreira-e-vencimentos-dos-servidores-da-fundacao-municipal-de-educacao-de-niteroi

142
5.3 A FORTUNA DA COR NOS HÁBITOS CULTURAIS DE PROFESSORAS DA
EDUCAÇÃO INFANTIL DE NITERÓI/RJ
O que quer que chamemos de obra de arte é imaginado e materializado por
gentes, diz a pesquisadora Renata Felinto dos Santos (2019). Objetos de arte, dese-
nhos, pinturas, gravuras, esculturas, modelagens, fotografias, performances, víde-
os, instalações, construções são criadas por uma infinidade de pessoas. Literatura,
cinema, dança, teatro e música, são obras de pessoas. Em sua crítica à palidez do
sistema de arte, a pesquisadora reivindica que todas as gentes que têm se inscrito na
história com suas existências e suas artes, espalhadas pelo território brasileiro sejam
representadas em sua multiplicidade de cores (SANTOS, 2019).
Inspirada nos escritos e reivindicações da referida autora, no traçado de um
mapa sobre os hábitos culturais, a partir das respostas de professoras de Educação
Infantil da cidade de Niterói, interessou-me perceber outros tons que preenchem os
gráficos. Neste sentido, busquei informações sobre hábitos culturais e presença de
artistas, espaços e/ou manifestações culturais relacionadas às tradições africanas,
afro-brasileiras e/ou cenários socioculturais do negro no Brasil. Valorizo as nuances
mais escuras que expressam a produção artístico-cultural correspondente ao lega-
do da população negra. Outros tons que remetem à fortuna da cor preta, como diz
Santos (2019).
Considerando o levantamento realizado, é importante compartilhar informa-
ções gerais a partir dos dados fornecidos ao formulário digital. A totalidade de
respondentes foi de 37 representantes do gênero feminino, com idade entre 27 e
61 anos. Sobre a localização geográfica, é con-
Figura 22 - Renata Felinto. Nos braços da
siderável dizer que 88,2% nasceram no Estado
mãe Nanã o amanhã está seguro (2020).
Tamanho: 29,7 x 42 cm. do Rio de Janeiro e 47,2% residem na cidade de
https://projetoafro.com/

143
Niterói. As participantes representam 20 entre as 43 Unidades Municipais de Educação Infantil da Rede Pública de Niterói. Do total, 28,9%
atuam como professoras há mais de 20 anos, tendo 65,8% atuado com todas as faixas etárias de crianças, de zero a cinco anos.
Seis perguntas principais geraram respostas, com as quais compus desenhos a partir da proposta de gráficos em funil. Ao observar
as formas, seja na imagem em miniatura ou nos gráficos, podemos analisar a frequência de acesso e consumo dos serviços culturais.
Quanto maior a parte superior do desenho, mais frequente e comum, o produto ou serviço está incluído como habitual. É possível tam-
bém perceber tonalidades mais escuras quando há um maior consumo/acesso dos objetos e manifestações artístico-culturais. Do mesmo
modo, quanto mais claro o desenho, menor ou nula é a participação de bens e serviços culturais.
Na sequência abaixo, as formas em miniatura possibilitam ainda uma comparação entre os resultados a partir dos desenhos. Na
ordem, dizem respeito às práticas culturais relacionadas: 1) aos livros; 2) às peças teatrais; 3) aos sons e músicas; 4) às danças; 5) aos
filmes e séries; 6) às artes visuais em exposições.

Figura 23 -
Miniatura de
diagramas
sobre os hábitos
culturais de
professoras de
Educação Infantil
da cidade de
Niterói/RJ. Brito
Silva, Greice
(2021).

144
Figura 24 - Diagrama 1: leituras.Brito Silva, Greice (2021). Figura 25 - Diagrama 2: peças teatrais. Brito Silva, Greice (2021)

145
Figura 26 - Diagrama 3: sons e músicas. Brito Silva, Greice (2021) Figura 27 - Diagrama 4: danças. Brito Silva, Greice (2021)

146
Figura 28 - Diagrama 5: filmes e séries. Brito Silva, Greice (2021) Figura 29 - Diagrama 6: exposições artísticas. Brito Silva, Greice (2021)

147
É possível afirmar, pelas respostas, que os livros são bens Chama atenção que, entre os nove livros mais citados,
culturais de maior acesso/consumo na abordagem sobre cultu- apenas um seja direcionado ao público adulto. O título é um
ra africana e afro-brasileira. Expressiva maioria de participan- dos livros mais vendidos do ano de 202024. Nos últimos anos
tes diz ter lido vários ou poucos livros com protagonistas ne- nota-se um crescimento considerável das publicações de au-
gros. Das leituras realizadas, mais de trinta autores e quarenta tores negros e negras no Brasil e dos livros com temática étni-
títulos foram citados. Entre os títulos, dez são direcionados co-racial, puxados pela explosão de vendas do livro “Peque-
ao público adulto e trinta e sete são direcionados ao público no manual antirracista”, da filósofa, pesquisadora e ativista
infantil. Importante considerar que, de acordo com a pesqui- Djamila Ribeiro. Temos acompanhado mudanças no mercado
sadora Eliane Debus (2013), a partir da primeira década do editorial, na curadoria de importantes eventos literários e no
novo milênio tivemos um mercado editorial em expansão no reconhecimento de editoras especializadas em obras de cunho
que diz respeito à diversidade. Para a autora, a ampliação da afrodescendente, essas ações contribuem para uma educação
temática étnico-racial nos livros infantis deve-se à demanda literária plural, diversa e também antirracista.
promovida pela Lei 10639/03, que coloca a literatura compro- Em contrapartida, as peças teatrais, apresentam um con-
missada com outras representações sociais. siderável número de pessoas que nunca acessou este serviço

Dos títulos dos livros, os mais citados: 1. Menina bonita com roteiros sobre a cultura africana ou afro-brasileira. Nas

do laço de fita (1986); 2. Obax (2010); 3.Amoras (2018); 4. O respostas positivas, aparecem a escola, o teatro e os equipa-

Cabelo De Lelê (2007); 5. Bruna e a galinha da Angola (2000); mentos SESC como espaços frequentados. As cidades de Ni-

6. Meu Crespo é de rainha (2018); 7. Pequeno manual antir- terói, Rio de Janeiro e São Gonçalo aparecem como lugares

racista (2019); 8. Pretinha de Neve e os sete gigantes (2013); de acesso. Aquelas que assistiram em formato digital, citam

9. Omo-Oba: histórias de princesas (2009). Nem sempre as a Internet, a TV (canal fechado) e o Youtube como canais de

obras trazem a autoria, mas, pesquisando as referências dos comunicação de peças teatrais. Entre os locais, aparecem:

livros, encontrei: Ana Maria Machado, André Neves, Emicida, Teatro Municipal de Niterói, Centro Cultural Banco do Brasil

Valéria Belém, Gercilga de Almeida, bell hooks, Djamila Ribei- (CCBB-Rio), Sesc Copacabana, Cidade das Artes; Armazém

ro, Rubem Filho, Kiusam de Oliveira, cujas obras aparecem


como mais citadas. 24 Livro de Djamila Ribeiro é o mais vendido do ano no Brasil em
2020 Leia mais em: https://vejario.abril.com.br/programe-se/livros-
-mais-vendidos-brasil-2020/

148
da Utopia; Teatro da UFF; Teatro Popular Oscar Niemeyer. Entre os espetácu-


los, são citados: "Luiz Gama: Uma Voz Pela Liberdade" (2020); o Musical “Impé-
rio” (2006); “Otelo” (2020); “Ananse e o baú de histórias” (2017).
Compartilho alguns comentários (a)colhidos que revelam sentidos e sig-
nificados sobre o que viram, ouviram, sentiram em interação com artefatos e
manifestações artístico-cultural.

Ter protagonismo de pessoas pretas


atuando, dirigindo.

A peça do Luiz Gama foi significativa pela Foi importante conhecer um novo conto
história de vida e perseverança pela luta pela africano que não sabia que existia. Como
liberdade dos seus irmãos negros durante o foi o caso do teatro de sombras O baú de
período do Império Brasileiro. histórias com Ananse.

Conhecer personagens do folclore africano e suas histórias, a


abordagem das peças, cujo protagonismo evidenciava que falar
sobre a cultura africana ou afro-brasileira não se restringe ao
tema escravidao. Revelava a riqueza de manifestações culturais.
Estar em contato com a nossa ancestralidade.

149
Sobre o modo de assistir filmes e escutar músicas na con- expressão de emoções, conhecimento do corpo, entretenimen-
temporaneidade, vale dizer, com Barbosa et al (2020), que as to e educação, de acordo com Garcia e Hass (2003). É uma
tecnologias da informação e comunicação ampliaram as prá- das manifestações corporais mais antigas, que tem relação di-
ticas culturais, permitindo uma maior disponibilidade de bens reta com a cultura. Sobre danças afro-brasileiras, as autoras
culturais. Uma vez que os serviços de streaming vêm modi- dizem ser uma
ficando os modos e hábitos das pessoas em assistir filmes e [...] dança gerada a partir da fusão das danças
ouvir músicas por meio da internet. Essas foram as atividades da cultura africana com as da cultura brasileira.
Apresenta característica especial nas movimen-
mais comuns no período da pandemia, de acordo com estudo tações dos braços e das mãos, da cabeça, do
do Itaú Cultural e Datafolha25. tronco (ondulação e contração), dos quadris
(acentuada movimentação pélvica) e molejo,
Atualmente, o usuário tem sua independência e pode es- na expressão facial e vestuário adequado a sua
colher o que vai consumir. Isto se mostra nas respostas à ques- intenção de manifestação”. (GARCIA; HASS;
2003, p. 174)
tão sobre a frequência de acesso a sons e músicas de origem
africana e/ou afro-brasileira. Estas, estão incluídas na rotina Nas respostas de que estou tratando, chama atenção que
de forma expressiva diária ou semanalmente. Sobre cantores, o hábito de dançar ritmos africanos e afro-brasileiros, em sua
compositores e/ou canções conhecidas, citam muitos artistas maioria, aconteça de forma rara, visto que frequentemente
nacionais, referências da Música Popular Brasileira e também as participantes dizem escutar sons e músicas. Pergunto: seria
do samba/pagode.
uma indisponibilidade de conexão com o corpo pela falta de
Mesmo com a facilidade de transmissão online de conte-
tempo? Um desconhecimento sobre batucadas, sambas, capo-
údo de vídeo, filmes e séries que abordam temas das culturas
eira, jongo, maracatu, dentre outros? Ou, aspectos religiosos
africana, afro-brasileira e/ou que tenham protagonistas ne-
influenciam a prática de dançar ritmos afros? São aspectos
gros, a frequência de acesso mensal é maioria. Há um número
que merecem investigação, mas fogem ao propósito da pre-
expressivo de produções internacionais entre os citados.
sente pesquisa.
Dançar é movimentar-se pelo espaço, é sentir o corpo li-
Voltando às respostas, entre os citados, aparecem nome-
vre, é comunicar-se consigo mesmo. Está relacionada com a
ados diferentes grupos de danças e ritmos: Samba de raiz, Ca-
25 https://revistamuseu.com.br/site/br/noticias/nacionais/ rimbó, Jongo, tambor de crioula, Axé, forró, capoeira, mara-
11852-22-07-2021-consumo-virtual-de-atividades-culturais-cresce-na-pande-
mia-aponta-pesquisa-itau-cultural-datafolha.html catu, funk, rap nacional. Artistas pouco conhecidos, tais como:

150
Ballet Afro, Grupo Musical Ilê Ayê, Olodum, Lia de Pintura, desenho, gravura, fotografia,
Itamaracá, D. Nicinha do Coco, Grupo Mariocas. escultura, dentre outros, caracterizam ma-
No formulário, havia a possibilidade de respos- nifestações ou obras reconhecidas como ar-
tas acompanhadas de comentários. Nem sempre tes visuais. Elementos que são parte de um
comentavam, mas, nesse caso, dois comentários conjunto de arte, produzidas para serem,
especialmente, agradáveis aos olhos. Dos
espaços de arte em que podem ser aprecia-
das, o acesso a museus e centros culturais
foram destacados no questionário. Impor-
tante considerar suas diferenças: museus são
instituições sem fins lucrativos que conser-
Não aprecio danças, infelizmente algumas coisas
vam e pesquisam, além de expor, conjuntos

“ ”
nos são ensinadas, e na minha família não temos a
e coleções de valor cultural. Já os centros
cultura de dançar. Depois de adulta, não busquei… culturais têm caráter expositivo e, por não
chamaram minha atenção: possuir coleção própria, não se preocupam
Mamãe dançava jongo. com manutenção e documentação de acer-
vo. A respeito da visitação a museus, Bibian
(2017) argumenta que as ideias, concepções
e práticas envolvidas revelam questões ainda
não resolvidas. Por tratar-se de lugares histo-
Essas narrativas, ainda que breves, me conduzem ricamente elitistas, muitos visitantes acabam
a refletir sobre as manifestações culturais na infância, por se sentir excluídos pelo espaço físico inti-
a influência da família nas experiências com a arte e a midador, pelos textos pouco esclarecedores,
cultura, e como a adultez deixa de lado as expressões pelas obras e objetos incompreensíveis, diz
artísticas, sobretudo as que envolvem o corpo, como é a pesquisadora. Contudo, afirma que o mu-
o caso da dança. seu é algo vivo, que pode estar a serviço dos

151
interesses ideológicos de determinados grupos sociais, econô- ção das histórias e culturas africana e afro-brasileira. Contudo,
micos, étnicos, religiosos, e por isso, pode também libertar. Em é preciso destacar que o Estado do Rio de Janeiro possui um
suas palavras: grande número de equipamentos culturais com exposições so-

[...] os museus podem ser considerados não


bre a multietnicidade do povo brasileiro em museus e centros
apenas depósitos de um patrimônio ou me- culturais da Região Metropolitana.
mória que coletam, preservam, pesquisam e
expõem. São também espaços de experiência,
Como forma de valorização e incentivo de trabalhos que
onde os sujeitos e as coisas ganham sentido abordam sobre culturas africana e afro-brasileira, vale regis-
porque são postos em relação. Mas, como isso
pode ocorrer, se não há espaço e tempo para
trar os espaços de arte que foram mencionados. Das cidades
ouvir este sujeito, suas inquietações, perguntas, de Niterói e Rio de Janeiro, destacam-se: CCBB (Rio de Janei-
medos, observações, descobertas? (BIBIAN,
2017, p.62)
ro-RJ), Museu de Arte Popular Janete Costa (Niterói-RJ), MAC
(Niterói-RJ); Espaço Cultural Correios de Niterói (Niterói-RJ);
A visitação aos museus e centros culturais, bem como a MAR (Rio de Janeiro-RJ); IPN (Rio de Janeiro-RJ). E ainda ou-
apreciação de artes visuais, não se configura como hábito para tros, como o Quilombo Agbara Dudu (Oswaldo Cruz, Rio de
as participantes da pesquisa que responderam ao formulário. Janeiro/RJ), a Casa Cultural do Jongo (Madureira, Rio de Ja-
A expressiva maioria considera ser raro o acesso aos espaços neiro/RJ) e o MUHCAB (Gamboa, Rio de Janeiro/RJ).
de arte e exposições que retratam culturas negras. As respostas Nas exposições citadas pelas participantes, aparecem:
de quem nunca frequentou exposições sobre a temática africa- Exposição 'Egito Antigo' (2020) no CCBB, na cidade do Rio de
na ou afro-brasileira, fazem pensar sobre os repertórios ima- Janeiro; Tudo Nosso (2019), exposição individual do artista Mu-
géticos das professoras da Educação Infantil, suas experiências lambo, no Museu de Arte do Rio; exposição “O Rio do samba:
com o desconhecido, participação em atividades criativas fora resistência e reinvenção” (2018) também no MAR. Mais de dez
do espaço escolar, o diálogo com as ações desenvolvidas por artistas negros foram lembrados, entre os mais conhecidos estão
espaços culturais. E, principalmente, faz refletir sobre o conhe- Heitor dos Prazeres (1898-1966) e Aleijadinho (1738-1814).
cimento dos educadores a respeito do patrimônio material e
imaterial da humanidade.
Importante dizer que não temos a totalidade de diretores
e produtores culturais promovendo de forma devida a valoriza-

152

Ao contar sobre experiências formativas ligadas à arte (desenho, pintura, escultura, música,
canto, artesanato etc.), alguns comentários destacaram-se:

Fiz curso de teatro, dancei em


alguns grupos de dança e atualmente Artesanato e capoeira. No artesanato desenvolvi
canto num coral. uma técnica de criação de cordões com pingente
de bonecas negras, representando orixás. Pratico
Já dancei no palco do teatro Municipal. Foi uma capoeira há 27 anos e nela aprendi a tocar
experiência única, foi um ato de coragem porque nao berimbau, pandeiro e atabaque.
tenho ritmo, mas superei a timidez.

Perguntadas se gostariam de deixar registrado algo em relação a sua trajetória e atividades desenvolvidas relacionada à produção
cultural afro-brasileira, comentaram sobre a importância do tema para a prática docente:

Fiz algumas oficinas, participei de seminários e assisti


palestras sobre o assunto. Gosto de buscar mais
informações sobre o assunto. Minha geração não obteve
A minha vontade em, de fato, aprender sobre como
nenhuma informação sobre esse assunto na escola ou
trabalhar essas questões, fundamentais, na Ed.
no meio social. Se não buscarmos essas informações
Infantil. Não se trata apenas de ler, apresentar etc,
ficaremos ignorantes culturais.
mas refletir com conhecimento teórico e vivências.

153

Aproveitaram a oportunidade para contar de suas experiências.

Desenvolvi vários projetos interdisciplinares


Meu maior mergulho dentro da produção cultural afro-brasileira relacionados à cultura afro-brasileira com
foi na capoeira angola, que me atravessou e atravessa todo meu minhas turmas, o que me impulsionou a
entendimento deste corpo de mulher preta, vivendo um cotidiano pesquisar com maior profundidade sobre o tema.
repleto de violências físicas e simbólicas produzidas pela Nunca tive nenhuma formação ou matéria na
branquitude e pelo patriarcado. Vivo a capoeira intensamente. faculdade sobre esse assunto.
Fundei meu grupo a 10 anos, dou aulas regulares e fui
reconhecida como mestra de capoeira a 4 anos. Sou contadora de histórias e sempre conto
muitas histórias africanas. Esse tema
perpassa por toda minha jornada como


professora há 30 anos.
E revelaram desejo em aprofundar seus conhecimentos.

É algo a ser aprofundado. E assim farei: estudar


mais sobre cultura afro-brasileira e africana. Sou umbandista,e essa religião me aproxima
muito da cultura afro-brasileira. Quero
Com essa pesquisa, percebi que posso me conhecer mais.
empenhar e tentar introduzir mais elementos da
cultura afro-brasileira na minha rotina.

154
É importante ressaltar que, antes de aprofundar nos cami- gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação
nhos individuais de professoras, eu buscava desenhar um qua- política feminista e antirracista e, por isso, relatos biográficos de
dro coletivo a partir das informações sobre hábitos culturais e mulheres negras podem provocar a discussão sobre formação
a presença ou não de elementos de matriz africana e/ou afro- de professores, especialmente no processo de reeducação das
-brasileira. A procura de participantes por meio virtual, trouxe relações étnico-raciais para toda a nação brasileira. Assim, para
a possibilidade de consulta aos docentes da Educação Infantil, a continuidade na participação da pesquisa (nos encontros-ate-
via formulário digital. A intenção distanciava-se da formulação liês narrativos), busquei por colaboradoras negras.
de um modelo de consumo de serviços culturais ou de queixas No questionário, fez-se o uso da autoatribuição como mé-
sobre o refinamento do gosto das professoras. Entretanto, o todo de identificação racial, no qual o próprio sujeito da clas-
mapeamento sobre hábitos culturais de professoras ajudou a sificação escolhe seu grupo. A identificação do pertencimento
perceber o que tem resistido em seus processos formativos. O das pessoas às categorias raciais envolve um processo reflexivo
que persiste sob a violência colonial e a homogeneização do sobre a autoclassificação étnico-racial baseado em suas ca-
sentir em países latinos? O que perdura diante do controle racterísticas. Os problemas, neste caso, são ocasionados pelas
de imagens e de produções culturais na sociedade brasileira? particularidades da ideologia racial brasileira. Entende-se que
Mesmo não sendo objetivo principal da pesquisa, foi possível as percepções que levam alguém a escolher determinada cor/
visualizar um esboço das vivências de professoras da Educa- etnia variam no tempo e no espaço. Visto que estas funcionam
ção Infantil da cidade de Niterói com serviços e equipamentos para a exclusão social e para o pertencimento de classe.
culturais que abordam sobre culturas negras e que podem fa- Ao questionamento aberto sobre seu pertencimento ét-
vorecer a promoção da igualdade racial nas UMEI e escolas. nico-racial, tendo em vista sua autoidentificação, as trinta e
Contudo, interessava-me saber onde, professoras negras, en- sete respondentes representaram-se: 7 (sete) pardas, 5 (cinco)
contram seu espaço de existência. pretas, 5 (cinco) negras, 1 (uma) multirracial e 19 (dezenove)
A escolha por mulheres negras como interlocutoras-narra- brancas. Sendo: 48,6% não-brancas e 51,4% brancas. Con-
doras-colaboradoras se deu pela compreensão das inúmeras siderando a prática de pesquisadores e do movimento social,
dificuldades estruturais existentes para seu reconhecimento e va- neste trabalho, a categoria negra contemplou o agregado das
lorização. Conforme já argumentei, seguindo as pistas de Car- pessoas que responderam às cores preta e parda, e às cate-
neiro (2003), a luta das mulheres negras contra a opressão de gorias negra e multirracial. Com o número de dezesseis parti-

155
cipantes pertencentes à categoria negra e que se dispunham a
5.4 PROCESSOS CRIATIVOS (CON) FIADOS EM
prosseguir na investigação, foi necessário definir o grupo para,
então, organizar os convites para os encontros-ateliês.
ENCONTROS-ATELIÊS NARRATIVOS
Seguindo a lista das dezesseis possíveis colaboradoras,
Os encontros da pesquisa remontam a ideia de ateliê
realizei contato individual via ligação telefônica, respeitando a
como lugar que acolhe processos criativos. A escolha se deu
diversidade de local de atuação, ou seja, das UMEI. A intenção
pela necessidade de ativar a dimensão estética, bem acionada
primeira era realizar dois grupos de oito professoras, acolhen-
quando estamos em contato com quem somos, como já falado
do todas as que se disponibilizaram. Todavia, considerando
anteriormente. A conexão com a sensibilidade, levou-me a re-
o contexto pandêmico e a volta das atividades presenciais na
alizar encontros-ateliês, que tinham como intenção a profusão
rede municipal à época dos encontros-ateliês, optei por conti-
de narrativas. Reconhecendo não ser simples o ato de elabo-
nuar a pesquisa com as seis primeiras professoras com quem
rar e dizer sobre si e tampouco, em público, assumir desco-
fiz contato.
nhecimentos, enfrentamentos pessoais. Neste sentido, ateliês
Assim, compuseram o grupo dos encontros-ateliês narra-
narrativos ligaram-se à sensibilidade, abrindo-se às narrativas
tivos, seis professoras que atuam na Educação Infantil da Rede
fiadas e tecidas sem resistência, por quem escolhe doar-se in-
Pública Municipal da Cidade de Niterói e estão lotadas nas
teiramente como quem confia, ainda que desconfiado, de seu
unidades: UMEI Hilka De Araújo Peçanha; UMEI Hermógenes
potencial criativo. Podendo ser múltiplas, em formatos orais,
Reis; UMEI Antônio Vieira Da Rocha; UMEI Alberto De Oliveira;
escritos, imagéticos, fotográficos, dentre outros.
UMEI Marilza Da Conceição Rocha Medina; UMEI Regina Leite
No encontro com poéticas negras, narrar-se através de
Garcia. Com o grupo definido, segui organizando e viabilizan-
diferentes linguagens seria o ponto fundamental. Na escola é
do os encontros.
comum utilizarmos a palavra escrita. Na vida, a palavra fala-
da. Ao encontrar poéticas negras, a partir da vida e obra de
Lia de Itamaracá, Rosana Paulino e Conceição Evaristo, pre-
tendia-se a apropriação de outras formas de expressão, que a
arte e a cultura nos oferecem. Para além do que conhecemos,
considerando a formação do gosto, o desenvolvimento de lin-
guagens e ampliação das referências estéticas dentro das inú-

