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Análise do soneto "O palácio da Ventura"

            Este soneto inclui-se na segunda série da coleção biográfica, segundo a perspetiva de


Oliveira Martins, e no terceiro ciclo correspondente ao do Sentimento Pessimista, de acordo com a
divisão feita por António Sérgio.

            Antero que Quental foi um verdadeiro apóstolo social, solidário e defensor da justiça, da
fraternidade e da liberdade. Mas as preocupações nunca o deixaram desde que entrou nos meios
universitários de Coimbra e se tornou líder da Geração de 70 que, em Lisboa, continuou a sua luta.
            As dúvidas e a verificação de que o seu apostolado não estava a conseguir os objetivos que
desejava, aliado ao agravamento da sua doença, conduziram Antero de Quental a sentir-se
dececionado, mergulhando num estado de pessimismo. Quem se empenha como ele, de forma
apaixonada, numa campanha para alerta mentalidades e não sente a promoção do espírito da
sociedade moderna, fica frustrado.
            Neste poema, os momentos de dúvida e de incerteza, ou melhor, de esperança e de
desesperança, estão bem demarcados.

            “O Palácio da Ventura”, título metafórico, é uma súmula do pensamento anteriano que tem
subjacente duas facetas bem demarcadas:
– Uma combativa, de origem intelectual, ou seja, as suas aspirações enquanto pensador;
– Outra negativa, de origem emocional e temperamental.
            Na verdade, este poema (assim como toda a sua obra) deixa transparecer uma nítida
dicotomia que consiste na oposição constante entre luz e sombra, sonho e realidade, esperança e
desilusão, reflexo do próprio carácter do poeta e que constitui, per si, o drama do homem e do
pensador.

. Assunto: a busca da felicidade (palácio encantado”) e o encontro da desilusão.

. Tema: a oposição sonho / realidade ® desilusão ® pessimismo.

. Estrutura interna – tragédia em 4 atos


HIPÓTESE A
. 1.º momento (1.ª quadra) ® O entusiasmo do primeiro arranco, em busca da felicidade (o
palácio encantado da Ventura).
. 2.º momento (vv. 5-6) ® O desalento, o cansaço e a desilusão provocados pelo insucesso
da procura.
. 3.º momento (vv. 7-12) ® O renascimento da esperança: a ilusão momentânea, a nova
esperança e o grito de ansiedade.
            A expressão “E eis”, com valor adversativo, permite o retomar da ilusão e da busca iniciais.
. 4.º momento (vv. 13-14) ® A dor e a deceção finais (de certa forma já antecipadas no 2.º
momento):
“Mas dentro encontro só, cheio de dor
Silêncio e escuridão - E nada mais!”
                                                                       ¯
           abismo entre a realidade e a idealidade  pessimismo (estado de espírito do sujeito)
A adversativa “mas” confirma o segundo momento, ou seja, o da desilusão.
HIPÓTESE B
. 1.ª parte (vv. 1-6) – O sujeito poético busca a felicidade (o palácio encantado), mas é tomado
pelo cansaço e pela desilusão (vv. 5-6).
. 2.ª parte (vv. 7-12) – A ilusão momentânea do sujeito poético, que o leva ao grito de
ansiedade: “Abri-vos, portas d’Ouro, ante meus ais!” (v. 12).
. 3.ª parte (vv. 13-14) – A desilusão final, mais forte e dorida.

. Comentário global do poema

            O poema inicia-se com o verbo sonhar no presente do indicativo, na primeira pessoa do


