Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
VOLUME 3
Lana Machado
***
Eu tinha parado de fumar há quase dois anos. Não fazia muito tempo,
mas para quem costumava fumar praticamente todos os dias, tentando parar
diversas vezes desde a adolescência, era algo.
Para ser honesto, eu só tinha começado a fumar para testar o limite
do meu pai. Acho que foi com quatorze anos, uma fase fodida de um moleque
que não tinha nada na cabeça. Os meus primos e amigos fumavam, então eu
me juntava a eles e infestava o meu quarto de fumaça. Na casa da piscina, o
velho Ferrero e Angélica entravam e encontravam cinzeiros espalhados, o
que fazia a minha madrasta se enojar com o cheiro e perguntar para o meu
pai por que ele ainda me mantinha naquela casa.
Moleque imbecil da porra...
O problema foi que, até mesmo depois que eu fui embora do Rio para
morar com a minha tia, eu continuei a fumar, principalmente quando eu
ficava puto com alguma coisa, e naquela idade eu ficava puto por qualquer
coisa. A sensação de tragar era boa de um jeito pesado, porque eu sentia a
fumaça pesar o pulmão, mas aí já era um vício. E eu não me importava muito
com as consequências daquilo quando a minha tia me dizia que eu poderia
ficar doente, inclusive, desenvolver uma doença que eu conhecia muito bem
o nome, os sintomas e o tempo de matar.
Mas eu era um imbecil, mesmo que me achasse simples pra caralho.
E daí se o cigarro poderia me mandar para o caixão tão rápido? E daí se eu
ficasse com câncer? Eu já estava familiarizado com a doença, de qualquer
jeito...
Era isso o que acreditava, que o vício já estava tão dentro dos meus
pulmões que fosse impossível de matá-lo. E eu estava bem com essa ideia
até...
Conhecer Sofia Müller.
Quando eu realmente conheci Sofia Müller no fim do Ensino Médio e
logo comecei a namorá-la, porque fiquei louco por aquela garota em questão
de poucas semanas, eu aprendi a amar muitas coisas sobre ela que faziam o
peso no pulmão ser superestimado.
Eu amava o jeito que ela gargalhava como se nunca pudesse parar,
amava os sorrisos safados e puros que ela dava em qualquer horário do dia,
amava a animação que ela ficava quando colocava o visor da câmera
próximo ao olho direito, amava quando ela se empolgava falando sobre
temas polêmicos, amava quando ela ficava molhada tão rápido ou quando
soltava lágrimas se gozasse muito forte...
Havia vários motivos pelos quais eu amei Sofia Müller e, hoje, havia
muito mais.
Mas um dos mais frescos e aquele que me impulsou a parar de fumar
nasceu há um ano. E eu já tinha tentado parar de fumar desde que comecei a
namorar Sofia, porque ela me fazia acreditar no melhor das pessoas e no
melhor de mim mesmo, mas eu não consegui parar até o dia em que ela olhou
para mim, na praia, e disse: eu estou grávida.
Naquela madrugada de ano novo, depois que ela me chupou na nossa
pedra de encontro e depois que eu a beijei por inteira no nosso chalé, a
minha mulher dormiu com a cabeça no meu peito e, quando deslizei as mãos
pelo seu corpo que já estava começando a mudar, eu respirei fundo e senti o
meu corpo mudar de um jeito diferente também: o meu pulmão queria ficar
limpo, leve. Então eu fiquei com medo quando me lembrei do câncer que
tirou a vida da minha mãe e de como eu, com sete anos, fiquei parado diante
do seu túmulo tentando entender a lógica da vida. Pela primeira vez, eu
fiquei realmente com medo de morrer de câncer e com mais medo ainda de
que houvesse uma criança perto do meu túmulo tentando entender por que a
morte chegava de um jeito tão filho da puta.
Eu nunca morreria em paz se deixasse um filho dessa maneira por
causa do cigarro. Além disso, eu queria ser um pai presente e isso só se
tornou mais forte quando a minha filha nasceu: eu queria ensinar todas coisas
para ela, como falar, andar, escrever, viajar, dirigir... Principalmente dirigir,
porque se isso ficasse por conta da minha mulher, Maysa nunca conseguiria
pegar um carro sem riscá-lo pelo menos uma vez por semana. Era eu que iria
ensiná-la a: andar de moto quando tivesse idade e uma moto de verdade ao
invés do seu brinquedo, surfar nas praias do Rio sem ser pega pelos tubarões
(selachofobia, né, Müller?), fazer equações de primeiro e segundo grau e
cruzar estradas não só para Artur Nogueira, Porto Alegre ou Santa Catarina,
mas eu ensinaria Maysa cruzar qualquer estrada que fosse até que ela
estivesse grande o suficiente para fazer isso sozinha.