156
meras criações que compõem o patrimônio artístico e cultural que, na intenção, poderiam desencadear e apoiar movimentos
da humanidade. Uma boa aposta a favor da diversidade. para falar de si.
Foram cinco encontros-ateliês narrativos, realizados cole- A caixa-convite é composta por uma caixa retangular de
tivamente com as seis professoras, entre os meses de agosto e madeira que abriga, ao modo de um mini-ateliê portátil de
setembro de 2021. Todos foram sustentados e gravados pelo criação, materiais e objetos diversos: cartões de papel colo-
serviço de comunicação por vídeo do Google. A ideia inicial rido; cartão retangular de papel mágico; lápis de cor; cola
era deixar as datas agendadas previamente. Porém, percebi gel; bloco sem pauta; caneta esferográfica preta; linhas tipo
que o tempo é um ponto fundamental para a colaboração das meada em duas cores; recortes de tecido padrão liso e afri-
professoras. Rotineiramente, elas sentem-se pressionadas pela cano; moldes de coração em feltro colorido; fibra siliconada
falta de tempo e o excesso de compromissos. As participantes para enchimento; agulha de tapeçaria; alfinetes; botões colo-
disseram que entre o trabalho com as crianças, que à época rido e liso; flores artesanais; folhas e flores secas; cartão com
estava retornando ao presencial, havia ainda quem cursasse QR CODE para playlist “Cirandar” no spotify; sachê de chá
pós-graduação, cursos complementares e tarefas pessoais. A de maçã; anis estrelado; envelope amarelo com três cartões
fim de favorecer a reunião de todas, valorizar a adesão pelas retangulares em branco; envelope com quinze cartões postais
propostas e criar um bom clima, combinamos de sincronizar produzidos especialmente para esta pesquisa.
uma próxima data ao final de cada encontro. Os quinze postais fazem parte de uma série criada por
Durante o projeto piloto, uma das participantes disse, em mim, a partir da reprodução de obras artísticas produzidas por
tom de confissão, nunca ter recebido um cartão postal. No homens e mulheres negras, que integraram as publicações
desenho do projeto, registrei a importância de possibilitar a ex- da ação “FIAR com... propostas de Educação Antirracista”26
periência de recebimento de um postal a todas as participan- . Impressos exclusivamente para a pesquisa, entre os artistas
tes. Com o desafio de realizar encontros-ateliês à distância, estampados nos postais estão: Rosana Paulino, Ingrid Silva,
pensamos ainda, eu e minha orientadora, em outras estraté- Priscila Rezende, No Martins, Robinho Santana, Mestre Didi,
gias para inspirar as colaboradoras na narração por rumos de Sonia Gomes, Carolina de Jesus, Dona Ivone Lara, Maria Au-
sensibilidade. Deste modo, projetamos a elaboração de uma xiliadora, Wilson Tibério, Heitor dos Prazeres e Abdias Nasci-
caixa-convite à criação, como um convite à experimentação de
diferentes materialidades e utilização de diferentes linguagens 26 Veja mais na página do FIAR no Facebook https://www.
facebook.com/fiar.pesquisa

157
mento, do Brasil; e Maya Angelou e Basquiat, artistas nascidos PRIMEIRO MOVIMENTO – A POÉTICA DE ARTISTAS
nos Estados Unidos.
NEGROS E NEGRAS COMO PONTO DE PARTIDA
Com cuidado aos detalhes, as caixas foram montadas, em-
baladas e entregues pessoalmente na residência de cada uma
das seis professoras27, Cristina Santos, Maria Letícia Felinto, Caro-
line Nascimento, Eliete Marcelino, Camila Cordeiro e Carla Rodri-
gues. Movimentos da pesquisa foram inaugurados por caminhos
terrestres, entre as cidades de Niterói, São Gonçalo, Maricá e Rio
Bonito. O cruzamento de vias conhecidas e desconhecidas no in-
terior do Estado do Rio de Janeiro, conectou um grupo de seis
professoras negras, colaboradoras desta investigação.
Preciso registrar minha emoção em encontrar professoras
dispostas à pesquisa por meio remoto, que prontamente coloca-
ram-se disponíveis, mesmo com a dinâmica exaustiva de traba-
lho e comunicação em telas neste cenário pandêmico. E, ainda, O primeiro encontro-ateliê-narrativo aconteceu a partir
a esperança trazida pela viagem e encontro até suas casas, que do convite à abertura da caixa-ateliê portátil, e uma xícara de
contrastam com os momentos de solidão vividos nos meses de chá de maçã (o convite foi enviado por e-mail). No primeiro
isolamento social. Mesmo com a máscara, olhando nos olhos momento, após a saudação, apresentei o contexto da pesqui-
das professoras, deu-se a partida para a jornada dos ateliês, sa, esclarecendo um pouco mais sobre a dimensão estética na
cujos movimentos narro a seguir, em breve contextualização. formação de professores e professoras da educação infantil a
favor da diversidade étnico-racial. Tratamos de alguns pontos
27 Lembrando de Lélia Gonzaléz, "negro tem que ter nome e principais do Termo de consentimento livre e esclarecido (TCL),
sobrenome", apresento quem são as professoras-narradoras-interlo- que foi assinado. Para finalizar este momento, apresentei duas
curas com seus nomes próprios. Nesse ponto, também considerei a
centralidade do sujeito da narrativa afirmar-se, igualmente em sua narrativas de professoras que participaram da primeira etapa
nomeação, como indicam princípios das abordagens (auto)biográ- da pesquisa, respondendo ao formulário sobre Cultura Afro-
ficas. Importante esclarecer que as professoras concordaram que
assim o fizesse. -brasileira Nas Rotas De Formação.

158
“ Como professora antirracista que venho me tornando sinto a urgência
de tratar deste tema diariamente com meus alunos e o material a qual
temos acesso não dá conta de toda complexidade e riqueza cultural.
Nos falta ainda formação inicial. Obviamente que cada professor é
capaz de aprender e buscar informações corretas e formação, mas
é preciso que a nossa formação desde a Educação Infantil trate
corretamente de assuntos ligados à nossa formação como povo.


Com essa pesquisa, percebi que posso me
empenhar e tentar introduzir mais elementos
da cultura afro-brasileira na minha rotina.

O contexto do estudo fora apresentado a partir de seus objetivos e metodologia, tinha por intenção evidenciar a importância
da participação das professoras. Era preciso narrar! Deste modo, suas percepções e histórias de vida importavam, seriam o núcleo dos
encontros-ateliês narrativos. Assim, era preciso mobilizar a palavra e convidar o corpo. Ao encontrar as respostas do questionário apre-
sentadas na tela, uma das participantes sentindo-se encorajada, logo identificou seu comentário e ampliou suas considerações.

159
Um destaque da fala que Greice fez, a respeito da fase um da
pesquisa, fui eu que coloquei. É realmente, assim, o trabalho nos
consome tanto, a vida, o cotidiano, a pandemia, que faz com
que a gente, às vezes, se coloque num lugar que nem sempre é
o lugar que a gente tem lutado, sempre lutou pra estar e para
que todos nós possamos chegar. Mas, tudo isso tem a ver com a
caixa, porque os detalhes, desde a cola, que ela colocou o tecido
pra não aparecer a marca, enfim, ficou decorado.
Pequenas coisas assim, são detalhes marcantes mesmo.
Camila mostrou-se contente por ter um momento
para si. No encontro, continuou dizendo como os ele-
Uma outra coisa que marcou foram os postais. Eu, mentos da caixa e os postais a deixaram ansiosa para
especialmente, gostei bastante disso (cartão-postal
participar do encontro, tanto que ela foi a primeira
“Ibjeis”, de Robinho Santana), por conta da dimen-
a entrar na sala virtual. Outras participantes também
são da religião. Que me parece uma releitura de
Cosme e Damião. Os meninos com doce na mão. O comentaram a respeito da caixa e do convite à expe-
que mais me chamou a atenção, foi esse postal. rimentação que se anunciava, sem regras explícitas
inicialmente, apenas com a presença dos materiais e
da pesquisadora.
Eu fiquei apaixonada pelos postais. Apesar de não ser
nova, meu pai tinha coleção de cartão telefônico, me
lembrou isso. Então, as pessoas colecionavam postais,
ele tinha cartão telefônico, que também tinham várias
imagens e obras de arte bem interessantes. Aí me reme-
teu ao meu pai, que também não tá mais nesse plano.
Enfim, me remeteu a muitas coisas. Então foi uma expe-
riência nostálgica.
Camila Cordeiro

160
Foi preciso explicar que a caixa
Eu fiquei muito feliz em receber o convite para parti-
cipar da pesquisa. (...) Adorei a caixa, adorei tudo, e todos os materiais eram das par-
mas especificamente os tecidos. Principalmente os ticipantes. Tudo o que elas fizessem
dois tecidos africanos, que eu adoro, amo. Lembrou seria delas e apenas o registro em
da luta do povo negro no Brasil, na África.
fotografia seria entregue para mim.
Carla Rodrigues Na segunda parte do encontro,
fiz um pedido para que olhassem de
novo para os quinze postais, e bus-
Eu gostei muito...o capricho, o cuidado. Eu só fiquei um
cassem naquelas cores, imagens,
pouco assustada, porque eu não tenho tanta habilidade com
agulha, linha. Minha mãe me ensinou muitas coisas, mas essa
palavras e formas, um autorretrato.
habilidade eu ainda não peguei direito. Quando a Greice Aproveitei o momento de reflexão e
chegou no meu portão aqui em Rio Bonito, eu falei: “Meu Deus contei a história de um postal que,
do Céu, foi ela que veio.”. Eu estava pensando que ia vir o para mim, seria como meu retrato.
Correio. Daqui a pouco é ela aqui. Eu falei:“Meu Deus.”
Narrei sobre a criatividade e simplici-
Caroline do Nascimento dade da minha avó em conexão com
a técnica de uma das artistas. Paira-
[...] quando eu cheguei lá no portão e vi você, eu fiquei va um clima de emoção e intimidade,
extremamente emocionada. Não sei se você percebeu. Mas
após o meu relato. Apesar de estar-
eu fiquei muito emocionada. Sabe? Foi uma emoção grande te
conhecer pessoalmente. Eu falei assim: “Gente, é um trabalho mos reunidas em um primeiro encon-
tão bonito, é um trabalho tão potente, tão forte, tão profundo e tro, as participantes demonstraram
que a própria presença, a sua presença, a sua disponibilidade e desejo em partilhar publicamente
disposição de organizar com tanto carinho.”. Porque a gente vê o
carinho aqui. A gente vê o carinho que você teve de organizar isso
seus retratos e histórias. Algumas es-
tudo. Para poder nos convidar, para nos envolver na sua pesquisa. colheram apenas um cartão postal,
E eu acho que isso faz a gente se sentir acolhido. Me senti amada. outras ficaram indecisas e escolhe-
((Risos)). Tô até emocionada aqui de novo. Me senti amada. Eu
ram três. Alguns postais se repetiram.
falei: “Ai, meu Deus. Será que a Greice vai querer que eu devolva
essa caixa? Porque eu não quero devolver não. Todos foram notados.
Eliete Marcelino

161
Os cartões postais produzidos e enviados às participantes, SEGUNDO – PRIMEIRO ENCONTRO:
MOVIMENTO
foram utilizados como um dispositivo para fiar memórias, um
A POÉTICA MUSICAL DE LIA DE ITAMARACÁ
convite à imaginação e narrativa de si. Como já citado ante-
riormente, cartões postais com obras de arte foram utilizados
em pesquisas (OSTETTO et al, 2020; OSTETTO e FOLQUE,
2021), em uma dinâmica chamada pelas pesquisadoras de
“Como se fora meu retrato: a imagem da arte fala de mim”.
Esta vivência corrobora com o que as pesquisadoras indicam
no que diz respeito à aproximação do grupo de professoras,
neste caso das participantes da pesquisa-formação que desen-
volvi. Além da oportunidade de apresentação pessoal, possibi-
litou a ativação das primeiras narrativas de si.
A poética de artistas negros e negras foi como ponto de
partida para este primeiro movimento de pesquisa. A dinâmica
do encontro foi combinada previamente, em vários momen-
tos quis deixar claro que as participantes estivessem à vonta-
de para falar, pois tratava-se de uma conversa e não de uma
entrevista. Como introdução ao diálogo e oferecimento de um
panorama, ao final apresentei de forma geral as três artistas Como Segundo movimento, foram realizados três en-
escolhidas para a interlocução na pesquisa, chamando aten- contros com três artistas negras. A pergunta inicial partia do
ção para a necessária articulação entre Educação e Arte nas conhecimento prévio a respeito das figuras públicas, conside-
questões raciais, que se desdobram nos caminhos da pesquisa rando o reconhecimento nacional e até internacional que as
e da pesquisadora. três artistas possuem pela produção de seus trabalhos. Contu-
do, as conversas tecidas no início dos encontros revelaram que
nem todas as artistas e suas produções eram conhecidas pelas
participantes. É bom frisar que a pergunta inicial não se tratava

162
Camila: Pensei mesmo
de uma mera verificação sobre o que as participantes sabiam
nos tecidos.
ou não, mas sim de uma procura por conexões. Buscava-se
Eliete: Estampados.
por gatilhos, lembranças ou sentidos que aquelas mulheres, Coisas lindas.
com suas obras e trajetórias singulares, poderiam despertar.
No primeiro encontro desse segundo movimento, a po-
Camila: As saias pra
ética musical de Lia de Itamaracá esteve no centro. Reunidas
dançar ciranda, rodar.
na sala virtual, fiz a pergunta inicial às participantes: O que
Cristina: As flores.
vocês conhecem a respeito da artista Lia de Itamaracá? Após
Maria Leticia: Esse aqui, oh. Gostei
algumas breves respostas, assistimos a Lia em seu clipe. Vimos
a praia e a Ilha de Itamaracá. Depois de conhecer um pouco do (tecido) que envolve a caixa.
Caroline: Eu pensei nessa flor,
sobre a mais célebre cirandeira do Brasil, patrimônio vivo de pensando na flor do cabelo.
Pernambuco, as participantes lembraram-se de encontros com
Lia ou com sua ciranda. O vídeo provocou nostalgia, conectou Carla: Os tecidos.

distâncias e compôs um diálogo sensível.

Camila lembrou-se também de já ter dançado em uma


Eliete: Não acredito que
roda na UFF, aproveitei e perguntei quais histórias elas tinham
ela é de Pernambuco. Tô
indo pra lá. para contar com cirandas e danças.
Maria Leticia: Pernambuco
é terra da minha mãe.

A minha lembrança de contato com a ciranda, Ciranda eu adoro. Gosto


essa manifestação cultural, foi a partir da idade muito. Na escola usava bas-
Enquanto as colaboradoras narravam, eu buscava opor-
adulta. Eu comecei a ter mais contato com a tante com as minhas crianças.
tunidade para introduzir outras perguntas. Cristina lembrou-se Agora não posso, ainda estou
cultura popular, depois que eu entrei pra capo-
de assistir Lia de Itamaracá em um show na Lapa, e pegando eira. Eu comecei a fazer capoeira e comecei a no remoto. E, minhas melhores
este fio, perguntei o que poderíamos tirar da caixa-ateliê portá- circular por vários espaços de cultura popular. lembranças com ciranda são
til para esse encontro com a poética de uma artista cirandeira. A capoeira foi a porta de entrada pra isso. da época de infância.

Cristina Santos Carla Rodrigues

163
Caroline contou sua história com os instrumentos musicais e sua fa- Caroline havia dito que ela não dançava
mília de musicistas. Quem tinha vivência com instrumentos musicais? ciranda na infância porque não tinha companhia.

Eu estava aqui me lembrando, porque eu não brinquei tanto de


Minha relação com a música, é mais ciranda, porque eu sou filha única e eu fui criada afastada dos
pro canto e o instrumento. Eu tocava meus primos. Eu não tive uma infância com meus primos que têm
piano, parei, agora eu tô voltando. a mesma idade que eu. Eles moram em outro município. Então, a
Voltei a estudar música com a minha relação que eu tive foi com meus primos mais velhos. Que vive-
filha, a gente é membro de uma Igreja Eu me realizo na escola com as crianças. ram uma outra época. Então, eu não vivi essa época da ciranda
Batista aqui em Rio Bonito. Eu canto Porque eu tiro um dia da semana para fa-
Caroline do Nascimento
na igreja desde sempre. zer a roda musical. A gente toca, apresen-
Caroline do Nascimento ta agogô, pandeiro, um tambor também
lá da escola. Eu gosto muito de tambor.
Adoro. Eu não sei se é tambor, né? Aquele
Pensando juntas sobre isso, retomei a letra da música28 de
compridinho. É tambor que fala? Eu troco domínio público: “Pra se dançar ciranda, juntamos mão com
os nomes dos instrumentos todos, mas eu mão/ Fazemos uma roda e cantamos uma canção.” Finaliza-
gosto de mexer. mos refletindo sobre a importância do coletivo. De ter mais gen-
Maria Letícia Felinto
te inclusive, para poder dançar ciranda. Que, se estivéssemos
presencialmente juntas, já estaríamos dançando, com certeza.
Alguns sentidos vividos no encontro com Lia de Itamara-
Ao final da conversa, percebemos que falamos muito cá, pela palavra das participantes, são apresentados abaixo
da memória, do passado. Maria Letícia, inclusive, escreveu a partir de uma síntese-visual. O conjunto ajuda a pensar a
no chat: “Estou me sentindo tão bem com esse bate-papo, validade de poéticas negras na incorporação de referências
minhas memórias estão vindo à mente.” Muitas coisas do estéticas e ampliação de repertórios artístico-culturais de pro-
passado foram trazidas, o que ajuda a pensar o presente e fessoras da educação infantil.
o futuro, constatamos. Para concluir, perguntei o que ficava 28 A música se chama “Minha Ciranda", e está disponível na
mais forte para elas da poética da Lia. playlist disponibilizada através do QR Code na caixa, esta foi cita-
da durante a conversa como fonte de consulta para as cirandas.

164
Figura 30 - Síntese-visual
Lia de Itamaracá. Colagem
digital composta por
imagens e narrativas sobre
a artista. Brito Silva, Greice
(2021).

165
SEGUNDO MOVIMENTO – SEGUNDO ENCONTRO:
A POÉTICA VISUAL DE ROSANA PAULINO
São tecidos costurados. Como se fossem
fotos costuradas em tecido.
Camila Cordeiro

Parecem pequenas almofadinhas com aquele pon-


to de bordado. Com muita delicadeza. Eu sinto
muita delicadeza nesse trabalho. Me vem à men-
te, o costume de pessoas de roça. De Pernambu-
co, Ceará, que tem o costume de colocar fotos dos
seus parentes na parede, com aquelas molduras
que parecem madeira.
Eliete Marcelino

Eliete continuou contando sobre uma pesquisa pessoal que está


O terceiro encontro-ateliê narrativo, que foi o segundo encontro fazendo a partir das memórias de sua família. Já Camila contou
do Segundo movimento, aconteceu tendo as artes visuais de Rosana um pouco sobre perceber que não tinha tantos registros de família.
Paulino na trama. Na abertura desse encontro, apresentei uma ima- Como a obra ''Parede da Memória'' faz parte de uma investigação
gem conhecida dos cartões postais. Continuei com a observação da também da própria identidade da artista Rosana Paulino, contei so-
imagem produzida pela artista. Indaguei sobre o olhar: O que viam bre sua inspiração artística, que vem das memórias de infância, de
ao observar o postal? outros fazeres manuais, com a argila e o bordado.

166
No desenrolar do encontro, continuei buscando oportunidade para introduzir novas perguntas: o que pode-
ria ser trazido da caixa para um encontro com a poética visual da artista?

Caroline: Ah, o momento que eu


mais temia: costurar. ((Risos)).
Carla: É verdade.

Camila: Eu ia falar: “Esse


era o momento que Caroline
mais queria.”. Eliete: Agulha,
linha, tecidos.

Maria Leticia: Linha.


Camila: A própria
cola também, né?

Eliete: Essa espuminha,


Maria Leticia: que eu não sei o nome.
Parece acrilon

Conversamos um pouco sobre a biografia de Rosana Paulino e citei exposições importantes em que suas
obras circularam entre museus nacionais e internacionais. Aproveitei a conexão e perguntei quais lembranças
tinham sobre a visita mais importante ou a última visita que haviam feito a museus ou instituições culturais.
A conversa foi longa, passando por diferentes tempos, lugares e momentos da história de vida das participantes.

167
Minha avó chama-se Sebastiana Muniz
A visita mais marcante foi em de Oliveira. Ela é parteira, é ela que tá
2016, quando eu fui com meu na minha foto de perfil. A lembrança
Minha avó materna e a minha
esposo e o filho dele ao Museu que eu tenho dela é de uma mulher mui-
mãe, que eu tenho como refe-
Afro Brasil. to forte, muito feliz, muito brincalhona,
rência de ancestralidade para
contadora de história.
Caroline do Nascimento seguir como exemplo.
Na verdade, minhas primeiras oportu- Eliete Marcelino
nidades de visitar museu, espaços de Maria Letícia Felinto
produções culturais e artísticas, foi ao
entrar na universidade.
Falar de ancestralidade pra mim, de uma pessoa
Camila Cordeiro só, é muito difícil. Porque, o fato de eu estar aqui
hoje, é fruto de um monte de mulher, que me
Em 2018 foi o aniversário de 130 anos levantou em algum momento da minha vida.
da abolição da escravatura no Brasil. Contei que a artista visual Caroline do Nascimento
Na Fundação Getúlio Vargas houve um Rosana Paulino tem seu traba-
seminário para historiadores, sobre o
lho muito ligado às questões de
tema. Uma das atividades que nós fize- Enquanto uma participante narrava sobre suas ancestrais, convi-
mos, foi visitar o Instituto dos Pretos No- raça e também sociais, étnicas e dei as demais a confeccionar um patuá, inspirados na obra da Rosana
vos, na Gamboa. Foi uma experiência de gênero. Na sequência, pude Paulino. Um patuá é um amuleto de proteção, tem relação com as
muito impactante. apresentar uma vídeo-instala- religiões de matriz africana, como o candomblé. Em geral, um pa-
Carla Rodrigues ção chamada “Das Avós”, que foi tuá tem relação com seu orixá, para que seja protegido e abençoado
apresentada na 21ª Bienal de Arte por ele. No contexto do encontro-ateliê narrativo, pudemos escolher
Contemporânea do SESC, no ano de uma cor, forma, a partir dos elementos da caixa-convite, materiais que
2019. Essa produção visual, nos provo- tivessem sentido e significado da ligação com a ancestralidade. Tam-
ca a pensar: quem seriam as nossas an- bém foi proposta a escrita de um bilhete, para dobrar bem pequenini-
cestrais em um pais marcado pela escravidão? nho e guardar dentro do patuá. Todas as participantes narraram suas
Após a exibição do vídeo, instiguei-as a histórias, produziram seus amuletos, que guardavam seus bilhetes.
puxarem na memória e a contarem qual ancestral marca Ao final, refletimos sobre o que ficou em nós da poética da Ro-
sana Paulino. Das significações experimentadas no encontro com a
sua história de vida: Quem estaria, nessa costura, ligado ao
artista, apresento a seguir outra síntese-visual, constituída pela vez e
próprio corpo e a sua história?
voz das participantes.

