A Herdeira Do Caos (I.K. Prado)

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Copyright © 2022 I.

K Prado
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra de qualquer meio
eletrônico, mecânico e processo xerográfico, sem a permissão da autora.
(Lei 9,610/98)
Esta é uma obra literária de ficção. Todos os nomes, lugares e
acontecimentos retratados aqui são fruto da imaginação da autora.
Capa: Alycia Carvalho
Revisão: Isadora Duarte
Mapa: Rebecca Mendes
Diagramação: C. Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Prado, I. K.
A herdeira do caos / I. K. Prado. -- 1. ed. -- Esteio, RS: Ed.
da Autora, 2022.
ISBN 978-65-00-41095-2
1. Ficção brasileira I. Título.

22-104031 CDD-B869.3
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção: Literatura brasileira B869.3
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
Para meu eu de treze anos.
Nós conseguimos.
Sumário:
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Epílogo
Agradecimentos
Quando ela se levantou, foi com uma sabedoria desolada
Andando com dificuldade no oceano escuro e inquieto
na altura de seu pescoço.
Banhada em sua derrota
Rezou para agradecer cada fenda na armadura
de que ela nunca soube que precisava.
Em pé, ombro a ombro ao seu lado
estava um amor que era realmente genuíno
não apenas a ideia de genuíno.
Quando se virou para ir para casa,
Ela ouviu os ecos de novas palavras:
‘Que seu coração seja capaz de se partir de novo
mas nunca duas vezes pela mesma mão’
E mais alto:
‘Sem seu passado
você nunca poderia ter chegado
tão maravilhosa e brutalmente,
de propósito ou por alguma exótica e violenta coincidência
... aqui.’”
(Taylor Swift)
As mãos de Benjamin foram manchadas com sangue muito antes do
que ele era capaz de se lembrar.
O destino do príncipe já havia sido escrito com o líquido viscoso e
fedido a ferrugem nas primeiras horas após seu nascimento, quando a vida
de sua mãe foi tomada pelos deuses para que ele viesse ao mundo.
E mesmo depois de tantos anos, o homem de cabelos prateados que
nunca conheceu o colo de sua genitora, ainda gostava de pensar que ela
tinha sido poupada. Que os deuses foram, na verdade, misericordiosos ao
livrá-la de uma vida de decepções e sofrimento — da dor ao ver no que o
filho mais novo se tornaria um dia.
Um monstro.
Seus dedos foram cobertos de sangue pela segunda vez aos doze
anos, no momento em que atravessou o peito de seu irmão mais velho com
uma espada e deixou-o para morrer entre as árvores do palácio. Ninguém
parecia entender como o príncipe tinha sido capaz de empunhá-la, e ele
nunca se preocupou em contar que vinha praticando escondido há meses.
Quando a morte o visitou uma terceira vez, as mãos do garoto
estavam limpas. Tinham sido o luto e a revolta os responsáveis por ceifar a
vida de seu pai. Mas Benjamin sabia que se procurasse com calma,
encontraria o rastro de sangue que apontava como uma seta diretamente
para ele.
E no instante em que seu genitor se juntou à esposa e ao filho
preferido, o caminho até a Coroa se abriu como o céu azul em um dia de
verão.
Ele tinha catorze anos, quando o coração do Grande Rei de Duhn,
seu avô, também parou de bater. E pela primeira vez, o príncipe nada tinha
a ver com isso. Não era de seu interesse que a Coroa chegasse até ele cedo
demais.
Mas aconteceu.
E Benjamin era muito jovem.
O garoto assistiu seu tio Oliver assumir a regência do trono em seu
lugar. E mesmo sabendo que não passavam de desculpas esfarrapadas, não
havia nada que ele pudesse fazer além de assentir nos momentos em que
diziam que era apenas por algum tempo.
O que ninguém sabia era que o príncipe já conhecia os olhares e os
cochichos. Convivia com eles desde o momento em que perdera sua mãe.
Aprendeu a ler os sinais de quando zombavam dele, de quando o
subestimavam.
A Coroa jamais tocaria seus cabelos prateados se Benjamin não a
pegasse com as próprias mãos. E depois de tanto tempo, quantidade alguma
de sangue parecia sangue demais.
Ele tinha trinta e dois anos agora.
E era uma pessoa completamente diferente do garoto que se deixou
ser passado para trás, do garoto que se manteve em silêncio enquanto
roubavam o que era seu por direito.
Benjamin era melhor do que aquele garoto.
Benjamin era pior.
Ele desapareceu por tempo o suficiente para que todos acreditassem
que tinha desistido, e Oliver parecia ter realmente se esquecido do sobrinho.
Exibia a Coroa sobre sua cabeça como se lhe pertencesse, como se não
tivesse se aproveitado da pouca idade do garoto para conseguir aquilo que
sempre sonhou.
Mas o príncipe não esqueceu.
Dezessete anos haviam se passado desde o dia em que Benjamin
deixou o castelo para trás, e seu caminho até o trono estava prestes a se
abrir outra vez.
Faltava apenas varrer algumas impurezas para debaixo do tapete
primeiro.
Como seu tio.
E a garota.
PARTE I:

CORRENDO COM LOBOS


Os protocolos reais não deveriam ser tão rigorosos quando se é a
filha bastarda.
Era nisso que Anya pensava enquanto se espreitava pelo corredor de
tijolos avermelhados, saindo dos aposentos de Conan. Claro que este
pensamento era tão injusto quanto mentiroso. Nunca recebera nada menos
do que o amor incondicional de uma filha legítima, e sempre desfrutara de
todos os privilégios que a realeza seria capaz de oferecer.
Que audácia a sua pensar em si mesma como bastarda, depois de
passar vinte e três anos sendo paparicada como a princesa que o Grande Rei
e sua esposa Elysia sempre sonharam — e nunca conseguiram — ter.
Mas o fato é que a Coroa era definida por sangue, sangue este que
não corria pelas veias de Anya. E lhe parecia desnecessário que cobrassem
um comportamento tão impecável dela quando o trono não fazia parte de
suas opções.
De qualquer maneira, ao observar as tochas desenhando suas
sombras pelas paredes úmidas e descascadas dos alojamentos da Guarda
Real, a princesa refletiu sobre como a manutenção daquela ala do castelo
era inferior às demais. E conseguiu visualizar o pai tendo um ataque
cardíaco se ao menos suspeitasse de suas aventuras noturnas na cama de um
de seus soldados. Era um jogo perigoso até mesmo para ela.
E foi certamente pela preocupação com a saúde do rei, que Anya se
enfiou atrás de cada pilastra e estátua que encontrou entre a ala Leste e o
salão principal do castelo, a fim de retornar aos próprios aposentos antes
que percebessem sua ausência. Os esconderijos, porém, se tornaram cada
vez mais escassos conforme os cômodos mais espaçosos se aproximavam.
A princesa desacelerou os passos assim que pisou sobre o mármore
claro como sorvete de baunilha, rezando para que as criadas estivessem
todas ocupadas com a preparação do café da manhã e não cruzassem com
ela até chegar em seu quarto.
Saltando nas poças de luz solar que entravam pelas imensas janelas
do salão, apostou consigo mesma que tocar nas sombras que as
emolduravam lhe traria sete anos de azar.
Não seis e não oito.
Sete.
Por qualquer motivo que fosse.
— Princesa Anya! Princesa Anya! — uma voz feminina soou
próxima dela.
Droga, suspirou, percebendo que congelara seus passos no exato
ponto onde o sol não tocava.
— Bom dia, Faen — cumprimentou, abrindo um sorriso inocente e
virando-se para a camareira que vinha em sua direção.
A moça de cabelos avermelhados presos em um coque impecável —
e não muito mais velha que a própria princesa — carregava em seus braços
um amontoado de tecido esverdeado e cintilante, dobrado à perfeição.
— Bom dia, Vossa Alteza. Procurei pela senhorita em cada canto
desse castelo!
Nem todos, Anya riu internamente.
— Perdi o sono e saí para ver o nascer do sol. — Deu de ombros.
— Entendo... — Faen lhe lançou um olhar cúmplice de quem sabia
mais do que estava disposta a admitir. — Passei em seus aposentos esta
manhã para levar-lhe suas vestes, estou rodando pelo palácio desde então.
Ela desdobrou o tecido que trazia e levantou-o em frente ao corpo,
revelando um vestido longo. Segurou-o quase na altura dos olhos para que
não tocasse no chão, ainda que a princesa suspeitasse que o piso estivesse
mais limpo do que sua própria pele. Principalmente depois daquela noite.
A peça era encantadora, como de costume. Seu tom de verde era
escuro, coberto por um tecido cintilante e quase transparente que suavizava
a cor. A cintura parecia justa e a saia caía leve e delicada, contrastando com
as mangas bufantes e chamativas. Chamativas demais.
— Obrigada, Faen! — cantou a garota, pegando a roupa e virando-
se novamente, em uma tentativa de encerrar a conversa. — Eu o colocarei
agora mesmo!
— Tem certeza de que não quer minha ajuda? — a criada indagou,
sua voz um pouco mais alta ecoando pelo salão.
Mas Anya apenas negou com a cabeça, já atravessando o oceano de
mármore rumo às escadas douradas e polidas, temendo pela insistência
dela.
Todas as manhãs, Faen perguntava se poderia arrumar seus cabelos,
e todas as manhãs, a princesa respondia que não era necessário. Gostava de
fazer essas coisas sozinha, em silêncio. Era um dos raros momentos do dia
em que não precisava assumir um personagem que não lhe cabia, sem
sorrisos falsos ou acenos de cabeça obedientes.
Suspirou alto de alívio ao adentrar em seu quarto, ainda de cortinas
fechadas e banhado em penumbra, escorando-se contra a porta de madeira
branca — tão bem-cuidada que poderia ter sido pintada no dia anterior.
Sob a luz amarelada do abajur, substituiu a longa camisola cor de
pêssego pelo vestido que trouxe e sorriu ao sentir o cheiro de Conan preso
ao amontoado de tecidos.
Já eram três anos de encontros escondidos e, o que começou como
uma forma de se desligar da própria realidade, tornou-se uma das amizades
mais sinceras que Anya poderia desejar. Claro que não havia futuro para
aquilo, então aproveitavam o quanto podiam no tempo que lhes fora dado.
O soldado era um dos poucos amigos que a garota tinha e esteve ao
seu lado nos momentos em que mais precisou. O amor que sentiam um pelo
outro nada tinha a ver com o que faziam entre quatro paredes — mesmo
que a mera lembrança do rapaz de cabelos vermelhos como fogo dentro da
armadura de couro real fizesse seu estômago, e algo mais abaixo, reagirem
instantaneamente.
Fechando os últimos botões do corpete, a princesa olhou-se no
espelho. Observou os cabelos negros caindo sobre seus ombros e costas, tão
longos que as pontas dançavam ao redor de seu quadril. Depois de tantos
anos tentando, já havia desistido de controlá-los. Eram tão revoltos quanto o
mar durante uma tempestade.
Ao menos, conseguia disfarçar um pouco da bagunça. Algumas
tranças na lateral eram o bastante para mantê-los longe de seu braço direito
— o que usava para empunhar a espada.
Revirou os olhos com o próprio pensamento. Mal havia começado a
usar lâminas em seus treinamentos, e nem estava indo muito bem com elas.
A verdade era que os detalhes em seu cabelo eram usados para tirar
a atenção do outro lado de seu rosto, onde pousava a imensa cicatriz cheia
de falhas e de lembranças ruins. O traço fino que lhe atravessava os lábios
desde o queixo e subia até quase a altura do olho permanecia sempre
escondido sob seus cachos pretos.
Ela balançou a cabeça, trancando as memórias de sua origem em
uma pequena caixa no fundo de sua mente, de onde elas ainda insistiam em
escapar, mesmo tantos anos depois.
Voltou sua atenção para o vestido, buscando por um cinto prateado
feito de cordas e amarrando-o na cintura. Perfeito.
Logo deveria descer para o café, mas ainda havia alguns minutos.
Então andou até as pesadas cortinas e as abriu com mais entusiasmo do que
sentia de verdade. A claridade amanteigada da manhã entrou em seu quarto,
trazendo um pouco mais de vida para o cômodo decorado em tons de rosa e
dourado. O sol aqueceu sua pele, dando-lhe bom-dia, e ela inspirou do ar
fresco que apenas as primeiras horas da manhã eram capazes de
proporcionar.
Caminhou preguiçosamente em direção à sacada que dava para os
jardins do palácio e pôde ver Conan trocando de turno com outro soldado
— Isaac, um rapaz de pele negra e expressões sérias, mas que era o melhor
piadista que a garota já conhecera.
Sorriu com discrição para seu guerreiro, mesmo sabendo que ele não
olharia para sua varanda. Em público, as interações que ambos trocavam
eram resumidas a saudações frias, reverências e escoltas. Anya sabia que as
consequências se fossem descobertos iam além de alguns sermões — e o
possível ataque cardíaco de seu pai. Custaria o emprego do soldado e isso
era a única coisa que ele tinha.
— Além de mim — sussurrou para si mesma.
Uma leve batida na porta soou pelo quarto e o coração da princesa
se acelerou, levando seus pensamentos de volta para o som de mãos pesadas
atingindo a entrada de sua carruagem anos atrás. A garota odiou-se por
ainda se deixar intimidar com coisas tão pequenas do dia a dia. Aquilo
nunca teria fim?
— Com licença, Princesa — disse Faen, colocando apenas a cabeça
para dentro do quarto. — Sua Majestade está à sua espera no salão de
refeições.
Anya assentiu, passando as mãos pelo rosto, como se tentasse
limpar qualquer vestígio das lembranças que a amaldiçoavam, e desceu.

Seus pais já a esperavam para o café da manhã quando chegou.


— Está atrasada — resmungou o rei, sem nem olhar para ela —, de
novo.
Anya sentou-se em silêncio, encarando as próprias mãos e
assumindo a expressão de obediência que guardava especialmente para o
pai.
Nunca era uma boa ideia argumentar com o Rei. E se pensasse sobre
isso, acreditava nunca ter conversado de fato com Oliver, apenas com o
Grande Rei de Duhn.
Um dos preços da realeza, ponderou.
Sua mãe, entretanto, sorriu calorosamente para ela.
Elysia era o coração do reino, o equilíbrio perfeito para a cabeça
dura do rei.
— Bom dia. — Anya sorriu de volta.
Seu pai mal olhava para o prato enquanto comia. Já estava
gesticulando para o secretário real e ordenando que ele enviasse um recado
ao Conselheiro.
— Avise Magmar que sua presença se fará necessária no palácio em
dois dias — decretou, acenando para que uma das criadas lhe servisse mais
café. — Teremos uma reunião com o Príncipe Benjamin para alinharmos
algumas questões que parecem incomodá-lo.
— Apenas Magmar, Vossa Majestade? — o secretário indagou.
— Sim. Ele é o único que sabe lidar com aquele principezinho
mimado. Os demais apenas cedem a tudo que Benjamin solicita. — Seu
tom de voz ficou um pouco mais baixo quando prosseguiu. — E parece que
ele tem considerações a fazer a respeito de sua coroação. Mais uma vez.
Anya fez uma careta, engolindo um gemido de desprazer. Jamais
deveria interromper o rei enquanto tratava de assuntos de Duhn — o que era
praticamente sempre.
Mas seu primo lhe causava arrepios.
Primeiro e único na sucessão ao trono, era o último descendente de
sangue dos Dahnasa. Uma criaturinha odiosa e arrogante, com quem a
princesa não lamentava em nada ter de se encontrar apenas em datas
comemorativas — nas quais ele quase nunca comparecia.
Ela jamais almejou a Coroa, conhecia bem seu lugar naquela Corte,
mas sentia, lá no fundo, que até mesmo ela governaria melhor.
Não que se permitisse falar sobre isso em voz alta. O príncipe
assassinou o próprio irmão para que não houvesse ninguém entre ele e o
trono, só poderia imaginar o que faria com ela se demonstrasse sua apatia
em relação a ele.
Anya mal tinha feito três anos quando seu tio, pai de Benjamin,
deixou este mundo — de tristeza por um filho perdido e desgosto pelo
monstro em que o outro se tornara. Ela não possuía muitas lembranças da
época, mas sabia que seu próprio pai havia criado o garoto depois disso.
Apesar de tudo, Oliver amava o sobrinho.
A princesa completara cinco anos no ano em que Oliver assumiu a
Coroa como regente de Benjamin — o garoto tinha apenas quatorze, era
jovem demais para encarregar-se de tal responsabilidade.
Mas o que lhe faltava em idade, sobrava em arrogância. Ele a tinha
em tanta quantidade que mal cabia dentro daquele castelo.
O príncipe não aceitava as ordens que recebia do tio, alegando estar
acima de qualquer obrigação, e partiu pouco tempo depois. Isolou-se na
Floresta de Pedra — a região montanhosa mais ao norte de Duhn.
Ele nunca falou sobre os anos vividos em completo afastamento,
mas dizem por aí que ergueu seu próprio palácio entre as cordilheiras.
Ninguém ousava acreditar que ele havia simplesmente desistido, estava
apenas ganhando tempo. E quando atingiu idade o suficiente, voltou
exigindo seu lugar.
O povo temia a Benjamin enquanto Oliver era amado por cada um
de seus súditos. E depois de certo tempo, mesmo ele passou a ver o trono
como um direito seu — adiando o dia em que teria de deixá-lo o máximo
que podia.
O rei sugeriu que Benjamin lhe permitisse resolver certas
pendências antes de lhe devolver o posto, e todos sabiam que era uma forma
de adiar o inevitável. Onze anos se passaram desde o dia em que o príncipe
reapareceu e não havia mais desculpas para mantê-lo longe da Coroa.
— Estou falando com você, Anya — a voz de Oliver interrompeu
seus pensamentos.
Ele estava com os cotovelos escorados na mesa, as mãos
sustentando o queixo perfeitamente barbeado. Os olhos negros a encaravam
sem muito afeto, aguardando uma resposta.
— Desculpe, meu pai. — Ela ajeitou o guardanapo em seu colo. —
Acredito não ter ouvido uma palavra sequer do que o senhor disse.
Sua mãe levou o próprio guardanapo à boca tentando esconder uma
risada, e recebendo um olhar furioso do marido em resposta. Ela abaixou a
cabeça para o prato, a boca ainda torcida pelo sorriso.
— Perguntei se você tem levado seu treinamento a sério ou se usa
todo seu tempo apreciando os rapazes que tentam ensinar-lhe alguma coisa
útil. — Não havia humor em sua fala.
— Apesar da vista ser, de fato, muito interessante meu treinamento
não poderia estar melhor — Anya começou, debochando. Não gostava
quando ele falava daquela forma, como se ela não se preocupasse com nada
além de garotos bonitos. Ah, se ele soubesse. — Como senhor sabe, luto
muitíssimo bem e, há algumas semanas, comecei a praticar com espadas.
O homem pareceu finalmente se agradar e ela achou melhor não
comentar sobre suas dificuldades com a lâmina. Ele balançou a cabeça em
confirmação e prosseguiu:
— Não pense que não valorizo seus esforços, minha filha. — Ele
suavizou a voz, quase nunca a chamava assim. — Quero apenas certificar-
me de que você se lembra do motivo pelo qual a colocamos para treinar.
Ele esticou a mão e acariciou o rosto dela, passando o polegar por
sua cicatriz.
Aquela sensação no topo do estômago da princesa se agitou e ela
inspirou para afastá-la. Lançou as memórias que as acompanharam mais
para o fundo de seus pensamentos.
— Ah, não se preocupe, pai — ela respondeu. — Não se passa um
dia sem que eu pense sobre isso.
Sua fome havia desaparecido, mesmo que mal tivesse tocado em seu
prato.
A princesa acenou pedindo pela autorização da mãe e, ao sinal
afirmativo, levantou-se para sair da mesa.
Que ótimo jeito de começar o dia, pensou, partindo para os
estábulos.
Cavalgar usando vestido tinha sido uma péssima ideia, mas Anya
estava tão ansiosa para deixar o castelo que não pensou realmente sobre
isso até ser tarde demais.
As celas irritavam a pele de suas coxas de tal forma que precisou
desacelerar a velocidade de Morg, sua égua de pelagem dourada, para
reduzir o atrito entre elas. E levou quase o dobro do tempo necessário para
ir do palácio até o Mercado — vilarejo nas fronteiras de Wellin onde se
encontravam a maioria dos comerciantes do reino.
Por quase trinta minutos, focou sua atenção no trote ritmado do
cavalo de Isaac, que a acompanhava alguns metros atrás, evitando as
palavras de seu pai em sua mente.
Quero apenas certificar-me de que você se lembra do motivo pelo
qual a colocamos para treinar.
Como se algo pudesse fazê-la esquecer.
A princesa desmontou de Morg antes de atravessar a ponte de
tijolinhos que marcava a entrada de Wellin, levando-a até a sombra de um
salgueiro às margens do rio que traçava os limites da região.
Acariciando o pelo macio do animal, deixou-se levar pelo frescor da
manhã e pelo cheiro de primavera que rodopiava por entre o verde. Ela
fechou os olhos e levou sua testa ao focinho de Morg, sorrindo quando a
égua se esfregou de volta.
Um par de braços envolvendo seu corpo tirou-a daquele estado de
relaxamento em menos de um segundo.
Com o coração acelerado, assumiu com rapidez a posição que
treinara por tantas vezes, e forçou os cotovelos para trás na direção de seu
captor, girando rapidamente e desferindo o primeiro soco.
Farah bloqueou e riu, ainda que sua testa estivesse franzida pela dor
da cotovelada.
— Está ficando mais ágil, Princesa! — elogiou sua melhor amiga,
soltando os pulsos de Anya antes mesmo que ela percebesse que estavam
presos.
— Não o suficiente, pelo jeito — resmungou.
Ela sentiu mais do que ouviu a risadinha que Isaac deixou escapar
alguns metros longe dela, e semicerrou os olhos em sua direção. O rapaz
fechou o rosto, endurecendo sua postura, mas a princesa viu o canto de sua
boca tremer ao controlar um sorriso.
Engraçadinho.
Anya envolveu Farah em um abraço, ainda acalmando seu peito que
subia e descia rápido demais por causa do susto.
O aroma de verbena que exalava da amiga atingiu seu nariz,
chamando sua atenção para as pequenas flores rosadas que decoravam os
cabelos cor de chocolate da garota. Eles estavam presos em um coque
trançado, com duas mechas onduladas emoldurando o rosto perfeito.
Farah passou as mãos pelo vestido rosa claro com botões brancos e
sem mangas, desamassando-o depois do “ataque”.
— Estava indo encontrá-la na loja — comentou Anya, enroscando o
braço no da amiga. Ela deu um olhar rápido na direção de Isaac e pediu. —
Não se preocupe com Morg, deixe-a solta para que consiga passear. Não sei
quando voltarei para o castelo, então pode ir fazer... o que quer que tenha
para fazer ao invés de ser minha babá. Tenho certeza de que algum dos
soldados no vilarejo acompanhará meu retorno.
O rapaz assentiu brevemente, montou em seu cavalo e partiu.
Farah puxou-a com delicadeza rumo à ponte de tijolinhos e pareceu
perceber a tensão que envolvia a princesa, pois apertou os lábios em uma
linha fina antes de falar:
— O que aconteceu?
Anya suspirou e franziu o cenho.
Ela se desvencilhou de sua amiga e andou até a borda da ponte,
escorando os braços sobre a pedra fria. Ficou em silêncio por alguns
instantes, observando a água translúcida desaparecendo abaixo de seus pés.
O coração estava pesado pelo motivo que a levara até ali.
— Sua Majestade foi o que aconteceu — ela revirou os olhos —,
apenas mais do mesmo.
— Brigaram outra vez?
— Não exatamente. Mas precisava sair do castelo por algum tempo.
Ocupar a cabeça com alguma outra coisa que não todas as minhas falhas e
motivos que fazem meu pai repensar sobre a decisão de ter me adotado.
— Não seja dramática. — Farah parou ao seu lado, escorando-se no
muro e ficando de costas para o rio. — Ele ama você, sabe disso. Seu pai
apenas tem dificuldade em... se comunicar.
Isso roubou uma risada da princesa. Era verdade.
Um homem que liderava exércitos e movia um reino inteiro, mas
que era incapaz de conversar com a própria filha.
Ela sorriu para a amiga, observando como os raios de sol
evidenciavam sua pele marrom. Em seguida, puxou Farah delicadamente e
voltaram a andar, entrando no vilarejo.
O Mercado abriu-se diante delas com suas imensas construções de
telhados altos e bastante inclinados. Os estabelecimentos eram todos muito
parecidos, com paredes de hastes de madeira preenchidas por pedras ou
tijolos.
Não havia muitas cores por ali. Apenas uma grande variação de tons
cinzentos compunha a paisagem.
Mas não era a aparência que fazia daquele o lugar para onde Anya
sempre fugia. Era o cheiro.
As famílias mais ricas do reino viviam em Wellin. Os grandes
mercadores, que negociavam pelos itens mais exóticos trazidos de todas as
partes do continente, abriam seus comércios no vilarejo.
E o Mercado era preenchido pelos mais variados aromas de
especiarias, incensos e pratos estrangeiros. Algumas ruas cheiravam a
ervas, outras a pães e bolos de fruta. Era como se cada armazém a levasse
para uma parte diferente do mundo.
Farah pertencia a uma destas famílias. Ela e seu pai vieram do outro
lado do oceano, mas Anya nunca soube muito bem de onde. Sua amiga era
sempre evasiva quando falava de casa e a princesa concluiu que ela não
deveria guardar lembranças muito boas de lá.
Sabia apenas que ela viera para cá ainda nova, aos nove anos, e que
as duas haviam se conhecido logo depois — quando Magmar, pai de Farah,
ficou conhecido pelas aventuras marítimas que vivera e conquistou a
confiança do rei.
E diferentemente da maioria das pessoas que viviam em Wellin, sua
loja não fora montada para fins lucrativos. Ela e o pai compartilhavam de
uma paixão intensa por flores, e a garota as cultivava por ambos, desde que
Magmar fora nomeado um dos Conselheiros do Grande Rei e já não tinha
tempo para tal.
— Seu pai terá que ir ao palácio em dois dias — comentou Anya. —
Benjamin solicitou mais uma reunião com Oliver e o Conselho para
reclamar sobre... qualquer coisa que tenha lhe vindo à mente desta vez.
Os ombros de Farah ficaram tensos ao ouvir aquilo, e a princesa
observou-a pelo canto dos olhos conforme se aproximavam de sua loja.
Mas ela recuperou sua postura com tanta rapidez que Anya poderia ter
imaginado a coisa toda.
— Você deveria parar de chamar seu pai pelo nome — a garota
disse simplesmente.
A princesa deu de ombros.
— Ele me chama de Anya com a mesma frequência.
Farah revirou seus olhos cor de avelã, mas ignorou o comentário.
Ao invés disso, voltou para o assunto anterior.
— Benjamin estará no castelo daqui a dois dias?
— Sim — confirmou a princesa. — Pensei que você talvez pudesse
ir junto com seu pai e ficasse para passar a noite comigo. Faz tempo que
não temos uma festa do pijama.
Os olhos Farah brilharam.
— Esta foi a melhor ideia que você teve hoje! — exclamou.
— Esta foi, possivelmente, a única ideia que tive hoje.
As duas riram até chegarem na floricultura.

O sol já passava de seu ponto mais alto, avisando que o horário para
o almoço chegara.
As duas garotas ocuparam sua manhã distribuindo flores para
qualquer pessoa que caminhasse em frente à loja.
Grande parte delas respondia de forma exagerada ao gesto,
agradecendo infinitas vezes pela bondade de Vossa Alteza e desejando que a
vida fosse sempre generosa com ela como ela era com seu povo.
Não era como se Anya desprezasse a atenção. Ela até gostava, se
fosse honesta consigo mesma. Mas se tornava cansativo depois de um
tempo.
Sempre havia olhos sobre ela e isso lhe dava a sensação de que
todas as suas ações eram feitas na intenção de parecerem genuínas, e não
por serem genuínas de fato. Ninguém dava a impressão de duvidar dela,
claro. Mas o sentimento em seu peito permanecia.
Quando se é colocada no topo de um pedestal, todos conseguem ver
o momento em que você cai.
Anya já tinha caído uma vez. E não foi bonito.
Farah e ela encostavam a porta de metal da floricultura no momento
em que, não muito além da esquina, uma movimentação estranha começou
a se desenrolar.
Os mercadores em torno pareceram perceber também, saindo de
suas lojas e se amontoando na calçada para descobrir o que acontecia. Em
alguns segundos, ela estava tão cheia que Anya, mesmo com seus 1,75m de
altura, mal conseguia enxergar poucos metros à frente de si.
— Bruxaria! — gritou uma mulher de repente, bem no centro da
multidão.
Demorou alguns instantes até que a princesa conseguisse encontrá-
la, e reconheceu a senhora de estatura baixa e cabelos grisalhos. Era a dona
da loja de produtos de beleza onde Faen conseguia seus sabonetes de canela
preferidos.
A mulher empurrou a garota alvo de seu desespero, fazendo com
que ela caísse de joelhos sobre as pedras bem no meio da rua.
Cada vez mais gente se reunia ali, ainda sem entenderem muito bem
a cena que se desenrolava diante de seus olhos curiosos.
— Ela estava usando magia! — A mulher apontou com o dedo as
feições desenhadas em uma mistura de pavor e repulsa.
Com estas palavras, a multidão arfou.
Todos sabiam o que isso significava.
Traidora, alguns gritaram.
Inimiga da Coroa, completaram outros.
Chamem os soldados!
O corpo inteiro de Anya paralisou diante daquelas palavras, e Farah
entrelaçou devagar seus dedos nos dela. Os músculos da princesa decidiram
que não mais responderiam e se recusaram a se mover, mesmo que tudo o
que ela mais desejasse naquele momento fosse correr para longe dali.
Pediu silenciosamente aos deuses que os soldados chegassem logo,
que a vissem naquele canto e a levassem para casa. Amaldiçoou-se por ter
dispensado Isaac, por não ter avisado nenhum dos outros homens da guarda
que estava no Mercado.
As pessoas começaram a atirar coisas na jovem ainda caída, com
medo de se aproximarem demais, enquanto ela berrava e arremessava tudo
de volta.
Estava fora de si. Gritava palavras que ninguém entendia e seu rosto
se contorcia em espasmos de fúria.
Era nisso que a magia transformava um ser humano.
Numa criatura descontrolada e ameaçadora, sem qualquer controle
sobre suas ações.
Num monstro.
Anya conseguia ver a senhora lutando contra o próprio instinto de
correr quando se aproximou da garota e segurou-a pelos cabelos cor de
areia. Puxando-a para cima, colocou a conjuradora outra vez de pé, e ela
soltou um gemido de dor.
O som baixo e rouco saiu mais parecido com o ganido de um
animal, contrastando com as lágrimas que escorriam pelo rosto dela.
Anya apertou a mão de Farah no momento em que a conjuradora
levou as suas próprias até a mulher, debatendo-se e arranhando numa
tentativa de se soltar.
— Precisamos voltar para dentro da loja — a princesa sussurrou,
sem ter certeza de onde havia tirado a própria voz.
Sua amiga parecia ainda mais assustada que ela, com a testa
franzida em uma expressão de tristeza e cada parte do corpo chacoalhando
pelos tremores de medo.
Os gritos da multidão se tornaram mais intensos e a princesa
percebeu que a garota havia desistido de fugir. Ela encarava fixamente as
próprias mãos, curvando os dedos em garras invisíveis.
Um cheiro adocicado e enjoativo serpenteou pelo Mercado, trazendo
consigo uma ventania forte demais para ser natural. A senhora arregalou os
olhos diante do aroma — empurrando a jovem com toda a sua força para
que a surpresa a fizesse parar.
— Me ajudem a segurá-la! — berrou a mulher. — Não deixem que
ela use seus poderes!
O corpo de Anya por fim respondeu aos seus comandos, e ela puxou
Farah pelo braço enquanto tateava cegamente com a outra mão pela
maçaneta de metal na porta da floricultura.
Ao se jogarem para dentro da loja, a princesa ainda teve tempo de
ver os soldados se aproximando. Teve tempo de ver dois deles agarrando a
garota pelos braços conforme um terceiro colocava uma venda sobre seu
rosto, impedindo-a de se guiar pelos sentidos. Teve tempo de vê-la ser
jogada em uma carroça com pequenas janelas gradeadas, presa aos cavalos.
E antes que a porta se fechasse por completo, Anya viu os cortes nos
joelhos, o sangue escorrendo pela pele clara, os cabelos grudados na testa
pelo suor ou pelas lágrimas.
E então, suas próprias pernas desabaram no piso frio da floricultura.
Farah não dissera uma palavra sequer desde que a confusão toda
começara, e desapareceu loja adentro antes que a princesa tivesse a chance
de perguntar-lhe qualquer coisa.
Uma conjuradora.
Na região mais movimentada do reino.
O corpo inteiro de Anya tremia enquanto ela se dava conta do que
acabara de presenciar.
Magia havia sido proibida em Duhn há mais de quatrocentos anos,
quando um clã de bruxas que vivia dentro dos limites do reino se recusou a
baixar a cabeça para a autoridade de Tamal Dahnasa, o Grande Rei na
época. Elas atearam fogo no que, um dia, fora o palácio que pertencera à
realeza — transformando em cinzas cada ser vivo lá dentro. Inclusive a si
mesmas.
Assim como Tamal.
A princesa sabia que havia desertores, é claro.
Conjuradores que se negavam a acatar a lei e realizavam seus rituais
de iniciação às escondidas. Que traziam a magia para dentro de si ainda que
isso fosse contra não somente as regras do reino, mas como as regras do
mundo.
Existia um motivo para humanos não nascerem assim.
Conan já tinha capturado alguns deles, mas quando as histórias
vinham de sua boca, ainda pareciam... distantes. Ela jamais imaginou que
presenciaria algo assim, tampouco que aquelas pessoas se escondessem tão
ao alcance dos olhos de todos.
A ideia de outros como aquela garota, tão comuns, tão bem
disfarçados, circulando entre seu povo deixou-a enjoada.
Farah reapareceu pela porta dos fundos trazendo um copo de água
entre os dedos finos. Ela ainda parecia transtornada, sua pele havia perdido
o brilho e sua boca não passava de uma linha fina.
— O que acha que vão fazer com ela? — sussurrou, sentando-se ao
lado da princesa.
— Conan me disse que traidores são interrogados por horas, para a
guarda real ter certeza de que eles não estão acobertando mais ninguém —
Anya respondeu, pegando com as mãos trêmulas o copo que sua amiga lhe
oferecia. — Ele nunca quis me contar o que acontece depois, mas jamais
ouvi sobre ninguém sendo libertado.
Farah não disse mais nada, apenas escorou-se contra a porta gelada,
encarando a floricultura envolta em penumbra. A princesa olhou de soslaio
para a amiga e viu que lágrimas escorriam incessantes por seu rosto. Ela a
abraçou forte e as duas ficaram ali no chão pelo que poderiam ter sido
poucos minutos ou uma infinidade de horas, até que seus corpos parassem
de tremer.
Nenhuma outra flor seria distribuída naquele dia.
As sombras das árvores já se espichavam para longe quando Anya
foi ao encontro de Morg.
Ela esperou até que não houvesse qualquer sinal daquela confusão
toda para se despedir de Farah. Esperou até que os guardas voltassem para
suas posições originais e os mercadores recomeçassem seus afazeres,
mergulhando Wellin novamente em sons que envolviam ofertas,
negociações e cascos de cavalo.
Ainda assim, enquanto caminhava até a ponte de tijolinhos,
conseguia sentir a tensão e os sussurros entre os comerciantes e
compradores. Era quase tão palpável quanto sua própria pele.
Desenhou um sorriso em seu rosto para cara murmúrio de “Vossa
Alteza”, acenou para cada reverência e cumprimentou os soldados que
encontrou pelo caminho — um deles se juntando a ela em seu trajeto até
Morg.
— Comportou-se bem, dona Morgana? — sussurrou para a égua,
assim que a alcançou sob o salgueiro.
O animal estava esparramado na sombra da imensa árvore, a grama
ao seu redor apresentando vários pontos falhos dos quais ele havia usado
para se alimentar.
— É um belo cavalo — comentou o soldado.
— E uma tremenda folgada — brincou a garota, afagando o focinho
de Morg, que já se pusera de pé e sapateava no lugar, apressando a princesa
para montá-la.
Ela esperou até que o rapaz subisse em seu próprio animal e
partiram juntos de volta para castelo.
Não havia muito para se ver no caminho, apenas algumas casas de
mercadores que preferiam separar suas residências de seus armazéns e...
pinheiros.
Uma infinidade deles, costeando a estrada larga e de terra vermelha
que levava até os limites do castelo. A brisa fresca da manhã havia sido
substituída pelo clima abafado do meio de tarde e ela sentia o suor
escorrendo por sua nuca, mais arrependida do que nunca por manter os
cabelos soltos — as pequenas tranças já contavam com uma infinidade de
fios soltos, de tanto passar as mãos para afastá-las do ombro.
Seu vestido estava arruinado quando chegou aos portões prateados.
A barra se arrastara pelas pedras da cidade, a saia estava marcada pelas
celas e coberta de gravetos que se prenderam aos pelos de Morg ao longo
do dia.
Faen teria um desmaio assim que visse tal absurdo. Anya repetira
vezes e mais vezes o quanto preferia vestes que não tocavam o chão, mas
elas perdem toda a sua elegância e Vossa Alteza não tem mais sete anos de
idade, a camareira respondia.
As palavras soavam ainda mais engraçadas vindas de uma garota
que, provavelmente, tivera sete anos ao mesmo tempo que ela.
A princesa desmontou da cela, espanando o vestido como se seus
dedos pudesses mandar para longe as manchas de sujeira, e cumprimentou
os soldados que abriram os portões para ela.
Com Morg acompanhando-a fielmente lado a lado, apreciou os
jardins que se estendiam pelo caminho. A primavera dava os primeiros
sinais de sua chegada, desabrochando suas cores por todas as direções.
Heras entrelaçavam-se pela estrutura do castelo, escalando as
pilastras de pedra e pintando de verde as paredes em tons salmão. Elas se
enroscavam nas estátuas de jovens mulheres que decoravam o gramado e
subiam pelos corrimãos que ladeavam a escadaria.
O caminho de terra contornava por ambos os lados a imensa fonte
de pedra cinzenta que repousava a poucos metros da entrada do palácio, e
alguns respingos de água resfriaram a pele quente pelo sol da princesa.
Ela acenou cordialmente para Conan quando ele se aproximou para
levar sua égua até os estábulos, desejando poder envolvê-lo em um abraço e
contar a cena de horror que presenciara no Mercado.
Não o faria, é claro.
Ao invés disso, entregou-lhe Morg e se afastou, fingindo que as
atrocidades que marcavam o passado de seu reino não estiveram tão
próximas dela que, ao esticar de um braço, poderiam tê-la segurado pelos
tornozelos.
Balançou a cabeça conforme adentrava pela imensa porta de
madeira, afastando aqueles pensamentos e seguindo em direção a ala Oeste
— parte do castelo que acomodava camareiras, cozinheiras e demais
criadas.
Não conteve um sorriso ao ouvir os sons vindos da cozinha,
espreitando-se pela confusão de louças, cantorias e conversas. Adorava o
clima daquela parte do palácio, e cumprimentou cada uma das mulheres que
ali se encontravam.
Não queria estar por perto quando Faen descobrisse o estrago em
seu vestido, mas estava com tanta fome que nem mesmo isso a impediria de
esperar por um sanduíche. Toda aquela confusão impossibilitou que ela e
Farah saíssem para o almoço e estava faminta.
Enquanto aguardava pelo lanche, pediu a uma das criadas que lhe
preparasse o quarto de banho, então o cômodo já estava morno e cheirando
a ervas ao chegar até ele.
O vapor que se erguia da banheira dizia que a água estava mais
quente que o habitual, exatamente como havia pedido. Precisava focar seus
pensamentos em alguma coisa real para que se acalmasse, e a ardência em
sua pele costumava funcionar.
A imensa janela de vidro que ocupava a parede oposta da sala de
banho tinha vista para os fundos do castelo e a banheira era tão grande que
acomodaria com facilidade três pessoas — não que ela tivesse testado.
Anya deixou seu vestido escorregar por seu corpo, tomando cuidado
de mantê-lo longe das velas com aroma de canela que estavam acesas na
superfície de madeira.
Entrou devagar, voltando toda a sua atenção para a água aquecendo
seu corpo pedaço por pedaço, até cobri-la na altura dos seios. Desfez
devagar o que sobrou de suas tranças na lateral de seu cabelo, passando os
dedos por entre os fios e tirando os nós.
Deixou o restante de seu corpo escorregar pela água, até que lhe
tocasse o queixo e fechou os olhos.
Tentou acalmar seus pensamentos, afastar de sua mente os olhares
de medo nos rostos de seu povo ao descobrir uma conjuradora entre eles.
Não seria capaz de dizer quanto tempo ficou ali, mas quando abriu
os olhos outra vez, sua pele avermelhada voltara para o tom natural e seu
banho esfriara por completo.
Franziu o cenho para o entardecer que começava a cobrir os jardins
com noite, frustrada pelo tempo que passava rápido demais. Isso sempre a
incomodou mais do que qualquer outra coisa. A forma com que os minutos
se comportavam como segundos justamente nos momentos em que mais
precisava de paz. Sua quietude durava instantes, e as situações complicadas
pareciam se estender por horas.
Escorregou mais pela água, até que cobrisse seu rosto e molhasse os
cabelos por completo. Voltou à superfície e começou a se lavar.