Eu tinha parado de fumar há quase dois anos e não me arrependia
disso nem um pouco. Para ser honesto, até estava orgulhoso, considerando
que agora Dorta não me chamava mais de chaminé ou me dava bronca como
se eu fosse um moleque imbecil da porra...
Mas... às vezes, quando eu me via em uma situação de pressão, que
as outras pessoas me colocavam por motivos que não faziam a menor porra
de sentido... aí sim eu me lembrava do cigarro e da sensação pesada, o que
me fazia ficar louco para comprar um maço e fumar um atrás do outro, como
eu fazia na janela do meu quarto há sete anos.
Então eu só queria voltar a ser a merda de um moleque com nada na
cabeça, que preferia morrer de câncer a ter que aturar uma intimação da sua
tia e, por tabela, da sua esposa. Eu só queria ser o garoto inconsequente do
Mão de Deus, que fumava na biblioteca, matava as aulas de religião e comia
Sofia Müller a tarde inteira, depois do colégio...
Para ser honesto, era o que eu estava fazendo minutos antes: tentando
ser o cara de dezoito anos que não tinha empecilho algum para foder a
namorada durante a manhã toda. Quando acordei às oito horas, com tapas no
queixo e o tom de voz nada doce sibilando pãe, pãe, eu me dei conta de que
estava longe de ser esse cara; porque, agora o empecilho número um de casa
dormia na cama comigo e com Sofia, eu tinha que me esquecer do pau duro e
me levantar da cama cedo, mesmo que fosse sábado ou domingo, para trocar
fralda e dar papinha.
Porra, ninguém me disse que, além de comprar a camisinha, eu tinha
que usá-la!
Aliás, até os dezoito anos, eu fui um moleque muito responsável
nesse sentido... até viciar em uma boceta tão molhada que não era justo
encapar o meu pau. Então eu comi a minha namorada um dia e, de uma dia
para o outro, as minhas manhãs se tornaram merda e papinha!
Mas eu tinha acordado disposto a acabar com os empecilhos esta
manhã, nem que eu tivesse que cantar MPB antigo, igual a minha mãe fazia
quando eu era criança. Então não acordei Sofia quando Maysa enfiou a mão
na minha cara e a deixei dormir enquanto trocava a roupa da terrorista e
dava café da manhã. Sofia deixava a porra toda pronta para Maysa comer,
então eu a larguei com os pedaços de mamão e alimentei o filho da puta da
Gato, que é um empecilho do diabo quando quer pular na cama. Depois que
a minha filha comeu, eu fui até o quarto e entrei com ela dentro do berço.
Sofia não aprovaria o que eu estava fazendo, com medo de que eu quebrasse
a madeira, mas como era eu quem estava tentando fazer a terrorista dormir,
fiz do meu jeito: me sentei, espremido no berço, e deitei Maysa com a
cabeça na almofada, colocando o tubarão branco do seu lado. Conversei
com ela sobre como a sua mãe era louca por pensar que esse papo
selachofobia fazia do seu medo menos bobo e esperei que ela caísse no sono
para sair do berço. Quando os seus olhos se fecharam, eu xinguei baixo
enquanto tentava deixar a madeira sem balançar, e mandei pra puta que pariu
os planos de fazer mais filhos no futuro. Esses dias estava pensando em ter
mais dois, para encher a porra da casa de uma vez, mas depois das últimas
semanas eu decidi que uma empaca foda dentro de casa era o suficiente. Às
vezes, eu realmente desejo que a minha filha cresça logo, mas nesses
momentos, que comer a minha mulher me faz ter um bom dia de trabalho e
uma boa noite de sono, eu gostaria pra caralho que Maysa fizesse logo uns
quinze anos para se tocar que o pai dela não tem vocação pra passar dias
sem foder. E eu nunca tinha ficado tanto tempo desse jeito... Quando Sofia já
vai fazer trabalho comunitário durante uma semana já é o inferno, mas dessa
vez...
Se não comesse a minha mulher esse sábado, eu teria que comprar
um maço de cigarros. Quase dois anos jogados fora, mas era isso ou a minha
sanidade mental.
Mas, quando voltei ao nosso quarto, depois que Maysa capotou, eu
tirei o último empecilho da manhã do caminho: o meu celular.
Tive certeza de que Deus estava o meu lado, porque Ele também fez
o homem pra foder, mesmo que isso não esteja explícito na Bíblia...
Depois de desligar o aparelho para não receber ligação de ninguém,
inclusive de uma pessoa que eu havia prometido ligar, eu abri as portas da
sacada para deixar o vento fresco da manhã entrar, como ela gostava, e para
conseguir enxergar completamente o corpo estirado na cama, como eu
gostava.
