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A perspectiva do narrador na obra Os Maias de Eça de Queirós

O narrador de Os Maias é uma entidade fisicamente alheia à diegese, logo o classificamos


por heterodiegético.
Os acontecimentos são narrados de uma certa perspectiva que condiciona a quantidade e a
qualidade da informação. O narrador pode adoptar um ponto de vista ou uma focalização omnisciente:
tendo um total conhecimento da diegese, caracteriza exaustivamente os espaços e as personagens,
penetra no seu interior, e manipula o tempo segundo as suas opções ideológicas.
Todavia, pode abdicar da sua omnisciência e contar a história de acordo com a sua
capacidade de conhecimento de uma ou mais personagens; é a focalização interna. A informação é
condicionada pela subjectividade e limitação dos conhecimentos.
Em último lugar, o narrador pode optar pela focalização externa: fornece apenas dados
exteriores; a partir desses dados, o leitor tem acesso a um conhecimento mais profundo das
personagens.
Na obra Os Maias detectam-se dois tipos de focalização:

Focalização omnisciente
 A reconstrução do Ramalhete
 A figura de Afonso da Maia
 O narrador perspectiva  A infância e os estudos de Carlos em Coimbra
(Cap. I e II)  O retrato de Ega
 O retrato de Eusebiozinho
 O retrato de Dâmaso
Focalização interna

 Vilaça perspectiva  A educação de Carlos em oposição à de


(Cap. III) Eusebiozinho
 Maria Eduarda no peristilo do Hotel Central
 Maria Eduarda no Aterro
 Em alguns episódios integrados na crónica de
 Carlos perspectiva costumes (Jantar do Hotel Central, Corrida
(A partir do cap. IV até ao cap. XV) de cavalos, Jantar em casa dos Gouvarinhos)
 A cidade de Lisboa e a sua sociedade, dez
anos depois em 1887
 Em alguns episódios da crónica de costumes
(A imprensa e o Sarau da Trindade)
 Ega perspectiva  O Ramalhete fechado
(Cap. XVI)  A sua própria consciência, em momentos
indicados no estudo feito ao espaço
psicológico)
O narrador utiliza o ponto de vista omnisciente sobretudo para o passado da história, época
anterior a 1875; esta opção condiciona o discurso, como se verá a propósito do tempo, e serve os
cânones da estética naturalista, vinculando as personagens de Pedro e de Eusebiozinho à dependência
de determinados factores.
No entanto, quando tem lugar a focalização omnisciente, ela processa-se de forma quase
prolongada. Na renovação do Ramalhete, operada sobre as ordens do protagonista, o narrador sugere,
de modo indirecto, algumas das características de Carlos: o bom gosto, a atracção por ambientes
luxuosos e os hábitos culturais sofisticados, mas progressivamente contaminados pelo diletantismo.
Contudo, durante a focalização interna, o narrador recorre à focalização omnisciente, para denunciar
o comportamento diletante de Carlos (pp. 128-129 e 187).
Como já foi dito, é a focalização interna o processo representativo que alterna, nos Maias,
com a focalização omnisciente, ou seja, dá-se a utilização do ponto de vista de determinadas
personagens e esta predomina largamente sobre a omnisciência do narrador.
Isto não quer dizer que o narrador não mais assuma uma posição de transcendência para
narrar eventos e caracterizar personagens, pois tal acontece, em relação à figura de Dâmaso, ao
diletantismo de Carlos, quando se trata de estabelecer ligação entre os diversos capítulos ou os
vários episódios de representação social, a focalização omnisciente actua como câmara
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cinematográfica sobre a acção e os cenários, para depois ser confiada a uma personagem particular a
perspectivação da diegese. É o que se verifica, quando da visita de Carlos à Vila Balzac, visita essa
introduzida por uma breve informação do narrador omnisciente acerca de Ega e das suas fantasias
(p.145); do mesmo modo, antes do Jantar do Hotel Central (pp.154-155), o narrador faculta
elementos relativamente pormenorizados que expliquem o aparecimento do episódio, logo de seguida
sujeito à focalização de Carlos.
A propósito da educação de Carlos, o narrador utiliza a visão de Vilaça, com a intenção de
desligar a personagem central da dependência rigorosa da ideologia naturalista. Com efeito, é nas
poucas horas por este passadas em Santa Olávia que nos é facultada uma imagem parcial e subjectiva
dessa educação.
A partir do presente da história (Outono de 1875), o narrador abdica sistematicamente
desse estatuto e permite que as personagens Carlos e Ega focalizem os acontecimentos. Assim,
introduz a limitação de conhecimentos e a subjectividade da visão, pondo em causa o rigor e a
objectividade do naturalismo.
A focalização perspectivada por Ega surge fundamentalmente incumbida de duas finalidades
distintas: por um lado, servir de complemento à função crítica da perspectiva de Carlos; por outro
lado, situá-lo perante a intriga na condição de comparsa, amigo e confidente com um papel bem
definido a desempenhar no desenrolar dos factos.
A partir do capítulo IV Carlos passa a ser o elemento central e dinamizador da narrativa,
pois é de dentro dele e a partir dele que o leitor toma conhecimento dos factos. Carlos é o
personagem que mais frequentemente proporciona a visão, restringindo-se ao seu campo óptico e
mesmo apreciativo. Não é só ele a mais constante presença condutora da acção que se desenrola na
obra, como também o centro donde irradia toda a descrição.