Os últimos tons de laranja mergulhavam em preto nos céus quando


Anya subiu as escadas de mármore do segundo para o terceiro andar,
escorregando os dedos pelo corrimão esculpido e pulando os degraus de
dois em dois.
Ela sempre se perguntou quem teria achado uma boa ideia decorar o
topo de cada andar com estátuas de pedra, pois cada vez que passava por
ali, sentia que a estavam observando. Em compensação, as pilastras com
arabescos entalhados eram uma de suas coisas preferidas.
Já em suas vestes de dormir, a princesa seguiu em direção à sala de
música, pedindo que seu jantar fosse levado até lá. O piano cor de ébano,
como os cabelos dela, fora escolhido por sua mãe anos atrás. A jovem
princesa viu um grupo se apresentar para o rei e implorou que alguém a
ensinasse a tocar. Ele decorava o centro da pequena sala e pousava sobre
um tapete de veludo vermelho.
O pequeno salão acomodava muitas plantas, e suas paredes
sustentavam grandes quadros retratando diferentes paisagens de Duhn. Sua
preferida mostrava um amontoado de pinheiros iluminados pelo sol em seu
ponto mais alto, os raios dourados atravessando a folhagem e refletindo no
rio cristalino que despencava em uma cachoeira.
Encantava-se com a natureza em sua mais completa simplicidade,
mesmo sabendo que jamais conheceria aquele lugar — a floresta de Ediri
era terreno proibido há séculos, e sempre achou estranho que sua família
ainda mantivesse aquela obra ali, considerando tudo o que ela representava.
Anya deixou suas sapatilhas lilás logo atrás da porta, ao lado da
antiga mesa de madeira coberta de livros.
Ela amava a decoração caótica de sua sala de música, combinava
com a energia que exalava dela quando tocava. Era apaixonada pela
sensação de criar, de transformar em melodia sons que, isolados, pouco
faziam sentido — criar música onde antes não havia nada.
Se pudesse, tocaria por horas e horas e horas.
Caminhou descalça até o instrumento, apreciando a maciez do
tapete em seus pés, e sentou-se na banqueta. Analisou as partituras gastas,
mas nada despertou seu interesse naquela noite.
Resolveu que deixaria seus dedos dançarem pelas teclas e tocaria
aquilo que seu coração mandasse. Era por isso que estava ali afinal: para
acalmar as inquietações que a espreitavam pelos cantos.
Fechou os olhos, respirou fundo e começou.
A melodia despertou de forma suave, tímida, e foi assumindo um
tom melancólico conforme prosseguia. Ela derramou através de seus dedos
a frustração da conversa que tivera com o pai naquela manhã. Expressou
nas notas o quanto ele a fazia se sentir pequena cada vez que a resumia ao
que lhe acontecera no passado.
Aos poucos, se tornou audaciosa. Permitiu que a mente vagasse
pelas sensações que perturbaram seu peito desde que deixou Wellin. Tocou
com mais agressividade, a música selvagem acompanhando as batidas
aceleradas de seu coração. Transformou em melodia o medo que sentira ao
perceber a conjuradora entre seu povo.
Esqueceu-se tudo ao seu redor, entregando-se ao frenesi que
atravessava seu corpo como uma corrente elétrica, e pôde jurar que, ao
fundo, era capaz de ouvir o arranjo perfeito.
A música crescia ao som de violinos, seu peito sendo tomado pela
mais complexa mistura de sentimentos. Fúria, encanto, medo, coragem.
Sentia como se, naquele instante, fosse capaz de fazer qualquer coisa.
Entregou-se por completo, o deleite consumindo cada centímetro de
seu corpo, trazendo para o lado de fora tudo aquilo que escondia por dentro.
Seus dedos corriam pelas teclas mais ágeis do que jamais foram, e mais
instrumentos ganhavam vida em seu delírio musical. Havia harpas,
violoncelos e flautas, havia sons que ela nem mesmo conseguia identificar.
Uma orquestra completa dançava ao seu redor enquanto sua mente
se desfazia.
Ela mal percebeu o desacelerar de seu ritmo até que tivesse parado
de tocar por completo, até que os outros instrumentos desapareceram de
vez. Abrindo os olhos, a princesa quase não reconheceu o lugar onde se
encontrava. Sua pele ardia e o corpo estava úmido pelo suor. A sensação de
plenitude que tomava conta dela depois de tocar foi preenchendo-a aos
poucos. E, então, ela sorriu.
O ranger da porta trouxe-a de volta para a realidade, e Anya olhou
assustada para a entrada da sala.
Deparou-se, no entanto, com um belo soldado vestindo uma túnica
azul e calças pretas, quase justas demais para os músculos que se escondiam
sob ela.
Conan estava com os cabelos vermelhos molhados e trazia nas mãos
uma bandeja com o que ela esperava ser o seu jantar.
— Já disse o quanto você fica linda quando toca? — comentou com
sua voz aveludada.
— O que está fazendo aqui? — questionou ela, em um misto de
contentamento e preocupação. — Teremos sérios problemas se alguém
entrar.
O rapaz abriu seu meio sorriso que ela tanto adorava.
— Surrupiei sua comida sem que ninguém me visse e, como o bom
soldado que sou, aproveitei de cada ponto cego deste palácio para chegar
até você. — Ele piscou com um olho só.
Largando a bandeja na mesa, Conan fechou a porta atrás de si,
caminhando devagar em direção à princesa.
A garota mordeu o lábio inferior, contendo o som que lhe subiu pela
garganta ao vê-lo aproximar-se daquele jeito. Era completamente injusto
que alguém fosse tão bonito. Seu corpo se aquecia mais e mais a cada passo
que ele dava, passando os olhos por cada pedaço da pele clara, mas
bronzeada, de quem passava horas demais sob o sol.
— E sabemos que ninguém a interrompe quando você se tranca aqui
— Conan continuou, seu tom caindo enquanto falava, até não passar de um
sussurro rouco. — Se seu jantar foi entregue, está livre até que resolva
deixar o salão.
Ele estava tão perto agora que sua respiração balançava os cabelos
da princesa, arrepiando seu corpo do ponto mais alto de sua coluna até os
dedos dos pés. O rapaz colocou a mão áspera no queixo dela e o levantou
para lhe roubar um beijo, mas parou no momento em que suas bocas
estavam a poucos centímetros uma da outra.
Dessa vez, Anya não conseguiu segurar o gemido.
O som pareceu como o sinal de permissão que Conan precisava,
fazendo-o traçar uma linha com a ponta dos dedos até a nuca dela de forma
dolorosamente lenta.
Ele fechou a mão em seus cabelos e, com o outro braço, envolveu a
princesa pela cintura, erguendo-a do chão.
A garota passou os braços ao redor do pescoço dele e, enquanto ele
a puxava para si, ela envolveu as pernas em torno de sua cintura.
O roupão de cetim que vestia abriu-se com o movimento, e a
camisola subiu até a altura do quadril, revelando suas pernas nuas.
Conan estremeceu.
Ele a carregou até a mesa de entrada e tomou-a ali mesmo.
Anya corria os olhos pelo corpo forte de Conan enquanto ele vestia
suas calças. Ainda nua e sentada na borda da mesa, sentia a madeira áspera
arranhando suas coxas e tinha plena consciência do rosto ainda corado.
Ela o encarava de cima a baixo com um sorriso debochado nos
lábios, na esperança de que ele parasse o que estava fazendo e voltasse para
ela.
— E como pretende sair daqui sem que ninguém te veja? —
zombou.
— Da mesma forma que entrei. — Ele deu de ombros.
A princesa fez um biquinho, descontente com a solução fácil que o
levaria embora.
— Pelo jeito como isso aqui batia no chão — ela tamborilou os
dedos pelo tampo da mesa —, não me surpreenderia se encontrasse meia
dúzia de criadas atrás dessa porta, ansiosas para descobrirem o que eu
estava quebrando.
Conan gargalhou enquanto fechava o cinto, seus cabelos compridos
escondendo-lhe o rosto.
— Sairei pela janela então, tenho certeza de que Isaac fingirá que
não está me vendo.
— Isaac sabe sobre nós dois? — A princesa arregalou os olhos.
Ela gostava do soldado. Normalmente, era ele quem comandava
seus treinamentos e o rapaz sempre foi muito paciente em mostrar de novo
e de novo os movimentos nos quais Anya encontrava dificuldades.
Mas isso não parecia um motivo bom o suficiente para confiar a ele
um segredo daqueles.
Parecia uma péssima ideia.
— Seu senso de prioridades me comove. — Conan riu ainda mais,
indicando a janela que revelava o mundo três andares abaixo. — Não se
preocupe com a altura, tenho certeza de que sobreviverei.
A princesa cruzou os braços, apertando os lábios para não rir com
ele.
— Você é ridículo.
— Sou. — O soldado se aproximou, passando os olhos por cada
curva de seu corpo ainda exposto — Eu precisava de alguém para me dar
cobertura... Como acha que consegui tantas noites livres para passar com
você?
Ele estava tão perto agora que a malha de suas calças roçava no
joelho nu da princesa, fazendo cada pedaço de sua pele arder. O soldado
estendeu a mão em sua direção e ela jurou que seria beijada, mas ele apenas
puxou a túnica azul que estava embolada atrás dela.
Anya suspirou ruidosamente em protesto ao observá-lo vestir-se por
completo.
— Isaac não contará a ninguém, prometo. — Conan pegou sua mão
e depositou um beijo. — E sabemos que eu tenho muito mais a perder do
que você caso descubram sobre isso aqui.
Ele apontou de si mesmo para ela.
— Fique mais um pouco — ela pediu.
— Adoraria. Mas não posso — o soldado beliscou a ponta do nariz
dela — e nem você. Amanhã cedo teremos treino.
Ela sentiu seu rosto se iluminar.
— É você quem dará o treinamento?
— Agradeça ao Isaac — Conan retrucou. — Agora preciso ir.
O rapaz beijou sua testa e franziu o cenho para a janela. Não havia
chance alguma de que a garota permitisse que ele descesse por ali.
— Espere um segundo — disse, vestindo sua camisola e amarrando
o laço do roupão.
Abrindo uma fresta da porta, olhou para ambos os lados e confirmou
que o corredor estava vazio.
— Talvez ninguém se importe se eu colocar esse salão inteiro
abaixo. — Deu de ombros, abrindo um sorriso.
Trocaram um último beijo e o rapaz saiu correndo.
Anya ficou para trás, aproveitando seu jantar com ainda mais fome
do que estava antes de encontrar Conan.
Ajeitou minimamente os cabelos bagunçados e saiu da sala como se
nada tivesse acontecido, tendo como únicas testemunhas as paredes
alaranjadas, e ela sabia que nenhuma entregaria seus segredos.
Enquanto seguia até seus aposentos para aninhar-se entre os lençóis
de seda, rezou para ninguém em particular que Conan tivesse a mesma sorte
que ela e chegasse até a ala Leste sem levantar suspeitas.

Suaves batidas na porta a acordaram na manhã seguinte, mas Faen


não entrou ou chamou pela princesa. Não havia vestidos para serem
entregues em dia de treinamento, pois os trajes de luta eram colecionados
nas gavetas de sua cômoda.
Anya espreguiçou-se ainda deitada, apreciando o toque macio dos
lençóis rosé contra sua pele. Ela tirou os cabelos do rosto e levantou-se,
esfregando os pés nos pelinhos do imenso tapete felpudo — seu lugar
preferido para se esparramar e ler por horas.
O céu lá fora se revelou acinzentado quando a princesa abriu as
cortinas, e o ar fresco que soprou contra ela era perfeito para dias de treino.
Ignorou seu reflexo sonolento no espelho enquanto pegava as roupas
na gaveta.
Vestiu primeiro a túnica azul marinho que era parecida com a que
Conan usava para fazer as rondas, de um tecido resistente e, ao mesmo
tempo, maleável. As calças eram justas e leves, com uma faixa mais grossa
circundando seus joelhos e subindo pela extensão das pernas — uma
proteção extra.
Trançou os cabelos preguiçosamente sobre o ombro esquerdo,
tirando-os do caminho para prender o corselete de couro grosso que cobria
seu abdômen e subia em finas alças.
Encaixou os punhos também de couro, segurando suas fitas com os
dentes para conseguir amarrá-las sozinha.
Já se apressava em direção à porta quando lembrou-se do cinto. Um
presente que Farah lhe dera para que prendesse sua espada durante as
práticas.
A espada de Isaac, na verdade.
Mas o soldado sempre a fazia lutar com ela presa ao corpo, assim se
acostumaria com o peso da arma e não deixaria que isso atrapalhasse seus
movimentos.
Em teoria.
Saiu do quarto e desceu a escadaria apressada. Não queria começar
outra manhã com sermões de seu pai. E agradeceu em silêncio pelas calças
que lhe permitiam movimentos mais ágeis.
Mas ao chegar no salão de refeições, o rei não estava presente.
Estava ocupado já resolvendo questões referentes à reunião com Benjamin
no dia seguinte.
Sorriu para sua mãe que a esperava para comer, feliz por saber que
seu dia começaria tranquilo.
Nunca entendeu a necessidade de se realizar refeições rotineiras no
imenso salão, mas não poderia negar que apreciava a vista. As janelas
tinham frente para o jardim e, nesta época do ano, iniciar suas manhãs com
a imagem de borboletas reluzindo nos raios dourado do sol era uma
experiência incomparável.
A princesa aproveitou que apenas ela e a mãe comeriam juntas e
sentou-se ao seu lado, dando-lhe um beijo no ombro.
Elysia abriu o sorriso que guardava apenas para ela, alcançando-lhe
a cesta de pães.
— Bom dia, querida — a rainha disse.
Anya e sua mãe eram até um pouco parecidas, apesar de toda aquela
coisa de adoção e tudo o mais. Tinham os mesmos cabelos negros — de um
tom de petróleo tão denso que dava a impressão de absorver ao invés de
refletir a luz que os tocavam — e o mesmo nariz pequeno e redondinho na
ponta.
Mas as semelhanças acabavam ali. Elysia tinha o queixo fino,
delicado, enquanto a princesa possuía o maxilar bem desenhado e anguloso.
A boca fina sempre desenhada em um sorriso da rainha nada tinha a ver
com os lábios cheios da filha.
A garota aceitou a cesta e apreciou o cheiro do pão quentinho
misturado ao aroma de lavanda que vinha da rainha, fechando os olhos por
dois segundos.
— Bom dia, mãe — ela respondeu, sorrindo.

Conan já esperava por ela quando adentrou o campo de treinamento.


O descampado tinha ligação direta com a ala Leste, onde os
soldados eram alocados, e era ladeado por alguns pinheiros. A área em que
Anya praticava era reservada aos guardas que ainda não tinham feito seus
testes para o exército, tendo uma pequena cabana em sua extremidade ao
fundo.
A construção de aparência abandonada armazenava armas, itens te
proteção e demais materiais que poderiam ser úteis no dia a dia.
— Você deveria usar calças mais vezes — ronronou Conan assim
que a viu.
Ela revirou os olhos, sentindo as bochechas esquentarem.
— Sempre as uso para praticar, você que deveria me acompanhar
com mais frequência. — Anya bateu exageradamente os cílios.
— Isaac é um filho da puta de sorte — brincou ele, ajeitando o
gibão que cobria a túnica em mesma cor que a dela.
— Aposto que ele diz a mesma coisa sobre você. — A princesa riu,
mas logo respirou fundo e assumiu sua postura de treino.
Lutar se tornara uma espécie de terapia para ela, quase tanto quanto
tocar piano.
O que havia começado como uma necessidade de aprender a se
defender transformou-se em sua parte favorita da semana. E ainda que a
falta de domínio com a espada atrapalhasse seu sono vez ou outra, combates
corpo a corpo lhe traziam uma estranha sensação de paz.
Era reconfortante saber que, se precisasse, já não era a mesma
garota indefesa de três anos atrás.
Os dois começaram com alguns aquecimentos simples. Partindo do
pescoço, repetiram sequências e mais sequências de movimentos com cada
parte do corpo. Depois fizeram alguns agachamentos, posições de isometria
e, para completar, alguns alongamentos.
Então, começaram a lutar.
Anya sempre fora ágil com seus movimentos e, durante aqueles três
anos, descobriu que seu talento era proporcional à sua dedicação. Algo
dentro dela parecia lhe avisar com antecedência quando era a hora certa
para atacar ou defender, e não demorou até que saísse dos exercícios e
partisse para os combates de fato.
E ali, com seu melhor amigo diante dela, tentando surpreendê-la
com diferentes combinações de movimento, a princesa sentiu mais um
pedacinho partido em seu peito colando-se de volta — a maioria deles tinha
voltado para o lugar graças a Conan.
Sequência após sequência, eles lutaram.
E ao perceber que ela não recuaria, o soldado mudou sua
abordagem. Ele fez menção de atacá-la pela direita, mas partiu pela
esquerda na intenção de derrubá-la. Exatamente como Anya havia previsto.
A princesa se esquivou, desviando e surpreendendo-o por trás. Ela o
atacou com vantagem.
Conan se chocou com tanta força contra o chão que Anya quase
sentiu-o tremer. E então, caiu na risada, observando o rapaz coberto de
terra.
Ela estendeu a mão para ele, oferecendo ajuda para levantá-lo e o
soldado, ao entrelaçar seus dedos nos dela, não se impulsionou para cima.
Ao invés disso, puxou-a com força para baixo, fazendo-a cair ao seu
lado.
— Não admito que meu uniforme seja o único coberto de terra. —
Ele gargalhou.
A garota levou as duas mãos ao peito, contorcendo o rosto em uma
indignação fingida.
— Como se atreve a tratar sua Princesa dessa forma?
O soldado riu, levantando-se em um salto e ajudando-a também.
— Minha? — Ele ergueu uma sobrancelha. — E como posso
conquistar o perdão de minha Princesa?
Ela mordeu o lábio inferior, passando os olhos pelo corpo de Conan.
— Consigo pensar em uma forma ou duas.
— Pervertida. — Ele riu. — Espere aqui.
Anya bateu as mãos pela roupa, tentando se livrar do máximo
possível da sujeira, e observou Conan correr até o pequeno galpão.
Ele estava indo buscar as espadas.
Ela torceu os dedos entre as mãos e olhou para o alto, fingindo
apreciar a vista do céu cinzento acima dos pinheiros, fingindo que seu
coração não se acelerava em antecedência pelo desastre que estava por vir.
Sabia que não deveria se cobrar daquela forma. Ninguém poderia
ser bom em tudo e a garota lutava muito bem. Mas era filha de seu pai,
afinal de contas, e a criação pesava mais do que o sangue quando o assunto
era exigência.
Conan voltou minutos depois, trazendo uma arma em cada mão.
Ela analisou a longa lâmina prateada, mais larga e diferente da que
estava acostumada a usar. Girou-a algumas vezes, sentindo e testando seu
peso. Seu punho era mais leve que o da espada de Isaac, pois não havia
qualquer detalhe nele — nem mesmo o brasão do reino. Mas a lâmina... ela
era consideravelmente mais pesada.
O soldado pigarreou e assumiu sua posição inicial, aguardando até
que a princesa o acompanhasse.
— Certo — ela murmurou.
Eles revisaram alguns movimentos juntos, e não demorou até que
seus músculos reclamassem pela distribuição de peso com a qual não
estavam acostumados.
Maldita lâmina.
Posição inicial, posição de defesa, posição de avanço.
Mais uma vez.
E outra.
O tempo que sempre deslizava por entre seus dedos agora se
arrastava, transformando cada ação da princesa em um sofrimento infinito.
Seus braços já começavam a endurecer pelas repetições e ela
observou incomodada que o soldado mal parecia suar, enquanto suas mãos
úmidas tornavam o manuseio da arma quase impossível.
Estava ficando irritada. Não deveria ser tão difícil assim. Mas lá
estava ela, mal conseguindo manter a espada acima da linha do cotovelo.
— Chega — reclamou. — Não consigo mais.
Sentia a frustração estampada em cada traço de seu rosto, e bufou
por Conan insistir para que tentasse mais uma vez.
— Tente de novo.
— Não quero. Estou cansada.
Ele revirou os olhos.
— Tente cansada mesmo.
— Eu sou péssima nisso — gemeu ela, apontando para a arma em
sua mão.
— Tudo é difícil quando estamos começando, você sabe disso —
Conan disse com suavidade. — Não vai melhorar se desistir agora. Agora
tente de novo.
Suspirando, ela voltou à sua posição. Não conseguia entender de
onde ele tirava todo aquele otimismo, destoava completamente da figura
imponente que o soldado transmitia na maior parte do tempo.
Eles repetiram a sequência mais uma vez.
Uma, duas, três.
Na quinta, os cabelos de Anya estavam grudados em seu rosto, o
suor escorrendo por cada poro que ela possuía. Sua respiração estava
ofegante, mas manteve seus movimentos o mais firme que pôde.
Na oitava, ela sustentou a espada de forma quase perfeita do início
ao fim, mas desceu o punho rápido demais no último movimento e a lâmina
escapou de sua mão e caiu na terra.
Após a décima segunda repetição, no entanto, seu desempenhou foi
impecável, fazendo Conan parar, colocar a espada de volta na própria
cintura e pegar a mão dela. Ele a beijou com delicadeza antes de dizer:
— Perfeita, princesa. Perfeita.
Mas Anya não se deixou levar pelo truque barato. Ela o conhecia
melhor do que isso. Então, já estava preparada quando ele a soltou e, em um
piscar de olhos, empunhou novamente sua espada, partindo para cima dela.
Anya defendeu e recuou.
Estava exausta, mas repetira aqueles movimentos tantas vezes nas
últimas horas que se sentiu preparada pela primeira vez.
Defender, recuar.
Os únicos sons no descampado eram as lâminas se chocando uma
contra a outra e o bater dos pés sobre a terra. Mesmo os pássaros
interromperam suas canções, como se estivessem ocupados demais
observando a cena que se desenrolava ali. E o silêncio, por fim, chamou sua
atenção para a respiração do soldado. Ele estava começando a cansar.
Defender, recuar.
Permaneceu observando os movimentos dele, como a altura de sua
espada baixara minimamente — de forma tão discreta que quase não dava
para notar. Mas isso significava que, talvez, ela tivesse uma chance.
Defender, recuar.
Anya não era tão ágil ou tão forte quanto Conan, porém sentiu que
poderia vencê-lo na inteligência. Ela recuou mais uma vez, soltando o ar
como se ele a tivesse surpreendido. O sorriso nos lábios finos do soldado
confirmou o que ela previra.
Defender.
Ela bloqueou o golpe seguinte, cruzando as espadas a centímetros de
seu rosto.
Atacar.
Anya usou sua perna de apoio e lançou-se para a frente, empurrando
a espada dele com a sua própria. Não usara de tanta força, mas Conan não
esperava por isso. Ela havia recuado tantas vezes nos últimos minutos que,
mesmo aquele simples encontrão entre ambos, foi o suficiente para o
soldado dar um meio passo para trás.
Não tinha sido exatamente um recuo, mas era o suficiente para que
ela soubesse que funcionara.
Com as espadas ainda cruzadas, ela torceu a sua, encaixando as
lâminas e lançando ambas as pontas para baixo. E antes que Conan pudesse
se recuperar, girou seu pulso de volta, terminando com a arma à centímetros
do pescoço dele.
— Sim — ela ronronou. — Perfeita.
O rapaz jogou sua espada na terra como um sinal de desistência e
ela abaixou a sua também.
— Eu sinceramente não sei dizer se estou orgulhoso, assustado ou
excitado. — Ele riu.
— Você não tem jeito mesmo. — A princesa deu-lhe um soco no
braço, rindo também.
— Ei, isso dói! — reclamou, passando os dedos no local. — E o que
pudemos aprender hoje?
— Que não importa o que estivermos fazendo, eu sempre serei
melhor do que você? — Anya piscou um olho só.
— Que apesar da técnica — ele enfatizou a última palavra —, saber
improvisar pode salvar a sua vida.
Ela balançou a cabeça, revirando os olhos, e devolveu a espada que
ainda segurava nas mãos.
Estava maravilhada pela sensação de vencer seu primeiro duelo e
não se importava com a possibilidade de não ter passado de um golpe de
sorte. Tinha sido o suficiente.
Jogou-se no chão enquanto Conan levava as armas de volta para a
cabana, contemplando o vento fresco resfriando seu corpo. Os pássaros
retomaram suas melodias e as árvores voltaram a farfalhar. Levantou a
cabeça para os céus, observando os formatos das nuvens até Conan voltar e
sentar-se à sua frente.
— Nos veremos essa noite? — ela perguntou.
Ele negou com a cabeça.
— Estou na formação noturna durante toda a semana e Isaac já me
ajudou noite passada. Ele tem seu próprio encontro hoje, não posso pedir
que me substitua.
— Quem é o sortudo? — Anya abriu um sorriso.
— Não faço ideia. — Conan deu de ombros. — Não é ninguém da
guarda, disso eu tenho certeza. Mas Isaac faz tanto mistério sobre o tal
rapaz que, às vezes, acho que é imaginário.
A princesa cutucou-o com o pé.
— Não seja grosseiro — repreendeu.
— Só estou brincando. — Ele ergueu as mãos. — Acho que ele não
quer se comprometer até ter certeza de que é algo sério. Você lembra o que
aconteceu da última vez.
Ela lembrava. O soldado se envolvera com outro membro da guarda
real e, em pouco tempo, estavam dividindo o mesmo quarto nos
alojamentos. E quando as coisas acabaram mal, ficou um clima esquisito
entre todos na ala Leste.
— É isso que dá se relacionar com alguém que você vê todos os dias
— Anya zombou. Ela se referia a Conan, não a Isaac.
— Felizmente para você — ele cutucou a ponta do nariz dela —,
não nos veremos o resto da semana. Terá tempo o suficiente para sentir
saudades minhas. Ah, e por favor, me espere com estas calças na próxima
vez.
Ela colocou mais força em seu chute, mas acompanhou as risadas
dele. Gostava da forma como ele a tratava.
Quando estavam juntos, ela não era a Princesa Anya Dahnasa, filha
do Grande Rei Oliver de Duhn. Era apenas Anya.
Sua melhor amiga, sua parceira de cama.
Nenhum papel para interpretar, nenhuma regra de etiqueta para
seguir.
E se naquela tarde, ela soubesse que levaria muito mais do que
alguns dias para voltar a vê-lo, talvez tivesse insistido para que ele desse
um jeito de encontrá-la à noite.
Depois do treino pesado, se permitiu aproveitar a companhia do
puro e completo tédio pelo restante do dia.
Almoçou na sala de música, e mais tarde, caminhou com sua mãe
por entre os campos de lavandas do palácio. As flores que eram, antes de
mais nada, um dos símbolos do reino, sempre foram as preferidas de Elysia.
Ela já era a Rainha perfeita antes mesmo de casar-se com o Rei.
Anya também gostava delas, é claro. Mas seu sentimento mais tinha
a ver com a conexão da mãe do que com as lavandas em si.
Seu corpo exausto já estava na cama no início da noite, e pegou no
sono enquanto lia um romance sobre uma plebeia apaixonada por um
príncipe.
Acordou na manhã seguinte antes mesmo que batessem na porta,
sentindo os braços doloridos pelo treino. Mas decidiu que abandonaria seu
confortável colchão apenas quando viessem chamá-la.
Pegou outra vez o livro que deixara ao lado de seu travesseiro, e mal
percebeu o tempo passar conforme ria da protagonista que sonhava tanto
com a realeza, e que mal sabia o quão cheia de regras aquela vida seria.
Quando Faen apareceu trazendo seu vestido, a princesa levou alguns
segundos para entender o motivo pelo qual a peça era tão mais elaborada do
que aquelas que costumava usar no dia a dia.
Benjamin.
Os dois dias até a reunião do Conselho passaram voando e seu
primo estaria no castelo em poucas horas.
Ela arrastou-se até a penteadeira, tentando ignorar a dor que
acompanhava cada um de seus movimentos, e escovou os cabelos com mais
afinco do que normalmente.
Ao menos, Farah também viria. Já havia pedido que mais
travesseiros fossem providenciados e fez Faen prometer-lhe infinitos
biscoitos e chocolate quente madrugada adentro.
Só precisava sobreviver ao encontro com o príncipe.
Não que eles fossem passar muito tempo juntos, de toda forma.
Teria apenas de cumprimentá-lo quando chegasse e fugiria o mais rápido
possível.
Fora um dos motivos pelos quais convidou sua amiga para vir
também. Precisava de uma desculpa para se manter longe o dia inteiro.
Disfarçou as manchas escuras sob seus olhos com um pouco de pó e
delineou a pálpebra delicadamente. Entrelaçando algumas contas prateadas
nas mechas de sua trança, sorriu para seu reflexo no espelho, satisfeita com
o resultado.
A brisa que entrava pela sacada arrepiou sua pele e ela se apressou
em colocar o vestido. A peça de tecido azul claro esvoaçante envolvia seu
pescoço em uma gola alta e deixava suas costas expostas. O tom pastel
evidenciava ainda mais seus cabelos escuros que se ondulavam para todos
os lados.
Parecia mais do que nunca com sua mãe. Não em seus traços, mas
em presença. Confundiria a si mesma com uma Rainha se olhasse rápido
demais.
A Rainha que jamais teria a chance de ser.
Ela sabia que estava se empenhando mais do que de costume com
sua aparência por causa do primo. Queria provocá-lo, mostrar que estava à
altura da Coroa.
Exceto que não estava. Nem ela e nem seu sangue plebeu.
Não era tão diferente da garota em seu livro, afinal.
Colocando os ombros para trás e erguendo levemente o queixo,
respirou fundo e abriu a porta do quarto.
Deu de cara com uma das criadas que corria afobada em sua
direção.
— Princesa! — Ela ofegou, fazendo uma reverência exagerada. —
Me perdoe! Estava indo chamá-la agora. Príncipe Benjamin acaba de
chegar. A senhorita é aguardada no salão do trono.
Anya soltou uma sequência de xingamentos.
Ele estava adiantado.
Já no topo das escadas, suspirou e começou a descer.
Desenhou no rosto seu olhar mais dócil, curvando levemente o
sorriso em um dos lados. Seu pai não perceberia o ar de deboche, mas
Benjamin sim.
Cada passo foi dado devagar, como se nada no mundo fosse mais
importante do que tocar no degrau seguinte. Uma das mãos acompanhava
com delicadeza o corrimão ornamentado e a outra erguia a barra de seu
vestido.
Seu estômago estava embrulhado e o coração batia tão forte que
quase conseguia ouvi-lo, mas faria de tudo para que seu nervosismo não
transparecesse.
Não poderia ser uma Rainha, mas seria a Princesa perfeita.
Apenas por hoje.
Apenas para irritar seu primo.
Ele e o rei a esperavam no centro do salão. Aparentemente, Oliver
não era corajoso o suficiente para sentar-se no trono na presença de
Benjamin.
Anya sabia que nem ela seria.
Um arrepio cruzou seu corpo quando seus olhos se encontraram
com os do príncipe.
Ele encarou a garota de cima a baixo, erguendo apenas uma das
sobrancelhas grossas, mas ela não se deixou intimidar.
Ao invés disso, devolveu-lhe o gesto, correndo o olhar com atenção
pela túnica clara colocada para dentro das calças em veludo preto. O casaco
de gola alta combinava com elas e seu tecido leve alongava ainda mais sua
silhueta já alta.
Ela sempre odiou ter que erguer o rosto para encará-lo.
Os cabelos brancos estavam impecavelmente penteados para trás.
Diziam que ele era um retrato perfeito da mãe — o mesmo nariz reto e os
olhos amendoados —, e que apenas o tom das mechas os diferenciava.
Enquanto os de Benjamin eram brancos, os de Brianna eram prateados
como aço.
Anya estava quase no último degrau e teve de controlar uma careta
assim que o primo lhe ofereceu a mão cheia de anéis para ajudá-la.
Tão atencioso.
Poderia soar como pura implicância de sua parte, mas ela percebia o
leve tremor nos ombros de seu pai se estava na presença dele. Percebia a
respiração nervosa de sua mãe cada vez que o via.
Anya não convivera muito com Benjamin depois de mais velha, mas
o comportamento de sua família — e mesmo o dos soldados que pareciam
prender o ar quando ele passava — eram suficientes para que soubesse que
todos tinham medo.
E isso a irritava acima de qualquer outra coisa.
Esse era o destino de Duhn.
— Primo! — cumprimentou, mal reconhecendo o próprio tom de
voz. — É uma honra recebê-lo em nossa casa!
Se ele percebeu a pequena provocação, não deixou transparecer.
Aproveitou a mão que ainda segurava e levou-a aos lábios, depositando um
beijo silencioso.
Os olhos cinzentos não deixaram o rosto dela um instante sequer, e a
princesa pensou em um lobo da neve — disfarçado no ambiente, apenas
aguardando a oportunidade perfeita para atacar.
— A honra é toda minha, Princesa — e algo em sua entonação fez a
garota desejar sair correndo.
Talvez não fosse uma ideia tão boa assim irritá-lo.
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, as criadas anunciaram a
chegada de Farah e seu pai.
Estavam todos tão adiantados naquele dia... Ou o nervosismo da
princesa a fizera perder a noção do tempo outra vez.
— Vossa Majestade. — Curvou-se Magmar, aproximando-se deles.
O Conselheiro exibia os mesmos cabelos cor de chocolate da filha e
sua pele era um tom mais escuro que a dela.
Após todos os cumprimentos e reverências, as duas garotas foram
direcionadas para fora do salão.
Não havia sido tão ruim, afinal. Mais uma tempestade feita em copo
d’água. Estava livre de Benjamin até a hora do jantar — isso se ela não
encontrasse uma desculpa para burlar a refeição e comer no quarto com sua
amiga.
— Está bonita, Princesa — elogiou a garota.
Aquelas palavras soavam engraçadas vindas de Farah. A filha do
Conselheiro Real era conhecida como uma das moças mais belas de Duhn,
principalmente com aquele vestido creme de mangas longas e largas. As
verbenas em seu cabelo eram da mesma cor.
— Nunca tão bonita quanto você. — Anya sorriu, passando seu
braço pelo da amiga e puxando-a através do salão principal. Então,
percebeu a imensa mochila que Farah trouxera consigo. — Você veio passar
a noite comigo ou vai se mudar de vez para o castelo?
— Está praticamente vazia. — A garota riu. — Deixei para arrumar
minhas coisas de última hora e essa foi a única mochila que encontrei.
Como se invocada pela menção às bagagens, Faen se materializou
ao lado delas. A criada pareceu evitar os olhos de Farah, encarando as
próprias mãos enquanto tomava a mala vazia.
Ou poderia ser apenas impressão.
E depois, a garota partiu com a mochila.
Anya atravessou os jardins com a amiga. O peso em seu peito
causado pela presença de Benjamin foi se aliviando a cada passo que davam
para mais distante do palácio. Dele.
A presença de Farah ajudava.
Elas se conheciam desde pequenas e muitas foram as tardes que
passaram correndo por entre os pinheiros e escondendo-se atrás das
estátuas, com nada além do pôr do sol para preocupá-las.
Sentaram-se sob a sombra de uma das árvores, a princesa escorada
no tronco largo e áspero, e Farah deitada em suas pernas. Ficaram
observando as nuvens mudando de forma enquanto conversavam.
— Venci Conan em um duelo ontem — Anya confidenciou.
— Sério? — gritou a garota, abrindo um sorriso gigante.
— Poderia parecer menos surpresa, sabia?
— Você é terrível — zombou Farah, revirando os olhos cor de avelã.
— Adoraria ter visto isso, Conan deve ter se animado todo.
— Ele sempre fica animado com tudo. — A princesa riu.
O comentário fez sua amiga sentar-se novamente, franzindo o
cenho.
— Conan é apaixonado por você, sabe disso né?
Anya bufou.
— Não diga uma bobagem dessas! Você nos conhece, somos apenas
amigos.
— Eu sei disso — ela deu de ombros —, mas ele não.
Ficaram em silêncio por alguns minutos enquanto a princesa remoía
aquelas palavras.
Conan não poderia gostar dela, poderia? Ela nunca tinha
demonstrado qualquer sinal de que a relação deles poderia evoluir para algo
além do que tinham... E ainda que o tivesse feito, seu pai nunca aceitaria
uma coisa dessas.
Suspirando, achou melhor trocar de assunto.
— Você deveria vir para treinar com a gente uma hora dessas.
Anya amava quando praticavam juntas. Farah era sua maior
incentivadora para todas as coisas desde sempre e, depois do ataque anos
atrás, foi ela quem deu a ideia para seu pai em colocar Anya para lutar.
Ainda que nunca tivesse lhe contado onde ela mesma aprendera a fazer isso.
E por melhores que fossem suas habilidades, a princesa em nada se
comparava à amiga. A garota se movia mais rápido do que a própria luz,
cada ação realizada em sua maior perfeição.
Ela nunca vacilava.
Nunca fugia.
Anya queria ser um pouco mais como ela.
— É — a garota concordou. — Vou tentar encontrar um tempinho
para isso.
E assim, as horas foram se passando.
Anya contou sobre seu duelo em detalhes, e agradeceu por cada
pequena dica que recebera.
Elas não falaram sobre o que aconteceu no Mercado há dois dias.
Nem uma única vez. Farah parecia querer esquecer daquilo tanto quanto
ela.
Mas quanto mais o tempo passava, mais a amiga se tornava inquieta.
Olhava para os lados com frequência, sua postura tensa. E quando o
entardecer começou a dar as caras, ela levantou-se em um salto e pediu que
voltassem para o castelo.
— Está tudo bem? — Anya questionou.
— Claro que está. Estou apenas ansiosa para começarmos nossa
festa do pijama.
A princesa não se convenceu com a resposta, mas assentiu e
acompanhou a amiga.
Refizeram o trajeto de volta, mas Farah estava sempre alguns passos
à frente. Alguma coisa estranha estava acontecendo com ela.
Assim que avistaram a grande fonte, Anya analisou o jardim. Era
hora de trocar a guarda, Conan logo apareceria por ali. Queria, ao menos,
vê-lo de longe.
Seus pés tocaram nos degraus de entrada, mas antes mesmo que
tivesse a chance de procurar pelo soldado, Farah agarrou-se em seu braço e
puxou-a para dentro.
— Precisamos subir. — Sua voz estava baixa e rouca, trazendo uma
urgência com a qual a princesa não estava acostumada.
— O que foi?
Ela começou a ficar preocupada, aquele comportamento não tinha
nada a ver com sua amiga.
A garota não respondeu. Ainda com os dedos cravados em sua pele,
arrastava-a na direção das escadas.
— Farah — insistiu, e as duas pararam no lugar.
— Não há tempo, você precisa vir comigo!
E Anya viu algo em seus olhos. Não tinha certeza do que era, mas
havia alguma coisa ali que a fez ceder.
Já estavam em meio a escadaria quando ouviram a primeira
explosão.
O som pareceu ter vindo de todos os lugares ao mesmo tempo.
Perto, longe, acima de sua cabeça, sob seus pés. E as paredes do castelo
estremeceram.
Nada do que aconteceu em seguida fez muito sentido para a princesa
— era como se assistisse a cena se desenrolando em câmera lenta, num
mundo só dela. Ela viu os soldados congelados em suas posições, como se
nada tivesse acontecido. Eles nem mesmo faziam menção de tocar suas
armas. Pareciam nem ter notado a explosão.
Mas não teve tempo de fazer perguntas, Farah ainda a arrastava
pelas escadas, a determinação estampada em cada traço de sua postura. Era
tão, tão difícil correr com aquele vestido... Encarou suas pernas,
amaldiçoando as sandálias de salto fino que escolhera naquela manhã.
Ainda que não fossem altas, mais atrapalhavam do que ajudavam.
Farah estava gritando. Estava pedindo alguma coisa? Dando ordens?
Ou gritava por puro desespero?
A princesa queria gritar também, mas sua voz tinha desaparecido.
Talvez fosse seu coração que retumbasse forte demais e estivesse
impedindo que ouvisse o que ela mesma dizia.
Um batimento cardíaco mais tarde, estavam na porta de seu quarto.
Ela tentou perguntar o que faziam ali quando sua amiga desapareceu dentro
do cômodo, mas uma nova explosão fez cada osso de seu corpo tremer.
Havia sido mais perto dessa vez.
O que diabos estava acontecendo?
Farah apareceu outra vez e a princesa teve um vislumbre de seu
quarto: estava vazio, mas armários e gavetas haviam sido abertos. Antes
que pudesse perguntar algo, sua amiga voltou a arrastá-la.
Gritos ecoaram pelo palácio, mas era difícil identificar a quem
pertenciam devido ao chiado contínuo que incomodava seus ouvidos.
Quanto mais corriam, mais Anya se perguntava por onde andavam
os soldados, os criados... Ninguém viria até ela para ajudar? Tinham
bombas explodindo no castelo, por que nenhum deles estava ali para
protegê-la?
Na terceira explosão, se tornou impossível escutar qualquer coisa.
Sua cabeça zunia e latejava por causa do som.
Sua amiga ainda a puxava pelo braço e ela só queria parar de correr
e perguntar o que estava acontecendo, para onde ela a estava levando, por
que ela parecia tão determinada naquela corrida de fuga.
A princesa já não sabia em que andar estava. Os corredores nunca
pareceram tão iguais como naquele momento. Elas subiam e subiam e...
Por que subiam? Não haveria para onde ir lá do alto.
A estrutura do castelo tremia mais e mais, conforme novas
explosões aconteciam. Não havia movimentação alguma além das duas
garotas correndo ali.
Se ainda havia gritos, também não tinha como saber, não tinha como
ouvir nem os próprios pensamentos sobre aquele zumbido infernal.
Farah parou de correr repentinamente, de frente para uma porta que
Anya nem se lembrava que existia ao final de um longo corredor.
Ela sempre esteve aqui?, pensou.
Ela piscou e foi empurrada para dentro de uma sala.
A luz fraca vinha de uma única vela pousada sobre uma
escrivaninha empoeirada, mas algum sinal de iluminação despontava de um
estreito corredor, na parede esquerda.
O cômodo cheirava a mofo, como se ninguém o tivesse aberto há
muito — muito — tempo. E a julgar pela quantidade de pó, foi o que
realmente aconteceu.
Sons de passos naquele corredor fizeram a princesa recuar, mas
então um soldado surgiu por ali, vindo com calma até ela.
Finalmente.
Estavam salvas. Alguém ainda se lembrava delas e aparecera para
resgatá-las.
Suspirou de alívio e...
Ela não conhecia aquele homem.
Passou os olhos pelo uniforme completo, franzindo a testa para os
dois ramos de lavanda que se cruzavam com uma coroa no centro bordados
no peito esquerdo. A insígnia da família Dahnasa.
As roupas estavam certas, mas seu tipo físico não combinava com
os demais soldados. Era mais magro. Ainda forte, sim, mas as roupas
ficavam largas em algumas partes — e elas sempre foram feitas sob medida
para cada um dos homens.
Virou-se com rapidez para empurrar Farah para fora da sala, mas a
porta atrás de si tinha se fechado tão silenciosamente que ela nem
percebera.
Estava sozinha naquele quarto escuro com um homem estranho
vindo em sua direção.
De novo não, ela pensou, levando sem perceber uma das mãos até a
cicatriz no rosto.
Uma armadilha. Ela e sua amiga caíram em uma armadilha.
Estavam esperando por elas. E a princesa só poderia rezar para que,
quem quer que estivesse do outro lado com Farah, não fosse rápido o
bastante.
Tateou pela maçaneta atrás de si, sem coragem de tirar os olhos do
falso soldado que se aproximava de forma cada vez mais lenta. Estava
trancada.
Entrou em posição de ataque.
Não era mais aquela garota indefesa, se ele quisesse chegar até ela,
teria de lutar.
— Calma, Princesa. — Ela leu as palavras em seus lábios, ainda
incapaz de ouvir direito.
Com boa parte do rosto escondido nas sombras, os lábios torcidos
em um sorriso eram as únicas coisas que ela conseguia identificar com
precisão.
Anya avançou para ele, sem dar chance de que a atacasse primeiro,
mas ele fez um pequeno gesto com a mão direita e o corpo da princesa
simplesmente travou.
A garota fez força com os braços e pernas, e o terror tomou conta
dela ao perceber que a pressão do próprio ar parecia prendê-la no lugar.
Nenhuma voz saiu quando tentou gritar e, então, um aroma
adocicado estranhamente familiar tomou conta do seu entorno.
Magia.
Incapaz de se mexer, encarou assustada o conjurador que ainda
caminhava até ela. Estava acontecendo outra vez. Queria lutar, praguejar,
chorar, amaldiçoar qualquer deus que regesse aquele universo, mas não
conseguia.
Então ficou ali, congelada, sentindo seu peito se apertar e todas
aquelas lembranças trancafiadas saltarem para fora de uma única vez. Se o
medo não a sufocasse, aquelas memórias o fariam.
Seus rostos estavam a poucos centímetros um do outro e Anya
sentiu, mais do que viu, ele tirar um pano dobrado do bolso.
Podia ver claramente as feições dele agora.
Seus olhos eram tão azuis quanto o oceano que costeava o reino e,
quando o cheiro forte do tecido atingiu seu nariz, eles foram a última coisa
que viu antes de se afogar.
Alexzander carregava a princesa com dificuldade em seus braços
conforme descia pelo corredor estreito e mal iluminado. Precisava se
apressar, sabia disso.
O efeito do elixir não a manteria desacordada por muito tempo, e
aquele maldito uniforme que os soldados usavam era grande demais para
ele — e a mochila ridiculamente pesada sobre seu ombro em nada estava
ajudando também.
A umidade que escorria pelas paredes transformava seus passos em
um nhec, nhec contínuo e irritante. E se isso já não fosse péssimo o
suficiente, tudo ao seu redor tremia com as explosões que ainda aconteciam
acima de sua cabeça.
Eu sequestrei a maldita Princesa, repetia em pensamento.
Pelas Sete, onde estava com a cabeça?!
Observou a garota desmaiada em seus braços, tomando cuidado para
não bater com ela contra as paredes.
Ela era bem mais alta do que tinha imaginado e seus longos cabelos
cor de ébano faziam cócegas nas mãos dele. A pele exalava um aroma que
era uma mistura de canela e pinha, e, apesar da iluminação ruim, conseguia
identificar a serenidade em sua expressão — muito longe do terror que
cruzara aquele rosto minutos atrás.
Alexzander estremeceu.
Teria de se desculpar mais tarde. Naquele momento, não havia
tempo para se importar.
Deixar o castelo com a Princesa no colo era um passaporte direto
para o inferno caso alguém os visse, e tentou não pensar na dúzia de crimes
que cometera nas últimas horas. Invasão, sequestro, sua própria existência
como Elementarista. Se eles ao menos soubessem.
Mas não havia outra solução para o problema. Quando o Conselho
recebeu aquele aviso há dois dias, não tiveram muito tempo para elaborar
um plano perfeito. Aquilo era o melhor que podiam fazer.
Sua respiração estava ficando pesada, seu peito sendo tomado pelo
nervosismo e dificuldade do trajeto. Quem projetara aquela escadaria só
poderia estar fora de si. O que deveria ser uma rota de fuga segura para o
Grande Rei mais parecia uma grande armadilha.
Caminho estreito, degraus escorregadios... Uma simples queda
poderia resultar em uma morte extremamente dolorosa.
Repreendeu a si mesmo, não era a hora de pensar em como as coisas
poderiam dar errado, e sim prestar atenção para que dessem certo.
Pelo menos, Magmar fora extremamente preciso em sua descrição
do caminho, explicando em detalhes sobre a passagem que tinha ligação
direta com os túneis subterrâneos usados como reservatório para água
potável.
Avistou a noite no fim do túnel e hesitou por um momento. Preferia
estar fazendo isso durante o dia, escondia-se melhor sob a luz do sol — por
mais engraçado que parecesse.
Mas o plano era claro: pegar a garota enquanto a confusão
dominasse o castelo. Ele só não entendia o motivo pelo qual os soldados
não estavam reagindo. Não havia gritos, ordens ou até mesmo os sons de
combate.
Pensou no Rei e na Rainha com um incômodo no peito — outra
parte daquele esquema que ainda o transtornava. Não conseguiria levar
todos eles sozinho, tampouco era seguro que mais alguém o acompanhasse
naquela missão.
A princesa teria de bastar.
Respirou fundo e adentrou a noite, sua magia pulsando conforme se
ocultava pelos jardins.
Soltando o ar que nem percebera que prendia, abraçou a calmaria
que o rodeava quando chegou na floresta de pinheiros. Parou por alguns
minutos, observando o caminho por onde viera, se certificando que
ninguém o estava seguindo. Agradeceu às Sete ao constatar que estava
completamente sozinho. Bom, ele e a garota.
Nenhum som além de seus passos sobre os cascalhos e galhos secos
podia ser ouvido, e seus olhos já se acostumavam com a claridade exclusiva
da lua cheia. Uma fraca névoa serpenteava por entre as árvores e
Alexzander só poderia esperar que isso fosse o suficiente para mantê-los
escondidos.
Quanto mais se aprofundava pela floresta, mais sentia os olhares
curiosos das criaturas noturnas que habitavam a região. Elas
acompanhavam seus passos embrenhadas na vegetação, discretas o
suficiente para não serem vistas, imponentes demais para serem ignoradas.
Seu corpo se arrepiou ao atravessar a barreira invisível e a princesa
mexeu-se com sutileza em seus braços.
Finalmente adentraram os limites de Ediri
Ainda havia muito caminho pela frente, mas Alexzander já se sentiu
em casa.
A garota se revirou outra vez e o rapaz preocupou-se.
Quanto tempo havia se passado?
Silja temera que ele usasse um elixir forte demais para desacordá-la,
então lhe entregara um de efeito mais suave. Sua eficácia possuía os
minutos contados e, talvez, Alexzander tivesse demorado mais do que o
esperado para descer aquela escadaria do inferno.
Estacou seus passos por um momento, apoiando a garota sobre seu
joelho e levando a mão livre ao bolso.
— Merda — xingou baixinho, ao perceber que deixara o pano para
trás.
Levantando-se novamente, ajeitou a garota uma última vez em seus
braços e apressou-se em seu caminho.
Teria apenas alguns minutos para chegar à Grande Queda.
Um formigamento estranho surgiu nas pontas dos dedos de Anya e,
em alguns minutos, espalhou-se por seus braços. Foi assim que soube que,
qualquer que fosse a droga que tinham lhe dado, seu efeito estava passando.
Não ousou abrir os olhos, temendo denunciar que estava
recuperando controle sobre o próprio corpo e deixou que seus outros
sentidos a guiassem. Teve a impressão de que suas pernas também voltavam
ao normal, mas não poderia se mexer para testá-las.
Braços fortes a seguravam nas costas e atrás de seus joelhos e as
passadas firmes mostravam que seu sequestrador tinha pressa.
Uma sensação estranha cruzou sua pele, como se tivessem
atravessado uma cortina de tecido fino. No entanto, os sons ao seu redor
ainda eram de mato — grama e gravetos quebrando-se sob os pés do
homem — e tudo ao seu entorno cheirava à grama úmida pelo orvalho.
Aproveitou que o homem parecia inquieto e mexeu-se minimamente.
Sim, seu corpo parecia respondê-la o suficiente.
Aquelas lembranças traumáticas se embolavam umas nas outras,
mas, dessa vez, Anya não tentou afastá-las. Não estava indefesa, não era
inexperiente. Treinara para situações como essa, se tornara mais forte.
Não deixaria que tomassem o controle outra vez.
O sujeito interrompeu seus passos e o coração dela disparou quando
ele se ajoelhou, xingando por qualquer que fosse o motivo. E quanto voltou
a caminhar, tinha um ritmo mais acelerado.
Ele sabe que estou acordando, percebeu.
Não tinha certeza se suas pernas a obedeceriam. Mas a dormência
havia, ao menos, atenuado a dor muscular que sentia mais cedo por causa
do treino. Um problema substituído por outro.
Precisava se apressar, ou então, perderia o elemento surpresa.
As palavras de Conan a atravessaram como um raio.
Improvisar pode salvar a sua vida, ele tinha dito. E teve de se
controlar para não reagir ao pensar nele. Só poderia rezar para que estivesse
bem. Assim como Farah e seus pais.
Prendeu o ar e tomou meio segundo de coragem.
E então, cravou seu cotovelo com o máximo de força que conseguiu
no peito do homem, jogando seu corpo para longe na intenção de se
desprender de seus braços.
O rapaz soltou um grito mais de surpresa do que de dor, parecendo
atordoado por um momento.
Todo o ar nos pulmões de Anya lhe escapou quando se chocou
contra a grama. Seu peito ardeu pelo impacto e o ombro direito latejou. No
entanto, não deu tempo para que o sequestrador se recuperasse.
A forma como ele a prendera no lugar antes de raptá-la estava viva
em sua mente, precisava se afastar do alcance de sua magia. Chutou atrás
do joelho dele, fazendo-o cair e rolou mais uma vez.
Terra e folhas prenderam-se aos seus cabelos e ao seu vestido, e a
princesa levantou-se o mais rápido que conseguiu. Suas pernas ainda
estavam um pouco bambas e não perdeu tempo buscando por um caminho.
Apenas correu.
Seu corpo estava pesado, difícil de controlar, e ela ouviu o
conjurador xingando aos quatro ventos enquanto se levantava para ir atrás
dela.
Ela perdeu segundos preciosos parada atrás de uma árvore soltando
suas sandálias, mas esperava recuperá-los pelo pouco de agilidade extra que
a falta dos saltos lhe traria.
Quando partiu novamente por entre a floresta, sentiu seu vestido
prendendo-se pelas plantas rasteiras, rasgando-se em pedaços, e riu da
ironia de estar deixando partes de si pelo chão a cada passo que dava para
longe de casa — da mesma forma que o fazia por dentro.
A névoa densa que se erguia pelo caminho impedia que ela visse
qualquer coisa à sua frente, e esperava que também atrapalhasse o homem
que tentava chegar até ela.
Mas o silêncio entre os pinheiros tornava suas passadas sobre a terra
barulhentas demais e suas solas reclamavam das pedras e gravetos que as
perfuravam.
Botas pesadas se chocando contra o chão ecoavam e o ritmo de
corrida de uma única pessoa, repentinamente, soou como o de várias.
E pareciam vir de todos os lados.
Anya sabia que ninguém além dos dois se movia por entre os
pinheiros mais cedo. Talvez estivessem esperando por eles ali.
Um grito rouco escapou de seus lábios ressecados quando pares e
mais pares de olhos dourados surgiram por entre a vegetação.
Lobos.
Anya soube que fugir deles seria impossível.
Que estava tudo acabado.
No entanto, sem ter muita certeza de onde vinha aquela coragem,
prometeu a si mesma que tentaria até o último segundo.
— Não a percam de vista! — berrou o conjurador, a poucos metros
dela.
Os vultos negros como a noite voltaram-se para a direção que trazia
aquela voz e encararam-na outra vez, suas íris douradas refletindo com o
luar. Ótimo, estavam todos juntos.
Improvisar, pensou outra vez. Precisava improvisar.
E rápido.
Ela olhou para cima, observando os galhos grossos que se estendiam
pela noite. Se ao menos conseguisse...
Anya não se deu tempo para ponderar sobre a ideia.
Com as mãos tremendo, impulsionou-se o máximo que conseguiu
na direção do mais baixo deles. Já fizera isso inúmeras vezes no palácio,
quando criança, e tentou ignorar a dor que irradiou de suas palmas assim
que as cascas da madeira as cortavam. Balançou seu corpo e jogou as
pernas para o alto, envolvendo-as no pinheiro como um bicho-preguiça.
Os lobos avançaram no instante em que ela saltou, e ela sabia que
nada além de pura sorte os tinha impedido de alcançar seus tornozelos.
Girou o corpo até chegar à parte superior do galho, arrastando-se
por ele e sentindo uma lágrima quente escorrer pela ardência que os novos
arranhões causavam. Se fugisse pelas árvores talvez tivesse uma chance.
A madeira rangeu abaixo dela conforme a garota tentava se erguer,
precisava chegar até o galho seguinte. Ele não estava muito acima, mas suas
pernas trêmulas ameaçavam desistir de sustentá-la a qualquer momento.
O conjurador, por fim, emergiu da névoa e a alcateia pareceu se
aquietar minimamente.
— Desça daí, Princesa, por favor. — Sua voz estava mais suave que
antes, e não havia qualquer sinal de raiva pelos ataques que ela lhe dera.
Anya respondeu saltando até o próximo galho.
Por alguns instantes, enquanto seu corpo pairava pelo ar, teve
certeza de que cairia. Que quebraria todos os ossos no chão duro e seria
exterminada pelas feras que a aguardavam lá embaixo. E quando suas mãos
alcançaram o galho seguinte, nem mesmo toda aquela tensão impediu que
ela soltasse uma risada amarga.
Arriscou um olhar para baixo enquanto repetia seus movimentos
sobre a madeira e percebeu que a altura já permitia que a névoa cobrisse
boa parte de sua visão. Talvez eles não conseguissem enxergá-la de volta. E
se quisesse continuar com aquilo, precisaria encontrar uma forma de
facilitar seus movimentos.
Uma ideia cruzou seus pensamentos e ela sentou-se sobre o galho,
deixando uma perna pender por cada um dos lados. Entrelaçou os dedos nos
rasgos de seu vestido e puxou o tecido até que boa parte de seu
comprimento abandonasse a peça e deixou-o de lado. Com o que restara da
saia, puxou-a para cima e amarrou suas pontas, formando um bolso
improvisado.
Ignorou a quantidade de pele que ficou exposta — ou o que sobrara
dela, já que incontáveis cortes sangravam dali. Então, começou a pegar as
pinhas que se prendiam nos pequenos galhos secundários da árvore,
enchendo sua nova sacola deles.
Refletiu se deveria ir mais alto ou saltar para a árvore seguinte,
percebendo que elas ficavam bem próximas uma da outra.
Uivos ecoaram e os pelos de sua nuca se arrepiaram.
Para frente.
Para longe.
Pegou algumas pinhas e virou-se para o lado oposto, deixando que a
primeira caísse próxima ao tronco do pinheiro em que estava. Depois jogou
outra um pouco mais longe, e mais outra, e mais outra, aproveitando-se da
névoa e forçando os animais a acreditarem que estava indo naquela direção.
Prendendo a respiração enquanto os animais corriam para longe,
Anya se atirou para a árvore seguinte. Mas suas pernas já estavam sem
forças para se erguerem até o galho, e precisou de toda a concentração que
lhe restava para equilibrar-se naquele abaixo dela.
Teria de servir.
A mudança de método, porém, agiu contra ela, e pequenos galhos se
partiram com o peso, caindo lá embaixo.
Mais uivos e gritos soaram e ela soube que o conjurador tinha
descoberto sua verdadeira localização. Fechou os olhos e inspirou fundo,
buscando pelas dicas de sobrevivência que recebera de seu melhor amigo.
O som de água corrente ao longe preencheu seus ouvidos, e ela
rezou para que não fosse uma peça pregada por sua esperança — ou que as
explosões no castelo não estivessem interferindo mais uma vez em sua
audição.
Preferiu acreditar que estava próxima ao rio.
Conan lhe ensinara a nadar mesmo em fortes correntezas, se
chegasse até lá, poderia se afastar rapidamente. Àquela altura, já não
importava para onde iria. Mais tarde encontraria uma forma de voltar.
Sabia que o homem e a alcateia se aproximavam, mas prendeu toda
a sua atenção ao que precisava fazer. Ela saltou até o próximo galho. E o
próximo. E o próximo. Sem dar qualquer chance para que sua mente a
sabotasse dizendo que aquele era o fim.
— Princesa! — A voz tentou outra vez, mais alto, mais urgente.
Não podia lhe dar ouvidos, não podia deixar que a atrapalhasse.
O som das águas cortou a noite, Anya estava chegando. E ignorou
que o barulho retumbava mais alto do que deveria.
Alívio tomou conta de cada parte de seu corpo no momento em que
uma brecha na mata fechada refletiu a lua na água cristalina.
Mas era agora que as coisas ficariam difíceis de verdade.
Precisava descer da árvore e chegar até lá.
Sacou todas as pinhas que restaram em seu vestido e atirou-as na
alcateia que a seguia desesperada pelo solo. Isso não os impediria de nada,
mas precisava atordoá-los para ganhar alguns segundos de vantagem.
Recebendo ganidos como resposta, a princesa pulou.
Pontadas de dor irradiaram por todo o seu corpo. Braços, pernas,
ombros... E tirando forças de onde nem mesmo ela sabia, Anya correu.
Sem ousar um olhar para trás, sem ousar desacelerar por qualquer
motivo. Cada centímetro dela protestava com o esforço, seus braços já se
transformavam em pedra. E ainda assim, correu.
Os passos atrás dela estavam a cada instante mais perto, e o homem
chamava por ela de novo e de novo, sua voz sendo abafada pelos uivos da
alcateia.
A floresta se abriu.
Anya viu o rio.
Mas a correnteza era muito mais intensa do que ela esperava. O
barulho de água se chocando contra as pedras era ensurdecedor.
Correndo os olhos para os céus, para o topo dos pinheiros que
emoldurava a noite, a princesa reconheceu a paisagem.
Viu nos galhos cobertos pela noite uma pintura que retratava o dia.
Uma pintura que repousava em uma sala de música abandonada em um
castelo preenchido por caos.
Anya sabia onde estava e sabia o que a aguardava metros adiante.
Uma cachoeira.
A princesa deu aqueles últimos passos em direção a ela, vendo o
despencar violento da correnteza rumo ao vazio.
Sua visão foi embaçada pelas lágrimas que começaram a rolar e ela
fechou os olhos. Não havia mais o que fazer.
O desacelerar de uma corrida atrás de si a fez se virar, sentindo seus
ombros pesarem em derrota.
Um homem e oito lobos a encaravam de volta.
O luar refletia nos olhos azuis do conjurador e ela soube que
precisava agir uma última vez.
Antes que ele o fizesse. Antes que a magia a impedisse de se mover.
Os lobos sentaram-se ao lado dele, formando uma barreira mortal.
Anya queria pedir que a deixassem ir, mas não permitiria ser
colocada naquela posição. Chorando, implorando pela vida.
Deu-se um segundo para respirar fundo, antes de tomar sua decisão.
Então, sorriu.
O rapaz deu um passo hesitante, a mão estendida para ela. Sua testa
franzida suavizou-se levemente e ele sussurrou:
— Princesa, você não precis...
A garota não ouviu o final daquela frase. E antes que desistisse,
deixou que seu peso pendesse para trás.
Ainda conseguiu ver o homem derrubar o braço ao lado do corpo e
os lobos levantando-se e uivando para as estrelas.
E ela mesma olhou para o alto também.
A lua imensa, redonda, bem acima de sua cabeça, pareceu sorrir em
uma despedida silenciosa.
E enquanto o vazio a engolia, Anya soube que não voltariam a se
ver.
O impacto de seu corpo contra a água roubou de Anya qualquer
resquício de fôlego que ainda segurava, e ela poderia jurar que se
estilhaçava em um milhão de pedaços. A dor paralisante fez arder até a
ponta de seu pé.
Aquela foi, possivelmente, a ideia mais estúpida que já tivera, mas
mesmo a queda que durou pelo tempo de uma eternidade parecia melhor do
que a alternativa.
Quando seus pés deixaram o chão, ela caiu e caiu e caiu como se a
cachoeira entrasse para dentro da própria terra. E agora, na água, tinha a
sensação de que continuava a despencar cada vez mais fundo.
Viu tudo ao seu redor tingir-se de um tom fraco de vermelho, o
sangue em seus cortes sendo lavado devagar. O grito preso em sua garganta
desde que começara a cair escapou por seus lábios antes que tivesse a
chance de segurá-lo, e seus pulmões queimaram como se ela estivesse
nadando em brasas.
Tentou manter a calma e nadar até a superfície, pois não havia
correnteza alguma no lugar em que se encontrava, mas estava esgotada.
Não restava força em seus braços ou pernas e ela sabia que já tinha exigido
demais de si mesma.
A dor e o medo desapareceram aos poucos e uma calmaria se
apossou dela. Independentemente do que acontecesse em seguida, Anya fez
o que podia.
Rezou para deuses que já não eram lembrados há muito tempo e
deixou nas mãos deles que ela fosse carregada para a superfície. Mas talvez
eles não gostassem muito dela, pois ao invés disso, começou a ser puxada
para baixo.
A água não irritava seus olhos e percebeu enquanto afundava que a
noite não havia chegado ali. Como se o lugar tivesse seus próprios raios de
sol clareando o fundo, iluminando o universo azulado que contornava a
montanha para baixo e para baixo.
Suas pálpebras pesaram e a princesa estava pronta para desistir, para
se entregar ao destino inevitável, mas um vulto ao longe chamou sua
atenção.
Anya observava incrédula a sombra que se aproximava apressada,
incapaz de acreditar que o conjurador a tinha seguido até ali.
Mas não era ele.
E terror apossou-se de seu corpo quando mãos — não, garras —
surgiram às suas costas, segurando-a com firmeza.
Buscando por uma última descarga de adrenalina, Anya se debateu,
tentando se desvencilhar do que quer que fosse aquilo que a prendia, e a
sombra ao longe nadou mais rápido em sua direção.
Uma criatura de escamas verdes se colocou diante de seus olhos. Ela
possuía pupilas prateadas e orelhas em formato de pequenas nadadeiras,
guelras cortavam-lhe as maçãs do rosto e desciam até o pescoço fino
demais.
O que tinha sentido na floresta não era medo de verdade, Anya
percebeu. Não. Isso era medo.
Completo e paralisante pavor.
Desceu os olhos pelo corpo humanoide da criatura, de certa forma já
sabendo o que encontraria onde pernas deveriam estar. A cauda verde do...
animal cintilava através da água cristalina.
Mas ele não se parecia com as sereias sobre as quais lera nos livros.
Era diferente. Era pior.
As garras ao redor de seu corpo pressionaram-na com ainda mais
força e ela sentiu a musculatura do ser que a segurava por trás. Maior.
Muito maior do que ela.
Deitando a cabeça com algo que a garota só poderia identificar
como curiosidade, a criatura diante dela levou seus próprios dedos unidos
por membranas até seu rosto.
E quando a pele pegajosa cobriu sua boca, antes que pudesse se
debater mais uma vez, viu os olhos prateados se cobrirem de um branco
leitoso e uma rajada de ar fez caminho até os pulmões da princesa.
A criatura não a estava atacando.
Estava tentando ajudar.
Respirando por ela.
O peito de Anya ardeu quando a água em seus pulmões cedeu
espaço para o ar, e ao expirar, as guelras nas palmas da sereia tremeram.
Convencida de que a princesa não fugiria, a criatura às suas costas
soltou-a com delicadeza, abrindo espaço para a outra.
Anya não estava mais se afogando e sua mente gritava repetidas
vezes que sereias existiam de verdade.
E no momento em que a criatura começou a nadar, carregou a garota
consigo.
Outros seres como aquele cruzavam seu caminho, interrompiam
seus trajetos, observavam e se esfregavam uns nos outros — pareciam...
fofocar.
Peixes coloridos circulavam ao seu redor, roçando em sua pele e
passando por entre seus cabelos que flutuavam. Como se quisessem brincar
com ela.
Sereias.
Conjuradores.
Luz no meio da noite.
Anya pensou novamente no quadro pendurado em frente ao seu
piano, na paisagem que ela acreditava que nunca fosse capaz de conhecer
— e nem teria desejado tal coisa.
Porque era uma terra proibida há quatrocentos anos.
Um território de exílio.
O lar das criaturas não-humanas que foram poupadas depois que as
bruxas reduziram o palácio real em cinzas. Os herdeiros do Rei morto
naquela noite sabiam quem eram as verdadeiras culpadas. E cansados de
ver tanto sangue sendo derramado, transformaram a floresta em área restrita
para os demais seres mágicos.
Nenhum humano poderia entrar.
Nenhuma criatura poderia sair.
Tão desesperados por distância quanto os humanos, os seres
acataram a decisão.
E qualquer servo da Coroa que ousasse ultrapassar aqueles limites,
seria considerado tão traidor quanto os conjuradores.
Anya encarou a sereia que a carregava e pensou nos lobos de olhos
dourados que a tinham perseguido.
Estava em Ediri.
Fora levada para dentro do território dos maiores inimigos de sua
família, de seu reino e da Coroa. E a julgar pelas garras que respiravam por
ela, não a queriam morta.
De alguma forma, isso pareceu ainda pior.