E era uma visão do caralho... Sofia deitava de bruços, respirando
devagar, com os cabelos desgrenhados pintando o travesseiro, a bunda
redonda num shorts de dormir que era covardia colocar perto de um pai que
dormia com a filha no peito...
Puta merda, eu queria fazer tanta coisa com ela essa manhã!
Começar chupando a sua boceta, com ela de quatro pra mim, depois enfiar o
meu pau tão fundo dentro dela até que Sofia gemesse como uma puta safada,
então agarrar os seus cabelos e meter bem devagar na sua boca, vendo-a
engolir tudo e se engasgar quando os seus lábios tremessem ao redor de
mim, depois levá-la para o chuveiro e chupá-la outra vez, então fazê-la
montar no meu pau para que eu a pressionasse contra o ladrilho e deixasse a
sua boceta inchada até que eu tivesse que levá-la para cama, cansada e
feliz...
Porra, como eu queria... Ontem à noite ela só tinha me deixado mais
louco, recebendo-me com aquela lingerie e os olhos de quem queria devorar
e ser devorada. E eu ia devorá-la, com toda fome, impulso e falta que eu
sentia de provar o seu corpo e de fazê-la a minha porra louca, a mulher mais
gostosa que eu já conheci...
Até Maysa começar a chorar, porque, nos últimos dias, era o que ela
fazia com frequência...
Eu tinha sonhado em foder Sofia Müller como fazia há sete anos. Eu
tinha sonhado que, por um momento, não havia empecilhos, e eu estava de
volta ao meu quarto de moleque, na casa da minha tia. Sozinho, eu me via
saindo do banheiro e encontrando Sofia na janela, vendo-a pela primeira vez
no meu quarto, chupando-a pela primeira vez no meu quarto, amando-a pela
primeira vez no meu quarto...
E eu estava prestes a foder a minha namorada que tinha o corpo mais
flexível e gostoso que eu já vi quando a porra do telefone tocou na minha
manhã de foda e acabou com tudo.
Puta que me pariu.
Quando Sofia pegou a merda do telefone para falar com a tia Rose,
eu soube que o meu sábado tinha ido pra puta que pariu. Eu soube, porque eu
também sabia por que a minha tia queria falar com a minha mulher, e era
pelo motivo que eu prometi retornar a ligação dela ontem à noite, mesmo que
eu estivesse longe de retornar.
Mas nem fodendo, nem fodendo Sofia Müller na cama, no banheiro,
na sacada e na mesa de centro onde a gente quase fodeu ontem, eu iria para o
hospital fazer oração para o Elias. Nem pela boceta de Sofia enrolada numa
lingerie de cobra.
Por isso, no momento que ela perguntou a minha tia quem era o
colega internado, eu me levantei da cama e pensei no maço de cigarro.
Pensei em deixar o quarto antes que ela saísse do telefone, para ir ao
mercado da esquina e comprar a porra do cigarro e voltar a ser a chaminé
que eu era antes.
Mais um dia sem foder, caralho. E dessa vez o empaca foda é
desgraçado que estreou o cargo nas nossas vidas.
Eu não era mais o moleque que fumava nas estantes na biblioteca e
que matava aula de religião, mas eu ainda era o homem que acreditava em
respeito, porque foi isso que a minha mãe me ensinou quando visitamos uma
igreja de beira de estrada. Ela me levou até a sacada, me mostrou a cruz do
pilar e me disse que Jesus Cristo era um bom exemplo a se seguir, porque
ele respeitava todas as pessoas.
Eu tinha tatuado uma cruz em mim, porque o símbolo me lembrava
dela, mas eu também tatuei porque, no fundo, ela me convenceu de que a
imagem de Cristo era uma esperança válida. Em um mundo fodido, era bom
acreditar em algo, então o cara da cruz me parecia um bom caminho.
Na minha primeira aula de religião, no Colégio Mão de Deus, eu
tentei olhar a disciplina por esse lado: vamos ver se o cristianismo
consegue convencer que o mundo tem solução. Eu me sentei, fiquei quieto e
vi enquanto um homem cruzava o terceiro ano para subir no tablado. Eu o
respeitei, eu realmente respeitei. Escutei-o falar sobre a história da
campanha decidi esperar, escutei-o falar sobre a importância das normas
religiosas no colégio e fora dele e escutei-o orar, no fim da aula. Eu não
concordei com muita coisa, mas respeitei, porque era isso que a minha mãe
me ensinava e, quando eu descumpria isso, ela me botava em um galho de
árvore bem alta e me fazia ver por outro ângulo.
