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1 8 54 WILL IAM M AK EP E ACE TH ACK ERAY

A Rosa
e o Anel

TRAD U ÇÃO DE
K ARIN E R IB E IRO 1
DAS

BY E D ITO R A WIS H

Tradução:
Karine Ribeiro

Preparação:
Karen Alvares e João Rodrigues
Revisão:
Karoline Melo
Capa e projeto gráfico:
Marina Avila

Ilustração de capa:
Jane Herkenhoff

2022 ISBN 978-65-88218-79-2


Copyright 2022 Editora Wish. Este material possui direitos
de tradução e publicação e, ao não divulgá-lo sem prévia
autorização da editora, você está nos ajudando a continuar
publicando raridades para os leitores. Agradecemos por isso.

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85
UMA RELÍQUIA DE

4
Cupom
Assinantes da Sociedade das Relí-
quias Literárias sempre tem des-
conto para adquirir a versão física
dos livros lançados.

A Rosa e o Anel estará em breve à


venda na loja da Editora Wish.

CUPOM: ROSA1854
www.editorawish.com.br

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Sinopse
Entre os reinos da Paflagônia e da
Crimeia, dois amuletos mágicos são
capazes de distorcer a percepção de
todos ao redor.

Uma rosa e um anel mudarão para


sempre as vidas e fortunas de quatro
jovens primos reais, as princesas
Angélica e Rosalba, e os príncipes
Bulbo e Lírio. Passados de geração
em geração, a magia dos objetos foi
esquecida, deixando um rastro de
confusão, extravagância e intriga.

6
Escrito em 1854, A Rosa e o Anel
é um retrato satírico e crítico
da monarquia pelos olhos de
William Makepeace Thackeray.
Com ilustrações caricatas feitas
pelo próprio autor, A Rosa e o Anel
apresenta um conto de fadas com
fortes críticas sociais.

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Sumário

15 Prelúdio

19 I. Como a Família Real se


Reuniu no Café da Manhã

32 II. Como o Rei Valoroso


Conseguiu a Coroa e o Príncipe
Lírio Ficou Sem Ela

46 III. Quem era a Fada Varinha-


Preta, e Quem eram os Outros
Grandes Personagens

61 IV. Como Varinha-Preta Não


Foi Convidada para o Batismo
da Princesa Angélica

69 V. Como a Princesa Angélica


Escolheu uma Criadinha

86 VI. Como o Príncipe Lírio se


Comportava

109 VII. Como Lírio e Angélica


Brigaram

126 VIII. Como Bufanosa pegou o


anel encantado e o príncipe
Bulbo foi à corte

151 IX. Como Betsinda Conseguiu


Esquentar a Cama
170 X. Como o Rei Valoroso Estava
Terrivelmente Apaixonado

182 XI. O que Bufanosa fez com


Lírio e Betsinda

213 XII. Como Betsinda Fugiu e o


que Aconteceu com Ela

229 XIII. Como a Rainha Rosalba


Chegou ao Castelo do Ousado
Conde Porcão

244 XIV. O que Aconteceu com


Lírio

288 XV. Voltamos a Rosalba


310 XVI. Como Racabeças Voltou
ao Rei Lírio

325 XVII. Como uma Tremenda


Batalha Ocorreu e Quem a
Ganhou

355 XVIII. Como Todos Eles


Voltaram Para a Capital

376 XIX. E Agora Vamos à Última


Cena da Pantomima
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A Rosa
e o Anel
OU A HISTÓRIA DO PRÍNCIPE
LÍRIO E DO PRÍNCIPE BULBO

William Makepeace
Thackeray, 1854

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Prelúdio

O
signatário passou a última
temporada de Natal em uma
cidade estrangeira, onde ha-
via muitas crianças inglesas.
Naquela cidade, se você quisesse
dar uma festa infantil, não ia conse-
guir comprar nem um projetor, nem os
personagens do Dia de Reis ― aquelas
imagens engraçadas pintadas do Rei,
da Rainha, do Amante, da Senhora, do
Dândi, do Capitão e dos demais ―, que
nossas crianças costumam interpre-
tar nessa época festiva.
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Minha amiga, srta. Bunch, era go-
vernanta de uma grande família que
vivia no andar principal da casa habi-
tada por mim mesmo e por meus jo-
vens filhos (era o Palazzo Poniatowsky,
em Roma, e os Spillmann, dois dos
melhores confeiteiros da cristandade,
com sua loja no andar térreo). Ela me
pediu para desenhar um conjunto
dos personagens do Dia de Reis, para
o divertimento das nossas crianças.
A srta. Bunch é uma senhora de
imaginação vasta e fértil, e, tendo
visto os personagens, nós dois com-
pusemos uma história a respeito
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deles, a qual foi recitada aos peque-
nos à noite, servindo como nossa pan-
tomima ao pé da lareira.
Nossa jovem audiência ficou en-
cantada com as aventuras de Lírio e
Bulbo, de Rosalba e Angélica. Devo di-
zer que o destino de Hall Porter gerou
uma comoção considerável, e a fúria
da Condessa Bufanosa foi recebida
com extremo prazer.
Se as crianças se divertiram, pen-
sei, por que os outros não se diverti-
riam também? Em questão de alguns
dias, os jovens amigos do dr. Birch
devem se reunir na trilha Rodwell
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Regis, onde vão aprender tudo o que é
útil e, sob os cuidados dos diligentes
condutores, vão continuar a tomar
conta de suas vidinhas.
Mas, enquanto isso, e por um
breve período, vamos sorrir e ser tão
gentis quanto possível. E para vocês,
pessoas mais velhas, um pouquinho
de anedotas, danças e brincadeiras
não fará nada mal. O autor lhes de-
seja um feliz Natal e dá as boas-vin-
das à pantomima ao pé da lareira.
M. A. Titmarsh. Dezembro de 1854.

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I. Como a Família
Real se Reuniu no
Café da Manhã

Este é Valoroso XXIV, rei da Paflagônia,


sentado com sua rainha e filha única
na mesa de café da manhã real, re-
cebendo a carta que anuncia à Sua
Majestade uma visita proposta pelo
príncipe Bulbo, herdeiro de Frigideira,
governante da península da Crimeia
Tártara. Perceba o prazer na expres-
são real do monarca. Está tão con-
centrado no escrutínio da carta do
rei da Crimeia que deixa seus ovos
19
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esfriarem, e seus augustos bolinhos,
intocados.
― Como é! Aquele fantástico, co-
rajoso e encantador príncipe Bulbo!
― exclamou a princesa Angélica. ―
Tão lindo, tão talentoso, tão sagaz; o
conquistador do Rimbombamento,
onde massacrou dez mil gigantes!
― Quem contou a você sobre ele,
minha querida? ― perguntou Sua
Majestade.
― Um passarinho ― respondeu
Angélica.
― Pobre Lírio! ― exclamou a rai-
nha, servindo o chá.
21
― Lírio coitadinho! ― choramin-
gou Angélica, erguendo a cabeça e
fazendo farfalhar mil papéis para
definir cachos.
― Eu queria ― grunhiu o rei ―,
eu queria que Lírio estivesse…
― Estivesse melhor? Sim, querido,
ele está ― disse a rainha. ― Betsinda,
a criadinha da Angélica, me contou
quando veio aos meus aposentos esta
manhã trazendo o chá.
― Você está sempre bebendo chá
― disse o monarca, com uma careta.
― Melhor do que beber vinho do
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porto ou conhaque com água ― re-
trucou ela.
― Bem, minha querida, eu apenas
disse que você gosta de beber chá ―
comentou o Rei da Paflagônia, com
esforço, tal como se controlasse o hu-
mor. ― Angélica! Espero que tenha
muitos vestidos novos; a conta do
chapeleiro já está alta demais. Minha
querida rainha, você deve arranjar
algumas festas. Prefiro jantares, mas
é claro que escolherá um baile. Seu
veludo azul-perpétuo me cansa bas-
tante: e, meu amor, eu gostaria que
tivesse um novo colar. Encomende
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um. Que não custe mais que cem ou
cento e cinquenta mil libras.
― E Lírio, querido? ― queria sa-
ber a rainha.
― LÍRIO PODE IR AO…
― Ah, senhor ― gritou ela. ― Seu
próprio sobrinho! O único filho do
falecido rei.
― Lírio pode ir ao alfaiate e pe-
dir que as contas sejam enviadas
para Tristonho pagar. Confunda-o!
Quer dizer, que Deus o abençoe. Ele
não precisa de nada; dê a ele alguns
guinéus como mesada, querida. E é
melhor você encomendar braceletes
24
enquanto resolve a questão do colar,
sra. V.
A rainha, ou sra. V., como o mo-
narca a chamava de modo jocoso
(pois mesmo a monarquia tem suas
brincadeiras, e esta augusta família
era muito unida), abraçou o marido
e, passando o braço pela cintura da
filha, saíram as duas da sala para co-
meçar os preparativos para a chegada
do estranho principesco.
Quando partiram, o sorriso que
fizera cintilar os olhos do marido e pai
desapareceu ― o orgulho do rei de-
sapareceu; o homem estava sozinho.
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Tivesse eu a habilidade de um G. P. R.
James, descreveria os tormentos de
Valoroso com a mais apurada lingua-
gem, com a qual também descreveria
seus olhos brilhantes, suas narinas
dilatadas; suas vestes, seu lenço de
lapela e botas. Mas devo dizer que
não tenho a habilidade de um escri-
tor; basta dizer que Valoroso estava
sozinho.
Apressou-se em direção ao ar-
mário, pegando um dos muitos
porta-ovos com os quais sua mesa
principesca era servida para a refei-
ção matinal, e, tirando uma garrafa
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de conhaque, encheu e esvaziou o
porta-ovos várias vezes, e o deixou
cair com um rouco:
― Ha, ha, ha! Agora Valoroso é
homem outra vez! Mas, ah! ― prosse-
guiu ele (ainda bebericando, lamento
informar). ― Fosse eu um rei, não
precisaria deste gole inebriante; um
dia, detestei o conhaque de vinho
quente, e não sorvia de nenhuma
outra fonte além do riacho da natu-
reza. Ele não se precipitava sobre as
rochas mais rápido do que eu, pois,
com o bacamarte em mãos, limpei o
orvalho da manhã e atirei na perdiz,
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na narceja ou no veado de galhada!
Ah! Vários dramaturgos ingleses po-
dem proclamar: “Inquieta é a cabeça
que usa a coroa!”. Por que roubei meu
sobrinho, meu jovem Lírio…? Roubo,
falei? Não, não, não, nada de roubo,
nada de roubo. Deixe-me retirar essa
odiosa expressão. Peguei, e sobre
minha cabeça viril coloquei, a co-
roa real da Paflagônia; peguei, e com
meu braço real conduzi, o cetro da
Paflagônia; peguei, e com minha mão
estendida segurei, o emblema real
da Paflagônia! Poderia um menino
pobre, um menino chorão e tagarela,
que ainda ontem estava nos braços
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de sua babá, e choramingava por
confeitos e fazia birra por bobagens,
aguentar o terrível peso da coroa,
do emblema real, do cetro? Poderia
cingir a espada que meus pais reais
usavam e enfrentar o duro inimigo
da Crimeia?
E assim o monarca começou a dis-
cutir em sua própria mente (embora
não seja necessário dizer que o verso
em branco não seja argumento) que
tinha um dever a cumprir e que, se
tivesse cedido a ideias de uma certa
restituição, que não deve ter nome,
a perspectiva de um certo casamento
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unir duas coroas e duas nações que
estiveram ocupadas com guerras
sangrentas e custosas, como o povo
da Paflagônia e o da Crimeia estive-
ram, colocava a ideia da restauração
do trono a Lírio fora de questão: não,
se o irmão dele, rei Savio, estivesse
vivo, certamente tiraria a coroa do
próprio filho para realizar tal dese-
jável união.
Assim, facilmente enganamos
a nós mesmos! Assim, imaginamos
que o que desejamos é correto! O rei
tomou coragem, leu os documentos,
terminou de comer os bolinhos e os
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ovos, e tocou o sino para chamar o
primeiro-ministro. A rainha, depois
de ponderar se deveria ver Lírio, que
estivera doente, pensou: agora, não.
Primeiro o trabalho; depois o prazer.
Verei o querido Lírio esta tarde, e agora
irei até o joalheiro procurar pelo colar e
os braceletes. A princesa foi até os pró-
prios aposentos e fez Betsinda, sua
dama de companhia, trazer todos os
seus vestidos. Quanto a Lírio, eles o
esqueceram tanto quanto eu esqueço
o que comi na última terça-feira.

31
II. Como o Rei
Valoroso Conseguiu
a Coroa e o Príncipe
Lírio Ficou Sem Ela

A Paflagônia, dez ou vinte mil anos


atrás, parece ter sido um desses
reinos onde as leis de sucessão não
tinham sido estabelecidas, pois
quando o rei Sávio morreu, dei-
xando seu irmão como regente e
guardião da criança órfã que era seu
filho, esse regente infiel não levou
em consideração o último desejo
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do falecido monarca: proclamou-se
soberano da Paflagônia sob o título
de rei Valoroso XXIV, teve a mais
esplêndida coroação e ordenou a
todos os nobres do reino que lhe
prestassem homenagem. Enquanto
Valoroso oferecia muitos bailes na
corte, muito dinheiro e lugares lu-
crativos, a nobreza da Paflagônia não
se importava com quem era o rei; e
quanto ao povo, naqueles primeiros
tempos, eles era m ig ua l mente
indiferentes. Graças à tenra idade
que tinha na época da morte do pai,
o príncipe Lírio não sentiu a perda
da coroa e do império. Desde que
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tivesse muitos brinquedos e gulosei-
mas, um feriado cinco vezes por se-
mana, um cavalo e uma espingarda
para atirar quando crescesse um
pouco e, sobretudo, a companhia da
prima querida, única filha do rei, o
pobre Lírio estava satisfeito. Não in-
vejava seu tio, as vestes reais e o ce-
tro, o grande e desconfortável trono
e a enorme e incômoda coroa que o
monarca usava da manhã à noite. O
retrato do rei Valoroso foi deixado
para nós, e acho que você concor-
dará comigo que às vezes ele devia
ficar bastante cansado do veludo, dos
diamantes, da pele de arminho e da
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grandeza. Eu não gostaria de ficar
enfiado naquela túnica sufocante
com uma coisa assim na cabeça.
Sem dúvida, a rainha deve ter sido
adorável na juventude, pois, embora
tenha se tornado bastante corpu-
lenta depois, ainda assim suas fei-
ções, como mostradas no retrato, são
certamente agradáveis. Se ela gostava
de lisonjas, escândalos, cartas e rou-
pas finas, tratemos delicadamente de
suas fraquezas, que, afinal, podem
não ser maiores que as nossas. Ela
era gentil com o sobrinho, e se tinha
algum pingo de consciência sobre o
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36
marido tomar a coroa do jovem prín-
cipe, consolava-se pensando que o rei,
embora fosse um usurpador, também
era um homem muito respeitável, e
que a morte dele restauraria o prín-
cipe Lírio ao trono, que por sua vez o
compartilharia com a prima, a quem
tanto amava.
O pr imei ro -m in ist ro era
Tristonho, um velho estadista, que
com muita alegria jurou fidelidade
ao rei Valoroso, e em cujas mãos o
monarca deixou todos os assuntos do
reino. Tudo o que Valoroso queria era
muito dinheiro, muita caça, muita
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bajulação e o mínimo de problemas
possível. Desde que se divertisse, o
monarca pouco se importava com o
preço que seu povo pagava. Ele se en-
volveu em algumas guerras e, claro,
os jornais da Paflagônia anunciaram
que o rei conquistara vitórias prodi-
giosas; mandou erigir estátuas para
si em todas as cidades do Império; e,
é claro, espalhou retratos seus por
toda parte, e em todas as gráficas: era
Valoroso, o Magnânimo; Valoroso, o
Vitorioso; Valoroso, o Grande, e assim
por diante ― pois, mesmo naqueles
tempos antigos, os cortesãos e as
pessoas sabiam como ser bajuladores.
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O casal real teve uma única filha,
a princesa Angélica, que, você pode
ter certeza, era um exemplo aos olhos
dos cortesãos, aos dos pais e aos dela
mesma. Dizia-se que a garota tinha
o cabelo mais comprido, os maiores
olhos, a cintura mais fina, os meno-
res pés e a aparência mais adorável
que qualquer jovem dos domínios
da Paflagônia. As conquistas dela
foram anunciadas como sendo até
superiores à sua beleza; e as tuto-
ras costumavam envergonhar seus
ociosos pupilos, dizendo-lhes o que
a princesa Angélica sabia fazer. Só de
ouvir, era capaz de tocar as músicas
40
mais difíceis. Ela podia responder a
qualquer uma das questões do livro-
texto de Mangnall; conhecia todas as
datas da história da Paflagônia e de
todos os outros países; sabia francês,
inglês, italiano, alemão, espanhol,
hebraico, grego, latim, capadócio, sa-
motrácio, egeu e tártaro da Crimeia.
Para resumir, era uma jovem criatura
extremamente talentosa; e sua go-
vernanta e dama de companhia era
a severa Condessa Bufanosa.
Você não imaginaria, a partir
desse retrato, que Bufanosa deve ter
sido uma pessoa nascida na mais alta
41
42
posição? Ela parece tão arrogante que
eu deveria ter pensado nela no mí-
nimo como uma princesa, com uma
linhagem tão antiga quanto o Dilúvio.
Mas essa senhora não nasceu em
melhor berço do que muitas outras
senhoras que se fingem de importan-
tes; e todas as pessoas sensatas riam
de suas pretensões absurdas. O fato
é que fora criada da rainha quando
Sua Majestade era apenas uma prin-
cesa, e seu marido fora lacaio-chefe;
porém, depois da morte ou desapare-
cimento dele, do qual você ouvirá em
breve, essa sra. Bufanosa, ao bajular,
adular e lisonjear sua senhora real,
43
tornou-se a favorita da rainha (que
era uma mulher bastante fraca), e
Sua Majestade deu-lhe um título e
nomeou-a governanta da princesa.
E agora devo lhe contar a respeito
do aprendizado e das realizações da
princesa, pelas quais ela tinha uma
reputação das mais maravilhosas.
Angélica certamente era esperta,
mas tão preguiçosa quanto possível.
Olhando de longe, era mesmo! Podia
tocar uma ou duas peças e fingir que
nunca as tinha ouvido antes; podia
responder a meia dúzia de pergun-
tas do livro de Mangnall, mas era
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necessário ter o cuidado de fazer as
perguntas certas. Quanto a idiomas,
tinha muitos mestres, mas duvido
que soubesse mais do que algumas
frases em cada língua, apesar de toda
sua pretensão; e quanto ao bordado e
ao desenho, ela exibia belos exempla-
res, é verdade, mas quem os fizera?
Isso me obriga a dizer a verdade e,
para isso, devo voltar muito no tempo
e contar a vocês sobre a Fada Varinha-
Preta.

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III. Quem era a Fada
Varinha-Preta, e
Quem eram os Outros
Grandes Personagens

Entre os reinos da Paflagônia e da


Crimeia, vivia uma misteriosa perso-
nagem, que era conhecida naqueles
países como a Fada Varinha-Preta,
por conta da varinha ou vassoura de
ébano que carregava e às vezes usava
para cavalgar até a lua, ou em outras
viagens a negócios ou lazer, e com a
qual realizava suas maravilhas.
46
Quando jovem, e quando já tinha
sido ensinada pelo necromante, o
pai dela, a arte de conjurar, estava
sempre praticando suas habilidades,
zunindo de um reino para outro em
sua vassoura preta e fazendo favores
de fadas a esse ou aquele príncipe.
Ela tinha dezenas de afilhados reais;
transformou inúmeras pessoas per-
versas em animais, pássaros, pedras
de moer, relógios, bombas, remove-
dores de botas, guarda-chuvas ou ou-
tras coisas absurdas; e, para resumir,
era uma das mais ativas e oficiosas de
todas as fadas.
47
Mas, depois de dois ou três mil
anos assim, acho que Varinha-Preta
se cansou. Ou talvez tenha pen-
sado: Que bem estou fazendo ao levar
esta princesa a dormir por cem anos?
Prendendo um chouriço no nariz da-
quele tolo? Fazendo cair diamantes e
pérolas da boca de uma menina, e víbo-
ras e sapos da boca de outra? Começo a
pensar que faço tanto mal quanto bem.
É melhor parar com meus encantamen-
tos e assim deixar as coisas seguirem
seu curso natural.
Lá estão minhas duas jovens afilha-
das, a esposa do rei Savio e a esposa do
48
duque Frigideira. Dei a cada uma um
presente, que era para torná-las en-
cantadoras aos olhos de seus maridos
e garantir a afeição daqueles cavalhei-
ros enquanto vivessem. De que servi-
ram minha Rosa e meu Anel para essas
duas mulheres? Para nada. Ao terem
todos seus caprichos atendidos pelos
maridos, tornaram-se birrentas, pre-
guiçosas, mal-humoradas, absurda-
mente vaidosas, lascivas e definhadas,
e se imaginam irresistivelmente belas,
quando na verdade são muito velhas e
horríveis, criaturas ridículas! Elas cos-
tumavam mesmo ser condescendentes
comigo quando eu as visitava ― eu, a
49
Fada Varinha-Preta, que conhece toda
a sabedoria dos necromantes e poderia
tê-las transformado em babuínos, e to-
dos os diamantes delas em cebolas com
um único aceno da minha varinha!
Então, ela trancou os livros no
armário, recusou-se a fazer outras
execuções mágicas e quase não usou
mais a varinha, exceto como bengala
para andar.
Assim, quando a esposa do du-
que Frigideira teve um filhinho (na-
quele tempo, o duque era apenas um
dos principais nobres da Crimeia),
Varinha-Preta, embora convidada
50
para o batizado, não compareceu;
apenas enviou cumprimentos e um
pratinho de prata para o bebê, que na
verdade não valia mais do que alguns
guinéus. Mais ou menos na mesma
época, a rainha da Paflagônia presen-
teou Sua Majestade com um filho e
herdeiro; canhões foram disparados;
a capital, iluminada e intermináveis
festas foram organizadas para cele-
brar o nascimento do jovem príncipe.
Pensava-se que a fada, que fora con-
vidada para ser a madrinha, pelo me-
nos o presentearia com uma jaqueta
invisível, um cavalo voador, uma
bolsa mágica como a de Fortunato ou
51
algum outro valioso símbolo à sua es-
colha. Em vez disso, Varinha-Preta foi
até o berço do menino Lírio, quando
todos o admiravam e cumprimenta-
vam seu papai e mamãe reais, e disse:
― Minha pobre criança, a melhor
coisa que posso lhe enviar é um pe-
queno infortúnio. ― E isso foi tudo
o que disse, para desgosto dos pais
de Lírio, que morreram logo depois,
quando o tio do menino assumiu o
trono, como lemos no capítulo I.
Da mesma forma, quando Couve-
Flor, rei da Crimeia, batizou a única
filha, Rosalba, a Fada Varinha-Preta,
52
que fora convidada, não foi mais gen-
til do que no caso do príncipe Lírio.
Enquanto todos discutiam a respeito
da beleza da querida criança e felici-
tavam os pais, a fada lançou um olhar
muito triste para o bebê e a mãe, di-
zendo:
― Minha boa mulher ― pois a
fada era muito íntima, e não se im-
portava mais com uma rainha do que
com uma lavadeira ―, estas pessoas
que a seguem serão as primeiras a se
voltarem contra você; e, quanto a esta
mocinha, a melhor coisa que posso
desejar a ela é um pequeno infortúnio.
53
Então, ela tocou Rosalba com sua
varinha preta, lançou um olhar se-
vero para os cortesãos, fez um sinal
de adeus à rainha e voou pela janela.
Quando se foi, as pessoas da corte,
que ficaram maravilhadas e silencio-
sas em sua presença, começaram a
falar:
― Que fada odiosa ela é. Uma
fada bonita, de fato! Ora, ela foi ao
batizado do rei da Paflagônia e fin-
giu fazer todo tipo de coisas para
aquela família, e o que aconteceu? O
príncipe, afilhado dela, foi afastado
do trono pelo tio. Permitiríamos que
54
nossa doce princesa fosse privada
de seus direitos por algum inimigo?
Nunca, nunca, nunca, nunca!
E todos gritaram em coro:
― Nunca, nunca, nunca, nunca!
Agora, bem que eu gostaria de sa-
ber como esses finos cortesãos mos-
traram fidelidade? Um dos vassalos
do rei Couve-Flor, o duque Frigideira,
que acabei de mencionar, rebelou-se
contra o rei, que saiu para castigar
seu súdito rebelde.
― Alguém se rebela contra nosso
amado e augusto monarca! ― grita-
ram os cortesãos. ― Alguém se opõe a
55
ele? Pfff! Ele é invencível, irresistível.
Ele vai trazer Frigideira como prisio-
neiro, amarrá-lo ao rabo de um burro
e levá-lo pela cidade, dizendo: “É as-
sim que o Grande Couve-Flor trata os
rebeldes”.
O rei saiu para derrotar Frigideira;
e a pobre rainha, que era uma cria-
tura muito tímida e ansiosa, ficou
tão assustada e doente que, lamento
dizer, morreu, deixando ordens para
que suas damas cuidassem da que-
rida Rosalba. Claro que disseram
que o fariam. Claro que juraram que
morreriam antes que qualquer mal
56
acometesse a princesa. A princípio, o
Jornal do Tribunal da Crimeia afirmou
que o rei obtinha grandes vitórias
sobre o audacioso rebelde; depois, foi
anunciado que as tropas do infame
Frigideira estavam em fuga; por fim,
foi dito que o exército real logo alcan-
çaria o inimigo, e então… então veio
a notícia de que o rei Couve-Flor fora
derrotado e morto por Sua Majestade,
o rei Frigideira I!
Com a notícia, metade dos cor-
tesãos correu para cumprir o dever
para com o chefe conquistador, e a
outra metade fugiu, roubando os
57
melhores itens do palácio. A pobre-
zinha Rosalba foi deixada lá, sozinha
― muito sozinha; e foi de um quarto
a outro em seus passinhos de criança,
gritando:
― Condessa! Duquesa! ― Só que
ela dizia “Pondessa! Luquesa!”, já que
não sabia falar direito. ― Quero sopa
de carneiro; minha Alteza Real com
fome! Pondessa! Luquesa!
Ela ia dos aposentos para a sala do
trono, e ninguém estava lá; e dali para
o salão de baile, e ninguém estava lá;
e dali para a sala dos escudeiros, e
ninguém estava lá; e desceu a grande
58
escada para o salão, e ninguém es-
tava lá; e a porta estava aberta, e ela
foi para o pátio, e para o jardim, e
dali para a mata, e dali para a floresta
onde viviam as feras, e nunca mais se
ouviu falar dela!