O tempo da história, do discurso e psicológico na obra Os Maias

O tempo da história é aquele que se desdobra em dias, meses e anos vividos pelas
personagens, reflectindo os mesmos acontecimentos cronológicos do País- Regeneração. Ele é
dominado pelo encadeamento de três gerações de uma família cujo último membro se destaca em
relação aos outros, o romance percorre, através das acções relatadas, uma larga zona do século XIX.
O tempo da história relaciona-se com um outro tempo, o dos factos reais, de natureza política,
económica, social e cultural ocorrido no século XIX.
Os marcos cronológicos são: (1820-1822: juventude de Afonso; 1875-1877: Carlos em
Lisboa;1887: regresso de Carlos).
O tempo do discurso é aquele que se detecta no próprio texto organizado pelo narrador,
ordenado ou alternado logicamente, alongado ou resumido.
Convém notar que, na 1ª parte da obra, se verifica uma drástica compressão do tempo da
história. Cerca de oitenta páginas é realmente a analepse que se encontra instaurada. Com o
movimento retrospectivo que a analepse implica, recupera-se o tempo vivido pelos antecessores de
Carlos da Maia nos quase sessenta anos anteriores: a juventude e exílios de Afonso da Maia, a
educação, o casamento e suicídio de Pedro, a formação de Carlos, incluindo a sua passagem por
Coimbra. Assim, todo o passado de uma família, toda uma série de episódios inseridos nesta analepse
servem para explicar o aparecimento, em Lisboa e em 1875, de uma personagem: Carlos da Maia.
Personagem que tem atrás dela eventos largamente representativos da configuração mental, cultural
e social do século a que pertence.
Um segundo aspecto da problemática do tempo nos Maias é o que se relaciona com o ritmo
narrativo assumido pelo discurso. Deste modo, pessoas e eventos rapidamente descritos tenderão
necessariamente a ser desvalorizados na sequência natural da história; pelo contrário, aqueles
acontecimentos e figuras sobre as quais o narrador se debruce com mais demora, ganharão mais
impacto e projecção.
A situação do discurso narrativo nos Maias é, a este propósito, praticamente esquemática: as
zonas da história que antecedem o presente vivido por Carlos a partir de 1875 são, normalmente,
objecto de anisocronias, isto é, de um tratamento segundo o qual o tempo do discurso é menor do que
o da história (compressão drástica do tempo da história). Ora esse período tão amplo aparece

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reduzido, ao nível do discurso, às cerca de noventa páginas que o narram e que coincidem com a mais
profunda analepse operada no romance.
E pelo contrário, a existência de Carlos em Lisboa (tento no plano da intriga como no da crónica de
costumes) é objecto de uma tentativa de isocronia, o que quer dizer que, nessa fase da história, o
narrador se esforça para que a duração do discurso seja idêntica à da história.
Em termos técnico- narrativos, verifica-se que o recurso fundamental utilizado pelo narrador
na consumação da anisocronia é o resumo ou sumário, isto é, um tipo de duração do discurso mediante
a qual os eventos narrados são comprimidos de forma mais ou menos redutora, mas sempre referidos
de modo abreviado.
Mas a redução do tempo da história ao nível do discurso faz-se mais radical noutro caso:
naquele em que são pura e simplesmente omissos períodos mais ou menos longos da história.
Recebendo a designação de elipse, esse tipo de elaboração discursiva da história sugere, desde logo,
uma desvalorização total dos eventos suprimidos que deste modo podem ser apenas suspeitados ou
imaginados, mas nunca considerados como elementos fulcrais para a compreensão do significado da
obra. Com a elipse o tempo não pára, apenas se omite a representação do desgaste que a sua
passagem imprime naqueles que a ele estão sujeitos.
A isocronia acontece, de modo especial, em dois episódios: o suicídio de Pedro e a educação
de Carlos, acontecimentos dotados de grande impacto na sequência da história. Para se criar um
alongamento dos eventos representados, cria-se uma cena dialogada, ritmo de enunciação, mais do que
narrativo, é sobretudo, dramático. No entanto, a importância da isocronia através do privilégio da
cena dialogada expressa-se de modo sistemático sobretudo a partir da altura em que Carlos se
embrenha, por um lado, na vida social do seu tempo, e por outro lado, no desenrolar da intriga
principal, incluindo os episódios. Tudo isto, é representado com a lentidão e o pormenor que só a cena
dialogada faculta; deste modo, o discurso narrativo dos Maias privilegia, nestas zonas da história, um
ritmo narrativo de tipo isocrónico mediante o qual o tempo do discurso tende a respeitar a duração
do tempo da história.
Concluindo, podemos afirmar que a omnisciência do narrador permite uma manipulação do
tempo da história, criando uma anisocronia: o tempo do discurso é maior do que o da história. Para
esse efeito, serve-se dos recursos técnicos do sumário e da elipse.
Ao adoptar o ponto de vista interno, o narrador tenta a isocronia: o tempo do discurso tem
uma duração idêntica ao da história. Para tal, serve-se da cena dialogada, sobretudo quando Carlos se
instala em Lisboa.

Quanto ao tempo psicológico, esse é o tempo que a personagem assume interiormente, é o


tempo filtrado pelas vivências subjectivas, quantas vezes carregado de densidade dramática, é o
tempo que se alonga ou se encurta segundo o estado de espírito que o define. O tempo psicológico
introduz a subjectividade, o que novamente põe em causa as leis do Naturalismo.

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