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- Campos não tem nem a tranquilidade saudável de Caeiro nem a indiferença olímpica de Reis: ele é
sôfrego, ávido e passional. O que mais pesa nele é a sensorialidade, mesmo a sensualidade, o corpo.
- Como Pessoa, ele não tolera as verdades definitivas: „A razão de haver ser, de haver seres, de
haver tudo, / Deve trazer uma loucura maior que os espaços / Entre as almas e entre as estrelas. /
'Não, não, a verdade não'. / E nada de conclusões: / 'A única conclusão é morrer'.“
- E por ser tão preso aos sentidos, ao corpo, é natural que nele se manifeste o lado feminino
de Pessoa, que Pessoa, por temor, reprime:
- Esse dado talvez faça de Álvaro de Campos um heterónimo mais perto de Pessoa que os outros,
mais perto da pessoa de Pessoa. Mesmo porque, como o cidadão Fernando Pessoa - ao contrário de
Caeiro e Ricardo Reis -, Álvaro de Campos é citadino, urbano, metropolitano, contemporâneo das
usinas e da luz eléctrica: "A dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica / Tenho febre e
escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto. / Para a beleza disto totalmente
desconhecida dos antigos''.
- "Pode afirmar-se que foi entre si próprio e Álvaro de Campos que Pessoa se repartiu, dado que
Alberto Caeiro é um mestre «já falecido» e Ricardo Reis um «amigo distante»; sublinhe-se porém,
que Álvaro de Campos é, directamente, discípulo de Caeiro" (PDE:10f).
- AdC surge "quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê" (PDE:205).
- O 1.º poema "Opiário" é uma recriação do „ennui“ de Baudelaire e uma anticipação da „nausée“
de Sartre:
- Contextualização do Sensacionismo de Campos (cf. "Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!",
in "Ode Triunfal", L-AdC:8,91), a partir de um texto de Pessoa (A-PIAI:158-168; cf.a. 193-199):
Acontece que a geração a que pertencemos - [...] - traz consigo uma riqueza de sensação,
uma complexidade de emoção, uma tenuidade e intercruzamento de vibração intelectual,
que nenhuma geração nasceu possuindo. [...] Sobre uma vida social agitada, directamente
como intelectualmente pelas complexas consequências da irrupção para a prática das
ideias da Revolução Francesa, veio cair todo o complexo e confuso estado social resultante
da proliferação sempre crescente das indústrias, do enxamear cada vez mais intenso das
actividades comerciais modernas. [...]
O aumento das facilidades de transporte, o exagero das possibilidades do conforto e da
vantagem, o acréscimo vertiginoso dos meios de diversão e de passatempo - todas essas
circunstâncias, combinadas, entrepenetradas, agindo quotidianamente, criaram, definiram,
um tipo de civilização em que a emoção, a inteligência, a vontade, participam da rapidez,
da instabilidade e da violência das manifestações pròpriamente, diàriamente típicas do
estado civilizacional. [...]
Em cada homem moderno há um neurasténico que tem que trabalhar. A tensão nervosa
tornou-se um estado normal na maioria dos incluídos na marcha das cousas públicas e
sociais. A hiper-excitação passou a ser regra. [...]
Perguntou-se que maior razão para a certeza teria a metafísica da ciência do que a
metafísica da crença: a resposta foi a atitude pragmatista, a atitude neo-espiritualista, as
inúmeras formas de atitudes religiosas. [...]
De modo que chegámos a uma época singular, em que nos aparecem todos os
característicos de uma decadência, conjugados com todos os característicos de uma vida
intensa e progressiva. [...]
Assim, cada um de nós nasceu doente de toda esta complexidade: Em cada alma giram os
volantes de todas as fábricas do mundo, em cada alma passam todos os combóios do globo,
todas as grandes avenidas de todas as grandes cidades acabam em cada uma das nossas
almas. Todas as questões sociais, todas as perturbações políticas, por pouco que com elas
nos preocupemos, entram no nosso organismo psíquico, [..]
A arte moderna deve portanto: 1) ou cultivar serenamente o sentimento decadente,
escrupulizando em todas as cousas que são características da decadência - a imitação dos
clássicos, a limpidez da linguagem, a cura excessiva da forma, características da
impotência de criar; 2) ou, fazendo por vibrar com toda a beleza do contemporâneo, com
toda a onda de máquinas, comércios, indústrias [...]
Assim, a era das máquinas produziu, nos indivíduos da Europa, um individualismo
excessivo, uma ânsia feroz de viver em toda a extensão a vida individual, um abandono
correspondente e concomitante, resultante do senso moral, das prisões da religião, dos
chamados preconceitos que haviam sido a base da vida nos séculos anteriores. [...]
- Cf. „Ode Triunfal“: "Canto, e canto o presente, e tambem o passado e o futuro, / Porque o presente
é todo o passado e todo o futuro"; "Fraternidade com todas as dinâmicas! / Promíscua fúria de ser
parte-agente" (L-AdC:88).