— Por que estão demorando tanto? — Alexzander esbravejava,


andando de um lado para o outro nas margens da caverna subterrânea.
Ele tinha cometido todos os erros possíveis.
Se Delilah não o matasse, Silja certamente o faria.
Maldito elixir! A princesa só deveria ter acordado depois de
atravessar o rio. E depois de todo o terror que viu estampado naqueles olhos
cor de âmbar...
Bem, seria muito difícil conquistar sua confiança agora.
Mas quando ela escapou de seus braços na floresta, Alexzander não
teve tempo para pensar. Nem tudo o que se esconde na noite de Ediri é bom,
e ele não poderia dar a chance de que outra coisa a encontrasse antes dele.
Então, seu primeiro pensamento foi...
Os lobos.
Ele era um completo idiota.
Aterrorizou a garota de tal forma que ela preferiu se jogar cachoeira
abaixo a ouvir o que ele tinha para dizer. E agora, aparentemente, estava
desaparecida também, pois ele mergulhou depois dela e estava ali
aguardando há vários minutos.
As nixies já deviam tê-la trazido.
O rapaz riu sem humor. Pelo trabalho que a princesa dera a ele, elas
talvez ainda a estivessem caçando pela água.
Balançou a cabeça tentando não pensar no que ela faria quando se
encontrassem outra vez. Ele talvez já fosse um homem morto.
Alexzander sentou-se sobre as pedras cobertas de um musgo verde
escuro e pastoso, e esperou. A entrada da cidade escondida era tranquila, e
o único som que conseguia ouvir era o da própria água roçando a barreira
mágica que a mantinha fora da caverna.
A rede dourada e luminosa impedia que o rio invadisse a cidade
subterrânea, assim como escondia a entrada para aqueles que não sabiam o
que estavam procurando.
O rapaz cruzou os braços e olhou para a outra extremidade da
caverna, como se esperasse encontrar Silja parada ali, pronta para xingá-lo.
Podia até ouvir a voz da irmã ecoando.
Uma brisa entrava pela abertura entre as pedras, forte o suficiente
para que começasse a secar suas roupas molhadas, e ele estava entretido
observando a noite que se estendia lá fora quando um jato de água saltou da
barreira.
Em um piscar de olhos, a princesa estava de joelhos sobre a terra,
tossindo uma quantidade alarmante de água.
Por quanto tempo teria lutado contra as nixies?
Ela não pareceu perceber sua presença, caindo para o lado e se
deitando de barriga para cima. As mãos sobre o peito tentavam acompanhar
sua respiração e o rapaz jogou os olhos para o alto ao perceber que seu
vestido rasgado exibia partes demais das pernas nuas.
Sem saber muito bem o que fazer em seguida, Alexzander
pigarreou.
— Eu... — começou, ainda sem olhar para ela — sinto muito,
Princesa, mas ainda preciso levá-la até a cidade.
Sua voz desapareceu no ar e, quando não obteve resposta alguma,
obrigou-se a olhar para ela.
Os lábios dela tinham um tom levemente azulado e a pele estava
pálida demais. Ela, com certeza, passara mais tempo debaixo d’água do que
deveria.
Apoiando as mãos no chão, a garota tentou se levantar, e Alexzander
percebeu pela primeira vez a quantidade de cortes que a marcavam. O rosto
dela se contorceu em uma careta de dor enquanto se erguia, e, sob a luz da
barreira, ele arregalou minimamente os olhos para a cicatriz que atravessava
seu rosto.
Seu peito pesou ao percebeu que, por culpa dele, a garota adquiriria
mais algumas naquela noite.
Ela parecia prestes a vomitar.
Alexzander se aproximou, preparando-se para começar sua longa
lista de explicações, mas ela se afastou rápido demais. Ele correu até a
princesa ao ver seus passos vacilarem, segurando-a entre os braços instantes
antes que seu corpo inconsciente chegasse ao chão.
Abrir os olhos exigiu mais esforço do que a princesa estava disposta
a admitir e, ainda assim, sua visão estava um pouco embaçada. A água que
não os tinha irritado na hora, parecia estar cobrando seu preço afinal. E o
esforço que fizera... não tinha uma parte sequer de seu corpo que não havia
se transformado em pedra. Tentou mexer os braços, mas apenas seus dedos
obedeceram.
Uma sensação macia sob seu corpo a fez perceber que estava
deitada em uma cama.
Que merda é essa?
Uma movimentação estranha lhe chamou a atenção para o outro
lado do quarto.
Pânico subiu novamente por sua garganta ao lembrar do conjurador
esperando-a na saída do rio, de como ele parecia estar em todos os lugares
ao mesmo tempo.
Anya apertou os olhos, tentando identificar onde estava e com
quem.
A figura de cabelos castanhos andava de um lado para o outro pelo
cômodo de madeira iluminado por grandes janelas de vidro, e sentindo a
atenção da princesa sobre si, virou-se e caminhou até a cama.
Um passo. Outro passo. Outro passo. Até chegar perto o suficiente
para que a princesa identificasse seu rosto.
Uma mulher.
Uma mulher muito jovem, a julgar pelas feições delicadas que
marcavam a pele marrom clara. Seus olhos azuis como lápis-lazúli estavam
semicerrados e, combinados com o maxilar quadrado, pareciam
estranhamente familiares.
A testa franzida se desfez, suavizando sua expressão.
— Ah, está acordada — disse hesitante, torcendo os dedos entre as
mãos.
Anya não reconheceu o sotaque arrastado, para onde a tinham
levado?
Tentou se mover mais uma vez e uma fisgada de dor subiu por sua
coluna. Ao abrir a boca para perguntar onde estava e quem era ela, teve a
impressão de que sua voz a tinha abandonado também.
Parecia tudo tão quieto e tranquilo e casual, que a princesa se
perguntou se teria imaginado toda a perseguição na floresta, se qualquer que
fosse a droga que lhe deram não a teriam feito alucinar.
As batidas de seu coração aceleraram e ela tentava se levantar
novamente quando a garota abriu um sorriso vacilante, pousando a mão
quente sobre o braço da princesa.
— Calma, vim ajudá-la. — A voz era suave, reconfortante. As
palavras saiam de forma lenta, como se ela estivesse conversando com uma
criança.
A sensação morna de seu toque pareceu se espalhar pelo braço de
Anya, que teve como primeiro impulso recuar-se daquela mão. Seu corpo
não a obedeceu, é claro, e a palma macia da estranha produziu algum tipo
de formigamento na princesa.
O calor enviou uma onda de conforto e calmaria, e mesmo o coração
acelerado da princesa retomou seu ritmo normal. A garota de túnica branca
desfez o contato entre elas e levou as mãos até os pés de Anya, deixando
que elas pairassem sobre seus tornozelos sem tocá-los.
A estranha fechou os olhos e o mundo pareceu prender a respiração
por um momento.
O aroma adocicado da magia chegou antes da sensação de alívio,
mas o medo não o acompanhou. Ao invés disso, o calor que subiu por seu
tornozelo trouxe a mais plena paz. A garota começou a trazer lentamente
suas mãos mais para cima e para cima e, conforme se movia, a princesa
percebia seus pés recuperando seus movimentos, seus cortes parando de
arder.
A garota era uma curandeira.
Mas ao invés de remédios, estava usando magia.
Quando os dedos da estranha pairaram sobre seu peito, ela
aproximou o rosto do ouvido de Anya e sussurrou:
— Descanse, Vossa Alteza.
E por mais que a princesa quisesse resistir, por mais que quisesse se
afastar da nova conjuradora que se colocava diante de si, um sono sem
sonhos abraçou seu corpo antes mesmo das palmas da mulher voltarem a se
mover.

Se prestasse atenção, Silja conseguiria enxergar a madeira gasta do


piso causada pelas infinitas vezes em que andara de um lado para o outro na
cozinha.
O chiar da água que esquentava para o chá se estendia há vários
minutos, mas estava preocupada demais para fazê-lo parar.
Esteve no quarto para onde a Princesa fora levada mais cedo,
aliviando as dores que ela só poderia supor que a garota sentia, e encontrá-
la acordada deixou-a ainda mais nervosa.
Não era para ser assim.
Nada tinha saído como o esperado e ela sabia que o próximo passo
seria ainda mais difícil.
Silja queria pegar o irmão pelo pescoço e enchê-lo de tapas.
Alexzander transformou um resgate simples e bem planejado em um show
de horrores.
Ele usou a alcateia para persegui-la na floresta!
Lobos, pelo amor das Sete!
Silja massageou as têmporas, irritada. Seria muito difícil convencê-
la a colaborar depois disso.
Tinha passado muito tempo encarando a pilha de roupas em seu
armário naquela manhã — que nada mais era do que um amontoado de
peças que roubara do irmão mais velho —, na esperança de vestir-se bem
para apresentar-se formalmente à Princesa.
Que estava em sua casa.
O pensamento fez a curandeira se encolher.
Estavam confiando demais no inimigo, sabia disso. Mas tudo o que
a curandeira conseguia ver era uma garota. Uma garota assustada, longe de
casa e rodeada por estranhos.
Por fim, optou por uma camisa branca, prendendo seus botões até o
colarinho e colocando-a para dentro das calças de lã batida acinzentada.
Parecia algo adequado para se colocar diante daquele tipo de autoridade.
Ela esperava que sim.
No entanto, mesmo que poucos minutos tivessem passado desde que
penteara seus cabelos, as mechas insistiam em cair sobre seus olhos.
Está na hora de cortá-los, pensou, finalmente tirando a chaleira do
fogo. E enquanto preparava o chá, ouviu batidas pesadas vindas do andar de
cima.
Suspirou e pegou a bandeja, desejando sorte a si mesma.

Já não havia dor no corpo da princesa quando acordou.


Ela se sentou entre os cobertores azuis e analisou sua situação.
Mexeu as mãos e os pés, fechando e abrindo os dedos. Esticou os braços,
balançou as pernas sobre o colchão...
Tudo parecia inteiro, no lugar.
E agora precisava dar um jeito de sair dali — onde quer que fosse.
O quarto ao seu redor era pequeno e bem iluminado, com uma
cômoda em madeira de cedro sob a janela oposta à cama na qual se
encontrava. As delicadas cortinas violeta emoldurando a janela de vidro
mostravam que seu cativeiro era a casa de alguém. Outra janela, um pouco
menor, se encontrava na parede à sua esquerda, deixando que raios de sol
formassem desenhos em uma escrivaninha coberta de livros. Um espelho de
corpo inteiro repousava no canto ao lado dela.
Puxando o fino lençol que a cobria, Anya percebeu que seu vestido
fora substituído por uma camisola de malha cor de creme.
Alguém a vestira enquanto estava desacordada.
Alguém a despira enquanto estava desacordada.
Suas bochechas arderam como brasa.
Colocando os pés sobre o chão de madeira, levantou-se devagar,
testando a força em suas pernas. Era como se nada tivesse acontecido.
Como se toda a dor que sentira ao correr pela floresta, ao chocar-se contra a
água e tudo o que veio depois não passasse de um sonho.
Nem mesmo os cortes marcavam sua pele.
Inconscientemente, levou uma das mãos ao rosto, mas o pequeno
relevo ainda estava ali. Não sabia se isso a aliviava ou entristecia.
Caminhou até a janela mais próxima, ansiosa para descobrir sua
localização — e como fugir dela — mas qualquer pensamento racional
escapou de sua mente quando olhou para além do vidro fechado.
Grama alta e do mais brilhante dos verdes cobria o chão do lugar e
raízes largas serpenteavam por entre ela, erguendo-se e avançando através
das construções da cidade. Não, as construções que pareciam ter sido
colocadas ao redor das raízes. Uma região inteira feita de casas em árvores,
sob árvores e em torno de árvores.
— Que diabos de lugar... — Suas palavras morreram.
Acompanhou o caminho que as plantas faziam, encontrando um
córrego reluzente que se desmembrava para todos os lados atravessando um
pedaço de terra cheio de jardins floridos. Havia bancos de madeira,
canteiros e até... brinquedos para crianças.
Eram tantas cores que a princesa não tinha certeza do que mais lhe
chamava a atenção, esquecendo-se por alguns segundos que precisava sair
dali. E quando começou a procurar formas para isso, sua atenção voltou-se
para o céu.
Ou, pelo menos, onde o céu deveria estar.
Algumas das árvores subiam até o alto, gigantescas, e seus galhos se
entrelaçavam uns nos outros e formavam um grande teto de vegetação à
muitos metros acima do chão.
Não havia sequer uma abertura que permitisse ao sol chegar até ali,
mas, ainda assim, cada centímetro do lugar parecia ser tocado por ele. E
Anya teve certeza de que o lugar era regido por magia. Duvidava ser apenas
coincidência que tivesse encontrado não apenas um, mas dois conjuradores
nas últimas horas.
Ou talvez dias, afinal, não sabia quanto tempo tinha ficado
desacordada.
E estava debaixo da terra.
Como em uma cova.
Ela sentiu-se claustrofóbica de repente, a urgência em sair daquele
quarto e daquela cidade atingindo-a como um soco no estômago.
Puxou as quatro gavetas da cômoda com força, buscando por
qualquer coisa que pudesse usar para substituir a camisola que estava
vestindo.
Nada.
— Claro que não teria nada — esbravejou, as palavras arranhando
sua garganta como se não falasse qualquer coisa há séculos.
Todo o ar do quarto parecia ter desaparecido, sido sugado por um
mecanismo invisível. Deixando a garota ali presa ao vácuo.
Precisava sair.
Que se dane a camisola.
Com as mãos trêmulas e úmidas pelo suor que brotava de seu corpo,
virou a tranca da janela já esperando que nada acontecesse, e suspirou de
alívio ao ouvir um tímido click. No entanto, ao tentar erguer o vidro, ele não
obedeceu.
Tentou mais uma vez com mais força, arranhando os dedos nas
pequenas farpas da madeira. Mas a janela estava emperrada como se não
fosse aberta há muito tempo.
A princesa subiu na cômoda, ficando sobre os joelhos e usando-os
para impulsionar seu corpo, enquanto puxava a estrutura para cima
novamente.
Uma fresta.
Pequena, sim. Mas era uma fresta.
Encaixando os dedos no minúsculo espaço, pôs toda a sua força na
tentativa seguinte e o vidro abriu-se de uma vez só, chocando-se com um
estrondo na parte de cima.
Anya observou o mundo lá fora, o coração batendo tão forte que ela
quase conseguia ouvi-lo. Ninguém a havia notado pois, percebeu, estava no
que parecia o segundo andar de um chalé. Não restando nenhuma
alternativa além de pular.
Não sabia para onde correria, não conhecia nenhum caminho,
tampouco para onde diabos havia sido levada. Tinha certeza apenas de que
logo alguém viria até aquele quarto. E que ela não poderia estar nele.
Reuniu toda a sua coragem e tentou sentar-se no portal para passar
as pernas para o lado de fora, mas algo a impediu. Talvez estivesse sob
efeito da droga recebida naquela noite, pois a sensação era de que a janela
permanecia fechada. Repetiu o movimento, chocando-se mais uma vez com
o bloqueio invisível.
Aproximou o rosto da abertura e inspirou profundamente.
Torceu o nariz para o odor enjoativo.
Raiva transbordou de seu peito e ela gritou com uma força
descontrolada enquanto socava o vazio. Uma, duas, três vezes, mas nada
além de suas mãos repentinamente doloridas reagiu. Era como bater em
uma parede sólida.
A princesa não era nada contra magia.
Desceu da cômoda, os nós dos dedos ardendo pelo impacto, e foi até
a escrivaninha.
Em um novo e desesperado acesso de fúria, Anya pegou um livro de
capa vermelha e atirou-o contra a parede da porta. Depois outro. E mais
outro. Cada arremesso acompanhado de um grito de puro ódio.
O quinto livro se chocava contra a madeira no instante em que a
maçaneta começou a girar.