singular, o que significa que o texto parte de uma realidade onírica, ideal. Não é verdade que o
sonho é uma “constante da vida”, “Que sempre que o homem sonha / O mundo pula e
avança” (António Gedeão, Pedra Filosofal)? O sujeito poético sonha. O quê? Sonha-se/idealiza-se
um cavaleiro andante que, incansavelmente, busca o “palácio da ventura”. A sua convicção é
reforçada pela repetição do fonema sibilante /s/, que confere vigor e força à afirmação. O que é
um cavaleiro andante? Em que época existiram? Hoje não há, hoje há automóveis, barcos, aviões,
naves espaciais... Na Idade Média, eram frequentes as aventuras desses cavaleiros. É, pois, a
aventura, sinónimo de sonho, que está aqui presente. Por outro lado, a caracterização do cavaleiro
como andante remete para um espaço a percorrer, num determinado momento temporal. Que
espaço?
            “Por desertos, por sóis, por noite escura”. A aliteração da consoante /p/, pela implosão do
ar e ruído que provoca, sugere o som do trotar do cavalo. Se o texto fosse simbolista, poderíamos
mesmo tirar partido da configuração desta consoante para a sugestão da configuração física da
pata do cavalo. O espaço e a dimensão temporal são, portanto, constituídos por três realidades:
desertos, sóis, noite escura. Ora, cavalgar por desertos é extremamente difícil, o que significa que
a aventura, o objetivo a alcançar não será fácil. Mas cavalgar por desertos e ainda por sóis é bem
mais difícil. O sol escaldante do deserto! Só que a vida é também uma “aventura escaldante”.
Mais: cavalgar por noite escura (pleonasmo) não será sinónimo de impossibilidade? A noite já em
si é escura. Por que razão o sujeito poético a qualificou de escura? É que há noites com tanto luar
que permitem ver. O que parece evidente é a gradação crescente de dificuldades que o cavaleiro
terá que vencer. Que força o impele? “Paladino do amor”: é o amor a um objetivo, a uma meta.
Guiado pela força do amor, o cavaleiro procura “anelante / O palácio encantado da Ventura”. Eis o
objetivo: a Ventura, metaforicamente rainha de um palácio encantado. Que a procura é intensa,
mostra-o não só o adjetivo com a função de advérbio, mas o transporte do verso terceiro sobre o
quarto. Cavaleiro andante, palácio encantado, tudo a lembrar a época medieval, os contos de
fadas, a procura do Graal, etc.
  Em suma: o sujeito poético idealiza-se um “cavaleiro andante” que, denotada e incansavelmente,
busca o “palácio da Ventura”. Assim, qual D. Quixote, movido por ideais superiores, o sujeito
poético, “paladino do amor”, cheio de esperanças e coragem, lança-se na sua heroica
caminhada “por desertos, por sóis, por noite escura”, crente na possibilidade de atingir os
objetivos que o norteiam (a Justiça, o Amor, a Liberdade, a Felicidade). Porém, o entusiasmo que
caracteriza o início desta heroica jornada, cedo se transformou em desalento. Aliás, a enumeração
e o adjetivo escuro (v. 2) sugerem a dificuldade e até mesmo a impossibilidade de o sujeito poético
concretizar o seu sonho.

            Esta ideia é realçada no início da segunda quadra através da conjunção coordenativa


adversativa mas, que inicia a segunda etapa da jornada do cavaleiro, marcada, agora, pelo
desânimo. De facto, face ao elevado grau de dificuldade que a sua meta comporta, não admira que
o cavaleiro vacile na primeira prova a que é submetido: “Mas já desmaio, exausto e vacilante /
Quebrada a espada já, rota a armadura...” Notemos a importância do verbo desmaiar que
contrasta com o verbo buscar da 1.ª estrofe, a dupla adjetivação “exausto e vacilante”, que
evidenciam o estado de completo cansaço e desânimo do sujeito poético neste momento da sua
busca, e também o advérbio de tempo já, que indica o momento do desmaio. Terá sido grande a
luta? O cavaleiro tinha consigo as suas armas de defesa, com as quais julgava poder conseguir
vencer todas as vicissitudes e contrariedades que se lhe opusessem na sua jornada. Todavia, elas
foram destruídas durante a luta, facto que demonstra o grau de dificuldade da empresa que ele se
propõe levar a cabo. E aconteceu o desmaio, a queda, mas não a desistência. Quantas vezes não
caímos? Quantas vezes não nos levantamos? A vida é feita de sucessos e insucessos.
As reticências do verso 6 podem sugerir esta ideia ou ainda um momento de recuperação de
forças; mesmo desmaiado, tem dentro de si a força que o faz agir: o amor. Por isso, o cavaleiro não
se deixa abater pelas primeiras dificuldades e, ao avistar, de forma quase inesperada, o palácio
que procurava, ganha forças e ânimo e reinicia a sua marcha, porque o palácio é realmente belo,
talvez mais belo do que pensara. Antes era um “palácio encantado”, agora mais perto é ainda mais
sedutor: “sua pompa e aérea formosura”. Este é um dos momentos mais intensos do poema pela
luta física e psicológica com que o sujeito se debate. O adjetivo fulgurante e os
dois substantivos abstratos pompa e formosura caracterizam o palácio desejado como um lugar
ainda mais belo e perfeito, o que faz nascer no sujeito poético um desejo ainda maior de o
alcançar.
     A passagem de estrofe é estratégica: sugere o tempo necessário para o cavaleiro chegar ao
palácio. O poema é uma unidade, tem de haver continuidade, não podem acontecer saltos. Uma
vez encontrado o palácio, o que faz o cavaleiro? Duas ações: bate à porta e grita. A poetização do
significante, neste passo do poema, é significativa: “Com grandes golpes bato à porta e brado”;
construído o verso com monossílabos e dissílabos, a acentuação tem de sugerir os golpes: ~ – ~ – ~
– ~ – ~ – /; os acentos dominantes recaem nas sexta e décima sílabas (verso decassílabo heroico) e
as palavras que os contêm são as que indicam as duas ações. A aliteração dos fonemas
sublinhados e a repetição da vogal aberta /a/ sugerem admiração e expectativa. Por outro lado,
os verbos avisto, bato e brado, associados à expressão “eis que súbito”, sugerem uma ação
continuada, gradativa e cada vez mais intensa. O verbo bradar, associado à expressão “grandes
golpes”, salienta o estado de agitação e de exaltação do cavaleiro ao querer alcançar o seu palácio.
Por outro lado, o palácio que anteriormente parecia distante, está agora, ali, diante dele, “...
fulgurante” / “na sua pompa e aérea formosura”. Tudo se conjuga para criar um efeito quase
onomatopaico do que acontece.