Quando a aula terminou, o professor de religião voltou a cruzar o
terceiro ano, mas antes que ele saísse, ao passar por mim, o homem de Deus
me chamou para fora da sala.
Eu fui, sem ter a mínima noção do que ele queria, eu o segui. No
momento que o professor fechou a porta da sala, no corredor, ele se
aproximou de mim e me cheirou. Não de um jeito sutil, ele se aproximou da
minha jaqueta e me cheirou como se eu fosse a porra de um animal para ser
abatido, então ele me olhou de disse:
― Eu te vi fumando na entrada hoje cedo, por isso já vou avisar
nesse primeiro dia: não aceito esse cheiro no colégio, muito menos na minha
aula ― Elias exigiu, reprovando com a cabeça. ― Pessoas boas morrem de
câncer sem botar um cigarro na boca, sabia, garoto? Isso é uma desonra à
vida que Deus te deu.
Por pouco tempo, depois que escutei aquilo saindo da boca do
pastor, eu não pude acreditar no que estava ouvindo. Primeiro porque ele me
exigiu algo sem ao menos saber o meu nome, segundo porque a única pessoa
que podia vir falar comigo sobre câncer sem que eu mandasse à merda era a
minha tia.
Eu sabia que pessoas boas morriam de câncer sem botar um cigarro
na boca. Eu tinha visto uma delas morrer.
Como fiquei muito impressionado com a tirania do cara, acabei
dizendo:
― Eu não estava fumando dentro do colégio.
― Isso não quer dizer que você deva fumar fora... Como é seu nome?
― Téo.
― Ferrero?
― Ferrero.
Tia Rose era a dona da escola depois que o seu marido faleceu e
todos sabiam que o seu sobrinho estava no primeiro ano do Ensino Médio
naquele ano. Elias fez um gesto com as sobrancelhas.
― Pare de fumar, garoto. Isso não faz bem pra você nem para os seus
colegas que podem sentir o cheiro em você ― ele voltou a dizer e antes que
eu pudesse retornar à sala, ele exigiu novamente, mas dessa vez queria eu
entregasse o meu maço de cigarro e trocasse a jaqueta, que cheirava à
câncer de pulmão.
Uma vez eu deixei passar, mas na segunda todo o respeito que eu
tinha oferecido durante a sua aula se foi. Eu não tinha ideia se ele sabia algo
mais além do meu nome ou meu parentesco com a dona do colégio, mas não
queria que Elias soubesse nada mais que: eu era um fumante e, certo ou não,
ele não era ninguém para me exigir que eu não fosse.
Então, quando eu ergui o maço de cigarro e ele fez menção a pegar,
ao invés de entregar, eu peguei um, botei na boca e acendi no corredor da
colégio:
― Então eu vou morrer de câncer... E você vai assistir isso toda a
semana na sua pregação.
Essa foi a primeira vez que eu fui acompanhado de Elias para a sala
do diretor. O homem de Deus era um imbecil, mas eu também sabia ser um,
então eu era. Ele não foi com a minha cara no primeiro dia e, a partir dessa
conversa, eu fiz questão para que nunca fosse: questionava os ensinamentos
que Elias dava nas suas aulas de religião, fumava na biblioteca justo antes
de ir para a capela e matava a sua aula para foder as alunas nos cantos do
colégio, o que provava que não era só eu que não concordava muito com a
campanha de virgindade...
Eu testava os limites do cara e, para ser honesto, exagerava de vez
em quando. Mas eu ficava puto quando eu o via subir no tablado da capela
para falar sobre Jesus Cristo. Ficava puto porque ele, que era pastor e
autoridade no assunto, só conseguia pregar o amor do homem da cruz, mas
não praticá-lo. Por mais que religião fosse um ato de fé, a coisa parecia ter
subido à sua cabeça, o que fazia de Elias só um imbecil que queria exigir. E
eu não conseguia entender isso, porque a pessoa que me apresentou a
imagem de Cristo não era assim. A minha mãe nunca tratou alguém com
tirania, nem era pastora ou cristã propriamente dita... Então por que Elias
tinha que tornar a religião uma merda de julgamento?
Depois que eu me formei no Ensino Médio, eu nunca mais vi o
homem de novo. Com o tempo, fui me esquecendo dele e as únicas vezes que
lembrava era quando fazia uma piada perto de Sofia e dos nossos amigos
que também foram alvo do pastor. Fora isso, eu mal me recordava da raiva
que sentia dele nos tempos de escola e, hoje, eu era totalmente indiferente à
memória de Elias.
Por isso eu estava longe de sair da minha casa num sábado de manhã
para ir até a porra de um hospital orar por ele. Não desejava que Elias
morresse nessa cirurgia do estômago nem achava que isso era punição
divina, mas eu não tinha motivos para me reencontrar com o pastor, também.