Um pedaço rasgado do manto dela


e um dos sapatos foram encontrados
na boca de duas leoas filhotes que o
rei Frigideira e um grupo de caça real
mataram ― pois ele era o rei agora, e
reinava sobre a Crimeia.

― Então a pobre princesinha se


foi ― lamentou ele. ― Bem, o que está
59
feito, está feito. Cavalheiros, vamos
almoçar!
Um dos cortesãos pegou o sapato
e o colocou no bolso. E esse foi o fim
de Rosalba!

60
IV. Como Varinha-
Preta Não Foi
Convidada para o
Batismo da Princesa
Angélica

Quando a princesa Angélica nasceu,


os pais dela não apenas não convida-
ram a Fada Varinha-Preta para o bati-
zado como também deram ordens ao
porteiro para recusar a entrada dela.
O nome desse porteiro era Bufanosa,
e ele fora escolhido para o cargo por
Suas Altezas Reais porque era um
61
homem muito alto e feroz, capaz de
dizer “Não tem ninguém em casa”
para um comerciante ou visitante in-
desejado com tal grosseria que fazia a
maioria dessas pessoas partirem. Ele
era o marido daquela condessa que
acabamos de mencionar, e, quando
estavam juntos, brigavam da manhã
até a noite. Agora, esse sujeito usava
de grosseria com muita frequência,
como você ficará sabendo. Pois a Fada
Varinha-Preta veio chamar o prín-
cipe e a princesa, que estavam senta-
dos à janela aberta da sala de visitas,
e Bufanosa não apenas negou que
estivessem em casa, mas fez o mais
62
odioso gesto vulgar ao bater a porta na
cara da fada!
― Dê o fora, Varinha-Preta! ― disse
ele. ― Eu lhe digo, Suas Altezas não es-
tão em casa para você. ― E ele foi, como
dissemos, bater mesmo a porta.
Mas a fada usou a varinha para
evitar que esta se fechasse; e Bufanosa
saiu furioso outra vez, praguejando
da maneira mais abominável, e per-
guntou à fada “se ela achava que ele
ia ficar naquela porta o dia todo”.
― Você vai ficar o dia e a noite toda,
e por muitos e longos anos ― disse a
fada, de forma muito majestosa.
63
Bufanosa saiu pela porta, escar-
ranchou-se diante dela com suas
grandes panturrilhas, desatando a
rir, e gritou:
― Ha ha, ha! Essa foi boa! Ha…
hã… o que é isso? Deixe-me descer…
Hum-hum.
E assim ficou mudo.
Pois, quando a fada acenou com a
varinha sobre ele, Bufanosa sentiu-se
levantar do chão e esvoaçar contra a
porta e, como se um parafuso tivesse
furado sua barriga, sentiu uma dor
terrível e ficou preso à porta. Então,
seus braços voaram sobre a cabeça;
64
e as pernas, depois de se contor-
cerem loucamente, retorceram-se
sob o corpo. Ele sentiu frio, frio, to-
mando conta de si, como se estivesse
se transformando em metal, e disse:
“Hum-hum”, até que não pôde dizer
mais nada, pois estava mudo.
Ele fora transformado em metal!
Por ter sido insolente! E não era nem
mais nem menos que uma aldrava!
Lá estava ele, preso à porta no dia es-
caldante de verão, até ficar quase em
brasa; e lá estava ele, preso à porta
em todas as noites amargas de in-
verno, até que de seu nariz de bronze
65
pingassem pingentes de gelo. O men-
sageiro veio e bateu nele, e o mais
vulgar menino de recados veio com
uma carta e o bateu contra a porta.
O rei e a rainha (eram a princesa
e o príncipe à época) voltavam para
casa de uma caminhada naquela
noite, ao que ele disse:
― Ó, minha querida! Você man-
dou colocar uma aldrava nova na
porta. Ora, é a cara do nosso porteiro!
O que aconteceu com aquele vaga-
bundo bêbado?
A criada veio e esfregou o nariz
de Bufanosa com uma lixa. Uma vez,
66
quando a irmãzinha da princesa
Angélica nasceu, ele foi amarrado
com uma velha luva de pelica; e, ou-
tra noite, alguns jovens baderneiros
tentaram arrancá-lo com uma cha-
ve-inglesa e o levaram à agonia mais
excruciante ao parafusá-lo de volta.
Então, a rainha teve vontade de alte-
rar a cor da porta; os pintores esfre-
garam Bufanosa na boca e nos olhos,
e quase o sufocaram enquanto o pin-
tavam de verde-ervilha. Garanto que
ele teve tempo de se arrepender de ter
sido rude com a Fada Varinha-Preta!
Quanto à esposa, não sentia falta
67
dele. Como o marido estava sempre
bebendo cerveja na taberna, e notoria-
mente brigando com ela, endividado
com os comerciantes, supunha-se
que havia fugido de todos esses males
e migrado para a Austrália ou para
a América. E, quando o príncipe e a
princesa escolheram se tornar rei e
rainha, deixaram sua antiga casa e
ninguém mais pensou no porteiro.

68
V. Como a Princesa
Angélica Escolheu
uma Criadinha

Um dia, quando a princesa Angélica


era pequenina, estava passeando no
jardim do palácio com a sra. Bufanosa,
a governanta, segurando uma som-
brinha sobre a cabeça para evitar
que seu doce rosto ficasse cheio de
pintinhas. A princesa carregava um
pãozinho para alimentar os cisnes e
patos no lago real.
As duas não haviam nem chegado ao
69
70
lago dos patos quando se aproximou
delas uma garotinha tão engraçada!
Tinha uma grande quantidade de ca-
belo esvoaçando sobre as bochechas
gordinhas e parecia que não tomava
banho nem se penteava havia muito
tempo. Usava uma capa esfarrapada
e tinha apenas um sapato.
― Sua miseravelzinha, quem dei-
xou você entrar aqui? ― perguntou a
sra. Bufanosa.
― Me dá pão ― disse a garotinha.
― Eu tô com fome.
― Com fome! Como a ssi m?
71
― perguntou a princesa Angélica e
deu o pãozinho à criança.
― Ah, princesa! ― disse a sra.
Bufanosa. ― Quão boa, quão gentil,
quão verdadeiramente angelical a se-
nhorita é! Vejam, Vossas Majestades
― disse ela ao rei e à rainha, que agora
se aproximavam, junto do sobrinho,
o príncipe Lírio ―, como a princesa
é gentil! Ela encontrou essa misera-
velzinha suja no jardim; não sei dizer
como entrou aqui ou por que os guar-
das não a mataram a tiros no portão!
Mas a querida princesa deu-lhe todo
o pãozinho!
72
― Eu não queria o pão ― disse
Angélica.
― Mas você é um anjinho querido
mesmo assim ― afirmou a gover-
nanta.
― Sim, sei que sou. Garotinha
suja, você não me acha muito bonita?
De fato, ela estava usando um dos
melhores vestidos e chapéus; e, como
seu cabelo estava cuidadosamente
enrolado, parecia mesmo muito bem.
― Ah, bunita, bunita! ― disse a ga-
rotinha, saltitando, rindo, dançando
e mastigando seu pão; e, enquanto
73
comia, começou a cantar. ― Ah, que
divertido ter um pão de ameixa!
Com isso, e por seu sotaque engra-
çado, Angélica, Lírio, o rei e a rainha
começaram a rir muito.
― Eu posso dançar tão bem quanto
cantar ― disse a garotinha. ― Posso
dançar, posso cantar e posso fazer
todo tipo de coiso ― Ela correu para
um canteiro de f lores e, puxando
alguns narcisos, rododendros e ou-
tras flores, fez uma guirlanda para
si mesma e dançou diante do rei e da
rainha com tanta graça e beleza que
todos ficaram encantados.
74
― Quem é sua mãe… quem são
seus parentes, garotinha? ― pergun-
tou a rainha.
Ao que garotinha respondeu:
― O leãozinho era meu imão; a
grande leoa, minha mãe; nunca ouvi
falar de mais ninhum.
Ela saltou em seu único sapato, e
todos ficaram deveras distraídos.
Então Angélica disse à rainha:
― Mamãe, meu papagaio voou
ontem para fora da gaiola, e não me
importo mais com nenhum dos meus
brinquedos. Acho que essa crianci-
nha suja e engraçada vai me divertir.
75
Vou levá-la para casa e dar-lhe alguns
dos meus vestidos velhos.
― Ah, que generosa! ― exclamou
a sra. Bufanosa.
― Que já usei tantas vezes que até
cansei ― continuou Angélica. ― E ela
será minha criadinha. Você vem para
casa comigo, garotinha suja?
A criança bateu palmas, dizendo:
― Ir para casa com você, sim! Sua
princesa bunita! Ter um bom jantar e
usar um vestido novo!
Todos riram de novo e levaram a
criança para o palácio, onde, ao ser
lavada, penteada e receber um dos
76
vestidos da princesa, ficou quase tão
bonita quanto Angélica. Não que
Angélica pensasse assim, pois esta
pequena senhora nunca imaginou
que alguém no mundo pudesse ser
tão bonito, tão bom ou tão inteli-
gente quanto ela. Para que a menina
não se tornasse muito orgulhosa e
presunçosa, a sra. Bufanosa pegou
as velhas vestes esfarrapadas e o sa-
pato dela e os colocou em uma caixa
de vidro, com um cartão colocado
sobre eles, no qual estava escrito:
“Estas foram as roupas velhas com
as quais a pequena Betsinda foi en-
contrada quando a grande bondade
77
e admirável gentileza de Sua Alteza
Real, a princesa Angélica, recebeu
esta pequena pária”. A data foi adi-
cionada, e a caixa, trancada.
Durante algum tempo, a pe-
quena Betsinda foi a grande favorita
da princesa. Ela dançava, cantava e
fazia pequenas rimas para divertir
a Alteza. Mas aí a princesa ganhou
um macaco, depois um cachorrinho
e mais tarde uma boneca, e não se
importou mais com Betsinda, que
ficou muito melancólica e quieta e
não cantou mais canções engraçadas,
porque ninguém se importava em
78
ouvi-la. E então, ao crescer, tornou-
-se uma pequena dama da princesa;
embora não tivesse salário, traba-
lhava e remendava, penteava o cabelo
de Angélica, nunca ficava zangada
quando repreendida, estava sem-
pre ansiosa para agradar a princesa,
acordava cedo e dormia tarde todos
os dias, sempre por perto quando
necessário, e de fato se tornou uma
perfeita criadinha.
Assim, as meninas cresceram,
e, quando a princesa saía, Betsinda
não se cansava de esperá-la; fazia
vestidos melhores do que os da melhor
79
modista e foi útil em uma centena
de maneiras. Enquanto a princesa
estava com seus senhores, Betsinda
sentava-se a observá-los; dessa forma
aprendeu muito, pois estava sempre
acordada, embora sua senhora não
estivesse, e ouvia os sábios tutores
quando Angélica estava bocejando ou
pensando no próximo baile. Quando
o mestre de dança vinha, Betsinda
aprendia junto de Angélica; quando o
de música vinha, observava-o e pra-
ticava as peças da princesa quando
Angélica estava fora em bailes e fes-
tas; quando o de desenho vinha, to-
mava nota de tudo o que ele dizia e
80
fazia; e o mesmo com o de francês, de
italiano e todas as outras línguas ―
ela as aprendeu com os mestres que
vinham por Angélica.
Quando a princesa saía à noite,
dizia:
― Minha boa Betsinda, você pode
terminar o que comecei.
― Sim, senhorita ― dizia Betsinda,
sentando-se muito alegre, não para
terminar o que Angélica começara,
mas para fazê-lo.
Por exemplo, digamos que a prin-
cesa começava a desenhar a cabeça
81
de um guerreiro e, no início, era algo
assim:

82
Mas, quando acabava, o guerreiro
ficava assim:

83
(Só que ainda mais bonito, se pos-
sível), e a princesa assinava o dese-
nho. A corte, o rei e a rainha, e acima
de tudo o pobre Lírio, admiravam o
desenho e diziam:
― Já existiu um gênio como
Angélica?
Assim, lamento dizer, foi da
mesma forma com os bordados e ou-
tras realizações da princesa. Angélica
realmente acreditou que ela mesma
fazia essas coisas e recebeu toda a li-
sonja da corte como se cada palavra
fosse verdade. A princesa começou
a pensar que não havia nenhuma
84
jovem em todo o mundo igual a ela
e que nenhum jovem era bom o su-
ficiente para si. Quanto a Betsinda,
como não ouviu nenhum desses elo-
gios, não se empavonou com eles e,
sendo uma moça muito agradecida
e bem-humorada, estava ansiosa de-
mais para fazer tudo o que pudesse
dar prazer à sua senhora. Agora, você
começa a perceber que Angélica ti-
nha os próprios defeitos e não era
de modo algum uma maravilha das
maravilhas como as pessoas repre-
sentavam Sua Alteza Real.

85
VI. Como o Príncipe
Lírio se Comportava

E agora falemos a respeito do príncipe


Lírio, sobrinho do monarca reinante
da Paflagônia. Na página sete, já foi
dito que desde que tivesse um casaco
elegante para vestir, um bom cavalo
para montar e dinheiro no bolso ― ou
melhor, para tirar do bolso, pois o jo-
vem tinha um coração muito bom ―,
meu príncipe não se importava com
a perda da coroa e do cetro, sendo um
jovem despreocupado, pouco incli-
nado à política ou a qualquer tipo de
86
aprendizado. E, portanto, o tutor dele
tinha pouco trabalho.
Lírio não aprendia clássicos ou ma-
temática, e o lorde chanceler da
Paflagônia, Squaretoso, fazia cara feia
porque o príncipe não estudava as
leis nem a constituição do país; mas,
por outro lado, os caçadores do rei
achavam o príncipe um apto pupilo;
o professor de dança declarou que o
rapaz era um erudito muito elegante
e assíduo; o primeiro lorde da mesa de
bilhar deu os relatos mais lisonjeiros
a respeito da habilidade do príncipe;
e o mesmo fez o professor de tênis; e,
87
88
quanto ao capitão da guarda e mestre
de esgrima, o valente e veterano conde
Cortafo Racabeças, ele confessou que
desde que comandava o Exército
da Crimeia, o terrível Grumbuskin,
nunca havia encontrado um espada-
chim tão experiente quanto o prín-
cipe Lírio.
Espero que você não imagine que
houve algo inadequado quanto ao
príncipe e à princesa caminharem
juntos no jardim do palácio, nem
quanto a Lírio ter beijado a mão de
Angélica educadamente.
Em primeiro lugar, eles são primos;
89
além disso, a rainha também estava
caminhando no jardim (você não po-
deria vê-la, pois ela estava atrás da-
quela árvore), e Sua Majestade sempre
desejou que Angélica e Lírio se casas-
sem. Lírio também; às vezes, Angélica
também, pois achava o primo muito
bonito, corajoso e de bom coração.
Mas saiba que ela era tão inteligente
e sabia tantas coisas, e o pobre Lírio
não sabia nada e nada dizia. Quando
olharam para as estrelas, o que Lírio
sabia sobre os corpos celestes? Certa
vez, numa doce noite na sacada onde
estavam, Angélica disse:
90
― Lá está a Ursa.
― Onde? ― Lírio quis saber. ―
Não tema, Angélica! Se uma dúzia de
ursos vier, vou matá-los antes que a
machuquem.
― Ah, sua criatura tola! ― disse
ela. ― Você é muito bom, mas não é
muito sábio.
Quando olharam para as flores,
Lírio nada sabia sobre botânica nem
nunca tinha ouvido falar em Lineu, o
botânico. Quando as borboletas pas-
saram, Lírio não sabia nada sobre elas,
sendo tão ignorante em entomologia
quanto eu sou em álgebra. Agora
91
veja bem: Angélica, embora gostasse
bastante do primo, o desprezava por
causa de sua ignorância. Acho que
era provável que ela valorizasse de-
mais o próprio aprendizado; mas se
autovalorizar em excesso é defeito de
pessoas de todas as idades e de ambos
os sexos. Enfim, quando ninguém
estava por perto, Angélica gostava
muito do primo.
O rei Valoroso tinha uma saúde
bastante delicada, e ao mesmo tempo
gostava tanto de bons jantares (que
lhe eram preparados por seu cozi-
nheiro francês, Marmitônio), que se
92
supunha que não ia viver muito mais.
Agora, a ideia de algo acontecer com
o rei aterrorizava o astuto primeiro-
-ministro e a velha dama de compa-
nhia. Pois, pensavam Tristonho e a
condessa, quando o príncipe Lírio se
casar com a prima e ascender ao trono,
que bela posição teremos nós, de quem
ele não gosta, e que sempre fomos in-
delicados para com ele. Perderemos
nossos lugares em um piscar de olhos;
a sra. Bufanosa terá que abrir mão
de todas as joias, rendas, caixas de
rapé, anéis e relógios que pertenciam
à rainha, mãe de Lírio; e Tristonho
será obrigado a restituir duzentas e
93
dezessete mil milhões, novecentas
e oitenta e sete mil, quatrocentas e
trinta e nove libras, treze xelins, seis
pence e meio centavo; dinheiro esse
que fora deixado ao príncipe Lírio por
seu pobre e querido pai.
Desse modo, a dama de honra e
o primeiro-ministro odiavam Lírio
porque haviam feito mal ao rapaz;
e essas pessoas sem princípios in-
ventavam uma centena de histórias
cruéis sobre o pobre Lírio, a fim de
influenciarem a família real contra
ele. As histórias eram a respeito de
como Lírio era tão ignorante que
94
não conseguia soletrar as palavras
mais comuns, e escrevia Valloroso e
Angéllica com dois l’s; como bebia vi-
nho demais no jantar e estava sempre
ocioso nos estábulos com os cavala-
riços; como devia muito dinheiro na
confeitaria e no armarinho; como
costumava dormir na igreja; como
gostava de jogar cartas. A rainha
também gostava de jogar cartas; o
rei também gostava de dormir na
igreja, e comer e beber demais; e, se
Lírio devia uma ninharia por tortas,
quem lhe devia duzentas e dezessete
mil milhões, novecentas e oitenta
e sete mil, quatrocentas e trinta e
95
nove libras, treze xelins, seis pence
e meio centavo, gostaria de saber?
Detratores e fofoqueiros (na minha
humilde opinião) tinham mais que
cuidar da própria vida. Todas essas
calúnias e fofocas tiveram efeito so-
bre a princesa Angélica, que come-
çou a ver o primo com frieza, depois
a rir dele e desprezá-lo por ser tão
estúpido, depois a zombar dele por
ter amigos vulgares; e nos bailes da
corte, jantares e assim por diante,
o tratava tão mal que o pobre Lírio
ficou muito doente, ficou de cama e
mandou chamar o médico.
96
Sua Majestade, o Rei Valoroso,
como vimos, tinha suas próprias
razões para não gostar do sobrinho.
Quanto aos inocentes leitores que
perguntam o motivo, peço (com a
permissão de seus queridos pais)
que os encaminhe às páginas de
Shakespeare, onde vão ler por que
o rei John não gostava do príncipe
Arthur. Para a rainha, a tia real mas
de mente fraca, Lírio não estar à
vista era o mesmo que não existir.
Enquanto ela tinha seu uíste ― seu
jogo de cartas ― e suas festas notur-
nas, nada mais lhe importava.
97
Ouso dizer que dois vilões, os quais
deixaremos sem nome, desejavam
que o dr. Pildrafto, médico da corte,
tivesse matado Lírio imediatamente.
No entanto, só o fez sangrar e o
medicou tanto que o príncipe foi
mantido no quarto por vários meses
e ficou tão magro quanto um graveto.
Enquanto Lírio estava doente, che-
gou à Corte da Paflagônia um famoso
pintor, chamado Tomaso Lorenzo,
que pintava o Rei da Crimeia, país vi-
zinho à Paflagônia. Tomaso Lorenzo
pintou toda a Corte, que ficou encan-
tada com suas obras; pois em seus
98
99
retratos até a Condessa Bufanosa
parecia jovem, e Tristonho, de bom
coração.
― Ele lisonjeia muito ― disseram
algumas pessoas.
― Não! ― retrucou a princesa
Angélica. ― Estou acima da lisonja, e
acho que ele não fez meu retrato bo-
nito o suficiente. Não suporto ouvir
um homem de gênio chorar injus-
tamente, e espero que meu querido
papai faça de Lorenzo um cavaleiro
de sua Ordem do Pepino.
Embora os cortesãos jurassem
que Sua Alteza Real desenhava tão
100
bem que a ideia de ela ter aulas era
absurda, ainda assim a princesa
Angélica escolheu ter Lorenzo como
professor, e foi maravilhoso, desde
que ela pintasse no estúdio dele, que
lindos retratos a garota fez! Algumas
das performances foram gravadas no
Livro da Beleza: outras foram ven-
didas por quantias exorbitantes em
bazares de caridade. Angélica assinou
embaixo dos desenhos, sem dúvida,
mas acho que sei quem fez as pintu-
ras ― aquele astuto pintor, que foi
até Angélica com outros desenhos em
vez de apenas ensiná-la a desenhar.
101
Um dia, Lorenzo mostrou à prin-
cesa o retrato de um jovem de arma-
dura, com cabelos louros e os mais
lindos olhos azuis; ao rosto uma ex-
pressão ao mesmo tempo melancó-
lica e interessante.
― Caro sr. Lorenzo, quem é esse?
― perguntou a princesa.
― Nunca vi ninguém tão bonito
― disse a Condessa Bufanosa, falando
charlatanice, como sempre.
― Esse ― respondeu o pintor ―,
esse, senhorita, é o retrato de meu au-
gusto jovem mestre, Sua Alteza Real
Bulbo, Príncipe Herdeiro da Crimeia,
102
Duque de Acroceráunia, Marquês de
Poluphloisboio, e Cavaleiro Grã-Cruz
da Ordem da Abóbora. Essa é a ordem
da Abóbora, fulgente em seu peito
viril e recebida por Sua Alteza Real
de seu augusto pai, Sua Majestade o
rei Frigideira I., por sua bravura na
batalha de Rimbombamento, quando
matou com as próprias mãos prin-
cipescas o Rei de Ograria e duzentos
e onze gigantes dos duzentos e de-
zoito que formavam a guarda do rei.
O restante foi destruído pelo bravo
exército da Crimeia Tártara após
um obstinado combate, no qual os
Tártaros sofreram severamente.
103
Que príncipe!, pensou Angélica.
Tão corajoso, de aparência tão calma,
tão jovem, que herói!
― Ele é tão talentoso quanto é
corajoso ― continuou o Pintor da
Corte. ― Conhece todas as línguas
com perfeição; canta deliciosamente;
toca todos os instrumentos; compõe
óperas que foram encenadas mil noi-
tes consecutivas no Teatro Imperial
da Crimeia, e dançadas em um balé
diante do rei e da rainha; em que ele
parecia tão bonito que sua prima,
a adorável filha do rei de Circassia,
morreu por amor a ele.
104
― E por que ele não se casou
com a pobre princesa? ― perguntou
Angélica, com um suspiro.
― Porque eram primos de primeiro
grau, senhorita, e o clero proíbe essas
uniões ― disse o Pintor. ― E, além
disso, o jovem príncipe havia dado
seu coração real em algum outro lu-
gar.
― E para quem? ― perguntou Sua
Alteza Real.
― Não tenho liberdade para men-
cionar o nome da princesa ― respon-
deu o Pintor.
― Mas você pode me dizer a
105
primeira letra ― exclamou a prin-
cesa.
― Vossa Alteza Real tem liberdade
para adivinhar ― disse Lorenzo.
― Começa com Z? ― perguntou
Angélica.
O Pintor disse que não era Z; então
ela tentou Y; em seguida, X; depois, W
e retrocedeu quase todo o alfabeto.
Quando chegou no D, e não era D,
ela ficou muito irrequieta; quando
chegou em C, e não era C, ficou ainda
mais nervosa; quando chegou em B,
e não era B, ela disse:
― Ó, meu querido Bufanoso,
106
empreste-me seu frasco de cheirar!
― E, escondendo a cabeça no ombro
da condessa, sussurrou baixinho: ―
Ah, senhor, pode ser A?