            Seguidamente, o sujeito poético apresenta-se de forma curiosa: “Eu sou o Vagabundo, o


Deserdado”. Novamente, as maiúsculas nestes substantivos conferem-lhes um significado
transcendente. Assim, neste contexto Vagabundo é aquele que erra pelo mundo em busca de algo
de essencial, de vital para a sua realização; enquanto Deserdado, pelo facto de não possuir
quaisquer bens, é aquele que tem de conquistar por si o seu sonho, o seu objetivo, porque a
felicidade não é um presente que cai do céu, tem de ser merecida. Como Fernando Pessoa afirma
em “Mar Português”: “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor.”
            E em que consiste o grito do cavaleiro? “Abri-vos, portas d’Ouro, ante meus ais!”. Não
admira que as portas sejam de ouro, pois o palácio é encantado e fulgurante; a metaforização de
todo o palácio é um dado necessário para evidenciar a grandeza da procura. A pontuação deixa
transparecer a aflição e expectativa do cavaleiro, prestes a atingir o seu objetivo. A mudança de
estrofe é também estratégica, como já o vimos anteriormente.
            Embora o poema esteja escrito na primeira pessoa do singular, narra não só a luta individual
de um homem, mas o percurso efetuado por toda a humanidade. O drama deste cavaleiro é
eterno e universal. O Vagabundo e o deserdado simbolizam o homem eternamente ansioso e
infinitamente frustrado.

            E o clímax da ação é atingido no momento em que as portas obedecem ao ansioso pedido
do cavaleiro “com fragor”. O ruído que fazem é sugerido pela aliteração do fonema /r/ e denuncia
que poucas vezes se abrem essas portas. E tudo parece indiciar que o cavaleiro alcançará o seu
objetivo, encontrará a Ventura. Mas eis que se depara com uma nova e imensa frustração,
anunciada pela conjunção coordenativa adversativa mas e consumada com o vazio do
palácio: “Mas dentro encontro só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão – e nada mais.” Nesta última
estrofe, concretizam-se vários indícios do fracasso dispersos ao longo do poema, nomeadamente
o paralelismo “Mas já” (disjuntivo temporal) e “Mas dentro” (disjuntivo espacial) e
o paralelismo “já desmaio” e “encontro só”. Mas se eram tão abundantes esses sinais, não se
esperava uma tão grande deceção. O cavaleiro entrou no palácio encantado, parecia ter alcançado
o que procurava, mas apenas encontrou “Silêncio e escuridão – e nada mais!” Reparemos como a
tonalidade das palavras se fechou: os sons nasais, palavras de sentido negativo, o pronome
indefinido negativo reforçado pelo advérbio de quantidade, sugerindo claramente a deceção
completa do cavaleiro, que terá de recomeçar tudo de novo. De facto, a gradação dos dois últimos
versos, associada à exclamação final, demonstra a dor intensa do sujeito poético e a angustiada
sensação de derrota.

    Podemos ver neste poema a história de tantas tentativas fracassadas, em virtude da distância
que medeia entre o sonho e a realidade.
            Por outro lado, também é possível ver neste poema o próprio Antero de Quental, utópico,
revolucionário, cheio de força, erguendo a espada da Liberdade, do Amor e da Justiça, mas
incompreendido, recusado. Ou ainda a alegoria de tantos jovens sonhadores e incompreendidos.
Terá sido então inútil esta procura? Nada é inútil quando os objetivos por que se luta são
autênticos. Nunca se deve desistir. Quem sabe se da próxima vez este cavaleiro não encontrará a
sua Ventura?
            Neste poema, o cavaleiro caminha ensombrado pela dor e pela dúvida, nessa existência em
que convergiram um drama pessoal e o drama da própria consciência tumultuária e expectante do
homem do século XIX.
. Estrutura narrativa do poema

1. Ação: busca do palácio da Ventura que termina em deceção.

2. Personagem: o sujeito poético – o cavaleiro andante.

3. Tempo: presente.

4. Espaços:
– Físico: “desertos” ® sugere a imensidão do mundo físico;
– Psicológico: “Sonho” ® “O palácio encantado da Ventura!”