168
Figura 31 - Síntese-
visual Rosana Paulino.
Colagem digital
composta por imagens
e narrativas sobre a
artista. Brito Silva,
Greice (2021).

169
SEGUNDO MOVIMENTO – TERCEIRO ENCONTRO: Na sequência do encontro, comentei que ser, viver e escrever so-
bre essas vivências, vai dar o sentido de escrevivência, evidenciando
A POÉTICA-ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO
assim essa poética e essa inspiração resistente, produzida por Con-
ceição Evaristo. Em um encontro permeado de palavras e registro
escrito, perguntei novamente o que poderíamos tirar da caixa.

Eliete: Com certeza nosso


caderninho, nossa caneta.
Nossos papeizinhos coloridos.

Maria Leticia: Eu encontrei um papel


preto, diferente. (...) É um Papel
mágico. Para escrever nele é só usar
um palito. Papéis coloridos são ótimos.

Eliete: Lápis de cor.

As escrevivências de Conceição Evaristo marcaram o quarto


encontro-ateliê-narrativo, ou o terceiro encontro do Segundo movi-
mento, ajudando a despertar a vida que pulsa em nós. Na abertura,
fiz a leitura de um dos poemas do livro da escritora: “Poemas da
Recordação”.

170
Utilizando a transcrição das nossas primeiras conversas, apresentei para as participantes alguns trechos sobre escrevivências.
Eram trechos de narrativas delas, selecionados e transcritos dos encontros anteriores. Exibi na tela um trecho de cada uma. Será
que ficariam à vontade para comentar ou gostariam de complementar?

Camila: Não, não quero não. Tô


satisfeita com o registro.
Eliete: É, o que eu falei
tá falado, é isso aí.
((Risos)).

Cristina: Lembro direitinho


dessa fala. É engraçado que Caroline: É engraçado que falar
hoje ela sai muito mais leve. é uma coisa, mas quando você
vê escrito o que você falou,
Maria Leticia: Engraçado que realmente tem outro impacto. É
quando começaram os encontros, outra coisa, dá aquele engasgo.
a forma como você fez, foi trazen-
do essas memórias que estavam
adormecidas, na verdade.

Na sequência, indaguei se haviam registrado algo no bloco, também parte da caixa-ateliê portátil: teriam algo que não con-
taram oralmente, que gostariam de destacar? Elas comentaram um pouco e mostraram suas anotações pela tela. No encaminha-
mento final, compartilhamos os poemas e poesias que cada uma trouxe de seus repertórios. Solicitei que apresentassem também o
cartão produzido com os materiais retirados da caixa, preparado durante a conversa, no desenrolar deste encontro.

171
“O QUE FICA EM VOCÊS DO ENCONTRO
COM CADA ARTISTA?”
essa uma pergunta-encerramento foi feita ao final dos três encontros
com poéticas negras. Esses sentidos anunciados e as narrativas
das participantes trouxeram possibilidades de reconstrução das
experiências, como acompanhamos nesta última síntese-visual,
construída a partir do encontro com Conceição Evaristo.

172
Figura 32 - Síntese-
visual Conceição
Evaristo. Colagem
digital composta por
imagens e narrativas
sobre a artista. Brito
Silva, Greice (2021).

173
TERCEIRO MOVIMENTO: ENCONTRO COM IMAGENS E Na abertura deste encontro-extra, voltamos à apreciação dos
cartões-postais que estavam na caixa-ateliê portátil. Fiz uma leitura
ESCREVIVÊNCIAS EM POSTAIS-RETRATOS DO PROCESSO
dinâmica dos títulos, artistas, técnicas e informações sobre as pro-
duções. Pudemos olhar de novo, com calma. A partir desse movi-
mento mais tranquilo, convidei-as a escolherem outro cartão após
a experiência passada: com qual daqueles cartões identificavam-se
atualmente? Meses depois de terem feito escolhas, das relações e re-
flexões produzidas naquele coletivo, interessava-me saber como elas
se viam. Após uma longa conversa que envolveu perspectivas fami-
liares, religiosas e profissionais na escolha de novos cartões-postais,
lhes fiz outra proposição: em diálogo com artistas e elementos ar-
tísticos, produzir uma série de três postais, de modo a representar
passado, presente e futuro, em processos que marcam a constitui-
ção de suas subjetividades. Nesta ação, houve também um desafio:
Como fazer à mão seus próprios cartões? Quais palavras, imagens,
técnicas, recursos da caixa-ateliê portátil, poderiam materializar uma
representação sobre si? Para a tarefa, foi importante utilizar os ma-
teriais disponíveis no repertório e espaço pessoal - marcadores, reta-
Na dinâmica partilhada, houve a necessidade de irmos além
lhos, fotografias, objetos de pertencimento -, o uso da criatividade e
dos quatro encontros-ateliê que integraram os dois movimentos pla-
imaginação entrou em jogo para dizer do processo. Mesmo tratan-
nejados e realizados. Um último encontro, quase como um movi-
do-se de uma ação com professoras de crianças pequenas, houve
mento-síntese das direções percorridas da Rosa dos Ventos imagi-
receio e insegurança para os trabalhos manuais e artísticos.
nada. Projetamos, então, um Terceiro movimento: Imagens e
A fim de encorajá-las e apoiar sua criação, utilizei como estraté-
escrevivências em postais-retratos do processo, para pensar
gia a projeção de si a partir de um rascunho, por meio da ativação
e partilhar as sutilezas do vivido que poderiam reverberar na criação
da imaginação em conexão com as poéticas negras. O que a poética
de outros postais.
de Rosana Paulino fez retornar da memória do passado? Como a

174
poética musical e brincante de Lia de Itamaracá torna viva a rela-
ção com as crianças que estão no presente de suas profissões? De
que modo, a poética-escrevivência de Conceição Evaristo, toca nas
histórias vividas que ajudam a projetar seus futuros? A partir dessas
conexões, as participantes narraram como seria a produção dos três
cartões, que seriam confeccionados ao longo da semana, no tempo
disponível a cada uma, no momento oportuno de cada uma. As poé-
ticas em relação, projetadas nas produções visuais das participantes,
serão apresentadas no próximo capítulo, compondo mapas de expe-
riências estéticas, revelando rotas de formação sensível.

175
176
vI
LEITURAS E INTERPRETAÇÕES
A PARTIR DE FORMAS VISUAIS
177
Para dar visibilidade às rotas de formação esté- 2018). Por isso, neste estudo, o diálogo com o campo
tica – caminhos, processos, experiências, encontros e da Arte, anunciado desde o início, inclusive fazendo par-
desencontros considerados formativos da sensibilida- te da proposta dos encontros-ateliês narrativos, continua
de, da ativação dos sentidos, da ampliação ou refi- no tratamento dos dados biográficos, tendo por intenção
namento de sentidos –, identificadas na partilha de valorizar a dimensão artística na pesquisa em Educação,
narrativas das professoras colaboradoras, coloco-me possibilitando novas interpretações e perguntas a partir de
a delicada tarefa de traçar um mapa. Mapear implica uma forma visual.
um ato de cuidado para com os materiais biográfi- Como uma espécie de curadoria educativa fiz o exer-
cos produzidos no contexto da pesquisa, pois não são cício de revelar a potência artística do material reunido
apenas palavras e imagens, depoimentos e testemu- na pesquisa, a fim de promover um alcance ampliado,
nhos, mas são a vida vivida, são as próprias professo- provocador de um processo de conscientização e identifi-
ras reveladas-presentificadas nas narrativas. cação cultural entre as produções narrativas oral, escrita
Nesta empreitada, associo-me à arte, tendo e visual das professoras. Luiz Guilherme Vergara (1996)
em vista suas qualidades simbólicas de provocar/ afirma que o objetivo de uma curadoria é o de “explorar
construir/revelar um campo de conhecimentos de a potência da arte como veículo de ação cultural” (VER-
natureza distinta dos saberes científicos tradicionais, GARA, 1996, p. 4). O autor traz-nos a seguinte reflexão:
conforme diz Egas (2018). O contato com a arte A Ação Cultural da Arte implica em dina-
traz inúmeras possibilidades e compreensões outras mização da relação arte/indivíduo/ socie-
dade - isto é, formação de consciência e
sobre nós mesmos e o mundo, com ela podemos olhar. [...] ao se propor a exibição de arte
apostar na liberdade e na multiplicidade de fazer e como ação cultural - se tem como objeti-
vo criar uma perspectiva de alcance para
fazer-se, seja no ensino ou na pesquisa. Com a au- a arte ampliada como multiplicadora e
tora, reitero que a arte oferece elementos para tecer catalisadora dentro de um processo de
conscientização e identificação cultural
diálogos internos que ajudam a ampliar, inquietar (VERGARA, 1996, p. 4, grifos do autor).
e estabelecer novas relações, através da sensibilida-
de, da delicadeza e da disponibilidade para tocar o No contexto da pesquisa, a ação curatorial se fez no
outro e fazê-lo desaprender o já conhecido (EGAS, tratamento, seleção e organização dos dados biográficos

178
para veicular, da melhor forma, as direções anunciadas e identifica- aparecem aqui e ali, em momentos oportunos, articuladas aos senti-
das, considerando os interlocutores, que não são apenas os leitores dos que estava pretendendo tecer.
desta tese, mas principalmente as próprias participantes. Neste capítulo, o desafio foi compor uma síntese-integrativa
Em artigo produzido com companheiras do grupo de pesquisa, dos movimentos da pesquisa, apresentando o material biográfico
sobre o qual comentei anteriormente (MELLO; SILVA; NEVES, 2021), evidenciado nos encontros-ateliês narrativos, considerando elementos
traçamos pontes da curadoria, que se pretende educativa, a partir de ainda não apresentados. Trago os conteúdos significativos que
considerações apontadas por Gisa Picosque e Mirian Celeste Mar- permitem uma visão do itinerário de cada professora-colaboradora, ao
tins (2003) para o material educativo da Quarta Bienal do Mercosul que chamei de Em estado de invenção: narrativas em forma de artes,
em Porto Alegre/2003. As pesquisadoras destacam a necessidade de apresentando uma diversidade de elementos simbólicos e materiais
um olhar escavador de sentidos, um olhar de um professor que se suscitados nos encontros com três artistas negras. Um conjunto de
faz pesquisador, considerado um leitor de imagens que elege o que fazeres criativos e expressivos utilizados para dizerem sobre si.
será exibido para investigação e/ou fruição dos interlocutores. Assim, Considerando a escuta como princípio, na seção Análise
imagens que serão compartilhadas com outros, precisam passar por interpretativa de material biográfico em três tempos apresento
um processo de seleção, combinação, recorte e interpretação, se o trabalho co-interpretativo sobre os processos de formação
pretende instigar leitores para novas e futuras escavações de sentido. evidenciados entre tempos, territórios, figuras de ligação, vivências
Sob tais orientações de curadoria, os materiais gerados nesses en- culturais e objetos biográficos, anunciados nas narrativas. Uma
contros são apresentados a seguir. Neste contexto, palavras e imagens análise em três tempos permitiu entender e significar as trajetórias de
produzidas e/ou evocadas pelas participantes, que se fizeram colabo- formação e suas implicações, identificar o quê nutriu esteticamente
radoras e narradoras, portam aspectos múltiplos que podem apresen- cada uma, quando, onde, como, com quem alimentaram sua
tar-se, ou constituírem, importantes linhas de processos formativos que sensibilidade.
teceram/tecem/tecerão histórias de sujeitos-narradores, a depender
da forma veiculada. A leitura temática do material biográfico perpassa
conteúdos de experiências vividas em diferentes tempos e lugares que
formaram a sensibilidade das participantes, relacionando-as.
O leitor e a leitora atenta, devem ter percebido: as vozes, os mo-
vimentos, as narrativas das professoras ressoam ao longo da tese,

179
6.1. EM ESTADO DE INVENÇÃO: cruzamentos com caminhos de outros, seja nas paradas longas ou
por outros enfrentamentos.
HISTÓRIAS EM FORMA DE ARTES Por sua vez, as narrativas visuais foram inspiradas na proposição
de Egas e Demarchi (2019): um discurso visual apresenta o conhe-
Na tarefa de pesquisar a Educação, aprendo com meus ances- cimento selecionado que se quer destacar, por meio de informações
trais a possibilidade de devolver ao povo conhecimentos em forma estéticas que concedem outras formas de compreender a realidade,
de arte. A ideia de que culturas negras interpenetram na formação prescindindo da dimensão artística. Na criação ou produção de ima-
da sociedade brasileira, marca esse estudo, que tem em vista a for- gens, digitais ou não, na seleção, no seu refinamento e composições,
mação docente implicada em outros gestos, imagens e múltiplas lin- o pesquisador deve experimentar um estado de invenção, dizem as
guagens para educar crianças pequenas. Assim, interessa evidenciar autoras, em busca de elaborar um discurso visual com imagens que
o modo afro-brasileiro de viver, de narrar, de dançar, de cantar, de permitam pensar, sentir e viver.
criar e se expressar artisticamente. Exibir expressões artísticas de pro- Para a abertura das seções, escolhi uma palavra-força. Um agen-
fessoras, que se autodeclaram negras, faz-me sentir compartilhando te ativo que atua na vida de cada uma das professoras e reúne os
beleza, riqueza e fortuna de nossas raízes. sentidos caracterizados em suas histórias. Assim, identifiquei os mate-
As histórias e narrativas anunciadas oralmente nos encontros riais biográficos, como: Energia, de Cristina Santos; Vozes, de Maria
– que foram ouvidas, gravadas, transcritas, textualizadas, conforme Letícia Felinto; Sementes, de Caroline Nascimento; Encantos, de Eliete
já descrito quando discuti a metodologia –, receberam tratamento e Marcelino; Vôos, de Camila Cordeiro e Heranças, de Carla Rodrigues.
edição, no formato de um texto que preservou ao máximo a autoria Cada seção é composta pelo cartão postal escolhido no primeiro
das palavras; as histórias e narrativas veiculadas por meio de mate- encontro-ateliê, no contexto da proposta “A obra de arte fala de mim”,
riais produzidos e rememorados em outras linguagens, a partir das com a respectiva narrativa, transcrita literalmente. Servem como uma
dinâmicas realizadas nos encontros-ateliês, receberam tratamento apresentação pessoal, que costura elementos na vida: um retrato de
curatorial para composição de narrativas visuais. si, no campo da imaginação suscitada pelo encontro com a imagem
Preservando o tom das conversas que cultivamos nos encontros- do postal. Esta apresentação, inicialmente, segue com um texto nar-
-ateliês, com a marca da descontração e sem formalismos, trago os rativo, que oferece outros elementos da história de vida que foi sendo
conteúdos que falam de alguns acontecimentos que permitem uma contada ao longo dos encontros e que contribuem para ampliar a
visão do itinerário de cada uma das seis professoras, pelos diferentes visão do retrato traçado quando da escolha do postal-imagem de si.

180
Também se encontram poemas ou prosas poéticas, trazidas pelas professo-
ras para partilharem num dos encontros. Outras palavras também falam de si,
de poetas ou pessoas de seus repertórios, de sentidos talvez, que reverberam do
processo, no encontro com as poéticas de artistas negras. Na diversidade de ele-
mentos simbólicos e materiais, entre lembranças e produções criativas suscitadas
nos encontros com três artistas negras, outros retratos são feitos, que represen-
tam a construção da experiência, a partir de histórias pessoais, em interações
com outras subjetividades, no movimento em direção às imagens e escrevivên-
cias. Além das palavras apresenta essa visibilidade. A partir da produção autoral,
apresento a série de três cartões-postais, compartilhados através de fotografias
das participantes, que representam passado, presente e futuro. Essa série foi ela-
borada por meio da ativação da dimensão estética, em conexão com as poéticas
negras, ao final dos encontros-ateliês narrativos.
É preciso reiterar que a curadoria deste material biográfico envolveu aten-
ção às pessoas e cuidado aos detalhes, pois evidencia a dimensão artística/
estética no trabalho da pesquisadora. Destaco que as narrativas das professoras
estão no centro da pesquisa e merecem o corpo do texto, não apenas a inclusão
como anexo da tese. Narrativas não são simples dados de pesquisa, mas vida,
histórias de formação de mulheres negras professoras, que também são mães,
filhas, netas, companheiras e amigas.

181
ENERGIA
CristiNa NascimeNtO

ESSE AQUI... DA BAILARINA, DA INGRID. MARAVILHOSA, ESPLENDOROSA. EU ACHO

QUE CONTA UM POUQUINHO DA MINHA HISTÓRIA. EU SEMPRE FUI MUITO CORPORAL,

SEMPRE GOSTEI MUITO DE DANçAR. A MINHA VÓ DIZIA QUE A PANELA CAÍA NO CHÃO,

EU DANçAVA. E TEVE UM PERÍODO DA MINHA VIDA, QUE EU QUERIA SER BAILARINA.

QUANDO EU ERA MUITO CRIANçA, ERA MUITO NOVA AINDA. E EU FUI DESESTIMULADA.
PRINCIPALMENTE NAQUELA ÉPOCA, HÁ MUITOS ANOS ATRÁS, ERA AINDA MAIS RARO
VOCÊ VER BAILARINAS NEGRAS. EU QUERIA FAZER BALÉ CLÁSSICO. ERA MUITO DIFÍCIL.

ATÉ TINHA UMA FALÁCIA, QUE HOJE ALGUMAS PESSOAS AINDA SUSTENTAM, QUE
NOSSO CORPO NÃO ERA APROPRIADO PRO BALÉ POR CONTA DA ESTRUTURA ÓSSEA, A

BACIA MUITO GRANDE. ESSAS COISAS TODAS. E A INGRID, ELA PROVA O CONTRÁRIO.

ENFIM, ELA CONQUISTOU O ESPAçO DELA. É MUITO BACANA A HISTÓRIA DELA, MUITO
BONITA. EU, DEPOIS DE ADULTA, FUI INGRESSAR EM ARTES CORPORAIS, MAS NUM

OUTRO VIÉS, FUI FAZER CAPOEIRA.

[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim.


Seis de agosto de 2021]
Figura 33 - Bailarina Ingrid Silva.
http://www.ingridsilvaballet.com/home-1

182
“A coisa do corpo é muito forte pra
mim. A expressão através da movimentação
corporal, é uma coisa que me fala muito.”

Cristina Nascimento Dias dos Santos


Mulher preta, 56 anos

183
Adoro dançar! Adoro sair pra dançar. Adoro uma roda de samba.
Na minha formação, na minha vida, a sensibilidade passa pela experiência com todos os
sentidos. Mas, principalmente, pelo corporal. A coisa do corpo é muito forte pra mim. A expres-
são através da movimentação corporal, é uma coisa que me fala muito. E foi um caminho para
interagir, para estar junto com as pessoas, porque eu sou bastante tímida...
Sou capoeirista e professora de capoeira. Sou instrutora de yoga também. A capoeira é
parte importante da minha vida: sou capoeirista há mais de 20 anos! Depois que entrei na
capoeira, comecei a circular por vários espaços de cultura popular. Pensando bem, a capoeira
foi a minha porta de entrada para um contato maior com a cultura popular. Por exemplo, a
ciranda, conheci e dancei na idade adulta. Mas, essa coisa de brincar de roda, isso fez parte
da minha infância também. Eu brinquei muito na rua. Eu morava, da minha infância até minha
adolescência, numa rua muito tranquila de brincar. Então a gurizada ia toda pra rua, passava o
dia todo brincando de várias coisas. E roda, em algum momento a gente brincava. Fazia aquele
rodão enorme, porque tinha muita criança. E a gente cantava várias músicas. Mas a ciranda,
em si, essa manifestação cultural, foi depois da vida adulta mesmo, por meio da capoeira.
Falei que gosto de dançar: dança e capoeira são tudo misturado, junto. Não tem muito
como separar: a capoeira é uma manifestação que abarca muitos elementos ao mesmo tempo.
As pessoas perguntam: - É jogo ou é luta? Respondo: - É tudo. É jogo, é luta, é dança, é teatra-
lização. Na capoeira tem também música, tem instrumentos.

185
E tem uma coisa: o espaço da senzala, onde no passado aconteciam as manifestações
culturais, religiosas, aconteciam ali porque era o único espaço que tinham, realmente, pra se
expressar. O grande terreiro era o espaço destinado, onde os nossos ancestrais podiam desen-
volver a sua cultura. E ali, traziam a África viva. Ali, praquele território, onde tudo acontecia,
junto. As manifestações culturais, que davam sentido à vida, estavam todas ali, muito juntas. En -
tão, não tem muito como separar. E ainda tem também aquela coisa da mandinga na capoeira,
fingir que tá fazendo uma coisa e não tá. Isso é teatralização, é exercício físico, é tudo junto, tem
tudo a ver. Tá tudo ali coladinho. Por isso digo que comecei a conhecer diversas manifes tações
populares depois que entrei na capoeira. E uma coisa vai puxando a outra.
Ah, os instrumentos, a música... Posso dizer que toco um pouquinho de atabaque. Berimbau
também. Quer dizer, só toco naquele um, dois, três básico, da capoeira. Pandeiro é muito difícil.
Até tenho vontade de aprender a tocar samba, mas nunca fui pra uma aula de pandeiro, acho
que tocar samba é muito difícil, por causa do molejo. O toque é fácil de pegar. Mas, o molejo
com o pandeiro e o toque junto? Supercomplicado!
Sou apaixonada por literatura. Minha avó Joana era contadora de história. Ela, uma se-
nhora semianalfabeta, vinda do interior da Bahia, tinha o dom de contar histórias. Gostava de
reunir os netos em roda e contar histórias. A lembrança me faz rir: ela gostava de contar histó-
rias de terror! Assim... Não propriamente terror, mas contos de mistério, de terror lá do interior
de onde vinha. Vó Joana morou um tempo na nossa casa. Juntas, vivemos momentos de muita
aproximação. Acho que minha vó foi a pessoa que me fez apaixonar por literatura. Sim, o hábito
da leitura, o gosto pela literatura, veio da prática de ouvir e ver minha vó contando histórias.
Aprendi outra coisa com minha avó: rezar. Aquelas rezas mais tradicionais do catolicismo:
Pai Nosso, Ave Maria, Salve Rainha. Ela tinha aquela coisa do católico praticante, gostava de
ir à missa todo domingo. Quando ela começou a ficar bem velhinha, precisava de companhia.
E quem ia com ela na missa? Acertou: era eu. Não me esqueço: minha avó rezava pelas almas.
Toda segunda-feira minha avó acendia vela e rezava pras almas. Tempos depois, quando fui pra

186
umbanda, pensava nas rezas da minha avó para as lamas. A umbanda também reza muito
pras almas!
Vó Joana tinha um lencinho. E usava trança. Como lembro da trança! Lembro bem: a
trança que ela fazia com a ajuda da latinha de sebo de carneiro (naquela época não tinha os
cremes e tal que hoje temos para os cabelos). Penteando os cabelos e passando o creme, da
latinha de metal, para soltar e pentear os cabelos: imagem tão nítida na minha lembrança.
Fazendo aqueles trançados, todos os dias. E depois colocando um lenço. Seu lenço de seda
azul, que usava muito nos cabelos.
Falando de cabeços, durante muito tempo usei dreads. Usei tranças e dreads durante
oito anos. Onde eu morava, era a única assim, com cabelos trançados, com dreads. Lembro
da sensação de estranhamento das pessoas com o meu cabelo. É, nos lugares que passava,
estranhavam. Algumas pessoas, às vezes, perguntavam:
- Lava o cabelo?
- Como é pra lavar?
- Por que decidiu não pentear mais o cabelo?
Lançavam esse tipo de pergunta. Perguntas inconvenientes.
Difícil ser diferente...
Pensando aqui, agora, sou uma pessoa muito visual também. Gosto de ir a exposições
de arte, de fotografia. Quando tinha por volta de cinco anos, morei numa casa no Lins, que
tinha um canteirinho na frente. Nesse canteiro tinha uma roseira de rosa branca. Toda vez
que saia com minha mãe, a gente passava por uma casa, próxima da nossa, que tinha uma
menina. A menina sempre falava comigo. A menina era muito carinhosa, sempre fazia algum
elogio: “Cê tá bonita hoje”. Chamava minha atenção e conversava. Então, toda vez que sa -
bia que ia passar pelo portão da menina, queria levar uma rosa. Tirava uma rosa do canteiro
e entregava pra menina. Olha, que lembrança me veio da infância! Eu, caminhando com a
rosa branca na mão, pra levar pra menina, que falava comigo durante o caminho.