― É A. E embora eu não possa, por


ordem do meu Mestre Real, dizer à
Vossa Alteza Real o nome da princesa,
a quem ele ama com ternura, loucura,
devoção e êxtase, posso mostrar-lhe o
retrato dela ― explicou o malandro e,
conduzindo a princesa até uma mol-
dura dourada, puxou uma cortina
que estava diante da garota.

Nossa! A moldura continha um


107
espelho! E nele Angélica viu o próprio
rosto!

108
VII. Como Lírio e
Angélica Brigaram

O Pintor da Corte de Sua Majestade o


Rei da Crimeia voltou aos domínios
daquele monarca, levando consigo
uma série de esboços que havia feito
na capital da Paflagônia (vocês, meus
caros, sabem, é claro, que o nome
dessa capital é Blombodinga); mas a
mais encantadora de todas as peças
era um retrato da princesa Angélica,
que todos os nobres da Crimeia vie-
ram a ver. O Rei ficou tão encantado
com a obra que condecorou o Pintor
109
com a Ordem da Abóbora (sexta
classe), e, daí em diante, o artista tor-
nou-se Sir Tomaso Lorenzo, soldado
descascador de batatas.
O Rei Valoroso também enviou
a Sir Tomaso sua Ordem do Pepino,
além de uma bela quantia de di-
nheiro, pois pintou o Rei, a Rainha e
a nobreza principal enquanto estava
em Blombodinga, e se tornou toda a
moda, para a fúria completa de todos
os artistas da Paflagônia, pois o rei
costumava apontar para o retrato do
príncipe Bulbo, que Sir Tomaso havia
deixado para trás, e dizer:
110
― Entre vocês, qual pode pintar
um quadro assim?
Estava pendurado no salão real
sobre o aparador real, e a princesa
Angélica sempre podia olhar para ele
enquanto estava sentada tomando
chá. A cada dia parecia ficar mais
e mais bonito, e a princesa gostava
tanto de olhá-lo que muitas vezes
derramava chá sobre o pano, fazendo
seus pais pestanejarem e balançarem
a cabeça e dizerem um ao outro:
― Aha! Olhe só como as coisas es-
tão indo.
Enquanto isso, o pobre Lírio estava
111
no andar de cima, em seu quarto,
muito doente, embora, como sendo
o bom rapaz que era, tomasse to-
dos os remédios horríveis passados
pelo médico; como espero que vocês
façam, meus queridos, quando esti-
verem doentes e a mamãe mandar
chamar o médico. E a única pessoa
que visitava Lírio (além de seu amigo
capitão da guarda, que quase sempre
estava ocupado ou desfilando), era a
pequena Betsinda, a criada, que cos-
tumava arrumar o quarto e sala de
estar dele, trazer-lhe seu mingau e
aquecer a cama do rapaz.
112
Quando a criadinha ia vê-lo pela
manhã e à noite, o príncipe Lírio cos-
tumava dizer:
― Betsinda, Betsinda, como está
a princesa Angélica?
Ao que Betsinda respondia:
― A princesa está muito bem,
obrigada, meu senhor.
E Lírio suspirava e pensava: Se
Angélica estivesse doente, tenho cer-
teza de que eu não estaria muito bem.
E então questionava:
― Betsinda, a princesa Angélica
perguntou por mim hoje?
113
E então Betsinda respondia:
― Não, meu senhor, hoje não.
― Ou: ― Ela estava muito ocupada
praticando piano quando a vi. ― Ou:
― Ela estava escrevendo convites
para uma festa e não falou comigo.
Ou inventava alguma desculpi-
nha, não estritamente de acordo com
a verdade: pois Betsinda era uma
criatura de tão bom coração que se
esforçava para fazer de tudo para evi-
tar aborrecimentos ao príncipe Lírio
e até chegou a levar para ele frango
assado e geleias da cozinha (isso
quando o doutor permitia, e quando
114
Lírio estava melhorando), dizendo
“que a princesa tinha feito a geleia,
ou o molho de pão, com as próprias
mãos, especialmente para Lírio”.
Ao ouvir isso, Lírio se animou e
começou a se recuperar imediata-
mente; devorou toda a geleia e pegou
o último pedaço do frango ― coxas,
sobrecoxas, peito, pés, sambiquira e
tudo a que tinha direito ―, agrade-
cendo sua querida Angélica; e sen-
tiu-se tão melhor no dia seguinte que
se vestiu e desceu, onde quem mais
deveria encontrar senão Angélica
entrando na sala? Todas as capas
115
estavam fora das cadeiras; os can-
delabros foram pendurados; as cor-
tinas cor de damasco, afastadas; os
trabalhos e coisas, levados; e sobre as
mesas havia os álbuns mais bonitos.
Angélica estava com o cabelo em roli-
nhos: para resumir, era evidente que
haveria uma festa.
― Minha nossa, Lírio! ― excla-
mou Angélica. ― Você aqui vestido
assim! Que figura você é!
― Sim, querida Angélica, desci as
escadas e me sinto tão bem hoje, gra-
ças ao frango e à geleia.
― E o que sei eu sobre frangos e
116
geleias, para você mencionar assim
de maneira rude?
― Ora, não… você não os enviou,
querida Angélica? ― perguntou Lírio.
― Eu os enviei mesmo! Não, que-
rido Lírio ― disse ela, zombando do
primo. ― Eu estava empenhada em
preparar os quartos para Sua Alteza
Real o Príncipe da Crimeia, que vem
fazer uma visita à corte de meu pai.
― O… Príncipe… da… Crimeia! ―
disse Lírio, horrorizado.
― Sim, o Príncipe da Crimeia ―
confirmou Angélica, zombando. ―
Atrevo-me a dizer que você nunca
117
ouviu falar de tal país. Mas, né, no
que você já ouviu falar? Você não sabe
se a Crimeia fica no Mar Vermelho ou
no Mar Negro, ouso dizer.
― Sei, sim, é no Mar Vermelho ―
retrucou Lírio.
A princesa começou a rir e disse:
― Ah, seu bobinho! Você é tão ig-
norante, de fato não está apto para
a sociedade! Você não sabe de nada
além de cavalos e cães, e só serve para
jantar na masmorra com os dragões
mais pesados de meu pai real. Não
fique tão surpreso comigo, senhor:
vá e vista suas melhores roupas para
118
receber o príncipe, e deixe-me prepa-
rar a sala de estar.
Lírio disse:
― Ah, Angélica, Angélica, não
pensei isso de você. Esta não era a sua
linguagem quando, no jardim, você
me deu este anel e eu lhe dei o meu,
e você me deu aquele bei…
Mas o que foi, nunca saberemos,
pois Angélica, furiosa, gritou:
― Saia daqui, sua criatura atre-
vida e rude! Como você se atreve a
me lembrar de sua grosseria? Quanto
ao seu anelzinho de dois centavos,
pronto, senhor, pronto!
119
E ela o jogou pela janela.
― Era a aliança de casamento da
minha mãe! ― exclamou Lírio.
― Não me importa de quem era o
anel de casamento ― gritou Angélica.
― Case-se com a pessoa que pegar o
anel; porque você não vai se casar co-
migo. E me devolva o meu anel. Não
tenho paciência com pessoas que
se gabam das coisas que dão! Eu sei
quem vai me dar coisas muito melho-
res do que você já me deu. Um anel
pobre que não vale nem cinco xelins!
Agora, Angélica mal sabia que o
anel que Lírio lhe dera era um anel
120
encantado: se um homem o usasse,
todas as mulheres se apaixonariam
por ele; se uma mulher usasse, to-
dos os cavalheiros se apaixonariam
por ela. A rainha, mãe de Lírio, uma
pessoa de aparência bastante co-
mum, era imensamente admirada
enquanto usava o anel, e seu marido
ficava desvairado quando a esposa
adoecia. Mas quando ela chamou o
pequeno Lírio e colocou o anel no
dedo do menino, o rei Sávio não mais
parecia se importar tanto com a es-
posa, e transferiu todo o seu amor
para o filho. E, enquanto ele tinha o
anel, todos o amavam; mas quando,
121
ainda criança, o deu para Angélica,
e as pessoas começaram a amá-la e
admirá-la; e Lírio, como se costuma
dizer, foi deixado de lado.
― Sim ― disse Angélica, conti-
nuando com seu jeito tolo e ingrato.
― Eu sei quem vai me dar coisas
muito mais finas do que as perolazi-
nhas meia-boca que você me deu.
― Muito bem, senhorita! Você
pode pegar de volta seu anel também!
― exclamou Lírio, seu olhar lançando
fogo nela, e então, quando seus olhos
se abriram de repente, gritou: ― Rá!
O que significa isso? É esta a mulher
122
por quem estive apaixonado toda a
minha vida? Fui tão tolo a ponto de
sacrificar minha consideração por
você? Pois… na verdade… sim… você
é um pouco torta!
― Ah, seu maldito! ― gritou
Angélica.
― E, agora que estou vendo, você…
você é um pouco vesga.
― Ora! ― exclamou Angélica.
― E seu cabelo é ruivo… e você
está com varíola… e o quê? Você tem
três dentes postiços… e uma perna
mais curta que a outra!
― Seu ogro, seu ogro! ― gritou
123
Angélica. E ao pegar o anel com uma
das mãos, deu um, dois, três tapas
no rosto de Lírio, e teria arrancado
os cabelos dele se o rapaz não tivesse
começado a rir, e a chorar…

― Ai meu Deus, Angélica, não


puxe meu cabelo, está doendo! Estou
vendo que você pode remover uma
grande quantidade dos seus, sem te-
soura, sem puxar nada. Oh, ho, ho!
Ha, ha, ha! Ho, hi, hi!

E o príncipe quase se sufocou de


tanto rir, e ela, de raiva; quando, com
uma reverência baixa, e trajando seu
124
hábito da corte, o conde Gambabella,
o primeiro escudeiro, entrou e disse:
― Altezas Reais! Suas Majestades
os esperam na Sala do Trono Rosa,
onde aguardam a chegada do Príncipe
da Crimeia Tártara.

125
VIII. Como
Bufanosa pegou o
anel encantado e o
príncipe Bulbo foi à
corte

A chegada do príncipe Bulbo agitara


toda a corte. Todos foram obrigados
a vestir suas melhores roupas: os la-
caios tinham suas librés de gala; o
Lorde Chanceler, sua nova peruca; os
guardas, suas últimas túnicas novas;
e a Condessa Bufanosa, pode ter cer-
teza, se alegrou com a oportunidade
126
de decorar o velho dela com suas
melhores coisas. Ela estava andando
pelo pátio do palácio, a caminho de
servir Suas Majestades quando avis-
tou algo brilhando na calçada e pediu
ao menino que a acompanhava para
ir buscar o objeto que lá brilhava. Era
um coitadinho feio, com algumas das
roupas velhas do porteiro cortadas
e apertadas demais para ele; e, no
entanto, quando pegou o anel (o que
acabou sendo o objeto que brilhava) e
o levou para sua senhora, esta pensou
que ele parecia um pequeno cupido.
Ele entregou o anel; era uma coisinha
pequena demais para qualquer um
127
de seus dedos velhos, então ela o co-
locou no bolso.

― Ah, mãe! ― disse o menino, olhando


para ela. ― Como… como você está
bunita hoje, mãe!

“E você também, Jacky”, ela ia


dizer; mas, olhando para ele… não,
ele já não era mais bonito, mas sim
apenas o pequeno Jacky de cabelos
cor de cenoura. No entanto, elogios
do mais feio dos homens ou meninos
são bem-vindos, e Bufanosa, man-
dando o menino segurar a cauda de
seu vestido, caminhou com muito
128
129
bom humor. Os guardas a saudaram
com peculiar respeito.
O capitão Racabeças, na antessala,
disse:
― Minha querida senhora, você
está como um anjo hoje.
E assim, curvando-se e sorrindo,
Bufanosa entrou e tomou seu lugar
atrás de seus senhores reais, que es-
tavam na sala do trono, aguardando
o príncipe da Crimeia. A princesa
Angélica sentou-se aos pés deles, e
atrás da cadeira do rei estava o prín-
cipe Lírio, parecendo muito feroz.
O Príncipe da Crimeia fez sua
130
aparição, com a presença do Barão
Bota de Neve, seu camarista, e se-
guido por um pajem negro carre-
gando a mais bela coroa que você já
viu! Estava usando seu traje de via-
gem, e seu cabelo, como se pode ver,
estava um pouco bagunçado.
― Já cavalguei quase quinhentos
quilômetros desde o café da manhã
― disse ele ―, tão ansioso estava para
ver a prin… a corte e a augusta famí-
lia da Paflagônia, e não pude esperar
um minuto sequer antes de aparecer
na presença de Vossas Majestades.
Lírio, detrás do trono, explodiu
131
em uma gargalhada desdenhosa;
mas toda a comitiva real estava tão
agitada que não ouviu essa pequena
explosão.
― Sua Majestade Real é bem-
-vinda em qualquer traje ― disse o
rei. ― Tristonho, uma cadeira para
Sua Alteza Real.
― Qualquer traje que Sua Alteza
Real use é um traje da corte ― com-
pletou a princesa Angélica, sorrindo
graciosamente.
― Ah! Mas vocês deveriam ver
meus outros trajes ― disse o prín-
cipe. ― Eu deveria tê-los colocado,
132
mas aquele transportador estúpido
não os trouxe. Quem é que está rindo?
Era Lírio rindo.
― Eu estava rindo porque você
disse agora mesmo que estava com
tanta pressa para ver a princesa que
mal podia esperar para trocar de ves-
tes ― disse ele. ― E agora você diz que
vem com essas vestes porque não tem
outras.
― E quem é você? ― indagou o
príncipe Bulbo, muito ferozmente.
― Meu pai era rei deste país, e eu
sou seu único filho, o príncipe! ― res-
pondeu Lírio, com igual arrogância.
133
― Ah! ― disseram o rei e Tristonho,
parecendo muito agitados; mas o
primeiro, recompondo-se, disse:
― Caro príncipe Bulbo, esqueci de
lhe apresentar à Vossa Alteza Real
meu querido sobrinho, Sua Alteza
Real o Príncipe Lírio! Conheçam-se!
Abracem-se! Lírio, dê sua mão à Sua
Alteza Real!
E Lírio, dando a mão, apertou a
do pobre Bulbo até que lágrimas es-
corressem de seus olhos. Tristonho
trouxe então uma cadeira para o visi-
tante real e colocou-a na plataforma
onde estavam sentados o rei, a rainha
134
e o príncipe; mas a cadeira estava
na beirada da plataforma e, quando
Bulbo se sentou, ela tombou, e ele foi
junto, rolando e urrando como um
touro. Lírio rugiu ainda mais alto
com esse desastre, mas foi com risa-
das; o mesmo aconteceu com toda a
corte quando o príncipe Bulbo se le-
vantou; pois embora ao entrar na sala
não parecesse muito ridículo, por um
momento, ao se levantar da queda,
parecia tão excessivamente simples e
tolo, que ninguém pôde deixar de rir
dele. Ao entrar na sala, foi visto car-
regando uma rosa na mão, que caiu
junto dele.
135
― Minha rosa! Minha rosa! ― gri-
tou Bulbo; e seu camareiro adian-
tou-se e apanhou-a, entregando-a
ao príncipe, que então a guardou no
colete.
Então, as pessoas se pergunta-
ram por que haviam rido; não havia
nada particularmente ridículo nele.
Era bastante baixo, bastante robusto,
bastante ruivo, mas, enfim, para um
príncipe, não era tão ruim.
Então eles se sentaram e conver-
saram, os personagens reais jun-
tos, os oficiais da Crimeia com os da
Paflagônia ― Lírio muito confortável
136
com Bufanosa atrás do trono. Olhou-a
com olhos tão tenros que o coração
dela ficou batendo forte.
― Ah, querido Príncipe ― disse
ela ―, como você pode falar tão ar-
rogantemente na presença de Suas
Majestades? Declaro que pensei que
eu deveria ter desmaiado.
― Eu deveria ter pegado você em
meus braços ― disse Lírio, parecendo
arrebatado.
― Por que você foi tão cruel com
o príncipe Bulbo, querido príncipe?
― Porque eu o odeio.
― Você está com ciúme dele, e
137
ainda ama a pobre Angélica ― cho-
rou Bufanosa, cobrindo os olhos com
o lenço.
― Amei, mas não amo mais! ―
bradou Lírio. ― Eu a desprezo! Se ela
fosse herdeira de vinte mil tronos, eu
a desprezaria. Mas por que falar de
tronos? Eu perdi o meu. Estou fraco
demais para recuperá-lo. Estou sozi-
nho e não tenho amigos.
― Ah, não diga isso, querido prín-
cipe! ― apaziguou Bufanosa.
― Além disso ― prosseguiu ele ―,
estou tão feliz aqui atrás do trono que
138
não trocaria de lugar nem pelo trono
do mundo!
― Acerca do que vocês estão con-
versando aí? ― A rainha, que tinha
um coração muito bom, embora não
cheio de sabedoria, quis saber. ― É
hora de se vestir para o jantar. Lírio,
leve o Príncipe Bulbo ao quarto dele.
Príncipe, se suas roupas não chega-
rem, ficaremos muito contentes em
vê-lo como está.
Quando o príncipe Bulbo che-
gou ao quarto, porém, a bagagem
estava lá e desfeita. O cabeleireiro
entrou, barbeou e cortou os cabelos
139
140
do príncipe. Quando a campainha
do jantar tocou, a companhia real
teve que esperar mais de vinte e
cinco minutos até que Bulbo apare-
cesse, período em que o rei, que não
suportava esperar, ficou o mais mal-
-humorado possível. Quanto a Lírio,
durante todo esse tempo ele não saiu
do lado da Madame Bufanosa, mas
ficou com ela no parapeito de uma ja-
nela, fazendo-lhe cumprimentos. Por
fim, o cavalariço das câmaras anun-
ciou Sua Alteza Real o Príncipe da
Crimeia! E a nobre companhia entrou
na sala de jantar real. Foi uma festa
bem pequena; apenas o rei e a rainha,
141
a princesa, a quem Bulbo tirou, os
dois príncipes, a Condessa Bufanosa,
Tristonho, o primeiro-ministro e o
camarista do príncipe Bulbo. Pode ter
certeza de que eles jantaram muito
bem ― pense no que você mais gosta
de comer e imagine que o prato es-
tava servido à mesa.
Durante todo o jantar, a princesa
conversou sem parar com o príncipe
da Crimeia, que comeu demais sem
nunca tirar os olhos do prato, exceto
quando Lírio, que estava cortando
um ganso, acabou jogando recheio e
molho de cebola em um deles. Lírio só
142
fez rir quando o príncipe enxugou a
frente da camisa e o rosto com o lenço
de bolso perfumado. Não se descul-
pou. Quando o príncipe olhava para
ele, Lírio desviava o olhar.
― Príncipe Lírio, posso ter a honra
de tomar uma taça de vinho com
você? ― perguntou Bulbo.
Lírio não respondeu. Só tinha
conversa e olhos para a Condessa
Bufanosa, que você pode ter cer-
teza de que estava satisfeita com as
atenções dos rapaz ― aquela velha
criatura vaidosa! Quando Lírio não
estava tecendo elogios a ela, estava
143
tirando sarro do príncipe Bulbo, tão
alto que Bufanosa ficava batendo nele
com o leque, e dizendo:
― Ah, seu príncipe brincalhão!
Ah, diabos, o príncipe vai ouvir!
― Bem, eu não me importo ― di-
zia Lírio, mais alto ainda.
Felizmente, o rei e a rainha não
ouviram; pois Sua Majestade a rainha
era um pouco surda, e o rei pensou
tanto em seu próprio jantar e fez um
barulho tão terrível ao devorá-lo que
não ouviu mais nada. Após o jantar,
Suas Majestades foram dormir em
suas poltronas.
144
Foi então que Lírio começou suas
travessuras com o príncipe Bulbo,
servindo aquele jovem cavalheiro
com vinho do porto, xerez, vinho
madeira, champanhe, vinho mar-
sala, aguardente de cereja e cerveja
clara, que Bulbo bebia sem parar.
Mas, ao servir seu convidado, Lírio
foi obrigado a beber por conta pró-
pria e, lamento dizer, tomou mais do
que deveria, de modo que os jovens
estavam muito barulhentos, rudes e
tolos quando se juntaram às damas
depois do jantar; e pagaram caro por
essa imprudência, como agora, meus
queridos, vocês vão ficar sabendo!
145
Bulbo então foi sentar-se ao lado
do piano, onde Angélica tocava e can-
tava, e cantou desafinado, virou o
café quando o lacaio o trouxe, riu fora
de hora, falou demais, e adormeceu e
roncou horrivelmente. Buuu, que no-
jento! Mas ali, deitada no sofá de ce-
tim rosa, Angélica ainda insistia em
considerá-lo o mais belo dos seres hu-
manos. Sem dúvida, foi a rosa mágica
que Bulbo usava que provocou essa
paixão por parte de Angélica; mas
por um acaso ela é a primeira jovem
a achar um sujeito bobo encantador?
L í r io s e nt o u- s e a o l a d o d e
146
Bufanosa, cujo rosto velho ele tam-
bém começava a achar mais bonito
a cada momento. Assim, teceu-lhe
os elogios mais ultrajantes: Nunca
houve uma mais encantadora; mais
velha do que ele? Bobagem! Ele se
casaria com ela, não aceitaria nada
além dela!
Casar-se com o herdeiro do trono!
Ali estava uma chance! A astuta as-
sanhada pegou uma folha de papel e
escreveu nela: “Venho por meio desta
informar que eu, Lírio, filho único de
Sávio, rei da Paflagônia, prometo me
casar com a encantadora e virtuosa
147
Barbara Griselda, Condessa Bufanosa,
e viúva do falecido Jenkins Bufanoso,
escudeiro”.
― O que você está escrevendo,
charmosa Bufaninha? ― Lírio, que
estava recostado no sofá, junto à es-
crivaninha, quis saber.
― Apenas uma ordem para você
assinar, caro príncipe, para dar car-
vão e cobertores aos pobres, neste
tempo frio. Olhe! O rei e a rainha es-
tão dormindo, e a ordem de sua alteza
real vai bastar.
Então Lírio, que tinha coração
bom, como Bufaninha bem sabia,
148
assinou a ordem imediatamente;
e, quando a condessa a guardou no
bolso, você pode imaginar a postura
dela. Estava pronta para sair da sala
antes mesmo da própria rainha, pois
agora ela era a esposa do rei por di-
reito da Paflagônia! Não queria falar
com Tristonho, que considerava um
bruto, por privar seu querido marido
da coroa! E depois as velas chega-
ram e ela ajudou a despir a rainha
e a princesa, foi para seu próprio
quarto e praticou numa folha de pa-
pel: “Griselda Paflagônia”, “Barbara
Regina”, “Griselda Barbara, Paf.”, e
não sei que assinaturas além disso,
149
pensando no dia em que seria rainha,
com certeza.