— Obrigada por isso, Alexzander — murmurou Silja, parada do


lado de fora do quarto que parecia estar sendo colocado abaixo pela
princesa.
Objetos se chocavam contra a porta e a garota gritava com muita
raiva.
A curandeira olhou para a bandeja que trazia, fazendo uma careta ao
segurá-la com apenas uma das mãos. Com a outra, começou a abrir a porta
lentamente, preparada para usá-la como escudo caso algo voasse contra seu
rosto.
Deveria ter feito chá de camomila e não de maçã.
Estremeceu ao colocar apenas a cabeça para dentro do quarto. A
Princesa era um retrato de fúria e descontrole, com os cachos grossos e
negros colados ao rosto úmido.
A garota chorava.
Lágrimas de raiva.
Que as Sete me ajudem, pensou.
Ela segurava uma pilha de livros nas mãos — os livros de
Alexzander, bem feito —, e tantos outros estavam espalhados pelo chão do
quarto.
Respirando fundo, Silja entrou.
Com as duas mãos sob a bandeja, rezou para que isso disfarçasse os
dedos que tremiam enquanto reproduzia a melhor versão da reverência que
ensaiara tantas vezes na frente do espelho.
— Vossa Alteza. — Suas palavras ficaram suspensas no ar, sem
qualquer resposta.
Os olhos da princesa transitaram entre Silja e a porta aberta atrás
dela, e a curandeira quase conseguia vê-la calculando quais as chances de
conseguir escapar.
Nenhuma. Mas, ainda assim, a curandeira fechou-a delicadamente
com o quadril.
— Quem é você? — questionou a garota enquanto seu peito subia e
descia em uma velocidade alarmante.
Silja abaixou os olhos e andou até a cômoda para largar a bandeja,
contando apenas com a sorte para não ser atacada por um livro — e não
deixou de notar que os mais pesados ainda não haviam sido jogados
— Silja, Vossa Alteza — tentou manter a voz despreocupada —, me
chamo Silja.
Precisou controlar o impulso de estender a mão para cumprimentá-
la. Não estava muito acostumada em como se comportar diante de figuras
de autoridade. Ou qualquer coisa perto disso.
Tampouco sabia se deveria simplesmente começar a falar e explicar
a confusão toda ou se deixaria que a garota fizesse suas perguntas primeiro.
E tinha de decidir logo, pois o silêncio não trabalhava a seu favor.
— Princesa... — Começar pelo básico, decidiu escolhendo suas
palavras. — Peço milhares de perdões em meu nome e de meu irmão.
Aquele comportamento na floresta foi...
— Seu irmão? — esbravejou ela. — Está me dizendo aquele
homem... que vocês...
— Estávamos tentando ajudá-la, Princesa. Mas talvez as coisas
tenham... saído do controle. — Claramente.
A curandeira se esforçou para manter a calma, sua postura diante
daquela conversa era essencial para ditar o rumo da missão.
— Ajudar?! — Uma risada seca escapou dos lábios da princesa. —
Que tipo de criaturas são vocês por considerarem explosões ao castelo
qualquer tipo de ajuda?
— Explo... O quê? Não! — Silja balançou as mãos. Ela se esforçou
para ignorar o tom de nojo da princesa, assim como aquela outra palavra.
Criaturas. — Alexzander não atacou o castelo, ele estava lá para resgatar
você!
A princesa piscou.
De novo e de novo.
E quando a curandeira começou a acreditar que as coisas se
desenrolariam de forma tranquila, a garota voltou a falar:
— Se não vocês, quem atacou o castelo, conjuradora? — grunhiu
ela.
Não foi o título que fez Silja se encolher. Foi a forma como a
princesa o cuspiu: como se ela fosse menos humana por causa dele.
Silja mordeu o lábio e suspirou, sentando-se no chão em frente a
cômoda.
— Príncipe Benjamin, Vossa Alteza — respondeu, hesitante.
A princesa bufou, parecendo ter ouvido a piada mais engraçada de
toda a sua vida.
— Vocês não conseguiram pensar em nenhuma desculpa melhor do
que essa? — Balançou a cabeça incrédula.
— Não compreendo, Princesa.
— Você está mesmo me dizendo que me sequestraram, me caçaram
com lobos, quase me mataram afogada e me trouxeram para essa... cova
arborizada... e pretendem colocar a culpa em Benjamin? Meu primo
Benjamin? O homem que sonhou em herdar aquele castelo durante sua vida
inteira, explodindo-o como se não fosse nada?
Silja não soube o que responder.
Colocando daquela forma, soava absurdo até mesmo para ela.
— São ainda mais loucos do que eu imaginava — a princesa
concluiu.
— Os lobos e as nixies foram um erro. — Tentou explicar. — O
elixir deveria mantê-la desacordada até você chegar aqui e...
— Deveria? — ela retrucou — E por que eu deveria chegar até
aqui?
A princesa segurou a pilha de livros com mais força contra si, e a
curandeira encolheu-se minimamente ao imaginar que eles seriam jogados
contra ela.
— Porque o palácio não é mais seguro para você, Princesa. E já não
é há bastante tempo.
— Não existe lugar mais seguro do que o castelo. — Algo no tom
da garota dizia que ela não acreditava.
— Talvez fosse antes de Benjamin descobrir sobre sua linhagem,
Princesa. Não mais.
A princesa recebeu cada palavra como se fosse um tapa, dando
pequenos passos para trás.
— Minha... linhagem?
A curandeira apenas piscou, sem ter certeza de como continuar.
Verena tinha dito que...
Mas o rosto da princesa provava que ela não fazia ideia do que Silja
estava lhe contando.
Pelas Sete, quem achou que seria uma boa ideia ela ter aquela
conversa com a garota?
— Benjamin estava naquele castelo para matá-la, Princesa. Você
sabe o que ele faz com qualquer ameaça à Coroa que ele tanto almeja.
— Eu não sou uma ameaça.
A curandeira escorou a testa sobre os joelhos, fechando os olhos
enquanto media as palavras seguintes.
— Sim, você é. — Ela suspirou alto. — E ele está planejando
eliminá-la desde que descobriu que você era uma opção viável para o trono,
pois sabe que o Conselho jamais votaria em favor dele.
— Apenas herdeiros de sangue podem ser votados — sussurrou a
princesa — O que você está insinuando é simplesmente... impossível.
— Tem certeza? — insistiu erguendo os olhos. — Olhe-se no
espelho e diga se não é sua mãe quem a encara de volta.
A garota não o fez. Ela era uma cópia perfeita da rainha e Silja
simplesmente não conseguia entender como aquela mentira se sustentara
por tanto tempo.
Como vinte e três anos tinham se passado sem que ninguém
questionasse a semelhança entre elas, tampouco sussurrasse sobre uma
gestação da rainha sendo mantida em segredo.
— Você é filha legítima do Grande Rei, Princesa. E da Rainha
Elysia também — Silja disse por fim.
A princesa balançou a cabeça em negação, ainda que não fizesse
qualquer menção de se olhar no espelho como a curandeira sugeriu.
— Foi por isso que ele pediu aquela reunião com o rei —
prosseguiu. — Porque queria garantir que isso não iria interferir em sua
coroação. Garantir que você não estivesse mais lá como uma possível
ameaça. Ele planejou o encontro, as bombas, e seu objetivo era chegar até
você.
Deixando os livros caírem diante de si, a princesa curvou o corpo.
Ela escorou as mãos sobre os joelhos, as mechas negras tampando qualquer
vislumbre de seu rosto.
— Como sabe de tudo isso? — Foi a única coisa que a princesa
disse.
Silja estava com raiva por ter sido colocada naquela posição. Por ter
que lidar com o estrago que Alexzander causara e ser aquela a contar tudo à
princesa. Mas ao ver a garota naquele estado... ao sentir uma repentina
vontade de se levantar e ir até ela confortá-la... soube que não havia mais
ninguém adequado para aquele trabalho.
Seu irmão apenas pioraria tudo e Delilah não possuía jeito algum
para lidar com... pessoas.
— Temos pessoas de confiança trabalhando no castelo.
Conjuradores, como você chamou. Descobrimos a verdade meses atrás e,
quando soubemos que Benjamin estaria no palácio, tivemos certeza de não
havia tempo a perder. — Ela torceu os dedos entre as próprias mãos. —
Sinto muito pelo que a fizemos passar, mas nós tivemos de criar um plano
às pressas.
Dentre todas as coisas que ela esperava ter como resposta, as
palavras que saíram da princesa foram as últimas em que teria pensado.
— Você continua repetindo “nós” o tempo inteiro. Quantos mais de
vocês estão soltos por aí?
Silja sustentou seu olhar por alguns segundos, ponderando como dar
aquela última informação.
Ela se levantou em silêncio e pousou a mão sobre a barreira que
protegia a janela. Uma fraca luz dourada tremeluziu conforme a barreira de
proteção caía e ela ouviu a garota arfar.
— Bem-vinda à Havenmill, Princesa. O abrigo dos conjuradores há
quatrocentos anos.
Uma brisa suave entrava pela janela agora sem proteção. Silja não saberia
dizer quanto tempo tinha se passado de fato, mas o cansaço que sentia
naquele momento poderia ser resultado de horas e horas.
A princesa estava sentada na beirada da cama, as mãos pousadas
sobre o colo como se não tivesse forças o suficiente para erguê-las dali.
Era muita informação. E Silja podia ver que a garota estava se
esforçando para encontrar falhas, formas de lhe provar que nada daquilo
poderia ser verdade, mas os ombros curvados e os olhos vazios contavam o
suficiente.
As peças se encaixavam dentro de sua cabeça mais do que ela
gostaria.
A Coroa era definida por sangue, mas a sucessão do trono nada
tinha a ver com ordem de nascimento: era o Conselho quem votava dentre
os filhos do Rei. E Benjamin sabia que nunca seria o escolhido, então tirou
todos aqueles que poderiam estar em seu caminho.
Mas a regência de seu tio pareceu abrir uma brecha nas regras do
jogo. Oliver tinha sido eleito. Como governante temporário, claro, mas
nenhuma lei havia sido criada para tal situação. Tornando sua filha uma
opção válida para o cargo.
E tivera medo pela vida de sua criança.
O rei mentiu sobre a legitimidade de seu sangue por todos aqueles
anos, escondeu-a do mundo atrás de uma história inventada sobre a melhor
amiga da rainha que perdera a vida ao dar à luz. O povo via Oliver como
um modelo de bondade e altruísmo, que cedeu seu palácio e seu nome para
uma criança que não tinha ninguém.
Covarde.
Mas ao mesmo tempo, Silja entendia.
Benjamin assassinara o próprio irmão para subir ao trono, o que não
faria com a sobrinha?
Faria exatamente o que tentou noite passada.
A curandeira jamais entenderia aquelas convenções da realeza. Não
lhe fazia sentido algum que a Coroa fosse negada à princesa pela suposta
impropriedade de seu sangue, mas que Benjamin estivesse livre para
governar banhado por este mesmo sangue que valia tanto para a Corte.
Eram todos idiotas.
Quando as barreiras de proteção foram derrubadas do quarto, Silja
não tentou impedir que a princesa fosse até as janelas. Afastou-se enquanto
ela colocava a cabeça para fora, olhando ao redor e absorvendo no seu
próprio tempo todas aquelas informações.
Para o inferno com a ideia de mantê-la presa lá dentro. Já haviam
tirado muito dela, e a curandeira não queria ser mais uma a fazer isso.
Prometeu dar-lhe alguma privacidade e deixou a porta aberta ao
descer as escadas. Uma promessa e, ao mesmo tempo, um pedido de
confiança. Eles precisavam disso, afinal. E quando retornou minutos mais
tarde trazendo um sanduíche, observou a jovem remexer entre o pão e o
queijo — talvez buscando algum sinal de que a curandeira tentava
envenená-la.
A princesa ignorou a comida e cruzou os braços com força diante de
si, como se eles fossem a única coisa que ainda a mantinha inteira.
— Você disse que ainda estamos em Duhn. — Não foi uma
pergunta, mas Silja confirmou com a cabeça mesmo assim.
— Não há registro algum desse lugar nos mapas.
Infinitos comentários debochados passaram pela cabeça da
curandeira, e ela mandou-os para bem longe antes que falasse as coisas
erradas.
No entanto, claro que um esconderijo subterrâneo abarrotado de
traidores da Coroa não seria mostrado em lugar algum.
— Quando a magia foi proibida entre os humanos — começou,
estremecendo ao pensar o que a lei causara em sua família —, todas as
criaturas mágicas foram banidas para a Floresta de Ediri.
— Sim, quando as bruxas assassinaram o Rei Tamal— interrompeu
a princesa.
— Bom, não foi exatamente assim que as coisas aconteceram
naquela noite — rebateu —, mas essa história não é minha para contar.
Os detalhes do ataque que quase dizimou a magia da Luz
pertenciam à apenas duas pessoas, mas todos ali sabiam o quanto aquela
noite custou. Viviam sob suas consequências mesmo depois de tanto tempo.
A curandeira prosseguiu com sua explicação.
— O que eu quero dizer é que aquelas criaturas — Aquela maldita
palavra outra vez. — não eram as únicas com magia, você sabe. Humanos
também a possuíam. E sob a ordem de serem considerados traidores, foram
caçados como animais. Perseguidos, torturados. Não haveria perdão para
eles, assim como não havia qualquer lugar para onde pudessem ir.
Ela atravessou o quarto, sentando-se na cama ao lado da princesa. A
garota se encolheu quase imperceptivelmente, e Silja achou melhor não
avançar mais do que aquilo.
— Então, surgiu esse lugar — ela gesticulou à sua volta —,
Havenmill tem sido o refúgio para conjuradores há séculos. Estamos no
subsolo do reino e as entradas para a cidade são protegidas por magia. E
pelas nixies. — Ela tentou fazer piada, mas a princesa não disse nada. —
Aqueles que estavam cansados de tentar provar para a Coroa que não havia
nada de errado com eles vieram para cá. Recomeçaram suas vidas, suas
famílias. Muitos de nós nasceram aqui e nunca viram a cor verdadeira dos
céus.
Outros, como ela, acabaram ali porque não tinham ninguém lá fora
que ainda valesse à pena.
Quase ninguém, pelo menos.
— E por que me trouxeram para cá? — a garota questionou.
— Porque não somos os monstros que você acha que somos e
quando soubemos o que Benjamin pretendia fazer com você, sabíamos que
ninguém mais seria capaz de ajudar. — Uma meia verdade.
— Depois de tudo o que a magia fez com meus ancestrais, e tudo o
que fizeram comigo noite passada, espera que eu acredite nisso? — A
princesa arrastou-se um pouquinho mais para longe.
Silja fechou os olhos e pendeu a cabeça para trás, suspirando.
— Entendo seu receio, Vossa Alteza. E acredite, não ficarei um
único dia sem punir Alexzander pelo que ele fez com você. — Ela
massageou as têmporas e depois voltou a abrir os olhos, encarando a
princesa. — Sei que será difícil convencê-la de que estamos do mesmo
lado, então gostaria que me desse uma chance de te mostrar.
— Como assim?
Silja levantou-se da cama e foi até a porta.
— Quero te mostrar a cidade, te mostrar as pessoas. Provar que a
magia não é tão ruim quanto você imaginava. E depois...
Sua voz sumiu.
Depois precisavam dar um jeito de convencer o resto do reino das
mesmas coisas. Tinham começado pela princesa pois ela era querida entre o
povo, sua opinião poderia mudar tudo.
E se ela chegasse ao trono...
Bom, havia uma esperança de que Havenmill pudesse voltar a ver a
luz direta do sol.
— E depois? — repetiu a princesa.
Silja pigarreou.
— Não temos muita certeza, não tivemos tempo de pensar nessa
parte.
— Por que eles esconderiam isso de mim? — a princesa sussurrou, e
a curandeira não tinha certeza se a pergunta estava realmente sendo feita a
ela. — Meus pais, quero dizer. Entendo o risco de o Conselho ter
conhecimento sobre essa brecha. Mas mentir para mim? Me deixar
acreditar durante vinte e três anos que tudo o que eu recebera deles tinha
sido pura sorte? Apenas uma... boa ação?
— Princesa, eu... — Não sabia o que dizer. Não quando mágoa
tomava cada centímetro de seu rosto. — Não sei — disse por fim. — Pensei
que seus pais tivessem lhe contado. Não deveria ser de mim, uma completa
estranha, que você ouviria essas palavras. Sinto muito.
— Onde eles estão? — perguntou finalmente, a voz se elevando um
pouco.
Droga.
— No palácio, Princesa.
— Está me dizendo — cada palavra saía cortante como uma navalha
— que Benjamin invadiu o castelo para eliminar a concorrência à Coroa e
vocês deixaram meus pais para trás? Com ele?
— Não havia como tirar todos vocês de lá sem chamar atenção,
Princesa. — E isso a atormentou incessantemente nos últimos dias. Apesar
de tudo, Silja não odiava o rei. Suas ações eram consequência de séculos de
mentiras. — Mas eles não estão sozinhos, prometo isso a você. Como eu
disse, temos pessoas de confiança no palácio para protegê-los.
A garota bufou e a curandeira sabia que era hora de deixá-la
sozinha. De permitir que ela pensasse sobre todas as informações que foram
jogadas nela em paz.
Então, fez seu caminhou para fora do quarto, dando um último olhar
para a princesa ao dizer:
— As janelas já não a impedem de fugir, Princesa, e a porta também
ficará aberta para você. Está livre para ir embora, se quiser. — Sua voz não
passava de um sussurro quando completou: — Mas eu realmente espero que
não o faça.
E saiu.

Anya encarava a porta do quarto havia uma hora.


A curandeira, Silja, voltara minutos depois de encerrar aquela
conversa bizarra trazendo uma pilha de roupas. Suas roupas, a princesa
percebeu.
Tinham realmente pensado em tudo, não é mesmo?
Observou em silêncio a garota de cabelos escuros e na altura dos
ombros. Não tinha mais de vinte anos, apesar de todas as habilidades que
possuía.
Ela estremeceu.
Como poderia confiar nela?
Depois de toda aquela chuva de teorias insanas sobre seu primo,
sobre a própria princesa...
A curandeira parecia dizer a verdade. Ou, ao menos, acreditava
naquilo que dizia.
O que eram coisas completamente diferentes.
Como seria possível que ela fosse filha legítima?
Pensou em sua mãe, sempre tão gentil, e em todos os seus abraços e
carinhos que ela não se achava digna de receber. Teria sido capaz de
esconder algo tão importante dela?
E Oliver? Que sempre a olhara com o queixo erguido, que gastava
tanta energia apontando suas falhas... Ela sempre acreditou que ele o fazia
por não ser seu pai de verdade. Que por mais que ele tentasse vê-la como
igual, o sangue ainda falava mais alto.
A realeza era assim.
Mas e se fosse verdade? Se Anya realmente fosse sua filha... por que
a trataria daquele jeito?
Não, isso era absurdo.
Claro que era.
No entanto, por que parecia que não? Por que estava se controlando
para não correr até o espelho e procurar pela mãe sabendo que a encontraria
ali?
Pensou na vez em que perguntou à Elysia por que ela não poderia
ser rainha. Era pequena e brincava entre os vestidos da mãe, enrolando-se
nas sedas coloridas que acariciavam sua pele. E então, a mulher cutucou seu
nariz e disse: “porque é um trabalho perigoso demais”.
E agora, anos depois, percebeu que a rainha não usara sua adoção
como desculpa. Não dissera nada sobre ser o trabalho de outra pessoa.
Sobre ser algo que ela não poderia fazer.
Era um trabalho perigoso.
Perigoso porque Benjamin o queria para si, e isso significava que
qualquer um no caminho era uma ameaça. Se ela fosse filha legítima, o
Conselho sempre votaria a favor dela. O povo não apenas temia seu primo,
o povo a amava. E os conselheiros tinham o dever de fazer o melhor para o
reino.
Será que estava dando crédito demais para as palavras de uma
estranha? Silja a tinha curado e as barreiras nas janelas não existiam mais.
Anya encarou a porta aberta que parecia convidá-la a sair correndo.
Provocando-a como se dissesse “e para onde você vai?”.
Está livre para ir embora, se quiser, a curandeira dissera. Mas ela
nem sabia em que parte do reino estava... muito menos como poderia deixá-
la.
— Livre para ir, claro — resmungou, levantando-se da cama e
andando em direção às roupas largadas sobre a cômoda.
Encarou o mundo subterrâneo que espreitava além da janela,
analisando suas possibilidades.
Ela não sabia onde estava e, tampouco, como ir embora dali. Tinha
de voltar para o palácio, tinha de saber como estavam seus pais, mas era
importante que fosse inteligente.
Se ouvisse o que aquelas pessoas tinham para lhe dizer, se eles a
vissem como uma aliada, acabariam cedo ou tarde mostrando como sair
dali. Não precisava confiar neles, precisava que eles confiassem nela.
E a curandeira disse que havia gente no palácio protegendo seus
pais. Ela se certificaria de que isso fosse verdade.
Encarou a pilha de roupas.
Havia três de seus vestidos mais simples e versáteis, dois pares de
sapato e... um uniforme de treino.
As pernas de Anya cederam ao encará-las.
E se a curandeira estivesse certa?
E se toda a sua vida fosse moldada em torno de uma mentira
contada por seus próprios pais?
Não queria admitir que as peças, aos poucos, se encaixavam em sua
cabeça. Não queria admitir a ideia de que, se tudo aquilo fosse verdade,
seus pais estavam no castelo nas mãos de um monstro e que ela os tinha
deixado para trás.
Encarou seu uniforme de treino e o puxou para si, os olhos
enchendo-se de lágrimas. Tentou não pensar na última vez que o usara, nem
em quem a acompanhava. A voz de seu melhor amigo ecoou pelo quarto
enquanto ele dizia que se veriam em alguns dias.
Ela deveria estar em casa. Deveria estar ocupada procurando
desculpas para ir até a ala Leste no meio da noite.
Respirando fundo, Anya se levantou.
Já interpretara muitos papeis na sua vida. Já tinha sido a filha
obediente, a princesa perfeita, o exemplo do povo.
Agora seria aliada dos conjuradores.
Apenas mais um papel.
Com sorte, o último.
E se isso a levasse até o lado de fora... ela o faria de bom grado.
Substituiu a camisola pelo vestido cor de avelã perdido entre a pilha
e caminhou até o espelho.
Seus cabelos eram uma confusão de nós e cachos, mas ao menos
estavam limpos. Torceu o nariz ao pensar que alguém a havia lavado. Ela os
trançou com rapidez e prendeu-os em um coque no alto de sua cabeça.
Encarando seu reflexo, passou os dedos pelo traço fino agora
completamente exposto que atravessava seu rosto, e não se permitiu
estremecer.
Não mais.
Aquela cicatriz nunca mais seria vista como uma marca de suas
fraquezas. Seria um lembrete de que ela era uma sobrevivente. De que ela
fazia o que era necessário. E seria seu combustível para não deixar que lhe
tomassem o controle outra vez.
Se queriam uma Princesa, ela lhes daria uma.
Se a Coroa lhe pertencia, ela a tomaria para si.
E foi pensando em seus pais, em Conan e em Farah, que ela desceu
as escadas sem qualquer intenção de correr.
Quando ouviu os passos da princesa vindo em direção às escadas,
Silja apressou-se em abrir o armário refrigerador e fingir estar distraída
procurando algo por lá.
Fingiu não ter passado os últimos quarenta minutos escorada no
balcão de madeira ao lado da pia, amaldiçoando a si mesma pelas últimas
palavras que dissera à garota.
Está livre para ir embora se quiser.
Estúpida. Que ideia completamente estúpida.
O que aconteceria caso a garota estivesse descendo para dizer-lhe
que faria isso? Não poderia simplesmente dizer “Bom, então, quando eu
disse que você tinha uma escolha, na verdade eu falava da outra opção.”.
Ouviu o piso da cozinha ranger assim que a princesa chegou ao
primeiro andar, e olhou por cima do ombro antes de se virar.
— Vossa Alteza. — Ela franziu a testa, como se não esperasse vê-la
tão rápido.
Fingida.
— Anya — a princesa corrigiu, erguendo o canto esquerdo de seu
sorriso. — Se vamos fazer isso, guarde os pronomes pomposos para outro
momento.
Silja apenas piscou.
Uma mudança brusca de comportamento.
Analisou a garota à sua frente. Ombros para trás, cabelos arrumados,
o queixo levemente erguido. Um sorriso preguiçoso dançava nos lábios
marcados por aquela famosa cicatriz.
Mas apesar das palavras e da postura, os olhos a entregavam. O
âmbar líquido reluzia inquieto.
Ela não estava convencida. Não estava convencida e daria à Silja
muito mais trabalho do que tentava transparecer.
— Certo — abaixou a cabeça em uma reverência —, Anya. É uma
honra recebê-la em nossa casa. Mesmo que, você sabe, não tenha
exatamente escolhido nossa casa e...
Silja deixou sua voz morrer.
Estava tagarelando mais uma vez.
O nervosismo na boca de seu estômago era irritante, e jurou a si
mesma que era a última vez que sequestraria uma princesa e a levaria para
sua casa.
Princesa esta que agora abria um sorriso completo, daqueles que
iluminam uma manhã cinzenta.
Pelas Sete, como era bonita.
— Não é uma decisão definitiva. — Anya encarou-a nos olhos. — E
eu não confio em você. Mas vocês me trouxeram para seu esconderijo.
Expuseram-se para mim e, em consequência, para o Rei, o paradeiro de
uma legião de conjuradores. Se para voltar para casa e ajudar meus pais,
tivermos de trabalhar juntos... Estou lhe dando uma chance de me mostrar
porque eu não deveria entregá-los à Coroa.
— Bom, nós salvamos sua vida... — A curandeira riu um pouco sem
jeito.
— Também não decidi ainda se acredito nisso. — A garota ainda
sustentava aquele sorriso, apesar do olhar semicerrado. — No entanto, se
apenas metade do que me contou for verdade, reconheço que pisar no
castelo nesse momento é arriscado.
Silja assentiu.
Pelo menos, ela estava sendo sincera. E era verdade, haviam trazido
a filha do Rei para o esconderijo dos maiores inimigos da Coroa.
Mesmo que tudo o que eles mais desejassem fosse paz.
— Uma chance — a curandeira repetiu.
Ela faria valer à pena.

Ameaçá-los tinha sido uma jogada arriscada, Anya sabia disso. Mas
conforme descia as escadas, percebeu como a curandeira se esforçava em
parecer despreocupada.
Por algum motivo que ela ainda não descobrira, precisavam dela ali.
E não teriam feito todo aquele esforço para trazê-la e curá-la se tivessem a
intenção de machucá-la outra vez.
Ao menos, era o que esperava.
Ela certificou-se de estampar um sorriso tímido quando pisou na
varanda. Uma lufada morna atingiu sua pele trazendo um aroma forte de
cascas e cedro, e a primeira coisa que viu foi...
Verde.
Muito verde.
O gramado cintilava pela luz do sol e as raízes se entrelaçavam nas
paredes das centenas de casas de madeira. Galhos cheios de folhas
serpenteavam sobre os telhados, e alguns até floresciam.
Havenmill era uma floresta subterrânea. Imponentes árvores
erguiam-se e se enrolavam umas nas outras, formando arcos sobre as
estreitas estradinhas de terra que se abriam para todos os lados.
A primavera também chegara lá embaixo. Um mar de flores
coloridas que Anya nem ao menos conhecia traçava desenhos pela grama,
dançando preguiçosamente ao som da melodia do vento.
A curandeira indicou com o ombro um caminho de terra que seguia
pela esquerda do chalé e Anya não protestou.
Pássaros voavam baixo e pousavam na grama, ciscando e saltitando
pelo gramado alto, parecendo pouco se importarem com a proximidade que
mantinham com os humanos. Estavam acostumados com o contato,
percebeu. Não viam motivo para temer.
Crianças corriam e saltavam sobre as raízes, segurando-se umas nas
outras e formando uma longa corrente. Riam, gritavam e cantavam as
mesmas canções que ela há anos não ouvia.
E foi um choque para a princesa perceber que, até aquele momento,
ela nunca havia dado um rosto para os conjuradores.
Nunca os tinha imaginado como pessoas, como famílias, crianças
que gargalhavam e sabiam as mesmas melodias infantis que ela.
— Não conheço você — disse uma garotinha de rosto coberto de
terra nos limites da estrada em que as duas seguiam.
Tinha parado de correr e, quando o fez, todas as outras a
acompanharam. Ficaram ali, encarando a princesa com olhares
desconfiados.
E antes que Anya pudesse dizer qualquer coisa, Silja abaixou-se,
ficando na mesma altura delas.
— Sofia, essa aqui é a Anya. Anya, essa aqui é a Sofia. — A
curandeira apontou de uma para a outra, e então deu de ombros. — Agora
vocês se conhecem.
— E o que ela faz aqui? — questionou mais uma vez, seus pequenos
olhinhos castanhos passando por cada pedaço da princesa.
— Está apenas conhecendo Havenmill. — Silja abaixou sua voz até
que não passasse de um sussurro quando continuou: — Você sabia que ela é
uma princesa?
Sofia arregalou tanto os olhos que os cílios poderiam tocar sua testa.
— Uma princesa de verdade? Como nas histórias?
— Aham! — A curandeira acenou. — Mas, ao contrário dos livros,
Anya não conhecia uma cidade encantada, por isso eu a trouxe pra cá.
Cidade encantada.
Um jeito curioso de se referir à Havenmill, considerando tudo o que
ela abrigava, mas foi o suficiente para que a criança abrisse um sorriso.
— É um prazer conhecê-la, Princesa Anya. — Ela puxou as duas
pontas do vestido azul que usava e saiu correndo outra vez, antes que a
princesa pudesse dizer... bom, qualquer coisa.
Sofia não a conhecia.
Não sabia quem ela era, e tampouco parecia saber que princesas
existiam fora dos livros. A possibilidade foi um choque.
— As coisas são um pouco diferentes aqui embaixo — Silja
explicou, percebendo sua reação.
— Diferentes? A menina nem sabia que princesas existiam —
resmungou.
— Parecia a coisa certa a se fazer. Não dar detalhes demais sobre o
mundo, quero dizer.
— As pessoas ao menos sabem que há um Rei?
— Claro que sabem. — A curandeira franziu o cenho, então voltou
a andar pela estrada de terra. — Os adultos, pelo menos. Todos sabem que
existe um mundo lá fora e que ele não é bom com pessoas como nós. Então,
falar sobre ele com as crianças é algo que fica pra depois, quando já são
grandes o suficiente para entender.
Pessoas como nós.
Silja falava como se não estivessem quebrando leis, traindo seu
reino e seu Rei.
— Vocês perderam a fé — ela constatou. Mais para si mesma do que
para a garota ao seu lado.
A curandeira estacou seus passos mais uma vez.
— Nós perdemos...? O quê?
— Vocês não acreditam mais. — Ela ajeitou as costas
desconfortável — Lá fora, as pessoas acreditam na Coroa. Não no Rei ou
nos conselheiros, mas na instituição. Se agirmos dentro de suas regras,
nunca nos falta nada. Talvez este seja o problema aqui.
— A Coroa falhou com a gente. — a garota rebateu — Não me leve
a mal, mas como eu poderia ter fé em algo que diz que minha existência é
errada?
— Não é assim que...
— Lá fora eu só conheci a dor. Acolhimento eu só encontrei aqui
embaixo.
Um mundo completamente diferente se escondia no subsolo de
Duhn. Alguma versão deturpada da história que ela já conhecia. E não
conseguia deixar de pensar que aquelas pessoas ali, isoladas do resto do
mundo, eram consequência da falta de todos os fatos.
Não era culpa deles.
Então, perguntou:
— E existe algo em que vocês acreditam?
Silja riu de forma seca e voltou a andar.
— Você não faz ideia.
Anya queria fazer mais perguntas, mas temia que elas soassem
interessadas demais. Não queria que a curandeira pensasse que ela estava
cedendo.
Porque não estava.
Eles precisariam de mais do que algumas crianças para convencê-la
de que havia algo bom ali.
Elas seguiram pela estrada ladeada por casinhas coloridas.
Suas varandas exibiam placas e informações sobre produtos: o
comércio de Havenmill. Sua estrutura lembrava um pouco a Aldeia dos
Pescadores, um vilarejo que ficava do outro lado do rio — no qual o rei
nunca havia permitido que a princesa pisasse. Talvez a cidade subterrânea
ficasse próxima daquelas terras...
Havia casas empoleiradas em galhos grossos de árvores, em todos
os tamanhos possíveis.
Um regato enevoado fazia seu caminho por entre a vegetação, sem
se importar em cruzar jardins, estradas ou até mesmo desaparecer sob
algumas residências.
Silja lançou-lhe um olhar travesso.
— Vai precisar erguer seu vestido. — Ela piscou, tirando os
mocassim de veludo e dando alguns passos para trás.
— Você não está sugerindo que eu...
Mas a curandeira já corria em direção à água, saltando segundos
antes de tocar a borda e deixando um gritinho animado escapar de seus
lábios. Ela pousou graciosamente do outro lado, abrindo um sorriso ao
dizer:
— Vem!
Anya encarou-a sem acreditar.
— De forma alguma.
— Ah, Princesa... Você prometeu que iria tentar.
Inacreditável.
— Você é maluca.
— Temos de seguir por este caminho — Silja insistiu — Você só
precisa pular, não é tão difícil quanto parece.
A princesa bufou.
Por todos os deuses, aquilo precisava valer à pena.
Ela encarou o regato com, pelo menos, um metro de largura, e
depois passou os olhos para seu vestido que quase tocava o chão. Puxou a
barra de sua saia e correu, antes que tivesse tempo para mudar de ideia.
Anya saltou quando seus pés já quase tocavam a água, garantindo
que sua aterrisagem acontecesse sobre a grama. Alguns fios escaparam de
sua trança, fazendo cócegas em suas bochechas que esquentavam de
constrangimento.
Silja a aguardava com um sorriso largo. A princesa o ignorou.
— Da próxima vez — a curandeira cochichou —, eu levo você pela
ponte.
Mais uma vez: inacreditável.
Então, ela percebeu o burburinho. As pessoas que a olhavam de
longe em suas varandas e lojas.
Havia reconhecimento em seus rostos. Reconhecimento e... medo.
Medo dela.
— Ninguém parece saber que vocês me trariam para cá.
— Não — Silja confirmou, apertando os próprios dedos enquanto
passava por cima de uma raiz alta demais. — As pessoas aqui se envolvem
o mínimo possível com as questões lá de fora. Temos o nosso próprio
Conselho, que é o mais perto de uma figura de autoridade que possuímos, e
eles confiam que nosso conselho seja capaz de resolver qualquer problema
envolvendo o que acontece além dos limites de Havenmill.
A garota estendeu-lhe a mão, para ajudá-la a cruzar a raiz também.
Após alguns segundos, ela aceitou. A raiz era alta e Anya precisou sentar-se
em cima dela para passar as pernas para o outro lado.
— Vocês nunca saem daqui?
— Não. Bom, alguns saem quando precisam de algo que não
conseguimos cultivar aqui embaixo. Não temos acesso a certos alimentos
ou remédios, e curandeiros só podem ajudar até certo ponto. — Ela deu de
ombros.
— Como assim cultivar?
— Você vai ver. É para onde estamos indo agora.
Anya resistiu ao impulso de revirar os olhos.
Para alguém que estava tentando convencê-la de algo, a curandeira
fazia suspense demais.
Elas caminharam em silêncio por mais algum tempo, enquanto a
princesa absorvia cada pedaço daquele lugar.
Era como ir parar em um universo paralelo. Eles tinham seu próprio
mundo, suas próprias regras e até seu próprio... governo. Mesmo que não
houvesse magia, aquilo por si só já era uma espécie de traição.
Anya pegou-se pensando no que faria quando finalmente saísse de
Havenmill. Ela os entregaria para o pai? Duvidava que ele fosse
compreensivo com o assunto. No entanto, a princesa não sabia se
conseguiria conviver consigo mesma se desse aquela informação ao Rei e
ele ordenasse que o lugar fosse invadido. Eram conjuradores, sim, mas
havia crianças ali. Pais, mães, famílias inteiras.
Talvez fosse melhor fazer algum tipo de acordo com eles. Pedir que
nunca deixassem a cidade em troca de seu silêncio sobre o assunto.
Se é que era capaz de esconder algo daquela magnitude.
— Então, apenas o seu Conselho sabia que eu seria trazia para cá?
— Anya questionou.
— É — a curandeira concordou. — O Conselho e eu.
— Você não faz parte dele?
Silja negou com a cabeça.
— Sou nova demais, dizem. — Seu tom dizia que ela achava isso
ridículo. — Mas como Alexzander faz parte, acabo sabendo de tudo o que
acontece por lá.
A menção ao nome do rapaz fez um calafrio percorrer seu corpo.
Manter seu personagem talvez fosse mais difícil na presença do homem que
a tinha sequestrado.
— Quantos anos você tem? — Disfarçou.
— Dezenove — Silja fez uma careta —, mas sabe como é, todos
adoram decidir por você o que você é ou não capaz de fazer.
Isso tirou uma risada da princesa.
Sabia muito bem como aquelas palavras eram verdadeiras.
Havia algo em comum entre ela e a curandeira afinal.
Não.
Não havia.
Anya desviou o olhar rapidamente, acompanhando o caminho que a
vegetação fazia até o alto. Estacou seus passos, observando o emaranhado
de galhos e folhas que sustentavam o reino inteiro sobre suas cabeças.
— Como a luz chega aqui embaixo? — viu-se perguntando. —
Quero dizer, é como se vocês tivessem seu próprio sol.
Uma gargalhada que ela não entendeu muito bem saiu da garota.
— Magia.
Claro que sim.
Mas não deixou de perceber que, apesar de cada pedaço de terra ser
tocado pela claridade, o cheiro doce não fazia parte do lugar.
Um instante mais tarde, Silja saiu andando na sua frente e começou
a gritar.
— Seu miserável desprezível e estúpido! — berrou ela.
O coração de Anya se acelerou, e ela correu os olhos para todos os
lados, buscando por qualquer que fosse o motivo da agitação.
Involuntariamente, afastou um pouco as pernas e tensionou as
costas, pronta para... bem, ela não sabia ao certo.
Mas a curandeira já estava muitos passos à frente, arremessando
cascalhos e pedrinhas na figura que se aproximava.
A princesa reconheceu os olhos azuis. Mesmo no breu da floresta
eles se pareciam com o oceano. Mas ela não lembrava dos cabelos
castanhos. Nem de como eles caíam em ondas sobre o olho direito do rapaz
e desciam até o queixo. Tampouco do nariz levemente torto.
O maxilar quadrado era igual ao de Silja.
Alexzander era, com certeza, dez anos mais velho que a irmã, mas
eram tão parecidos que se passariam por gêmeos se você olhasse rápido
demais.
— Você quase estragou tudo! — a curandeira gritou.
O rapaz protegia o rosto com as mãos, e seu suspensório marrom
preso às calças de mesma cor caíam de seus ombros.
— Pare com isso! — ele gritou de volta, mas não parecia tão bravo
quanto gostaria de aparentar.
E quando a garota perdeu segundos preciosos buscando por novos
objetos para atirar, ele correu até ela e envolveu-a em um abraço por trás,
prendendo seus braços e revirando os olhos enquanto Silja se debatia e
chutava o ar. Ele era bem mais alto que ela.
Mais forte também.
A curandeira olhou por cima do ombro, com a testa franzida para o
irmão, mas parou de se mexer. Alexander lentamente afrouxou o aperto.
— Palavras, Silja. Use palavras, não as mãos — o rapaz repreendeu.
— E por que não usou palavras ontem à noite? — ela rebateu. —
Lobos, Alexzander. Lobos! Eu não sei como você conseguiu sobreviver à
fúria da Delilah, mas da minha você não vai!
Anya apenas observava a cena se desenrolar diante dela, sem ter
certeza se interferia ou apenas deixava os dois se estapeando. Será que isso
era ter irmãos?
E só então o rapaz pareceu perceber sua presença, arregalando os
olhos e cobrindo em rubor sua pele marrom.
— Princesa. — Ele fez uma reverência exagerada.
Ela semicerrou os olhos, analisando Alexzander. Ele já não parecia
mais tão ameaçador, e manteve os olhos nos próprios pés, como se
aguardasse que ela lhe desse permissão para erguê-los.
Silja deixou escapar um riso e então apertou os lábios em uma linha
fina, apontando com o queixo na direção dele, pedindo silenciosamente que
ela dissesse alguma coisa.
Ela não queria, mas sabia que precisava. Sabia que a curandeira não
era a única que precisaria confiar nela para que seu plano desse certo.
— Espero que tenha consciência do que fez — Anya falou,
encarando-o com a expressão séria.
Alexzander ergueu os olhos para responder.
— Tenho, Vossa Alteza. Eu realmente não sei como começar a me
desculpar, eu...
— Tem sorte que sua irmã se comunica melhor do que você — ela
interrompeu, e ignorou o sorriso que Silja abriu. — E repito o que eu disse
para ela. Não confio em vocês, mas vejo que talvez precisemos trabalhar
juntos. Faça valer a pena.
E talvez — apenas talvez — Anya tivesse exagerado em seu tom,
falando mais firme do que de costume.
— Gosto dela — Silja comentou.
A princesa não respondeu.
Alexzander se manteve em silêncio, caminhando alguns passos atrás
das duas garotas.
Sua irmã estava mostrando a cidade para a princesa mas, apesar da
conversa descontraída, ele a conhecia bem demais para acreditar na
tranquilidade que ela tentava demonstrar.
Ele percebia a tensão em seus ombros e como Silja apertava os
dedos entre as mãos — gesto que sempre fazia quando estava nervosa.
Como lançava olhares de soslaio constantes para o rosto da princesa
parecendo sempre buscar por sua aprovação.
O que quer que as duas tivessem conversado sozinhas, a estava
preocupando.
E Alexzander não a culpava por isso. Sabia o que estava em jogo. O
quão importante era fazer a princesa gostar dali.
Tinham trazido um deles para sua cidade. Para o lugar que os
manteve escondidos e seguros por séculos. Fora um movimento arriscado,
mas estavam todos tão exaustos daquilo!
De fugir. De se esconder.
Ele sentia falta do sol e de como sua magia se comportava melhor
quando estava na presença dele. Sabia que Verena dava o seu máximo para
transformar Havenmill no melhor lugar para eles, mas mesmo ela estava
ficando cansada.
E se uma das Deusas perdesse suas forças...
Balançou a cabeça.
Não deveria estar pensando nisso. Já estavam agindo para
solucionar aquele problema.
Alexzander podia sentir o desagrado da princesa com sua presença,
assim como podia sentir que ela se esforçava para disfarçar isso. Ele a tinha
assustado demais. Silja não estava tão errada ao chamá-lo de... quais foram
as palavras que usara mesmo?
Ah, sim.
Miserável desprezível e estúpido.
Ele apenas as estava acompanhando pois sua irmã levava a princesa
em direção às plantações, e era para onde ele mesmo se dirigia quando as
encontrou.
Já devia estar lá há bastante tempo, mas precisou usar sua manhã
inteira para tentar convencer o Conselho de que, apesar dos erros da noite
passada, ele ainda merecia respirar.
Não tinha sido uma tarefa fácil.
Delilah ameaçara arrancar seus miolos e Jett, pai dela, completou
dizendo que o faria pelo seu nariz. Criaturas fantásticas aqueles dois.
Mas agora, tinha muito trabalho a fazer. Então, acompanhou as
duas, observando discretamente a princesa que dava o seu melhor para
evitá-lo.
Sua pele recuperara o tom corado que havia lhe abandonado depois
de tudo o que aconteceu, e o vestido delicado desenhava as curvas de seu
quadril que desc... Ele ergueu o olhar, erubescendo.
— Então — ele ouviu a princesa dizer —, vocês plantam o que
consomem aqui embaixo?
Havia surpresa em sua voz, e ele compreendia. Qualquer um que
não estivesse acostumado com a magia teria a mesma reação.
— Isso — confirmou Silja. — Plantamos nossos legumes, verduras,
frutas, grãos... Você se surpreenderia com a quantidade de coisas que
podemos fazer quando não existem limites de território.
Era verdade. Ainda que respeitassem as fronteiras de Duhn, sendo o
único povo vivendo no subsolo, podiam usar o espaço que quisessem.
— E o que vocês não usam é levado para a Aldeia dos Pescadores
— Sua Alteza completou.
Não era bem uma pergunta, mas Alexzander se intrometeu mesmo
assim.
— Aquela região não tem as melhores terras para plantio, então
aproveitamos do espaço que temos aqui e levamos até eles.
A princesa olhou por cima do ombro, assentindo sem dizer nada. O
rapaz estava pronto para continuar falando quando atravessaram os grandes
portões da entrada das plantações.
A garota soltou o ar com força quando o viu.
Alexzander entendia.
Mesmo ele ainda se surpreendia com a força da magia em
Havenmill.
Centenas de metros se estendiam e se dividiam em zonas de
diferentes categorias. Vegetais, árvores frutíferas, plantas medicinais para as
curandeiras produzirem seus elixires... A magia permitia que o solo se
adaptasse às necessidades de cada planta ali.
— É bonito, né — Silja comentou, analisando a princesa pelo canto
dos olhos.
Mas a garota se recuperou do choque com rapidez, reassumindo sua
postura indiferente.
— Definitivamente, não é o que eu esperava — respondeu ela.
Como se estivesse aproveitando a deixa, Theo, um dos
Elementaristas que trabalhava com ele, surgiu de um dos depósitos de
armazenamento esfregando as mãos nas roupas para limpá-las enquanto
chamava por sua irmã.
— A carroça está abastecida! — gritou, já sumindo de vista outra
vez.
Abastecida? Mas não era dia de entrega... Vendo o olhar
questionador do irmão, Silja virou-se para ele.
— Pedi a Gerry que me trouxesse algumas coisas de Wellin, então
vou aproveitar e adiantar as entregas dessa semana.
Ah.
— E quando foi, exatamente, que você pediu isso a ele?
Gerry era o namorado de sua irmã. Um pescador simpático que
vivia na Aldeia e que recebia as entregas de vegetais em troca de alguns...
beijos. Alexzander fez uma careta.
— Na entrega da semana passada? — Silja desviou o olhar.
— Você tem ido a Ediri sem avisar o Conselho? — ele repreendeu.
A garota levou as duas mãos a cintura e olhou-o com desdém.
— Deviam ter pensado nisso antes de proibi-lo de vir até
Havenmill.
Ele não contra-argumentou.
O Conselho não permitia a entrada de ninguém que não possuísse
magia — até trazerem a princesa, pelo menos —, tampouco permitia que
visitas externas acontecessem sem que houvesse um motivo importante para
isso.
Mas Gerry era um cara legal, tratava bem sua irmã e era...
simpatizante em relação à magia — embora nunca tenha aceitado as ofertas
de Silja para que ele a recebesse também.
Alexzander achava uma pena que os encontros dos dois fossem tão
limitados, mas entendia a importância de se manter um controle em relação
às saídas para o lado de fora.
— Bom, tenho que ir — a curandeira prosseguiu. — Comporte-se
ou eu arranco os olhos azuis desse seu rostinho bonito.
— Posso ir com você, se quiser — a princesa ofereceu.
Silja negou com a cabeça.
— Não dessa vez, Princesa. — Ela corou. — Gerry e eu temos
algumas coisas... particulares para tratar.
— Com “particulares”, ela quer dizer “sem roupa” — Alexzander
provocou.
Silja jogou os braços para o alto, sem acreditar que ele havia dito
aquilo na frente da princesa.
Princesa esta que pareceu desapontada com a negativa. Desapontada
demais. Talvez ela não quisesse ficar sozinha com ele.
Sua irmã revirou os olhos e se despediu da princesa.
— Estarei no chalé para o jantar. Você tem permissão para se vingar
dele pelo que ele fez ontem. Apenas, por favor, deixe-o vivo. É ele quem
faz faxina na casa.
E antes que a garota pudesse responder, Silja já corria em direção ao
depósito de onde Theo a tinha chamado.
— Princesa, eu... — ele começou, pretendendo se desculpar mais
uma vez.
— Me chame de Anya, por favor. — Ela franziu o cenho. — E eu
sei. Você sente muito e tudo o mais.
— Era pra ser uma coisa muito menos traumática, eu juro. —
Alexzander encolheu os ombros — Não queria que você se perdesse na
noite de Ediri.
— Me fazer pular de uma cachoeira pareceu uma ideia melhor? —
Seu tom de voz parecia mais de deboche do que de ataque, mas ainda
assim, ele desviou o olhar. — Certo, cedo demais para fazer piada.
A garota deu uma risadinha, e o rapaz voltou a encará-la. Ela tinha
um humor parecido com o de sua irmã. E ele não sabia se seria capaz de
lidar com duas Siljas.
— Não é isso — ele tentou se explicar. — Eu apenas perdi o
controle e...
— Eu disse à Silja que vocês tinham o dia de hoje para me
convencer a não falar sobre esse lugar para o rei — ela interrompeu. — Ela
me mostrou crianças, córregos e paisagens bonitas. Enquanto você está
desperdiçando seu tempo pedindo desculpas.
Alexzander sentiu as bochechas arderem. Ela era igual a sua irmã.
Que as Sete o protegessem.
— Tudo bem — ele disse. — Tenho algumas coisas para verificar
aqui nas plantações, mas tentarei ser breve. Então, posso acompanhá-la de
volta para o chalé.
— Vou ajudá-lo. Duas pessoas trabalham mais rápido que uma. —
Ela deu de ombros.
— Não precisa fazer isso, se não quiser.
— Eu sei. Mas a outra opção é ficar esperando sem fazer nada.
— Certo. O que você sabe sobre agricultura?
Anya apertou os lábios, segurando uma risada.
O gesto respondeu o suficiente.
— Entendo. — Ele assentiu. — Bem, venha comigo então.
Ele a levou em direção à zona das verduras.
— É Gerry quem vende essas coisas na Aldeia? Ou Silja tem uma
loja?
— Nós não vendemos. Nós doamos — Alexzander explicou. — A
Aldeia é a região mais... carente de Duhn, você sabe. Eles se sustentam da
pesca que vendem no Mercado e em Ardith, mas com o crescimento dos
portos em Wellin, cada vez mais variedades de alimentos chegam dos
mercadores estrangeiros. Então, nós levamos algumas coisas até Gerry e ele
distribui tudo por lá.
Alexzander deve ter feito uma careta pois a garota riu ao dizer:
— Você não parede gostar muito dele. De Gerry, quero dizer.
Ela caminhava por entre algumas alfaces, examinando suas folhas
como se soubesse o que estava fazendo. Era bonitinho, ainda que inútil.
O rapaz disfarçadamente passava pelos mesmos lugares que ela,
fazendo sua própria checagem e procurando por possíveis pragas. Desde
que os problemas com Verena começaram, às vezes, algumas safras eram
perdidas.
— Ele é legal. Mas não gosto de como Silja tende a quebrar as
regras desde que o conheceu. Minha irmã não costumava agir assim. — Ele
deu de ombros. — Mas ela sempre foi boa demais para estar presa aqui
embaixo, de qualquer forma.
E era culpa dele que ela estivesse ali. Culpa que ele carregaria
consigo por todos os seus dias. Sua irmã tinha deixado tudo para trás por
um erro que apenas ele tinha cometido.
Mas uma parte egoísta dele, a parte de si mesmo que ele mais
odiava, ficava feliz que ela o tivesse seguido dez anos atrás. Silja era tudo o
que ele tinha.
— Não nasceram aqui? — Anya indagou. — Como vieram parar em
Havenmill?
— Já faz muito tempo — ele respondeu, rápido demais.
A princesa pareceu entender que se tratava de um tópico sensível,
então assentiu e continuou conferindo as verduras.
Mais de uma hora mais tarde, Alexzander suspirou ruidosamente e
informou:
— Terminamos por hoje, podemos voltar para o chalé.
— Certo. — A garota acenou. — Vamos então.
Anya estava se saindo bem em sua missão de ganhar confiança.
Tinha ficado decepcionada quando a curandeira recusou sua
companhia até Ediri, mas aquela conversa ao menos confirmou sua teoria
de que estavam próximos da Aldeia dos Pescadores — ou perto o
suficiente. E mesmo ela teria de admitir que seria fácil demais. Silja não
parecia uma garota tola.
E se fosse honesta, o rapaz também não era tão ruim assim. Ainda
que a deixasse com raiva cada vez que conferia o trabalho que ela já tinha
feito.
Saberia reconhecer uma praga, por favor!
De qualquer forma, não tinha se oferecido para ajudá-lo à toa. Sabia
que ele falaria sobre isso aos outros do Conselho e, como não tinha sido
formalmente apresentada a eles, tê-lo ao seu lado seria interessante.
Os primeiros sinais do entardecer davam as caras à cidade quando
os dois voltaram para o chalé.
Parecia que dois dias inteiros tinham sido encaixados naquelas
poucas horas desde que acordara em Havenmill. E seus pensamentos
transitavam entre seus pais e Conan.
O que seu primo teria feito com eles?
E será que Farah e Magmar teriam conseguido fugir?
Pensou nos demais soldados que não tinham aparecido para socorrê-
la e perguntou sobre eles para Alexzander, se tinha encontrado uma forma
de mantê-los ocupados. Mas ele respondeu que nada tinha a ver com aquilo.
E a forma como os ombros do conjurador se tensionaram para a
questão demonstrava que o assunto também o estava incomodando. Parecia
tão surpreso quanto ela.
Era muito estranho que os homens de seu pai não tivessem ido atrás
dela durante a invasão.
Agradeceu silenciosamente quando o rapaz não a fez saltar pelo
regato e, sim, levou-a até uma simpática ponte de madeira. E enquanto
refazia seus passos até o chalé, encarou a barra suja de terra de seu vestido.
Seu peito apertou um pouquinho mais ao pensar em Faen. Ela certamente a
repreenderia pelo estado de sua saia...
Anya sentiu falta disso. Da camareira. De sua família.
Havia muitas pessoas com que se preocupar. Muitas pessoas pelas
quais voltar.
Os rumores de sua presença em Havenmill tinham se espalhado.
Mais moradores a observavam, ainda sem coragem de se aproximar.
E ela não tinha certeza se queria que o fizessem. Mas ousou sorrir
discretamente vez ou outra. Ainda estranhando as feições que davam rostos
aos conjuradores.
Lembrou-se da garota em Wellin. De como havia sido estranho
descobrir um deles entre tantos conhecidos. Eles não tinham um rosto
específico ou uma marca.
Eram apenas... pessoas.
Será que aquela garota conhecia este lugar?
Será que isso a teria poupado daquele ataque em meio ao Mercado?
Não, ela não havia sido atacada, lembrou a si mesma. Ela
desobedecera à Coroa e foi punida por isso.
Mas as palavras de Silja martelavam em sua cabeça.
A Coroa falhou com a gente.
E se... fosse verdade? Quer dizer, eles realmente a tinham resgatado
de Benjamin.
Anya não confiava que seus motivos eram tão simples quanto Silja
havia tentado fazer parecer, mas no final das contas a princesa estava ali:
curada e inteira. Com suas próprias roupas trazidas de casa.
Quando chegaram ao chalé, Alexzander disse que tomaria um banho
rápido e prepararia o jantar. Ele parecia nervoso, ainda desesperado por
agradá-la. E a princesa ficou satisfeita ao confirmar suas suspeitas de que
sua presença ali era realmente importante.
Até se ofereceu para cortar os legumes enquanto o rapaz se lavava.
Ele protestou, mas Anya apenas ergueu a sobrancelha e pegou uma
faquinha sem serra, observando irredutível enquanto ele subia as escadas
batendo os pés.
Claro que depois que ele desapareceu no segundo andar, ela
precisou trocar por outra faca, pois aquela não parecia certa para cortar, e
claro que ela apenas descobriu isso depois de fazer duas batatas diferentes
saírem rolando pelo balcão de madeira.
O chalé era como ela imaginava que uma casa de bonecas deveria
ser. Sala e cozinha distribuídos em um único cômodo no primeiro andar,
divididos pela escada de madeira que ficava bem em seu centro. Uma mesa
feita de pinheiros que acomodava quatro pessoas encontrava-se próxima à
porta de entrada, e os móveis da cozinha acompanhavam a parede lateral
direita.
As luzes amareladas davam um ar aconchegante, tanto quanto as
cortinas bordadas com flores que emolduravam as amplas janelas de vidro.
Depois que batatas, cebolas e pimentões estavam devidamente
cortados, caminhou até a sala, onde uma lareira repousava em frente a um
sofá verde surrado. Duas poltronas da mesma cor estavam à direita dele, ao
lado de uma estante cheia de livros.
Ousou um olhar pela janela.
Lá fora, a noite já tomava conta e Anya só percebeu que prendia a
respiração quando ela lhe foi roubada de uma única vez.
As varandas das centenas de casinhas de madeira eram decoradas
por fios iluminados por pequenas lâmpadas amarelas, que ela não percebera
durante o dia. Ainda havia crianças brincando e rindo, como aquelas que
vira mais cedo.
Crianças que não a conheciam, tampouco conheciam o mundo lá
fora.
Não saberia dizer o momento em que aquele pensamento lhe
ocorreu, mas de repente se perguntou se elas, algum dia, correriam sob o
céu como corriam sob aquelas raízes.