187
“E U OUVI RECEnTEmEnTE QUE EU SOU Uma GERaÇÃO TOmBamEnTO.
PRETa, POBRE, COnSCIEnTE. QUE CaRREGa ESTETICamEnTE a CURa PRO PRÓPRIO TORmEnTO. mEU
TORmEnTO nÃO naSCEU COmIGO, EU mE LEmBRO mE SEnTIndO BEm nO COLÉGIO. OS mEnInOS QUE
mE REVELaVam QUE amOR-PRÓPRIO ERa PRIVILÉGIO. mEU amOR PRÓPRIO FOI
COnSTRUÍdO, dEmOREI, maS aPREndI. E aOS 18 COnCLUÍdO. mEU PadRÃO nÃO É
daQUI. E QUIS LanÇaR aOS QUaTRO VEnTOS, PEndURaR Uma FaIXa amaRELa. QUandO EU VIa Uma
PRETInHa TRISTE, EU ESCREVIa OU dIZIa PRa ELa, QUE TUdO nELa É dE SE amaR.
TUdO. O mOdO COmO OS múSCULOS dOS BRaÇOS PROTUBERam, a PELE QUE COnTORna a CaRnE dO

ROSTO, ILUmInandO E ESCURECEndO OndE QUER QUE ESTEJa. TUdO.”

TUDO NELA É DE SE AMAR, DE LUCIENE NASCIMENTO.


COMPARTILHADO POR CRISTINA, NO ATELIÊ DO DIA 31 DE AGOSTO/2021

188
Figura 34 - Síntese-visual:
Cristina, além da palavra.
Composição com fotografia
enviada pela professora do
cartão produzido.
Brito Silva, Greice (2022)

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190 190
191 191
VOzes
Maria Letícia FeliNtrO

EU ESCOLHI ESSE AQUI… A CARTA.ASSIM QUE EU BATI OS OLHOS, EU LEMBREI MUITO


DA MINHA MÃE LENDO CARTAS DA MINHA VÓ. A MINHA MÃE VEIO PRA CÁ PRA NITERÓI,

PRO RIO DE JANEIRO, NA DÉCADA DE 70. MINHA FAMÍLIA TODA É DE PERNAMBUCO.

TANTO MEU PAI QUANTO A MINHA MÃE. E A FORMA DE SE COMUNICAR COM A MINHA
AVÓ, ERA COM CARTA. ENTÃO, ME VEIO LOGO NA MENTE , A MINHA MÃE LENDO AS

CARTAS DE PERNAMBUCO QUE A MINHA AVÓ MANDAVA NOTÍCIAS . C OMO SE FOSSE

UMA LEMBRANçA MESMO. [...] MEU RETRATO SERIAM PALAVRAS, DESDE A INFÂNCIA.

TANTO NO CHÃO DA ESCOLA, QUANDO EU ENTREI NO JARDIM, EU COMECEI A


ESCREVER MEU NOME NO CHÃO MESMO DA ESCOLA COM GIZ. E AÍ, SEMPRE ME VEM

NA MENTE AS CARTAS, A MINHA MÃE ESCREVENDO E MINHA MÃE RECEBENDO CARTAS E

LENDO PRA GENTE OUVIR. A TÉ A LETRINHA É PARECIDA COM A DA MINHA VÓ.

[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim.


Seis de agosto de 2021]
Figura 35 - Cristina: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-postais
produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Cristina Nascimento (2021). Figura 36 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977).
“Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros
(1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo
Instituto Moreira Salles.

192 192
“Minha memória é muito visual… às vezes eu
posso ver algo que vai me remeter àquilo.”

Maria Letícia Felintro


Mulher Negra, 46 anos

193 193
Eu me realizo na escola com as crianças! Estou sempre disposta a oferecer
boas oportunidades para elas. Cada assunto discutido nos encontros, foi me lembrando mo-
mentos que vivi com crianças e enquanto criança, no meu tempo da infância.
Os tecidos, que logo vi na caixa, lembraram a escola e os detalhes desse cotidiano. São
materiais que compro para colocar no parquinho da UMEI, para fazer o tapete da ciranda da
turma. Preocupo-me em oferecer uma variedade de coisas para os momentos de colagens,
inclusive. Gosto muito de trabalhar com sucatas também. E, seja na brincadeira com sucata ou
na colagem com as crianças, tem sempre um pedacinho de tecido envolvido.
Uma vez ou duas por semana, faço uma roda musical com as crianças para tocar tambor
e os instrumentos que tem por lá. É um barato! Apresento agogô, pandeiro, tambor e todos to-
cam. Gosto muito de tambor. Apesar de não saber direito os nomes dos instrumentos musicais,
gosto de mexer. Levo pra essa roda de música aquilo que tem na escola. E lá tem agogô, tem
triângulo, tem pandeiro, tambor. Inclusive, já tive alunos, que quando pegavam o instrumento,
tocavam direitinho.
Sobre uma saudade… Lembrei do jardim do meu jardim de infância. Quando eu era crian -
ça, fiquei por um ano estudando em um jardim de infância em Icaraí. Também frequentei outro
colégio ao lado. Lembro que entre esses dois colégios, logo na entrada do portão principal,
havia uma igrejinha católica e um jardim todo verde com rosas vermelhas e uma gruta. Nessa
gruta havia a imagem da Virgem Maria. Tinha costume de fazer esse caminho por dentro, pas-

195
sar por esse jardim de rosas e sair no portão do outro colégio. Ou então visitar a gruta durante
o recreio. Haviam muitos pés de rosas bem vermelhas e a grama era bem verdinha. Mas, a
lembrança mais forte que guardo, era do jardineiro. Um senhor bem velhinho, que gostava que
as crianças fossem lá para mostrar as rosas. Não pode arrancar as rosas! Ele dizia. Lembro que
havia uma senhora também que cuidava da entrada dessa escola. O nome dela era Rosa. E ela
tinha um cabelo curtinho, cacheado, que sempre enfeitava com uma flor. Não era rosa, mas
era uma flor bem vermelha. Eu tenho esses detalhes guardados na memória e me emociono ao
lembrar das flores. Desde que eu me entendo por gente, me vejo com flores. Seja no meu quintal,
seja na minha escola, infância, e agora como professora.
Deu até saudade do tempo em que eu brincava sem preocupação com o tempo! Tenho
recordações de danças e cirandas, no lugar onde morei. Brincava com meus amigos na mesma
rua que tinha um campo e um pé de castanhola, onde o chão era de barro. Brincava de várias
coisas: pique bandeira, pique alto. E lá também, junto com outras crianças, fazia cirandas. Dava
as mãos e cantava aquelas cantigas de roda. Nossos pés voltavam pra casa cheio de poeira.
Lembro que no pé de castanhola, ainda tinha um balanço de corda nos galhos. O dia era feito
para brincar.
À noite, o campo se transformava em um espaço para cultos evangélicos, que todos ouviam
de casa. Lembro do meu pai, que uma hora estava indo para o evangelho, outra hora estava
indo para o centro de candomblé. Ele ficava nessas idas e vindas, nunca se decidia por uma
religião. No final da vida, escolheu ficar no evangelho.
Havia um retrato do meu pai na minha antiga casa. Era daqueles que pareciam pintados
com o fundo, na grande maioria, azul. Havia outros nas casas da vizinhança também. Quando
chegava na casa dos amigos, era costume encontrar uma imagem do avô, da avó ou de uma tia
numa moldura. Imagens que, na verdade, eram aquelas fotografias de lambe-lambe aumenta-
da. Não sei bem se eram desenhadas, ou se eram apenas fotografias. Só lembro do estilo: preto
e branco o rosto e uma cor forte em volta.

196
Lembrei com muito afeto da minha avó, que ainda vive em Pernambuco e fez 96 anos, no
ano passado. Eu conheço pouco dela, pessoalmente. Nasci e me criei em Niterói. Devido às
condições de vida dos meus pais, fomos poucas vezes para Pernambuco. Eu conheço mais da
minha avó pelas histórias que a minha mãe conta. Foi assim que ela se tornou uma referência
de mulher forte pra mim. Ela ficou viúva nova. Com seis filhos, teve que ir pra roça trabalhar
para sustentá-los. Vendia o que plantava na feira, conta minha mãe, que tem o mesmo jeito.
Separou-se do meu pai e também foi o esteio da casa. Começou a trabalhar quando eu e
minhas duas irmãs já éramos maiores. Ela sempre nos conta as histórias da minha vó, de sua
força para trabalhar e sustentar os filhos, sem depender de homem. Antigamente, naquela
década de 60, 70, a mulher ficava em casa e o homem trabalhava. Mas, não minha vó! Ela
sempre trabalhou e continuou trabalhando para manter os filhos. Assim como fez minha mãe.
Por isso, minha referência vem dessas duas mulheres. Minha avó materna e a minha mãe,
são referências de ancestralidade que eu tenho para seguir como exemplo.
Sobre os encontros: achei curiosa a forma como foram feitos! Aos poucos, foram tra-
zendo essas memórias que estavam adormecidas. Parece que eu vinha guardando o que vivi
e tenho vivido ao longo da vida - coisas pontuais, acontecimentos diários do cotidiano - e
que vão fazendo memórias. Se pedirem: “Faça um memorial sobre a sua vida", é certo que
muita coisa não virá à tona. Mas, com uma música ou uma palavra. Ou algo que eu vi - como
quando visualizei aquela carta naquele postal e na mesma hora me fez lembrar das cartas
que minha mãe recebia e escrevia. Foi a partir da letra parecidíssima com a de minha avó,
que veio tudo.

197
“nOSSa VOZ ERGUEU-SE COnSCIEnTE E BÁRBaRa. SOB O BRanCO EGOÍSmO dOS HOmEnS. SOBRE a IndIFEREnÇa
aSSaSSIna dE TOdOS. nOSSa VOZ mOLHada daS CaCImBaS dO SERTÃO, nOSSa VOZ aRdEnTE COmO O SOL daS maLanGaS,

nOSSa VOZ aTaBaQUE CHamandO, nOSSa VOZ LanÇa dE (maGUIGUana). nOSSa VOZ, IRmÃO. nOSSa VOZ ULTRaPaSSOU
a aTmOSFERa COnFORmISTa da CIdadE E REVOLUCIOnOU- a, aRRaSTOU- a, COmO Um CICLOnE dE COnHECImEnTO. E aCORdOU

REmORSOS dE OLHOS amaRELOS dE HIEna. E FEZ ESCORRER SUORES FRIOS dE COndEnadOS. E aSSIm dEU LUZES dE
ESPERanÇa, Em aLmaS SOmBRIaS dE dESESPERadOS. nOSSa VOZ, IRmÃO, nOSSa VOZ aTaBaQUE CHamandO. nOSSa VOZ LUa

CHEIa Em nOITE ESCURa dE dESESPERanÇa . nOSSa VOZ FaROL Em maR dE TEmPESTadE. nOSSa VOZ LImandO GRadES, GRadES

SECULaRES. nOSSa VOZ IRmÃO, nOSSa VOZ mILHaRES. nOSSa VOZ mILHÕES dE VOZES CLamandO. nOSSa
VOZ GEmEndO, SaCUdIndO SaCaS ImUndaS. nOSSa VOZ GORda dE mISÉRIa. nOSSa VOZ aRRaSTandO GRILHETaS. nOSSa
VOZ nOSTÁLGICa dE ImPES. nOSSa VOZ ÁFRICa. nOSSa VOZ CanSada da maSTURBaÇÃO dOS BaTUQUES dE GUERRa.
nOSSa VOZ nEGRa GRITandO, GRITandO, GRITandO. nOSSa VOZ QUE dESCOBRIU aTÉ O FUndO, LÁ OndE COaXam aS RÃS, a
amaRGURa ImEnSa, InEXPRImÍVEL, EnORmE COmO O mUndO, da SImPLES PaLaVRa ESCRaVIdÃO . nOSSa VOZ GRITandO
SEm CESSaR. nOSSa VOZ aPOnTandO CamInHOS. nOSSa VOZ (XIPaLaPa). nOSSa VOZ aTaQUE CHamandO. nOSSa VOZ,
IRmÃO. nOSSa VOZ mILHÕES dE VOZES CLamandO, CLamandO, CLamandO.”

NOSSA VOZ, DE NOÉMIA DE SOUSA.

COMPARTILHADO POR MARIA LETÍCIA, NO ATELIÊ DO DIA 31 DE AGOSTO/2021

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Figura 37 - Síntese-visual: Letícia, além da palavra. Composição de fotografias
enviadas pela professora: do bloco de anotações dos encontros, do tempo de
criança, de seu patuá, das cartas de sua avó e de seus registros e cartões.
Brito Silva, Greice (2022)

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200 200
201 201
SEMENTES
CaROLiNe DO NasciMeNtO
EU TENHO UMA DIFICULDADE IMENSA DE DEFINIR UMA COISA SÓ, PORQUE SÃO VÁRIOS MOMENTOS

DA HISTÓRIA, QUE A GENTE ACABA LEMBRANDO . ESSE AQUI É O “PAREDES DA MEMÓRIA”. PATUÁS
EM MARCA ACRÍLICA E TECIDOS COSTURADOS .” POR QUE EU LEMBREI DISSO? POR CAUSA DA MINHA

FAMÍLIA QUE REGISTRA MUITAS FOTOS. E MINHA MÃE TAMBÉM SEMPRE TRABALHOU NISSO, PORQUE ELA

SÓ TEM DUAS FOTOS DA INFÂNCIA DELA . E NTÃO , TODO MÊS ELA TIRAVA UMA FOTO MINHA E REVELA -

VA. E NTÃO EU TENHO UM ÁLBUM TODO , AÍ DEPOIS EU FIZ ISSO COM A NA TAMBÉM, COM A MINHA

FILHA, QUE HOJE TEM 12 ANOS. E NTÃO A GENTE VAI FAZENDO ISSO , PORQUE É TÃO IMPORTANTE O

REGISTRO DA FOTO PRA NOSSA FAMÍLIA . OUTRO DIA , NO ANIVERSÁRIO DE 90 ANOS DA MINHA VÓ,

ANO PASSADO, MESMO NESSA SITUAçÃO DE COVID, A GENTE CONSEGUIU SE REUNIR ALI, RAPIDAMENTE,

COM TODAS AS DISTÂNCIAS E TAL, POR CAUSA DA MINHA VÓ, E AÍ A GENTE PÔDE PEGAR AS FOTOS QUE

FICARAM COM A MINHA VÓ , PORQUE ELA É A IRMÃ MAIS VELHA DOS 17 E AÍ ELA MOSTROU AS FOTOS

DA FAMÍLIA DO ESPOSO DELA, MEU AVÔ. ENFIM, FOI FALANDO, A GENTE FOI FAZENDO A ÁRVORE GE -

NEALÓGICA, O NOME DOS IRMÃOS.

Figura 38 - Letícia: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-
postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Maria Letícia Felintro (2021). [Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim.
Seis de agosto de 2021] Figura 39 - Rosana Paulino. Parede da
Memória (1994-2015). Aquarela, manta
acrílica e fotocópia sobre papel colado
em tecido e papel costurados. Acervo da
Pinacoteca do Estado de São Paulo

202 202
"O fato de eu estar aqui hoje, é fruto de um monte de
mulher, que me levantou em algum momento da minha vida.”

Caroline de Souza do Nascimento

Mulher Preta, 31 anos

203 203
Tenho uma dificuldade imensa de definir uma coisa só! Porque são
vários momentos da história, que acabo lembrando ao remexer nas memórias.
Estava aqui pensando por quê eu não brinquei tanto de ciranda. Sou filha única e fui cria -
da afastada dos meus primos. Tive relação apenas com primos mais velhos, que viveram uma
outra época. Não vivi essa brincadeira de ciranda. O que me deixou encucada é: “Então, como
eu sei um monte de cirandas e canto para as crianças?” Só pode ter sido na escola. Só que essa
memória se apagou, eu não me lembro. Estou tentando buscar e ainda não encontrei.
Com a dança, minha relação não foi tão forte. Com a música é mais para o canto e o
instrumento. Tocava piano, parei, agora estou voltando. Voltei a estudar música com a minha
filha. Canto na igreja desde sempre. E escuto muita música desde muito cedo. Meu pai coloca -
va os vinis lá em casa, de samba, de tudo. Desde sempre a música está muito ligada na minha
vida, mas não na parte da dança. É mais voltada para essa questão vocal e instrumental.
Frequentamos uma Igreja Batista aqui em Rio Bonito, onde, recentemente, assumiu um
Ministro de Música que é produtor, foi por dez anos professor de música em escola pública. Ele
tem uma relação completamente diferente do que aconteceu antes na igreja. Uma cabeça mais
aberta, que incentiva a gente, inclusive, a ouvir outras coisas. Outro dia ele estava mostrando
uma playlist dele, falava de Fela Kuti, por exemplo, e de outras referências africanas e caribe-
nhas. Isso me deixou extremamente empolgada: “Poxa vida. É outra parada!”. E aí, eu falei:
“Vou estudar música com ele pra ver.”. Então, estamos fazendo percepção e teoria musical.

205
Inclusive, minha mãe, que tem 64 anos, começou a estudar comigo e minha filha. Na família, eu te-
nho primos que tocam violão, baixo, teclado. Minha filha toca ukulele, toca teclado também. E minha
mãe canta também, sempre foi corista, meu pai sempre também. O pai da minha filha é músico e na
família dele também tem muitos musicistas. Enfim, eu tenho muita gente ligada com isso, né?
Fiquei pensando na relação com a música, com o corpo e até a música popular brasileira… e
talvez, na minha geração, - eu sou do finalzinho da década de 80 - houve um momento de deixar de
brincar na rua. É uma coisa triste mesmo. Parece que se perdeu o encanto de brincar na rua, brincar em
terra, subir em árvore, de pular muro. E fiquei pensando sobre como ensinam a gente a ser fragmenta-
do. Vejo que tem coisas que faltam na nossa formação. Brincar de roda, na rua, a ciranda, acrescentaria
no meu futuro… sabe?
A visita mais marcante a um museu aconteceu em 2016, quando fui ao Museu Afro Brasil, em
São Paulo, com meu esposo e o filho dele. Já havia ido ao Museu Afro Brasil, por duas vezes, antes
daquele momento. Mas, essa foi uma visita muito diferente. Antes, tive a sensação de que o Museu
Afro Brasil era para pessoas que já tem uma certa inserção na temática racial. Entendi pouco ou qua-
se nada do que estava vendo. Em 2016, por já ter certa vivência na área, essa ida fez mais sentido.
A parte sobre religiões foi o que mais me marcou, na segunda visita ao Museu Afro-Brasil. Embora
eu seja batista, aprendo muito com os princípios e valores presentes nas religiões de matriz africana. De
certa forma, eu até me envergonho. Ainda precisamos avançar muito nos aspectos da convivência com
o ser humano, principalmente por conta dos conflitos trazidos pelo fundamentalismo religioso, que é
muito forte. Na igreja que participo, não é tão intenso, pois a juventude negra tem se levantado contra.
Falar de ancestralidade é difícil. Estou aqui hoje, fruto de um monte de mulheres, que me le-
vantaram em algum momento da vida. Por isso, é muito difícil identificar uma pessoa só. A primeira
pessoa que veio à lembrança foi minha mãe. Outra pessoa que lembrei foi minha tia, uma das irmãs
da minha avó, que logo assim que minha mãe se divorciou do meu pai, ofereceu uma oportunidade de
emprego no mesmo prédio onde ela morava, no Grajaú. Lá nós moramos por dois, quase três anos.
Foi muito difícil! À época, minha mãe não tinha roupas, por exemplo, para ir à igreja. Ela usava a

206
mesma roupa todos os domingos. Eu ganhava roupas sempre muito boas. E lembro de ter sido bem
acolhida pelas pessoas.
Às vezes, vejo as pessoas falando sobre memória de vó, mas não tenho essa lembrança. Minha
família não tem muito essa coisa do afetivo presente, acho que por conta da vida difícil. Sempre
fomos: eu, minha mãe, minha avó e depois minha filha. Acho que a vida não me deu oportunidade
para ser afetuosa.
A professora que sou tem como atravessamento a maternidade. Antes de fazer Pedagogia, eu fiz
vestibular para química, na UERJ. Já tinha sido aprovada na prova discursiva quando descobri que es-
tava grávida. E, tudo mudou de ponta cabeça! Em nenhum momento passou pela minha cabeça estar
nesse lugar que eu estou hoje: o lugar de ser professora e com crianças pequenas. Nunca brinquei de
ser professora, não fiz normal no ensino médio. Enfim, nunca me imaginei nessa situação.
Meu cabelo é parte do meu corpo! Uma fala da minha terapeuta capilar, me marca. Ela diz que
existe uma relação forte entre cabelo e corpo e que precisamos pensar como o cabelo reflete nosso
corpo, a nossa saúde, a nossa alimentação. Ter essa consciência faz muita diferença, porque às vezes
fazemos um monte de coisa com cabelo por causa estética ou por causa do racismo, e acabamos
nos maltratando. Esquecemos um pouco, perdemos essa conexão de vista. Eu mesma já perdi essa
conexão. Meu encontro com essa profissional foi como se tivesse me ligado na tomada. Conectei uma
coisa à outra: cabelo e corpo.
Por que pretinhosidade, né? Porque me representa. É um termo do Mombaça, que escreveu uma
música e que ficou conhecida na voz da Mart’nália. Uma vez, no dia 15 de agosto de 2012, fui cha-
mada de pretinhosidade pela primeira vez e desde então minha vida nunca mais foi a mesma. A pes -
soa que me chamou desse jeito, foi meu esposo. Ele, inclusive, fez uma poesia sobre pretinhosidades.
Diz assim: “Se somos um comum de amor e um amor que faz como um, somos vários produzindo um,
espinhos com aroma de flor. Se somos feitos de muito, somos samba, beleza e axé. Somos corpo de
mulher. Subjetividade. Se somos rizoma-liberdade, somos devoração ativa, somos ações afirmativas,
somos negras perspectivas, somos pretinhosidade.”. É... então é... somos pretinhosidades.

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“EU, mULHER PRETa, ESCREVO a dESPEITO da FORÇa ESmaGadORa dO RaCISmO, QUE RaSGa aS PÁGInaS da mInHa PRÓPRIa HISTÓRIa, EU TRaÇO

COm FORTES TRaÇOS dESEnHOS Em COmPaSSOS, LETRaS Em dESCOmPaSSO, dORES E mORdaÇaS, EU ESCREVO PRa mE LIBERTaR da mInHa

PRÓPRIa dOR. E U, mULHER PRETa, EXISTO, a dESPEITO da InVISIBILIZaÇÃO mIdIÁTICa, daS PROPaGandaS mOnOCROmÁTICaS da TV, daS CaPaS dE REVISTa QUE

dIZEm, aInda QUE SEm dIZER PaLaVRa aLGUma, QUE mEU naRIZ nÃO SERVE, QUE mE CaBELO nÃO SERVE, QUE mInHa BELEZa nÃO É BELa, QUE

na SELVa daS VaIdadES, O LUGaR da RaInHa dO BaILE nÃO É mEU, É dELa. E U, mULHER PRETa, InSISTO a dESPEITO da nORmaTIZaÇÃO da TRaGÉdIa.

