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SOBRE O "Velho do Restelo" 1 (Os Lusíadas, IV, 94-104)

(in http://www.dightonrock.com/camoes_o_maior_emigrante_de_todo.htm notar o "Velho do


Restelo" no canto inferior esquerdo, identificado com uma bolinha branca))

“ Os Lusíadas”,Canto IV. Abordagem do episódio o “Velho do Restelo”


Na praia do Restelo, no momento em que a os navios de Vasco da Gama estão
prestes a largar de Lisboa para a grande viagem, um velho profere um discurso
poderoso contra os empreendimentos marítimos de Portugal, que ele considera uma
ofensa aos princípios cristãos, uma vez que a busca de fama e glória em terras
distantes se pode vir a revelar desastrosa.

Caraterização do Velho do Restelo


A figura do Velho do Restelo assume uma autoridade e uma respeitabilidade que lhe
permitem falar e ser ouvido. As suas palavras têm o peso da idade e da experiência
que daí resulta e a autoridade provem de uma vivida e longa experiência.

 a idade, (velho)
 o aspeto respeitável, (aspeito venerando)
 a atitude de descontentamento, (meneando / Três vezes a cabeça,
descontente),
 a voz solene e audível, (a voz pesada),
 a sabedoria resultante da experiência de vida, (C'um saber só de experiências
feito/... experto peito).

Simbologia do episódio do "Velho do Restelo"


O "Velho do Restelo" é uma criação de Camões, não é uma personagem histórica,
com um profundo significado simbólico, que no seu discurso defende um
ideal/princípio. Poderá por isso ser considerado uma personagem alegórica.
Por um lado, representa a corrente de opinião que via com desagrado o envolvimento
de Portugal nos Descobrimentos, considerando que a tentativa de criação de um
império colonial no Oriente era demasiado custosa e de resultados duvidosos.
Preferiam que a expansão do país se fizesse pela ampliação das conquistas militares
no Norte de África. Essa ideia era, sobretudo, defendida pela nobreza, que assim teria
possibilidades de mostrar o seu valor no combate com os mouros e, ao mesmo tempo,
encontrava justificação para as benesses que a Coroa lhe concedia. A burguesia, por
seu lado, inclinava-se mais para a expansão marítima, vendo aí maiores
oportunidades de comércio frutuoso.
Por outro lado, a figura do Velho simboliza aqueles que, em nome do bom senso,
recusam as aventuras incertas, defendendo que é preferível a tranquilidade duma vida
mediana à promessa de riquezas que, geralmente, se traduzem em
desgraças. Representa a voz da razão num momento de euforia e deslumbramento, a
voz da experiência perante a irreverência.
Encontramos aqui um eco de uma ideia cara aos humanistas: a nostalgia da idade de
ouro, tempo de paz e tranquilidade, de que o homem se viu afastado e a que pode
voltar, reduzindo as suas ambições a uma sábia mediania "aurea mediocritas”. Neste
sentido o episódio pode ser entendido não só como um reflexo social mas também
como uma manifestação do espírito humanista, favorável à paz e tranquilidade,
contrariando o espírito guerreiro da Idade Média.
A ideia mestra deste discurso
 o velho do Restelo manifesta-se contra as aventuras marítimas, predizendo
resultados desastrosos e a decadência da pátria.
No discurso que profere é possível identificar três partes.
Na primeira (estrofes 95-97), condena o envolvimento do país na aventura dos
descobrimentos, à qual se refere de forma claramente negativa (glória de mandar, vã
cobiça, vaidade, fraudulento gosto, dina de infames vitupérios) e a ambição desmedida
do ser humano, neste caso materializada na expansão ultramarina. Denuncia o
carácter ilusório das justificações de carácter heróico que foram apresentadas para
esse empreendimento (Fama, honra, chamam-te ilustre, chamam-te subida, Chamam-
te Fama e Glória soberana), das (promessas de reinos, e de minas d’ ouro, famas,
histórias, triunfos, palmas vitórias) sendo certo que tudo isso são apenas “nomes com
quem se o povo néscio engana".
Se na primeira parte manifestou a sua oposição às aventuras insensatas que lançam o
ser humano na inquietação e no sofrimento, agora propõe uma alternativa menos
arriscada e mais sensata face à empresa dos Descobrimentos, sugerindo que a
ambição seja canalizada para um objectivo mais próximo - o Norte de África. (Não tens
junto contigo o Ismaelita, ..?)
A segunda parte (estrofes 98 a 101). Dirige-se aos seres humanos, descendentes de
Adão, (Ó tu, geração daquele insano/cujo pecado e desobediência/.../te pôs neste
desterro ...).
A estância 100 apresenta a sua proposta, cobrindo todas as variantes dessa
ambição: religiosa(Se tu pola [Lei] de Cristo só pelejas?), material (Se terras e
riquezas mais desejas?), glóriamilitar (Se queres por vitórias ser louvado?).
Na estância 101 adverte para os perigos do despovoamento, do enfraquecimento e do
afastamento, (deixas criar à porta o inimigo...buscas o incerto e incógnito perigo) em
nome da fama, da exaltação e da lisonja.
Vem depois a terceira parte (estrofes 102-104). O poeta recorda figuras míticas do
passado que, de certo modo, representam casos paradigmáticos de ambição com
consequências dramáticas. Começa por condenar o inventor da navegação à vela - "o
primeiro que, no mundo, / Nas ondas vela pôs em seco lenho!". Faz depois referência
a Prometeu, que, segundo a mitologia grega, teria criado a espécie humana, dando
assim origem a todas as desgraças consequentes - "Fogo que o mundo em armas
acendeu, / Em mortes, em desonras (grande engano!)". Logo a seguir, narra os casos
de Faetonte e Ícaro, que, pela sua ambição, foram punidos.
Previsão das consequências dos descobrimentos para Portugal
 Mortes (que mortes, que perigos, que tormentas, /que crueldades neles
experimentas!)
 Perigos (que perigos que mortes lhe destinas)
 tormentas
 crueldade
 desamparo das famílias (fonte de desamparos e adultérios)
 adultérios
 desastres (a que novos desastres determinas/de levar estes reinos e esta
gente?)
 empobrecimento material (sagaz consumidora conhecida/ de fazendas, de
reinos e de impérios)
 fortalecimento do inimigo tradicional (deixas criar às portas o inimigo)
 despovoamento (por quem se despovoe o reino antigo)
 enfraquecimento do reino (se enfraqueça e se vá deitando ao
longe)