Delilah Jo’na afiava a nova adaga que recebera para sua coleção
quando um burburinho atípico chamou sua atenção lá fora.
Ela caminhou até a janela de sua cozinha para ver o que acontecia, e
percebeu Alexzander e a Princesa atravessando a praça central. E que os
curiosos moradores de Havenmill pareciam divididos entre as reações com
sua presença.
Seria difícil explicar aquilo para eles. Ela mesma não tinha certeza
se trazer a garota para sua cidade tinha sido uma boa ideia.
Delilah encarou a lâmina em suas mãos, ainda intrigada pelos
segredos que ela poderia conter. Então, passou os dedos pelo entalhe
singular no centro do guarda-punho.
Dois ramos de lavanda e uma coroa.
Tornou a olhar para a princesa lá fora.
Não poderia ser coincidência. Verena nunca agia apenas por
coincidência.
Com um gesto simples de suas mãos, as cortinas turquesas se
fecharam.
E a meio-bruxa voltou a amolar a adaga.
Já era noite quando Silja voltou para o chalé. Perdera
completamente a noção do tempo escondida entre as cortinas verdes de
Ediri.
Gerry não tinha permissão para entrar em Havenmill, então sempre
que ele pedia para que ela ficasse mais um pouco, era impossível dizer que
não. Era impossível negar qualquer coisa quando o rapaz abria aquele
sorriso torto que ela tanto amava.
E ele sabia disso.
A discussão que tivera com o Conselho certa vez foi,
provavelmente, a mais constrangedora de sua vida inteirinha. Mas quando
Gerry repetiu que não aguentava ficar tanto tempo longe dela, a curandeira
pediu permissão para que seu namorado frequentasse a cidade.
Era um risco, é claro. Ele poderia ser visto, seguido e um milhão de
coisas horríveis poderiam acontecer ao seu lar só porque ela queria dormir
nos braços dele ao menos uma vez.
Desde então, Silja, com frequência, escapava de seus afazeres e ia
até Ediri encontrá-lo. Não deveria e sabia disso. Não conseguia evitar.
Ele mesmo já tinha desistido de convidá-la até sua própria casa na
Aldeia, pois a curandeira temia ser reconhecida. Estava mais segura longe
daqueles que, um dia, foram sua família.
O ar fresco da noite balançava as luminárias das varandas, fazendo
as sombras oscilarem pelo gramado infinito. Famílias sentadas à frente de
suas casas jogavam conversa fora, de olho nos pequenos que apostavam
corridas pelos jardins.
Silja sorriu. Não mentira em nada quando chamara Havenmill de
cidade encantada.
Esperava que a princesa conseguisse ver isso também.
Ela fizera um bom trabalho naquela tarde. Era difícil não se
apaixonar por aquele lugar, no final das contas.
Mas não poderia negar que via o medo pairando sobre a garota e não
a culpava. Eram muitas novas informações com que lidar, e tinha
consciência de que, sendo uma conjuradora, não estava na melhor posição
para transmitir confiança.
Continuaria tentando.
Precisava disso.
Silja passou as mãos pelos cabelos, ajeitando os fios bagunçados
pelas mãos de Gerry, e entrou no chalé.
A mesa já estava posta e Anya encontrava-se sentada na sala, em
uma das poltronas mais perto da janela. Ela observava o mundo lá fora e,
ainda que os cachos negros lhe escondessem o rosto, a curandeira sabia o
que encontraria ali.
Curiosidade.
— Sinto o perfume barato de Gerry daqui de cima! — gritou
Alexzander, enquanto descia as escadas trazendo aquele sorriso debochado
que a fazia querer socá-lo até o dia seguinte.
— Lembro-me perfeitamente de ouvir você me pedindo para
providenciar um igual — rebateu.
Ainda assim, sentiu as bochechas esquentarem.
Seu irmão jogou a cabeça para trás e gargalhou.
Serzinho desprezível, pensou, rindo também.
Ela revirou os olhos e caminhou até ele, envolvendo-o em um
abraço apertado. Rir deles mesmos foi o que os manteve firmes quando não
tinham mais nada pelo que lutar, além de um pelo outro.
Com o rosto enterrado nos travesseiros macios, Anya não se
importava que a ouvissem chorar. Aguentara bem o dia, mas ali, no escuro e
sozinha, não precisava fingir.
A banheira de cerâmica na qual se lavara não pareceu grande o
suficiente para acomodar a culpa que sentia. Seus pais estavam no castelo
com Benjamin enquanto ela estava naquela cidade estranha, acomodada
entre lençóis com cheiro de flores.
Estava fazendo o que precisava ser feito, sabia disso. Mas o
sentimento insistia em atormentá-la mesmo depois do banho. Mesmo
depois de voltar para o quarto. O remorso por ter decidido ficar. Precisava
encontrar o caminho para a Aldeia. E rápido. Talvez seguisse Silja da
próxima vez que ela fosse até lá.
Quando as lágrimas finalmente cessaram, o sono ainda insistia em
lhe faltar, então andou até a cômoda e encarou a noite. Já não havia
barreiras na janela, mas ao seu modo, ainda era uma prisão.
Farah teria adorado estes jardins, se pegou pensando. E as lágrimas
voltaram outra vez. Desejava poder, de algum jeito, saber como ela estava.
Se teria conseguido fugir.
Sua amiga era rápida, boa de luta, e quando se separaram, estavam
em uma parte afastada do palácio. Tinha chance de que já estivesse bem
longe. Talvez até procurasse por ela.
A possibilidade ainda não a tinha ocorrido. Claro que estavam
procurando por ela. Se não Farah, então seus pais, seus soldados, Conan.
Até mesmo Isaac.
Poderia encontrar o caminho sozinha. Só precisava ser silenciosa e
discreta, enfrentar a noite de Havenmill e descobrir uma forma de deixar o
local. Estariam esperando por ela lá fora.
Mas se saísse agora, se Benjamin a encontrasse primeiro... Entendia
por que ele a via como uma ameaça.
Ela, que nunca se imaginara como rainha, não conseguia deixar de
imaginar uma infinita possibilidade de “e se”. Anya sabia que as palavras
de Silja eram verdadeiras. Algo dentro dela, talvez a parte sonhadora e
escapista, que ousava pensar em coisas impossíveis, sempre soube que era
sim filha de Elysia e do Rei. Agora, isso não lhe parecia tão impossível.
E se de fato votassem por ela?
Se o Conselho a considerasse melhor do que seu primo, mesmo sem
ter sido criada para governar?
Não, ela não poderia voltar. Ainda não. Não sem um plano concreto
de como enfrentá-lo.
Tinha lhe parecido tão certo conquistar a confiança de Silja e seu
irmão para que a levassem lá fora, mas e se a princesa precisasse deles tanto
quanto precisavam dela?
Deveria realmente se aliar aos conjuradores? Por seus pais, sabia
que o faria.
Ainda assim, pensar nessa possibilidade apertava seu peito e
amaçava roubar todo o ar existente no mundo.
Suas pernas cederam e Anya desabou no chão. Sim, ela continuaria
fazendo o que precisava. Só não tinha certeza se poderia conviver consigo
mesma depois.
Sem forças para caminhar até a cama, puxou os joelhos para junto
de seu corpo e permaneceu ali até que o sono a levasse para longe.
Raios de sol teimosos atravessavam as frestas da persiana e
dançavam pelo rosto de Alexzander — não que isso o tivesse acordado, já
que mal conseguira pregar os olhos.
A princesa chorou a noite inteira. E a culpa pesava no peito dele.
Os soluços o fizeram lembrar de sua primeira noite em Havenmill,
quando ele se enclausurou dentro do próprio pranto. Por raiva, saudade e
dor. Foram semanas difíceis.
Então, o rapaz entendia.
E passara a madrugada envolto pela penumbra, encarando as
luminárias apagadas lá no alto. Consumido pela sensação de que se abrisse
a porta do quarto ao lado, encontraria a ele mesmo dez anos atrás.
Não, aquilo não era sobre ele.
A garota no quarto ao lado não tinha chegado em Havenmill por
escolha, tinha sido levada.
Ainda que as intenções fossem sinceras, que o Conselho realmente a
quisesse salvar, a princesa havia sido roubada de sua casa e trazida para um
lugar desconhecido. Trazida por ele.
Haviam debatido e votado, e a decisão foi unânime.
Benjamin jamais poderia alcançar a Coroa. Ele sabia demais, Verena
tinha dito. E com a quantidade certa de poder nas mãos, estaria tudo
acabado.
Para Havenmill, para seu povo e para a bruxa.
E quando a manhã chegou, concluiu que poderia fazer melhor. Que
poderia ser melhor. Então vestiu-se com rapidez, sem ao menos se
preocupar com os cabelos bagunçados, e desceu as escadas pulando os
degraus de dois em dois.
Encontrou sua irmã distribuindo pãezinhos com queijo na pequena
bandeja de madeira.
— Planejava fazer exatamente a mesma coisa — ele disse,
depositando um beijo nos cabelos dela, tão bagunçados quanto os próprios.
A risada que Silja lhe devolveu era como uma brisa fresca em um
dia quente de verão, o presente certo vindo na hora certa.
— Uma boa bandeja de café sempre nos trouxe manhãs melhores —
a garota respondeu.
Era uma coisa deles.
Conheciam um ao outro tanto quanto a si mesmos, e sabiam ler os
sinais quando algo estava errado. Então não faziam perguntas, e o café era
um lembrete silencioso de que não estavam sozinhos. Que sempre teriam
alguém com quem contar.
E enquanto a curandeira servia uma xícara da bebida fumegante,
Alexzander correu até a varanda. Analisou cuidadosamente as margaridas
que cercavam a casa, escolhendo duas das flores mais bonitas daquela
manhã.
— Quer que eu leve para ela? — perguntou, observando Silja
colocando as plantinhas em um copo de vidro.
— Não precisa, vou deixar no lado de fora da porta. — Ela deu de
ombros. — Estamos ansiosos para que isso dê certo, mas precisamos dar
tempo a ela.
Sua irmã tinha razão, como quase sempre.
Então, Alexzander lhe deu outro beijo e saiu. Tinha coisas
importantes para fazer.

Silja a levaria até Ediri.


A princesa mal conseguiu disfarçar sua euforia quando desceu as
escadas e encontrou a curandeira já esperando por ela.
— Fiquei me sentindo mal depois de recusar sua ajuda ontem — ela
tinha dito — E resolvi mostrar-lhe algo em Ediri muito mais interessante
que Gerry.
Anya não sabia se era verdade, tampouco isso importava. Iria lá
fora. Rápido assim. Fácil assim.
E ainda que planejasse realmente usar da ajuda deles para salvar
seus pais, conhecer o caminho poderia se provar importante. Para uma
emergência, caso seus planos dessem errado.
Caso descobrisse que tinha sido tola o suficiente para confiar no
inimigo.
— Obrigada pelo café — Anya tinha respondido.
O gesto fora bonitinho de verdade. E Silja abriu um sorriso, aquele
gigante e mostrando todos os dentes perfeitos, apontando para a porta com
o queixo.
— Vem comigo.
Elas seguiam por uma trilha entre as árvores, a grama alta fazendo
cócegas em seus calcanhares descobertos pela sandália de couro.
Precisavam passar em algum lugar antes de irem para Ediri, e a
princesa conteve o impulso de reclamar. Estava atenta ao caminho,
memorizando os detalhes de cada varanda próxima às esquinas em que
dobravam.
— Tem alguém que você precisa conhecer primeiro — Silja
comentou, mordendo a parte interna da bochecha. — Um dos membros do
nosso Conselho.
Ela parecia nervosa, apertando os nós dos dedos e evitando encará-
la nos olhos.
— E por que está se comportando como se isso fosse uma péssima
ideia? — Anya questionou.
— Vou ser sincera com você. — Ela suspirou. — Nós votamos.
Sobre trazê-la para cá, quero dizer. Nós votamos, pois não tínhamos certeza
se devíamos ou não correr esse risco. Você mesma disse isso, que poderia
simplesmente voltar para o castelo e contar tudo sobre a gente.
Anya não estava realmente incomodada por saber disso, fazia
sentido de alguma forma. Mas estava exausta de outras pessoas decidindo
coisas por ela.
Já faziam isso há muito tempo.
— E suponho que o conselheiro que estamos indo encontrar votou
contra essa ideia.
— Não — ela se apressou, as palavras saindo rápido demais. —
Bom, não no final. A votação foi unânime, mas Delilah foi quem mais
relutou.
— Porque me ajudar não valia a pena para ela. — Não estava sendo
justa e sabia disso, mas a irritação queimava sua garganta mesmo assim.
Não queria estar ali, naquele mesmo instante estava decorando o
caminho para fugir. No entanto, alguém que nem ao menos a conhecia
julgando quem achava que ela era...
Como você fez desde o momento em que chegou aqui, disse uma voz
em sua cabeça.
— Delilah viu muita coisa acontecer — Silja argumentou — E
perdeu muita coisa também. Ninguém nessa cidade se preocupa com a
gente tanto quanto ela.
— E o que a fez mudar de ideia?
— Ela sabia que era a coisa certa. — Um sorriso voltou para os
lábios da garota. — Porque te ajudar valia a pena.
A curandeira era boa nisso, Anya precisava admitir.
— E por que eu preciso ir conhecê-la?
— Porque achei que você gostaria de saber com quem está lidando.
A resposta agradou a princesa o suficiente.
O regato enevoado estendeu-se pela estrada outra vez, mas diferente
do dia anterior, elas acompanharam seu curso, caminhando lado a lado com
a pequena correnteza.
Os pássaros produziam sua sinfonia alegre, alheios ao fato de que o
subsolo não era um lugar feito para eles. E o cheiro de cedro era mais
intenso do que nunca.
Um descampado se abriu na frente delas, com árvores floridas
contornando-o em um círculo quase perfeito. Dezenas de crianças com não
mais de dez anos pareciam se despedir umas das outras e caminhavam para
longe.
— Mas o que... — Anya começou.
— Delilah treina os pequenos.
— Treina?
— É. A magia pode ser perigosa quando não sabemos controlá-la.
Foi preciso todo o autocontrole da princesa para não responder que
magia era perigosa sempre.
Ficaram observando as crianças partindo, e Anya pensou mais uma
vez sobre como aquele lugar era um mundo à parte.
Eles ensinavam magia como se fossem cálculos.
Formavam pequenos conjuradores.
— Estão procurando alguma coisa? — A voz rouca vinda de lugar
nenhum assustou a princesa.
Passou os olhos rapidamente ao seu redor, buscando a origem do
som. Encontrou-a poucos metros à frente, escorada em um tronco de
cerejeira com os braços cruzados.
Os cabelos foram a primeira coisa que viu.
Como caíam em ondas delicadas e emolduravam o rosto sério, como
suas pontas serpenteavam ao redor do queixo anguloso. Seu tom rosado
combinava com as sakuras da cerejeira, mas fizeram a princesa pensar em
céu e alvorecer.
A mulher tinha olhos grandes tão verdes que, mesmo a distância,
brilhavam como duas esmeraldas, e pareciam contar mais histórias do que
caberiam em um rosto tão jovem.
E quando sorriu, a princesa sentiu o próprio rosto aquecer.
— Então? — a mulher insistiu, descruzando os braços e vindo na
direção das garotas.
Silja pigarreou.
— Você mesma, Dell. Queria te apresentar alguém.
Delilah ergueu uma sobrancelha, passando os olhos por cada
centímetro da princesa. Ela estava acostumada com a atenção, mas de
alguma forma, sentiu-se mais exposta do que nunca.
— Ah, o motivo de tantas discussões — respondeu, e seu tom suave
trazia apenas humor.
— Pelo menos, vocês tiveram a oportunidade de escolher o que
fazer comigo — a princesa rebateu com irritação.
Os olhos da mulher brilharam, então ela abaixou brevemente a
cabeça.
— Princesa, é um prazer. — E Anya percebeu que ela se divertia
com aquelas palavras.
O aborrecimento deu lugar para outra coisa. Uma necessidade de
não deixar que Delilah a afetasse ou, ao menos, não demonstrar. Então,
abriu o seu melhor sorriso, como se aquele movimento de cabeça fosse a
melhor reverência que alguém já tivesse feito.
A mulher congelou por um momento, como se seus pensamentos a
tivessem abandonado, então acenou em direção ao lado oposto da clareira,
onde a varanda de uma pequena cabana fazia sombra pela terra batida.
— Vamos nos sentar ali — chamou.
— Achei que seria interessante que vocês fossem formalmente
apresentadas — a curandeira comentou, acompanhando a mulher até o lugar
indicado.
Caminhando em silêncio, Anya aproveitou a oportunidade para
analisá-la melhor.
Havia algo que parecia diferente, uma espécie de magnetismo. A
princesa se sentia intimidada com sua presença, mas não conseguia desviar
o olhar.
A túnica branca tinha mangas dobradas na altura de seu cotovelo e
desapareciam sob o cós das calças escuras. Luvas de couro cor de creme
escondiam as mãos que voltaram a se cruzar sobre seu peito.
Um banco comprido de madeira pousava sob as telhas da varanda, e
as três se sentaram ali. Ela não deixou de notar a confiança invejável com
que Delilah se movia.
Havenmill não parava de surpreender a princesa.