150
IX. Como Betsinda
Conseguiu
Esquentar a Cama

A pequena Betsinda foi arrumar o


cabelo de Bufanosa, e a condessa fi-
cou tão satisfeita que, por espanto, a
elogiou.
― Betsinda, você arrumou meu
cabelo muito bem hoje. Prometi-lhe
um presentinho. Aqui estão cinco
xel… não, aqui está um lindo anelzi-
nho, que encontrei… que eu tenho há
algum tempo.
151
E então deu a Betsinda o anel que
havia pegado no pátio. Se encaixava
perfeitamente no dedinho da me-
nina.
― É como o anel que a princesa
costumava usar ― disse a criada.
― Na d a d i s s o ― r e t r u c o u
Bufanosa. ― Eu o tenho há muito
tempo. Pronto, aconcheg ue-me
bem confortável na cama; e agora,
como é uma noite muito fria ― a
neve batia na janela ―, você pode
ir aquecer a cama do querido prín-
cipe Lírio, como uma boa menina, e
então pode desenrolar minha seda
152
verde, e depois pode me fazer um
gorro para a manhã, e também con-
sertar aquele buraco na minha meia
de seda, e depois disso você pode ir
para a cama, Betsinda. Lembre-se de
que vou querer minha xícara de chá
às cinco horas da manhã.
― Acho melhor aquecer a cama
dos dois cavalheiros, senhora.
Bufanosa, em resposta, disse:
― Hau-au-ho! Grauhawhoo! Hong-
hrho! ― Na verdade, ela estava ron-
cando profundamente.
O quarto dela, você sabe, ficava ao
lado do quarto do rei e da rainha, e o
153
da princesa ficava ao lado do deles. A
bela Betsinda foi buscar as brasas na
cozinha, onde encheu a panela real
de esquentar a cama.
Veja bem, era uma garota muito
gentil, alegre, civilizada e bonita;
mas deve ter havido algo muito ca-
tivante a respeito dela esta noite,
pois todas as mulheres na sala dos
criados começaram a repreendê-la
e insultá-la. A governanta disse que
ela era uma coisinha atrevida e arro-
gante: a criada perguntou como ela
ousava usar aqueles cachos e fitas,
era muito inapropriado! A cozinheira
154
(pois havia uma cozinheira e um co-
zinheiro) disse à ajudante de cozinha
que nunca vira nada de mais naquela
criatura. Mas quanto aos homens,
todos eles, o cocheiro John, Buttons,
o pajem, e Monsieur, o criado do prín-
cipe da Crimeia, levantaram-se e dis-
seram:
― Meus olhos!
― Caramba! Que menina bonita
é Betsinda!
― Uau!
― Ó céus!
― Tirem as mãos, nada de serem
impertinentes, seu povo vulgar e
155
baixo! ― resmungou Betsinda, saindo
com a panela de carvão. Enquanto
subia, ouviu os jovens cavalheiros jo-
gando bilhar: primeiro foi até a cama
do príncipe Lírio, que ela aqueceu,
e depois para o quarto do príncipe
Bulbo.
Assim que terminou, ele entrou;
e assim que a viu…
― Aaaaaaaaa! Que liin-iiin-
-da criatura você é! Seu anjo, seu…
seu botão de rosa, deixe-me ser teu
bubu… teu Bulbo também! Voe para
o deserto, voe comigo! Nunca vi uma
jovem gazela para me alegrar com
156
seu olho azul-escuro que tinha olhos
como brilho. Tu, ninfa de beleza,
pegue, pegue este jovem coração.
Um tão sincero nunca ficou quieto
dentro do colete de um soldado. Seja
minha! Seja minha! Seja princesa da
Crimeia! Meu pai real aprovará nossa
união; e, quanto àquela Angélica-
cabelo-de-cenoura, não me importo
mais com ela.
― Vá embora, Alteza Real, e vá para
a cama, por favor ― disse Betsinda,
com a panela.
Mas Bulbo disse:
― Não, nunca, até que você jure
157
ser minha, tua adorável e corada ca-
mareira divina! Aqui, aos teus pés,
jaz o Bulbo Real, o trêmulo cativo dos
olhos de Betsinda.
E assim continuou, fazendo-se
tão absurdo e ridículo que Betsinda,
cheia de graça, deu-lhe um toque com
a panela, que, eu prometo, o fez gritar
“Uuuu” de uma maneira muito dife-
rente.
O príncipe Bulbo fez tanto baru-
lho que o príncipe Lírio, ouvindo da
sala ao lado, entrou para ver qual o
que estava acontecendo. Assim que
viu a cena, Lírio, furioso, atirou-se
158
sobre Bulbo, chutou-o da maneira
mais rude até o teto e continuou chu-
tando-o até seu cabelo ficara comple-
tamente desgrenhado.
A pobre Betsinda não sabia se
ria ou chorava; o chute com certeza
devia machucar o príncipe, mas ele
estava tão engraçado! Quando Lírio
terminou de derrubá-lo no chão, e
enquanto o príncipe se esfregava
em um canto, o que você acha que o
primeiro fez? Ele foi até Betsinda de
joelhos, pegou a mão dela, implorou
que ela aceitasse seu coração e se
ofereceu para se casar com a criada
159
naquele mesmo momento. Imagine
o estado de Betsinda, que estivera
apaixonada pelo príncipe desde que
o vira pela primeira vez no jardim
do palácio, quando ainda era muito
pequena.
― Ah, divina Betsinda! ― disse o
príncipe. ― Como vivi quinze anos
em tua companhia sem ver tuas
perfeições? Que mulher em toda a
Europa, Ásia, África e América, ou
melhor, na Austrália, que ainda não
foi descoberta, pode presumir ser tua
igual? Angélica? Pff! Bufanosa? Até
parece! A rainha? Há, ha! Tu és minha
160
161
rainha. Tu és a verdadeira Angélica,
porque tu és realmente angelical.
― Ah, príncipe! Sou apenas uma
pobre camareira ― disse Betsinda,
parecendo, no entanto, muito satis-
feita.
― Não cuidaste de mim na minha
doença, quando todos me abandona-
ram? ― prosseguiu Lírio. ― Sua mão
gentil não afofou meu travesseiro e
me trouxe geleia e frango assado?
― Sim, querido príncipe, eu fiz
essas coisas ― disse Betsinda ―, e
também costurei os botões da camisa
de Sua Alteza Real, se quer saber, Sua
162
Alteza Real ― disse esta donzela in-
gênua.

Quando o pobre príncipe Bulbo,


que então estava loucamente apai-
xonado por Betsinda, ouviu tal de-
claração, quando viu os olhares
inconfundíveis que ela lançou sobre
Lírio, começou a chorar amarga-
mente e arrancou tufos de cabelo, até
que o chão estivesse coberto de fios.

Betsinda havia deixado a panela


no chão enquanto os príncipes con-
versavam, e como eles passaram a
brigar e a serem muito ferozes um
163
com o outro, achou melhor escapulir
dali.
― Seu grande tonto chorão, ar-
rancando cabelos; é claro que você vai
me dar satisfação por ter insultado
Betsinda. Você se atreve a se ajoelhar
diante da princesa Lírio e beijar a
mão dela!
― Ela não é a princesa Lírio! ―
rugiu Bulbo. ― Ela será a princesa
Bulbo, e nenhuma outra assumirá
essa posição.
― Você está noivo da minha prima
― gritou Lírio.
164
― Eu odeio sua prima ― retrucou
Bulbo.
― Você me vai me dar satisfação
por insultá-la! ― gritou Lírio, enfu-
recido.
― Vou tirar sua vida.
― Vou passar por cima de você.
― Vou cortar sua garganta.
― Vou estourar seus miolos.
― Vou arrancar sua cabeça.
― Mandarei um amigo para aca-
bar com você amanhã de manhã.
― Vou te dar um tiro à tarde.
― Nos veremos outra vez ― disse
165
Lírio, brandindo o punho fechado
diante de Bulbo; e pegando a panela,
beijou-a, porque Betsinda a havia to-
cado, e desceu correndo.
O que ele viu no patamar senão
Sua Majestade conversando com
Betsinda, a quem chamava por todos
os tipos de nomes carinhosos. Sua
Majestade tinha ouvido uma briga,
afirmou e, sentindo o cheiro de algo
queimando, saiu para ver o que es-
tava acontecendo.
― Talvez sejam os jovens cava-
lheiros fumando, senhor ― sugeriu
Betsinda.
166
― Charmosa camareira ― disse o
rei (como todos os outros) ―, não se
preocupe com os rapazes! Dê atenção
a um autocrata de meia-idade, que
em seu tempo não foi considerado
feio.
― Ah, senhor! O que Sua Majestade
vai dizer? ― exclamou Betsinda.
― Sua Majestade! ― riu o mo-
narca. ― Que Sua Majestade seja
enforcada. Não sou o Autocrata da
Paf lagônia? Não tenho bloqueios,
cordas, machados, carrascos… hein?
Não corre um rio pela muralha do
meu palácio? Não tenho sacos para
167
dentro dos quais costurar esposas?
Diga apenas a palavra, e será minha;
sua senhora será imediatamente cos-
turada em um saco, e você terá meu
coração e trono.

Quando Lírio ouviu esses sen-


timentos atrozes, esqueceu o res-
peito geralmente prestado à realeza,
ergueu a panela e derrubou o rei
como uma panqueca; depois disso,
Mestre Lírio saiu correndo e fugiu,
e Betsinda saiu gritando, e a rainha,
Bufanosa e a princesa saíram de seus
quartos. Imagine seus sentimentos
168
ao ver seu marido, pai, soberano, na-
quela posição!

169
X. Como o Rei
Valoroso Estava
Terrivelmente
Apaixonado

Assim que as brasas começaram a


queimá-lo, o rei voltou a si e se levan-
tou.

― Ei! Meu capitão dos guardas!


― Sua Majestade exclamou, batendo
seus pés reais com raiva.

Que espetáculo lamentável! O na-


riz do rei estava torto pelo golpe que
170
o príncipe Lírio dera! Sua Majestade
rangeu os dentes de raiva.

― Racabeças ― disse ele, tirando


uma sentença de morte do bolso do
roupão. ― Racabeças, bom Racabeças,
pegue o príncipe. Você o encontrará
no quarto dele. Ele se atreveu, com
mão sacrílega, a bater na touca sa-
grada de um rei, Racabeças, e a me
derrubar com uma panela! Vá, chega
de objeções, o vilão deve morrer!
Garanta que isso seja feito, ou então,
hum-hum, a culpa será sua! ― E, se-
guido pelas damas, levantando as
171
172
caudas de seu roupão, o rei entrou em
seu próprio quarto.
O capitão Racabeças, que gostava
sinceramente de Lírio, ficou muito
afetado.
― Pobre, pobre Lírio! ― disse ele,
as lágrimas rolando por seu rosto vi-
ril e escorrendo por seus bigodes. ―
Meu nobre jovem príncipe, é minha
mão que deve levá-lo à morte?
― Engane ele ― disse uma voz
feminina. Era Bufanosa, que tinha
saído de roupão quando ouviu o ba-
rulho. ― O rei disse que você deveria
173
enforcar o príncipe. Bem, enforque o
príncipe.
― Não entendi ― disse Racabeças,
que não era um homem muito inte-
ligente.
― Seu bobo! Ele não disse qual
Príncipe ― explicou Bufanosa.
― Não, ele certamente não disse
qual ― concordou Racabeças.
― Bem, então pegue Bulbo e en-
forque-o!
Quando o capitão Racabeças ou-
viu isso, começou a dançar de alegria.
― A obediência é a honra de um
174
soldado ― disse ele. ― A cabeça do
príncipe Bulbo servirá muito bem.
― E foi prender o príncipe logo na
manhã seguinte.
Ele bateu na porta.
― Quem está aí? ― perguntou
Bulbo. ― Capitão Racabeças? Entre,
por favor, meu bom capitão. Estou en-
cantado em vê-lo, eu estava mesmo
esperando você.
― Estava?
― Bota de Neve, meu camarista,
atuará por mim ― informou o prín-
cipe.
― Peço perdão à Sua Alteza Real,
175
mas você terá que agir por conta pró-
pria, e é uma pena acordar o Barão
Bota de Neve.
O príncipe Bulbo ainda parecia
encarar o assunto com muita frieza.
― Claro, capitão ― disse ele. ―
Você veio tratar aquele caso com o
príncipe Lírio?
― Exatamente, aquele caso do
príncipe Lírio.
― Serão pistolas ou espadas, capi-
tão? ― pergunta Bulbo. ― Sou muito
habilidoso com ambas, e farei pelo
príncipe Lírio tão certo quanto meu
176
nome é Minha Alteza Real Príncipe
Bulbo.
― Há algum engano, meu senhor
― disse o capitão. ― Aqui a questão
é tratada com machados.
― Machados? Que perigo! Chame
meu camarista, ele será meu segundo,
e em dez minutos, eu me gabo, você
verá a cabeça do mestre Lírio fora de
seus ombros impertinentes. Estou
sedento por seu sangue. Uuuhh! ―
Ele parecia tão selvagem quanto um
ogro.
― Peço desculpas, senhor, mas
177
com este mandado devo prendê-lo e
entregá-lo ao… ao carrasco.
― Pfff, pfff, meu bom homem!
Pare, eu digo. Ahhh, uhaaa! ― foi
tudo o que esse infeliz príncipe foi
capaz de dizer, pois os guardas de
Racabeças o agarraram, amarraram
um lenço na boca e no rosto dele e o
levaram para o local da execução.
O rei, que por acaso estava conver-
sando com Tristonho, viu-o passar,
tomou uma pitada de rapé e disse:
― Pobre Lírio. Agora vamos to-
mar o café da manhã.
O capitão da guarda entregou seu
178
179
prisioneiro ao xerife, com a ordem
fatal:
“À vista, corte a cabeça do portador.
― Valoroso XXIV.”
― Isso é um erro ― disse Bulbo,
que parecia não entender nada do
negócio.
― Pfff, pfff ― retrucou o xerife.
― Traga Jack Ketch imediatamente.
Jack Ketch!
E o pobre Bulbo foi levado ao ca-
dafalso, onde um carrasco com um
bloco e um machado enorme estava
sempre pronto para o caso de ser pro-
curado.
180
Mas agora devemos voltar a Lírio
e Betsinda.

181
XI. O que Bufanosa
fez com Lírio e
Betsinda

Bufanosa, que tinha visto o que havia


acontecido com o rei, e sabia que Lírio
deveria sofrer, levantou-se muito
cedo na manhã seguinte e foi fazer
alguns planos para resgatar seu que-
rido marido, forma como a velha boba
insistia em chamá-lo. Encontrou-o
andando para cima e para baixo no
jardim, pensando em uma rima para
Betsinda (linda e vinda foram tudo
o que ele conseguiu), e de fato tendo
182
esquecido tudo sobre a noite anterior,
exceto que Betsinda era o mais ado-
rável dos seres.
― Bem, querido Lírio.
― Bem, querida Bufaninha ―
cumprimentou Lírio, só que ele foi
bastante satírico.
― Estive pensando, querido, o que
você deve fazer nesta enrascada. Você
deve viajar pelo país por um tempo.
― Que enrascada? Viajar pelo
país? Nunca sem ela, a que eu amo,
condessa.
― Não, ela vai acompanhá-lo, que-
rido príncipe ― disse ela, em seu tom
183
mais persuasivo. ― Primeiro, deve-
mos pegar as joias pertencentes aos
nossos pais reais, e as dela e as de sua
atual Majestade. Aqui está a chave,
pegue; são todas suas, você sabe, por
direito, pois você é o legítimo rei da
Paflagônia, e sua esposa será a legí-
tima rainha.
― Ela será?
― Sim; e depois de pegar as joias,
vá ao apartamento de Tristonho,
onde, debaixo da cama dele, você en-
contrará sacos contendo dinheiro no
valor de L2I7.000.000.987.439, 13S. 6
1/2d., todos pertencentes a você, pois
184
ele o tirou do quarto de seu pai real
no dia em que este veio a morrer. Com
isso vamos partir.
― Nós vamos partir? ― Lírio quis
saber.
― Sim, você e sua noiva… sua
Bufaninha! ― exclamou a Condessa,
com um olhar lânguido.
― Você minha noiva! ― horrori-
zou-se Lírio. ― Você, sua velha hor-
rorosa!
― Ah, você… seu maldito! Você
não me deu este papel jurando casa-
mento? ― gritou Bufaninha.
― Saia, sua gansa velha! Eu amo
185
Betsinda, e apenas Betsinda! ― E em
um ataque de terror ele correu dela o
mais rápido que pôde.
― He! He! He! ― gritou Bufaninha.
― Uma promessa é uma promessa se
houver leis na Paflagônia! E quanto
a essa monstra, essa maldita, esse
demônio, essa megera feia; quanto a
essa ingrata, essa fera, Betsinda, mes-
tre Lírio não terá pouca dificuldade
em descobrir seu paradeiro. Ele pode
procurar muito antes de encontrá-la,
eu garanto. Ele mal sabe que a srta.
Betsinda é…
É o quê? Agora, você ouvirá. A
186
pobre Betsinda levantou-se às cinco
da manhã de inverno para levar chá
para sua cruel senhora; e, em vez de
encontrá-la de bom humor, encon-
trou Bufaninha com a pá virada. A
condessa deu meia dúzia de socos
nas orelhas de Betsinda enquanto se
vestia; mas como a pobrezinha es-
tava acostumada a esse tipo de tra-
tamento, ela não se sentiu alarmada.
― E agora ― disse a condessa ―,
quando Sua Majestade tocar a cam-
painha duas vezes, vou incomodá-la,
senhorita, para comparecer.
Então, quando o sino da rainha
187
tocou duas vezes, Betsinda foi até Sua
Majestade e fez uma linda reverên-
cia. A rainha, a princesa e Bufanosa
estavam na sala. Assim que a viram,
começaram a falar:
― Sua maldita! ― disse a rainha.
― Sua coisinha vulgar! ― disse a
princesa.
― Sua besta! ― disse Bufanosa.
― Saia da minha frente! ― disse
a rainha.
― Vá embora, vá! ― disse a prin-
cesa.
― Saia daqui! ― disse Bufanosa.
188
― Ai! Ai de mim!

Eventos muito lamentáveis ocor-


reram a Betsinda naquela manhã, e
tudo em consequência daquele negó-
cio fatal da panela na noite anterior. O
rei se ofereceu para casar-se com ela;
é claro que Sua Majestade a rainha es-
tava com ciúme. Bulbo se apaixonara
por ela; é claro que Angélica estava
furiosa. Lírio estava apaixonado por
ela, e, ah, que fúria que Bufaninha
sentia!

― Tire esse chapéu/casaco/ves-


tido que lhe dei! ― disseram elas, e
189
190
começaram a rasgar as roupas da po-
bre Betsinda.
― Como (o Rei?) ― exclamou a rai-
nha ― você ousa (príncipe Bulbo?) ―
a princesa ― flertar com (o príncipe
Lírio?) ― a condessa.
― Dê a ela os trapos que ela usava
quando chegou aqui! ― disse a rai-
nha.
― Lembre-se de que ela não vai
com os meus sapatos, que eu lhe em-
prestei com tamanha gentileza ―
disse a princesa; e de fato os sapatos
desta eram grandes demais para
Betsinda.
191
― Venha comigo, sua assanhada
imunda! ― E, pegando o cetro da rai-
nha, a cruel Bufanosa levou Betsinda
para seu quarto.
A condessa foi até a caixa de vidro
em que por tanto tempo guardara o
velho manto e o sapato de Betsinda e
disse:
― Pegue esses trapos, sua men-
digazinha, e tire de seu corpo tudo
que pertence a pessoas honestas e vá
cuidar de seus assuntos. ― E ela real-
mente arrancou quase todas as suas
coisas da pobre coisinha delicada, e
disse-lhe para sair de casa.
192
A pobre Betsinda enrolou o manto
nas costas, no qual estavam bordadas
as letras PRIN. . . ROSAL. . . e então
veio uma grande ruptura.
Quanto ao sapato, o que ela faria
com uma pobre sandália pequena? A
tira ainda estava nela, então Betsinda
o pendurou no pescoço.
― Você não me daria um par de
sapatos para sair na neve, ó minha
senhora, por favor, minha senhora?
― gritou a pobre coitada.
― Não, sua besta malvada! ―
retrucou Bufanosa, conduzindo-a
com o atiçador, conduzindo-a pelas
193
escadas frias, conduzindo-a pelo cor-
redor frio, atirando-a para a rua fria,
de modo que a própria aldrava derra-
mou lágrimas ao vê-la!
Mas uma fada bondosa aqueceu a
neve macia para seus pezinhos, e ela
se enrolou no arminho de seu manto
e se foi!
― E agora vamos pensar no café
da manhã ― disse a gananciosa rai-
nha.
― Que vestido devo colocar, ma-
mãe? O rosa ou o verde-ervilha? ―
perguntou Angélica. ― De qual você
194
acha que o querido príncipe vai gos-
tar mais?
― Sra. V.! ― cantarolou o rei de
seu camarim. ― Comeremos salsi-
chas no café da manhã! Lembre-se
de que o príncipe Bulbo está conosco!
E todos foram se aprontar.
Chegaram às nove horas, e esta-
vam todos na sala para o café da ma-
nhã, e ainda nada do príncipe Bulbo.
A panela assobiava e zunia: os boli-
nhos fumegavam ― um monte de
bolinhos! Os ovos estavam prontos,
havia um pote de geleia de framboesa
e café, e um lindo frango e língua
195
na mesa lateral. Marmitônio, o cozi-
nheiro, trouxe as salsichas. Ah, como
cheiravam bem!
― Onde está Bulbo? ― O rei quis
saber. ― John, onde está Sua Alteza
Real?
John disse que tinha levado água
de barbear para sua autezareal, além
de roupas e coisas dele, e que ele não
estava em seu quarto. John supôs que
sua autezarial tinha dado o fora.
― Saiu na neve, antes do café da
manhã! Impossível! ― disse o rei, en-
fiando o garfo numa salsicha. ― Minha
196
querida, pegue uma. Angélica, você
não quer uma salsicha?
A princesa, que gostava muito
delas, pegou uma; e, nesse momento,
Tristonho entrou com o capitão
Racabeças, ambos parecendo muito
perturbados.
― Receio, Vossa Majestade… ―
começou Tristonho.
― Nada de negócios antes do café
da manhã, Tristô! ― interrompeu o
rei. ― Café da manhã primeiro, ne-
gócios depois. Sra. V., um pouco mais
de açúcar!
― Senhor, temo que se esperarmos
197
até depois do café da manhã seja
tarde demais ― disse Tristonho. ―
Ele… ele… ele será enforcado às nove
e meia.
― Não estrague meu café da ma-
nhã falando em enforcamento, seu
homem grosseiro e vulgar ― excla-
mou a princesa. ― John, um pouco
de mostarda. Por favor, quem deve
ser enforcado?
― Senhor, é o príncipe ― sussur-
rou Tristonho ao rei.
― Fale sobre negócios depois do
café da manhã, já lhe falei! ― disse
Sua Majestade, muito mal-humorado.
198
― Por conta disso, teremos uma
guerra, senhor ― disse o ministro. ―
O pai dele, o rei Frigideira…
― O pai, o rei quem? ― perguntou
o rei. ― O rei Frigideira não é o pai de
Lírio. Meu irmão, o rei Sávio, era o pai
de Lírio.
― É o príncipe Bulbo que será en-
forcado, senhor, não o príncipe Lírio
― informou o primeiro-ministro.
― Você me disse para enforcar o
príncipe, e eu peguei o feio ― disse
Racabeças. ― Claro que não pensei
que Vossa Majestade pretendia matar
sua própria carne e sangue!
199
O rei jogou o prato de salsichas na
cabeça de Racabeças.
A princesa gritou:
― Hee-kareekaree! ― E desmaiou.
― Usem a panela para acordar
Sua Alteza Real ― disse o rei, e a água
borbulhante a fez voltar a si gradual-
mente. Sua Majestade olhou para o
relógio, comparou-o com o relógio da
sala e com o da igreja na praça oposta;
então deu corda nele e o olhou outra
vez. ― A grande questão é ― disse ele
―: vou rápido ou devagar? Se eu for
devagar, podemos continuar com o
café da manhã. Se eu for rápido, ora,
200
só existe a possibilidade de salvar o
príncipe Bulbo. É um erro bobo e de-
sajeitado, e, juro, Racabeças, tenho a
maior vontade de mandar enforcá-lo
também.

― Senhor, eu fiz apenas o meu


dever; um soldado apenas cumpre
ordens. Não esperava, depois de qua-
renta e sete anos de serviço fiel, que
meu soberano pensaria em me con-
denar à morte por conta de um cri-
minoso!