Tia Rose tinha dito ontem que ele tinha sessenta por cento de chances de sair
bem da cirurgia e que várias pessoas estavam visitando e orando para o
homem... Quê porra eu faria lá, então? Aliás, quem disse que ele me queria
por lá? Era capaz do homem me expulsar da sala, mesmo que eu não
cheirasse à cigarro mais.
Bom, pelo menos não ainda.
Olhei rapidamente para Sofia conversando com a minha tia e me
troquei logo para sair de casa e ir ao mercado. Ela franziu o cenho enquanto
eu botava a camisa, mas concordava com tudo o que escutava na ligação.
Pode esquecer, Müller. Nem fodendo, linda.
Por mais que Sofia não tivesse boas lembranças de Elias também,
uma vez que o homem a comparou com Maria Madalena, eu sabia que ela
acabaria cedendo à minha tia. Primeiro porque a minha mulher tinha um
sério problema em dizer não para os outros, principalmente para família e
amigos (só Deus sabe quanto eu já não me fodi por causa disso), segundo
porque ela se solidarizava com qualquer um, mesmo que a pessoa seja Elias.
O cara estava com um pé no caixão, e Sofia devia estar levando isso em
conta, enquanto olhava para mim no meio do quarto.
Nem fodendo.
Depois que terminei de me trocar, peguei a carteira do criado e
passei por ela, para deixar o quarto. Porém, quando eu entrei no corredor,
Sofia desligou o telefone e veio logo atrás de mim:
― Onde você está indo?!
Eu não olhei para trás, porque sabia que ela estava puta, prestes a
libertar a porra louca que eu não queria escutar. Eu tinha mentido para a
minha mulher, afinal, mesmo que eu tenha dito por anos que nunca mentia
para ela...
Mas eu não queria que Sofia soubesse que a minha tia havia ligado e
pedido para visitarmos Elias. Não queria porque eu a conhecia: Sofia era
muito melhor que eu. Ela era como o cara da cruz.
― Sair ― eu respondi, continuando a atravessar o corredor.
Quando nos aproximamos do quarto de Maysa, antes que eu pudesse
entrar dar um beijo nela antes de sair, Müller entrou na minha frente. Ela me
parou com os seus braços e me olhou com uma expressão irritada.
E lá vamos nós...
― Você vai sair ao invés de me dizer por que mentiu pra mim? ―
ela perguntou.
Respirei fundo, abaixando a cabeça.
Eu não acredito que, além de não comer a minha mulher hoje, eu
vou brigar com ela. Caralho...
― Você sabe a resposta ― eu respondi, tentando me conter.
― Não sei, não, Téo. Não passa nem pela minha cabeça por que
você fez tão pouco do pedido da sua tia.
― Isso não é sobre a minha tia, você sabe, caralho.
Encarei Sofia, com os lábios apreensivos e a respiração pesada.
Eu não queria entrar em pé de guerra com ela, porque, por mais que
Sofia seja solidária à dor alheia, quando se trata de mim, a minha mulher não
tem problema algum em me tirar a paciência e me fazer discutir algo que não
faz sentido. Então ela rebate tudo o que eu digo, eu rebato tudo o que ela diz,
e nem sempre uma briga acaba em foda, para compensar alguma coisa.
Considerando que a nossa filha não deixa a gente trepar há dias, não
seria diferente agora.
― Já passou anos, Téo ― Sofia falou, relaxando um pouco a postura
e piscando lentamente. ― Eu não acredito que você ainda guarde rancor do
Elias desse jeito.
― Eu não guardo rancor, Sofia ― eu respondi, dando um passo para
trás enquanto a olhava: ― Você acha que eu tenho tempo pra guardar rancor,
por acaso?! Com você e com a Maysa, você acha que eu fico pensando
naquele pastor?
Sofia cruzou os braços, olhando-me apreensiva.
― Por que a gente não pode ver o Elias, então? ― ela perguntou
baixo, fazendo um tipo de olhar doce e compreensivo que me fazia perguntar
se ela era mesmo humana ou algo bem melhor que isso.
Nem fodendo. Nem fodendo.