EU mE nEGO a aCEITaR O aSSaSSInaTO dE JOVEnS PRETOS FaVELadOS , a BanaLIZaR aS BaLaS QUE SE aCHam nOS CORPOS da mInHa COmUnIdadE , a

VULGaRIZaR O SanGUE QUE LaVa OS BECOS E VIELaS dO mEU TERRITÓRIO. EU, mULHER PRETa, mILITO a dESPEITO dO SILEnCIamEnTO ImPOSTO,

EU LUTO COnTRa O PECadO dO RaCISmO, PELa RECOnSTRUÇÃO da aUTOESTIma, E da aGÊnCIa PRETa dEnTRO dOS ESPaÇOS, PELa EFETIVa

LIBERTaÇÃO dO CORPO PRETO, InTEnSamEnTE SUBaLTERnIZadO, PELa VISIBILIZaÇÃO da nEGRITUdE aFIRmaTIVa. E U, mULHER PRETa, SInTO a dESPEITO

da InSEnSIBILIZaÇÃO dOS mEUS SEnTIdOS, EU EXERÇO mEU dIREITO aO aFETO, RESSIGnIFICO ESSE CORPO BESTIaLIZadO, ESSE RESISTÊnCIa anCESTRaL

VIOLEnTamEnTE anImaLIZada E ImPRImO nESSE CORPO PRETO, O mOVImEnTO SUTIL, aS FRÁGEIS nUanCES, OS LEVES COnTORnOS dESSE LEVE

CORPO QUE anTES dE CaRGa PESada da ESCRaVIZaÇÃO, CaRREGa Em SI CULTURaS E SaBORES E OdORES E amORES. E U, mULHER PRETa, ORO a dESPEITO

da dESESPERanÇa , PEÇO SOCORRO COnSTanTE dO SanTO ESPÍRITO, CLamO PELa REnOVaÇÃO daS BOaS mEmÓRIaS, dESEJO TOdOS OS dIaS QUE O SOL

da JUSTIÇa BRILHE Em mEU CORaÇÃO E dISSIPE ESSa dEnSa nUVEm da aPaTIa QUE nOS EnCOBRE. EU, mULHER PRETa, RESPIRO a dESPEITO dO
ESTRanGULamEnTO daS mInHaS EmOÇÕES, EU mE EnTREGO aO amOR. E SSE maIS QUE UTOPIa É ESCOLHa , ESSE QUE maIS QUE QUImERa É REaLIdadE,

ESSE maIS QUE dESTInO É TRaJETÓRIa, QUE anO É O FIm, É mEIO. EU, mULHER PRETa, VIVO a dESPEITO daS ESTaTÍSTICaS.”

dE FaBÍOLa OLIVEIRa.
COMPARTILHADO POR CAROLINE,NO ATELIÊ DO DIA 31 DE AGOSTO/2021

208
Figura 40 - Síntese-visual: Caroline, além da
palavra. Composição de fotografias enviadas
pela professora: do seu patuá, da sua tia Zete,
do bilhete escrito para ela e do seu cartão
“Pretinhosidades”.
Brito Silva, Greice (2022).

209
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211 211
ENCANTOS
ELiete MarceLiNO
ESSE DAQUI, DA CAROLINA MARIA DE JESUS, EU NÃO TINHA LIDO.
EU FUI LER ISSO AGORA. SÓ O
FATO DE SER UMA FOLHA DE CADERNO ENVELHECIDA E A LETRINHA TODA REDONDINHA , BEM AJEITA-

DINHA, É COMO SE A MINHA MÃE TIVESSE ESCRITO. É A LETRA DA MINHA MÃE, ESSA LETRINHA. ESSA

PRIMEIRA PALAVRA ALI, IDÊNTICA A LETRA DA MINHA MÃE. E A FOLHA DO CADERNINHO POR QUÊ?

EU TÔ NUM PROCESSO DE RESGATE DA MEMÓRIA E DA HISTÓRIA DA MINHA FAMÍLIA . EU ESCOLHI


ESSE TEMA PRA PODER ESCREVER COMO TRABALHO FINAL DA MINHA PÓS -GRADUAçÃO. A MINHA

VÓ ERA PARTEIRA. MULHER NEGRA, PARTEIRA, ANALFABETA E ELA TINHA UM CADERNINHO QUE ESTÁ

COMIGO . MINHA MÃE GUARDOU COM MUITO CARINHO E EU , NA MINHA ADOLESCÊNCIA, QUE-

RENDO FOLHA PRA DESENHAR, ACHEI AQUELE CADERNO E A MINHA MÃE FALOU QUE NÃO PODIA

RASGAR. Q UE ERA PRA PODER GUARDAR. PORQUE ERA O CADERNO DA MINHA VÓ, QUE GOSTAVA

DE SER CHAMADA DE DINDINHA. E ALI TEM REGISTRADO UM PARTO QUE A MINHA VÓ FEZ. SÓ QUE

A MINHA VÓ ERA ANALFABETA. A MINHA VÓ NÃO SABIA ESCREVER. ENTÃO, ELA PEDIA PRAS PESSOAS

LETRADAS, PRA PODER REGISTRAR. ENTÃO ELA IA FALANDO, A PESSOA IA ESCREVENDO ALI. ENTÃO,
Figura 41 - Caroline: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-
postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Caroline Nascimento (2021). POR ISSO ME CONSTITUI . É UMA IMAGEM QUE FALA DE MIM, É O MEU RETRATO .

[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim. Figura 42 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977).
“Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros
Seis de agosto de 2021]
(1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo
Instituto Moreira Salles.

212 212
“Eu sou apaixonada pelas memórias,
pelas histórias das coisas, pelas cartas, pelas
fotografias. Isso me encanta demais.”

Eliete Marcelino
Mulher Parda, 43 anos

213 213
Desses encontros, eu quero tudo! Eu quero ficar aqui, oh... a noite inteira baten-
do-papo, falando, lembrando. Eu quero tudo!
Quando peguei a caixa, junto com ela, veio minha sobrinha. Eu estava empolgadona
abrindo a caixa e ela, ao meu lado, estava mais empolgada ainda. Escolheu, já ficou encanta-
da com os paninhos e disse: “Ih, tia, mas isso aqui combina comigo.”. Pedia: “Faz um lacinho
pra mim.”. Eu fui, peguei o paninho, dobrei, peguei os alfinetes que vieram aqui. Prendi, fiz o
laço e coloquei no cabelo dela. Foi empolgante e maravilhoso receber a caixa. Eu fiquei apai-
xonada por tudo!
Minha avó chama-se Sebastiana Muniz de Oliveira. Ela é parteira. A lembrança que eu
tenho dela é de uma mulher muito forte, muito feliz, muito brincalhona, contadora de história.
Quanto mais eu pesquiso sobre ela, mais eu descubro que eu tenho muito dela. Isso, para mim,
é maravilhoso. Eu não era muito próxima da minha mãe. Quanto mais eu descubro sobre a
minha vó, mais eu percebo que sou muito parecida com ela. Sinto muito orgulho de quem ela
foi e de tudo que ela representou para as pessoas que a conheceram. Ela morreu na semana
em que eu fiz cinco anos de idade. Foi enterrada no dia do meu aniversário.
Quando eu era pequenininha, minha avó morava ao lado da casa da minha mãe, nos
fundos da casa do meu tio. Todas as tardes a gente ia pra casa da dindinha, que é como ela
gostava de ser chamada. Ali, ela contava histórias pra gente, juntava os filhos da minha tia,
mais os filhos da minha mãe, mais os filhos da vizinhança toda e ficava todo mundo ali aos pés

215
da minha avó, ouvindo suas histórias e brincando. A gente brincava muito. Às vezes,
ficava no quintal da minha tia, debaixo de uma amendoeira. Ficava ali fazendo as
danças, cirandas. E tinha a Bastiana, que era a tia que morava ali ao lado e era a
que mais se envolvia. Que nos ensinava a cantar, a dançar. Ela também lia livros pra
gente.
Com a ciranda, vivi outra situação na universidade, durante um encontro com
estudantes de Pedagogia na Bahia. Ficamos alocados em uma escola onde tinha um
grupo de pesquisa de cirandas. Eles tinham instrumentos, que começaram a tocar
e ensinar pra gente. Eu quase chorei de emoção! Percebi que eu não sabia dançar
ciranda. A ciranda que eu dançava na minha infância, era brincadeira de roda. E ali,
eles tinham toda uma técnica, mas eu fiquei toda atrapalhada. Fui cheia de gás para
poder brincar de ciranda e eles: “Não, porque tem que dançar assim, tem que dançar
assado.”. Até saí da roda, porque não conseguia pegar o passo. Acho que quando
a gente vai no coração, na intuição, no embalo, de repente…está dançando. Mas,
quando me disseram: “Não, porque é assim, tem que contar”, a cabeça entrou no
meio... e degringolou tudo.
Lá na minha casa, a gente fazia faxina, trabalhava, brincava, fazia tudo com
música. Só ouvia rádio. Tentei aprender a tocar violão. Até tenho um violão e sei tocar
algumas coisinhas. Com certeza, três músicas eu aprendi. É. Porque para aprender,
tem que se dedicar. Só se aprende a tocar, tocando. Eu não me dedico, na verdade.
Meu pai pegava o violão também, arranhava um pouquinho. Ele morreu com 86
anos de idade. Estava aprendendo a tocar sanfona e viola. Eu ouvia muito e papai
cantava pra mim: ‘Oh, coisinha, tão bonitinha do pai’. Aprendi a andar com meu pai
cantando essa música pra mim. Viva Beth Carvalho, Jorge Aragão!
Estou em processo de pesquisa também, fazendo o resgate da história da minha
família, dos meus antepassados. Catando fotos antigas. Aqui, tenho muita fotografia.

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A foto que eu botei no meu perfil do WhatsApp é um dos resgates desse garimpo. É
uma foto minha com a minha avó. Ela, que se tornou a personagem principal da mi -
nha pesquisa pessoal e da minha pesquisa para o trabalho final da pós-graduação
que estou fazendo.
É muita emoção envolvida, viu? Dentro desse patuá vão algumas lágrimas para
minha avó. Jamais teria essa ideia brilhante de escrever um bilhetinho. Vou escrever
uma carta pra ela.
Quando eu entrei na UFF e fomos para o ENEP [Encontro Nacional de Estu-
dantes de Pedagogia] lá na Bahia, visitamos o Mercado Modelo. Foi marcante!
Havia uma exposição no subsolo. Quando entrei ali, passei mal, fiquei trêmula. Fi-
quei gelada e quente. Eu sentia... e ouvia as vozes das pessoas ali dentro. Estou toda
arrepiada agora. Parece que eu sentia toda aquela energia, daquelas pessoas que
morreram, que sofreram e estavam ali. O chão era todo de água, tinha apenas um
caminho pequeno feito de cimento para você passar e ver. Havia uma marca da maré
quando estava alta. Nossa! Aquilo foi terrível pra mim. Foi uma experiência muito
ruim, eu diria assim.
Lembro de um pedaço triste da minha infância. Sou a filha número sete de oito
filhos vivos dos meus pais. Sempre ouvi do meu pai: “Você é quadrada.”. “Você é bur-
ra.”. Não só dele! Também de outras pessoas próximas. Isso machuca, marca a gente.
Não me afeta mais, mas faz parte da minha história. Por ironia do destino ou por
muita força de vontade, sou a primeira filha dos meus pais a me formar na faculdade.
Fiz faculdade pública, estudei na pós-graduação. E isso abriu caminhos para outras
meninas, filhas das minhas irmãs.

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“POmBInHa, QUandO TU FORES, ESCREVE PELO CamInHO . SE nÃO aCHaRES

PaPEL, naS aSaS dO PaSSaRInHO. da BOCa FaZ Um TInTEIRO, da LÍnGUa PEna dOURada,
dOS dEnTES LETRa mIúda , dOS OLHOS CaRTa FECHada. a POmBInHa VOOU, VOOU, VOOU.

ELa FOI-SE EmBORa E mE dEIXOU.”

POESIa, dE VOVÓ dIndInHa.


COMPARTILHADO POR ELIETE,NO ATELIÊ DO DIA 31 DE AGOSTO/2021

Figura 43 - Síntese-visual: Eliete, além da palavra. Composição de fotografias enviadas pela


professora: o patuá confeccionado sob sua mão; o encontro com a obra de Priscila Rezende; a
sua experiência com os materiais; a boneca confeccionada, a imagem de sua avó Sebastiana, o
cartão com lembranças de seu pai e a imagem da sua mãe Lígia. Brito Silva, Greice (2022).

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HERANÇAS
CarLa ROdrigues
“…O [CARTÃO-POSTAL] QUE MAIS ME TOCOU FOI O “PAREDE DA MEMÓRIA”, QUE ME FAZ LEMBRAR
DA HISTÓRIA DA FAMÍLIA DO MEU PAI E DA MINHA MÃE, QUE SÃO DE EX-ESCRAVIZADOS. UMA PARTE

DA HISTÓRIA DA FAMÍLIA, NÃO CONHEçO, PELOS REGISTROS TEREM SIDO DESTRUÍDOS. MAS TANTO

O MEU PAI, COMO A MINHA MÃE, RELATA, DO POUCO QUE ELES LEMBRAM DA INFÂNCIA DELES, QUE

MEUS AVÓS TRABALHAVAM EM PLANTAçÃO DE CANA-DE-AçÚCAR E CAFÉ. A VIAGEM DE TREM, NO CASO

DO MEU PAI, PRO CARMO, DA MINHA MÃE PRA NOVA FRIBURGO. CHEGOU ATÉ TER QUANDO ERA

CRIANçA, UMA ONçA PARDA. ATÉ PASSOU UMA REPORTAGEM NA TELEVISÃO E MINHA MÃE LEMBROU:

“IH, MINHA ONçA PARDA, QUANDO EU ERA CRIANçA NO TREM, QUANDO EU TINHA CINCO ANOS,
QUE FUGIU.”. AÍ QUANDO EU VI ISSO DAQUI, NOSSA, LEMBREI LOGO DA HISTÓRIA DA FAMÍLIA. E AS

POUCAS FOTOS QUE A GENTE TEM AQUI EM CASA, ALGUMAS JÁ BEM JÁ VELHINHAS, ESFARELADINHAS.

ATÉ MINHA IRMÃ COMENTOU COMIGO: “A GENTE PODE TENTAR RESTITUIR, NÉ? MAS VAI SER DIFÍCIL,
PORQUE TÃO BEM AMARELADINHAS.” MAS, TEM ALGUMAS FOTOS DOS MEUS AVÓS. AÍ QUANDO EU VI

ISSO DAQUI, EU LEMBREI LOGO DESSA HISTÓRIA TODA. ESSA DAQUI É A QUE MAIS ME REPRESENTA. É

A BUSCA DA HISTÓRIA DA FAMÍLIA. ESSA IMAGEM ME REPRESENTA MESMO.”

Figura 44 - Eliete: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos
[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim.
cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo.
Eliete Marcelino (2021). Seis de agosto de 2021] Figura 45 - Rosana Paulino. Parede da
Memória, 1994-2015. Aquarela, manta
acrílica e fotocópia sobre papel colado
em tecido e papel costurados. Acervo da
Pinacoteca do Estado de São Paulo.

222 222
“Eu, particularmente, adoro turbante, sempre gostei de botar um lenço
na cabeça. Estou usando bastante, as pessoas olham com uma cara meio
assim, espantada e eu nem ligo, tô nem aí pra hora do Brasil.”

Carla Fernanda Leal Rodrigues


Mulher Preta, 40 anos

223 223
Muito feliz em receber o convite para participar da pesquisa! Adorei
a caixa, adorei tudo, mas especificamente os tecidos. Principalmente os dois tecidos africanos.
Lembram da luta do povo negro no Brasil, na África. As pessoas falam que é moda. Moda de
roupa africana, tecido africano, cabelo africano, trança, apropriação cultural, esse papo todo
que tá rolando agora, que eu fico extremamente irritada com as respostas que as pessoas dão
pra cada um desses temas.
Adoro turbante! Sempre gostei de botar um lenço na cabeça. Laço nem tanto, mais turban-
te mesmo. Lenço amarrado ou fechado, eu adoro. Uso bastante e as pessoas olham com uma
cara meio espantada, mas eu não ligo. Tô nem aí pra hora do Brasil! Uso mesmo, nem ligo.
Inclusive, na escola, quando eu comecei a usar lá em 2015, percebi que as pessoas ficaram
meio assim. Uma professora até perguntou se ela poderia usar. Ela se sentia amedrontada,
pois na época, houve uma discussão com uma atriz ou ator de fora, louro ou loura, que estava
usando turbante e, na internet, começaram a comentar que eles não poderiam usar as tranças
porque era apropriação cultural.
Às vezes, fico irritada com os comentários de algumas pessoas. Eu explico, a pessoa não
quer entender, então já encerro a conversa para não piorar a situação. Tem hora que cansa de
explicar a mesma coisa toda hora. Quando a pessoa não se sente afetada sobre o tema, não
vai querer aprender, não vai querer estudar mesmo. Se não faz parte de um grupo que é opri -
mido desde que o mundo é mundo, que tem que matar um leão por dia pra sobreviver, se não
correr atrás, fica inteiramente no limbo. Pergunta:.“Ah, o que eu posso ler?”. Indico: “Lê isso,
lê isso, lê isso.”. A pessoa, se é que leu, mesmo assim ainda não absorveu: ah, oh, eu perco a

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paciência! Desculpa dizer isso, mas eu perco a paciência. Não dá! A gente não tá falando de coisas tão
distantes assim ou de fora do nosso convívio social.
Eu adoro ciranda! Gosto muito. Na escola usava bastante com as minhas crianças. Agora não posso,
ainda estou no modo remoto.
As melhores lembranças com ciranda são da época da infância. Eu e meus irmãos brincávamos na
rua, de manhã, de tarde, de noite, nas férias, na volta da escola. E era seguro. Às vezes ficava sem ne-
nhum adulto olhando, no máximo um irmão mais velho. E não havia perigo. Eu adorava! Embaixo do pé de
amendoeira, pé de manga. Perto de casa, havia uma quadra com chão de barro. Ih, quando chovia, era
uma delícia! A gente brincava na chuva. Não tinha estresse. No máximo, uma mãe ou outra reclamava,
mas era tranquilo. Brinquei bastante! Ciranda, pique alto, pique baixo, pique se esconde, queimado. Tudo
aqui na rua. Hoje, as crianças, infelizmente, não têm essa oportunidade de brincar, devido a violência. Tá
todo mundo no eletrônico. Eu adorava! Gostava muito de brincar na rua.
Gosto de dançar também. Quando eu era pequena, na escola, cheguei a fazer um ano de jazz. De-
pois saí. Adulta, às vezes, quando dá um tempinho, vejo uns vídeos de dança no YouTube e pratico em
casa. Assim que puder, eu vou me matricular numa aula de dança. Ah, gosto de salsa! Gosto de samba
também. Não danço muito bem samba não, arranho. Gosto de samba de gafieira também. Não sei ainda,
mas gostaria de aprender. Já a salsa, eu adoro!.
Lembrei das fotos dos meus avós, por parte de pai e parte de mãe, com fundo preto ou branco. Inclu-
sive algumas imagens tem até um formato circular em cima que continuava com eles. Estão lá em Friburgo.
Quando eu era criança também havia essas câmeras antigas de foto. A foto era pequenininha, você tinha
que ver pelo buraquinho, como se fosse um binóculo e a foto ampliava. Esqueci o nome daquilo... monócu-
lo! Com essa dinâmica, eu lembrei deles. Aqui em casa tinha aqueles azuis com a bordinha branca.
Participei, em 2018, durante o aniversário de 130 anos da abolição da escravatura no Brasil, de um
seminário para historiadores na Fundação Getúlio Vargas. Uma das atividades foi visitar o Instituto dos
Pretos Novos, na Gamboa. Foi uma experiência muito impactante! Vi onde os africanos chegaram. Conheci
mais do Instituto Pretos Novos. Uma casa particular, que quando foram fazer a obra, descobriram um

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cemitério, até que chamaram o pessoal da arqueologia e conseguiram provar que haviam restos mortais de
africanos escravizados. Acharam diversas cerâmicas indígenas e africanas também. Foi muito impactante!
Uma coisa, assim, de chorar. No mesmo dia, fomos à Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homens Pretos, que tem um mini museu com objetos da escravidão. Também de chorar! Inclusive agora foi
restaurada a igreja, está aberta para visitação e está tendo missas novamente. Fica na rua Uruguaiana.
No mesmo ano, em 2018, teve uma exposição no Arquivo Nacional, com a Lei Áurea, que também foi
bem impactante. Junto da lei, havia diversos tipos de jornais da época, de senhores de fazenda procurando
os escravos fugidos. Havia diversos arquivos, inclusive sobre a Revolta dos Malês. Muito interessante!
Lembro do que estudei na escola. Muita coisa que fiquei sabendo na vida adulta, não tem nada a ver
com o que aprendi. Quando fui buscar para ensinar às crianças, desde as pequenas, não é nada daquilo.
Eu cheguei a trabalhar com ensino fundamental I. Agora, há 12 anos, eu tô com os pequenos. E vejo como
o racismo sistêmico, científico, religioso e etc, está tão enraizado.
Lembrei das minhas avós: Maria Judite e Maria Geralda. Elas eram irmãs, meus pais são primos de pri-
meiro grau. Imagina a situação! As duas trabalharam na roça, em Sumidouro-RJ. Meus avôs também. Parte
da família da minha mãe foi para Friburgo. As duas trabalhavam muito com ervas, a preferida era arruda.
Amo o cheirinho de arruda! Aqui em casa, nunca vinga. Compro, planto e logo morre. Lembro do que
minha avó falava: “Se morrer é porque tem alguma coisa estranha”, algum mau olhado, alguma coisa as -
sim. E sempre morre e eu compro de novo. Comigo-ninguém-pode, até que resiste bem. Mas, com a arruda,
não sei o que acontece. Parece que ela suga tudo e falece, tadinha!
Minhas duas avós também faziam muito fuxico. Faziam colcha, almofada, capa de almofada. Não
consigo fazer isso não! Pensei em usar o tecido de flores; e a cor amarela, tem a ver com conhecimento,
né? Elas não tinham conhecimento acadêmico, mas tinham um conhecimento ancestral com ervas. Faziam
um xarope com guaco e mel, quando a gente era criança. Mas, a lembrança mais marcante mesmo é da
benzedura com a arruda. Quando íamos lá visitar... As duas, vovó Judite ou vovó Geralda, usavam arruda,
tanto pra rezar, quanto para banho também.

227
“[...] a VOZ dE mInHa mÃE
ECOOU BaIXInHO REVOLTa
nO FUndO daS COZInHaS aLHEIaS
dEBaIXO daS TROUXaS
ROUPaGEnS SUJaS dOS BRanCOS
PELO CamInHO EmPOEIRadO
RUmO À FaVELa
a mInHa VOZ aInda
ECOa VERSOS PERPLEXOS
COm RImaS dE SanGUE
E
FOmE.”

VOZES mULHERES, dE COnCEIÇÃO E VaRISTO.


COMPARTILHADO POR CARLA,NO ATELIÊ DO DIA 31 DE AGOSTO/2021

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Figura 46 - Síntese-visual: Carla, além da palavra.
Composição de fotografias enviadas pela professora:
de seu patuá e de sua avó com ela no colo.
Brito Silva, Greice (2022).