Sentada sobre o encosto do banco, Delilah tentou disfarçar seu


desconforto. Sabia que em certo momento teria de lidar com a garota, mas
ainda se perguntava se tudo aquilo teria sido uma boa ideia.
Estava ficando tão cansada das ordens sem explicação de Verena,
que teve vontade, apenas por alguns minutos durante aquela reunião do
Conselho, de acabar com a coisa toda. Fora incisiva ao dizer que não
queria a princesa entre seu povo, mesmo sabendo que era a coisa certa a se
fazer.
E agora, observando-a tão de perto, sentiu uma pontada de algo que
ela detestava.
Inveja.
Do seu vestido delicado e das unhas feitas, dos cabelos longos tão
pretos que se pareciam com a própria escuridão. Um contraste irônico com
a meio-bruxa, não poderia negar, tendo ela os poderes da Bruxa da Luz.
Mas não era da jovem que sentia raiva, e sim do que ela
representava. Da vida tranquila e perfeita que levavam aqueles com
permissão para existirem do lado de fora.
E não conteve a irritação ao pensar que era a família dela o motivo
pelo qual Delilah passou a sua vida inteira ali embaixo. Pelo qual viu
amigos morrerem ou partirem. Como sua mãe.
No entanto, havia algo nos olhos da garota. Algo que a fez ter
certeza que a princesa não os entregaria para a Coroa, mesmo quando ela
fosse embora.
Dell via mais do que a maioria, e sentiu que a princesa estava
lutando contra si mesma. Relutando pela ajuda que sabia que precisava pois
tinha medo. Dela. De seu povo.
Era engraçado, de certa forma.
Que vissem uma na outra tudo aquilo que temiam.
— Então você... treina as crianças? — A pergunta saiu hesitante, e
Delilah precisou conter o impulso de revirar os olhos.
Esses monstros conjuradores, pensou com ironia.
— Isso. Quando eles fazem a Travessia, o ritual de
compartilhamento de magia, precisam de certo suporte para que não, você
sabe, coloquem fogo uns nos outros e coisas assim. — Era uma piada, mas
a princesa pareceu tão chocada com o comentário que Delilah riu. — Os
poderes se manifestam de forma diferente em cada um, meu trabalho é
ajudá-los a descobrir o que podem fazer e... como.
— Entendo — ela respondeu, simplesmente.
A mulher duvidou disso.
Um silêncio constrangedor tomou conta do lugar por alguns
minutos, então Silja se ajeitou no banco e tentou puxar assunto.
— Você poderia decorar a clareira, né?
— As flores de cerejeira não são coloridas o suficiente para você?
— Delilah riu. — Eu tentei. Cheguei a pintar alvos coloridos, obstáculos e...
— Você pintou? — A curandeira gargalhou jogando a cabeça para
trás, ficava idêntica ao irmão quando fazia isso. — Você? Delilah? Você não
sabe pintar.
Na verdade, ela sabia. Mas Sila não tinha como adivinhar.
— Talvez por isso as crianças tenham destruído tudo — retrucou,
cutucando-a de leve com o pé. — Eles são... competitivos. E você sabe o
que acontece se eles perdem o controle de suas emoções.
Silja balançou a cabeça, ainda rindo.
Dell não conseguia disfarçar o orgulho em sua voz. Os pequenos
traziam uma disposição incomparável para as práticas. Treinavam sob sol e
sob chuva e, às vezes, ela precisava implorar para que eles voltassem para
casa ao final das aulas. O poder puro e selvagem que fluía daqueles que
realizaram a Travessia recentemente era fascinante.
— O que acontece? — a princesa questionou. — Se perdem o
controle, quero dizer.
Sentia os olhos da garota sobre si, mas evitou virar-se para ela.
Encarou ao longe, observando o córrego desaparecendo por entre a floresta.
— O que sentimos interfere na forma como a magia se manifesta —
explicou. — É fácil perder o controle quando se está empolgado ou irritado.
E quando isso acontece, as coisas podem ser um tanto...
— Desastrosas — Silja completou, revirando os olhos.
Era óbvio que estava pensando na vez em que erguera uma barreira
de proteção em torno de um garoto porque ele zombava dela por não ter
nascido em Havenmill. Claro que ela o estava prendendo e não protegendo.
E a curandeira estava tão irritada que nem mesmo ela conseguia desfazer o
casulo dourado.
Pelo canto dos olhos, viu a princesa se encolher. Ela tinha medo da
magia. Mesmo que sua própria família tivesse inventado toda aquela
história e, como consequência, dizimado um clã inteiro de bruxas.
Mas a garota conhecia a versão que lhe era conveniente. As
verdadeiras memórias eram um fardo só de Delilah para carregar. Ela era a
responsável por proteger as lembranças forjadas em aço que contavam o
que realmente aconteceu naquela noite, quatrocentos anos atrás.
Que mostravam quem Tamal realmente era: um rei narcisista e com
uma sede insaciável por poder e que sabia que, enquanto dividisse seu
território com as bruxas, com uma das Sete, jamais teria total controle sobre
seus súditos.
Verena era uma das Bruxas Primordiais, uma das sete cujas mãos
criaram o mundo, e era vista como tal. Tratada como a Deusa que, no
fundo, era.
O rei a invejava.
Então, apelou para a única coisa que era mais poderosa do que a
adoração. O medo. A magia não era a maravilha que todos acreditavam.
Como poderia? Como algo que moldava a Vida, a Terra, a Luz, poderia ser
natural?
Em pouco tempo, as pessoas se convenceram daquilo. Entregavam
seus próprios vizinhos para a Coroa em troca de perdão por tê-los acolhido
até aquele momento.
Mas ainda havia os desertores. O que ele esperava? Que o poder
simplesmente fosse arrancado de dentro de cada um? Era uma batalha
perdida para os portadores de magia.
No entanto, Tamal Dahnasa, o Grande Rei de Duhn, ainda se sentia
ameaçado. Não aceitava que Verena e seu clã vivessem em seu território.
Por fim, ele ofereceu um acordo. Disse que poderia encontrar um
jeito de viverem todos em harmonia mais uma vez. Organizou aquela
reunião pomposa e recebeu as bruxas da luz em seu castelo. Uma
armadilha, obviamente.
E transformou em cinzas cada uma delas. Exceto Verena, que
precisou juntar os seus pedaços e viver a vida com apenas metade de seus
poderes. E sem seu clã.
Delilah não acreditava verdadeiramente que Tamal morrera naquela
noite, mas não foi ele quem lidou com a Coroa depois. Seu
desaparecimento mudou para sempre a forma de sucessão, abrindo à
votação por parte dos conselheiros qual dos filhos subiria ao trono.
O herdeiro foi pego de surpresa e as cicatrizes que a perda de seu
pai deixou o fizeram acreditar que as bruxas o tinham assassinado, que
como punição teriam sido queimadas junto. Ele, no entanto, era bom. Bom
demais para uma nova caçada.
Humanos com magia ainda eram traidores da Coroa, mas as
criaturas foram banidas para Ediri.
Aquele foi o primeiro capítulo da história de Havenmill.
— Acho que terminamos por aqui. — A voz de Silja a assustou.
— O quê?
— Prometi que levaria Anya até Ediri, só pensei que trazê-la aqui
antes poderia ser legal.
Delilah ergueu uma sobrancelha.
— Vocês vão até Ediri — repetiu, cética — E você acha que essa é
uma boa ideia?
— E por que não seria? — retrucou a princesa, encarando-a.
Seus olhos cor de âmbar refletiam com a claridade e pareciam quase
dourados.
— Por nada, Princesa. Aproveitem o passeio — Dell respondeu —
Foi realmente um prazer.
E abriu um sorriso, satisfeita ao ver as bochechas da garota corarem.
Despediu-se de Silja com um abraço e observou em silêncio
enquanto as duas se afastavam.
Ah, se a garota soubesse o que planejavam para ela...
Aquele meio sorriso debochado atormentava a princesa desde que
deixaram a clareira.
Ela e Silja seguiam por uma estrada larga de terra, rumando à Ediri,
mas ao invés do entusiasmo que deveria estar sentindo, Anya estava...
intrigada.
— É coisa de bruxa — a curandeira comentou.
— É... o quê?
Será que a garota estava falando com ela enquanto estava perdida
nos próprios pensamentos?
— Delilah — Silja riu. — O jeito como ela consegue ser
intimidadora. É coisa de bruxa.
A princesa parou de andar, franzindo a testa e absorvendo as
palavras.
— Delilah é uma bruxa? — A frase soou estranha ao sair de sua
boca, deixando um gosto amargo apenas por pronunciá-la.
— Quase. A mãe dela era meio-bruxa e o pai, humano.
— E você me conta algo assim com essa naturalidade? — ela
praticamente cuspiu a pergunta.
Uma bruxa. A poucos metros dela, sem que ela ao menos
desconfiasse.
Seu coração bateu forte contra seu peito, reagindo em atraso ao
medo que sentiria caso tivesse aquela informação minutos atrás.
Não poderia ser, poderia? A curandeira deveria estar brincando com
ela.
As bruxas foram extintas há anos e, além disso, Delilah parecia
humana! Bom, isso não era bem verdade. O magnetismo, os olhos
brilhantes. A mulher irradiava poder simplesmente ao existir.
Tinha sido tola de não ler os sinais.
Anya sentia seu corpo tremendo e a respiração saindo rápido
demais, então a curandeira se aproximou e pousou a mão sobre seu ombro.
A sensação de relaxamento atingindo-a no mesmo instante.
A princesa se afastou ao sentir o aroma doce.
— Pare com isso — sussurrou. — Não use magia em mim.
— Desculpa. — O rosto da garota se cobriu de vermelho. — Talvez
esse não seja o tipo de informação que eu deveria simplesmente jogar em
uma conversa casual.
Mesmo à contragosto, uma risada seca escapou da princesa.
— Definitivamente. — Ela respirou fundo, tentando acalmar seu
coração acelerado. — Como?
Ela não precisou explicar a pergunta, Silja a entendeu muito bem e
apenas acenou para que continuassem andando.
A estrada de terra era larga, coberta por marcas de carroça. O
caminho para Ediri.
Os sons das conversas e risadas da cidade começaram a ficar para
trás conforme se afastavam, até que só houvesse o canto dos pássaros e os
pés delas batendo contra a areia.
— Nem todas as bruxas morreram naquele ataque — começou,
chutando uma pedrinha no chão. — Uma delas, a... matriarca, não estava
lá.
Disso a princesa não sabia.
O que contavam os livros de Duhn era que todas as bruxas
realizaram uma emboscada no palácio e, assim, assassinaram o Rei Tamal.
Não havia qualquer registro sobre sobreviventes.
Toda a estrutura foi reduzida a cinzas, perdeu-se o Rei e inúmeros
soldados.
Um novo castelo precisou ser erguido.
Mas se ela não estava presente...
— E para onde ela foi?
— Está em Havenmill. — A curandeira sorriu. — Foi Verena que
construiu esse lugar.
Verena.
Não somente uma bruxa, mas a matriarca daquelas que se voltaram
contra a Coroa. Que não souberam aceitar a autoridade colocada sobre um
simples humano.
— E Delilah é descendente dela. — Não foi uma pergunta, mas Silja
assentiu.
— Neta.
Delilah era uma meio-bruxa. A princesa nem sabia que isso era
possível. Que humanos e bruxas... Um arrepio percorreu seu corpo.
— É por isso que Dell é responsável pelas crianças — a curandeira
prosseguiu — Porque ela é a única com força o suficiente para conter as
possíveis... explosões.
Por todos os deuses!
Anya não queria pensar naquilo. Se teria de ficar naquela cidade por
mais alguns dias, tentaria se manter o mais distante possível da bruxa.
Meio-bruxa, corrigiu-se.
Não que fizesse qualquer diferença.
Elas seguiram em silêncio por mais alguns minutos. Aquela parte de
Havenmill era completamente afastada de tudo. Não havia casas, lojas,
praças... somente elas, as árvores floridas e pequenos animais que corriam
por entre a vegetação.
Perguntou-se qual parte de Ediri estava sobre sua cabeça naquele
momento e quanto poder teria Verena para ser capaz de construir um lugar
tão impressionante e rico em detalhes.
O pensamento pegou-a de surpresa. O reconhecimento de que
Havenmill era realmente extraordinária. E estranhou que a ideia lhe tivesse
ocorrido de forma tão fácil.
Então, outra possibilidade passou por sua cabeça.
Com toda aquela magia, Benjamin não teria chance. Se Verena era
tão poderosa quanto Silja dera a entender, e se Delilah também tinha sua
parcela de poder, a princesa poderia usar isso ao seu favor.
Não poderia?
Perguntou-se também se seus pais seriam capazes de perdoá-la por
se aliar às criaturas que atacaram sua própria família séculos atrás.
A princesa precisava saber, Silja repetiu para si mesma. Sobre Dell e
sobre Verena. Se esperavam que ela ajudasse, era importante que recebesse
as informações aos poucos, que lidasse no seu próprio tempo.
Mas depois de longos minutos em silêncio, a curandeira já estava
arrependida.
As duas se aproximavam do portal para Ediri e, a cada passo, ela
tinha mais certeza de que Anya simplesmente sairia correndo quando
chegassem lá.
Mais uma ideia ruim para acrescentar naquele dia.
Talvez devesse parar de tomar decisões até a manhã seguinte.
— Não vai mesmo me contar o que pretende me mostrar? — a
princesa questionou.
— Sei que não teve a melhor experiência com relação à magia.
Conheço as histórias. — Ela parou por um momento, escolhendo as
palavras — E eu prometi que lhe mostraria por que nosso povo vale à pena.
Quero que veja o que eu vejo, quero que entenda e que... sinta.
A princesa a observava pelo canto dos olhos e parecia ter prendido a
respiração. Podia ver a dúvida em seu rosto, mas havia também curiosidade.
Algo nela parecia um pouco mais receptivo.
Silja inspirou profundamente, encarando a estrada que terminava de
repente, indo de encontro com uma parede de raízes retorcidas.
— Está pronta? — perguntou.
Anya apenas assentiu ao seu lado, com a expressão séria e os braços
cruzados diante de seu corpo.
Então, a curandeira estendeu lentamente a mão, tocando o
emaranhado à sua frente.
Não conteve o sorriso ao ouvir a princesa arfar. Ela mesma nunca se
acostumaria com a imponência daquela barreira protetora.
As gavinhas douradas que despontavam por entre as raízes em nada
se comparava àquele escudo nas margens do rio. Elas não apenas protegiam
a entrada para a cidade, como também ocultavam-na e impediam que
qualquer um na floresta a encontrasse.
— Parece feita de raios de sol — Anya sussurrou, e a curandeira
sorriu com a precisão daquele comentário.
Talvez estivesse começando a entender.
Verena construiu aquele portal, interligando seu poder a cada um
dos Artesões para que pudessem abri-lo quando necessário. Era quase como
costurar os escudos usando magia. E a claridade do dia se derramava sobre
aquela rede, transformando-a em nada além da própria luz. Invisível aos
olhos daqueles que não sabiam o que procuravam.
Estendeu a mão na direção da princesa, como um convite. E quando
atravessaram a trama dourada, degraus escondidos sob a vegetação as
guiaram até a floresta.
— Ediri — a princesa falou, e seu tom soou tão inesperado para
Silja que ela precisou virar-se para encará-la.
Anya estava congelada ao pé do primeiro degrau, observando o
caminho que as levaria para o meio das árvores.
Ediri era uma floresta de pinheiros tão densa, que obrigava os feixes
de luz a lutarem para chegar no solo coberto de grama e gravetos. Diferente
de Havenmill, havia poucas flores e a única água corrente provinha do rio.
E estavam bem afastadas dele.
Era neste ponto que Gerry costumava esperá-la, no topo da pequena
escadaria. Onde eles descarregavam a carroça que a curandeira trazia
consigo e abasteciam a dele. Era um caminho difícil, mas como ninguém
tinha autorização pra circular pela mata, o pescador precisava apenas tomar
cuidado ao entrar e sair dela.
Por um momento, chegou a pensar que a princesa sairia correndo.
Que aproveitaria o mundo externo e fugiria. Mas seu primeiro passo foi
hesitante, testando o emaranhado de plantas rasteiras sob seus pés.
Já se encontravam no topo da escada quando o primeiro par de olhos
surgiu.
Anya estacou ao seu lado, imóvel como uma estátua, e a curandeira
ousou levar sua mão à dela — um lembrete de que não estava sozinha. A
garota recolheu a palma para si.
Algumas folhas caídas se mexeram e aquele par de olhos verdes se
ergueu. A criatura com pouco mais de trinta centímetros tinha sua própria
pele feita de cascas de árvore e minúsculas folhinhas esverdeadas
despontavam do que poderiam ser seus dedos.
Paralisada, a princesa arregalou os olhos quando o pequeno
elemental deu um passo em sua direção.
— Não se mexa, deixe que ele venha até você — orientou, e a
garota assentiu minimamente.
Silja se ajoelhou devagar, para que o pequeno ser pudesse
reconhecê-la.
— Trouxe uma amiga — sussurrou, e riu ao ver as pequenas orelhas
pontiagudas tremerem para o som de sua voz.
Os olhinhos cor de grama se estreitaram, então se voltaram para a
princesa que ainda aguardava.
Começando a entender, ela abaixou-se também, sem desviar sua
atenção da criatura tão próxima dos seus pés. Sua pele estava pálida e os
olhos estavam maiores do que nunca, mas ela apertava seus dedos entre as
mãos como se estivesse controlando-se para não os estender até o
elemental.
O rosto amadeirado do ser pequenino se contorceu, abrindo o mais
próximo de um sorriso travesso que a criaturinha não-humana seria capaz.
— Gostou de você — a curandeira brincou.
— Eu não... Pelos deuses! — As palavras pareceram fugir da garota.
— Estes são os seres que foram banidos para cá?
Antes que Silja pudesse confirmar, uma lufada de ar balançou
fortemente os cabelos de ambas, trazendo consigo uma risada que soava
como algum tipo de música.
Uma segunda criatura surgiu. Flutuando com sua forma translúcida,
não mais do que uma brisa de verão. Era maior que a primeira, alongada e
sem um contorno definido.
— Sei que você pensa que tudo envolvendo magia é terrível — ela
sorriu para a princesa —, mas posso lhe garantir que essas criaturinhas aqui
não trazem nada além de bondade pura dentro de si.
— Você está tentando me comprar com olhinhos azuis em forma de
vento. — Anya franziu o cenho.
— Depende. Está funcionando?
A princesa suspirou, desviando o rosto para ao longe da floresta.
— Eu ainda estou aqui, não estou? — Havia um peso em suas
palavras que Silja não esperava.
Parecia algo difícil para ela admitir aquilo em voz alta.
— O que quer dizer?
— Tudo isso aqui — ela acenou ao seu redor, ajoelhando-se sobre a
grama — é o conjunto das coisas que eu mais temi a minha vida inteira.
Mas, por alguma ironia do destino, sinto que eu não serei capaz de salvar
minha família sem vocês.
Ah.
— Nós já a ajudamos uma vez, podemos fazer isso de novo.
— É isso que eu não entendo. — Anya elevou seu tom. — Por quê?
Se todas as coisas que ouvi sobre vocês estão certas, não faz sentido que me
ajudem. Mas se todas estiverem erradas... o que aconteceu para que se
tornassem verdadeiras?
A curandeira sentou-se, ponderando.
Claro que aquelas histórias estavam erradas, mas não era a pessoa
certa para explicar aquilo.
— Ninguém é totalmente bom ou ruim — disse depois de alguns
segundos. — Quero dizer, ninguém além dessas coisinhas fofas aqui.
A criaturinha de madeira mostrou-lhe a língua, em seguida, jogou-se
sobre a grama e deitou a cabeça nas pernas da curandeira.
Novos dos seres pequeninos surgiam, despontavam por entre o
verde. De trás das árvores, dos amontoados de raízes. Eram feitos de folhas,
de grama, galhos retorcidos e diferentes tipos de pedras.
Uma névoa densa serpenteou em torno dos cabelos da princesa,
fazendo-a soltar um gritinho que era um misto de surpresa e encantamento.
— Faz... cócegas — sussurrou.
Estava funcionando.
Silja conseguia ver nos olhos da garota que, aos poucos, ela cedia.
Seu rosto mostrava algo entre medo e fascínio, e a curandeira não escondeu
o riso quando Anya criou coragem para estender sua mão até um elemental
feito de rochas, e este se agarrou em seu braço, assustando-a.
— Que coisa feia — repreendeu — Isso não é jeito de tratar uma
Princesa!
Uma risada seca espiralou pelos ares, vinda da pequena rocha com
olhos e braços.
A curandeira amava aquele lugar quase tanto quanto sua cidade
encantada, a sensação direta do sol sobre sua pele era algo que a fazia sentir
falta do lado de fora.
Um ruído baixo surgiu alguns metros ao longe.
— Tem alguém que quer lhe pedir desculpas — avisou à princesa.
— Tente não se assustar.
— Nada de bom pode vir depois de um comentário desses. — Ela
semicerrou os olhos.
Não poderia negar. Então, apenas levou os dedos aos lábios e
assoviou.
Alto.
Passadas pesadas ecoaram por entre as árvores, partindo galhos e
amassando a grama.
A forma como Anya se encolheu dizia que ela reconheceu o som.
— Calma, confia em mim — Silja tentou confortá-la conforme as
sombras emergiam por entre as árvores.
Os imensos lobos negros desaceleraram seus passos, parando a
apenas alguns metros das garotas. A floresta pareceu prender a respiração
junto com a princesa, ansiosa para ver o que aconteceria depois.
Anya se encolheu.
Mas Silja apenas levantou-se e caminhou até a alcateia.
— Vocês foram muito malvados, não foram? — disse, com um tom
de voz infantil.
O choro rouco que saiu de um dos lobos a fez estender a mão e
acariciar o pelo entre suas orelhas. Era macio e cheirava à terra molhada em
dia de chuva.
— Eram eles... — As palavras da princesa morreram no ar.
— E eles se arrependem de verdade, eu juro.
Havia uma pergunta pairando entre as duas, e a curandeira virou-se
para a princesa.
Anya ficou ali, de joelhos sobre a grama e de olhos arregalados,
visivelmente relembrando de todos os momentos de terror que passara
naquela noite na floresta. Parecia em uma discussão interna consigo mesma
e não restava nada à Silja além de esperar.
E não foi com pouca surpresa que ela observou a princesa
levantando-se e seguindo devagar até sua direção.
— Nomeei carinhosamente esse aqui de Tobias — Silja comentou,
afagando atrás da orelha do líder da alcateia. Então, soltou-o e deixou que
ele encontrasse Anya no meio do caminho.
Ele sentou-se faltando menos de um metro da garota, abaixando a
cabeça e aguardando em silêncio.
Aqueles animais a fascinavam mais do que qualquer coisa. Como
pareciam sentir quando estavam ou não sendo ameaçados, e como se
permitiam a proximidade com ela e seu irmão.
Anya parecia relutante em completar o contato e a curandeira não a
julgava. Era... coisa demais.
Mas Tobias soltou um choramingo que se pareceu muito com um
pedido de desculpas, e mesmo o mais temeroso dos homens se renderia
àquele som.
— Posso fazer isso — Silja ouviu a princesa sussurrar.
E o simples fato de que ela estava tentando tirou um peso que a
curandeira nem percebera que carregava. Havia uma chance afinal.
Estendendo a mão devagar, a princesa fechou os olhos antes que sua
palma tocasse o lobo. Ela gemeu baixinho quando o pelo fez contato com
sua pele, e Tobias ergueu a cabeça, encaixando-se perfeitamente ali.
O resto da alcateia observava silencioso ao lado da curandeira, e ela
se virou para acariciá-los também.
— Vocês têm sorte de eu não usar suas peles para fazer um casaco
de inverno — ela repreendeu.
E uma risada baixa dançou pelos lábios da princesa.
— Ou cobertas — completou.
Tobias resmungou e deitou-se aos pés de Anya, como se não
passasse de um cão doméstico.
Era simplesmente absurdo pensar que aqueles rostinhos simpáticos
eram tão perigosos. A alcateia protegia Ediri dos curiosos, ainda que
humanos não-mágicos não se arriscassem por suas fronteiras.
O medo pelas consequências de serem vistos em território proibido
era maior do que o interesse que tinham por aquelas terras.
— Eu... acho que posso perdoá-los. Desta vez — Anya falou
baixinho, colocando os joelhos sobre a grama outra vez e passando os dedos
atrás das orelhas de Tobias.
Os uivos em coro que ecoaram pela floresta roubaram um sorriso
completo da princesa, e Silja sentiu seu coração aquecer um pouquinho.
Estava conseguindo.
Os lobos cheiravam à chuva, e era estranho para a princesa que
estivesse próxima o suficiente para saber disso sem estar à beira da morte.
Quando o primeiro ar de Ediri soprou contra seu rosto, pensou em
sair correndo, em desistir de qualquer plano e sair em disparada pela
floresta até encontrar alguém que a levasse ao palácio. Poderia dar um jeito
nas coisas. Prometeria a Benjamin que jamais se colocaria como opção para
votação do Conselho.
Mas não poderia fazer isso. Não depois do que ele planejara para
ela, não depois de ele forçar seus pais a esconderem o laço que a garota
nem sabia que era tão importante para ela.
Anya sentira raiva dos pais por eles a terem mantido no escuro sobre
aquilo, mas a fúria logo deu lugar a outra coisa. Tristeza. Tristeza pelo
desespero que sua família enfrentara buscando soluções para protegê-la.
Tristeza por todas as vezes que ela sentira que não fazia parte daquele lugar.
Que estava ali por sorte.
Tristeza por cada momento que lhe foi roubado.
Foi quando as pequenas criaturinhas surgiram.
A princesa queria poder dizer que não sentira medo, mas seria
mentira. A ideia de sair correndo passou novamente por sua cabeça, no
entanto, lembrou-se das estranhas criaturas no rio que a tinham salvado.
Então, ficou.
Ficou e não precisou de muito tempo para que percebesse que aquilo
tudo era mais fascinante do que poderia ter esperado. E entendeu por que os
filhos de Tamal mandaram aqueles seres para Ediri ao invés de caçá-los.
A culpa que ela esperava pelo pensamento também não veio, e
enquanto acariciada os pelos macios de Tobias, teve a sensação de que
estava exatamente onde precisava. Que talvez houvesse alguma coisa
naquela história que ela ainda precisasse descobrir.
Que em centenas de anos, as informações poderiam ter se perdido,
se nublado e adaptado de acordo com os interesses de quem as estava
contando.
Pelos deuses, estava pensando como uma traidora!
Mas se estava realmente agindo contra a Coroa, por que seu peito
parecia tão... vivo?
Ela, a garota que foi criada entre a realeza sem pertencer de verdade,
estava ali com sua vida virada de cabeça para baixo. O trono tinha se
tornado uma possibilidade válida. E conjuradores tinham salvado sua vida.
Se tantas coisas impossíveis já lhe tinham acontecido, poderia ousar
acrescentar mais uma? Sonhar com uma realidade onde todos viveriam em
paz e sob o mesmo céu?
O verdadeiro céu. Feito de azul e de nuvens, tocado pelo sol e pela
lua.
Não por raízes.
Estava sendo tola, sabia disso.
Só porque a tinham ajudado uma vez, não significava que estavam
do mesmo lado. Cada um tinha seus próprios interesses e aquela
proximidade existia apenas por conveniência.
Mas como se lessem cada uma daquelas palavras em seu rosto, os
seres pequeninos se aproximaram ainda mais. A brisa risonha soprou morna
contra sua pele, trazendo o aroma amadeirado da floresta. Uma mãozinha
feita de galhos pousou ao lado da sua e, segundos mais tarde, flores
começaram a brotar.
Lavandas.
Os olhos da princesa se encheram de lágrimas ao vê-las, pois
fizeram-na pensar em casa. Pensar em sua mãe.
O lobo, curioso, levou o focinho às plantinhas roxas — a cor se
destacando entre tanto verde — e espirrou quando tocou em seus ramos,
fazendo com que as pétalas flutuassem para longe, levadas tanto pelo vento
quanto pela magia.
A princesa jogou a cabeça para o alto, como se pudesse mandar as
lágrimas de volta para dentro de si, e prometeu para a imensidão azul
escondida atrás das copas das árvores que encontraria uma solução para
tudo aquilo.
Uma que fosse boa o suficiente para todas as partes.
O tempo havia escapado por entre os dedos da princesa mais uma
vez.
Em um instante, sentava-se sobre a grama de Ediri com Silja e,
segundos mais tarde, o sol cruzava os céus e ameaçava desaparecer no
horizonte.
Horas tinham se passado.
Um dia inteiro.
— Precisamos voltar, Princesa. — A curandeira levantou-se,
franzindo o cenho para os céus. — Não podemos nos manter protegidas
durante a noite, mesmo aqui.
Ela não entendeu muito bem o que aquilo significava, mas acenou e
passou os dedos pelo vestido, afastando as folhas que se grudaram ao
tecido.
— Eu nem vi o dia correr.
Silja fez uma careta.
— Nem eu. — Ela se virou para Tobias, cutucando a ponta de seu
focinho. — Estarei de volta semana que vem. Comportem-se.
E com um aceno de cabeça que pareceu humano demais, a alcateia
se despediu, desaparecendo por entre a mata da mesma forma como tinham
surgido.
Simples assim.
Como se todas as coisas que aconteceram com ela há duas noites
não passassem de devaneios. De pesadelos criados por sua imaginação fértil
demais.
Descendo as escadas, Anya percebeu que o portal antes feito de
raios de sol não passava de uma rede translúcida e que a curandeira não
precisou tocá-lo para que elas o atravessassem de volta.
O formigamento em sua pele ao passar pela barreira foi substituído
por um arrepio ao ser recebida pelo vento frio de Havenmill. Era a primeira
vez que algo além de uma brisa morna aparecia por ali e ela percebeu a
curandeira enrijecer ao seu lado.
Como se percebesse algo errado.
Ela não disse coisa alguma, tampouco pareceu apressada quando
refizeram o caminho de volta para o chalé. Mas a princesa sentia que algo
diferente irradiava dela.
A cidade parecia tranquila e os pequenos animais já começavam a se
esconder da noite, enquanto as crianças corriam e aproveitavam dos últimos
resquícios de luz antes de serem arrastadas para seus banhos.
Tudo tão corriqueiro e banal, todos completamente alheios ao que
acontecia além daquelas barreiras.
Algumas pessoas agora a cumprimentavam, acenavam com a cabeça
e abriam sorrisos tímidos. Não falavam com ela, mas reconheciam sua
presença ali.
Quando adentraram o chalé, a mesa posta com o jantar fez a
princesa suspirar. Estava faminta.
— Ouvi dizer que tiveram um dia agitado. — A voz de Alexzander
surgiu nas escadas.
— Alguém precisava desfazer a bobagem que você fez com a
alcateia. — Silja mostrou a língua para o irmão.
— Não sei do que você está falando. — Ele revirou os olhos. —
Ouvi dizer também que foram até Delilah.
— Você ouviu muitas coisas sobre nosso dia — a princesa retrucou,
fingindo que a menção à bruxa não a fazia estremecer.
Meio-bruxa, lembrou a si mesma.
Uma meio-bruxa capaz de ajudá-la a salvar sua família.
O rapaz deu de ombros, apontando em direção à mesa para que
todos se sentassem. A proximidade com o irmão parecia ter acalmado Silja
e ela abriu um sorriso enquanto levava um punhado de arroz até seu prato.
— E gostou dela? — Alexzander perguntou de forma casual.
— Hã? — Aquilo a pegou desprevenida.
— De Delilah, quero dizer.
Não tivera tempo de formar uma opinião concreta. A descendência
bruxa era, de fato um incômodo, mas não tinha certeza se era algo tão
diferente das criaturas que passaram o dia em sua companhia. De forma
pacífica.
— Ela é... diferente.
Silja apertou os lábios, contendo uma gargalhada.
— Acha que ela tem uma chance em uma reunião com o Conselho
Real?
A curandeira ajeitou-se de forma desconfortável na cadeira,
visivelmente engolindo em seco.
— Nós não conversamos sobre isso ainda — ela respondeu,
entredentes.
Algo estava acontecendo ali, e Anya não fazia ideia do quê.
— O que quer dizer com isso? — a princesa indagou, passando os
olhos de um irmão para o outro.
Um silêncio pesado se instaurou na cozinha e ela soube que havia
algo importante que não estavam contando a ela.
— O que quer dizer com isso? — insistiu, com a voz mais seca que
conseguiu produzir. Não foi tão difícil assim.
Silja colocou o rosto entre as mãos, escorando os cotovelos na mesa.
— Cedo demais — ela sussurrou. — Essa conversa está
acontecendo cedo demais.
A princesa conseguia sentir a irritação subindo por sua garganta, e
arrastou a cadeira com força ao levantar-se da mesa. Seu mundo inteiro
girou com as palavras seguintes que saíram de Alexzander.
— As coisas em Havenmill têm andado estranhas. A força que rege
nossa magia está começando a falhar e sabemos que isso está relacionado
ao fato de estarmos aqui embaixo há tanto tempo. — Ele suspirou
ruidosamente. — Precisávamos encontrar um jeito de... bom, vivermos lá
fora.
Anya pousou as duas mãos sobre a mesa, sentindo todo o ar
deixando seu corpo. Ela fechou os olhos quando as palavras começaram a
se encaixar dentro de si.
Estavam a usando.
Claro que estavam.
Por que outro motivo arriscariam tudo aquilo que construíram
trazendo alguém do castelo para aquela cidade?
— Por isso me trouxeram pra cá — sussurrou. — Porque
precisavam de alguém para se colocar a favor de vocês com meu pai.
— Não exatamente — Silja falou, massageando as têmporas. —
Quando descobrimos que você era elegível ao trono, pensamos que... se
você conhecesse nossa versão dos fatos, se compreendesse a verdade sobre
a magia...
Anya bufou.
— Vocês me salvaram porque era conveniente que a possível Rainha
simpatizasse com Havenmill.
As paredes começaram a parecer próximas demais, ameaçando
esmagá-la por todos os lados. Eles a tinham enganado. Era tudo um plano.
Salvá-la, encantá-la com a cidade.
Com as criaturas mágicas.
E ela tinha permitido que o fizessem. Chegou a pensar que... Por
todos os deuses! Chegou a pensar que poderia mudar as coisas! E levou
apenas dois dias para isso.
Idiota.
Anya era uma completa idiota.
— Não — Alexzander respondeu. — Não pretendíamos intervir até
descobrirmos o que Benjamin planejava. Apenas não poderíamos deixar
que ele a descartasse como... como lixo.
— Vocês me usaram! — Anya gritou.
— Como se você não tivesse ficado para usar nosso poder contra
seu primo — Silja rebateu. — Foi você quem disse, não lembra? Que
acreditava não ser capaz de ajudar seus pais sem a gente.
As palavras cortaram o ar como se fossem navalhas. E não havia
acusação alguma no tom que a curandeira usava.
O que doeu foi o fato de que eram verdadeiras.
Ela os estava usando também.
Mas antes que pudesse responder qualquer coisa, antes que
encontrasse as palavras que gostaria de dizer, Alexzander jogou sua cadeira
para trás e encarou um ponto atrás dela.
A porta do chalé.
O ranger de janelas se abrindo em sincronia lá fora, murmúrios
curiosos vindos das pessoas.
O rapaz já estava a meio caminho da entrada da casa quando sua
cadeira tombou no chão, o único som existente naquela cozinha.
Ao longe, alguém parecia chorar.
Ou talvez gritar.
E Silja estava congelada como uma estátua em seu assento na mesa,
até que finalmente pareceu capaz de se mover e se levantou apressada.
Um nó subiu pela garganta da princesa, um pressentimento ruim
deixando um gosto amargo em sua boca.
Ela seguiu logo atrás de Alexzander, prendendo a respiração ao pisar
na varanda.
Porque ela conhecia o vulto que se aproximava correndo,
tropeçando em raízes e pedras. Conhecia os cabelos longos cor de chocolate
grudados no rosto úmido por lágrimas, suor ou pelo sangue que escorria.
Farah caiu de joelhos a apenas alguns metros do chalé, entre os
jardins de grama alta da praça central de Havenmill.
E pela primeira vez em anos, não havia flor alguma decorando seus
cabelos.
Ela tinha falhado.
Com seu pai. Com sua cidade. Com seu Rei.
Enquanto as nixies a atravessavam pelo rio, Farah não se permitiu
pensar naquelas coisas. Manteve longe de sua mente todos os gritos e as
manchas de sangue. Afastou a dor que sentia em sua pele e em seu coração.
Mas ali, caída de joelhos no lugar que ela mais reconhecia como
casa, todas aquelas lembranças se amontoaram umas nas outras e levaram
todo o ar do mundo embora.
Com as mãos ainda espalmadas sobre a grama, ousou erguer os
olhos apenas uma vez. Ousou encarar sua melhor amiga que parecia não
entender o que ela fazia ali. E deixou que o choro preso em sua garganta
irrompesse.
O Rei está morto, era o que precisava dizer. Mesmo desejando que
tudo não passasse de uma piada de mal gosto.
Estavam todos mortos.
E Farah não fazia ideia de como começar a explicar tudo aquilo para
a princesa. Como dizer que mentira durante sua vida inteira e que falhara na
única missão que lhe tinha sido confiada. Não conseguia desviar seus olhos
dos dela, mesmo sabendo que eles refletiam toda a sua vergonha e culpa.
Vergonha pelo que escondera. Culpa pelo que deixara acontecer.
Não tinha falhado apenas com ela, mas com cada um daqueles
rostos que agora a observavam de suas varandas, que a chamavam pelo
nome e faziam perguntas que não estava pronta para responder.
Queriam saber o que tinha acontecido. Como ela acabara naquelas
roupas encharcadas e com sangue escorrendo de seu rosto. Onde estava seu
pai.
Seu pai... que abrira mão da vida tranquila que tinham em nome da
causa em que acreditava, que se arriscara dia após dia naquele castelo e
agora jazia sobre as pedras frias demais das masmorras.
Tinha falhado com ele também.
Não fora forte o suficiente, treinada o suficiente e deixou a vida do
Rei que eles juraram proteger escapar por entre seus dedos como um
punhado de areia.
Um cheiro familiar acompanhou o som de passos pesados sobre a
grama, e então mãos fortes agarraram seus ombros. Mas sua visão estava
embaçada pelas lágrimas que vieram de lugar nenhum e o odor metálico de
sangue não abandonava seu nariz, sobrepujando qualquer sinal de conforto
que o toque quente poderia lhe trazer.
— Farah? — Ela conhecia aquela voz, não conhecia?
Braços passaram por suas costas e pernas, e ela sentiu-se ser erguida
do chão. Fios castanhos caíram sobre seu rosto quando Alexzander — ah, o
cheiro de café — a encarou com aqueles olhos azuis como o oceano, tão
arregalados que poderiam engoli-la.
— O Rei está morto — conseguiu dizer finalmente.
Seu amigo estacou no meio de um movimento, e seu rosto — aquele
rosto que roubava o fôlego dela cada vez que o via — mirou algo que se
movia logo à frente.
Farah acompanhou seu olhar a tempo de encontrar Anya,
atravessando a passos trôpegos a pouca distância que as separava.
Sabia que precisava encarar aquilo, que não havia como evitar a
verdade que a assombraria para sempre. Então, se desvencilhou dos braços
de Alexzander, pousando as pernas trêmulas no chão e respirando fundo,
rezando para que não cedessem outra vez.
Muitas perguntas estampavam o rosto de sua amiga, mas havia algo
que Farah não esperava encontrar ali. Alívio. Alívio pelo reconhecimento,
por se deparar com alguém em quem ela confiava.
E aquilo doeu ainda mais.
A princesa a envolveu em um abraço apertado, murmurando
palavras que o nervosismo a impedia de entender.
— Eu sinto muito, Princesa. — Foi o que saiu de seus lábios. Os
lábios de uma traidora.
— O que aconteceu? O que você está fazendo aqui?
Aquelas perguntas cortavam como lâminas, pois as respostas que
tinha para dar eram terríveis.
— Benjamin os matou — ela sussurrou entre os cabelos da princesa.
A garota congelou ao seu redor.
— O quê?
Não havia um jeito certo de explicar aquilo. Jamais existiram
palavras doces o suficiente para colocar o mundo de alguém abaixo.
— Acho que devemos ter essa conversa lá dentro. — A voz de
Alexzander pairou entre as duas. — Todos aqui fora já estão assustados
demais.
— Eu falo com eles. — Delilah, que Farah nem percebera que
também estava ali, avisou.
Ela relutou a se desvencilhar do abraço de Anya, temendo que fosse
o último. Que sua amiga jamais a perdoasse quando soubesse a verdade.
Mas Farah, enfim, a soltou.
E os três adentraram o chalé que trazia tantas lembranças de seu pai.
Assim que a porta se fechou atrás dela, deixou outra vez que suas
pernas desmoronassem, sentindo a madeira contra suas costas até que
estivesse completamente no chão.
A princesa se colocou de joelhos à sua frente, tocando suas
bochechas como se ainda tivesse dúvidas de que ela era real. Que estava
mesmo ali.
— O que você disse que Benjamin fez? — indagou.
— Eu juro que tentei salvá-los — as palavras tropeçavam umas nas
outras, cortadas pelo choro que não cessava —, mas o príncipe estava
cansado das respostas evasivas e quando meu pai tentou ajudá-los a fugir...
— Ajudar quem? — A voz da princesa saía em forma de súplica.
Ela estava começando a entender.
Atrás dela, Farah podia ver os olhos marejados de Silja, e o braço de
Alexzander envolvendo a irmã. Mas a verdade era tão difícil de ser dita...
— O Rei e a Rainha — falou finalmente.
E Anya deixou o corpo pender para trás, como se Farah a estivesse
estapeado.
— Você está mentindo.
Uma ruga marcava sua testa como se nada daquilo fizesse qualquer
sentido. Como se a princesa estivesse tentando entender uma piada
complexa demais.
— Eu sinto muito — Farah repetiu, levando suas mãos até as de
Anya. Não tinha percebido que suas palmas estavam cortadas até que
ardessem diante do toque. — Anya, olhe para mim.
Mas a garota encarava as mãos delas que se tocavam, procurando
respostas nas marcas de terra e de sangue. As coisas pareciam se encaixar
aos poucos dentro de sua cabeça.
— Temos pessoas de confiança dentro do castelo — Anya
sussurrou, e Farah não entendeu de primeira o que ela queria dizer.
Até que a princesa se levantou tão rápido que tropeçou na mesa
atrás de si. Ela se virou para Silja, o rosto contorcido em uma máscara de
fúria.
— Quem eram as pessoas de confiança dentro do castelo? — ela
gritou para a curandeira.
— Princesa... — Silja gaguejou.
— QUEM ERAM?
— Meu pai — foi Farah quem respondeu — e eu.
O mundo inteiro da princesa pareceu desabar bem ali, diante de
todos. Ela pousou uma mão sobre o tampo da mesa, seu peito subia e descia
tão rápido que Farah se preocupou que ela desmaiasse.
— Você mentiu para mim todos esses anos.
Não era uma pergunta.
— Eu queria te contar. Todos os dias. — Sua voz falhou — Todos os
dias eu quis te contar.
— Nós não nos perdemos uma da outra no dia da invasão — Anya
sussurrou. — Você me arrastou pelo castelo até Alexzander.
— Eu não podia deixar você lá, não podia permitir que Benjamin
fizesse as coisas horríveis que tinha planejado para você!
No entanto, a princesa não parecia ouvi-la. Começou a andar pela
cozinha, enquanto Silja e seu irmão se encaravam sem ter certeza do que
fazer.
Farah se forçou a levantar e ir até sua amiga.
— Não era um segredo só meu para guardar — sussurrou.
— Eles estão mesmo mortos?
E o rosto de Anya estava sério, encarando-a como se tivessem
acabado de se conhecer. De certa forma, tinham. Farah não conseguiria
repetir aquelas palavras, então apenas assentiu.
— Conan?
— Não sei. Não o vi desde o dia do ataque.
— Quem mais?
— O quê?
— Quem mais está morto?
E havia frieza na pergunta. A princesa parecia estar agindo de modo
automático, apenas buscando respostas sem absorver de fato o que elas
queriam dizer.
Estava em choque.
— Meu pai.
Silja emitiu um som baixo e rouco que fez Farah lembrar de um
animal ferido. Ela sentiu mais do que viu Alexzander envolver a irmã em
um abraço apertado.
Magmar os tinha ajudado uma vez. Era graças a ele que ambos
estavam vivos, e eles se lembravam disso.
A fachada de gelo no rosto da princesa estremeceu por alguns
segundos, parecendo pensar no Conselheiro e em todas as vezes em que o
vira no palácio.
Havia mais uma pessoa. Mas Farah não queria dizer aquilo em voz
alta. Em poucos minutos, já tinha tirado tudo de sua melhor amiga.
Porém, ela precisava saber.
— E Faen — sussurrou.
Anya puxou o ar pesadamente, levando as duas mãos ao peito e
fechando os olhos. As lágrimas rolavam ainda assim.
A camareira era a única razão para Farah ainda estar viva.
Tão jovem, tão leal. Ela jamais se esqueceria dos gritos de terror e
dor da garota quando seu escudo protetor fora dissolvido por Benjamin.
— Você nunca me contou sobre sua casa. — E foi naquele momento
que a princesa desmoronou por completo. — Você nunca me contou sobre
quem a ensinou a lutar ou sobre como era sua cidade natal. Porque você
nasceu aqui.
Farah assentiu, lembrando-se do dia em que seu pai chegou em casa
dizendo que precisariam ir embora. Que recebera uma missão do Conselho
de Havenmill e teriam de se mudar para Wellin, para uma cidade lá fora.
Ela tinha apenas nove anos e lhe pareceu absurdo quando ele avisou
que não poderiam usar magia, que aquele era um segredo que apenas os
dois compartilhavam. Era uma missão supersecreta, Magmar tinha dito. Na
qual ele seria responsável por ter informações diretas do rei a respeito da
caça aos conjuradores. Responsável por desviar as pistas cada vez que a
Coroa chegasse perto demais de encontrar a cidade escondida.
Foi assim que ela e a princesa se conheceram.
E não era mentira dizer que não houve um dia em que não desejara
contar para Anya sobre sua verdadeira história. Mas a segurança de seu
povo era mais importante.
E Anya não acreditaria nela, de qualquer forma.
Farah olhou ao redor, afastando as lágrimas com o dorso da mão.
O chalé estava exatamente como ela se lembrava. Quente,
aconchegante, cheirando a chá de maçã. Ela, que sempre desejou voltar
para aquela casa, viu nas paredes de madeira não um sonho realizado, mas
um pesadelo.
A porta se abriu e fechou atrás dela, e olhou por cima do ombro a
tempo de ver Delilah se colocando no canto do cômodo. Tranquila, mas
pronta para intervir caso as coisas saíssem do controle.
Saíssem mais do controle.
— Por que não veio comigo? — Anya encarou-a. — Por que deixou
que completos estranhos me trouxessem para este lugar sabendo o quanto
isso me assustaria?
Mágoa.
Cada centímetro do rosto de sua melhor amiga estava coberto de
mágoa.
Ela também não queria responder aquela pergunta.
Dizer aquilo em voz alta transformaria em verdade o erro colossal
que ela cometera.
Diante do silêncio ensurdecedor, foi Alexzander quem concluiu.
— Porque ela e Magmar precisavam proteger o Rei.
Uma risada seca saiu dos lábios da princesa.
— Parece que não se saíram muito bem nisso.
Ninguém ousou responder.