Passei a língua nos lábios secos, sentindo a vontade de fumar
aumentar. Eu sabia que, enquanto a gente não discutisse logo e eu não
deixasse claro que não sairia de casa para vê-lo, ela continuaria me
impedindo de tragar e cheirar à cigarro, como nos velhos tempos. Então
decidi argumentar:
― Por que a gente deveria ir, hã? ― perguntei, fazendo um gesto
com as mãos. Aproximei-me dela de novo. ― A última vez que nós dois
ficamos em um lugar fechado com esse cara foi em um chalé, quando ele
olhou pra você e disse que o que você estava fazendo comigo era
prostituição ― eu falei para ela, fazendo com que Sofia se calasse e olhasse
para o quarto de Maysa ao invés de me olhar de volta. Percebendo que eu
tinha conseguido zerá-la, continuei: ― Sabe o que esse cara me disse uma
vez, Müller? Que se eu continuasse tendo relações sexuais antes do
casamento, a minha família seria amaldiçoada. Ele disse que isso traria
maldição na vida dos meus filhos no futuro, como consequência do meu
pecado... ― eu contei, fechando os olhos no seu rosto que parecia
incomodado com o que eu estava dizendo, como eu também estava. ― Então
por que a gente deveria ir orar por um cara que acredita que a nossa família
e a nossa filha é amaldiçoada pelo nosso pecado, hã?
Sofia permaneceu com os olhos distantes dos meus, os braços
cruzados e o cenho franzido. Ela parecia estar pensando em algo específico
antes de voltar a me olhar e levar o assunto para outro rumo:
― A sua tia disse que vai ser bom pra ele, se a gente for.
― Como vai ser bom pra ele?
― Porque ele vai passar por uma cirurgia sozinho, mas não precisa
de sentir assim...
Novamente, ela fez um olhar compreensivo na minha direção, o que
me fez abaixar o cenho para passar a mão no rosto.
Nem fodendo.
― Não continua com isso, Sofia ― eu pedi, estressado,
distanciando-me dela de novo. Gesticulei a cabeça. ― Eu não quero saber
do Elias, não vou pra nenhum caralho de hospital agora e não adianta você
encher o meu saco por causa disso.
Sofia estava prestes a continuar com o seu discurso, olhando-me com
os seus olhos tão grandes quanto lindos, quando abriu a boca, surpresa com a
minha resposta. Ao invés de se distanciar como eu fiz, ela se aproximou de
mim, e eu pude ver a tonalidade castanha alcançar um tom avermelhado,
como o sentimento inflamado que ela estava prestes a soltar agora:
― Além da sua tia, agora eu estou enchendo a porra do seu saco? ―
ela perguntou, colocando as mãos nos quadris. Não sai da sua frente, fiquei
esperando que Sofia terminasse com uma bomba que ela sempre jogava: ―
Será que você não precisa crescer e se dar conta de que você superestima
muito o seu saco, Téo?
Senti o sangue subir para o meu rosto, ficando com um tipo de
vergonha inusitada de repente. Mas não desviei dos seus olhos, que me
encaravam como se ela estivesse pronta para rebater muito mais que do que
lançasse ainda.
Você quer mesmo entrar numa porra de discussão por causa desse
filho da puta, não quer, Müller? Ótimo!
― Se eu superestimo o meu saco, você superestima muito a sua
conduta, linda ― eu falei, provocando-a. Sofia fechou os olhos em mim, mas
eu continuei: ― Se você quer bancar a boa aluna pra esse pastor agora,
depois de ter mandado o cara se foder várias vezes por ser um otário, o
problema é seu. Não faça da sua hipocrisia, a minha.
Ela abriu a boca mais uma vez, gesticulando a cabeça como se o que
eu pensasse fosse pura impuridade. Sofia deu um passo para trás e, mais uma
vez, olhou para o quarto de Maysa. Ela pareceu meio perdida por um
instante, mas se virou para mim:
― Eu não quero parecer boa, Téo. Nem vou negar que eu já chamei
Elias de babaca várias vezes e que também não concordava com muita coisa
do que ele dizia ― ela falou, com os olhos presos nos meus. ― Mas a Rose
disse que ele pode morrer e me implorou não só pra eu ir, mas pra te
convencer também. Se você não quer fazer isso por ele, pelo menos faça
porque a sua tia pediu. Hipócrita vai ser você, se dar as costas pra ela
depois de tudo o que ela fez por você nessa vida.
Foi a minha vez de tirar os olhos dela.
Eu não podia dizer que ela estava errada, porque não estava. A
minha tia tinha sido praticamente a minha única família de sangue depois que
a minha mãe morreu. Quando me misturei à família Ferrero, a única pessoa
com quem conseguia interagir era com ela. A minha madrasta não gostava de
mim, os meus tios e primos tinham receio do bastardo no começo e meu pai
não conseguia se entender comigo. Tia Rose era a única com quem eu
conversava naquele período, não sei por quê, nunca tive receio algum em me
aproximar dela, diferente das outras pessoas da família...
Eu só... Não fazia sentido pedir o que ela estava pedindo. Não era
um puta favor, porque eu só teria que fazer de uma roda de oração, mas...
Que diferença eu faria lá? O que me bom poderia vir de mim, que
mal tinha contato com o cara por sete anos?