    Entre os dois espaços existe uma correlação de sentido (imensidade/profundidade) que aponta
para a necessidade de um “grande sonho” para vencer as dificuldades impostas pela imensidão do
espaço físico a percorrer.

5. Enunciado narrativo de estado (uma situação onírica) e enunciado narrativo de fazer (a busca


do palácio).

6. História narrada na 1.ª pessoa.

7. A progressão narrativa é sugerida por:


® movimento: longe/perto do castelo (vv. 1-8);
® espaço: paisagem/exterior/interior do castelo (vv. 9-14);
® tempo: antes da descoberta/o momento da dupla descoberta: aparência e realidade.

. Recursos poético-estilísticos

1. Nível fónico

. Soneto: duas quadras e dois tercetos.


. Métrica: versos decassílabos heroicos.
. Rima: - ABAB / ABAB / CCD / EED;
                 - Cruzada nas quadras e emparelhada e interpola nos tercetos;
                 - Consoante (“andante” / “anelante”);
                 - Grave (“andante” / “anelante”) e aguda (“fragor” / “dor”);
                 - Pobre (“andante” / “anelante”) e rica (“Escura” / “Ventura”.
. Aliterações em t, p, l ...
. Transporte: vv. 3-4, 7-8, 13-14.
. Ritmo binário.
. Musicalidade: reforço do sentido através do jogo rítmico (binário) e sonoro (aliteração) que
enfatiza o apelo, a ânsia de felicidade do sujeito lírico, nomeadamente nos versos 2, 6 e
9.
2. Nível morfossintático

. Verbos: encontram-se todos no presente, no indicativo e imperativo, mas nós notamos o


“andamento” deste “cavaleiro andante”, a progressão desta narrativa, ou seja, um:
          - Antes: a “partida” e a busca;
          - Durante: a descoberta do palácio;
          - Depois: a desilusão provocada pela derrota final.
. Substantivos e adjetivos:
- Desertos, sóis, noite escura: as dificuldades da busca, que exigem grande empenho do
homem;
- Palácio encantado da Ventura: a felicidade procurada pelo sujeito;
- Os adjetivos exausto e vacilante, juntamente com o verbo desmaio e
as expressões quebrada a espada e rota a armadura, traduzem o cansaço do sujeito
provocado pela busca e prenunciam a desilusão final;
- Os substantivos ais e, sobretudo, dor, silêncio, escuridão traduzem a deceção e a desilusão
do sujeito;
- A expressão cavaleiro andante aponta para uma figura em movimento (por um espaço físico
e por um espaço psicológico), em busca da felicidade.
. Epinalefa (repetição da preposição por) ® “Por desertos, por sóis, por noite escura”: sugere a
movimentação do cavaleiro.
. A conjunção adversativa mas (v. 5), repetida no verso 13, marca uma relação de oposição entre
as primeira e segunda partes e as terceira e quarta, enquanto o advérbio eis (v. 7), com valor
adversativo, permite o retomar da ilusão e da busca inicial.
. Assíndeto (v. 2).
. Pleonasmo: “noite escura”.
. Paralelismo.

3. Nível semântico
. A proximidade semântica entre as expressões já desmaio (v. 5) e encontro só (silêncio e
escuridão) (v. 13), sendo que os versos 5 e 6 anunciam desde logo o carácter
decetivo do encontro.
. Alegoria: o sujeito lírico sonha-se alegoricamente um cavaleiro andante – desejo de evasão –,
mediante a figura medieval do defensor dos fracos, que parte na aventura da
procura, inicialmente, entusiasta e, depois, dolorosa do simbólico “palácio
encantado”. O desenlace desta aventura de cavalaria alegórica é o insucesso, a
derrota final.
® concretização sensível de ideias abstratas;
® procura ansiosa da realização de um ideal da felicidade (“Palácio da Ventura”);
significado     
® consequências destruidoras, no sujeito, de uma busca infrutífera (“Vagabundo”, “Deserdado”);
® desilusão, sofrimento, pessimismo (“Silêncio e escuridão - nada    mais”).
. Gradação.

. Relação com o universo poético anteriano:


-» recorrência de símbolos utilizados: o palácio;
-» desilusão;
-» pessimismo;
-» interrogações e da inquietação;
-» soneto;
-» verso decassilábico.

. Influência de Hartmann:
              -» a metafísica pessimista (Schopenhauer);
              -» a busca de Deus e de si próprio que leva à dor.

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