Vasco da Gama, herói de Os Lusíadas (1572), de Camões, conta ao rei de Melinde


(África) a história de seu país (cantos III e IV). Na parte final de seu relato, Vasco fala-
lhe de sua própria viagem.

No início dela, situa-se um dos episódios mais célebres da obra: O Velho do


Restelo (canto IV, estrofes 94-104).
O sentido do discurso atribuído ao Velho é bastante claro; não obstante, o episódio
coloca alguns problemas quanto ao pensamento do poeta relativamente à questão
tratada. Os navios portugueses estão prestes a largar; esposas, filhos, mães, pais e
amigos dos marinheiros apinham-se na praia (do Restelo) para dar seu adeus, envolto
em muitas lágrimas e lamentos, àqueles que partiam para perigos inimagináveis e talvez
para não mais voltar.

No meio desse ambiente emocionado, destaca-se a figura imponente de um velho que,


com sua "voz pesada", ouvida até nos navios, faz um discurso veemente, condenando
aquela aventura insana, impelida, segundo ele, pela cobiça-o desejo de riquezas, poder,
fama. Diz o velho que, para ir enfrentar desnecessariamente perigos desconhecidos, os
portugueses abandonavam os perigos urgentes de seu país, ainda ameaçado pelos
mouros e no qual já se instalava a desorganização social que decorreu das grandes
navegações.
Segundo parece, o velho representa a opinião conservadora (alguns diriam
"reacionária") da época - opinião da aldeia, do torrão natal, da vida segura, mas não
heróica. Seria estranho que Camões se identificasse com esse tipo de atitude, pois, como
observou J. F. Valverde, "não seria compreensível que compusesse uma epopeia para
celebrar o que condenava como erro fatal". Mas, segundo se pode inferir de diversos
elementos do discurso do Velho, assim como do resto do poema, a opinião expressa no
admirável discurso não era inteiramente rejeitada por Camões, por mais que ele fosse
empolgado pelo empreendimento marítimo de seu país. Como o Velho do Restelo
pensavam muitos naqueles tempos, assim como muitos pensam hoje em relação a
assuntos semelhantes (como a conquista espacial ou a manipulação genética, por
exemplo).

Gil Vicente, que tratou de assunto semelhante, em chave cômica, no "Auto da Índia",
poderia subscrever as palavras daquele "velho de aspeto venerando". O discurso do
Velho contém uma condenação enfática da guerra, de acordo com o ponto de vista do
Humanismo, que era antibelicista. Mas o Velho, como Camões, abre exceção (sob a
forma de concessão) para a guerra na África (lembremos que o poeta, no início e no fim
do poema, recomenda enfaticamente a D. Sebastião que embarque nessa aventura).

Sabemos que havia, na época, uma corrente de opinião em Portugal que condenava a
política ultramarina do país, direcionada desde D. João 3º em favor da Índia, com o
abandono das conquistas africanas. Portanto, o Velho do Restelo não é propriamente
uma voz discordante a que o poeta concede um lugar em seu poema, representando nele
simplesmente os rumores do povo ou o ponto de vista de um partido adversário da
empresa que o poeta se punha a celebrar.

A fala do Velho é também a expressão de ideias camonianas, divididas entre o


Humanismo pacifista e o belíssimo dos ideais da Cavalaria e das Cruzadas, cujo espírito
muito influenciou a visão camoniana da missão de seu país.

O discurso do Velho do Restelo corresponde a um gênero antigo da literatura, cultivado


desde os primórdios da poesia grega. Trata-se do gênero conhecido pelos gregos como
propemptikón, ou seja, "adeus a um viajante que parte".

Elementos básicos para uma composição deste gênero são: 1º) o viajante (no caso,
Vasco da Gama e os seus marinheiros), 2º) quem se despede (o Velho), 3º) a relação
que os une (no caso, o fato de serem portugueses) e 4º) o cenário apropriado para a
despedida (a praia do Restelo, com os navios a ponto de largar).

Neste tipo de poema há alguns assuntos constantes (lugares-comuns): os perigos e as


inconveniências da viagem, os perigos do lugar de destino, considerações sobre os
motivos da viagem, a quebra de fé implicada na viagem etc. Uma das modalidades
desse gênero inclui o que em grego se chamava skhetliasmós, isto é, uma reclamação ou
lamentação, cuja finalidade é, condenando a viagem, persuadir o viajante a desistir de
fazê-la. Diversos desses elementos se encontram no discurso do Velho, organizados
com formidável eloquência, retomando virtuosisticamente e com novidade um gênero
de poesia que remonta a Homero.

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