― A gente nem é cristão, Sofia ― eu falei para ela.
Sofia tombou um pouco a cabeça e fez um gesto sutil com os ombros.
― A gente se casou na igreja, batizou a Maysa, e você tem um cruz
tatuada no seu peito...
― Essas coisas tem um significado diferente pra gente.
― É uma oração com Elias, Téo ― ela falou, com o tom de voz mais
baixo que me fez perceber que ela realmente estava implorando, como a
minha tia pediu. ― Por que você não pode fazer isso pelo mesmo
significado?
Sofia se aproximou de mim, colocando as mãos no meu peito para
subir até os olhos. O seu toque me amolecia pra caralho, porque Sofia por
inteira era a minha esperança para humanidade e para mim mesmo, mas...
Talvez eu guardasse rancor de Elias. Talvez eu não desejasse que ele
morresse, mas não me importasse se morresse também...
― Porque não vai ser verdadeiro ― eu respondi para ela, olhando
para a parede do quarto de Maysa ao invés de olhá-la. Porém, no instante
que bati os olhos no seu, reconheci a sua surpresa: ela estava desapontada.
Completamente desapontada. Até tentei levantar o seu rosto, mas os seus
olhos se perderam dos meus, o que fez o meu peito se apertar. Eu aguento
brigar com você, linda, mas não me distanciar assim. Engoli em seco,
ficando mais nervoso por perder a minha manhã com ela dessa forma. Não é
possível que esse Elias vai empacar até o meu casamento, caralho. ― Eu
não quero voltar pro hospital com a Maysa ― eu falei para ela, tentando
convencê-la de que seria melhor deixar essa ideia de hospital de lado. ―
Você disse ontem que passou odiar hospitais, Sofia... Ela tá aqui agora, com
a gente, amor. ― Envolvi o seu rosto e beijei a sua bochecha. Sofia não se
distanciou, mas não correspondeu quando toquei os seus lábios. ― Deixa a
terrorista dormir na cama dela, não tira ela daqui mais... Deixa eu te levar
pra cama, terminar o que a gente começou antes ― foi a minha vez de
implorar. Passei a mão por baixo dos seus fios de cabelo, o que fez Sofia se
arrepiar um pouco, então aproveitei para encostá-la à parede do corredor e
beijar o seu pescoço exposto. ― Eu sinto a sua falta, linda... Deixe eu te
amar, hum? ― eu sussurrei, afundando a boca na clavícula.
Sofia gemeu baixinho, o que fez tudo, absolutamente tudo acordar
dentro de mim.
Esse era o sábado de manhã que eu queria: eu e ela. Eu e a mulher
que eu desejei com toda a minha alma desde a primeira noite que eu a
provei. Eu e a garota da minha excursão... Só eu e ela...
Mas não existia só eu e ela mais em um sábado de manhã.
Antes que eu pudesse remover qualquer tecido do seu corpo, um
choro baixo ecoou do quarto de Maysa, mas nós dois ouvimos no mesmo
instante: ela está chorando... Por que ela está chorando tanto
ultimamente?
Mordi o lábio, emputecido, porque eu queria comer a minha mulher
e, ao mesmo tempo, queria saber o que caralhos estava acontecendo com a
minha filha, porque tinha algo errado com a minha Maysa e eu não precisava
escutar o seu choro para saber disso...
E se ela ainda estiver doente, porra... E se a inflamação estiver
voltando...
Porra.
― Se você quiser ficar com ela em casa, tudo bem ― Sofia falou no
momento seguinte, tocando o meu peito para me distanciar dela.
Porra.
― Linda... ― Eu gesticulei a cabeça.
― Eu também não sou religiosa, Téo ― ela me cortou antes que eu
pudesse continuar. Enxerguei os seus olhos brilharem, mas Sofia não chorou.
― Eu não sei se existe só um Deus, não sei se é Jesus Cristo, não sei se
existem santos, exus, ou qualquer outra divindade religiosa... Eu não sei ―
ela disse, fazendo um gesto com os ombros. Em seguida, Sofia eu um passo
para o lado e olhou para o quarto de Maysa. Fiz o mesmo e, quando a nossa
filha nos enxergou na porta, ela parou de chorar, mas bateu as mãos no berço
um pouco nervosa, perdida... ― Mas eu orei por ela ― Sofia contou,
virando-se para mim novamente. Ficamos muito próximos um do outro, e eu
queria calá-la, porque não queria falar sobre aquela semana, mas ela
continuou: ― Eu não pedi pra nenhum Deus específico, só que... ― Uma
lágrima caiu, fazendo Sofia abaixar o rosto. ― Eu pedi pra qualquer força
tirar Maysa do hospital, porque eu não podia fazer nada. E se eu não tivesse
me apoiado nessas orações, eu ficaria mais frustrada por ser incapaz de
fazer a minha própria filha se sentir melhor...