― Que cem mil pragas lhe atin-


jam! Não vê que enquanto fala meu
201
Bulbo está sendo enforcado? ― gritou
a princesa.
― Por Deus! Ela está sempre certa,
aquela garota, e eu sou tão distraído
― comentou o rei, olhando nova-
mente para o relógio. ― Ah! Soam os
tambores! Mas que coisa estranha!
― Ah, papai, seu bobo! Escreva o
adiamento e deixe-me correr com ele
― gritou a princesa e, pegando uma
folha de papel, caneta e tinta, os co-
locou diante do rei.
― Droga! Onde estão meus óculos?
― exclamou o monarca. ― Angélica!
Suba ao meu quarto, olhe embaixo do
202
meu travesseiro, não do de sua mãe;
lá você verá minhas chaves. Traga-as
para mim e… Bem, bem! Que coisas
impetuosas essas garotas são!
Angélica saiu correndo para o
quarto, ofegante, encontrou as cha-
ves e voltou antes que o rei termi-
nasse um bolinho.
― Agora, querida ― disse ele ―,
você deve voltar até a minha mesa,
onde estão meus óculos. Se você ti-
vesse me ouvido… Caramba! Lá vai
ela novamente. Angélica! Angélica!
Quando Sua Majestade chamava
203
em sua voz alta, ela sabia que deveria
obedecer, e voltou.
― Minha querida, quando você
sair de uma sala, quantas vezes eu já
disse, feche a porta. Isso, querida. Isso
é tudo.
Por fim, as chaves, a escrivani-
nha e os óculos foram trazidos, o rei
consertou sua caneta e assinou seu
nome para um adiamento, e tão rá-
pido quanto o vento Angélica correu
com o bilhete.
― É melhor você ficar, meu amor, e
terminar os bolinhos. Não adianta ir.
Tenha certeza de que é tarde demais.
204
Passe-me essa geleia de framboesa,
por favor ― disse o Monarca. ― Bong!
Bawong! Lá se vai a meia hora. Eu
sabia.
Angélica correu, correu, correu e
correu. Subiu a Fore Street, desceu a
High Street, atravessou o mercado,
desceu à esquerda, atravessou a ponte,
subiu o beco sem saída, e então vol-
tou novamente, contornou o castelo,
assim como o armarinho à direita,
em frente ao poste, e contornando a
praça, e chegou… chegou no local de
execução, onde viu Bulbo deitando a
cabeça no cepo!!! O carrasco ergueu
205
o machado, mas nesse momento a
princesa veio ofegante e gritou:
― Adiamento! Adiamento!
― Adiamento! ― gritou todo o
povo.
Ela subiu as escadas do cadafalso
com a agilidade de um acendedor de
lâmpadas; e atirando-se nos braços de
Bulbo, independentemente de toda a
cerimônia, gritou:
― Oh, meu príncipe! Meu senhor!
Meu amor! Meu Bulbo! Tua Angélica
chegou a tempo de salvar tua pre-
ciosa existência, doce botão de rosa;
para evitar que você seja beliscado em
206
207
sua juventude! Se alguma coisa lhe
tivesse acontecido, Angélica também
teria morrido, e saudaria a morte que
a uniu ao seu Bulbo.
― Hum! Gostos não se explicam
― disse Bulbo, parecendo tão intri-
gado e incomodado que a princesa,
em tom de tenra tensão, perguntou a
causa de sua inquietação. ― Vou lhe
dizer o que é, Angélica ― disse ele. ―
Desde que cheguei aqui ontem, tem
havido tanta briga, e confusão, e dis-
cussões, e desordens, e decapitação
de cabeças, e taxas para pagar, que
estou tentado a voltar para a Crimeia.
208
― Mas comigo como tua noiva,
meu Bulbo! Independentemente de
onde você esteja é Crimeia para mim,
meu ousado, meu belo, meu Bulbo!
― Bem, bem, suponho que de-
vemos nos casar ― disse Bulbo. ―
Doutor, você veio para ler o Serviço
Funeral… leia o Serviço de Casamento,
sim? O que deve ser, será. Isso vai sa-
tisfazer Angélica, e então, em nome
da paz e tranquilidade, vamos voltar
para o café da manhã.
Bulbo levara uma rosa na boca
todo o tempo da cerimônia sombria.
Era uma rosa de fada, e sua mãe lhe
209
disse que nunca deveria se separar
dela. Então ele a manteve entre os
dentes, mesmo quando deitou sua
pobre cabeça no bloco, esperando va-
gamente que alguma chance apare-
cesse a seu favor. Ao começar a falar
com Angélica, esqueceu-se da rosa e,
claro, a flor caiu de sua boca. A prin-
cesa romântica imediatamente abai-
xou-se e agarrou-a.
― Doce Rosa que floresceu no lá-
bio do meu Bulbo, nunca, nunca me
separarei de ti! ― exclamou ela.
E a colocou em seu seio. E você
sabe que Bulbo não poderia pedir a
210
ela para devolver a rosa. E eles foram
tomar o café da manhã; e, enquanto
caminhavam, pareceu a Bulbo que
Angélica se tornava mais encanta-
dora a cada momento.
Ele ficou exaltado até que se ca-
saram; e agora, estranho dizer, era
Angélica que não se importava com
ele! Ele ajoelhou-se, beijou-lhe a mão,
rezou e implorou; chorou de admira-
ção; enquanto ela, por sua vez, disse
que realmente achava que eles pode-
riam esperar; parecia-lhe que o rapaz
não era mais bonito ― não, nem um
pouco, muito pelo contrário; e não
211
inteligente, não, era muito estúpido;
e não bem-educado, como Lírio; não,
pelo contrário, terrivelmente vul…
O que, eu não posso dizer, pois o
rei Valoroso rugiu com uma voz ter-
rível:
― Poooh! Nós não vamos ter mais
essa leviandade! Chame o arcebispo
e deixe que o príncipe e a princesa se
casem imediatamente!
Então, casados estavam, e tenho
certeza de que, de minha parte, con-
fio que seriam felizes.

212
XII. Como Betsinda
Fugiu e o que
Aconteceu com Ela

Betsinda vagou sem parar, até passar


pelos portões da cidade, e assim pela
grande estrada Crimeia, exatamente
o caminho por onde Lírio também ia.
Ah!, pensou à medida que a di-
ligência passava por ela, da qual o
maestro estava soprando uma me-
lodia deliciosa em sua trompa, como
eu gostaria de estar naquela carrua-
gem! Mas a carruagem e os cavalos
213
tilintantes logo se foram. Ela mal
sabia quem estava no transporte, em-
bora muito provavelmente estivesse
pensando nele o tempo todo.
Então veio uma carroça vazia,
voltando do mercado; e o motorista,
sendo um homem gentil e vendo
uma garota tão bonita andando pela
estrada com os pés descalços, muito
gentilmente deu-lhe um assento.
Disse que morava nos confins da
f loresta, onde seu velho pai era
lenhador, e, caso ela quisesse, a leva-
ria longe. Todos os caminhos eram
os mesmos para a pequena Betsinda,
214
então ela aceitou aquele de bom
grado.
O carroceiro colocou um pano
em volta dos pés descalços dela, deu
a Betsinda um pouco de pão e bacon
frio, e foi-lhe muito gentil. Durante
tudo isso, ela estava muito fria e me-
lancólica. Depois de viajar sem parar,
chegou a noite, e todos os pinheiros
escuros se dobravam com a neve,
lá estava, enfim, a confortável luz
brilhando nas janelas do lenhador;
e assim eles entraram na cabana.
Era um homem velho e tinha vários
filhos, os quais estavam acabando
215
de jantar, com pão e leite bem quen-
tinho, quando o irmão mais velho
chegou com a carroça. Eles pularam
e bateram palmas, pois eram bons
filhos e o homem havia trazido brin-
quedos da cidade. E quando viram a
bela estranha, eles correram para ela
e a levaram para próximo do fogo, es-
fregaram seus pobres pezinhos e lhe
trouxeram pão e leite.
― Olha, pai! ― disseram eles ao
velho lenhador. ― Olhe para esta
pobre menina, e veja que pés muito
frios ela tem. Eles são tão brancos
quanto o nosso leite! E olhe e veja que
216
capa estranha ela tem, assim como o
pedaço de veludo que está pendurado
em nosso armário, e que você encon-
trou naquele dia em que os filhotes
foram mortos pelo rei Frigideira, na
floresta! E olhe, ora, abençoe a todos
nós! Ela tem em volta do pescoço ou-
tro sapatinho como aquele que você
trouxe para casa, e tantas vezes nos
mostrou… um sapatinho de veludo
azul!
― O quê? ― questionou o velho le-
nhador. ― O que vocês estão falando
sobre um sapato e uma capa?
E Betsinda explicou que tinha sido
217
deixada na cidade, quando criança,
com aquele manto e sapato. E as pes-
soas que cuidaram dela ficaram zan-
gadas com ela, sem nenhuma culpa
dela própria, esperava ela. E então a
mandaram embora com suas rou-
pas velhas ― e ali, de fato, estava ela.
Betsinda se lembrava de ter estado
em uma floresta ― e talvez fosse um
sonho; era muito estranho e peculiar
―, ter vivido em uma caverna com
leões ali; e, antes disso, ter morado
numa casa muito, muito boa, tão boa
quanto a do rei, na cidade.
Quando o lenhador ouviu isso,
218
ficou tão surpreso que foi muito
curioso ver o quão surpreso estava.
Ele foi até o armário, tirou de uma
meia um pedaço de cinco xelins do
rei Couve-Flor e jurou que era exata-
mente igual à jovem.
E então pegou o sapato e o pedaço
de veludo que guardara por tanto
tempo e os comparou com as coisas
que Betsinda usava. No sapatinho de
Betsinda estava escrito: “Hopkins,
sapateiro da família real”. E no outro
sapato: “Hopkins, sapateiro da Família
Real”. No interior do manto de Betsinda
estava bordado “Prin Rosal”. No outro
219
pedaço do manto estava bordado
“Cesa Ba. No. 246.”. Juntando: “Princesa
Rosalba. No. 246.”.
Ao ver isso, o velho e querido le-
nhador caiu de joelhos, dizendo:
― Ó minha princesa. Ó minha
graciosa dama real. Ó minha legí-
tima rainha da Crimeia. Eu te saúdo,
eu te reconheço, eu te reverencio!
E, em sinal de sua fidelidade, es-
fregou seu nariz venerável três vezes
no chão, e colocou o pé da princesa
em sua cabeça.
― Ora ― disse ela ―, meu bom
220
lenhador, você deve ser um nobre da
corte de meu pai real!
Pois em seu humilde retiro, e sob
o nome de Betsinda, Sua Majestade,
Rosalba, rainha da Crimeia, havia
lido sobre os costumes de todas as
cortes e nações estrangeiras.
― De fato, eu sou, minha graciosa
soberana… o pobre Lorde Espinafre
um dia… um humilde lenhador nes-
tes quinze anos. Desde que o tirano
Frigideira (que o patife traiçoeiro
seja arruinado!) me demitiu do meu
posto de Primeiro Lorde.
― Primeiro Lorde do Palito de
221
Dente e Guardião da Caixa de Rapé?
Eu me lembro! Tu ocupaste esses pos-
tos sob nosso senhor real. Eles estão
restaurados a ti, Lorde Espinafre!
Faço-te cavaleiro da segunda classe
da nossa Ordem da Abóbora (sendo
a primeira classe reservada apenas
às cabeças coroadas). Levante-se,
Marquês Espinafre.
E com indescritível majestade, a
rainha, que não tinha espada à mão,
acenou a colher de estanho com a qual
estava tomando seu pão e leite, sobre a
cabeça calva do velho fidalgo, cujas lá-
grimas formaram uma poça no chão,
222
e cujos filhos queridos foram para
a cama naquela noite como senho-
res e senhoras Bartolomeo, Ubaldo,
Catarina e Ottavia do Espinafre!

O conhecimento que sua majes-


tade demonstrou com a história e
famílias nobres de seu império foi
maravilhoso.

― A Casa Brócolis deve permane-


cer fiel a nós ― disse ela. ― Eles sempre
foram bem-vindos em nossa corte. Os
Alcachofra, como de costume, volta-
ram-se para o Sol Nascente? A famí-
lia Chucrute deve estar conosco, eles
223
sempre foram bem-vindos nos salões
do Rei Couve-Flor.
E assim continuou enumerando
uma lista da nobreza da Crimeia, tão
admiravelmente Sua Majestade havia
lucrado com seus estudos durante o
exílio.
O velho Marquês Espinafre disse
que poderia responder por todos eles;
que todo o país gemia sob a tirania de
Frigideira e desejava retornar ao seu
legítimo soberano; e, tarde como era,
enviou seus filhos, que conheciam a
floresta como a palma da mão, para
chamar este nobre e aquele; e quando
224
seu filho mais velho, que estava es-
fregando o cavalo e dando-lhe o jan-
tar, entrou na casa para buscar sua
refeição, o marquês disse-lhe para
colocar as botas e uma sela na égua
e, então, cavalgar aqui e ali para tal e
tal gente.
Quando o jovem ouviu quem era
sua companheira na carroça, tam-
bém se ajoelhou e colocou o pé real
dela sobre sua cabeça; também or-
valhou o chão com suas lágrimas;
estava freneticamente apaixonado
por Rosalba, como todos que a viam
agora: os jovens Lordes Bartolomeo e
225
Ubaldo, que se esmurravam na cabe-
cinha por ciúme; e assim, quando vie-
ram de leste e oeste por convocação do
Marquês Espinafre, foram os Lordes
da Crimeia que ainda permaneceram
fiéis à Casa Couve-Flor. Eram cava-
lheiros tão velhos em sua maioria
que Sua Majestade nunca suspeitou
de sua paixão absurda, e andou entre
eles sem saber do estrago que sua be-
leza estava causando, até que um ve-
lho lorde cego que se juntou a ela lhe
disse qual era a verdade; depois disso,
por medo de deixar as pessoas muito
apaixonadas, Rosalba sempre usava
um véu. Movia-se discretamente do
226
castelo de um nobre para outro; e
eles se visitaram outra vez, e tiveram
reuniões, e compuseram proclama-
ções e contraproclamações, e distri-
buíram todos os melhores lugares do
reino entre si, e selecionaram quem
do partido da oposição deveria ser
executado quando a rainha chegasse
ao seu próprio partido. E assim, em
cerca de um ano, estavam prontos
para avançar.
O partido da fidelidade era, na
verdade, composto, em sua maio-
ria, de velhos débeis; andavam pelo
país agitando suas velhas espadas
227
e bandeiras enquanto gritavam:
“Deus salve a Rainha!”. E porque o
rei Frigideira estava ausente em uma
invasão, eles faziam as coisas de seu
próprio jeito, e com certeza as pes-
soas ficavam muito entusiasmadas
sempre que viam a rainha; caso con-
trário, o vulgo levava as coisas muito
calmamente, pois diziam, pelo que se
lembravam, que eram tão tributados
no tempo de Couve-Flor quanto agora
no de Frigideira.

228
XIII. Como a Rainha
Rosalba Chegou ao
Castelo do Ousado
Conde Porcão

Sua Majestade, de fato não tendo mais


nada para dar, fez de todos os seus se-
guidores Cavaleiros da Abóbora, mar-
queses, condes e baronetes. E eles, por
sua vez, fizeram uma pequena corte
para ela, além de uma coroa peque-
nina de papel dourado e um manto
de veludo de algodão; e discutiram a
respeito dos lugares a serem dados,
229
da posição e precedência e dignida-
des; você não faz ideia de quanto dis-
cutiram! Antes mesmo de completar
um mês, a pobre rainha estava muito
cansada de suas honras, e ouso dizer
que às vezes até desejava voltar a ser
uma camareira. Mas todos nós deve-
mos cumprir nosso dever em nossas
respectivas posições, então a rainha
se resignou a cumprir o dela.
Nenhuma das tropas do usurpa-
dor saiu para se opor a esse Exército
de Fidelidade; ele se moveu tão agil-
mente quanto os principais coman-
dantes permitiam: era formado pelo
230
dobro de oficiais do que soldados, e
por fim passou perto das proprieda-
des de um dos nobres mais poderosos
do país, que não havia se declarado
a favor da rainha, mas por quem ti-
nham esperanças, pois estava sempre
brigando com o rei Frigideira.
Quando se aproximaram dos por-
tões do parque, o nobre mandou dizer
que esperaria Sua Majestade: era um
guerreiro muito poderoso de nome
conde Porcão, cujo elmo precisou ser
carregado por dois fortes servos.
Ele se ajoelhou diante dela e disse:
― Madame e soberana! Cabe aos
231
232
grandes nobres do reino da Crimeia
mostrarem todos os sinais de respeito
a seja lá quem for o portador da coroa.
Testemunhamos nossa própria no-
breza ao reconhecer a sua. O ousado
Porcão dobra o joelho para a primeira
da aristocracia de seu país.
Rosalba respondeu:
― O ousado conde de Porcão é ex-
traordinariamente gentil.
Mas temeu o conde, mesmo
quando este estava ajoelhado, pois
os olhos dele se estreitaram para ela
por entre os bigodes, que se elevavam
na direção deles.
233
― O primeiro Conde do Império,
madame ― prosseguiu ele ― saúda
a Soberana. O príncipe dirige-se à
mais nobre dama! Senhora, eu ofe-
reço minha mão, meu coração e mi-
nha espada a seu serviço! Minhas três
esposas estão enterradas em meus
túmulos ancestrais. A terceira mor-
reu há apenas um ano; e este coração
anseia por uma consorte! Digne-se a
ser minha e, assim sendo, juro trazer
à sua mesa nupcial a cabeça do rei
Frigideira, os olhos e o nariz do filho
dele, o príncipe Bulbo, a mão direita
e as orelhas do soberano usurpador
da Paflagônia, país que daí em diante
234
será um apanágio para a sua… para
a nossa coroa! Diga sim; Porcão não
está acostumado a ser negado. Na
verdade, não posso sequer pensar na
possibilidade de uma recusa, pois o
resultado será assustador; terríveis
os assassinatos; furiosas as devasta-
ções; horrível a tirania; tremendas as
torturas, a miséria, os impostos que
o povo deste reino suportará se a ira
de Porcão for despertada! Vejo con-
sentimento nos lindos olhos de Vossa
Majestade; seus olhares enchem mi-
nha alma de êxtase!
― Ah, senhor! ― disse Rosalba,
235
recolhendo a mão, assustada. ― Vossa
Senhoria é extremamente gentil; mas
lamento informar que tenho uma li-
gação com um jovem cavalheiro cha-
mado… príncipe Lírio… e nunca…
nunca poderei me casar com outra
pessoa senão ele.
Como descrever a ira de Porcão ao
ouvi-la? Levantando-se do chão, trin-
cou os dentes para que o fogo saísse
de sua boca, da qual ao mesmo tempo
emitiu comentários e linguagem tão
altos, violentos e impróprios que esta
caneta nunca os repetirá!
― Re-re-re-re-re… Rejeitado!
236
Demônios e perdição! O ousado
Porcão rejeitado! Todo o mundo vai
ouvir sobre minha ira; e você, ma-
dame, você acima de tudo deve se
arrepender!
E, chutando os dois servos à sua
frente, correu, os bigodes balançando
ao vento.
O Consel ho P r ivado de Su a
Majestade foi assolado por um pâ-
nico terrível quando viu Porcão sair
da presença real com tamanha raiva,
fazendo de seus pobres servos bolas de
futebol ― um pânico justificado em
decorrência dos eventos. Eles saíram
237
da propriedade de Porcão muito de-
sanimados; e meia hora mais tarde
foram recebidos por aquele chefe
ganancioso com alguns de seus se-
guidores, os quais cortaram, rasga-
ram, atacaram, golpearam, bateram
e os esmurraram, fazendo da rainha
prisioneira e levando o Exército da
Fidelidade para não faço ideia de onde.

Pobre Rainha! Porcão, seu con-


quistador, não quis vê-la.

― Peguem uma carroça! ― orde-


nou aos cavalariços. ― Coloquem a
assanhada nela e mandem-na, com
238
meus cumprimentos, à Sua Majestade
o rei Frigideira.
Junto da adorável prisioneira,
Porcão enviou uma carta cheia de
cumprimentos servis e lisonjas re-
pugnantes ao rei Frigideira, por cuja
vida, e pela de sua família real, o hi-
pócrita bobão fingia oferecer as mais
eloquentes orações. E Porcão rapida-
mente prometeu prestar sua humilde
homenagem no trono de seu augusto
mestre, ao qual ele pediu permissão
para ser considerado o defensor mais
leal e constante. Um pássaro velho
tão cauteloso como o rei Frigideira
239
não deveria ser apanhado pela oferta
do Mestre Porcão, e em breve vamos
saber como o tirano tratou seu pre-
sunçoso vassalo. Não, não; esses ban-
didos não confiavam um no outro.
Assim, a pobre rainha foi colo-
cada na palha e levada no escuro por
muitos quilômetros até a corte, onde
o rei Frigideira havia chegado, tendo
derrotado todos os inimigos, assassi-
nado a maioria deles e trazido alguns
dos mais ricos com o propósito de
torturá-los e descobrir onde tinham
escondido o dinheiro.
Da masmorra onde foi colocada
240
― um buraco escuro horrível, cheio
de morcegos, ratos, camundongos,
sapos, rãs, mosquitos, insetos, pul-
gas, serpentes e todo tipo de horror
―, Rosalba ouviu os gritos e gemi-
dos deles. Não havia luz ali, senão os
carcereiros poderiam tê-la visto e se
apaixonado por ela, como aconteceu
a uma coruja que vivia no telhado da
torre, e um gato que, você sabe, pode
ver no escuro; e sendo assim, uma vez
colocados os olhos verdes em Rosalba,
nunca mais voltaria para a mulher
do carcereiro a quem pertencia. E os
sapos no calabouço vieram e beija-
ram seus pés, e as víboras enrolaram
241
em seu pescoço e braços, mas nunca
a machucaram, tão encantadora era
essa pobre princesa em meio a seus
infortúnios.
Por fim, depois de ter sido man-
tida, por muito tempo, nesse lugar,
a porta da masmorra foi aberta e o
terrível rei Frigideira entrou.
Mas o que ele disse e fez devem
ser reservados para outro capítulo,
pois agora devemos voltar ao príncipe
Lírio.

242
243
XIV. O que
Aconteceu com Lírio

A ideia de se casar com uma criatura


tão velha como Bufanosa foi tão as-
sustadora para o príncipe Lírio que,
em um piscar de olhos, ele correu
até o quarto, arrumou as malas,
chamou dois carregadores e foi até
a carruagem.
Ainda bem que ele foi muito rá-
pido, não se demorou com a bagagem
e pegou a carruagem cedo, pois assim
que o engano sobre o príncipe Bulbo
244
foi descoberto, o cruel Tristonho
enviou dois oficiais para o quarto
do príncipe Lírio, com ordens para
que o levassem para Newgate e o de-
capitassem antes do meio-dia. Mas
a carruagem saiu dos domínios da
Paflagônia antes das duas da manhã;
e ouso dizer que a diligência enviada
em busca do príncipe Lírio não foi
muito rápida, afinal, muitas pessoas
na Paflagônia tinham consideração
por Lírio, como filho do antigo so-
berano; um príncipe que, com todas
as suas fraquezas, era muito melhor
que seu irmão, o reinante monarca
usurpador, preguiçoso, descuidado,
245
nervoso, tirânico. Aquele príncipe se
ocupava com os bailes, festas, bailes
de máscaras, caçadas etc. que julgava
apropriado dar por ocasião do casa-
mento de sua filha com o príncipe
Bulbo. Confiemos que ele não estava
arrependido por o filho de seu irmão
ter escapado do cadafalso.
Estava muito frio e nevava. Lírio,
que escolheu o nome simples de sr.
Giles, ficou muito feliz por conseguir
um lugar confortável no cupê da dili-
gência, onde se sentou com o condu-
tor e outro cavalheiro.
Na primeira etapa de Blombodinga,
246
247
quando pararam para trocar de ca-
valo, chegou à diligência uma mulher
muito comum, de aparência vulgar,
com uma bolsa sob o braço, pedindo
um lugar. Todos os lugares internos
estavam ocupados, e a jovem foi in-
formada de que, caso desejasse viajar,
deveria subir no telhado. O passa-
geiro que estava no lado de dentro
com Lírio (uma pessoa rude, na mi-
nha opinião), colocou a cabeça para
fora da janela e disse:
― O tempo está ótimo para viajar
aí fora! Desejo-lhe uma boa viagem,
minha querida.
248
A pobre mulher tossiu muito, e
Lírio sentiu pena.
― Vou ceder meu lugar ― disse.
― Assim ela não precisa viajar no ar
frio com essa tosse horrível.
O viajante mal-educado disse:
― Tenho certeza de que você a
manteria aquecida, se for um pa-
lerma o que ela quer.
Lírio puxou o nariz do outro, deu-
-lhe um soco nas orelhas, outro no
olho e deu àquela pessoa vulgar um
aviso para nunca mais chamá-lo de
palerma.
Então saltou alegremente para o
249
telhado da diligência e se acomodou
muito confortável sobre a palha.
O viajante mal-educado só sal-
tou na estação seguinte, e, voltando
ao seu lugar, Lírio conversou com a
mulher, que parecia ser muito agra-
dável, bem-informada e divertida.
Os dois viajaram juntos até a noite, e
ela deu a Lírio várias coisas retiradas
da bolsa que carregava, e que parecia
conter a mais maravilhosa coleção
de artigos. Lírio estava com sede ―
da bolsa saiu uma garrafa de cerveja
clara de Bass e uma caneca de prata!
E com fome ― da bolsa saiu uma ave
250
fria, algumas fatias de presunto, pão,
sal e um delicioso pedaço de pudim
de ameixa frio, e depois um copinho
de conhaque.
Enquanto viajavam, essa mulher
de aparência simples e esquisita con-
versava com Lírio a respeito de vários
assuntos, acerca dos quais o pobre
príncipe mostrava sua ignorância,
tanto quanto ela, sua capacidade. Ele
admitiu, corando muito, que era ig-
norante.
Ao que a senhora rebateu:
― Meu caro Lír… meu bom sr.
Giles, você é jovem e tem muito
251
tempo pela frente. Você não tem nada
a fazer além de melhorar. Quem sabe
você possa encontrar uso para o seu
conhecimento algum dia? Quando…
quando pode ser que lhe desejem em
casa, como acontece a algumas pes-
soas.
― Meu Deus, senhora! Você me
conhece?
― Conheço várias coisas engra-
çadas ― respondeu ela. ― Já estive
em batizados de algumas pessoas e
me afastei da porta de outras. Tenho
visto algumas pessoas prejudica-
das pela boa sorte, e outras, como
252
espero, melhoradas pelas dificul-
dades. Aconselho-lhe que fique na
cidade onde a carruagem passa a
noite. Fique lá e estude, e lembre-se
de sua velha amiga com quem você
foi gentil.
― E quem é essa tal velha amiga
minha? ― perguntou Lírio.
― Quando você quiser alguma
coisa, olhe nesta bolsa, que deixo para
você como presente, e seja grato à…
― A quem, madame?
― À Fada Varinha-Preta ― res-
pondeu a senhora, voando pela ja-
nela.
253
Lírio perguntou ao condutor se
ele sabia onde estava a senhora.
― Que senhora? ― devolveu o ho-
mem. ― Não tinha nenhuma senhora
nesta carruagem, exceto a velha, que
acabou de descer.
E Lírio pensou que estivera so-
nhando. Mas no colo havia a bolsa
que Varinha-Preta lhe dera; e ao che-
gar à cidade, pegou-a e entrou na es-
talagem.
Deram-lhe um quarto muito
ruim, e Lírio, quando acordou pela
manhã, imaginando-se em casa no
Palácio Real, chamou:
254
― John, Charles, Thomas! Meu cho-
colate… meu roupão… meus chinelos.
Mas ninguém veio. Não havia
campainha, então Lírio foi até o topo
da escada e gritou, pedindo água.
A senhoria apareceu, com esta
cara:

― Por que você está gritando e


berrando aqui, jovem? ― Ela quis sa-
ber.
255
― Não há água quente, não há
criados; minhas botas não estão nem
limpas.
― He, he! Limpe você mesmo, ora
― retrucou a senhoria. ― Vocês jo-
vens estudantes são muito arrogan-
tes. Nunca ouvi tanta insolência.
― Não ficarei aqui nem mais um
minuto ― disse Lírio.
― Quanto mais cedo, melhor, jo-
vem. Pague sua conta e saia. Todos os
meus aposentos são procurados por
cavalheiros, e não por pessoas como
você.
― Você pode ficar com o Bear Inn
256
― disse Lírio. ― Você deveria pintar
sua imagem no letreiro.
A dona do Bear foi embora ros-
nando. Lírio voltou para o quarto,
onde a primeira coisa que viu foi a
bolsa da fada em cima da mesa, que
pareceu dar um pulinho quando ele
entrou.
― Espero que tenha café da ma-
nhã nela, pois me resta pouquíssimo
dinheiro ― disse Lírio.
Mas, ao abrir a bolsa, o que você
acha que estava lá? Uma escova preta
e um pote de graxa, onde se lia:
257
Pobres jovens, pretas devem ser
suas botas:
Use-me, arrolhe-me e coloque-me
de volta.
Lírio riu e usou a graxa nas botas,
devolvendo a escova e o pote à bolsa.
Quando terminou de se vestir, a
bolsa deu outro pulinho. De lá, ele
tirou:
1. Uma toalha de mesa e um guar-
danapo.
2. Um açucareiro cheio do melhor
pão açucarado.
4, 6, 8, 10. Dois garfos, duas
258
colheres de chá, duas facas, um par
de pinças de açúcar e uma faca de
manteiga, todos marcados com a le-
tra L.
11, 12, 13. Uma xícara de chá, pi-
res e uma tigela.
14. Uma jarra cheia de um deli-
cioso creme.
15. Uma vasilha com chás preto e
verde.
16. Um grande pote de chá e água
fervente.
17. Uma caçarola, contendo três
ovos bem cozidos.
259
18. Meio quilo da melhor man-
teiga.
19. Um pão marrom.
E se agora Lírio não tinha o sufi-
ciente para um bom café da manhã,
quem é que tinha?
Ele, depois de tomar o café da ma-
nhã, colocou todas as coisas de volta
na bolsa e saiu em busca de hospe-
dagem. Esqueci de dizer que aquela
famosa cidade universitária se cha-
mava Bósforo.
Lírio alugou uma modesta hos-
pedagem em frente às escolas, pa-
gou a conta na estalagem e foi para
260
o aposento com seu baú, bolsa de
viagem, sem esquecer, podemos ter
certeza, a outra bolsa.
Quando abriu o baú, o qual no
dia anterior havia enchido com suas
melhores roupas, Lírio descobriu que
continha apenas livros. E no primeiro
deles que abriu estava escrito:
Roupas para as costas, livros para
a cabeça: leia e lembre-se deles quando
forem lidos.
E na bolsa Lírio encontrou um
gorro e uma bata de estudante, uma
caderneta cheia de páginas, um
tinteiro, canetas e um dicionário
261
Johnson, que lhe foi muito útil, pois
sua ortografia havia sido tristemente
negligenciada.
Então o rapaz se sentou e traba-
lhou muito, muito duro por um ano
inteiro, durante o qual o sr. Giles
foi um bom exemplo para todos os
alunos da Universidade de Bósforo.
Nunca se envolveu em tumultos ou
confusões. Todos os professores fala-
vam bem dele, e também era gostado
pelos alunos; de modo que, quando
sob avaliação, ele levou todos os prê-
mios, fique sabendo.
(Prêmio de Ortografia, Prêmio de
262
Francês, Prêmio de Redação, Prêmio
de Aritmética, Prêmio de História,
Prêmio Latino, Prêmio de Catecismo,
Prêmio de Boa Conduta.)
Todos os alunos disseram:
― Urrah! Viva o Giles! Giles é a
alegria dos alunos! Viva o Giles!
E para seus aposentos ele levou
uma grande quantidade de meda-
lhas, coroas, livros e símbolos de dis-
tinção.
Um dia depois dos exames, en-
quanto se divertia num café com
dois amigos (já contei que, todos os
sábados à noite, Lírio encontrava na
263
bolsa apenas o suficiente para pagar
as contas, com um guinéu a mais?
Eu não contei? Bem, ele encontrava,
tão certo quanto duas vezes vinte
são quarenta e cinco), Lírio por acaso
deu uma olhada no jornal Crônicas
de Bósforo e leu, com bastante fa-
cilidade (pois ele podia soletrar, ler
e escrever as palavras mais longas
agora), o seguinte:
CIRCUNSTÂNCIA ROMÂNTICA.
― Uma das aventuras mais extraor-
dinárias de que já ouvimos falar dei-
xou o país vizinho, Crimeia Tártara,
em estado de grande excitação.
264
“Lembre-se de que quando o
atual reverenciado soberano da
Crimeia Tártara, Sua Majestade o
rei Frigideira, tomou posse do trono
depois de ter vencido, na terrível ba-
talha de Blunderbusco, o falecido rei
Couve-Flor, a única filha do monarca,
a princesa Rosalba, não foi encon-
trada no palácio real, do qual o rei
Frigideira tomou posse, e, dizia-se,
havia se perdido na floresta (sendo
abandonada por todos os seus cria-
dos), onde foi devorada por aqueles
leões ferozes ― os últimos foram cap-
turados há algum tempo e trazidos
265
para a Torre, depois de matar várias
centenas de pessoas.
“Sua Majestade o rei Frigideira,
que tem o coração mais bondoso do
mundo, lamentou o acidente ocor-
rido com a inofensiva princesinha,
para quem a conhecida benevolência
de Sua Majestade certamente teria
proporcionado um estabelecimento
adequado. Mas a morte dela parecia
certa. Durante uma caçada, na qual
o intrépido soberano da Crimeia ma-
tou dois dos filhotes de leões com sua
própria lança, os restos mutilados de
uma capa e de um sapatinho foram
266
encontrados na floresta. E essas in-
teressantes relíquias de uma criatu-
rinha inocente foram levadas para
casa e mantidas por seu descobridor,
o barão Espinafre, ex-oficial da casa
de Couve-Flor. O barão caiu em des-
graça por causa de suas conhecidas
opiniões legitimistas, e viveu por al-
gum tempo na humilde condição de
lenhador, em uma floresta nos arre-
dores do Reino da Crimeia Tártara.
“Na terça-feira da semana pas-
sada, o barão Espinafre e vários ca-
valheiros, ligados à antiga dinastia,
apareceram com armas, gritando:
267
‘Deus salve Rosalba, a primeira rai-
nha da Crimeia!’ e cercando uma
senhora a quem o relatório descreve
como ‘linda demais’. A história dela
pode ser autêntica, mas sem dúvida
é mais romântica.
“A personagem que se autodeno-
mina Rosalba afirma que foi trazida
da floresta, há quinze anos, por uma
senhora em uma carruagem pu-
xada por dragões (essa parte é certa-
mente improvável), que foi deixada no
Jardim do Palácio de Blombodinga,
onde a Alteza Real princesa Angélica,
agora casada com Sua Alteza Real
268
Bulbo, príncipe herdeiro da Crimeia
Tártara, encontrou a criança e, com
aquela elegante benevolência que sem-
pre distinguiu a herdeira do trono da
Paflagônia, deu à pequena pária um
abrigo e um lar! Sem que soubessem
de sua ascendência, e sendo sua ves-
timenta muito humilde, a órfã foi
educada no palácio como criada, sob
o nome de Betsinda.
“O trabalho dela não foi satisfa-
tório, de forma que foi dispensada,
levando consigo parte de um manto e
um sapato, que usava quando foi en-
contrada. De acordo com o depoimento
269
dado, ela deixou a Blombodinga há
cerca de um ano, e desde então está
com a família Espinafre. Na mesma
manhã, o príncipe Lírio, sobrinho
do rei da Paflagônia, um jovem prín-
cipe cujo caráter de talento e ordem
não era, para dizer a verdade, um
dos mais elevados, também deixou
Blombodinga, e nunca mais se ouviu
falar dele!”
― Que história extraordinária! ―
disseram Smith e Jones, dois jovens
estudantes, amigos especiais de Lírio.
― Ah! O que é isto?
Lírio continuou a leitura:
270
“SEGUNDA EDIÇÃO. ― Ficamos
sabendo que a tropa sob o comando
do barão Espinafre foi cercada e total-
mente derrotada pelo general, conde
Porcão, e a que se denomina princesa
foi enviada prisioneira para a capital.
“NOTÍCIAS UNIVERSITÁRIAS.
― Ontem, nas escolas, o distinto jo-
vem estudante, sr. Giles, leu uma ora-
ção em latim e foi condecorado pelo
chanceler de Bósforo, dr. Prugnaro,
com a mais alta honraria universitá-
ria: a colher de pau.”
― Não deem atenção para essas coi-
sas ― disse Giles, muito perturbado.
271
― Venham para casa comigo, meus
amigos. Galante Smith! Intrépido
Jones! Amigos de estudos, participan-
tes de minhas labutas acadêmicas,
tenho algo a dizer que surpreenderá
suas mentes honestas.
― Vai lá, meu velho! ― exclamou
o impetuoso Smith.
― Fale, meu fanfarrão! ― disse
Jones, um sujeito animado.
Com um ar de dignidade indes-
critível, Lírio controlou sua natural,
mas não mais decente, familiaridade.
― Jones, Smith, meus bons ami-
gos, o disfarce é agora inútil. Não sou
272
mais o humilde estudante Giles, sou
descendente de uma linhagem real.
― Atavis edite regibus, eu sei, ve-
lho ga… ― exclamou Jones. Ele ia di-
zer velho galo, mas um vislumbre do
olho real tornou a impressioná-lo.
― Amigos ― continuou o Príncipe
―, eu sou aquele Lírio. Sou, na ver-
dade, a Paflagônia. Levante-se, Smith,
e não se ajoelhe na rua. Jones, teu sin-
cero coração! Quando eu era um bebê,
meu tio infiel roubou de mim aquela
coroa corajosa que meu pai me deixou,
e me criou, todo jovem e sem aten-
ção aos meus direitos, como o infeliz
273
274
Hamlet, príncipe da Dinamarca; e se
eu tinha algum pensamento sobre
minha injustiça, me acalmava com
promessas de quase reparação. Eu
deveria desposar a filha dele, a jovem
Angélica; nós dois deveríamos rei-
nar na Paflagônia. As palavras dele
eram falsas… falsas como o coração
de Angélica! Falsas como o cabelo, a
cor, os dentes da frente de Angélica!
Ela virou seus olhos enviesados para
o jovem Bulbo, o estúpido herdeiro
de Crimeia Tártara, e o preferiu. Foi
então que voltei meus olhos para
Betsinda… Rosalba, como é chamada
agora. E nela vi a soma rubra de toda
275
perfeição; o rosa da modéstia da don-
zela; a ninfa que meu coração afei-
çoado já havia cortejado em sonhos
― etc. etc.
(Não descrevo esse discurso, que
foi muito bom, mas muito longo; e
embora Smith e Jones não soubessem
nada sobre as circunstâncias, meu
caro leitor sabe, então prossigo.)
O príncipe e os amigos correram
para o quarto, onde Lírio havia tra-
balhado tanto em seus livros, muito
animados com a informação, assim
como, sem dúvida, pela maneira ad-
mirável de contar do narrador real.
276
Sobre a escrivaninha estava a
bolsa, tão comprida que o príncipe
não pôde deixar de notá-la. Foi até
ela, abriu-a, e o que você acha que ele
encontrou?
Uma esplêndida e longa espada de
corte e estocada, com cabo de ouro,
bainha de veludo vermelho, onde es-
tava bordado: “Rosalba para sempre”.
Ele puxou a espada, que brilhou
e iluminou toda a sala, e em seguida
gritou: “Rosalba para sempre!”. Smith
e Jones o seguiram, dessa vez com
bastante respeito, no ritmo de Sua
Alteza Real.
277
A mala se abriu com um súbito
pulo, e de lá saíram três penas de
avestruz em uma coroa de ouro, en-
volvendo um lindo capacete de aço
brilhante, uma couraça, um par de
esporas… enfim, uma armadura
completa.
Os livros nas estantes tinham
sumido. Onde havia alguns grandes
dicionários, os amigos de Lírio encon-
traram dois pares de botas de cano
alto com o rótulo “Tenente Smith”,
“… Jones, Escudeiro”, que serviram
neles perfeitamente. Além disso,
havia capacetes, placas nas costas e
278
peito, espadas etc., exatamente como
nos romances do sr. G. P. R. James; e,
naquela noite, três cavaleiros, que os
porteiros nunca reconheceram como
o jovem príncipe e seus amigos, foram
vistos saindo dos portões de Bósforo.
Juntos, pegaram cavalos em um
estábulo e não puxaram as rédeas até
chegarem à última cidade na fron-
teira anterior à Crimeia Tártara. Ali,
como os animais estavam cansados, e
os cavaleiros, famintos, eles pararam
e se refrescaram em uma estalagem.
Se eu fosse como alguns escritores,
poderia fazer dessa parte um capítulo,
279
mas gosto de me conter, sabe, e dar-
-lhe muito pelo seu dinheiro, então,
para resumir, eles tinham pão, queijo
e cerveja lá em cima, na varanda da
estalagem. Enquanto bebiam, tam-
bores e trombetas soavam cada vez
mais perto, o mercado estava cheio de
soldados, e Sua Alteza Real, olhando
para frente, reconheceu as bandeiras
da Paflagônia e o hino nacional da
Paflagônia, que as bandas tocavam.
As tropas foram imediatamente
para a taverna e, enquanto subiam,
Lírio exclamou, vendo o líder:
― Quem eu vejo? Sim! Não! É, é!
280
Uau! Não, não pode ser! Sim! É meu
amigo, meu galante e fiel veterano,
capitão Racabeças! Ei! Racabeças! Não
conheces teu príncipe, teu Lírio? Bom
capitão, acho que já fomos amigos.
Ah, sargento, se minha memória
não me falha, tivemos muitas lutas
juntos.
― Acredito que tivemos muitas,
meu Lorde ― disse o sargento.
― Diga-me, o que significa este
poderoso armamento ― continuou
Sua Alteza Real da sacada ―, e para
onde marcham meus paflagônios?
Racabeças baixou a cabeça.
281
― Milorde ― disse ele ―, nós
marchamos como aliados do grande
Frigideira, monarca da Crimeia
Tártara.
― Você quer dizer o usurpador
da Crimeia, galante Racabeças! O
cruel tirano da Crimeia, honesto
Racabeças! ― apontou o príncipe com
bastante sarcasmo.
― Príncipe, um soldado precisa
obedecer às ordens que recebe: e as
minhas são para ajudar Sua Majestade
Frigideira. E também, embora seja la-
mentável que eu diga isso, me apode-
rar de onde quer que eu o encontre.
282
― Ah, Racabeças! Você deve se
preparar primeiro ― exclamou Sua
Alteza Real.
― … Sobre o corpo de Lírio, ou-
trora príncipe da Paflagônia ― con-
tinuou Racabeças, com uma emoção
indescritível. ― Meu príncipe, desista
sem delongas. Veja! Somos trinta mil
homens contra um!
― Desistir! Lírio desistir! ― gri-
tou o príncipe.
E dando um passo à frente na sa-
cada, o jovem real, sem se preparar,
fez um discurso tão magnífico que
nenhum relato pode fazer justiça ao
283
que foi dito. Era tudo em verso branco
(com o qual, a partir desse momento,
ele invariavelmente falava, conforme
mais se adequava à sua posição ma-
jestosa). Durou três dias e três noites,
durante os quais nem uma única pes-
soa que o ouviu ficou cansada nem
notou a diferença entre a luz do dia
e a escuridão. Os soldados apenas
aplaudiam tremendamente. Uma vez
a cada nove horas, o príncipe parava
para chupar uma laranja, que Jones
pegava da bolsa. Em termos que não
tentarei transmitir, ele explicou toda
a história da situação anterior e sua
determinação em não apenas não
284
desistir da luta, mas de assumir sua
coroa legítima; e no final desse es-
forço extraordinário e de fato gigante,
o capitão Racabeças jogou o capacete
para o alto e gritou:
― Viva! Viva! Viva o rei Lírio!
E tais foram as consequências de
o príncipe ter empregado bem seu
tempo na faculdade!
Quando a agitação cessara, pedi-
ram cerveja para o exército, e o pró-
prio Soberano não desprezou nem um
pouco! E foi com algum alarme que o
capitão Racabeças lhe disse que sua
divisão era apenas a guarda avançada
285
do contingente da Paflagônia, apres-
sando-se para ajudar o rei Frigideira;
a força principal estando a um dia
de marcha na retaguarda sob o co-
mando de Sua Alteza Real o príncipe
Bulbo.
― Bom amigo, vamos esperar
aqui para derrotar o príncipe ― disse
Sua Majestade ―, e depois faremos o
pai real dele estremecer.

286
287
XV. Voltamos a
Rosalba

O rei Frigideira fez a Rosalba propos-


tas muito parecidas às que ela rece-
bera dos vários príncipes que, como
bem vimos, se apaixonaram por ela.
O rei era viúvo e se ofereceu para se
casar com sua bela cativa naquele
instante, mas esta o recusou com sua
habitual maneira educada e gentil,
afirmando que o príncipe Lírio era
seu amor e que qualquer outra união
estava fora de questão. Tendo cho-
rado e suplicado em vão, o monarca
288
de temperamento violento a ameaçou
com torturas, mas Rosalba declarou
que preferia sofrer tudo a aceitar a
mão do assassino de seu pai, que por
fim a deixou, proferindo as mais ter-
ríveis blasfêmias e ordenando que se
preparasse para a morte na manhã
seguinte.
O rei passou a noite inteira sendo
aconselhado a respeito de como se
livrar da jovem criatura obstinada.
Ter a cabeça cortada seria uma morte
muito fácil para ela; o enforcamento
era tão comum nos domínios de Sua
Majestade que não lhe proporcionava
289
mais nenhum prazer; por fim, ele se
lembrou de um par de leões ferozes
que recentemente recebera como pre-
sente, e decidiu, com esses brutos fe-
rozes, caçar a pobre Rosalba. Ao lado
do castelo havia um anfiteatro onde
o príncipe aproveitava touradas, caça
a ratos e outros esportes ferozes. Os
dois leões eram mantidos em uma
jaula abaixo dali; seus rugidos po-
diam ser ouvidos por toda a cidade,
cujos habitantes, lamento dizer, aglo-
meravam-se em grande número para
ver uma pobre jovem devorada por
dois animais selvagens.
290
O rei tomou seu lugar no cama-
rote real, tendo os oficiais de sua corte
por perto e o conde Porcão ao lado,
para quem Sua Majestade olhava fe-
rozmente. Espiões reais contaram
ao monarca a respeito do compor-
tamento de Porcão, suas propostas
a Rosalba e a oferta de lutar pela co-
roa. O rei Frigideira olhou como uma
besta para aquele nobre orgulhoso,
sentado nos bancos da frente do tea-
tro esperando para ver a tragédia da
qual a pobre Rosalba seria a heroína.
Finalmente, a princesa foi tra-
zida vestindo camisola, seus lindos
291
292
cabelos caindo pelas costas, e estava
tão bonita que até os guardas e os
donos dos animais selvagens chora-
ram muito ao vê-la. Ela caminhou
com seus pobres pezinhos (por sorte
a arena estava coberta de serragem), e
foi se encostar numa grande pedra no
centro do anfiteatro, em volta da qual
a Corte e o povo estavam sentados
em camarotes gradeados ― temendo
os grandes leões ferozes, de juba ver-
melha, de garganta negra, de cauda
longa, que rugiam e corriam. E nesse
momento os portões foram abertos,
e com um wurrawarrurawarar, dois
grandes leões magros, famintos e
293
rugindo saíram da toca, onde tinham
sido mantidos por três semanas com
nada além de um pouco de torrada e
água, e os quais, consequentemente,
correram direto para a pedra onde
a pobre Rosalba esperava. Rezem a
todos os seus santos padroeiros, pes-
soas gentis, pois ela estava em uma
terrível situação!
Houve um murmúrio e um zum-
bido por todo o anfiteatro, e o feroz
rei Frigideira até sentiu um pouco
de compaixão. Mas o conde Porcão,
sentado ao lado de Sua Majestade, ru-
giu: “Viva! Ande logo com isso!”, pois
294
aquele nobre ainda estava zangado
com a recusa de Rosalba.
Mas que estranho evento! Que cir-
cunstância notável! Que coincidên-
cia extraordinária, que estou certo
de que nenhum de vocês poderia, de
jeito nenhum, ter adivinhado! Quando
os leões chegaram a Rosalba, em vez
de devorá-la com seus grandes den-
tes, foi com beijos que a trataram!
Lambiam seus lindos pés, esfrega-
vam os focinhos em seu colo, ron-
ronavam, pareciam dizer: “Querida
irmã, você não se lembra de seus ir-
mãos da floresta?”. E ela colocou seus
295
lindos braços brancos em volta dos
pescoços amarelos e os beijou.
O rei Frigideira ficou muito sur-
preso. O conde Porcão, muito enojado.
― Pff! ― gritou o conde. ― Que
besteira! Esses leões são animais
mansos vindos de circos. É uma
pena decepcionar as pessoas assim.
Acredito que sejam garotinhos ves-
tidos disfarçados. Não são leões.
― Rá! ― disse o rei. ― Você se
atreve a dizer “que besteira” ao seu
Soberano, não é? Esses leões não são
leões, você diz? Ah! Meus guardas!
Ah! Meu guarda-costas! Peguem o
296
conde Porcão e joguem-no na arena!
Deem a ele uma espada e um broquel,
deixem que fique com sua armadura
e de olhos abertos, e lute contra esses
leões.
O altivo Porcão pousou seu binó-
culo e olhou de cara feia para o rei e
seus guardas.
― Não toquem em mim, atre-
vidos ― alertou ele ―, ou por São
Nicolau, o Velho, vou acabar com a
raça vocês! Vossa Majestade acha que
Porcão está com medo? Não, nem de
cem mil leões! Siga-me até a arena, rei
Frigideira, e lute contra um de teus
297
brutos. Tu não ousas. Que venham
os dois, então!
E, abrindo uma grade do cama-
rote, ele pulou para dentro da arena.

WURRA WURRA WURRA WUR-


AW-AW-AW!!!
Em cerca de dois minutos
o conde Porcão foi
devorado
por
aqueles leões,
ossos, botas e tudo,
e
298
esse foi
o fim dele.

Com isso, o rei disse:


― Bem feito para esse rufião re-
belde! E agora, como aqueles leões
não vão comer aquela jovem…
― Liberte-a! Liberte-a! ― gritou
a multidão.
― Não! ― bradou o rei. ― Que os
guardas desçam e cortem-na em pe-
dacinhos. Se os leões a defenderem,
que os arqueiros os matem. Essa atre-
vida morrerá sofrendo!
299
― A-a-ah! ― gritou a multidão. ―
Que vergonha! Que vergonha!
― Quem ousa gritar vergonha? ―
berrou o furioso soberano (os tiranos
mal podem conter suas emoções). ―
Joguem entre os leões qualquer cana-
lha que diga uma palavra!
Garanto que houve um silêncio
mortal então, que foi quebrado por
um pang arang pang pangkarangpang,
e um cavaleiro e um arauto cavalga-
ram na outra extremidade do circo:
o cavaleiro de armadura completa,
com a viseira erguida, e carregando
uma carta na ponta da lança.
300
― Rá! ― exclamou o rei. ― É
Elefante e Castelo, perseguidor de
meu irmão da Paflagônia; e o cava-
leiro, se minha memória não falha,
é o galante capitão Racabeças! Quais
são as notícias da Paflagônia, galante
Racabeças? Elefante e Castelo, tua
trombeta deve ter te deixado com
sede. O que meu fiel arauto gosta de
beber?
― Anunciando primeiro o salvo-
-conduto de Vossa Senhoria ― disse
o capitão ―, antes de bebermos qual-
quer coisa, permita-nos entregar a
mensagem de nosso rei.
301
― Minha Senhoria, rá! ― disse o
rei, franzindo muito a testa. ― Esse
título soa estranho aos ouvidos ungi-
dos de um rei coroado. Transmitam
imediatamente a mensagem, cava-
leiro e arauto!
Da maneira mais elegante sob
a sacada do rei, Racabeças virou-se
para o arauto e pediu-lhe que come-
çasse.
Elefante e Castelo, deixando cair
a trombeta por cima do ombro, tirou
uma grande folha de papel do chapéu
e começou a ler:
― Ó, sim! Ó, sim! Ó, sim! Saibam
302
todos os homens, por esta, que eu,
Lírio, rei da Paflagônia, grão-duque
da Capadócia, príncipe soberano da
Ave e das Ilhas Salsicha, tendo assu-
mido nosso legítimo trono e título, há
muito tempo falsamente governado
por nosso tio usurpador, autodeno-
minando-se rei da Paflagônia…
― Rá! ― rosnou Frigideira.
― Por meio desta, convoco o falso
traidor, Frigideira, que chama a si
mesmo de rei da Crimeia Tártara…
Os xingamentos do rei eram ter-
ríveis.
303
― Continue, Elefante e Castelo! ―
disse o intrépido Racabeças.
― … Que liberte da covarde prisão
sua senhora suserana e legítima so-
berana, Rosalba, rainha da Crimeia,
e que a restaure ao trono real: na
falta disso, eu, Lírio, proclamo o dito
Frigideira sorrateiro, traidor, trapa-
ceiro, usurpador e covarde. Eu o de-
safio a me enfrentar, com punhos ou
pistolas, com machado de guerra ou
espada, com bacamarte ou cajado,
sozinho ou à frente de seu exército, a
pé ou a cavalo; e provará minhas pa-
lavras em seu corpo feio e perverso!
304
― Deus salve o rei! ― disse o ca-
pitão Racabeças, fazendo uma semi-
volta, duas semilunas e três caracóis.