Mortos.
Seus pais estavam mortos.
Se qualquer outra pessoa tivesse proferido aquelas palavras, Anya
não teria acreditado. Teria dito que estavam todos loucos, pois aquela era a
coisa mais absurda que já tinha ouvido em toda a sua vida.
Mais absurda do que todas as outras coisas absurdas que lhe foram
ditas nos últimos dois dias.
No entanto, tinha sido Farah.
Farah, sua melhor amiga desde que era capaz de se lembrar.
O rugido que ecoava nos ouvidos da princesa a impedia de entender
o que os outros conversavam, e tudo parecia acontecer em câmera lenta.
Seus pés a levaram até uma das poltronas na sala e suas mãos
seguravam uma xícara de chá, mas tudo aquilo parecia tão banal e sem
propósito, afinal, o mundo era agora um lugar onde seus pais não existiam
mais.
Elysia não mais veria as flores que ela tanto amava, nem entraria de
fininho no salão de música para ouvir a filha tocar. As duas não discutiriam
mais os livros que liam e os braços de sua mãe nunca mais a envolveriam
em um abraço.
As raras, mas contagiantes, gargalhadas de seu pai não teriam a
chance de retumbar pelos corredores do palácio, e mesmo os seus
resmungos não preencheriam mais o silêncio dos cafés da manhã.
Anya sabia que cada parte de seu corpo estava tremendo, mesmo
que o chalé estivesse quente. Via pelo canto dos olhos que Silja caminhava
de um lado para o outro, escondendo suas lágrimas e tentando se fazer útil.
Talvez o chá nas mãos da princesa tivesse sido trazido por ela, mas
não tinha certeza disso.
Não tinha certeza de nada além do fato de que tudo o que ela
conhecia deixou de existir desde que saíra do castelo. Mal tinham se
passado dois dias, mas poderiam ter sido anos.
Farah estava sentada à sua frente, os ombros escondidos sob uma
toalha por causa da roupa molhada. Tinha sangue em seu rosto e em suas
mãos, e a princesa queria lhe perguntar como ela conseguira aqueles cortes,
mas as palavras insistiam em fugir cada vez que lembrava o que a garota
tinha feito.
Uma vida inteira de mentiras.
Não havia sequer um aspecto da existência de Anya que não tinha
sido roubado, refutado ou destruído.
Seu passado era uma mentira, suas crenças eram controversas e sua
amiga... Amiga. Aquela palavra ainda se aplicava? Seria aquele o preço por
se deixar levar com aquela história de magia? Perder todas as coisas que
achava que tinha?
O choque era a única coisa que a impedia de desabar por completo.
Não reconhecia sua voz quando falava, tampouco a postura que assumira.
Seus ombros nunca estiveram tão para trás e o queixo jamais estivera tão
erguido.
Se pegou ali, ouvindo Farah falar sobre os últimos dois dias no
palácio. Como seus pais foram interrogados — ela sabia que a palavra que
sua amiga evitava era torturados — enquanto ela estava brincando com
seres mágicos e correndo com lobos.
Queria sentir raiva da garota que mentira para ela, mas sabia que
Farah não possuía culpa alguma.
Ela não tinha feito aquelas coisas.
Seu primo tinha.
Aquele desgraçado.
— Como assim o Príncipe tem magia? — indagou Alexzander em
certo momento.
Mas Farah não soube explicar.
Benjamin os atacara com um poder que ela não foi capaz de
reconhecer. Era algo sombrio e que não apenas esmagava sua própria
magia, como mantinha os soldados e os criados do castelo presos a uma
rede de controle absoluto.
Eles não faziam nada além do que ele ordenava.
E ninguém ali parecia reconhecer qualquer traço daquele poder.
Anya tentou não pensar em Conan, no que o príncipe teria feito com
ele. Não sabia se aguentaria perder mais alguma coisa.
A princesa não sabia em que momento Delilah, a bruxa, chegara,
mas ela ficava questionando Farah sobre o tal poder que o príncipe possuía,
como se tivesse esperança de que qualquer pequeno detalhe fosse a peça-
chave daquele quebra-cabeça.
Queria mandá-la calar a boca, mas as palavras não saíram.
Ela estava com tanta raiva! Perguntava-se se, caso tivesse fugido
naquela primeira noite, as coisas teriam sido diferentes.
Se não a tivessem levado embora. Se Benjamin a tivesse
encontrado. Sabia que daria sua vida pela deles, sem pensar duas vezes.
Anya se entregaria se o primo jurasse que pouparia seus pais.
Mas ele nunca o faria.
Alguém como Benjamin não cumpria promessas.
E agora estava tudo perdido, agora...
— Ele disse que fomos nós — Farah sussurrou de repente.
— Como assim? — Delilah disse
— Benjamin emitiu um comunicado que conjuradores atacaram o
castelo na calada da noite. O reino está um caos completo. — Ela
recomeçou a chorar. — Estão atacando pessoas nas ruas. Qualquer
comportamento suspeito é denunciado e as pessoas estão sendo levadas
pelos soldados. Com ou sem provas.
— Não podemos mais permitir que ninguém saia de Havenmill — a
meio-bruxa anunciou. — Por qualquer motivo que seja. Não haverá mais
idas ao Mercado ou à Aldeia. Não podemos arriscar que um dos nossos
sejam pegos.
— Acha que podem entregar Havenmill? — Alexzander questionou.
— Todos aguentam apenas até certo limite. Não podemos arriscar.
Benjamin finalmente conseguiria o que queria.
Não havia Rei para impedi-lo de receber a Coroa e Anya estava ali
embaixo, sem que ninguém soubesse que era elegível para governar. Sem
que ninguém soubesse que estava viva.
Mas ele tinha assassinado seus pais.
Tinha assassinado Faen e o pai de sua melhor amiga.
Conan, pelo que ela sabia, poderia estar morto também.
Anya não poderia permitir que ele vencesse.
Precisava lutar com todas as armas que tinha e fazer delas o
suficiente. Mas como? Se ele era um conjurador, que chance ela teria?
A verdade atingiu-a com tanta força que chegou a arfar, e todos na
sala olharam para ela.
Sabia o que precisava fazer, ainda que não quisesse dizer aquelas
palavras em voz alta.
Decidiu que se aliaria aos conjuradores para salvar seus pais, mas
agora que eles não estavam mais ali... Chegou a pensar que não havia mais
nada pelo que lutar.
Mas havia.
Oliver tentou poupar Duhn de um governante perverso e teve sua
vida ceifada por ele. Precisava fazer com que aquilo não fosse em vão.
Algo dentro dela se revirou quando a princesa se levantou da
poltrona, encarando cada um dos rostos na sala para depois dizer.
— Quero que me ensinem magia — disse, por fim.
Todos os olhos na sala se arregalaram.
— O quê? — foi Farah quem sussurrou.
— Benjamin é agora um conjurador. — Anya não permitiu que as
palavras falhassem, mesmo que sentisse seu corpo inteiro tremer. — E a
única chance que eu tenho de enfrentá-lo é me tornando uma também.
Vocês disseram que existe um ritual de iniciação.
A princesa encarou Delilah quando prosseguiu:
— Você disse que existe um ritual. É possível que alguém que não
seja de Havenmill o realize?
— Não precisa fazer isso, Princesa — Delilah respondeu.
— É possível? — insistiu.
— Sim, mas... — A meio-bruxa parecia ter sua própria batalha
sendo travada dentro de si. Até que, por fim, foi capaz de formular uma
frase completa. — Sabemos o que a magia significa para você. Nós
podemos ajudá-la sem que abra mão de quem você é.
— Eu não sei mais quem eu sou — respondeu —, mas eu sei quem
eu não quero ser. Eu não quero ser alguém que dá as costas para meu povo,
que os abandona e os deixa à mercê de um monstro. Vocês me trouxeram
aqui por um motivo, é a chance de conseguirem o que queriam. Queriam
uma Rainha como aliada, mas podem conseguir uma Rainha igual a vocês.
Ela mal conseguia acreditar nas próprias palavras, mas sabia que
não havia outra opção.
Aquela era uma batalha dela, e queria todas as chances de vencê-la.
Vingaria seus pais e seus amigos, e salvaria seu reino de um
governante tirano.
— O Rei está morto — a princesa anunciou, com a voz mais firme
que foi capaz de produzir — e eu, Anya Dahnasa, herdeira legítima de
Oliver Dahnasa, assumirei seu lugar como Grande Rainha de Duhn.
E se para isso ela precisasse abandonar quem era, seria um preço
pequeno a se pagar.
Benjamin estava cansado dos gritos. Estava cansado de repetir as
mesmas perguntas e não ser respondido.
Seu tio realmente não sabia para onde a vadiazinha tinha fugido,
caso contrário, teria admitido enquanto estava sob domínio de seu poder.
Mas as súplicas que ecoavam por aquelas paredes estavam
estragando o café do príncipe. O Grande Rei de Duhn não parecia tão
grandioso agora.
Este castelo está caindo aos pedaços, pensou, encarando o salão ao
seu redor. O mármore claro estava coberto de poeira e cabeças de estátuas
derrubadas. E os arranhões na pedra não melhoravam em nada sua
aparência.
Aquelas bombas não tinham sido uma ideia tão boa, concluiu. Mas
as criadas resolveriam tudo em breve. Precisava do palácio impecável
quando a Coroa finalmente fosse sua, quando se sentasse no trono dourado
que almejara por tantos anos.
Havia esperado tempo demais por aquilo.
Uma vida inteira.
Tudo teria de ser perfeito.
A pequena reforma, ao menos, lhe daria alguns dias para encontrar
sua querida prima, para acabar de uma vez por todas com aquela piada que
Oliver trouxera para a família.
Mais gritos soaram pelas paredes de pedra. Femininos desta vez.
Com um gesto simples dos dedos, mais rápido que seu revirar de
olhos, Benjamin observou o soldado que se aproximava para escoltá-lo até
a sala de interrogatório.
Acabaria com a mulher primeiro. Queria ver os olhos de Oliver
quando sua esposa deixasse este mundo e fosse para... bom, se dependesse
dele, para o inferno.
Não precisava mais deles.
Não depois de descobrir que o soldado de cabelos ruivos ao seu lado
tinha certa ligação com a princesa desaparecida.
Era o motivo pelo qual o tinha escolhido como seu guarda pessoal,
mantendo-o consigo a cada instante.
Perguntara o nome dele por pura casualidade, já que não se
importava de fato.
E o colocara para caçar pistas sobre possíveis paradeiros da garota.
Era de interesse do soldado que ela vivesse.
Tudo bem, o príncipe mentira ao dizer que ela sobreviveria. Mas
com seu poder controlando cada ação do rapaz, não fazia diferença. Ele
obedeceria no final das contas.
E depois que Benjamin acusou os tais conjuradores para o povo de
capturarem o Rei, depois que se colocou à total disposição para enfrentá-los
e ofereceu recompensas para cada um que trouxesse um traidor da Coroa
até ele, estava ganhando a confiança de seus súditos.
Não que precisasse dela realmente, mas gostava da atenção.
Queria que vissem nele a salvação que eles tantos buscaram, quem
livraria Duhn daquelas abominações mágicas de uma vez por todas.
Sua própria magia era apenas um efeito colateral, uma consequência
de ousar se colocar contra aqueles monstros. Seria perdoado no final.
A história se repete, tinha dito ao povo. Após quatro séculos do
ataque que reduziu o palácio às cinzas, os traidores retornaram e levaram
mais um Rei. E era dever de Benjamin vingar sua morte.
Ele riu consigo mesmo.
Ah, se ao menos soubessem.
Mas para que tudo aquilo funcionasse, precisava encontrar a
Princesa. Evitar que ela reaparecesse de repente contando uma história que
colocaria a sua própria versão dos fatos à prova.
Também precisava se livrar do conselheiro.
O Príncipe sempre tivera o resto do Conselho nas mãos, mas aquele
conjurador medíocre não poderia mais fazer parte dele. Benjamin não
queria desperdiçar seu poder naquele homem.
Mas enquanto descia as escadas, novos gritos começaram.
Não de Oliver, não da rainha.
— Tranque todas entradas do castelo — rosnou para o garoto de
cabelos vermelhos. — Não deixe que ninguém entre ou saia daqui.
Aquela agitação não fazia parte de seus planos.
Benjamin acelerou seus passos e chegou às masmorras a tempo de
ver Magmar ser contido. Bom, ser atravessado por uma espada, na verdade.
— Ele escapou do calabouço — contou o soldado, com aquele tom
de voz monótono causado pela falta de personalidade. — Estava tentando
chegar à câmara do Rei.
Ótimo, tinham lhe poupado trabalho.
— A garota conseguiu correr — o sentinela continuou.
Merda.
A filha de Magmar deveria ter sido morta dias atrás, mas por algum
motivo, ousou poupá-la.
Esse era o preço pela misericórdia.
— Deixem-na para mim — gritou para ninguém em particular,
seguindo na direção apontada pelo soldado.
Sua magia pulsava dentro dele, pronta para atacar qualquer um que
surgisse à sua frente.
No entanto, quem se colocou diante dele era uma criada que ele não
tinha visto. Uma garota de cabelos laranjas que não apresentava qualquer
sinal de estar sob seu poder.
Uma rede de gavinhas douradas brotava de suas mãos, entrelaçando-
se umas nas outras e formando uma barreira protetora que o impedia de
chegar até a filha de Magmar.
O príncipe riu com escárnio.
— Garota tola — ronronou.
Pois sua magia já estava pronta e ele sabia melhor do que ninguém
que até mesmo a Luz se curvava para a Morte.
Levou menos de alguns segundos para que seu poder dissolvesse
aquele escudo, e sorriu quando a criada gritou ao ver sua rede ser corroída
centímetro por centímetro, como ácido jogado sobre um pano velho.
Ela lhe mostrou os dentes, como se quisesse mordê-lo, e Benjamin
gargalhou.
E o som de sua risada ainda ecoava quando ele envolveu o pescoço
dela, ainda ecoava quando ela caiu como uma casca vazia, inerte sobre o
piso esbranquiçado.
Afastou o corpo com o pé para que abrisse caminho e seguiu pelo
corredor, mas Farah já havia desaparecido.
Acompanhada de um grito, uma onda de poder explodiu do corpo
do príncipe, estendendo-se por todas as direções.
O castelo inteiro tremeu. Mais janelas estouraram, mais estátuas se
esfarelaram pelo chão.
A magia prateada irrompeu de seu corpo e, mesmo à distância,
Benjamin conseguiu ouvir o último lamentar de um rei e de uma rainha.
Apesar da raiva pela fuga da conjuradora, o príncipe sorriu.
Dois problemas a menos.
— Quero um soldado em cada centímetro deste reino — ele
vociferou para os guardas que surgiam atrás dele. — Qualquer pessoa
suspeita deve ser detida e interrogada. Encontrem Farah Habren e a tragam
de volta.
Ela iria atrás da princesa, Benjamin sabia.
Então, abriu ainda mais seu sorriso quando completou:
— Viva.
PARTE II:

LUZ E SOMBRAS
Não havia estrelas na noite de Havenmill, Anya percebeu depois de
muito tempo olhando pela janela.
Os dias eram envoltos por uma luz que se parecia muito com o sol,
mas quando a escuridão tomava conta, não havia qualquer sinal dos
pontinhos luminosos através das sombras lá no alto.
Ela mal viu a madrugada chegar.
Mas dessa vez, as horas não flutuaram para longe com aquela
velocidade exasperante. Não. Elas se arrastaram. Seus segundos se
espicharam, compridos, como se temessem serem deixados para trás.
Aquela mesma noite abrigara tempo o suficiente para que
Alexzander deixasse e voltasse ao chalé, para que Delilah e Farah partissem
para quaisquer que fossem seus destinos, e para que Silja levasse a princesa
até a banheira.
Ela não se importou quando a curandeira a despiu ou quando a
mergulhou na água morna. Já não havia exposição maior do que aquela na
sala horas atrás.
O sabonete cheirava a canela, exatamente como aquele que usava no
palácio, e a princesa se perguntou se era algum truque de magia. Uma
lembrança de casa para confortá-la.
Coubera tanto tempo naquela noite que Anya já estava de volta ao
que se tornara seu quarto, com cobertores até a altura de seu pescoço, mas
que não a aqueciam de verdade — não do jeito que importava.
As cortinas violeta dançavam tranquilamente, embaladas pelo
frescor noturno que parecia alheio ao terror que ameaçava partir o
horizonte.
Alexzander já havia retornado e estava escorado na cômoda à sua
frente. Os olhos avermelhados eram o único sinal de que tinha chorado.
Silja permanecia imóvel, sentada ao pé da cama, perdida em um mundo só
dela.
— Vocês disseram que eles estavam sendo protegidos. — A voz da
princesa saiu arranhada, como se não falasse há dias. Seus olhos se
enchendo novamente.
— As coisas saíram do controle — a curandeira sussurrou, sem
ousar encará-la. — Magmar era um dos melhores Artesões que tínhamos
aqui. Se havia alguém capaz de mantê-los em segurança, era ele.
— Artesões? — A pergunta saiu antes que pudesse evitar.
— Conjuradores com poderes de proteção. — Silja arriscou lançar-
lhe um olhar de soslaio. — Que criam escudos e barreiras, sejam elas
individuais ou com um alcance maior.
— Como você fez em Ediri.
— Como eu fiz em Ediri.
— E ainda assim... ele falhou. — A princesa pousou o rosto entre os
punhos.
— Ninguém poderia imaginar que Benjamin teria seus próprios
poderes — Alexzander interveio pela irmã.
E se aquilo significasse que ela nunca seria capaz de vencê-lo? Se
Magmar era tão bom quanto eles diziam e, ainda assim, não conseguiu
conter o príncipe...
Como se lesse seus pensamentos, Silja pousou a mão sobre a
coberta, tocando o tornozelo da princesa.
— Benjamin tinha o elemento surpresa. E isso está a nosso favor
agora.
A nosso favor.
Precisou apenas que sua mãe e seu pai fossem mortos para
conquistar aquela vantagem.
— Vocês nem conseguiram reconhecer que poderes são esses —
disse, simplesmente.
— Delilah está agora mesmo trabalhando para buscar respostas.
A princesa encarou a noite através da janela.
Silja dissera que ninguém se importava com Havenmill como a
meio-bruxa, e conseguiu imaginar a mulher coberta pela escuridão, caçando
informações como algum tipo de predador.
Perguntou-se se ela via o mundo de um jeito diferente. Um jeito de...
bruxa.
Então, seus pensamentos resolveram brincar com ela.
Partiram da noite na cidade escondida e vagaram para além dos
limites de Havenmill, tentando imaginar onde estariam os corpos de seus
pais. O que Benjamin teria feito com eles.
Será que tinham sofrido?
Não, não poderia ficar pensando nessas coisas.
— Onde está Farah? — Ela se encolheu ao dizer o nome de sua
amiga.
— Saiu com Delilah, mas não sei para onde foi. Ela quis te dar
tempo para... processar. — Alexzander suspirou. — Sabe, ela queria mesmo
te contar. Você precisa entender o risco que seria falar sobre esse lugar para
qualquer pessoa.
Ela não precisava entender nada.
No entanto, não era por aquele motivo que perguntara sobre a
garota.
O peito da princesa doía apenas ao pensar naqueles que perdera,
mas sabia que não tinha sido a única.
Magmar foi um bom conselheiro. Seu pai o adorava — ao seu
próprio modo, pelo menos.
Lembrou-se das flores no jardim que viu além das janelas daquele
quarto, e de como seu primeiro pensamento ao percebê-las tinha sido sua
amiga.
Como poderia odiá-la?
Eram inseparáveis desde crianças, sabia que o sentimento não tinha
sido mentira. Não poderia ser. E já tinha perdido o suficiente. Já tinha
perdido demais.
— Você tem certeza do que pretende fazer amanhã? — Alexzander
perguntou, de repente.
A princesa tinha.
Sabia que era o único jeito.
Entraria naquele palácio e faria Benjamin se arrepender de cada gota
de sangue derramada ao longo daquela vida miserável.
Para isso, precisava aprender magia.
Travessia, é como Delilah tinha chamado aquele ritual.
— Sim — Anya confirmou. — Tenho.
Mas amanhã, pensou.
Ali, naquela noite, ela apenas choraria.
Seus pais estavam mortos.
Faen estava morta.
Conan... ela não sabia.
Não tinha certeza se gostaria de saber.
A princesa se daria aquela noite, decidiu, para chorar e sentir tudo o
que precisasse; para transbordar tudo o que estava entalado em sua
garganta.
Apenas aquela noite.
O alvorecer secaria suas lágrimas e ela usaria sua dor como uma
armadura.
Não seria a primeira vez.

Delilah não conseguiu ficar no chalé por muito tempo.


Não ao descobrir que um de seus melhores amigos estava morto.
Magmar, que a tinha consolado quando sua mãe foi embora de
Havenmill, e aberto suas portas quando o pai dela estivera tão envolto na
própria perda que se esqueceu da filha.
Tinham crescido juntos, e a meio-bruxa zombou quando o tempo
parou de passar para ela. Quando a idade continuou avançando para ele.
Não era mais engraçado.
Não quando o tempo dele tinha sido roubado. Quando sua vida foi
cortada pela metade e sua filha deixada sozinha, como Delilah já estivera
um dia.
A meio-bruxa daria um jeito de cuidar dela.
Não sabia como, mas precisava que Farah soubesse que ainda tinha
alguém.
E vingaria seu amigo.
Caçaria Benjamin até o último dia de sua vida.
O príncipe cuja magia ela suspeitava conhecer.
Havia apenas um clã com um poder que se assemelhava ao que
Farah descrevera. E que as Sete os salvassem caso estivesse certa!
Não tivera coragem de contar suas desconfianças aos outros. E
agradeceu que nenhum deles tivesse ligado os pontos sozinho. Queria ter
certeza antes de alarmá-los.
Desistiu de sua noite de sono à meio caminho de casa. Então, pegou
a estrada de terra e partiu em direção ao Refúgio para encontrar Verena.
Precisava saber se era verdade, e se alguém seria capaz de confirmar
tudo aquilo, era sua avó.
A mulher levou os dedos às têmporas, massageando-as enquanto
suspirava. Seriam dias agitados. Principalmente agora que a garota decidira
que faria a Travessia.
Delilah não poderia negar ter ficado impressionada. Nem em seus
sonhos mais loucos arriscaria dizer que um Dahnasa se aliaria ao seu povo.
Muito menos que se tornaria parte dele.
Exceto que a princesa nunca seria realmente parte dele.
Mas já era alguma coisa.
Uma ponta de esperança.
A meio-bruxa riu de si mesma com o pensamento. Estava
depositando sua fé em uma garota que acabara de conhecer.
Primeiro, teria de treiná-la.
Dar-lhe anos de ensinamentos em um tempo que insistia em correr
demais.
E precisava preparar sua cidade. Ninguém lá fora sabia qualquer
coisa sobre Havenmill, mas com Benjamin caçando conjuradores como
Farah disse que ele estava fazendo, era questão de tempo até que o príncipe
batesse em suas portas.
Delilah o estaria esperando.
E faria com que se arrependesse.
Aquela foi uma das piores noites da vida de Alexzander.
Tivera de explicar ao povo de Havenmill — que ainda processava as
palavras de Delilah sobre o verdadeiro motivo da Princesa estar entre eles
— o que acontecera no castelo.
Bom, de forma resumida para que não gerasse pânico. Mas um
ataque direito ao Rei era alarmante, mesmo para aqueles que não o viam
como seu governante.
E Magmar... o Artesão era querido por cada pessoa naquela cidade.
No entanto, a pior parte aguardava no chalé.
Sua irmã esmagava a própria tristeza, tentando parecer forte e
confiante na frente da princesa — que os culpava pelo que acontecera aos
pais.
Ainda que as palavras fossem outras, Alexzander via nos olhos dela
cada um dos pensamentos que a atormentavam.
E se ela tivesse ficado no palácio?
E se ela tivesse insistido em partir de Havenmill e tivesse retornado
para casa?
E se tivesse tentado negociar com o príncipe?
Alexzander sabia que haviam falhado em proteger o rei, mas a parte
mais egoísta dele nem ao menos se preocupava com isso. Aquela parte da
qual ele não se orgulhava estava ocupada demais com o luto em seu próprio
coração.
Ele também perdeu um amigo naquela noite.
Magmar, quem o trouxe para Havenmill, quem o salvou das
masmorras daquele maldito castelo quando Alexzander fora denunciado à
Coroa por traição.
Era justo sofrer por aquele que o tinha ajudado, e não pela pessoa
que o caçava como um animal. Não era?
Mas não queria chorar na frente de Silja.
Sua irmã, apesar de mais nova, sempre foi seu porto seguro. Sua
razão para acreditar que havia mais do mundo para eles. Era a vez dele de
retribuir.
Seria a fortaleza que ela precisava, a âncora que a impediria de ser
levada pelas ondas. Ainda que isso não diminuísse a dor no coração do
rapaz.
Magmar cedeu sua casa para Alexzander. Fazia poucas semanas
desde que conquistara a posição como Conselheiro Real quando o rapaz foi
capturado. O artesão lhe ofereceu um recomeço. Um lugar para viver. Uma
chance de uma vida longe do perigo, da dor e da ameaça da Coroa. E ainda
tentou fazer parecer que não era um favor. Seria útil ter alguém tomando
conta de minha casa, o homem tinha dito.
Restava apenas uma forma para Alexzander retribuir: fazendo com
que aquela morte não fosse em vão. Encontrando uma saída para que
Havenmill vivesse a paz que merecia.
E tomando conta da filha do conselheiro.
Farah precisaria de ajuda e Alexzander a traria de volta para a casa
que já havia sido seu lar. Cuidaria dela como já cuidava de Silja.
Mesmo que, naquele momento, ele não soubesse para onde a garota
tinha ido.
Viu quando ela deixou o chalé com Delilah, mas estava conversando
com os moradores de Havenmill e não acompanhou para onde a garota
tinha seguido. Repreendeu-se por isso. Farah não deveria passar aquela
noite sozinha.
Tinha de ir atrás dela.
Fazer-lhe companhia.
Perdido naqueles pensamentos, Alexzander não percebeu em que
momento sua irmã estendera a mão para a princesa. Tampouco percebeu
quando Anya a aceitou.
Quando o rapaz voltou para o tempo presente, as duas já estavam
ali, deitadas em lados opostos da mesma cama. Unidas apenas por aquele
toque simples. Duas mulheres diferentes, pertencentes a mundos diferentes
e chorando por pessoas diferentes.
Mas juntas, de alguma forma.
Ele não sabia quais palavras tinham trocado, o que as teria levado as
duas garotas que mal se conheciam a um momento tão íntimo.
Não importava de verdade.
Alexzander se afastou da cômoda na qual se escorava, e acenou de
forma breve para a irmã, que o olhou com a pergunta estampada no rosto
inchado.
— Vou procurar Farah — explicou.
E deixou-as ali.

A luz rosada do amanhecer entrando pela janela aberta parecia


estranhamente familiar à princesa, embora não soubesse ao certo de onde
vinha aquela sensação. O quarto estava morno, mesmo sabendo que o sol
não se levantara há tempo suficiente para aquecê-lo daquela forma.
Anya não sabia dizer em que momento adormeceu, sua única
certeza era de que não dormira o bastante.
Mas havia sido um sono sem sonhos. Uma pequena misericórdia
para a garota que já vivia um pesadelo estando com os olhos abertos.
Flashes da noite anterior voltaram para ela todos ao mesmo tempo,
sobrepondo-se uns nos outros, disputando espaço como se testassem qual
deles a derrotaria.
Ela, porém, lembrou-se da promessa que fizera a si mesma.
Não choraria outra vez.
Esfregando os punhos nos olhos, levantou-se sem pressa.
A noite mal dormida tinha cobrado seu preço, e cada parte do corpo
da princesa doía ao mais simples dos movimentos.
Anya encarava o próprio reflexo no espelho quando, após uma
batida breve, Silja adentrou o cômodo.
— O café está pronto — a curandeira avisou com um sorriso
cauteloso. Os olhos dela passavam por todos os pontos do quarto, menos
aquele onde a princesa estava.
— Desço em alguns minutos.
— Certo.
A princesa passou os dedos pelas olheiras profundas que marcavam
sua pele clara, depois nos cabelos embaraçados por ter-se deitado com eles
ainda úmidos.
— Bela rainha — resmungou.
Silja parecia querer perguntar-lhe alguma coisa, e Anya
simplesmente soube o que era. A garota estava com medo de que ela
desistisse de tudo, que desse as costas para Havenmill e fosse embora.
Como se restasse qualquer escolha sobre isso.
— Não mudei de ideia. — Encarou a curandeira através do espelho.
Silja assentiu, mordendo o lábio inferior.
— Tudo bem — respondeu. — Volto já, espere aqui.
E saiu.
Anya aproveitou a privacidade para trocar de roupa.
Sem muita certeza do que a esperava naquele dia, optou pelos trajes
de treino. Davam-lhe mais liberdade de movimentos e certa... segurança.
Tentou não pensar na última vez que sentira a túnica macia sobre
sua pele, tampouco quem a acompanhava quando usara aquelas calças de
couro preto.
Seus músculos reclamavam cada vez que se mexia, e já prendia as
fivelas prateadas de seu corselet quando a curandeira retornou.
— Está precisando disso aqui também — disse ela, balançando uma
escova de cabelo.
Uma gargalhada escapou da princesa, e isso a fez relaxar um pouco.
Mesmo que o objeto não fosse a opção mais adequada pra lidar com seus
cachos, ela o aceitou e tentou usá-lo para se livrar de alguns nós.
— Como eu nunca desconfiei? — murmurou para seu reflexo.
Porque era Elysia quem a encarava de volta.
Não de forma óbvia e, talvez, por isso nunca questionara as
semelhanças. Mas sua mãe estava em cada um dos pequenos detalhes.
Nas maçãs do rosto bem-marcadas, naquela pequena curva que
elevava os cantos de seus olhos. E apesar de sua promessa, sentiu as
lágrimas ameaçarem de rolar.
Encarou o teto, como se pudesse puxá-las de volta para dentro de si
e ouviu Silja se aproximar.
— Deixa que eu te ajudo — falou a curandeira, o esforço em
parecer casual acentuando ainda mais o seu sotaque enquanto pegava a
escova.
E Anya, que sempre recusou os pedidos de Faen para arrumar seus
cabelos, deixou que Silja o fizesse. Deixou que ela passasse os dedos pelo
emaranhado de fios, porque o silêncio que sempre apreciara nesses
momentos parecia vazio demais agora.
Cruel demais.
Silja passava a escova suavemente por entre as mechas, desfazendo
nós de forma que os cachos não se perdessem. Seus movimentos eram
delicados, mas firmes. Mesmo que os cabelos da curandeira mal tocassem
os ombros, ela sabia o que estava fazendo.
— Sente-se aqui. — A garota apontou para a cadeira em frente à
escrivaninha.
A princesa obedeceu, fechando os olhos para os raios dourados que
entravam pela janela. Abraçando a sensação morna contra sua pele.
Não havia risadas vindas do gramado naquela manhã. Estavam
todos apreensivos, sem entender direito como as coisas chegaram àquele
ponto.
E ela sabia que eles não sentiam pelo Rei. Como Farah, Silja e
Alexzander, lamentavam por Magmar. Pelo homem que os representava lá
fora e que, por tantos anos, manteve os olhos da Coroa longe deles.
Anya percebeu que não os culpava.
Talvez estivesse entorpecida demais pela própria perda para se
importar, ou simplesmente começava a entender. Apesar de tudo, ainda a
estavam ajudando.
Mentiram para ela, usaram-na, mas se não a tivessem levado
embora, estaria morta também. Seu reino não teria qualquer sinal de
salvação, e estariam todos destinados ao controle cruel que ela sabia que
Benjamin derramaria sobre eles.
Assim como ela, os conjuradores tinham feito o que era preciso.
Ela balançou a cabeça, espantando os pensamentos que ameaçavam
sair de seu controle.
Não com pouca surpresa, recebeu em resposta uma batidinha da
escova contra seu ombro.
— Não se mexa — repreendeu Silja, com uma rispidez fingida.
— Mil perdões — Anya respondeu, sorrindo para o pequeno traço
de normalidade.
— Estou tentando deixá-la bonita, sabe? — a curandeira debochou.
A princesa sabia o que a garota estava fazendo. Sabia que era uma
forma de afastá-las de seus tormentos internos. Então, quando Silja
recomeçou seus movimentos com a escova, Anya segurou o pulso dela por
cima de seu ombro e olhou para cima.
— Obrigada — sussurrou.
E voltou a encarar o mundo lá fora, tendo a certeza de que a
curandeira sabia que ela não falava sobre a ajuda com os cabelos.
Em alguns minutos, uma trança fina formava um arco no topo da
cabeça da princesa, como uma tiara. Alguns fios soltos emolduravam as
laterais de seu rosto, rebeldes demais para prenderem-se ao penteado, e o
restante caía livremente sobre suas costas.
Anya observou o sorriso que a curandeira exibia, orgulhosa de seu
trabalho.
— Assim, eles continuam soltos, mas não ficam caindo em seus
olhos.
— Está perfeito — agradeceu.
E estava mesmo.
— Agora temos que descer. — Silja seguiu em direção à porta. — O
café já deve estar frio.
A princesa assentiu e acompanhou-a para fora do quarto.
Farah estava sentada à mesa, encarando uma xícara cheia de café
que segurava entre os dedos machucados. Ela ergueu os olhos quando a
madeira rangeu sob os pés de Anya, seu peito subindo e descendo rápido
demais.
A curandeira pigarreou, pegando um pequeno saco de biscoitos e
disparando para fora do chalé.
E então, as duas estavam sozinhas.
Anya conseguia ver os dedos de sua amiga esbranquiçados, tamanha
era a força com que segurava aquela xícara. Os olhos inchados e delineados
por olheiras fundas refletiam o estado em que ela mesma se encontrava.
Havia cortes em seu rosto, mesmo que a princesa tivesse a certeza
de que Silja já tenha se oferecido para curá-los. Conhecia sua amiga. Sabia
que ela os queria ali. Para lembrá-la.
Eram parecidas demais para o próprio bem.
Não havia sido uma noite fácil para nenhuma delas. O que as
esperava adiante, também não seria.
A princesa fez seus passos em direção à cadeira onde Farah estava
sentada, observando-a descer os olhos até as mãos.
— Oi — Anya sussurrou, pousando a dela sobre o ombro da garota.
E percebeu que não havia muito a ser dito. Ela simplesmente
entendeu.
Entendeu o segredo, entendeu o medo. Entendeu em cada ruga que
se formou na testa de sua melhor amiga. Entendeu nas lágrimas que
começaram a rolar.
— Eu fiz tudo o que pude — Farah sussurrou.
— Eu sei.
Anya estendeu sua mão, sentindo os olhos arderem quando a garota
a segurou.
Farah lançou os braços em torno da cintura dela, sem se importar
com o movimento brusco que jogou sua cadeira para trás.
Elas se abraçaram enquanto a madeira batia contra o chão e ainda se
abraçavam quando o baque parou de ecoar pela cozinha. Elas se abraçaram
até que suas roupas estivessem encharcadas pelo choro que irrompeu de
suas gargantas. E ainda se abraçavam quando já não havia lágrima alguma
para se derramar.
— Tem mesmo certeza de que fará a Travessia? — Farah perguntou,
ainda perdida entre os cabelos da princesa.
Um calafrio percorreu o corpo de Anya.
Era tarde demais para voltar atrás e ela nem poderia fazê-lo.
Precisava de todas as chances, de todas as armas e vantagens que pudesse
acumular.
— Sim — respondeu.
E então, pediu que explicassem para ela como era aquele ritual.
Estavam os quatro reunidos na cozinha do chalé para explicar à
princesa como a Travessia funcionava.
No entanto, não era tão simples assim.
Precisavam começar do zero.
Contar como era a magia, como se manifestava, de onde ela vinha.
Quem a compartilhava com eles.
— Você me perguntou em que acreditávamos — Silja falou.
Alexzander não entendeu o que ela quis dizer com isso, mas Anya
assentiu, então a curandeira continuou.
— Falei sobre Verena para você — explicou. — A bruxa que
sobreviveu àquele ataque e construiu Havenmill. Bom, ela não é somente a
matriarca do clã. Ela é uma das Sete Bruxas Primordiais, uma das bruxas
mais poderosas do mundo.
O rapaz viu a princesa se encolher e sentiu pena. Era coisa demais
com o que lidar. Mas precisavam que ela conhecesse aquela história, que
tivesse consciência do que a aguardava enquanto houvesse tempo para
mudar de ideia.
— E suponho que seja nela que vocês acreditam. — A princesa
franziu o cenho. — Por quê?
A curandeira massageou as têmporas antes de explicar.
— As Sete são as bruxas mais antigas que existem, e seus poderes
foram responsáveis pela criação do mundo.
— O quê? — a pergunta saiu como um grito rouco da princesa.
— Você nunca se questionou como chegamos ao que somos hoje?
— foi Farah quem continuou. — Por que existe o dia e a noite ou por que
os mares nunca invadem a terra? De onde vem o fogo ou o gelo?
— Claro que já — Anya retrucou — Conheço as histórias sobre os
deuses antigos.
Isso fez o rapaz sorrir.
— E quem você acha que são esses deuses? — Silja contrapôs.
A princesa bufou.
— Você precisa se decidir se estamos falando de bruxas ou deuses.
— Não existe diferença — Alexzander respondeu.
— Estão me dizendo que essa bruxa, Verena, criou o mundo?
— Não sozinha — Farah disse. — Não me olhe desse jeito. Você
pode não confiar na magia, mas não pode negar que ela faz o inimaginável.
São as Bruxas Primordiais, as Sete deusas que derramaram seus poderes e
criaram o mundo juntas.
A princesa fechou os olhos e suspirou.
— E o que Verena criou?
— A Luz — Alexzander respondeu. — É graças à magia dela que
temos os raios de sol, as manhãs amanteigadas e o próprio dia. E é por isso
que os dias em Havenmill se parecem tanto com aqueles lá fora, mesmo
debaixo da terra. Porque é Verena quem controla tudo isso.
Anya parecia prestes a vomitar.
— Vocês são todos loucos — alegou, incrédula — Completamente
loucos! Transformaram bruxas em deusas e...
— Estamos falando sobre a criação de tudo o que existe. — Silja
interrompeu. —, de tudo o que conhecemos. As histórias mudam com o
tempo. Elas se perdem. Verena era realmente considerada uma deusa antes
de ter seu clã dizimado. Antes da caçada. Antes do Rei Tamal e antes de
Havenmill.
“As pessoas a idolatravam e a admiravam. Iam até ela se buscavam
conselhos ou respostas para problemas impossíveis. Então, ela os
abençoava. Compartilhava uma semente de seu poder com os humanos que
a procuravam, como um agradecimento por todo aquele amor. E quando
homens se voltaram contra ela, quando as outras bruxas da Luz foram
assassinadas por um medo forjado e irracional, ainda assim, ela nos
acolheu. Ela criou Havenmill. Ela salvou a todos que podia. E a fé se
manteve. O amor se manteve.”
— E o compartilhamento de sua magia também — Anya constatou.
Todos assentiram em silêncio.
— É isso que chamamos de Travessia — Alexzander continuou,
depois de alguns segundos em um silêncio sepulcral.
A princesa escorou os cotovelos sobre a mesa, enterrando os olhos
entre as mãos e gemendo baixinho.
— E o que eu preciso fazer?
— Apenas... ir até lá. Conhecê-la. Deixar que ela lhe conte sua
história — o rapaz explicou — Mostrar que não existem más intenções ou
egoísmo por trás de seu desejo pela magia.
Anya riu secamente.
— Ela se surpreenderia com o quão oposto ao egoísmo são meus
motivos.
Era verdade, de certa forma. A garota parecia muitas coisas, mas
com vontade de receber aqueles poderes por prazer ou futilidades não era
uma delas.
— E como, exatamente, funciona o ritual?
E Alexzander via que era mais do que curiosidade. Ela precisava
entender como as coisas aconteceriam para ter certeza se conseguiria fazer
aquilo.
— É diferente para cada um. — Silja deu de ombros. — Mas não é
muito mais do que uma simples conversa. Como dissemos, ela só precisa
ter certeza de que você não usará a magia para voltar-se contra ela.
O que não era nada menos do que justo.
Anya ergueu o rosto novamente, e apesar do olhar cansado,
determinação marcava cada traço de sua expressão.
— E isso me ajudará a enfrentar Benjamin?
— Esperamos que sim. — Ele suspirou — E você não precisará
fazer isso sozinha, sabe disso.
Ela acenou.
— E quando vou até Verena?
— Depois que terminar seu café. — Silja apontou para a xícara
abandonada em frente à princesa. A garota nem havia tocado nela.
— Está frio. — Anya deu de ombros.
— Não estaria se o tivesse bebido — Farah repreendeu, levantando-
se e derramando a bebida na pia. Ela substituiu por café novo e quente e
devolveu para a princesa.
— Vão me acompanhar?
E a voz da garota dizia que ela odiava ter de perguntar aquilo.
Odiava ter de demonstrar seu medo e que via aquilo como uma fraqueza.
Não era, mas ninguém disse nada.
— Farah e eu precisamos encontrar Delilah — Silja falou. — Mas
meu irmão irá com você até Verena.
— A partir de lá, você terá de completar a Travessia sozinha. — O
rapaz fez uma careta, pedindo desculpas.
Anya assentiu, tomando seu café com rapidez e fechando os olhos.
As duas outras garotas se despediram e partiram, mas a princesa
permaneceu ali. Olhos cerrados, respiração controlada.
Parecia perdida.
— O que foi? — ousou perguntar.
— Esse tempo todo... — ela suspirou, olhando para ele. — Vocês
estiveram aqui embaixo esse tempo todo.
— É difícil de acreditar, eu entendo.
— Não é isso. — Anya negou com a cabeça. — Como é possível
que eu estivesse errada a minha vida inteira? Eu vi pessoas como vocês
serem levadas pelos soldados de meu pai e simplesmente... desaparecerem
sem nunca me questionar sobre o que acontecia com elas, sem nunca me
importar.
— Você não é responsável pelo que os outros faziam quando não
tinha poder para mudar coisa alguma. Ou conhecimento para tal. — Ele
abriu um sorriso triste.
— Há alguns dias — a voz dela era pouco mais do que um sussurro,
e ela desviou os olhos do rosto dele enquanto falava —, eu estava em
Wellin com Farah e... vi uma garota que foi levada pela Guarda Real. Vi
quando ela perdeu o controle e ameaçou atacar a todos no Mercado com
seus poderes.
Alexzander sabia o que tinha acontecido depois.
— Me pergunto — ela continuou — se foi realmente assim que
aconteceu. Quero dizer, eu vi tudo se desenrolando diante dos meus olhos.
Mas agora, ouvindo tudo isso, não consigo evitar de pensar em quem
poderia conhecê-la em Havenmill. Se talvez Farah a conhecesse também...
Pelos deuses, o quanto ela não teve de lutar consigo mesma para
permanecer ao meu lado, sem dar indício algum de como aquilo a estava
afetando?
Olívia era o nome dela.
E sim, Farah a conhecia. Assim como ele.
Mas Alexzander não contaria isso. Ele não contaria o que ela fazia
no Mercado naquela tarde. A princesa já parecia carregar muitos conflitos
dentro de si, não havia motivos para dizer-lhe que a garota buscava
remédios paliativos para o pai, cuja doença já avançava para além dos
limites do que a magia poderia fazer.
— Sinto muito — Anya sussurrou, como se visse a verdade no rosto
dele.
— Como eu disse — ele pigarreou —, o importante é o que você
fará a partir de agora que tem as chances para mudar alguma coisa. E o que
precisa, neste exato momento, é esperar aqui enquanto busco minha
mochila em meu quarto.
Ela assentiu sem dizer mais nada.