Senti o meu peito pesar, o meu pulmão pesar, e dessa vez não foi o
tipo de peso que eu esperava me encher. Eu entendia o que ela estava
falando, entendia o que era ver a coisa mais perfeita que eu tinha feito nessa
vida perder um pouco de vida em um quarto de hospital.
Eu pensava que poderia ir para o inferno só quando morresse, mas eu
estava enganado: eu fui torturado nele quando Maysa ficou internada. Mesmo
que fosse algo recorrente, mesmo que não houvesse muito risco, a minha
filha de um ano não tinha que passar por isso... Ela era pequena pra caralho,
se tivesse que ter feito cirurgia, puta merda... Puta merda.
― Ela tá aqui agora ― eu falei para Sofia, para nos consolar.
― Eu sei ― Sofia respondeu, gesticulando a cabeça. Mas, em
seguida, ela falou: ― E se for pelas orações que ela está aqui, é o meu
milagre. Mesmo sendo pequeno ― disse, limpando a lágrima que escapou
rapidamente. Então Sofia levantou bem o cenho e me olhou, firme: ― Se tem
alguma chance de ser o Deus do Elias que fez isso, eu vou orar pra ele de
novo, Téo. Não me importa o que Elias é. Nem a nossa filha, nem ele
merecem ficar em um quarto de hospital.
Antes que eu pudesse respondê-la, Sofia saiu da minha frente e
voltou para o nosso quarto, provavelmente para tomar banho e se trocar para
ver o pastor. Com certeza eu poderia dizer ou fazer qualquer coisa: a minha
mulher não deixaria as suas crenças para trás.
Fiquei parado à porta do quarto, mas acabei entrando quando Maysa
me estendeu os braços do berço para que eu a pegasse. Aproximei-me de
onde tinha escapado mais cedo, desejando que a minha empaca foda não
acordasse pelas próximas horas...
― A gente tinha feito um trato, não tinha, terrorista? ― eu perguntei
para ela, agarrando-a para pegá-la no colo. Quando a juntei ao meu peito,
olhei para ela, para o seu rosto levemente vermelho e os olhos um pouco
molhados, como Sofia ficou minutos antes. ― Você quer ficar sozinha com o
pai, esse sábado?
Maysa fez uma careta que me fez aproximar a mão na sua testa, para
ver se ela estava com febre. Em seguida, tentei enxergar como estava a sua
garganta, se estava tão vermelha quanto aqueles dias, mas ela não me
deixava ver direito...
Eu estava com medo, porra. Eu estava com um medo do caralho
daquela semana se repetir, e eu ter levá-la ao hospital de novo, para ficar lá.
Então aquele bando de médicos iam sugerir cortá-la de novo e talvez ela
ficasse mais assustada do que já estava...
Não. Nem fodendo.
Coloquei-a no berço de novo e me apoiei na madeira, olhando para
ela. Maysa se sentou e agarrou o tubarão por um instante, mas logo o largou
quando Sofia passou pelo corredor, o que a fez agarrar as grades para se
levantar e olhá-la.
― O quê? ― eu perguntei, chamando a atenção dela. Maysa me
olhou, com os olhos pequenos e as bochechas coradas. ― Você quer a sua
mãe?
Entendo o que eu tinha dito, ela apontou para a porta e sibilou: mã,
mã, mãe...
... se for pelas orações que ela está aqui, é o meu milagre. Mesmo
sendo pequeno.
Coloquei a mão no peito, onde a tatuagem de cruz ficava. Lembrei-
me da sensação da agulha traçando o desenho, assim como me lembrei da
minha mãe naquela sacada de igreja: o seu rosto estava um pouco borrada
pela lembrança precária, mas a sua voz era nítida.
― Jesus Cristo foi um bom homem, Téo. Com um coração grande,
que respeitava e amava os outros, apesar das suas escolhas...
Eu me imaginava dizendo algo parecido para Maysa quando ela fosse
maior, mas, ao invés de falar de Cristo, eu diria: a sua mãe é uma mulher
boa, Maysa. Com um coração grande, que respeita e ama os outros, mesmo
que os outros sejam um bando de babacas...
A vontade de fumar se aproximou novamente, mas, ao invés de sair
de casa antes que Sofia saísse, eu peguei Maysa no colo para trocá-la e levá-
la ao hospital com a gente.
Você quer orar, Müller, eu te assistir orar. Porque você não é Jesus
Cristo, mas é a minha mulher da cruz.
CAPÍTULO 3
TÉO
***
TÉO
FIM