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230 230
VÔOS
CaMiLa COrdeirO
EU JÁ TINHA FALADO DESSE POSTAL, QUE É DE ROBINHO SANTANA. IBEJIS, 2020. NOSSA HIS-
TÓRIA É MARCADA MUITO PELA SOLIDÃO . QUANDO A GENTE CONSEGUE ENCONTRAR PESSOAS

QUE CAMINHEM COM A GENTE, ISSO NAS RELAçÕES DE AMIZADE, NAS RELAçÕES DE TRABALHO,

NAS RELAçÕES AFETIVAS, NO CASO, NAS RELAçÕES ROMÂNTICAS, NÉ, CASAL , ISSO É MUITO

IMPORTANTE. E PRA GENTE É UMA MARCA ENCERRAR CICLOS DE SOLIDÃO. QUE NOSSAS MÃES,

QUE AS NOSSAS TIAS, QUE NOSSAS AVÓS VIVERAM E CRIARAM A GENTE. MULHERES QUE DESDE
PEQUENA OUVIRAM: “VOCÊ VAI MORRER SOZINHA .”. PORQUE VOCÊ É DIFÍCIL, PORQUE VOCÊ

É ESCANDALOSA, PORQUE VOCÊ RECLAMA DE TUDO. E ESSA RELAçÃO COM ESSA IMAGEM ,

REMETE A MINHA RELAçÃO COM O MEU COMPANHEIRO , EU CONSEGUI ENCONTRAR CAMINHOS

NA MINHA VIDA QUE ANTES ESTAVAM FECHADOS . U MA PESSOA QUE CAMINHOU COMIGO NA

MINHA VIDA ESPIRITUAL TAMBÉM. DESDE QUANDO EU ERA DA IGREJA EVANGÉLICA, OS ERÊS JÁ

ESTAVAM ALI COMIGO E EU NÃO ENTENDIA QUAL ERAM AS RELAçÕES QUE EU TINHA. E DEPOIS,

NÃO CAMINHANDO SOZINHA, MAS COM ALGUÉM COMIGO, CONSEGUI ROMPER AS BARREIRAS ,
Figura 47 - Carla: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos NÃO SÓ DA SOLIDÃO, MAS TAMBÉM APROFUNDAR NA MINHA ESPIRITUALIDADE. [...]
cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo.
Carla Rodrigues (2021).
[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim.
Seis de agosto de 2021]
Figura 48 - Robinho Santana. Ibeji, 2020. acrílica sobre
tela, 2020, 110x130 cm. Acervo do Museu Afro-Brasil.

232 232
“Eu já voei muito alto em vista do que a
história achou que eu poderia.”

Camila Coutinho Cordeiro


Mulher Negra, 31 anos

233 233
Quando você disse: “Ah, vai vir um material”, pensei logo: “Será
que vai vir texto? Vai vir cheio de texto? Vai ter que fazer leitura prévia?”. Lancei aquele
olhar sobre as pesquisas da academia de forma mais padrão.
Sendo bem sincera, há bastante tempo eu não consigo participar de momentos assim...
Sentar, pegar o chá... Chego do trabalho correndo. Quando abri a caixa, fiquei emocionada.
Logo imaginei que seria um encontro gostoso com os elementos que tinha ali. Os tecidos e suas
estampas, me levaram a lugares, a outros pensamentos.
Penso que o trabalho nos consome tanto - a vida, o cotidiano, a pandemia -, que faz com
que, às vezes, a gente se coloque num lugar que nem sempre é o que sempre lutou para estar.
Tudo isso tem a ver com a caixa, porque os detalhes, pequenas coisas assim, detalhes mesmo,
importam. Eu mostrei pro meu esposo e ele disse: “Nossa, tanto tempo que eu não vejo um
envelope!”. Deu uma nostalgia também.
Ouvir a voz da Lia, me remeteu a voz da minha vó cantando. Tem um jeito, não sei explicar,
mas é uma entonação, que coloca uma impostação de voz e a pronúncia das palavras, que pa -
rece muito minha avó cantando. Ela cantava músicas de ninar, pra gente dormir. E ela dormia
e a gente ficava acordada, e dizia:“Vó, acorda que a gente não dormiu ainda não. Continua
cantando!”. Até que eu e meus primos dormíamos.
Outra coisa, foi sobre o espaço da brincadeira de roda. Dancei muita ciranda em encon -
tros da igreja evangélica. Fazia parte de uma organização dentro da Igreja Batista, que era Os
Mensageiros do Rei. Participava de encontros e, num momento cultural, brincava de roda. Esse
momento da roda era o mais esperado. Em uma recordação, lembro que fui num encontro lá

235
em Cachoeiras de Macacu-RJ e a igreja tinha um espaço ao lado, grande, onde brincamos de roda. Ali, eu tinha
entre nove e doze anos de idade.
Já o maracatu, o jongo e o coco, conheci quando adulta na universidade. Para mim, são danças circulares, pois
se entrelaçam. Tenho dificuldade em diferenciar o que é coco e o que é cada dança. Só sei que a gente tá dançando
em roda. Com o jongo da folha de amendoeira, que acontece na Praça da Cantareira, em Niterói-RJ, conheci algu-
mas pessoas. Eu matava aula pra ir pra lá, terça-feira. Morei na moradia estudantil da UFF. Tinha um pessoal da
Casa do Estudante, que era do jongo. Essas danças, na verdade, foram aparecendo quando entrei na universidade.
Quando entro na roda, olho e danço ali, meio envergonhada. Nunca participei de nenhum grupo específico (de
jongo) não. Só de passagem mesmo. Faço relação entre essa ciranda que eu dançava entre meus 9, 12 anos, nos
espaços de encontro da igreja, com esse outro momento e essa valorização das manifestações culturais, no contato
da universidade.
Não sei tocar nenhum instrumento musical. Nunca toquei nada. Como falei: minha infância e minha adoles-
cência, eu passei na igreja. Meus primos eram músicos, minhas primas cantavam e eu era do grupo de dança da
igreja. Tenho vários amigos músicos, amigos próximos. Adulta, frequentava roda de samba. A relação com a música
está relacionada ao entretenimento e ao lazer. Não faz parte de mim. Não toco, não canto, não faço nada disso.
Na casa da minha avó materna tinha uma foto da minha avó e do meu avô (que não conheci, pois ele faleceu
antes de eu nascer), na sala, bem nesse estilo do postal mesmo. Era uma foto que parecia esfumaçada. O entorno
parecia pintado a mão. Na casa da minha vó tinha muito monóculo. No dia 12 de agosto fez 18 anos que minha
avó materna faleceu. Nossa! Percebo como voou o tempo. Parece que foi nesses dias, que minha tia foi morar na
casa dela. Não fizemos aquele momento, que geralmente as famílias fazem, de mexer nas coisas, desfazer. Pensei
aqui: “Gente, pra onde que foram aquelas fotos? Os monóculos que tinham lá?”. Fiquei pensando agora. “Pra
quem foi?”.
Não tenho muito registro fotográfico da infância. Uma vez, no curso normal, uma professora propôs que nós
fizéssemos um memorial, como se fosse um livro da nossa história, uma linha do tempo e fui percebendo que não
tinha foto. Fui catando na casa de uma tia ou outra, em que eu aparecia como coadjuvante em alguma festa.
Quase não tenho fotos. Aquela caixa que a família tem de fotografias, memórias, eu não tenho isso. Comecei a tirar

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foto, acho que a partir do meu aniversário 15 anos, que também não tem um grande álbum. Tem algumas fotos
reveladas, mas também foi se perdendo. Isso é algo que hoje tento priorizar: registrar os momentos! Sinto muita
falta desse registro fotográfico. Não tenho da minha infância, imagina da infância minha mãe, da minha vó!
Quase nada, assim! É uma memória somente oral. Porque o registro escrito e fotográfico, quase não tem.
As primeiras oportunidades de visitar museus, espaços de produções culturais e artísticas, se deu quando entrei
na universidade. Na verdade, na época do ensino médio, cheguei a ir no Museu Imperial, em Petrópolis. Fui de novo
no final de semana. Falamos assim: “Ah, quero ver. Que agora é outra mente, outra cabeça.” E, foi bem interes-
sante, a postura diante do que é luxuoso da monarquia. Uma sala para a imperatriz, uma roupa para aquilo, uma
roupa para aquilo outro. Na minha mente, o tempo todo, dizia assim: “É agora? É agora que a gente vai expropriar
tudo isso? Que a gente vai tomar tudo que é nosso? Botar a coroa na cabeça do povo preto?”.
Fiz alguns passeios com a UFF. Fui a Ouro Preto, na Casa de Cultura. Consegui ir ao Maranhão também, onde
visitei um dos espaços que retratava a cultura local. Lembro de um museu do maracatu.
A última exposição com artistas e obras do povo preto, que fui, foi uma exposição individual do artista Mulam-
bo, no Museu de Arte do Rio. É bem interessante, porque ele é um artista, que eu tive oportunidade de tomar cerveja
junto lá na Cantareira. Ele é estudante de arte da UFF! Para mim, foi a exposição mais marcante.
Minha família é de Itaboraí-RJ. Minha avó morava nas plantações de laranja, que é um símbolo tão forte que
está na bandeira da cidade. E ela tem um sobrenome, que dá nome a um bairro: Posse dos Coutinhos. Uma ami-
ga estava fazendo uma pesquisa sobre os barões de café em Itaboraí e a relação com a escravidão e veio falar
comigo. Primeiro, ela brincou comigo assim: “Nossa, sua família é dos barões de Coutinhos.”. E eu respondi: “Tem
certeza?”. Minha tataravó, na verdade, herdou o nome dos seus donos, os Coutinhos. Ela não era dona de alguma
coisa. Não tenho muita história pra contar sobre a minha família. E, essa relação ancestral, infelizmente tem a ver
com a escravidão.
Fiz o bilhete pra minha vó. Escolhi o tecido amarelo, linha amarela. Pensei em fazer numa forma como se fosse
uma almofada, porque minha avó era costureira e ela fazia bastante almofada. Ela se chamava Neir. Ah, uma coisa
interessante é que eu sonho com ela até hoje.

237
“RELaTandO O nOSSO ÍnTImO, PRa LEmBRaR daQUELa nOITE, InSPIRadO nOS FUGImOS, nOS

LIVRandO dO aÇOITE. T ÃO PELE E aLma. m UITa GEnTE nEm QUIS CRER. FICamOS
maRCadOS,

BEm, SEPaRadOS. E SPERandO anOITECER. n OITE VEIO, SEGUE PRaSTE, aTEnÇÃO aO TaL SEnHOR.

EnQUanTO TU PREPaRaVaS PRa SInHÁ, BanHO dE FLOR. m adRUGOU E nÃO FOI FÁCIL. EnTRE aS
maTaS Um CaVaLO. n OS LEVandO PRa OUTRaS BandaS PRO EnCOnTRO dOS CHEGadOS. EnTOCadOS,

dESaRmadOS, SÓ COm a FÉ nOS ORIXÁS . O SEnHOR dE LIBERdadE, nÓS nÃO PERdEmOS

JamaIS. C OnSEGUImOS, SIm, VEnCER. SUSPIRandO aLEGREmEnTE nOS LEmBRamOS dOS maLÊS, POVO

SÁBIO E InTELIGEnTE. SEm FEITOR, CaIXa PRa mÃO. SEm BERLInda E CEPO. SEm CInTO dE COnTEnÇÃO,

SEm TROnCO QUE nOS FEZ PRESOS. FERRO dE maRCaR, maRCOU. VIRa- mUndO nOS QUEBROU.

maS mE dÊ Um BEIJO, PRETa. nO QUILOmBO nÓS CHEGOU.”

HaSHTaG POETaS dE Q UaRTa, dE LEandRO TadEU GOmES.


COMPARTILHADO POR CAMILA,NO ATELIÊ DO DIA 31 DE AGOSTO/2021

238
Figura 49 - Síntese-visual: Camila,
além da palavra. Composição com
fotografia enviada pela professora,
de seu patuá sob sua mão.
Brito Silva, Greice (2022).

239
6.2 A ESCUTA DÁ O TOM AO BORDADO NARRATIVO: TEMPOS, Conforme já exposto, o material biográfico advindo das gra-
vações dos encontros-ateliês narrativos foi transcrito e textualizado.
TERRITÓRIOS, FIGURAS DE LIGAÇÃO, VIVÊNCIAS CULTURAIS Seguindo o princípio de pensar e problematizar as narrativas não
E OBJETOS BIOGRÁFICOS como meros dados informativos, mas como acontecimentos da vida
e formação das professoras, utilizei a ideia de uma leitura em três
Tendo em mãos os mapas de rotas de experiências que marcaram
tempos, baseada em Souza (2004), gerando um campo para a aná-
a sensibilidade estética nas histórias de vida das professoras, avanço
lise interpretativa do material. O referido autor, apoiado em Ricoeur
para dialogar com os elementos identificados, conforme traçado nos
(2007), considera os tempos de lembrar, narrar e refletir sobre o
objetivos da pesquisa. Aqui me aproximo do conceito de “recorda-
vivido, num processo que, reconhecendo o valor heurístico das nar-
ções-referências” (JOSSO, 2002), evidenciado como recordações
rativas, permite tecer uma análise interpretativa-compreensiva. Em
[...] simbólicas do que o autor compreende como elemen- suas palavras:
tos constitutivos da sua formação. [...] significa, ao mes-
mo tempo, uma dimensão concreta ou visível que apela [...] a análise interpretativa das narrativas (auto) bio-
para as nossas percepções ou para as imagens sociais, e gráficas buscará evidenciar a relação entre o objeto de
uma dimensão invisível, que apela para emoções, senti- estudo, seus objetivos e o processo de investigação-for-
mentos, sentido ou valores. (JOSSO, 2002, p. 29) mação, tendo em vista entender as regularidades e ir-
regularidades do/no conjunto de escritas de si, partindo
A pesquisa sustentada no aporte teórico-metodológico das aborda- sempre da singularidade das histórias e das experiên-
cias relatadas por cada sujeito. (SOUZA, 2004, p. 122)
gens (auto) biográficas não prevê a análise da história do outro, nem
tampouco busca encontrar uma verdade nas suas biografias. Conside- Assim, de acordo com o pesquisador, uma análise em três tem-
rando a escuta como princípio, após a produção dos dados biográficos pos permite entender e significar as trajetórias de formação e suas
segue-se com um trabalho co-interpretativo sobre os processos de for- implicações, também numa perspectiva do modelo dialógico pro-
mação evidenciados, o que exige refinamento do diálogo. De tal modo, posto por Pineau e Le Grand (2012), buscando evidenciar os per-
guiada pela busca das recordações-referências das narradoras, fui te- cursos formativas e os sentidos que cada sujeito atribui a sua vida,
cendo a relação entre as narrativas de formação da sensibilidade das mantendo reciprocidade e dialogicidade entre si. A leitura em três
professoras-participantes, os objetivos da pesquisa e o processo de inves- tempos do material biográfico, como sugerido por Souza (2004),
tigação-formação, partindo da singularidade das histórias e experiências considera o Tempo I: Pré-leitura/ Leitura Articulada; Tempo II: Leitura
relatadas, de modo a preservar a autoria da palavra e/ou imagem. Temática; Tempo III: Leitura Interpretativa.

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No caso da minha pesquisa, no Tempo I, como uma pré-leitura, de cada participante. Após o trabalho de pré-leitura/leitura articula-
percorri todo o material transcrito, em uma leitura fluída e flutuante, da do Tempo I, algumas histórias poderiam estar/parecer inconclu-
me aproximando das narrativas (ou reaproximando, haja vista que sas ou dar indícios que poderiam ser aprofundadas, de modo que
estive presente no ato de sua enunciação), reconhecendo a densi- foi importante devolver às participantes suas narrativas transcritas e
dade dos percursos e histórias textualizadas, mapeando o território articuladas para que pudessem completar, alterar ou recontar suas
no qual eu precisaria mergulhar para tecer significados ou, no dizer histórias. Esse procedimento, uma recomendação metodológica do
dos autores que tomo por referência, proceder à análise interpre- trabalho com narrativas de vida e formação, garantiu que a autoria,
tativa-compreensiva das histórias que tinha (re)colhido, (re)unido. a qualidade das histórias e sua profundidade não se perdessem.
Seis interlocutoras, muitos tempos vividos, muitas experiências re- No Tempo II, foi realizada uma Leitura Temática do material bio-
memoradas, muitas histórias contadas: me dei conta que guardava gráfico, buscando perceber questões e temas que anunciam significa-
um volume imenso de preciosas narrativas. Voltei aos arquivos das ções do percurso vivido, possibilitando uma organização das narrati-
transcrições, lendo e relendo, cabeça fervendo, ideias borbulhando, vas de modo ampliado, relacionando dimensões micro (cada tópico)
desafio crescendo. Continuei com recomendação teórica: já havia e macro (o contexto) em agrupamentos temáticos. De acordo com
construído uma intimidade considerável com as narrativas textualiza- Souza (2004), é na leitura temática que se pode evidenciar regularida-
das, então comecei a imaginar fios que pudessem ser puxados para des, irregularidades, particularidades e subjetividades no percurso de
articular pontos identificados na pré-leitura, nas narrativas de cada cada narrador e, com base no agrupamento temático, esboçar o exer-
uma das seis professoras. cício compreensivo dos textos narrativos. Ao realizar o agrupamento
Assim, completando o Tempo I, organizei os dados biográficos: temático das narrativas, também compus um quadro, sem pretensão
nome, idade, local de nascimento e moradia, formação e tempo de sistematização e socialização de conteúdo, mas apenas para me
de atuação na educação infantil, autodeclaração quanto à raça, de situar e tentar não me perder na complexidade e volume do material
modo a compor a identificação pessoal e um perfil biográfico. Or- biográfico. Os temas identificados remetem a tempos, territórios, figu-
ganizei as conversas, na ordem de realização dos encontros-ateliês ras de ligação, vivências culturais e objetos biográficos.
narrativos e, em cada um, ordenei os acontecimentos e as narrati- No Tempo III, que diz respeito à leitura Interpretativa, me debru-
vas decorrentes. Neste momento, para minha organização e melhor cei sobre a organização temática já produzida e dediquei atenção
visualização, coloquei acontecimentos e narrativas em uma espécie aos temas anunciados nas narrativas, considerados por mim como
de tabela, e, depois, organizei conjuntos de narrativas e materiais temas evidenciados. Na tentativa de tematizar os trechos, por mais

241
que se tente apreender apenas um sentido, deve-se reconhecer que as narrativas possuem
sentidos múltiplos. Neste ponto, é precioso o esclarecimento de Pierre Dominicé (2014, p.
81)): “o estudo biográfico, porque apela à reflexão e resulta de uma tomada de consciência,
dá origem a um material de investigação que já é o resultado de uma análise. A diversidade
dos dados deve assim ser recebida como uma pluralidade de compreensão biográfica”.
Tendo em mente a pluralidade, tanto dos enunciados, como das possibilidades com-
preensivas, reafirmo um princípio que atravessou toda a pesquisa: o diálogo. Seria melhor
dizer que dei continuação ao diálogo, ou que aprofundei o diálogo com as histórias das
professoras que estiveram comigo, numa jornada de rememoração e narratividade. Histórias
que compõem o conjunto de material biográfico reunido, repletas de recordações-referências
(JOSSO, 2002) dos processos e experiências ao longo da vida e também os processos vividos
ao longo dos encontros-ateliês narrativos, foram agora articuladas pela observação atenta
dos elementos que ajudam a compor, e dar visibilidade, à trajetória de formação estética de
cada participante.
Uma leitura interpretativa das histórias transcritas e co-construídas permitiu analisar a
validade dos encontros com a poética de artistas negras, percebendo sua influência na com-
posição de referências e repertórios artístico-culturais. Foi possível acompanhar os processos
formativos e identificar o quê nutriu esteticamente cada uma, quando, onde, como, com quem
nutriram seus repertórios artístico-culturais. E, também, conhecer fazeres criativos e expressi-
vos que utilizam para dizerem sobre si.

Figura 50: Lembranças da infância de


Maria Letícia, na foto com sua irmã.
Maria Letícia Felinto (2021)

242
TEMPOS Se lembramos, é porque outros nos fazem lembrar (BOSI,
1994). A lembrança vem quando outras pessoas e fatos a provo-
A partir das narrativas é possível perceber o de- cam. Na metodologia utilizada nos encontros ateliês-narrativos, as
senrolar dos fatos na história, marcados pelo tempo obras de arte, música e dança, imagens e poesia, acionaram as
cronológico, por décadas e anos, ou pelo tempo sim- lembranças. Neste sentido, além do meu trabalho de interlocução
bólico, através das lembranças das colaboradoras. De como pesquisadora, as manifestações e produções artísticas confi-
modo geral, os encontros ateliês-narrativos evocaram guraram-se como um “outro” a provocar rememorações. Enquanto
reflexões do presente, acontecimentos ocorridos du- expressões das necessidades humanas, suas crenças, desejos e so-
rante a crise sanitária da COVID 19 e dos encontros nhos, contribuem com maior força para o caráter livre e espontâneo
da pesquisa; Momentos do passado, de diferentes pe- dos guardados da memória.
ríodos da vida, como infância, juventude e idade adul- Deste modo, a imagem do cartão postal impulsionou Cristina a
ta, transformados em experiência visível pelas vozes contar sobre seu desejo de ser bailarina. Também pela imagem esco-
em palavra/corpo. lhida no cartão postal, Caroline lembrou-se da separação de seus pais
No presente, memórias foram despertadas. Entre os quando tinha três anos de idade. Aqui, considera-se a memória en-
modos de ser do indivíduo e sua cultura, veio à tona o quanto trabalho, como postula Halbwachs (1993), onde lembrar con-
que estava submerso. Reconheço que aspectos dos nos- siste em refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as
sos sentidos são entrelaçados a nossa experiência pas- experiências do passado. Lembrar desses episódios não é mero sonho,
sada. E, esse afloramento do passado é um combinado é refazer o passado, nos atravessamentos de juízos de realidade e de
entre processo corporal e presente da percepção, como valor que foram alterados ao longo tempo da nossa existência.
afirma Ecléa Bosi (1994). Maria Letícia comentou que Entendendo que lembrança puxa lembrança, como diz Ecléa
as propostas dos encontros trouxeram à tona memórias Bosi (1994), o vídeo musical de Lia de Itamaracá despertou e puxou
que estavam adormecidas. Para ela, vamos guardando várias recordações da infância, do tempo de criança das participan-
o que vivemos ao longo das nossas vidas, que são coisas tes. Maria Letícia lembrou-se do lugar onde morou e de quando fi-
pontuais, acontecimentos diários do nosso cotidiano. E, cava debaixo da amendoeira. Brincavam de roda, de pique, contava
por vezes, a depender de uma música ou palavra, pode charadas e ouvia piadas que crianças não podiam ouvir. Eliete se
evocar memórias. E é aí que vem tudo, ela disse. recordou de ouvir histórias e brincar bastante no quintal de sua tia,

243
também debaixo de uma amendoeira enorme. Carla também cita quando tinha quatro, cinco meses, em que está em pé no sofá. Diz
que são da época de infância, suas melhores lembranças com ciran- se lembrar do que aconteceu neste dia. Esclarece que hoje tem a
das, justifica que ela e seus irmãos brincavam na rua e era seguro, às explicação, que são as memórias coletivas, as quais foi ouvindo ao
vezes ficavam sem supervisão de adultos e não tinha perigo. Lembra longo do tempo. Camila diz que registros históricos são importantes.
que quando chovia, era uma delícia brincar no chão de barro. Lembra que teve pouca oportunidade de registro, começou a tirar
No trabalho de reencontrar o passado, por vezes, acessamos fotos a partir de seu aniversário de 15 anos de idade, por condições
apenas fragmentos da memória. No encontro com a poética mu- financeiras mesmo.
sical, Caroline ficou intrigada, pois queria saber onde conheceu as De fato, a memória depende do relacionamento com a família,
cantigas de ciranda que sabe cantar. Acredita terem vindo de seu com a classe social, com a escola e com diferentes instituições. Pelas
tempo de criança na escola, mas ela não se lembra. Disse que essa escrevivências reunidas no encontro com Conceição Evaristo, Eliete
memória se apagou. Bosi (1994) ajuda a entender a expectativa que também se lembrou de um pedaço doloroso da infância, em que
temos de reviver uma experiência na reconstrução de fatos, neste ouvira palavras duras de seu pai e de outras pessoas próximas. Esses
caso de uma experiência infantil. Esperamos as mesmas emoções, atravessamentos ocorridos na família, que podem também aconte-
contudo a primeira leitura de nossas lembranças é frágil, quase cer na escola, na igreja, são marcas na formação dos sujeitos.
como um esboço de um primeiro desenho. Importante considerar que na luta por re-existir a memória não
Em outras circunstâncias, houve uma profusão de lembranças é mera recordação. A re-existência significa construir a vida mesmo
despertadas, de lembranças que inclusive conectam as participan- em condições críticas; assim, a memória também tem o sentido da
tes. Na obra “Parede da memória” de Rosana Paulino, Carla viu existência (ACHINTE, 2017). Mesmo nas dificuldades relacionadas à
fotografias e lembrou-se da experiência com os monóculos azuis de auto-imagem ou à auto-estima, enfrentadas pelas narradoras, a cada
bordinha branca da sua casa, que como se fosse um binóculo, mos- tempo e a cada lugar, elas decidem formas de construir seus sentidos,
trava a foto ampliava. Eliete conta a história de uma fotografia de de reconhecer-se como sujeitos na história, de re-existir no cotidiano.