― Isso é tudo? ― questionou


Frigideira, com a terrível calma da
fúria concentrada.

― Essa, senhor, é toda a mensa-


gem do meu mestre real. Aqui está
a letra de Sua Majestade em assina-
tura, e aqui está sua luva, e se algum
cavalheiro da Crimeia escolher criti-
car as expressões de Sua Majestade,
eu, Cortafo Racabeças, capitão da
guarda, estou muito a serviço dele.
305
― Ele agitou a lança e olhou para os
reunidos ao redor.
― E o que diz meu bom irmão da
Paflagônia, sogro do meu querido fi-
lho, a respeito dessa bobagem? ― O
rei quis saber.
― O tio do rei foi injustamente
privado da coroa que usava ― disse
Racabeças gravemente. ― Ele e seu
braço-direito, Tristonho, estão agora
na prisão esperando a sentença de
meu mestre real. Depois da batalha
de Bombardaro…
― De quê? ― perguntou o sur-
preso Frigideira.
306
― De Bombardaro, onde meu su-
serano, sua majestade atual, teria
realizado feitos, mas que todo o exér-
cito de seu tio veio para o nosso lado,
com exceção do príncipe Bulbo.
― Ah! Meu menino, meu menino,
meu Bulbo não era um traidor! ― gri-
tou Frigideira.
― O príncipe Bulbo, longe de
vir até nós, fugiu, senhor; mas eu o
peguei. O príncipe é prisioneiro do
nosso exército, e as mais terríveis tor-
turas o aguardam se um fio de cabelo
da princesa Rosalba for arrancado.
― Sério? ― exclamou o furioso
307
Frigideira, que agora estava perfeita-
mente lívido de raiva. ― Vão mesmo?
Que pena. Tenho vinte filhos tão
adoráveis quanto Bulbo. Nenhum é
tão apto para reinar quanto Bulbo.
Chicoteie, bata, açoite, faça passar
fome, puna, castigue, torture Bulbo,
quebre todos os ossos dele, asse-o
ou esfole-o vivo, arranque todos os
seus lindos dentes, um por um! Mas,
por mais caro que Bulbo seja para
mim… alegria de meus olhos, te-
souro de minha alma!… Ha, ha, ha,
ha! A vingança é ainda mais cara. Rá!
Torturadores, carrascos, executores:
acendam as fogueiras e aqueçam as
308
pinças! Peguem muito chumbo fer-
vente! Tragam Rosalba!

309
XVI. Como
Racabeças Voltou ao
Rei Lírio

O capitão Racabeças partiu quando o


rei Frigideira proferiu a cruel ordem,
tendo cumprido seu dever de entre-
gar a mensagem que seu mestre real
lhe havia confiado. Claro que sentia
muito por Rosalba, mas o que poderia
fazer?
Então retornou ao acampamento
do rei Lírio e encontrou o jovem mo-
narca perturbado, fumando charutos
310
na tenda real. A agitação de Sua
Majestade não foi aplacada pelas no-
tícias trazidas pelo seu embaixador.
― Aquele rufião real brutal e im-
placável! ― exclamou Lírio. ― Como
bem diz a poesia da Inglaterra: “O ho-
mem que põe a mão em uma mulher,
exceto no caminho da bondade, é um
vilão”. Ah, Racabeças!
― É isso mesmo, Vossa Majestade.
― E você a viu ser jogada no óleo? E
o óleo calmante… o óleo emoliente…
recusa-se a ferver, bom Racabeças,
e estragar a mais bela dama que os
olhos já viram?
311
― Meu bom suserano, não tive co-
ragem de olhar e ver uma bela dama
fervendo. Levei sua mensagem real a
Frigideira e lhe dei as costas. Eu disse
a ele que você responsabilizaria o
príncipe Bulbo. Ele apenas disse que
tinha vinte filhos tão bons quanto
Bulbo, e imediatamente ordenou que
os implacáveis carrascos prosseguis-
sem.
― Ó pai cruel… ó filho infeliz! ―
choramingou o rei. ― Vão e tragam
o príncipe Bulbo aqui.
Bulbo foi trazido acorrentado,
parecendo muito desconfortável.
312
Embora prisioneiro, estava razoavel-
mente feliz, talvez porque sua mente
estivesse em paz, e toda a luta havia
terminado, e ele estava jogando bola
de gude com os guardas quando o rei
o chamou.
― Ah, meu pobre Bulbo ― disse
Sua Majestade, com olhares de in-
finita compaixão ―, ouvistes a no-
tícia? ― Lírio queria ser gentil ao
contar ao príncipe. ― Teu pai brutal
condenou Rosalba-ba-ba-ba à morte,
p-p-p-príncipe Bulbo!
― O quê, matou Betsinda?! Boo-
hoo-hoo ― gritou Bulbo. ― Betsinda!
313
Linda Betsinda! Querida Betsinda!
Ela era a menininha mais querida
do mundo. Eu a amo mais vinte mil
vezes até do que Angélica. ― E assim
continuou expressando sua dor de
uma maneira tão sincera que o rei
ficou bastante tocado e disse, aper-
tando a mão de Bulbo, que desejava
tê-lo conhecido antes.
Bulbo, um tanto inconsciente-
mente, e querendo o melhor, ofe-
receu-se para sentar-se com Sua
Majestade, fumar um charuto com
ele e consolá-lo. O gentil monarca for-
neceu a Bulbo um charuto; ele disse
314
que não fumara um desde que tinha
se tornado prisioneiro.
E agora pense em quais devem
ter sido os sentimentos do mais mi-
sericordioso dos monarcas quando
informou a seu prisioneiro que, em
consequência do comportamento
cruel e vil do rei Frigideira para com
Rosalba, o príncipe Bulbo deve ser
executado instantaneamente! O no-
bre Lírio não conseguiu conter as
lágrimas, nem os soldados, nem os
oficiais, nem o próprio Bulbo quando
o assunto foi explicado; e ele, levado
a entender que a promessa de Sua
315
Majestade, é claro, estava acima de
tudo, e devia submeter-se. Assim,
o pobre Bulbo foi levado para fora,
Racabeças tentando consolá-lo, di-
zendo que, se ele tivesse vencido a
batalha de Bombardaro, poderia ter
enforcado o príncipe Lírio.
― Sim! Mas isso não me conforta
agora! ― disse o pobre Bulbo; de fato
não confortava, coitado!
Disseram que o assunto seria resol-
vido na manhã seguinte às oito horas
e ele foi levado de volta à masmorra,
onde toda a atenção lhe foi dada. A
mulher do carcereiro mandou-lhe
316
chá, e a filha implorou-lhe que escre-
vesse o seu nome no álbum dela, onde
muitos cavalheiros o tinham escrito
em ocasiões semelhantes.
― Pro diabo com seu álbum! ―
disse Bulbo.
O agente funerário veio e mediu-o
para o caixão mais bonito que o di-
nheiro poderia comprar, mas nem isso
consolou Bulbo. O cozinheiro trouxe
pratos que ele gostava, mas Bulbo não
quis tocá-los: sentou-se e começou a
escrever um adeus a Angélica, pois o
relógio não parava e os ponteiros se
aproximavam da manhã seguinte.
317
O barbeiro veio à noite e se ofereceu
para barbeá-lo para o dia seguinte. O
príncipe Bulbo o chutou para longe e
continuou escrevendo algumas pala-
vras para a princesa Angélica, pois o
relógio não parava e os ponteiros se
aproximavam cada vez mais perto da
manhã seguinte. Ele subiu em uma
caixa de chapéus, em cima de uma
cadeira, em cima da cama, em cima
da mesa e olhou para fora para ver se
poderia escapar, pois o relógio estava
sempre correndo e os ponteiros se
aproximando mais, mais e mais.
Mas olhar pela janela era uma
318
coisa, pular era outra: e o relógio da
cidade bateu sete horas. Então Bulbo
foi dormir um pouco, mas o carce-
reiro veio e o acordou.
― Levante-se, Sua Alteza Real, por
favor, faltam dez para oito!
E desse modo o pobre Bulbo le-
vantou-se: tinha ido para a cama
vestido (o preguiçoso), e sacudiu-se,
dizendo que não se importava em se
vestir, nem em tomar o café da ma-
nhã, obrigado; e viu os soldados que
vieram buscá-lo.
― Me conduzam! ― disse ele.
Os soldados abriram o caminho,
319
profundamente afetados; e eles en-
traram no pátio, e na praça, e lá es-
tava o rei Lírio vindo se despedir, e
Sua Majestade muito gentilmente
apertou a mão dele, e:
― Sigam em frente…
Quando ouviram:
Haw… wurraw… wurraw… aworr!
Ouviu-se um rugido de feras sel-
vagens. E quem entrou cavalgando
na cidade, assustando os meninos,
e até o sacristão e o policial, senão
Rosalba!
O fato é que, quando o capitão
Racabeças entrou no pátio do castelo
320
Snapdragon e estava conversando
com o rei Frigideira, os leões fugiram
pelo portão aberto, engoliram os seis
guardas em um instante e foram
embora com Rosalba montada nas
costas de um deles. As feras então a
carregaram por aí até chegarem à ci-
dade onde o exército do príncipe Lírio
acampava.
Quando o rei soube da chegada
da rainha, você pode pensar como
esse saiu correndo para entregar a
rainha ao leão! Os leões estavam gor-
dos como porcos agora, tendo comido
Porcão e todos aqueles guardas, e
321
eram tão mansos que qualquer um
poderia acariciá-los.
Enquanto Lírio se ajoelhava
(muito graciosamente) e ajudava a
princesa, Bulbo, por sua vez, correu e
beijou o leão. Ele lançou seus braços
ao redor do rei da floresta; o abraçou,
e riu e chorou de alegria.
― Ah, sua querida velha fera, ah,
como estou feliz em ver você, e a que-
rida, querida Bets… isto é, Rosalba.
― O quê? É você? Pobre Bulbo! ―
observou a rainha. ― Ah, como estou
feliz em vê-lo. ― Ela deu-lhe a mão
para beijar.
322
O rei Lírio deu-lhe um tapinha
muito gentil nas costas e disse:

― Bulbo, meu rapaz, estou muito


feliz. Por sua causa, Sua Majestade
chegou.

― Eu também ― disse Bulbo ―, e


você sabe porquê.

O capitão Racabeças apareceu.

― Senhor, são oito e meia. Vamos


prosseguir com a execução?

― Execução! Pelo quê? ― pergun-


tou Bulbo.

― Um oficial só segue suas ordens


323
― respondeu o capitão Racabeças,
mostrando seu mandado.
Sua Majestade o rei Lírio disse sor-
rindo:
― O príncipe Bulbo recebeu in-
dulto. ― E muito graciosamente o
convidou para o café da manhã.

324
XVII. Como uma
Tremenda Batalha
Ocorreu e Quem a
Ganhou

Assim que o rei Frigideira ouviu o que


já sabemos, que sua vítima, a adorá-
vel Rosalba, havia escapado, a fúria
dele não teve limites, e lançou o lorde
chanceler, o lorde camarista e todos
os oficiais da coroa que pudesse en-
contrar no caldeirão de óleo fervente
preparado para a princesa. Então, or-
denou que viesse todo o seu exército,
325
cavalos, infantaria e artilharia e par-
tiu à frente de uma multidão incon-
tável com, acho, vinte mil tambores,
trompetistas e flautistas.
Você pode ter certeza de que a
guarda avançada do rei Lírio o man-
teve informado a respeito dos movi-
mentos do inimigo e, portanto, não
ficou desconcertado. Era educado
demais para alarmar a princesa, sua
adorável convidada, com quaisquer
rumores desnecessários acerca de
batalhas iminentes; pelo contrário,
fazia de tudo para diverti-la, deu-lhe
um café da manhã, jantar e almoço
326
muito elegantes e preparou um baile
naquela noite, quando bailou com ela
em todas as danças.
O pobre Bulbo voltou a ser que-
rido e autorizado a ficar livre agora.
Recebeu roupas novas, foi chamado de
“meu bom primo” por Sua Majestade
e foi tratado com a maior distinção
por todos. Mas era fácil notar que ele
estava muito melancólico. O fato é
que ver Betsinda, que estava perfeita-
mente linda em um elegante vestido
novo, deixou o pobre Bulbo agitado
outra vez. E este nunca pensou em
Angélica, agora princesa Bulbo, que
327
deixara em casa e que, como sabemos,
não se importava muito com ele.
O rei, dançando a vigésima quinta
polca com Rosalba, com admira-
ção observou o anel que ela usava.
Rosalba contou como o conseguira de
Bufanosa, que sem dúvida o pegara
quando Angélica o jogou fora.
― Sim ― disse a Fada Varinha-
Preta, que viera ver os jovens e que
provavelmente tinha certos planos.
― Eu dei aquele anel à rainha, mãe de
Lírio; que não era, salvo sua presença,
uma mulher muito sábia. O objeto é
encantado, e quem o usa fica lindo
328
aos olhos do mundo. Dei de presente
ao pobre príncipe Bulbo, quando foi
batizado, uma rosa que o fez parecer
bonito enquanto a tinha; mas ele a
deu para Angélica, que instantanea-
mente ficou linda de novo, enquanto
Bulbo voltava ao seu estado natural
de mundanidade.
― Rosalba não precisa de anel,
tenho certeza ― exclamou Lírio,
com uma reverência. ― Aos meus
olhos, ela é bonita o suficiente sem
nenhuma ajuda encantada.
― Ah, senhor! ― disse Rosalba.
― Tire o anel e tente ― disse o rei,
329
e tirou o anel do dedo dela. Aos olhos
dele, ela parecia tão bonita quanto
antes!
Estava pensando em jogar fora o
anel, pois era tão perigoso e deixava
todo mundo louco por Rosalba; mas
sendo um príncipe de grande humor,
e bom humor também, olhou para
um pobre jovem que por acaso pare-
cia muito triste e disse:
― Bulbo, meu pobre rapaz! Venha
experimentar este anel. A princesa
Rosalba o dá de presente a você.
As propriedades mágicas do anel
eram extraordinariamente fortes,
330
pois assim que Bulbo o colocou, eis
que parecia um jovem príncipe bem-
-apessoado e agradável ― com uma
bela pele, cabelos louros, bastante
robusto e com pernas tortas, mas
envoltas em um par de botas mar-
roquinas amarelas tão bonitas que
ninguém as notou. E Bulbo ficou ani-
mado quase imediatamente depois
que se olhou no espelho, falou com
Suas Majestades da maneira mais
animada e agradável, dançou diante
da rainha com uma das mais belas
damas de honra, e depois de olhar
para Sua Majestade, não pôde deixar
de dizer:
331
― Que estranho! Ela é muito bo-
nita, mas não tão extraordinária.
― Ah, não, de jeito nenhum! ―
concordou a dama de honra.
― Mas o que me importa, caro
senhor ― retrucou a rainha, que os
ouviu ―, se você acha se eu sou bonita
o suficiente?
O olhar do rei em resposta a esse
discurso afetuoso foi tal que nenhum
pintor conseguiu reproduzi-lo.
A Fada Varinha-Preta disse:
― Que vocês sejam abençoados,
meus queridos filhos! Agora estão
unidos e felizes e veem o que eu disse
332
desde o início, que um pequeno in-
fortúnio fez bem a vocês dois. Você,
Lírio, se tivesse sido criado na prospe-
ridade, dificilmente teria aprendido
a ler ou escrever; teria sido ocioso e
extravagante, e não poderia ter sido
um bom rei como agora será. Você,
Rosalba, ficaria tão lisonjeada que
sua cabecinha poderia ter virado
como a de Angélica, que se achava
boa demais para Lírio.

― Como se alguém pudesse ser


bom o suficiente para ele ― gritou
Rosalba.
333
― Ah, você, você, querida! ― ex-
clamou Lírio.
E ela era. Ele estava estendendo os
braços para abraçá-la diante de todo
o grupo quando um mensageiro en-
trou correndo e disse:
― Meu Senhor, o inimigo!
― Peguem as armas! ― disse Lírio.
― Ai, meu Deus! ― disse Rosalba
e desmaiou, claro.
Ele roubou um beijo dos lábios
dela e correu para o campo de batalha!
A Fada havia dado ao rei Lírio uma
armadura, que não apenas era toda
334
bordada com joias e cegante para os
olhos, mas à prova d’água, à prova de
armas e à prova de espadas; de modo
que, no meio das batalhas mais di-
fíceis, Sua Majestade cavalgava tão
calmamente quanto se tivesse sido
um granadeiro britânico em Alma.
Se eu estivesse empenhado em lutar
por meu país, gostaria de uma arma-
dura como a do príncipe Lírio; mas,
você sabe, ele era um príncipe de um
conto de fadas, e eles sempre têm es-
sas coisas maravilhosas.
Além da armadura dada pela
fada, o príncipe tinha um cavalo
335
mágico, que galopava a qualquer ve-
locidade que o cavaleiro quisesse; e
uma espada mágica, que se alongaria
e atravessaria todo um regimento de
inimigos de uma só vez. Com tal arma
em posse, pergunto-me se ele pensou
em ordenar a seu exército que saísse;
mas vieram todos eles, em magnífi-
cos uniformes novos, Racabeças e os
dois amigos de faculdade do príncipe,
cada um comandando uma divisão, e
Sua Majestade empinando-se à frente
de todos eles.
Ah! Se eu tivesse a pena de um
tal Sir Archibald Alison, meus caros
336
amigos, não os entreteria agora com
o relato de um tremendo fuzuê? Não
devem ter sido dados golpes incríveis?
Feridas terríveis? Flechas escure-
cendo o céu? Balas de canhão atra-
vessando os batalhões? Infantaria
avançando na cavalaria? Infantaria
se lançando na cavalaria? Cornetas
retumbando; batida de tambores; ca-
valos relinchando; pífanos soando;
soldados rugindo, xingando, rindo;
oficiais gritando: “Avante, homens!”,
“Por aqui, rapazes!”, “Mostrem a eles,
rapazes!”, “Lutem pelo rei Lírio, e pela
causa certa!”, “Rei Frigideira para
sempre!”. Eu não descreveria tudo isso
337
na melhor linguagem possível? Mas
esta humilde pena não possui a habi-
lidade necessária para a descrição de
combates. Para resumir, a derrubada
do exército do rei Frigideira foi tão
completa que, se fossem russos, você
não poderia desejar que fossem mais
esmagados e frustrados.
Quanto ao monarca usurpador,
tendo realizado atos muito piores do
que se poderia esperar de um rufião e
usurpador real que tinha um propó-
sito tão ruim e que foi tão cruel com
as mulheres quanto o rei Frigideira,
quando seu exército fugiu, foi junto,
338
339
chutando seu primeiro general, o
príncipe Soca-Caras, da sela e ga-
lopando no cavalo dele para fugir,
tendo de fato passado sobre vinte e
cinco ou vinte e seis de seus homens
sob os cascos. Racabeças, ao encon-
trar Soca-Caras caído, rapidamente
se livrou dele. Enquanto isso, o rei
Frigideira galopava com toda a ve-
locidade que seu cavalo conseguia.
Por mais rápido que tenha galopado,
prometo a você que alguém galopou
mais rápido; e esse indivíduo, como
você sem dúvida sabe, foi o real Lírio,
que não parava de berrar:
340
― Fique, traidor! Vire-se, cana-
lha, e defenda-se! Fique de pé, tirano,
covarde, rufião, maldito, até que eu
arranque sua cabeça feia de seus om-
bros usurpadores!
E, com a espada mágica, que se
alongava à vontade, Sua Majestade
continuou cutucando e espetando
Frigideira nas costas, até que aquele
monarca malvado rugiu de angústia.
Quando estava quase subjugado,
Frigideira virou-se e deu ao príncipe
Lírio um golpe prodigioso sobre o ba-
luarte com seu machado de batalha,
uma arma enorme que havia abatido
341
não sei quantos regimentos no decor-
rer da tarde. Mas, vejam! Embora o
golpe tenha atingido bem o elmo de
Sua Majestade, não causou mais dano
do que se Frigideira o tivesse atingido
com um pedaço de manteiga: o ma-
chado de batalha se desfez na mão
de Frigideira, e Lírio riu com muito
desprezo pelos esforços impotentes
daquele usurpador atroz.
Com o insucesso de seu golpe, o
monarca da Crimeia ficou irritado.
― Se você monta um cavalo má-
gico e usa uma armadura mágica,
para que serve eu atacá-lo? ― disse
342
ele a Lírio. ― Melhor eu me entregar
como prisioneiro de uma vez por to-
das. Suponho que Vossa Majestade
não será tão mesquinho a ponto de
golpear um pobre sujeito que não
pode devolver o golpe?
A verdade do comentário de
Frigideira atingiu o magnânimo
Lírio.
― Você se entrega como prisio-
neiro, Frigideira?
― Claro que sim.
― Você reconhece Rosalba como
sua legítima rainha e entrega a coroa
343
e todos os seus tesouros à sua legí-
tima senhora?

― Se devo fazer isso, então devo


fazer isso ― disse Frigideira, que na-
turalmente estava muito mal-humo-
rado.

A essa altura, os ajudantes de


campo do rei Lírio chegaram, aos
quais Sua Majestade ordenou que
atassem o prisioneiro. Ele foi amar-
rado com as mãos para trás e com as
pernas sob o cavalo, de rosto virado
para a cauda, e dessa forma foi levado
de volta aos aposentos do rei Lírio e
344
jogado na mesma masmorra onde o
jovem Bulbo tinha sido confinado.
Frigideira (que, em sua angús-
tia, era uma pessoa muito diferente
do orgulhoso portador da coroa da
Crimeia), com afeto e sinceridade,
pediu para ver o filho ― seu que-
rido filho mais velho, seu querido
Bulbo. Aquele jovem de bom coração
nunca censurou seu arrogante pai
pela conduta indelicada do dia ante-
rior, quando ele teria deixado Bulbo
ser fuzilado sem qualquer piedade,
e assim foi ver o pai e falou com ele
através da grade da porta, que era até
345
onde tinha permissão para ir; e trou-
xe-lhe alguns sanduíches da grande
ceia que Sua Majestade estava ofere-
cendo no andar de cima, em homena-
gem à incrível vitória que acabara de
ser alcançada.
― Não posso ficar muito tempo
com você, senhor ― disse Bulbo, que
estava com seu melhor traje de baile.
― Devo dançar a próxima quadrilha
com Sua Majestade a rainha Rosalba,
e ouço violinos tocando neste exato
momento.
E, sendo assim, Bulbo voltou ao
salão de baile, e o miserável Frigideira
346
comeu sua ceia solitária em silêncio
e lágrimas.
Tudo agora era alegria no círculo
do rei Lírio. Danças, festas, diversão,
conversas e brincadeiras de todos os
tipos aconteceram. As pessoas das al-
deias pelas quais eles passavam rece-
beram ordens de iluminar suas casas
à noite e, durante o dia, espalhar flo-
res nas estradas. Foram solicitados,
e prometo que eles não gostariam de
recusar, a servir as tropas com muita
comida e vinho; além disso, o exército
foi enriquecido pela imensa quanti-
dade de pilhagem, que foi encontrada
347
no acampamento do rei Frigideira e
tirada de seus soldados, que (depois
de terem desistido de tudo) puderam
confraternizar com os conquistado-
res. As forças unidas marcharam de
volta para a capital do rei Lírio, sua
bandeira real e também a da rainha
Rosalba sendo levadas na frente das
tropas.
Racabeças se tornou duque e ma-
rechal de campo. Smith e Jones fo-
ram promovidos a condes; a Ordem
Tártara da Abóbora e a Condecoração
Pa f lagon ia na do Pepino fora m
distribuídas ao exército por Suas
348
Majestades. A rainha Rosalba usava
a Faixa Paflagoniana do Pepino em
seu traje de montaria, enquanto o rei
Lírio nunca aparecia sem o grande
Cordão da Abóbora.
E como o povo aplaudia enquanto
os dois cavalgavam lado a lado!
Foram declarados o casal mais bonito
já visto: isso era o natural, mas eles
realmente eram muito bonitos e, se
fossem de outra forma, ainda assim
teriam parecido, tão felizes estavam!
Suas Majestades nunca se sepa-
ravam durante todo o dia, sempre
tomavam café, jantavam e ceavam
349
juntos, e cavalgavam lado a lado,
trocando cumprimentos elegantes e
entregando-se à mais deliciosa con-
versa. À noite, as damas de honra
da rainha (que voltaram a ela no dia
seguinte à derrota do rei Frigideira)
vinham e a conduziam aos aposentos
que lhe eram preparados; enquanto o
rei Lírio, cercado por seus cavalhei-
ros, retirava-se para seus próprios
aposentos reais.
Ficou combinado que deveriam
se casar assim que chegassem à ca-
pital, e ordens foram despachadas ao
arcebispo de Blombodinga, para que
350
se preparasse para realizar a atraente
cerimônia. O duque Racabeças levou
a mensagem e deu instruções para
que o castelo fosse esplendidamente
reformado e pintado. O duque ainda
prendeu Tristonho, o ex-primeiro-
-ministro, e obrigou-o a restituir
aquela considerável soma de dinheiro
que o velho patife havia escondido do
tesouro do falecido rei. Além disso,
também colocou Valoroso na prisão
(que, a propósito, foi destronado por
um período considerável no passado),
e, quando o ex-monarca protestou
fracamente, Racabeças disse:
351
― Um soldado, senhor, sabe ape-
nas o seu dever; minhas ordens
são para prendê-lo junto ao ex-rei
Frigideira, que foi trazido até aqui
como prisioneiro.
Assim, esses dois ex-personagens
reais foram enviados por um ano
para a Casa de Correção e, depois,
obrigados a se tornar monges da mais
severa Ordem dos Flagelantes, estado
em que, pelo jejum, pelas vigílias,
pela flagelação (que administraram
um ao outro, humilde mas resoluta-
mente), sem dúvida mostraram um
arrependimento por sua malvadeza,
352
usurpações e crimes privados e pú-
blicos.
Quanto a Tristonho, o malandro
foi mandado para as galés e nunca
mais teve oportunidade de roubar.