Não há critério da verdade senão não concordar consigo próprio. O universo não concorda
consigo próprio, porque passa. A vida não concorda consigo própria porque morre. O paradoxo é
a fórmula típica da Natureza. Por isso toda a verdade tem uma forma [?] paradoxal. (217f)
Substitui-te sempre a ti-próprio. Tu não és bastante para ti. Sê sempre imprevenido [?] por ti-
próprio. Acontece-te perante ti-próprio. Que as tuas sensações sejam meros acasos, aventuras que
te acontecem. Deves ser um universo sem leis para poderes ser superior.
São estes os princípios do sensacionismo. (A-PIAI:218)
Faze de tua alma uma metafísica, uma ética e uma estética. Substitui-te a Deus indecorosamente. É
a única atitude realmente religiosa. (Deus está em toda a parte excepto em si-próprio). Faze do teu
ser uma religião ateísta; das tuas sensações um rito e um culto. (A-PIAI:218)
Só não está gasta a poesia das sensações, porque as sensações são individuaes e os individuos
nunca se repetem. [...] As nossas sensações individuaes não são as do amor, as do odio, as do (...) -
porque essassão demasiado semelhantes em todos os homens, e só pode haver variação da
expressão d'ellas, pelo qual processo a arte fatalmente se formaliza, se plasticiza em excesso. O
que é bem nosso nas sensações, [...], são as sensações directas, as que não têm caracter social, as
veem directamente de vêr, ouvir, cheirar, palpar, gostar, e as sensações de vidas previamente
vividas, [...]. A poesia é individual. (L-PPC2:405)
"O futurismo vem a ser uma fotografia abstracta das coisas. Ora toda a arte, seja como for, é
antifotográfica e concreta" (A-PETCL:161)
- Do "Ultimatum":
"A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas, quer grandes Generais! [...] Quer o Poeta
que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para
os produtos farmacêuticos!" (Ultimatum:120).
"O maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais géneros com mais
contradicções e dissemelhanças. Nenhum artista deverá ter só uma personalidade" (Ultimatum:127).
"Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários. [...]
O artista cuja arte seja uma Síntese-Soma, e não uma Síntese-Subtracção dos outros de si, como a
arte dos actuais" (126).
- De „Ambiente“:
"Fingir é conhecer-se" sagt Campos in "Ambiente" (A-TCI:264)
Nenhuma época transmite a outra a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligência que teve
dessa sensibilidade. Pela emoção somos nós; pela inteligência somos alheios. A inteligência
dispersa-nos; por isso é através do que nos dispersa que nos sobrevivemos. Cada época entrega às
seguintes apenas aquilo que não foi. (A-TCI:263)
"Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois não se dá nela. Toda a emoção verdadeira
tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que se não sente" (263f).
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fôsse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos,
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei- de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si- mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fêz.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segrêdo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num pôço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame- me a Natureza sôbre a cabeça ardente
0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrêlas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e êle é opaco,
Levantámo-nos e êle é alheio,
Saímos de casa e êle é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para àquem do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
0 dominó que vesti era errado.
Conheceram- me logo por quem não era e não desmenti, e perdi- me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
* Outro título encarado: MARCHA DA DERROTA, ainda impresso nas provas da Presença
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"Tenho uma grande constipação", 14-3-1931, [69-17r], [typ.], L-AdCec: 297; EC-AdC:
307-308.
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Quasi
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"Ha tanto tempo que nao sou capaz", 9-8-1934, [711-32r], [Ms.] in: L-AdCec: 331-32; EC-
AdC: 251-52;
Está frio.
Ponho sobre os hombros o capote que me lembra um chale -
O chale que minha tia me punha aos hombros na infancia.
Mas os hombros da minha infancia sumiram-se antes para dentro dos meus hombros.
E o meu coração da infancia sumiu-se para dentro do meu coração.
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"Faze as malas...", 2-5-1933, [711-26r], [Ms.]. in: L-AdCec: 318-319; EC-AdC: 238;
Faze as malas para Parte Nenhuma!
Embarca para a universalidade negativa de tudo
Com um grande embandeiramento de navios fingidos -
Dos navios pequenos, multicolores, da infancia!
Faze as malas para o Grande Abandono!
E não esqueças, entre as escovas e a thesoura,
A distancia polychroma do que não se pode obter.
Faze as malas definitivamente!
Quem és tu aqui, onde existes gregario e inutil -
E quanto mais util mais inutil -
E quanto mais verdadeiro mais falso -
Quem és tu aqui? quem és tu aqui? quem és tu aqui?
Embarca, sem malas mesmo, para ti mesmo diverso!
Que te é a terra habitada senão o que não é comtigo?
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"Sim, está tudo certo."; 5-3-1935; [63-6]; [Ms.]; [Pessoa-ipse?] L-AdCec: 351;
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Não sei. Falta-me um sentido, um tacto
Para a vida, para o amor, para a gloria...
Para que serve qualquer historia,
Ou qualquer facto?
Estou só, só como ninguem ainda esteve,
Oco dentro de mim, sem depois nem antes.
Parece que passam sem vêr-me os instantes,
Mas passam sem que o seu passo seja leve.
Começo a lêr, mas cança-me o que inda não li.
Quero pensar, mas doe-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma cousa como qualquer cousa que já vi.
Não ser nada, ser uma figura de romance,
Sem vida, sem morte material, uma idéa,
Qualquer cousa que nada tornasse util ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe. ((EC-AdC:382)