Figura 51: Memórias de papai. Cartão criado


durante os ateliês. Eliete Marcelino (2021)

244
TERRITÓRIOS

No trabalho de voltar ao passado em busca do que se esque-


ceu, as professoras-narradoras buscaram por palavras vivas. Através
da rememoração, cenários, personagens e detalhes tentam ser de-
senhados para tornar atenta a memória. Nas narrativas, formas de
saber-ser caracterizam espaços, retratam paisagens. Escolas, igre-
jas, universidades, praças, instituições culturais e museus de arte,
deslocamentos por cidades e estados brasileiros.
Cada um desses lugares traz a oportunidade do evento, tornam-
-se espaço, a partir das características que recebem. É neste sentido
que o espaço é entendido como produto e condição da dinâmica
sócio-espacial. Contudo, na geografia, acredita-se que o território
antecede o espaço (SANTOS, 1978), uma vez que o espaço é criado
pelo povo na utilização do território, que é delimitado, construído e
desconstruído por relações de poder.
A ideia de território, que abrange processos de construção e
transformação do espaço geográfico, é ainda ampliada e tensiona-
da pela questão da identidade, como discute Muniz Sodré (1988).
Perceber as dinâmicas sociais na caracterização de territórios ajuda
na interpretação das narrativas. Contribui com a ideia de que expe-
riências estéticas, além de serem influenciadas pelas relações sociais
no espaço, também traçam limites, especificam lugares e criam ca-
racterísticas que dão corpo à ação do sujeito (SODRÉ, 1988).
Entre os espaços percebidos, as participantes têm histórias co-
muns sobre um espaço-lugar que pode ser chamado de território de

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existência: o lugar em que viveram a infância ou a juventude, onde fessoras contam sobre a relação com a espiritualidade e a partici-
iniciaram a relação entre estética e vida. Como a casa da avó ma- pação em espaços religiosos. Hoje, praticante de religião de matriz
terna de Camila que guarda a lembrança de uma foto da avó e do africana, Camila se lembra de ter frequentado uma igreja evangé-
avô na parede; a casa da avó Dindinha, onde Eliete lembra-se de lica na sua infância e adolescência. Já Caroline identifica-se como
ouvir histórias, ou o quintal de sua tia, onde brincavam debaixo de evangélica e pertence à uma congregação batista da cidade de Rio
uma amendoeira. O campo com chão de barro, que tinha o tal pé Bonito. Contudo, ela diz que aprende bastante com os princípios e os
de castanhola com balanço de corda nos galhos, em que Maria Le- valores presentes nas religiões de matriz africana, pois tem relação
tícia brincava; espaços que traziam possibilidades de brincar na rua, com a vida e com práticas comunitárias.
brincar em terra, subir em árvore, como cita Caroline. Espaços que Sabe-se que nesta sociedade o racismo também repercute atra-
afetam os sentidos, emoções e intelecto, impactaram a formação vés de atos de intolerância religiosa, assim não é simples se identifi-
das subjetividades, as quais desejamos que sejam livres e possam car e manifestar-se como praticante de religiões de matriz africana.
expandir-se nas formas de saber, sentir, pensar e ser. Em todos os encontros, Cristina declarou-se atuante em uma casa
A ocupação do primeiro espaço, a casa de família, reúne signifi- de umbanda, explicou por vezes que sua conexão espiritual agrega
cados ligados aos grupos de convívio. Na lembrança de Eliete, há uma muitos elementos das culturas africanas e indígenas. Foi ela quem
fotografia de quando ela tinha cinco meses em que aparece de pé no nos ensinou sobre o espaço da senzala, um assunto que surge nas
sofá e consegue se imaginar na cena, pois o acontecimento retratado conversas com seus alunos da capoeira. Cristina reconta que a sen-
persiste como memória coletiva de seu grupo parental. Aquilo que um zala era o local onde aconteciam as festas e manifestações culturais
foi contando pro outro, foi contando pro outro, e ela foi ouvindo. De negras no tempo da escravidão. Menciona um grande terreiro, um
tanto ouvir, agregou isso à memória. Interessante pensar que desse espaço onde nossos ancestrais podiam desenvolver a sua cultura. E
modo, ao contar as histórias de geração em geração, os tradicionalis- traziam a África viva ali pra esse território, onde tudo acontecia junto.
tas africanos mantêm viva a memória coletiva. Apegados aos valores Sua narrativa me remete aos estudos que apontam:
ligados à família extensa e aos objetos biográficos, são reconhecidos O terreiro (de candomblè) afigura-se como a forma
como guardiões dos segredos das ciências da vida. social negro-brasileira por excelencia, porque além da
diversidade e existencial e cultural que engendra, é um
Da preservação dos valores civilizatórios africanos, chega até lugar originário de força ou potencia social para uma
nós a conexão com o sagrado, que assegura o fortalecimento da etnia que experimenta a cidadania em condições desi-
guais. (SODRÉ, 1988, p. 21)
vida. Assim, alguns territórios recuperados nas lembranças das pro-

246
O que Cristina conta, é sobre formas de ser negro no mundo, na escola. Cristina lembra do trabalho de uma professora a partir da
por onde se há de concordar com Muniz Sodré 29:
a capoeira fez mais obra de Heitor dos Prazeres. Carla diz que na escola dança bastante
para cultura nacional, do que os adidos culturais nas embaixadas com as crianças, assim como Caroline que diz cantar cirandas para
brasileiras. Reconhecer isso é valorizar a capoeira como expressão as crianças. Narrativas docentes apresentam saberes e princípios es-
cultural, esporte, luta, dança, desenvolvida pelos negros africanos truturantes de discursos pedagógicos. Esses relatos validam que o
que foram escravizados em território brasileiro. território escolar pode contribuir efetivamente no alargamento dos
É com esse olhar para alternativas não hegemônicas, entre padrões de referência das crianças e de identidades no diálogo e
ideias e formas culturais afro-brasileiras, que este estudo anuncia a reconhecimento da diversidade étnico-racial.
relevância de considerar outras imagens, gestos e linguagens para A escuta de uma lembrança vivenciada na escola, atraiu a aten-
educar crianças. No território escolar, onde passam grande parte de ção para o espaço relacional construído neste território: as rosas, o
suas infâncias, meninos e meninas constroem imagens de si, mar- jardim e o afeto das pessoas, na narrativa de Maria Letícia, refor-
cados pelas questões racial e de classe. Em função disso, promover çam a importância de outras atitudes para educar as crianças. Ela
possibilidades de interação entre crianças e a diferença torna-se um lembrou-se com saudades do jardim que havia no seu jardim de
dever, que pode estar refletido em seu ambiente físico, nas paredes, infância, das rosas bem vermelhas e da grama que era verdinha,
nos murais, nos brinquedos, nas imagens e cenários deste espaço- das pessoas que a recebiam com prazer em seus ofícios. Envolvida
-lugar. Depende de condições físicas, materiais, intelectuais e afeti- na profundeza deste relato na constituição desta professora, é que
vas, como já sinalizado. E, ainda, de propostas pedagógicas que de reafirmo o princípio da escuta para sustentar o trabalho de ERER na
fato oportunizem vivências éticas e estéticas com outras crianças e Educação infantil. Acredito que para dedicarmos atenção ao outro,
grupos culturais, como postulam as DCNEI (BRASIL, 2009), um im- principalmente à criança negra e aos seus grupos de pertencimento,
portante papel que instituições de educação infantil e escolas ainda é preciso ter em vista a diferença étnica, ocupar-se de práticas de es-
têm a cumprir, mesmo sendo evidente o esforço das professoras. cuta que esboçam ações pedagógicas baseadas em princípios éticos,
Maria Letícia recorda-se da roda musical, onde crianças de- políticos e estéticos.
monstram boa habilidade no uso de alguns instrumentos disponíveis O território da escola revela ainda aspectos da identidade do-
cente. Caroline conta que não imaginava ser professora de crianças
29 Ver mais em “Muniz Sodré relembra a história da capoeira no pequenas, embora soubesse que era importante para sua trajetória
Brasil”: https://tvbrasil.ebc.com.br/estudiomovel/episodio/muniz-sodre-re- profissional, estar na sala de aula. Maria Letícia comenta de suas
lembra-a-historia-da-capoeira-no-brasil

247
parceiras curiosas, professoras que compartilham a docência e
que ficaram animadas com os materiais da caixa. Com elas,
disse partilhar livros e leituras de poesias de autores negros.
A escola é um território formativo, onde ideias e práticas são
ressignificadas à medida que a professora narra, escuta e lê a
narrativa do outro, constituindo esse efeito formador (SOUZA,
2008) que possibilita apreender conhecimentos específicos sobre
as trajetórias individual e coletiva.
Ainda sobre territórios formativos, a UFF, Universidade Fe-
deral Fluminense, foi identificada na maioria dos relatos. Ressal-
to que as primeiras oportunidades de Camila em visitar museus,
espaços de produções culturais e artísticas, deu-se na entrada na
universidade. Eliete também relatou esta oportunidade. A aproxi-
mação de diferentes manifestações culturais, como o maracatu,
o jongo e o coco, também se deu a partir deste território e se
expandiu. Foi o espaço de formação no ensino superior de Eliete,
Camila, Caroline e Maria Letícia, que de forma integrada, pro-
moveu a produção e difusão do conhecimento científico, tecno-
lógico, artístico e cultural.

Figura 52: Composição de monóculos e


fotografias antigas. Eliete Marcelino (2021)

248
FIGURAS DE LIGAÇÃO mesmo instante, somos dependentes deles.” (JOSSO, 2006, p.20).
Assim, busca-se pelas formas culturais apresentadas a partir de elos
Considero que a cultura negra, de modo geral, funda-se biográficos: algumas figuras colocam-nos na vida, em ligação, po-
no reconhecimento da ancestralidade, na ligação que está no dendo ser figuras-referências dos laços de parentescos, quer sejam
passado e no futuro. Finca suas bases numa relação que se in- herdados por nascimento, quer sejam por aliança.
tegra à comunidade e com ela forma um só corpo, tece uma só Na vida de Maria Letícia, duas mulheres: sua avó, que ficou viúva
trama ligada a muitos pontos. Princípios inaugurais imprimem nova, com seis filhos e teve que ir pra roça trabalhar e sustentar os filhos,
sentido e força e integram assim os fundamentos das culturas de e sua mãe, que foi o esteio da casa após a separação. Para Caroline, a
arkhé (SODRÉ, 1988), que nos aproximam de um pensamento mãe, a qual nunca havia visto chorar, até perderem sua tia. Esses par-
filosófico que evoca um sistema de memórias e ancestralidade ticipantes são importantes na reconstrução das histórias de formação
da cultura negra. Neste sentido, busco apontar as ligações entre das professoras-narradoras, uma vez que não há ser humano que não
figuras - pessoas e personalidades relevantes - a partir das lem- seja religado, que não esteja ligado e integrado à criação de ligações
branças e narrativas, que fazem parte das histórias de vida das consigo mesmo e com outros participantes, segundo Josso (2006).
professoras-narradoras. Das avós, surgem muitas lembranças. A voz de Lia logo lembrou
Importante dizer que este estudo teve foco na viagem bio- a voz de dona Neir, avó de Camila, com quem ela sonha até hoje. A
gráfica do sujeito, já que, a partir de suas bases teóricas, o tra- avó Dindinha que está na foto whatsapp com a Eliete, é Sebastiana
balho biográfico considera o processo de conhecimento da exis- Muniz de Oliveira, que era parteira. Maria Letícia conta de sua avó,
tência como uma viagem, permitindo que ao longo do caminho aquela das cartas de Pernambuco. As avós da Carla, que eram irmãs,
diferentes ligações com outros caminhos de outros caminhan- faziam muito fuxico, colcha e tinham um conhecimento ancestral com
tes sejam apontadas (JOSSO, 2002). Percorrendo essas bases, ervas. A tia Zete, uma das irmãs da avó de Caroline, era uma pessoa
em outro estudo da autora Marie-Christine Josso (2006), vemos muito forte e protetora. Vó Joana, a pessoa que fez a Cristina se apai-
apontada a importância da temática da ligação na compreen- xonar por literatura. Nos encontros ateliês-narrativos acontece o fenô-
são de nosso processo de formação e de conhecimento. Diz a meno relatado por Josso (2006), onde os avós ocupam um lugar bem
pesquisadora: “Nós estamos na vida porque existimos mediante particular na quase totalidade dos relatos. A pesquisadora diz ser raro
uma multiplicidade de laços simples ou complexos. Esses laços que uma avó ou um avô não tenham desempenhado um papel de-
são o nosso fundamento e, como tal, eles nos sustentam e, nesse terminante na formação dos narradores de acordo com seus estudos.

249
Os relatos de formação podem apresentar ligações formadoras, deformadoras e transformadoras.
Como no caso das figuras de ligação que aparecem tendo provocado mal em algum momento. Camila
cita mães, tias, avós, aquelas que viveram e nos criaram. Mulheres que desde pequena ouviram: “Você
vai morrer sozinha” e reproduzem esta atitude. Eliete fala de seu pai, que tocava sanfona, viola e can-
tava: “Oh, coisinha, tão bonitinha do pai.” O mesmo pai a magoava com palavras duras. Ele e outras
pessoas de sua família. No limiar dessas relações, entende-se que ao mesmo tempo que a ligação dá
uma sustentação, que prende e mantém uma relativa estabilidade, também pode ficar machucando,
impedindo-nos de encontrarmos a liberdade de movimento.
Pode-se afirmar que não há história sem constituição de ligações entre acontecimentos materiais
e psíquicos de nossas vidas em dimensões individuais e coletivas. Entre as narrativas, aparecem perso-
nalidades negras representadas pelos laços simbólicos, pessoas de referência (anônimas ou midiáticas)
que, por seu engajamento na vida ou sua atitude face às dificuldades da vida, são exemplos que guiam
o narrador durante toda ou parte de sua existência. Entre as figuras públicas, Abdias Nascimento e Hei-
tor dos Prazeres são identificações importantes para Cristina, que falou deles enquanto ela analisava
os postais, bem como Maya Angelou e sua poesia. Noémia de Souza, Conceição Evaristo e Kabengele
Munanga, encorajaram o interesse de Maria Letícia pela literatura africana. Lia de Itamaracá, para Elie-
te, presentifica seu nome, sua origem e história. O artista Mulambo, admirado por Camila, e o legado
e produção do artista Carybé, mencionado por Caroline, também compõem os laços simbólicos que
ajudam a dar forma e adesão a ideias e práticas antirracistas nos percursos das narradoras. Até mesmo
um tipo de paisagem, como a região da Pequena África no Rio de Janeiro, percorrida por Carla, opera
como ligação para afirmar o pertencimento e o reconhecimento de si.

Figura 53: Encontro com a obra “Bombril”.


Fotografia de Eliete Marcelino (2021)

250
VIVÊNCIAS CULTURAIS

Neste ponto, ressalto particularidades reveladas pelas partici-


pantes dos encontros ateliês-narrativos, considerando vivências re-
ais, apresentadas em formas plurais de conceber o mundo. Apre-
sento uma leitura interpretativa das vivências culturais consideradas
pelas professoras como significativas, que podem ter contribuído
para processos de transformação e formação de suas subjetividades
e educação estética.
Entendo por educação, a partir de Paulo Freire (2001), os pro-
cessos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convi-
vência humana, no trabalho, nas instituições de ensino, pesquisa e
extensão, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil
e nas relações criativas entre natureza e cultura. Neste sentido, Cris-
tina conta que aprendeu a jogar depois de adulta e tornou-se mestre
de capoeira. Frequentando rodas de cultura popular, ela reconhe-
ceu ainda a ciranda como manifestação cultural. Ao dançar ciranda,
Eliete aprendeu que quando a gente segue o coração, a intuição, se-
guimos no embalo, de repente já estamos dançando. Danças popu-
lares e circulares atravessaram também a vida estudantil de Camila,

251
que inclusive conheceu pessoas do Grupo de jongo Folha de Amen- nar para as crianças desde pequenas. Ela diz que muitas coisas só
doeira. As experiências narradas contam de processos formativos es- ficou sabendo na vida adulta, e que não tinha nada a ver com o que
téticos ocorridos à margem da educação formal e sistemática, que só estudou na escola. Maria Letícia diz que estudou literatura africa-
puderam ser destacados pois foram considerados importantes para na em uma das disciplinas do curso de literatura, foi assim que ela
a formação profissional docente neste estudo. Tratam-se de conheci- aprendeu mais para a prática antirracista que desenvolve no cotidia-
mentos necessários à prática, no combate a toda manifestação dis- no educativo. Aprendemos, a partir de Paulo Freire (2001), que estar
criminatória, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou no mundo, com o mundo e com os outros, exige de nós uma estética
adultos, como convoca Paulo Freire (2001). e uma ética. A ética de que falo aqui é a que respeita a autonomia e
Ao longo dos encontros ateliês-narrativos pude conhecer par- a dignidade de cada homem e mulher preta, produtores de saberes
te da história de vida e formação das participantes desta pesquisa. e conhecimentos legítimos, estejam no ambiente acadêmico ou nos
Mulheres que se reconhecem enquanto negras, que cresceram em setores culturais de nosso país. Já a estética é capacidade criativa e
cidades do interior, em regiões menos abastadas do estado do Rio expressiva do povo negro, aquela que envolve arte afrodescendente,
de Janeiro, que fazem parte de famílias numerosas e tiveram acesso que expressa nossa memória, cultura, história, religião, para contar
limitado a serviços culturais na infância e juventude. A vida não foi da formação do povo brasileiro. Enquanto seres históricos e culturais
fácil para essas mulheres, que hoje são mães, professoras, profissio- que somos, temos a capacidade de produzir e partilhar conhecimen-
nais e servidoras públicas. Elas viveram suas experiências estéticas tos em rede de relações, fomentando uma ética e estética enegreci-
nas brechas que a vida lhes ofereceu. Já foi dito que a universidade da, a partir da máxima de que arte e cultura negras são importantes
abriu caminhos importantes para a formação cultural. A partir da na formação docente e na educação de crianças.
idade adulta, elas tiveram a oportunidade de vivenciar experiências Sobre o acesso e as vivências nos espaços culturais, Caroline
de fruição com produções artístico-culturais. No cotidiano de suas relatou sobre uma visita feita em 2016 ao Museu Afro-Brasil.
vivências, algumas expressões culturais não-hegemônicas, como a Confessou que tem a sensação de que o Museu Afro- Brasil é para
capoeira e a ciranda, cumpriram essa função. Manifestações cultu- pessoas que já tem uma certa inserção na temática racial. Camila
rais populares, da rua, dos negros, pertencem ao repertório original compara sua visita ao Museu Imperial, da época em que era estudante
das professoras. do ensino médio e recentemente. Hoje, compreende que tem outra
Carla conta que foi buscar em outros espaços, fora da escola, mente. Na visita ao Centro Cultural Banco do Brasil, no centro do
saberes sobre história e cultura africana e afro-brasileira para ensi- Rio de Janeiro, Camila disse ter percebido uma abordagem da

252
história do povo negro em outra perspectiva. Esses relatos
demonstram como museus e espaços culturais são também
espaços de experiência, onde professoras captam outros
sentidos quando mergulham na relação com exposições e
artistas que, entre outros temas e simbolismos, oportunizam
o (re)encontro com histórias que dizem de si e provocam (re)
significados, (re)afirmam pertencimento e identidades .