353
354
XVIII. Como Todos
Eles Voltaram Para
a Capital

A Fada Varinha-Preta, por cujos


meios aqueles jovens rei e rainha
certamente haviam recuperado suas
respectivas coroas, com frequência
aparecia para visitinhas ― enquanto
eles cavalgavam em seu caminho
triunfal em direção à capital de Lírio
―, transformava sua varinha em
um pônei e viajava ao lado de suas
Majestades, dando-lhes os melhores
conselhos. Não tenho certeza se o rei
355
Lírio achou a Fada e seus conselhos
um tanto chatos, imaginando que
foi seu próprio mérito que o colocou
no trono e derrotou Frigideira; e, em
suma, temo que o rapaz tenha se en-
vaidecido. Ela o encorajou a lidar com
seus súditos com justiça, a recolher
impostos com moderação, a nunca
quebrar sua promessa uma vez que a
tivesse feito ― e em todos os aspectos
a ser um bom rei.
― Um bom rei, minha querida
Fada! ― disse Rosalba. ― Claro que
ele será. Quebrar sua promessa! Você
imagina que meu Lírio faria algo tão
356
impróprio, tão diferente dele? Não!
Nunca! ― E ela olhou com carinho
para Lírio, a quem achava um padrão
de perfeição.
― Por que a Fada Varinha-Preta
está sempre me aconselhando, me
dizendo como administrar meu go-
verno e me avisando para manter
minha palavra? Ela supõe que eu
não sou um homem de bom senso e
honra? ― Lírio quis saber, irritado.
― Acho que ela quer assumir sua po-
sição.
― Shhh, querido Lírio ― re-
primiu Rosalba. ― Você sabe que
357
Varinha-Preta tem sido muito gentil
conosco, e não devemos ofendê-la.
Mas a Fada não estava ouvindo
as observações rabugentas de Lírio
― havia recuado e agora trotava em
seu pônei ao lado de mestre Bulbo,
que montava um burro, e em geral
se tornara amado no exército por sua
alegria, bondade e gentileza para com
todos. Ele estava ansioso para ver sua
querida Angélica. Achava que nunca
existira um ser mais encantador.
Varinha-Preta não lhe disse que era
a posse da rosa mágica que tornava
Angélica tão adorável aos olhos dele.
358
Em vez disso, levou a ele os melhores
relatos de sua esposa, cujos infortú-
nios e humilhações realmente a fize-
ram melhorar muito; e, veja bem, a
fada podia voar em sua varinha cem
quilômetros em um minuto, e es-
tar de volta rapidinho, e assim levar
mensagens educadas de Bulbo para
Angélica, e de Angélica para Bulbo, e
confortar aquele jovem em sua jor-
nada.
Quando a comitiva real chegou
à última etapa antes de alcançar
Blombodinga, a princesa Angélica
estava na carruagem, esperando,
359
com sua dama de honra ao lado! Ela
correu para os braços do marido, mal
parando para fazer uma reverência
passageira ao rei e à rainha. Não ti-
nha olhos para outro a não ser Bulbo,
que lhe parecia perfeitamente ado-
rável por causa do anel mágico que
usava; enquanto ela mesma, usando
a rosa mágica em seu gorro, parecia
inteiramente bela para o extasiado
Bulbo.
Um esplêndido almoço foi servido
à comitiva real, da qual participa-
ram o arcebispo, o chanceler, o du-
que Racabeças, a Condessa Bufanosa
360
e todos os nossos amigos, a Fada
Varinha-Preta sentada à esquerda do
rei Lírio, com Bulbo e Angélica ao lado
dela. Podia-se ouvir os sinos tocando
na capital e as armas que os cidadãos
disparavam em homenagem a suas
majestades.
― O que pode ter feito aquela ve-
lha e horrorosa Bufanosa se vestir
de maneira tão absurda? Você pediu
a ela que fosse sua dama de honra,
minha querida? ― perguntou Lírio
a Rosalba. ― Que figura engraçada
Bufaninha é!
Bufaninha estava sentada diante
361
de suas Majestades, entre o arcebispo
e o lorde chanceler, e certamente era
uma figura engraçada, pois usava
um vestido curto de seda branca,
com rendas, uma coroa de rosas bran-
cas na peruca, um esplêndido véu de
renda e seu velho pescoço amarelo es-
tava coberto de diamantes. Ela olhou
para o rei com tamanha cobiça que
Sua Majestade caiu na gargalhada.
― Onze horas! ― anunciou Lírio,
enquanto o grande sino da Catedral
de Blombodinga badalava naquela
hora. ― Senhoras e senhores, deve-
mos começar. Arcebispo, você deve
362
estar na igreja, eu acho, antes do
meio-dia?
― Devemos estar na igreja antes
do meio-dia ― suspirou Bufanosa
com voz lânguida, escondendo o
rosto velho atrás do leque.
― E então serei o homem mais fe-
liz em meus domínios ― disse Lírio,
com uma elegante reverência para a
ruborizada Rosalba.
― Ah, meu Lírio! Ah, minha
querida Majestade! ― exclamou
Bufanosa. ― E pode ser que este mo-
mento feliz finalmente tenha che-
gado…
363
― Claro que chegou.
― … e que eu esteja prestes a me
tornar a noiva extasiada do meu ado-
rado Lírio! ― prosseguiu Bufanosa.
― Alguém me empreste um frasco de
perfume. Certamente vou desmaiar
de alegria.
― Você, minha noiva?! ― rugiu
Lírio.
― Você, se casar com meu prín-
cipe?! ― exclamou a pobre Rosalba.
― Pff! Absurdo! Esta mulher en-
louqueceu! ― retrucou o rei.
E todos os cortesãos exibiam por
seus semblantes e expressões marcas
364
de surpresa, zombaria, incredulidade
ou admiração.
― Gostaria de saber quem mais
vai se casar, se não eu? ― gritou
Bufanosa. ― Gostaria de saber se o
rei Lírio é um cavalheiro e se existe
justiça na Paflagônia? Senhor chan-
celer! Meu senhor arcebispo! Vossas
Senhorias vão ficar parados vendo
uma criatura pobre, carinhosa, con-
fiante e terna ser deixada de lado? O
príncipe Lírio não prometeu se casar
com sua Barbara? Não é a assinatura
de Lírio? Este papel não declara que
ele é meu, e somente meu? ― E em
365
seguida entregou à Sua Graça o ar-
cebispo o documento que o príncipe
assinou naquela noite, quando ela
usava o anel mágico e Lírio tinha be-
bido tanto champanhe.

E o velho arcebispo, tirando os


óculos, leu:

― “Venho por meio desta infor-


mar que eu, Lírio, filho único de
Sávio, rei da Paflagônia, prometo me
casar com a encantadora e virtuosa
Bárbara Griselda, Condessa Bufanosa,
e viúva do falecido Jenkins Bufanoso,
escudeiro.” Hum ― comentou o
366
arcebispo ―, este documento é cer-
tamente um… um documento.
― Pff! ― disse o lorde chanceler.
― A assinatura não está na caligrafia
de Sua Majestade.
De fato, desde seus estudos em
Bósforo, Lírio havia melhorado imen-
samente na caligrafia.
― É sua caligrafia, Lírio? ― A Fada
Varinha-Preta quis saber, com uma
terrível severidade no semblante.
― S-s-s-sim ― disse o pobre Lírio
―, eu tinha esquecido completa-
mente o papel; ela não pode querer
usá-lo contra mim. Sua velha maldita,
367
o que você vai querer para me deixar
ir? Alguém ajude a rainha…
A rainha desmaiou.
― Corte a cabeça dela ― exclamou
o impetuoso.
― Sufoque a velha bruxa! ― su-
geriu Racabeças.
― Jogue-a no rio! ― disseram o
ardente Smith e o fiel Jones.
Mas Bufanosa jogou os braços em
volta do pescoço do arcebispo e gritou
“Justiça, justiça, meu lorde chance-
ler!” tão alto, que seus gritos pene-
trantes fizeram todos pararem.
368
Quanto a Rosalba, foi levada des-
maiada pelas damas, e você pode
imaginar o olhar de agonia que Lírio
lançou para aquele adorável ser,
quando sua esperança, sua alegria,
sua amada, seu tudo em tudo, foi as-
sim levada, e em seu lugar a velha e
horrível Bufanosa correu para o lado
dele e mais uma vez gritou:
― Justiça, justiça!
― Você não aceita aquela quantia
que Tristonho escondeu? ― sugeriu
Lírio. ― Duzentos e dezoito mil mi-
lhões, ou por aí. É uma quantia con-
siderável.
369
― Terei a quantia e você também!
― retrucou Bufanosa.
― Vamos colocar as joias da coroa
na barganha ― disse Lírio.
― Vou usá-las ao lado do meu
Lírio! ― devolveu Bufanosa.
― Será que metade, três quartos,
cinco sextos, dezenove vigésimos do
meu reino servem, condessa? ― per-
guntou o trêmulo monarca.
― O que toda a Europa seria para
mim sem você, meu Lírio? ― gritou
Bufaninha, beijando a mão dele.
― Não vou, não posso, não vou…
antes disso renunciarei à coroa
370
― gritou Lírio, arrancando a mão;
mas Bufaninha agarrou-se a ela.
― Tenho competência, meu amor
― disse a condessa ―, e com você e
um chalé, sua Bárbara será feliz.
A essa altura, Lírio estava meio
tomado pela raiva.
― Eu não vou me casar com ela
― disse ele. ― Ah, Fada, Fada, me dê
conselhos?
E, enquanto falava, ele olhou para
o rosto sério da Fada Varinha-Preta.
― “Por que a Fada Varinha-Preta
está sempre me aconselhando e
me avisando para manter minha
371
palavra? Ela supõe que eu não sou um
homem de honra?” ― disse a Fada,
citando as próprias palavras arro-
gantes de Lírio.
O rapaz estremeceu sob o brilho
dos olhos dela; sentiu que não lhe ha-
via escapatória.
― Bem, arcebispo ― disse Lírio
com uma terrível voz que fez Sua
Graça levar um susto ―, já que esta
Fada me levou ao auge da felicidade
apenas para me lançar nas profun-
dezas do desespero, já que vou per-
der Rosalba, deixe-me pelo menos
manter minha honra. Levante-se,
372
condessa, e vamos nos casar. Posso
manter minha palavra, mas morrerei
logo em seguida.

― Ah, querido Lírio ― exclamou


Bufanosa, pondo-se de pé ―, eu sabia,
eu sabia que podia confiar em você; eu
sabia que meu príncipe era a alma da
honra. Subam em suas carruagens,
senhoras e senhores, e vamos imedia-
tamente à igreja. E quanto a morrer,
caro Lírio, não, não. Você esquecerá
aquela insignificante camareira que
finge ser rainha, você viverá para ser
consolado por sua Bárbara! Ela deseja
373
ser uma rainha, e não uma rainha
viúva, meu gracioso senhor!

E pendurada no braço do pobre


Lírio, olhando de soslaio e sorrindo
da maneira mais repugnante, aquela
velha miserável caminhou em seus
sapatos de cetim branco e entrou na
mesma carruagem que havia sido
preparada para levar Lírio e Rosalba à
igreja. Os canhões rugiram de novo, os
sinos repicaram em triplo, as pessoas
jogaram flores no caminho da noiva
e do noivo reais, e Bufaninha olhou
pela janela dourada da carruagem,
374
fez uma reverência e sorriu para eles.
Pff! A horrível e miserável velha!

375
XIX. E Agora Vamos
à Última Cena da
Pantomima

Os muitos altos e baixos de sua vida


deram à princesa Rosalba uma força
de vontade prodigiosa, e aquela jo-
vem de princípios elevados logo se
recuperou de seu desmaio, do qual a
Fada Varinha-Preta, por uma essên-
cia preciosa que sempre carregava no
bolso, a despertou. Em vez de arran-
car os cabelos, chorar, lamentar-se e
desmaiar de novo, como muitas jo-
vens teriam feito, Rosalba lembrou
376
que devia um exemplo de firmeza
aos seus súditos; e, embora amasse
Lírio mais do que a própria vida, es-
tava determinada, como ela mesma
disse à Fada, a não interferir entre ele
e a justiça, ou fazer com que ele que-
brasse sua palavra real.
― Não posso me casar com ele,
mas sempre o amarei ― disse à Fada.
― Assistirei ao casamento dele com
a condessa, assinarei o livro e dese-
jarei felicidades de todo o coração.
Verei, quando chegar em casa, se não
posso dar à nova rainha alguns be-
los presentes. Os diamantes da coroa
377
são extraordinariamente bons, e eu
nunca terei nenhum uso para eles.
Vou viver e morrer solteira como a
rainha Elizabeth e, claro, quando dei-
xar este mundo deixarei minha coroa
para Lírio. Vamos vê-los casados, mi-
nha querida Fada, deixe-me dizer-lhe
um último adeus; e então, por favor,
retornarei aos meus próprios domí-
nios.
E então a Fada beijou Rosalba
com uma ternura peculiar, e ime-
diatamente trocou sua varinha por
uma carruagem muito confortável,
com um cocheiro firme e dois lacaios
378
respeitáveis atrás, e a Fada e Rosalba
entraram na carruagem na qual
Angélica e Bulbo entraram depois
deles. Quanto ao honesto Bulbo, cho-
rava da maneira mais patética, bas-
tante dominado pelo infortúnio de
Rosalba. Ela se comoveu com a sim-
patia do homem honesto, prometeu
devolver-lhe as propriedades confis-
cadas pelo duque Frigideira, seu pai, e
o nomeou, sentado ali na carruagem,
príncipe, alteza e primeiro grande do
Império da Crimeia Tártara. A car-
ruagem seguiu em frente e, sendo
uma carruagem mágica, logo alcan-
çou a procissão nupcial.
379
Antes da cerimônia na igreja, era
costume na Paflagônia, assim como
em outros países, que os noivos as-
sinassem o Contrato de Casamento,
que seria testemunhado pelo chan-
celer, pelo ministro, pelo prefeito e
pelos principais oficiais de estado.
Como o palácio real estava sendo pin-
tado e mobiliado de novo, não estava
pronto para a recepção do rei e sua
noiva, que inicialmente se propuse-
ram a residir no palácio do príncipe,
aquele que Valoroso ocupava quando
Angélica nasceu, e antes de usurpar
o trono.
380
Assim os noivos chegaram ao
palácio: os dignitários desceram de
suas carruagens e se afastaram: a
pobre Rosalba desceu de sua carrua-
gem, amparada por Bulbo, e contra as
grades ficou em um estado de quase
desmaiada para dar uma última
olhada em seu querido Lírio. Quanto
à Varinha-Preta, ela, de acordo com
seu costume, havia voado para fora
da janela da carruagem inescrutavel-
mente e agora estava parada diante
da porta do palácio.
Lírio subiu os degraus com sua
horrível noiva pendurada no braço,
381
parecendo tão pálido como se es-
tivesse indo para a execução. Ele
apenas franziu a testa para a Fada
― ainda estava zangado com ela, e
pensou que tinha ido lá para insultar
sua tragédia.
― Saia do caminho, por favor ―
disse Bufanosa com altivez. ― Eu me
pergunto por que você está sempre
metendo o nariz nos assuntos dos
outros?
― Você está determinada a deixar
esse pobre jovem infeliz? ― devolveu
a Fada.
― Me casar com ele, sim! O que
382
383
isso tem a ver com você? Por favor,
senhora, não diga “você” para uma
rainha ― gritou Bufanosa.
― Você não aceita o dinheiro que
ele lhe ofereceu?
― Não.
― Você não vai deixá-lo sair da
barganha, embora saiba que o enga-
nou quando o fez assinar o papel?
― Insolência! Oficiais, removam
esta mulher! ― gritou Bufanosa.
E os oficiais correram à frente,
mas com um aceno de sua varinha a
Fada os fez paralisar como se fossem
estátuas.
384
― Você não aceitará nada em troca
da liberdade dele, sra. Bufanosa? ―
indagou a Fada, com terrível severi-
dade. ― É a última vez que ofereço.
― Não! ― gritou Bufanosa, ba-
tendo o pé. ― Terei meu marido, meu
marido, meu marido!
― Você terá seu marido! ― gritou a
Fada; e avançando um passo, pousou
a mão sobre o nariz da aldrava.
Ao tocá-lo, o nariz de bronze pa-
receu se alongar, a boca aberta se
abriu ainda mais e soltou um rugido
que fez todos se assustarem. Os olhos
rolaram de forma descontrolada; os
385
braços e as pernas se desenrolavam,
se contorciam e pareciam se alongar
a cada torção; a aldrava cresceu até se
tornar uma figura de libré amarela,
com um metro e oitenta de altura;
os parafusos que o prendiam à porta
se soltaram, e Jenkins Bufanoso pi-
sou mais uma vez na soleira da qual
havia sido arrancado havia mais de
vinte anos!
― O Mestre não está em casa ―
disse Jenkins em sua velha voz; e a
sra. Jenkins, dando um terrível grito,
caiu em um ataque, mas ninguém lhe
deu atenção.
386
Pois todos gritavam:
― Aeee! Hip, hip, hurra! Viva o rei
e a rainha!
― Já viram algo assim?
― Não, nunca, nunca, nunca!
― Fada Varinha-Preta para sem-
pre!
Os sinos soavam duplos repiques,
as armas rugindo e batendo prodi-
giosamente. Bulbo abraçava todos;
o lorde chanceler estava levantando
sua peruca e gritando como um louco;
Racabeças abraçara o arcebispo pela
cintura e juntos dançavam de alegria;
e quanto a Lírio, deixo você imaginar
387
o que ele estava fazendo, e se beijou
Rosalba uma, duas, vinte mil vezes,
tenho certeza de que não acho que ele
estava errado.
Então Bufanoso abriu a porta do
corredor com uma reverência baixa,
como costumava fazer, e todos en-
traram e assinaram o livro. Então
foram para a igreja e se casaram, e
a Fada Varinha-Preta partiu em sua
bengala, e na Paflagônia nunca mais
se ouviu falar dela.
E aqui termina a pantomima.

TH E E N D

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389
EXTRA: BIOGRAFIA

William Makepeace
Thackeray
William Makepeace Thackeray nas-
ceu em Calcutá, na Índia, em julho
390
de 1811. Considerado inglês por ter
nascido na colônia britânica, foi ro-
mancista, caricaturista, desenhista
ocasional e ilustrador.
Quando tinha apenas cinco anos,
Thackeray perdeu o pai e foi man-
dado para a Inglaterra para estudar.
Seu pai morreu quando ele tinha ape-
nas cinco anos, e Thackeray foi en-
viado para a Inglaterra para estudar.
Frequentou a Charterhouse School
– instituição conhecida por sua dis-
ciplina rigorosa – e os abusos sofri-
dos na instituição deixariam marcas
que respingariam em algumas de
suas futuras obras. William também
391
frequentou a Trinity College, em
Cambridge, a qual deixou depois de
dois anos, sem completar os estudos.
William Makepeace Thackeray
recebeu uma herança de seu pai
e passou os anos seguintes via-
jando pela Europa, mas perdeu sua
fortuna em jogos de azar e inves-
timentos fracassados. Casou-se
enquanto vivia em Paris até voltar
para Londres, onde investiu em sua
carreira como jornalista e escritor.
Trabalhou para periódicos como
freelancer, escrevendo críticas li-
terárias, artigos e textos ficcionais
sob diversos pseudônimos.
392
Thackeray começou sua trajetória
literária quando ainda era estudante.
Começou com textos curtos como
poemas, tendo alguns publicados na
Punch, periódico da época. Além da
escrita, Thackeray desenvolveu suas
habilidades artísticas pintando e es-
crevendo desde cedo. Em um período
em que as publicações ilustradas es-
tavam em alta com períodos literários
e revistas especializadas, Thackeray
uniu seu talento como ilustrador e
autor e foi o único grande escritor a
ilustrar suas próprias obras durante
o período vitoriano, mas levou um
393
tempo até que pudesse viver do tra-
balho como autor.
Enquanto sua carreira se conso-
lidava e Thackeray ganhava renome
por suas primeiras obras publica-
das, o autor lidou com a angústia de
sua esposa, cuja depressão crescia.
Ele viria a dedicar anos em busca de
uma cura, dividindo o tempo entre
Londres, lugar onde publicava seus
textos e recebia demandas de traba-
lho, e Paris, onde ficava sua família.
Quando conseguiu se estabelecer
como um escritor de considerável
sucesso por seus livros de viagem e
suas publicações na Punch, levou sua
394
família para morar na Inglaterra.
Por conta da condição de sua esposa,
William Makepeace Thackeray criou
suas filhas com a ajuda de sua mãe.
Seu trabalho mais notório veio
com a publicação de Vanity Fair, um
romance do período Napoleônico
na Inglaterra. A partir de então,
Thackeray chegou a ser comparado a
Charles Dickens, outro renomado au-
tor da época, por conta de obras como
Pendennis, um romance com alguns
elementos autobiográficos.
Durante o Natal de 1855, Thackeray
publicou The Rose and the Ring (A
Rosa e o Anel), um conto de fadas com
395
fortes críticas à monarquia e àqueles
no topo da hierarquia social da época.
Entretanto, embora Thackeray tenha
escrito críticas sociais como as de The
Rose and the Ring, sua vida pessoal
e mentalidade não eram exempla-
res nem naquela época, nem agora.
Thackeray, conforme alguns espe-
cialistas, recusou-se a ser simpático
à causa abolicionista, mesmo tendo
passado um tempo considerável nos
Estados Unidos, pensando mais na
economia (burguesa) do que no bem-
-estar humano. Sua visão do país
da época é representada em obras
como The Virginians. Assim como
396
Lovecraft e outros autores que hoje
em dia são criticados por suas pala-
vras, Thackeray foi admirado como
escritor, mas não como pessoa.
William Makepeace Thackeray
morreu na véspera do Natal de 1863
por conta da ruptura de um vaso
sanguíneo no cérebro. The Rose and
the Ring é um resgate literário raro,
trazido com exclusividade pela
Sociedade das Relíquias Literárias.

397
Profissionais
que trabalharam
neste livro

Karine Ribeiro
TR A DUÇÃO

Escritora premiada, tradutora e revisora,


graduanda em Tradução pela UFMG.
@karineescreve

398
Karen Alvares
PRE PA R AÇÃO

Karen Alvares é
escritora e trabalha com
preparação de textos e
diagramação há quase
dez anos.
Twitter: @karen_alvares

João Rodrigues
PRE PA R AÇÃO

Bacharel em Tradução
e especialista em
Produção e Revisão
Textual.
@jojsrodrigues

399
Karoline Melo
RE V ISÃO

Profissional do livro e,
às vezes, do audiovisual.
Graduanda em
Tradução pela UFMG.
@isthiskarol

Jane
Herkenhoff
ILUSTR AÇÃO

É uma multiartista que


transita entre ilustração,
motion design e edição
de vídeo.
@jane.herkenhoff

400
Valquíria Vlad
COMUNICAÇÃO E
COMUNIDA DE

Escritora, pesquisadora
e publicitária formada
pela Universidade
Federal do Ceará (UFC).
@valquiriavlad

Laura Brand
ME DIAÇÃO E
PA R ATE X TOS

Editora, coordenadora
editorial, jornalista e
criadora de conteúdo.
Formada pela PUC-MG
e Columbia Journalism
School. @nostalgiacinza
401
Muito obrigada
por apoiar este
financiamento
coletivo!
Neste mês foi possível viabilizar a cura-
doria, tradução, revisão e ilustração do
livro The Rose and the Ring! A cada mês de
assinatura, a Wish continuará resgatando
os tesouros do passado em novas edições
para os caçadores das Relíquias Literárias.

Vamos resgatar estes contos raros juntos?

Relíquia E-book 04/Abr 2022

402
N O P R ÓX I M O M Ê S

Um conto de
Edith Nesbit
Uma história de fantasia de
Edith Nesbit, autora de O Livro
dos Dragões

403

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