Figura 54: Boneca Luzia. Eliete Marcelino (2021)

253
OBJETOS BIOGRÁFICOS detalhes como aposta estética, onde um mini-ateliê portátil, que abriga-
va materiais e objetos, atraiu a percepção sensorial das participantes,
Na abertura dos caminhos das lembranças, alguns materiais agregando qualidade em uma experiência sedutora, sensível. A caixa-
vivificam seus rastros. São objetos impregnados de sentidos, que -convite demonstrou capacidade de tornar-se um fértil instrumento para
contam das relações e experiências vividas pelas professoras-narra- o campo da pesquisa (auto)biográfica e da formação docente, capaz
doras e seus apegos a certas coisas e certos objetos. Considero que de convocar pensamento, sentimento, intuição e sensação mobilizados
toda essa relação se faz através da linguagem, reconhecida por Bosi pelas materialidades, suas cores, estampas e texturas.
(1994) como um instrumento socializador da memória. Neste sentido, materiais expressivos e diferentes linguagens
Almofadas, monóculos, ervas e outros objetos biográficos men- foram utilizadas, como meios de potencializar processos de reme-
cionados, ligam a memória da pessoa à memória coletiva. Repre- moração, tendo contribuído com o fluir da expressão, fecundando
sentam a lembrança de avós e de familiares que atravessam sua narrativas de si, como indica Ostetto (2016). No exercício de fazer a
jornada. São objetos que demonstram afeto, apego e saudades. mão para falar de si, as participantes da pesquisa puderam refletir
Demonstram a anima mundi, a alma, que existe em todas as coisas sobre caminhos e repertórios estéticos vividos. Na confecção do pa-
(HILLMAN, 2010). Fazem parte das ancoragens individuais e cole- tuá, Eliete disse que iriam também algumas lágrimas A cor amarela
tivas, que contribuem na formação da identidade pessoal. E, como foi escolhida para o patuá de Camila, cor que remete ao seu orixá
não podemos dissociar, reverberam ainda na formação profissional no Candomblé. Tecido amarelo, linha amarela e uma forma como
docente, compreendendo a dimensão humana do professor, neces- se fosse uma almofada formavam o patuá que guardava o bilhete de
sária para agregar qualidade e alimentar conexões, no desejo de sua avó. Assim, alinharam pontos e deram visibilidades às marcas
significado, de sentido, de maravilhamento. do sensível, mesmo com medo, como confessou Caroline. Cultiva-
Nos encontros ateliês-narrativos materializou-se o desejo de co- vam a beleza, mesmo por janelas virtuais, quando pela mão e pelo
locar em relação o sujeito com as coisas e as coisas entre si, como na corpo, acolheram e se inscreveram na experiência.
proposta da caixa-convite. Uma caixinha com aquele paninho segu-
rando, chamou a atenção de Cristina. Os tecidos de padrão africano
que fizeram Carla recordar-se da luta do povo negro no Brasil e na
África. Os tecidos tão estimados por Maria Letícia lembravam-na de
seu trabalho com as crianças. Esses relatos revelam uma curadoria de

254
255
256
COM A POÉTICA DE
MULHERES-ARTISTAS NEGRAS:
VER E PERCEBER,
VIVER E PENSAR
257
Costurando à mão este texto, chega a hora de fazer para além da visão, admitindo outras compreensões e leituras do
um laço no último ponto. É no arremate final que indico mundo. Ativadas pelas poéticas femininas que falam com a alma:
as contribuições das poéticas negras à formação estética pelas artes visuais de Rosana Paulino, pelas escrevivências de Con-
de professores da educação infantil. Chegou o momen- ceição Evaristo, pelas cirandas de Lia de Itamaracá, e ainda com
to de fazer o acabamento, mesmo após um longo tem- outras que incorporam as culturas negras.
po com as mãos apreciando este tecido, olhos diligentes São elas, que este estudo, aponta como resposta à necessidade
atentos às formas que se sobressaem, corpo vivo atraído ontológica e epistemológica na formação estética de professoras.
por uma espécie de textura. Aceitei o convite à criação Pela capacidade de conectar uma estética/poética, em que criativi-
feito pela pesquisa, estive imersa num estado de aprendi- dade e rigor científico colocam em relação o sujeito com outras for-
zagem e invenção nos últimos anos. Vou sentir saudades mas de pensar-sentir o mundo, desenvolvendo o pensamento cria-
das manhãs em que alinhavei cada uma dessas palavras. tivo na procura por tempos, territórios, figuras de ligação, vivências
Revirando a caixa, aquele ateliê portátil, encontro no culturais e objetos biográficos. Uma estética que expressa um desejo
tecido estampado amarelo um anúncio simbólico de que de significado, de sentido, e que pela opção decolonial, liberta ver-
a beleza que recorda Oxum e sua presença nas águas dadeiras subjetividades através da consciência de ser, de sentir, de
doces é negra! As poéticas em interlocução na pesquisa ter, de pensar. Foi entre referências negra, considerando o corpo e
também são negras. Belezas negras como aquelas que uma combinação de sentidos, que professoras enunciaram a vida,
desfilam na noite do Ylê sim. Belezas negras, que são dedicaram atenção e encontraram um espaço de existência, que
o coração desta tese e evidenciam a poética de mulhe- pode repercurtir na produção de sua re-existência, que como práxis,
res-artistas negras como estratégia de ressignificação da enfrentará as formas de dominação, exploração e discriminação.
vida em condições de dignidade. Pela ocupação e pelo Na relação intensa promovida por esta pesquisa-formação,
protagonismo de mulheres negras em lugares que não também foi notável o alargamento da experiência e conhecimento
foram pensados para nós. Como inspirações, incentiva- das participantes acerca das referências negras localizadas e des-
ram professoras de educação infantil a encontrarem e cobertas. A pesquisa trouxe sugestões das artes, tanto do passado
expressarem seu pensamento através de diferentes lin- quanto contemporâneas. Essas sugestões se concretizaram em no-
guagens. Valorizando o pensamento dos povos iorubás e vos tipos de relação, abarcando o movimento Sankofa - caminhar e
de outras populações africanas que privilegiam sentidos, ao mesmo tempo voltar e buscar intencionalmente algo que está lá

258
atrás. Permitiram olhar a bagagem que levam – saberes, valores e competentes comprometam-se com a Educação das Relações Étnico-
energias, que dão forma à identidade num diálogo com seus contex- -raciais, suprindo condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas
tos. Contudo, se é de acordo com o que professores conhecem que favoráveis para o ensino e para as aprendizagens. Na implemen-
as escolhas pedagógicas são feitas, a pesquisa indica ser necessário tação de ações a favor da ERER, envolvendo a ampla divulgação
empreender mais esforços na ampliação e diversificação das refe- de documentos norteadores, estudos e pesquisas de modo a pro-
rências que compõem negros repertórios docentes. moverem o debate acerca da pauta racial nas instituições escolares
A consulta sobre os hábitos culturais de professoras da cidade públicas e privadas de Educação Infantil. Formação continuada de
de Niterói/RJ permitiu identificar as referências negras que resistem professores da Educação Infantil para o reconhecimento da História
em seus processos formativos e apresentam-se como referências às e Cultura Africana e Afro-Brasileira.
suas escolhas pedagógicas. No quadro coletivo esboçado inicial- Importante considerar que o trabalho pelo fim da desigualdade
mente, há pouca presença de artistas, espaços e/ou manifestações social e racial não é tarefa exclusiva da Educação ou da escola. Con-
culturais que representam as tradições africanas, afro-brasileiras e/ siderando formas de valorização étnica e cultural, os resultados da
ou os cenários socioculturais do negro. O efeito formador da narra- pesquisa indicam possibilidades para implementação de ações em
tiva trouxe conhecimentos específicos sobre as trajetórias individual outros setores, tais como Cultura, Esporte e Lazer, dentre outros de
e coletiva. As participantes mergulharam em experiências conside- iniciativa pública ou privada. Promover a aproximação de instituições
radas marcantes, que envolvem sensações e sentimentos, catalisa- de Educação Infantil, de escolas e de seus profissionais aos espaços
das por um forte sistema simbólico. Anunciaram marcas da relação da cidade, culturais ou de lazer, de modo a valorizar o patrimônio e
ancestral, artística, cultural, africana, popular e negra. Apontaram a produção negra, é uma estratégia válida para que se possa pro-
acontecimentos e personalidades afro-brasileiras influentes, denun- mover vivências de identificação positiva.
ciaram certas ausências no debate acerca do tema e demonstraram Lembrando que a estética se nutre de empatia, da relação in-
suas fragilidades em torno do conhecimento sobre Cultura Africana tensa com as coisas, é oportuno aproximar a população de todas
e Afro-Brasileira. Tudo isso, como quem costura destinos, por ca- as faixas etárias ao caráter plural, vivo e dinâmico do termo cultura
minhos que resistem e re-existem em passagens que acrescentam através de experiências sensíveis da/na Arte e Cultura Negras, inclu-
valores particulares ao pertencimento étnico racial. sive com alusões ao sagrado afro-brasileiro. No território de Niterói,
Espera-se que a educação de Niterói continue a acompanhar com suas várias contradições sociais e as tensões políticas envol-
os movimentos legais da Educação Infantil no país e que os órgãos vendo discursos discriminatórios, torna-se ainda mais importante a

259
promoção dos direitos civis, a emancipação material e a valorização Deste modo, a formação docente contribui para a educação das
do patrimônio cultural a partir de ações afirmativas. relações étnico-raciais (ERER), uma vez que é indispensável promover
No entanto, é a escola que tem papel preponderante na eman- a formação de posturas e valores que respondam à demanda da po-
cipação dos grupos discriminados. Professores e profissionais da pulação afrodescendente. Seja na adoção de estratégias pedagógicas
Educação precisam, a partir de seus processos pedagógicos, supe- de valorização da diversidade étnico-racial ou na promoção de atitude
rar a ideia preconceituosa sobre os demais povos. Principalmente, empática comprometida com a criação de uma identidade e de uma
a noção de que os padrões culturais do continente europeu são su- autoimagem positiva desde a educação infantil. Na perspectiva de
periores. Construir a educação das crianças a partir de referências uma educação estética oferecem qualidade e profundidade às ações
ancestrais negras (e também de todos os segmentos étnico-raciais), afirmativas, aliando uma pedagogia sensível e de linguagens poéticas
considerando sua descendência africana, sua cultura e história, é às iniciativas de reconhecimento das artes e culturas negras.
ato democrático, zela pela igualdade de direitos e a cidadania plena O trabalho com ERER na Educação infantil deve considerar
para todos, e não apenas alguns. E, ainda, nos torna sensíveis ao a escuta sensível e conectada à realidade de crianças e famílias.
sofrimento causado por tantas formas de desqualificação. No cotidiano, ver e olhar as diferenças da criança e de seu grupo,
Nesta agência, torna-se importante engajar-se no desenvolvi- considerando princípios éticos, políticos e estéticos, pode conduzir
mento de novas conexões, de uma consciência negra cotidiana, que o educador para novas situações pedagógicas, envolvendo propos-
está para além do marco de 20 de novembro instituído por lei . Prá-
30
tas lúdicas, participativas e reveladoras de múltiplas linguagens, de
ticas significativas voltadas para a diversidade podem ser geradas, modo a alterar o contexto educativo. Nesta direção, saberes e fa-
a partir de uma forma particular de observação e de documentação zeres oriundos da vida, experimentados na cidade, envolvidos por
dos processos pedagógicos, em que caiba outras formas de pensar referências artístico-culturais não-hegemônicas, estão a favor da ar-
a infância. Pelo aprofundamento do conhecimento acerca das con- ticulação pedagógica comprometida com perspectivas participativas
dições de vida conforme sua origem étnico-racial e pelas reflexões e antirracistas. Pela inclusão de manifestações artísticas, artistas e
sobre a criança negra, considerando as marcas das questões racial espaços culturais que inserem o indivíduo negrodescendente como
e de classe na construção da imagem de si. Por esses meninos e me- profissional das Artes Visuais, Teatro, Dança e Música. Expressões
ninas: é urgente empretecer a Educação Infantil! de negros e negras, apresentados então como sujeitos sensíveis e
poéticos pelas formas individuais e coletivas de sua resistência negra
30 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/ - historicamente tão marginalizada, não canônica da literatura, do
l12519.htm

260
cinema, das artes visuais e da dança, mas que exala a fortuna da cor a dimensão estética foi valorizada em seu desenvolvimento. Como
preta! A pesquisa reitera a tese de que essas múltiplas experiências proposta metodológica de formação: ampliam a experiência com as
com arte e suas linguagens no cotidiano das crianças nas cidades, linguagens artísticas e, quando mediados pelo contato com poéticas
nas creches e escolas, podem desencadear outros gestos, imagens e de artistas negros e negras, intensificam o conhecimento acerca da
linguagens, que devem ser assumidas coletivamente na construção arte e cultura negras, apuram os sentidos de pertencimento étnico-
de pedagogias da diversidade. A poética negra é propulsora da cria- -racial e alargam repertórios estéticos docentes. Acredito que esses
ção de novos pensamentos, inspiradora da educação das crianças efeitos repercutem positivamente na Educação das Relações Étnico-
tendo em vista a construção de uma sociedade justa e equânime. -Raciais na Educação Infantil.
Nessas últimas palavras, que fecham um percurso mas não fin- É aqui, no arremate final, que passo a agulha e prendo este
dam a caminhada, considero que a pesquisa incitou a força da pala- ponto. Não quero que se perca a ideia de que confiar na poética
vra-viva, como na tradição oral africana, pela profusão de narrativas de mulheres-artistas negras, como guia de um processo de pesqui-
autobiográficas. Uniu esse fazer artesanal à ideia de ateliê como sa-formação, reafirmou a experiência estética como processo coti-
lugar que acolhe processos criativos. Ao compartilhar poéticas ne- diano, que ajuda a ver com qualidade e perceber com atenção os
gras, abriu um campo dialógico fértil com as professoras: o espaço sentidos profundos de tornar-se mulher-professora negra, que vive e
para relatos de experiências de vida, provocados pelo encontro com pensa a docência de crianças pequenas mesmo em condições críti-
a arte e os saberes-fazeres de artistas negras, foi importante para cas, com dignidade e confiança.
um fazer/fazer-se libertário. A experiência de estar juntas, como um
aquilombamento, partilhando histórias e memórias, com suas dores
e belezas, transversa ao encontro com a/na Arte e Cultura Negras,
expandiu-se em um campo formativo, a partir da abordagem (auto)
biográfica assumida no desenho teórico-metodológico. Essas ruptu-
ras foram demasiadamente importantes, no que tange à formação
e prática docente na Educação Infantil. Na interlocução com poéti-
cas negras, os encontros-ateliês narrativos foram legitimados como
espaço-tempo de formação, na medida em que convidam partici-
pantes ao reencontro de si, de suas linguagens e expressões. Onde,

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273
ANEXO 1 - QUADRO DE RESULTADOS DA BASE DE DADOS SCIELO (2017-2021) - “CRIANÇAS”;
“EDUCAÇÃO INFANTIL”; “RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS”, A PARTIR DO ÍNDICE “RESUMOS”.

ANO TÍTULO AUTORAS PALAVRAS-CHAVE


O mito da ausência de Circe Mara Marques (UNIARP/ Educação Infantil; Diretrizes Curriculares
2019 preconceito racial na SC) Nacionais para a Educação Infantil; Pre-
educação infantil no Leni Vieira Dornelles (UFRGS) conceito racial
Brasil
2019 Vozes de Crianças Pretas Débora Cristina de Araújo Crianças Pretas; Literatura Infantil; Educa-
em Pesquisas e na Lite- (UFES) ção das Relações Étnico-Raciais
ratura: esperançar é o Lucimar Rosa Dias (UFPR)
verbo
2019 Questões Raciais para Flavia Motta (UFRRJ) Infância;
Crianças: resistência e Claudemir de Paula (UNIR) Raça;
denúncia do não dito Resistência;
Lei 10.639;
Educação Infantil
2018 As relações étnico-raciais Débora Cristina de Araújo Literatura Infantil e Juvenil;
na Literatura Infantil e (UFES) Personagens negras; Teses e dissertações;
Juvenil Escolarização da literatura.

274
ANEXO 2 - TERMO DE COMPROMISSO DA PESQUISA - NEST/FME NITERÓI-RJ

275
ANEXO 3 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO PARA PARTICIPAÇÃO NA PESQUISA

276
277
ANEXO 4 - ÍNDICE DE CENTROS CULTURAIS DESTACADOS Teatro Popular Oscar Niemeyer
NA CONSULTA AOS PROFESSORES DA CIDADE DE É um teatro localizado no Centro de Niterói, no Rio de Janeiro, no
NITERÓI-RJ ATUANTES NA EDUCAÇÃO INFANTIL Brasil. Foi inaugurado no dia 5 de abril de 2007. Recebeu o nome de
seu idealizador em outubro de 2013. (Fonte: wikipedia)

Mantenedora: Prefeitura da Cidade de Niterói- RJ

NITERÓI - RJ Endereço: R. Jorn. Rogério Coelho Neto, s/n - Centro, Niterói - RJ,
24020-011 Localizado em Caminho Niemeyer
Teatro Municipal de Niterói-RJ
Museu de Arte Popular Janete Costa de Niterói-RJ
O Teatro João Caetano, ou Teatro Municipal João Caetano, mais
conhecido como Teatro Municipal de Niterói, foi construído no século O Museu Janete Costa de Arte Popular é um museu sediado num

XIX, e passou por inúmeras reformas e melhorias ao longo dos anos, casarão datado de 1892 no bairro do Ingá, em Niterói, no Rio de Ja-

sendo, em 1995, reinaugurado após restauração. (fonte: wikipedia) neiro, no Brasil. Ocupa uma área total de 1 400 metros quadrados,
incluindo seu anexo. É dedicado à arte popular brasileira. Tem, como
Endereço: Rua Quinze de Novembro, 35 - Centro, Niterói - RJ,
patronesse, a curadora de arte Janete Costa. (Fonte: wikipedia)
24020-125. Telefone: (21) 3628-6908
Mantenedora: Prefeitura da Cidade de Niterói- RJ
Teatro da UFF
Endereço: R. Pres. Domiciano, 178 - Ingá, Niterói - RJ, 24210-271
O Teatro da UFF foi inaugurado em 1982, no lugar em que, 35 anos
Telefone: (21) 3617-7736
antes, funcionava o Cassino Icarahy. Foi devolvido ao público flu-
minense com o objetivo de oferecer o que há de mais expressivo no Museu de Arte Contemporânea (MAC-Niterói-RJ)

teatro brasileiro e na música popular contemporânea. (Fonte: Centro O Museu de Arte Contemporânea de Niterói é um museu de arte
de Artes UFF) contemporânea brasileira localizado na cidade de Niterói, no Rio de

Mantenedora: Universidade Federal Fluminense. Janeiro, no Brasil. Inaugurado em 2 de setembro de 1996, é o atual
símbolo da cidade de Niterói. A forma futurista criada por Niemeyer
Endereço: R. Miguel de Frias, 9 - Icaraí, Niterói - RJ, 24220-008
tornou-se um marco da arquitetura moderna mundial, sendo consi-
derada uma das sete maravilhas do Mundo em museus pela mídia

278
especializada. (Fonte: wikipedia/ NELTUR) Mantenedora: Companhia Ensaio Aberto.

Mantenedora: Prefeitura da Cidade de Niterói- RJ Endereço: Avenida Rodrigues Alves, s/n Armazém 6 - Santo Cristo,

Endereço: Mirante da Boa Viagem, s/nº - Boa Viagem, Niterói - RJ, Rio de Janeiro - RJ, 20220-364 Telefone: (21) 2516-4893

24210-390 Telefone: (21) 2620-2400 Casa do Jongo

Espaço Cultural Correios de Niterói-RJ Há cinquenta anos, o Grupo Cultural Jongo da Serrinha difunde e

O Espaço Cultural foi criado no dia 14 de novembro de 2014, data perpetua o jongo no bairro de Madureira, onde inaugurou recente-

do centenário do Palácio dos Correios. No primeiro pavimento do mente sua nova sede, a Casa do Jongo. O novo Centro de Cultura
tem cerca de dois mil metros quadrados, localizado no pé do Morro
prédio o Espaço Cultural dispõe de duas salas de exposição e uma
da Serrinha, e tem o objetivo de criar uma atmosfera familiar, que
sala para oficinas. No segundo pavimento há mais quatro salas de
preserve a memória do jongo e propague a arte e o desenvolvimento
exposição, a sala histórica e um auditório que possibilita a realização
humano. A casa possui salão para danças, estúdio musical, salas
de eventos de música, humanidades, audiovisual e seminários.
para cursos profissionalizantes, auditório, espaço para exposições
Mantenedora: Correios
permanentes, lojas, cine-clube, escola de artes multi-linguagem,
Endereço: Av. Visconde do Rio Branco, 481 - Centro, Niterói - RJ, ambiente para rezas e terreiro para jongo e capoeira.
24020-005 Telefone: (21) 2503-8550
Endereço: Rua Silas de Oliveira, 101 - Madureira Rio de Janeiro - RJ,
21360-340
RIO DE JANEIRO - RJ:
Telefone: (21) 3457-4176
Armazém da Utopia
Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-Rio)
O Armazém da Utopia é um centro cultural situado no bairro da
É um centro cultural situado no bairro do Centro, na Zona Central
Gamboa, na Zona Central da cidade do Rio de Janeiro. Está instalado
da cidade do Rio de Janeiro. Faz parte de uma rede de espaços
no Armazém 6 do Cais da Gamboa, em frente à Praça Muhammad
culturais, denominada Centro Cultural Banco do Brasil. Oferece ao
Ali. O galpão centenário de 5 mil metros quadrados é um espaço
público carioca uma programação plural, regular, acessível e de
múltiplo e dinâmico que sedia eventos culturais. (Fonte: wikipedia/
qualidade. (fonte: wikipedia/CCBB)
Armazém da utopia)
Mantenedora: Banco do Brasil

279
Endereço: R. Primeiro de Março, 66 - Centro, Rio de Janeiro - RJ, Museu de Arte do Rio, MAR
20010-000
Está localizado na Praça Mauá, em dois prédios de perfis heterogê-
Cidade das Artes Bibi Ferreira neos interligados por uma ponte sob uma bela laje sustentada por

A Cidade das Artes é um complexo cultural localizado na cidade do pilotis. Inaugurado em 1º de março de 2013, promove uma leitura
transversal da história da cidade, seu tecido social, sua vida sim-
Rio de Janeiro, no coração da Barra da Tijuca. Inaugurada em 2013,
bólica, conflitos, contradições, desafios e expectativas sociais. Suas
tem uma das maiores salas de concertos existentes no Brasil. É consi-
exposições unem dimensões históricas e contemporâneas da arte por
derada um dos principais centros de espetáculos musicais do estado
meio de mostras de longa e curta duração, de âmbito local e nacio-
do Rio de Janeiro. (Fonte: wikipedia)
nal. O museu surge também com a missão de inscrever a arte no
Mantenedora: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
ensino público, por meio de sua Escola do Olhar.
Endereço: Av. das Américas, 5300 - Barra da Tijuca, Rio de Janeiro
Mantenedora: parceria dos órgãos públicos da cidade com a inicia-
- RJ, 22793-080
tiva privada.
Telefone: (21) 3325-0102
Endereço: Praça Mauá, 5 - Centro, Rio de Janeiro - RJ, 20081-240
Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN) Telefone: (21) 3031-2741

Foi criado em 13 de maio de 2005, com a missão de pesquisar, estu- MUHCAB - Museu da História e Cultura Afro-Brasileira
dar, investigar e preservar o patrimônio material e imaterial africano
Vizinho ao Cais do Valongo, na Gamboa, o espaço é um dos 15
e afro-brasileiro, cuja conservação e proteção seja de interesse pú-
pontos de memória que compõem a Pequena África, na Região Por-
blico, com ênfase ao sítio histórico e arqueológico do Cemitério dos
tuária, e fica localizado no Centro Cultural José Bonifácio. Em sua
Pretos Novos, sobretudo com a finalidade de valorizar a memória e
visita, será possível conferir algumas das obras do acervo, que guar-
identidade cultural brasileira em Diáspora.
da aproximadamente 2,5 mil itens entre pinturas, esculturas e foto-
Mantenedora: Pelas doações que recebe, pois não tem investimentos grafias, além de trabalhos de artistas plásticos contemporâneos, que
do poder público. dialogam com o espaço. Por ser um museu de território, as edifica-

Endereço: R. Pedro Ernesto, 32-34 - Gamboa, Rio de Janeiro - RJ, ções e os elementos urbanos também são catalogados como acervo

20220-350 Telefones: (21) 2516-7089 / (21) 96465-9983 territorial. (Fonte: MUHCAB)

280
Endereço: R. Pedro Ernesto, 80 - Gamboa, Rio de Janeiro - RJ, 20220- PETRÓPOLIS - RJ
350 Telefone: (21) 2233-7754
Museu Imperial

Quilombo Urbano Cultural Agbara Dudu/Movimento Negro Popularmente conhecido como Palácio Imperial, é um museu históri-

Unificado co-temático localizado no centro histórico da cidade de Petrópolis, no


estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Possui o principal acervo do país re-
O nome Agbara Dudu significa em yorubá “Força negra”. Consi-
lativo ao império brasileiro, em especial o chamado Segundo Reinado,
derado o primeiro bloco afro do Rio de Janeiro, foi fundado em 04
período governado por d. Pedro II. (Fonte: wikipedia/ Museu Imperial)
de Abril de 1982. Tem em sua trajetória 36 anos de existência com
inúmeros trabalhos Afro Culturais e musicais. Endereço: R. da Imperatriz, 220 - Centro, Petrópolis - RJ, 25610-320
Telefone: (24) 2233-0300
Endereço: R. Sérgio de Oliveira, 4 - Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro -
RJ, 21351-200
SÃO PAULO - RJ
Telefone: (21) 99878-9209
Museu Afro-Brasil
Sesc Copacabana
O Museu Afro Brasil é um museu histórico, artístico e etnológico,
O Sesc – Serviço Social do Comércio – é uma entidade privada sem
voltado à pesquisa, conservação e exposição de objetos relaciona-
fins lucrativos com responsabilidade social na sua essência. O Sesc
dos ao universo cultural do negro no Brasil.Localizado no Pavilhão
RJ entende que a Cultura é um importante instrumento de transfor-
Padre Manoel da Nóbrega, dentro do Parque Ibirapuera, o Museu
mação do indivíduo e da sociedade. Oferece atividades como shows,
conserva, em 11 mil m2 um acervo com mais de 8 mil obras, entre
peças, exposições, cinema, ações de Literatura e muito mais. (fonte:
pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, documentos e peças et-
SESC)
nológicas, de autores brasileiros e estrangeiros, produzidos entre o
Mantenedora: Sesc RJ século XVIII e os dias de hoje. (Fonte: wikipedia/ Museu Afro-Brasil)

Endereço: R. Domingos Ferreira, 160 - Copacabana, Rio de Janeiro Mantenedora: Associação Museu Afro Brasil - Organização Social de Cultura.
- RJ, 22050-012 Telefone: (21) 4020-2101
Endereço: Portão 10, Av. Pedro Álvares Cabral, s/n - Vila Mariana,
São Paulo - SP, Telefone: (11) 3320-8900

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