O silêncio não era uma boa companhia, Anya concluiu após alguns
minutos sozinha na cozinha. Não depois de todas as coisas que ouviu.
Ela duvidava que fosse permitido que manhãs começassem de forma
tão... complicada.
No entanto, ela sabia que diziam a verdade. A verdade deles, ao
menos.
Sobre a magia, sobre Verena, sobre... o mundo.
E Anya não pôde deixar que se perguntar em que ponto entre a
versão da história que ela conhecia e a que lhe contavam agora estava a
verdadeira.
Havia mais seis bruxas como aquela para além dos limites de seu
reino.
Não, não era o momento de pensar sobre isso. Não quando a
próxima coisa que faria naquela manhã era seguir até onde a tal Bruxa
Primordial se escondia.
Pelos deuses...
Ou deveria dizer pelas Deusas?
A princesa se apressou até a escada, pulando os degraus de dois em
dois, e foi atrás de Alexzander. Seus pensamentos tinham vida própria e ela
precisava fugir deles.
O rapaz colocava algumas coisas em sua mochila e mal percebeu
quando Anya escorou-se no batente da porta, braços apertados contra seu
peito acelerado demais.
O quarto dele era um espelho daquele no qual ela dormia, e cheirava
a café e... livros antigos. Livros estes que se espalhavam em uma
quantidade significativa por todo o cômodo.
E ela percebeu, tentando conter uma risada, a pilha recém-formada
de obras sobre uma escrivaninha. Eram aqueles que ela arremessara pelo
quarto no dia em que chegou. E ao lado deles, estava escorado um violão.
— Você toca — ela disse.
Um piscar de olhos foi o único sinal de surpresa que ele lhe deu ao
vê-la ali. Talvez a tivesse notado chegar, afinal.
— Ele estava aqui quando cheguei nessa casa — Alexzander
respondeu. — E eu tinha bastante tempo livre. Você também toca?
Ela assentiu.
— Quero dizer, violão não. Piano.
E ela não tinha percebido até aquele momento o quanto sentia falta
de tocar. Não que fizesse muito tempo desde a última vez, mas aquela
sempre tinha sido sua rota de fuga se as coisas iam mal. E tudo ia mal
agora.
Tentou não pensar se seu instrumento ainda estava no castelo. Se
sobrevivera ao ataque.
— Adoraria vê-la tocar — ele disse, e pareceu estar sendo sincero.
— Não consigo imaginar um futuro breve no qual eu consiga fazer
isso — ela suspirou —, mas quem sabe você...
Ela deixou as palavras morrerem.
Não deveria estar pensando naquilo. Não quando tudo estava tão
próximo de colapsar.
— Quem sabe eu? — Alexzander insistiu.
— Pensei que talvez... você pudesse me ensinar — Anya disse,
adentrando lentamente no quarto e caminhando até onde o instrumento
repousava. — É tolice minha. Sei que não devia estar pensando em algo tão
banal em um momento como esse.
Ela passou os dedos pelas cordas, encolhendo para o som desafinado
que ecoou pelo cômodo.
Estava de costas para o rapaz, mas sentiu ele abrir um sorriso.
— Não acho que esteja errada, Princesa — ele falou. — Precisamos
de algum tipo de conforto. Principalmente em momentos como esse.
Anya se virou e apoiou as mãos contra a escrivaninha, a madeira
disforme arranhando suas palmas.
O rapaz a observava com o exato sorriso que ela imaginara, mas
havia algumas rugas discretas se formando nas laterais de seus olhos azuis.
Só então ela percebeu o quão mais velho que Silja ele era. O quão mais...
adulto. Os primeiros fios brancos davam as caras pela barba por fazer, e as
marcas nos cantos de seus lábios denunciavam bons trinta anos de sorrisos
como aquele.
— Você talvez tenha razão — ela disse finalmente.
— Claro que tenho. — Alexzander riu. — E seria um prazer ensiná-
la.
Ela riu de volta enquanto ele colocava a mochila sobre o ombro e
partia em direção à porta.
— Pronta?
— Não — Anya estremeceu —, mas podemos ir mesmo assim.
A princesa rezou em silêncio para ninguém em particular, pedindo
que o tal ritual não fosse tão ruim quanto lhe soava. E só então percebeu
que, provavelmente, quem a ouvia fosse alguém que ela não desejava
dentro de sua cabeça.
Ao saírem pela varanda, viu que havia poucas pessoas na rua. Pouco
movimento, pouco barulho. Muitos olhares assustados.
Estamos no mesmo barco, ela se deu conta.
Ela e Alexzander não conversaram muito pelo caminho, mas Anya
reconheceu a estrada pela qual seguira com Silja no dia anterior. E se deu
aqueles momentos de silêncio para dar mais atenção à Havenmill. Para os
pássaros que claramente não suspeitavam do caos que espreitava fora da
cidade, para o aroma forte de cascas de tantas árvores diferentes.
Lembrava um pouco o Mercado.
Não que os cheiros se parecessem, mas variavam de tal forma que
ela sabia que, em cada canto, encontraria uma história nova se procurasse.
Quando, enfim, mudaram o curso do caminho que a levara até Ediri,
Anya viu-se em uma estreita estradinha de terra, onde mal passava uma
pessoa sozinha.
A grama alta acompanhava as margens da trilha que desaparecia por
entre imensas rochas cobertas de um musgo tão verde e brilhante que
pareciam joias.
— Chegamos — o rapaz avisou. — Você precisa continuar sozinha
agora.
Ela franziu o cenho.
— Mas não há nada aqui.
Alexzander, no entanto, não disse coisa alguma e ela revirou os
olhos ao colocar os pés na estradinha.
Uma brisa suave envolveu-a, trazendo o familiar aroma adocicado
— como se a magia fosse um organismo vivo serpenteando ao seu redor.
E talvez fosse, pois seus cabelos voaram sobre os olhos e, quando os
afastou, ela estava sozinha.
O rapaz havia desaparecido e mesmo as folhas das árvores pararam
de balançar, como se o mundo tivesse prendido a respiração para observá-
la.
Respirando profundamente, ela começou a andar.
Acompanhou o trajeto estreito de terra batida, sentido a grama se
prender em suas roupas de treino. Quase como se a quisessem impedir de
continuar.
Mas era só impressão.
Claro que era.
Anya seguiu seu caminho, contornando a pedra que parecia ainda
maior vista de perto.
Seu coração estava acelerado, batendo em seu peito com tal força
que talvez fosse abrir um buraco nele para saltar para fora e enquanto fazia
a curva pela rocha, viu que ela se abria em uma fenda larga, ladeada até o
alto pelo rochedo esverdeado.
A estrada terminava ali, um passo antes de adentrar na imensa
rachadura.
Um batimento cardíaco mais tarde, uma trama luminosa — tão
parecida com a de Silja no dia anterior — começou a se formar diante dela.
Anya sabia o que precisava fazer, e reunindo uma coragem que ela
não sentia de verdade, deu aquele último passo em direção ao portal que se
abrira.
Em direção à Travessia.
E a uma das bruxas mais poderosas do mundo.
Anya sabia que tinha atravessado para Ediri.
Mesmo que não parecesse.
Mesmo que os pássaros ao seu redor não cantassem, e as pequenas
criaturas feitas de grama não estivessem ali para cumprimentá-la.
Os enormes pinheiros, paralisados em meio a um sopro de vento,
refletiam os raios dourados do sol em cada uma de suas folhas. O céu estava
completamente escondido sob o dossel feito de galhos, e o aroma adocicado
deu espaço para o cheiro de... verde.
Ediri, não Havenmill.
Ainda que o rochedo diante de si fosse o mesmo que encontrara na
cidade escondida, que o portal a tivesse levado apenas um passo à frente, e
não para um cenário completamente novo.
Ao menos, era o que havia pensado.
Um segundo mais tarde, em meio às pedras esverdeadas, por entre o
limo e as raízes que despontavam do solo, uma porta de madeira surgiu.
Como se estivesse ali o tempo todo.
E a princesa sabia que ela era tão real quanto o chão sob seus
próprios pés.
E apesar da aparência desgastada, das fissuras e arranhões, ruído
algum veio dela enquanto se abria, sob o comando de alguma força
invisível aos olhos de Anya.
— Certo — murmurou para si mesma. — Consigo fazer isso.
Seus passos eram hesitantes, e suas pernas tremiam tanto que ela
mal entendia como era capaz de estar ainda de pé.
E quando atravessou a porta, apenas escuridão cumprimentou-a no
interior da rocha — tendo um suave click como único sinal de que ela havia
se fechado às suas costas. Trancando-a ali dentro.
Seu coração batendo forte era o único som que Anya era capaz de
ouvir e, mesmo forçando sua visão, o breu era tão denso ali que ela não
conseguia enxergar um centímetro à frente.
— Bem-vinda — sussurrou uma voz feminina, tão suave quanto o
roçar das águas de um rio contra seus calcanhares.
E como se em resposta ao som, a caverna iluminou-se de uma única
vez. Exceto que não se tratava de uma caverna, e sim de um imenso salão
impossivelmente grande se comparado às rochas que o abrigavam.
O piso era feito de uma pedra azulada e pálida, com pilastras da
mesma cor se erguendo até a abóbada a, tranquilamente, vinte metros de
altura — mais alta do que qualquer árvore jamais seria do lado de fora.
— Como isso... — começou a dizer, mas teve suas palavras
interrompidas outra vez por aquela voz.
— É bonito, não? O que a magia é capaz de fazer.
Só então, Anya encontrou-a.
Sentada nos degraus de uma escada em aço preto, que subia em
espiral até o mezanino que circundava o andar acima, a dona daquela voz a
encarava com um misto de desconfiança e divertimento.
Verena era tão deslumbrante quanto a princesa imaginava que uma
bruxa com tamanho poder seria. Seus cabelos laranja avermelhados se
derramavam ao redor da pele cor de bronze de tal maneira que desciam
pelos degraus da escada e tocavam os tornozelos da mulher. Se as mechas
rosadas de Delilah fizeram a princesa pensar no céu ao amanhecer, a Bruxa
Primordial era o sol poente.
A mulher levantou-se, estreitando os olhos verdes como os da neta
de uma forma felina, analisando cada músculo do corpo de Anya.
— Bem-vinda — Verena disse, mais uma vez.
— Obrigada — a princesa respondeu sem conseguir desviar os
olhos da bruxa.
E o sorriso que se abriu naqueles lábios carmesim foi apenas mais
um lembrete da vida imortal que Anya tinha diante de si.
— Ouvi dizer que vir até mim foi uma iniciativa sua — Verena
comentou, cruzando os dedos finos e de unhas longas em frente ao corpo.
— Tem certeza de que é isso que quer?
— Farei o que precisa ser feito — respondeu, buscando pelo tom
mais confiante que conseguiu.
A bruxa sorriu ainda mais, exibindo dentes que eram tão brancos
quanto o vestido longo de cetim que usava. Ela pareceu ponderar sobre ir
até Anya, mas então, virou-se de costas e começou a subir as escadas.
— Me acompanhe, por favor.
A garota observou Verena se afastar, aumentando o espaço entre elas
antes de caminhar até o primeiro degrau.
Cada passo parecia mais difícil que o anterior.
Aquilo era loucura. O que estava fazendo ali?
O peso dos últimos acontecimentos espreitava por todos os lados,
ameaçando agarrá-la pelos tornozelos.
No entanto, não havia como voltar.
Não havia para onde voltar.
Ninguém a esperava em casa, se é que ainda poderia chamar o
castelo dessa forma.
Então, continuou andando.
Um passo depois do outro, mesmo que a levassem por um caminho
que ela tanto temia.
Subindo a escadaria em espiral, Anya observou cada canto daquele
lugar. As infinitas estantes de madeira acomodavam tantos livros que era
impossível ler todos no tempo de uma vida humana.
Ou talvez, cinco vidas humanas.
Havia muitas mesas de mogno acomodadas sob o mezanino do lado
oposto do salão. E a quantidade de cadeiras com estofado esverdeado
acomodaria cada um dos moradores de Havenmill.
Verena seguia silenciosa como um gato. Seus movimentos eram
graciosos, etéreos, e o vestido comprido demais desenhava ondas sobre os
degraus conforme ela subia mais e mais por aquela escada que parecia não
ter fim.
A magia naquele lugar parecia algo palpável, deixando um rastro de
formigamento sobre sua pele enquanto prosseguia.
Quando chegou ao balcão superior, a bruxa já a aguardava sentada
em uma poltrona que era um tanto... comum em comparação ao resto do
lugar.
Sem muita certeza do que fazer em seguida, a princesa manteve-se
parada ali, aguardando que a mulher lhe desse qualquer tipo de instrução
sobre como o tal ritual se desenrolaria.
— Chá? — Verena perguntou, simplesmente, indicando com a unha
pontiaguda para a poltrona vazia ao seu lado.
E Anya se encolheu ao ver um bule surgir sobre a mesinha de vidro
entre os dois assentos.
Respirando fundo, ela se sentou ao lado da bruxa.
Xícaras que combinavam com a porcelana branca que já repousava
ali surgiram entre elas logo depois.
— Não, obrigada.
— Criaturas estranhas, vocês humanos — refletiu Verena, servindo
chá para ela mesma. — Desconfiados demais.
A pouca distância, ela conseguia ver a pele imaculada da mulher
reluzir pequenos brilhos dourados, como se pedrinhas feitas de raios de sol
decorassem seu corpo.
Ela carrega a magia da Luz, explicou para o coração disparado.
Anya permitiu-se encará-la. Observar a criatura lendária que se
colocava diante dela.
— O que está achando da cidade? — Verena indagou, analisando-a
com olhos ligeiros que se curvavam nos cantos, acompanhando o sorriso
selvagem.
A garota piscou.
Não esperava uma pergunta tão... trivial.
Mas quando estava pronta para responder, percebeu que não sabia o
que dizer. Pensou no medo que sentira ao chegar e na raiva que tomara
conta dela ao perceber que apenas a tinham levado até ali por ganhos
pessoais. Então, pensou nas pequenas criaturas em Ediri, e nos lobos e nas
crianças que acreditavam viver em uma cidade encantada.
Pensou outra vez na garota no Mercado e no olhar de Alexzander
quando Anya a tinha mencionado. Ele a conhecia. E a princesa não sabia
por que ficara tão incomodada com aquilo. Claro que conhecia. Assim
como todos os outros conjuradores levados pela Guarda Real ao longo de
anos.
— Você gosta daqui — a bruxa disse, quando o silêncio se estendeu
por tempo demais.
— Não acho que gostar seja o termo correto, mas eu não detesto.
— E sente-se culpada por isso.
E ali estava.
A verdade jogada aos pés da princesa para que fosse obrigada a lidar
com ela.
Com as mãos pousadas sobre o colo, a princesa passou os olhos por
todos os lugares, menos para a mulher ao seu lado. Mas ainda assim,
acompanhava seus movimentos.
Sabia que Verena servia-se de uma nova xícara de chá, e percebeu o
anel prateado que adornava sua mão esquerda. Sabia também que a bruxa
apenas segurava a bebida próxima de seu rosto, sem realmente bebê-la.
— Sinto muito por seus pais. — Verena deixou que as palavras
flutuassem entre elas, como se fossem tão leves quanto o próprio ar, e não
pesadas como uma daquelas pilastras que sustentavam o teto sobre suas
cabeças.
— Não tenho certeza se acredito nisso. — A resposta saiu mais
rápido do que a princesa foi capaz de contê-las, virando-se outra vez para
sua anfitriã.
Verena inclinou a cabeça, as esmeraldas que formavam seus olhos
passeando por todo o rosto da garota. Pareciam capazes de captar cada
mudança nela, como se enxergassem através do véu que separava o mundo
do lugar para onde as emoções iam.
— Me considero no direito de desgostar da Coroa e até mesmo da
realeza como um todo — ela estalou a língua —, mas jamais deixarei de
lamentar por uma família destruída. Por vidas que foram tomadas cedo
demais.
Anya assentiu sem ter certeza do que fazer em seguida.
— É engraçado — a bruxa prosseguiu — ter o destino de todo o
meu povo nas mãos de uma garota que detesta tudo o que somos.
— E por que você precisa de mim? — Anya chiou, incomodada. —
Se, de fato, é tão poderosa quanto todas aquelas pessoas acreditam que seja,
o que teria eu a oferecer?
— Não preciso de você, garota tola. — Verena revirou os olhos. —
Sua posição apenas... facilita as coisas para meu povo. E por eles, faço o
que for preciso. Até mesmo me aliar com alguém como você.
A princesa não saberia dizer se a bruxa falava a verdade ou se
apenas usava das palavras que ela mesma disse momentos atrás. Preferiu
permanecer em silêncio até que a mulher continuasse.
— Mas, de fato, não estou tão forte quanto estive um dia.
Erguendo uma sobrancelha, a princesa precisou de todo o seu
autocontrole para não perguntar o que aquilo significava. Sabia que a bruxa
explicaria de qualquer forma.
Verena realmente parecia gostar de se ouvir falar, percebeu com
irritação.
Mas ela apenas deu um gole em seu chá que, possivelmente, já
estava frio e ofereceu-lhe outra vez uma xícara, que foi negada.
— Está na hora de saber a verdade. — A bruxa encarou-a.
E a princesa apenas encarou-a de volta, observando enquanto a
mulher erguia a manga larga de seu vestido, expondo todo o seu antebraço.
— O que está fazendo? — questionou a princesa, o pânico tomando
conta de sua voz.
Porque Verena estava usando sua longa unha em ponta para cortar a
própria pele, traçando uma linha do pulso até a altura de seu cotovelo. O
sangue que começou a brotar parecia mais preguiçoso do que deveria,
demorando-se para sair pelo corte.
— Deixe-me mostrar — respondeu simplesmente, estendendo o
braço cortado em direção à princesa. — Você só precisa segurar minha mão.
Anya queria dizer-lhe que ela era louca, mas algo dentro dela a
convenceu a fazer o que a bruxa pedia. Aquele mesmo formigamento que
sentira antes agitou-se mais uma vez.
Então, estendeu sua palma até Verena, respirando com rapidez
enquanto suas peles se tocavam. A bruxa fechou seus dedos em torno do
antebraço da princesa, que imitou seu movimento.
A sensação era supreendentemente quente, viva.
Os olhos da bruxa se fecharam e sua cabeça pendeu para trás, mas
antes que Anya pudesse ter qualquer tipo de reação, o mundo tornou-se um
borrão negro. Sombras serpentearam ao redor das duas, mais rápido e mais
rápido, jogando seus cabelos por sobre seu rosto.
O grito que se preparava para deixar a garganta da garota morreu,
pois da mesma forma que surgiram, as sombras desapareceram.
Ela ainda estava sentada na mesma poltrona, mas Verena não se
encontrava ao seu lado.
Não.
Sua voz vinha do andar de baixo, de onde a princesa chegara
naquela manhã.
A garota correu até o parapeito do mezanino, encontrando a bruxa
em meio ao grande salão. E não estava sozinha.
Centenas de outras mulheres, que Anya sabia serem bruxas também,
reuniam-se em uma profusão inacreditável de estilos, formas e cores de
cabelo. Cochichavam baixo umas com as outras, parecendo aguardar que
alguém finalmente se dirigisse a todas.
Um pigarro alto o suficiente para que as paredes tremessem
silenciou-as.
Verena encontrava-se bem ao centro de todas as bruxas, um vestido
de chiffon vermelho esparramando-se ao seu redor. Quando combinada com
seus cabelos laranjas, a peça a transformava no próprio fim de tarde.
— O Rei Tamal convocou uma reunião. — A voz ecoando por entre
as pilastras. — Diz que tem um acordo para nos propor.
A ênfase que dera naquela palavra. Os olhares que todas as bruxas
trocaram.
Anya entendeu onde estava.
Ou melhor, quando estava.
Pois não era a mesma manhã morna de primavera que a
cumprimentava, e aquelas bruxas estavam mortas há muito tempo.
Estava vivendo uma lembrança de Verena.
Anya não percebeu que prendia a respiração até se engasgar pela
necessidade de ar. Os nós de seus dedos doíam tamanha era a força com que
se agarrava à borda do mezanino.
Ela estava em uma memória.
Uma memória de Verena.
E a princesa sabia como ela terminaria, mas não tinha certeza se
estava pronta para ver com seus próprios olhos.
As bruxas lá embaixo trocavam olhares umas com as outras,
contrariadas, em dúvida. Não muito satisfeitas pelas palavras de sua
matriarca.
— Em três dias, nos reuniremos com o Rei. Todas. Juntas. — E sua
voz mostrava que ela desgostava daquilo tanto quanto as outras, mas os
ombros levemente curvados diziam que ela sabia ser a única opção.
A agitação entre as mulheres aumentou, então um caminho por
entre elas se abriu até Verena, revelando uma jovem com um rosto
impassível que calou todas as outras. Os cabelos dela caíam até sua
cintura em um emaranhado de tons acinzentados e branco — uma
tempestade, pensou a princesa.
— Senhora — a cabeça baixa demonstrava total respeito e
submissão, mas a voz forte como um trovão dizia tudo o que sua postura
tentava disfarçar —, tem certeza de que é uma boa ideia?
Verena encarou-a e, mesmo lá de cima, Anya conseguiu perceber
que seus olhos se suavizaram por alguns segundos. Mas apenas por alguns
segundos.
— Quanto tempo mais você quer se esconder aqui dentro? — A voz
da Bruxa Primordial cortava como mil adagas. — Entendo que goste do
nosso pequeno palácio, Lavínia, mas eu, particularmente, gostaria de
voltar a ter a vida que tínhamos antes de Tamal resolver que era inseguro
demais para ver sua autoridade ameaçada por uma bruxa.
A jovem permaneceu irredutível, mas não disse nada.
— Quantas mais de suas irmãs precisam ser caçadas pelo medo
daqueles que julgam ser donos destas terras? — e então, Verena passou a
falar com todas as bruxas: — Entraremos naquele palácio e ouviremos o
que Tamal tem a nos dizer. Não estamos em posição de ignorar essa
reunião. Negociaremos com o Rei, imploraremos se for preciso. Ele
destruiu a fé que os humanos tinham na magia. Não temos ninguém além
de nós mesmas para nos tirar dessa situação. E quanto mais fugirmos, mais
certos eles ficarão de que estamos escondendo algo.
As bruxas sabiam que as palavras dirigidas a todas eram ditas, na
verdade, para aquela única jovem. E permaneceram imóveis, como se
esperassem que a matriarca simplesmente não as notasse ali.
Lavínia parecia prestes a dizer mais alguma coisa, finalmente
erguendo os olhos para encarar sua superiora, mas Verena lhe deu às
costas tão rápido que suas palavras morreram antes mesmo que pudessem
sair.
A trama de sombras negras embaçou mais uma vez a visão da
princesa, envolvendo-a em um casulo de noite e rodopiando ainda mais
agitada que da primeira vez.
Um segundo se passou.
Depois outro.
E uma nova visão começou.
Anya estava agora sentada em uma cadeira confortável, com
braçadeiras largas e estofadas em um veludo cor de vinho. Uma mesa
retangular com tampo de vidro repousava à sua frente, com diversos papéis
espalhados bagunçando na superfície fria.
Ela olhou ao redor.
A sala era pequena, abrigando apenas um armário de mogno na
parede esquerda e duas poltronas simples e esverdeadas diante da mesa.
Parecia um escritório.
Mas então, percebeu algo estranho.
Um tecido rosa pálido cobria seu corpo, diferente das roupas de
treino que usava naquela manhã. Suas mangas justas iam até seus pulsos e
suas mãos... suas mãos! Uma pele marrom que não lhe pertencia terminava
em unhas longas e afiadas.
Tentou se mover, mas o corpo não a obedeceu.
Verena.
A princesa percebeu que não mais assistia de fora, e sim pela visão
da própria bruxa que compartilhava aquelas memórias com ela.
Uma batida suave na porta veio acompanhada de um cheiro de
chuva.
— Entre — Verena disse.
E a princesa teria estremecido ao ouvir aquela voz saindo de sua
boca, caso fosse capaz de reagir.
Uma familiar cortina de cabelos cor de tempestade surgiram na
porta, acompanhada de olhos cinzentos e observadores.
Seu coração — o coração de Verena — vacilou por meio segundo
quando a jovem fechou a porta atrás de si.
— Senhora — sussurrou Lavínia, abaixando a cabeça.
— Lavínia — a bruxa cumprimentou com gentileza sua imediata,
apreciando a sensação daquele nome dançando por seus lábios.
A garota encarou-a finalmente, e o peito de Verena pesou ao ver
toda a preocupação do mundo sendo carregada por aquele olhar triste.
— Ele está planejando alguma coisa, senhora. — Sua voz fora do
tom completava a expressão em seu rosto.
— Claro que está — respondeu, suspirando e girando sua cadeira
para a janela que pousava atrás de si.
Um rosnado exasperado soou às suas costas.
— Então não entendo! — Lavínia elevou o tom. — Por que se
arriscar dessa forma? Por que levar de bandeja até Tamal tudo aquilo que
ele tem caçado há anos?
— Porque eu estou cansada, Lavínia. Porque é insuportável saber
que todo o poder que carrego comigo não é o suficiente para manter vocês
em segurança, para acabar com essa caça às bruxas. Porque é injusto que
a Luz sempre de curve para a Morte, mesmo quando a magia de Alethea se
manifesta através de um humano tão cruel quanto o rei.
Anya não teve tempo para processar aquelas palavras, não teve
tempo para se perguntar quem seria Alethea ou sobre o fato de que Verena
acabara de insinuar que o Grande Rei Tamal possuía magia. Não teve
tempo pois a discussão parecia se intensificar ainda mais.
Verena sabia que sua imediata se encolhia ao ouvir suas palavras,
assim como sabia que ela não se calaria.
— Tem que haver outro jeito — Lavínia bradou. — Uma forma de
negociar sem que você seja colocada em risco.
— O que sugere, então? — a matriarca grunhiu.
— Que você não vá conosco.
— De forma alguma.
Um soco na mesa obrigou Verena a virar-se outra vez para a
garota.
Os olhos acinzentados de Lavínia estavam cheios de lágrimas, e
rugas se formavam em sua testa franzida. Se eram de medo ou raiva, a
Bruxa Primordial não sabia dizer. Mas aquilo partiu seu coração.
— Sabe que Tamal não dirá coisa alguma se eu não estiver
presente. — A bruxa suavizou sua voz — Preciso ir.
— Isso só prova que estou certa — Lavínia insistiu. — Que não é
seguro que você vá até lá, principalmente agora que a imortalidade sobre
nós é falha.
Mais uma vez, Anya não entendeu o que aquilo significava. A lista
de coisas para questionar Verena era interminável. E a incomodava que
seus próprios pensamentos se perdessem por entre os da mulher.
Mas silêncio foi a única resposta da bruxa para as palavras da
garota. Verena sabia que ela estava certa. Que era um risco grande demais.
No entanto, era algo que somente a matriarca poderia fazer.
— Jurei que a protegeria — prosseguiu Lavínia. — Sabe que as
consequências que a morte de uma das Sete traria para o mundo vão muito
além do luto ou da perda. Causaria um desequilíbrio no próprio
funcionamento da natureza.
Verena apoiou os cotovelos sobre a mesa, esfregando os olhos
enquanto pensava. Claro que sabia.
— Posso me cuidar sozinha. Venho fazendo isso há milhares de
anos.
— Você não vai!
E antes que a Bruxa Primordial fosse capaz de, ao menos, se
surpreender com a falta de respeito de sua imediata, um choro
descontrolado irrompeu da garota. Nunca tinha visto Lavínia agir daquela
maneira, nem mesmo quando elas foram forçadas a se trancarem dentro
dos limites de Duhn.
Com ambas as palmas sobre a mesa, a garota mantinha sua cabeça
abaixada, colecionando as lágrimas que caíam sobre o vidro frio.
Verena levantou-se e caminhou até sua imediata, pousando a mão
gentilmente sobre seu ombro.
Lavínia se virou e jogou os braços em torno de sua cintura,
enterrando o rosto na curva do pescoço da Bruxa Primordial.
Abraçando-a de volta, a bruxa desejou poder morar ali para
sempre. Onde não havia perseguição ou dor, apenas o cheiro de chuva
inebriante que subia daqueles cabelos cinzentos e a sensação morna de
ambas as peles se tocando.
Segurando com delicadeza o queixo de Lavínia, a mulher pousou
um beijo em sua testa. Então, beijou cada uma das lágrimas que escorriam
por sua pele clara até que, por fim, colocou seus lábios sobre os dela.
Um ruído baixo escapou da boca da imediata e Anya quis fechar os
próprios olhos, tendo a sensação de que invadia um momento que não lhe
pertencia.
Mas, gentilmente, as bruxas logo se afastaram gentilmente, e Verena
acariciou as bochechas de sua imediata.
— Vamos encontrar um jeito.
— Eu aceito — sussurrou Lavínia de repente. — O pedido que me
fez há trinta anos... O pedido que começou toda essa confusão e nunca
tivemos a chance de concretizar. Eu aceito. Deixe que eu me una a você,
que nos tornemos a mesma alma diante do véu que rege todo o universo e...
— Você quer ir em meu lugar — constatou a matriarca.
Um aceno de cabeça.
— Tamal não desconfiará de nada. O ritual me dará poderes. Seus
poderes. Podemos usar do elixir que o clã da Noite te ensinou a fazer e me
deixar parecida com você.
— Não posso permitir que corra esse risco passando-se por mim.
E a expressão que dançou pelo rosto de sua imediata fez com que
Verena suspirasse ruidosamente. Aquele seria um longo dia...
As sombras surgiram mais uma vez, turvando a visão da princesa
como se ela enxergasse através de um espelho d’água. E ainda pelos olhos
de Verena, encontrou-se de frente para a entrada do salão. Encarando a
porta fechada.
A Bruxa Primordial tinha a certeza de que seu coração escalaria
sua garganta e saltaria pela boca.
Isso foi uma péssima ideia, pensava, começando a andar de um lado
para o outro pelo piso de calcita azul. Seus passos ecoavam através do
palácio vazio, mais vazio do que jamais estivera.
Não era desse jeito que tinha sonhado com sua união à Lavínia.
Não deveria acontecer por aquele motivo.
Não era o que sonhara quando levou sua amada até a Grande
Queda e recitou o Cântico Sagrado, pedindo que vivessem por toda a
eternidade como uma só. A canção que era o início e o fim e o todo.
Cantada por aquelas cujas mãos derramaram seus poderes para forjar o
mundo.
Tinham quebrado regras e provado a todos que ninguém poderia
ficar entre elas, mas ali estava Verena.
Finalmente ligada à mulher que amava, mas sem tê-la ao seu lado.
O pedaço de prata envolvendo seu dedo carregava o peso de dois
mundos inteiros. O peso de tudo o que ela tinha a perder caso as coisas
dessem errado.
— Chegamos. — Uma voz doce preencheu seus pensamentos.
Lavínia. — Muitos soldados protegem o salão do trono, circundando suas
paredes por todos os lados. Mas não parecem muito interessados no que
está para acontecer aqui. Seus rostos parecem meio... vazios.
— Tomem cuidado — implorou a bruxa, sentindo seu corpo
estremecer. — Tamal está aí?
— Não, mas deve chegar em breve. — Uma pausa. — Deixe que eu
te mostre o que está acontecendo, já que não consegue se projetar até aqui.
Era estranho ouvir Lavínia falar assim.
A garota tinha se adaptado com facilidade aos poderes da Bruxa
Primordial, como se tivesse nascido para que se unissem daquela forma.
Eram agora uma única alma dividindo dois corpos e todos os poderes de
Verena eram compartilhados com sua imediata.
A união era o ritual mais antigo do mundo, e agora Lavínia
conseguia transformar seus olhos nos da matriarca, permitir que ela visse
tudo o que acontecia dentro do castelo.
— O rei chegou — a garota informou. — Está sozinho.
Verena fechou os olhos e concentrou-se, deixando que os sentidos de
sua amada funcionassem pelos dela.
Então, viu o palácio.
O lugar enorme, coberto de joias e riquezas inúteis. Viu os
soldados, exatamente como sua imediata descrevera, mas algo a respeito
deles a incomodou. Pareciam distraídos, o que destoava do excesso de
proteções que Tamal ostentava ali dentro.
Ela amava os humanos, mas aquele homem em particular, postado
diante de seu trono dourado... A bruxa cerrou as mãos em punho.
O rei a encarava fixamente.
Não, encarava Lavínia.
O elixir que Tallis — a Bruxa Primordial da Escuridão — a tinha
ensinado a produzir e funcionara perfeitamente. Não havia um traço sequer
da imediata que não se parecesse com Verena.
E mesmo que conhecesse Tallis há tanto tempo quanto existia, não
deixava de se impressionar com os poderes de sua irmã preferida. O breu
esconde e engana, e ilusões eram a especialidade do clã da Escuridão.
O pensamento chocou a princesa, que quase se esquecera de que
ainda era ela ali. Tallis devia ser outra das Sete e, enquanto Verena era a
Luz, aquela representava o Breu.
— Estou tão contente de ver todas vocês aqui esta noite — Tamal
disse finalmente, com deboche marcando cada palavra.
— Você disse que tinha um acordo para oferecer — Lavínia
respondeu, e a matriarca encheu-se de orgulho pela determinação em sua
voz. — Eu não poderia me recusar a ouvir o que tem para nos dizer.
O rei sentou-se em seu trono, repousando os braços em seu encosto
e abrindo um sorriso zombeteiro.
— Claro. — Ele assentiu. — Um acordo.
Um arrepio desceu pela espinha de Verena — de Lavínia — quando
o homem colocou um dos cotovelos sobre a braçadeira e apoiou o queixo
nos dedos.
— Saia daí — a Bruxa Primordial disse.
Mas antes que sua imediata pudesse respondê-la, Tamal acenou
para os soldados.
— Vocês sabem o que fazer.
E como se fossem apenas um, os homens lacraram portas e janelas.
O coração da matriarca deu um pulo dentro de seu peito.
— Lavínia... — repetiu.
Então, o primeiro grito surgiu.
As tochas que iluminavam o palácio tiveram seus fogos roubados e
foram disparados em direção às bruxas.
O maldito também era um Elementarista.
— Uma pena para vocês — o rei comentou, sentado em seu trono
como se nada estivesse acontecendo — que meu poder não seja forte o
suficiente para controlar seus corpos tão facilmente quanto os dos
humanos. Vocês poderiam ser úteis vivas.
Não houve tempo para que o clã revidasse, não houve tempo para
que tomassem o controle sobre o fogo e o fizesse parar. As chamas se
torciam como correntes em torno das bruxas que gritavam pelo terror de
sentir suas peles queimarem.
Elas morreriam.
O pensamento atravessou Verena de forma tão intensa que ela sabia
que ambas haviam pensado a mesma coisa.
— Fuja — ela sussurrou.
— Amo você — sua esposa respondeu quando o fogo a atingiu.
— NÃO! — rugiu a matriarca.
Mas então, ela perdeu o contato.
Tentou concentrar-se ainda mais, mas Lavínia parecia ter
bloqueado seu acesso às visões do palácio.
Verena tentou projetar-se até lá, mesmo sabendo que viajar através
da Luz era impossível durante a noite.
O Rei pensara em todos os detalhes. Chamou-as no momento em
que seu clã tinha menos controle sobre o que acontecia ao seu redor.
— Me deixe ver — sussurrou para a garota.
Ela tentava e tentava, mas as palavras não atravessavam a parede
que sua amada erguera entre as duas.
Um tremor veio do outro lado da união e então... Verena sentiu.
Em cada osso de seu corpo.
Cada pedaço de pele imortal que cobria sua alma parecia em
chamas, até que a dor jogou-a no chão.
Verena gritava, rolando sobre o piso azulado e se entrelaçando nos
próprios cabelos esparramados.
Fogo sobre gelo.
Suas costas se arqueavam em espasmos dolorosos quando a
barreira entre ela e Lavínia finalmente caiu.
E isso não era um bom sinal.
— As mãos que forjaram o mundo — começou a garota, recitando
aqueles versos que a Primordial conhecia tão bem.
— NÃO! — Verena gritou outra vez.
— Enquanto as Sete abençoarem a Terra... — ela continuava
falando.
Por que estava falando? Precisava poupar seu fôlego, guardar suas
forças para...
— Lavínia. — As lágrimas ardiam em seus olhos, tanto quanto sua
pele que ainda reagia às chamas.
— Meu amor... — a garota sussurrou. — Saiba que eu não me
arrependo de nada.
E a dor física desapareceu.
Rodopiou para longe como se nunca tivesse existido, restando
apenas...
Nada.
Apenas um silêncio sepulcral a cumprimentava do outro lado.
Foi tudo em vão.
Foi tudo em vão.
Tudo o que fizeram e enfrentaram. A fúria de Alethea da qual elas
fugiram tantos anos atrás.
Em vão.
Um grito puramente animal rompeu sua garganta enquanto ela
chutava e socava a pedra debaixo de si.
Enquanto ela...
A visão se desfez.
Anya estava outra vez sentada no mezanino com aquele bule de
porcelana pousado ao lado dela. Seus cabelos estavam grudados em seu
rosto pelas lágrimas que ela nem sentiu caírem, enquanto Verena puxava o
próprio pulso para si.
O corte que ela abrira ali já não passava de um simples arranhão, e
seu rosto encarava por sobre o ombro da princesa. E os olhos da garota
pousaram novamente no aro prateado na mão esquerda da bruxa.
O anel de casamento.
Ou seja lá o que era aquele ritual de união sobre o qual tinham
falado.
— Tem certeza de que não quer chá? — Verena repetiu, com os
olhos marejados e apenas a sombra de um sorriso triste.
Demorou alguns segundos para que Anya percebesse que ela falava
sério. Mas então, ela entendeu.
Criaturas estranhas, vocês humanos. Desconfiados demais.
A bruxa precisava que ela confiasse.
Então, pegou a xícara vazia e ergueu-a até Verena.
Farah observava em silêncio a extensa coleção de adagas de Delilah,
perfeitamente penduradas na parede de madeira envernizada. Perguntava-se
quem as tinha forjado e quais eram os segredos que se escondiam através do
aço. Mesmo depois de tanto tempo, ainda estranhava que memórias fossem
marcadas com sangue. Que lembranças pudessem ser compartilhadas ou
desfeitas como se fossem moeda de troca, como se fossem nada.
A claridade amanteigada que atravessava as cortinas desenhava
sombras pela pequena cozinha da meio-bruxa, que discutia fervorosamente
com Silja.
— A princesa vai odiar essa ideia... — resmungou a curandeira,
apoiando a testa sobre o tampo da mesa de madeira.
— E eu não a culpo por isso. — Delilah deu de ombros. — Mas
Verena pediu que realizássemos o Braan como se ela fosse uma de nós.
O Braan era uma tradição de Havenmill, um tipo de apresentação
formal dos novos conjuradores para que recebessem as bençãos das Sete.
Exceto que a única das Bruxas Primordiais presente seria Verena. E que o
pequeno festival fosse inspirado diretamente por um antigo ritual de união
que era comum entre as bruxas muitos séculos atrás.
Quando eram presenteados pela bruxa da Luz com uma fração de
sua magia, toda a cidade se reunia na praça central. Então, o Cântico
Sagrado era entoado, enquanto os sete poderes que regem o mundo
aceitavam, abençoavam e acolhiam o novo conjurador em uma cerimônia
que era considerada o momento mais importante da vida de um morador de
Havenmill.
Era emocionante.
Mas naquele caso, uma ideia terrível.
— Ela acabou de perder os pais — Farah sussurrou, massageando as
têmporas.
— Também perdemos muitos dos nossos — Delilah contrapôs
suavemente, e a artesã não deixou de notar que a mulher tentou não
mencionar seu pai. Ou Faen. — Verena acredita que não podemos ignorar
algo tão importante para nosso povo. Nunca houve, em toda a história de
Havenmill, alguém que fizesse a Travessia e não realizasse o ritual.
— Assim como nunca houve ninguém da Coroa em nosso território,
ou recebendo magia, ou qualquer uma dessas coisas — Silja reclamou. —
Isso não significa que devemos forçá-la a participar de uma tradição nossa.
Cada vez que eu olho para a princesa, ainda fico na dúvida se ela vai me
acompanhar ou sair correndo.
Farah fechou os olhos, concentrando-se no calor do sol sobre sua
pele. Não havia resposta certa, não havia solução simples.
E ela estava simplesmente exausta.
Desde que Anya lhe dissera que Benjamin estaria no palácio, não
houve um único momento nem mesmo para respirar.
Foram planejamentos intermináveis seguidos de horas angustiantes
presa no calabouço do castelo, perguntando-se se Alexzander conseguira
fugir com a princesa ou se tudo aquilo tinha sido em vão. E as coisas apenas
pioraram desde então.
Desde que chegara em Havenmill, se manteve ocupada,
respondendo perguntas e buscando explicações para a magia de Benjamin.
Não se permitiu pensar por tempo demais no pai. Tinha medo de que não
conseguisse se recuperar daquilo.
E precisavam dela.
Quando, na noite anterior, cada um de seus amigos encontrara algo
que precisava fazer, Farah foi visitar a família da garota que salvara sua
vida.
Ainda não sabiam sobre Faen.
E assim, ela passou a madrugada, consolando-os por sua dor para
que não precisasse pensar na própria, contando a história sobre como a
garota tinha sido corajosa e a protegera para que tivesse uma chance de
chegar até ali.
Falou sobre como Faen tinha sido forte e destemida, e como a
barreira protetora que teceu reluzia como o mais puro dos ouros.
Não mencionou como a garota tinha gritado, não contou sobre o
som de seu corpo caindo sobre o chão de pedra. Estas coisas, apenas Farah
precisava saber.
E quando Alexzander surgiu na porta do chalé da família
procurando por ela, passou a dividir suas próprias histórias. Das vezes em
que viu Faen pela cidade e como ela sempre carregava um sorriso no rosto,
trazendo consigo toda a gentileza do mundo.
Uma mão macia afagou seu ombro, e Farah ergueu o rosto,
encontrando o poço esverdeado que eram os olhos de Delilah em sua forma
mais branda, tão suaves que destoavam da seriedade que lhe era habitual.
A meio-bruxa sorriu, puxando uma cadeira e sentando-se ao lado
dela.
— Concordo com vocês — ela começou —, também não sei o
quanto de nós a princesa ainda consegue aguentar. Mas Verena diz que é
essencial que o Braan aconteça. Ela acha que a cerimônia será decisiva para
que a aliança com a princesa se fortaleça.
Silja bufou.
— Verena nem a conhece. Elas estão se encontrando pela primeira
vez nesse exato momento!
— Não se esqueça que os olhos dela alcançam qualquer lugar onde
haja luz. — Delilah deu de ombros. — E que ela adora falar em enigmas.
— A vida imortal deixou-a entediada — Farah murmurou. — Seu
passatempo deve ser nos observar tentando decifrar suas charadas.
Isso roubou uma risada de suas amigas, e a artesã se permitiu sorrir
também.
Com um gesto simples dos dedos, Delilah enviou uma brisa suave
até o fogão, apagando sua chama que aquecia água em uma chaleira de
barro.
— Café — disse apenas.
Farah sorriu ainda mais.
Passara tanto tempo vivendo em Wellin tendo de esconder sua
magia do mundo, que, às vezes, até mesmo esquecia que poderia usá-la.
Não precisava mais fingir, não para elas.
Não em Havenmill.
— Exibida. — Silja fez biquinho.
— Não seja maldosa, minha querida. — A meio-bruxa gargalhou.
— Podem pensar que está com inveja de poderes elementais.
— Jamais. — A curandeira revirou os olhos. — Quem contará para
a princesa que ela precisará colocar um vestido bonito e comemorar a
existência de uma magia que ela odeia?
Todos os sorrisos desapareceram.
— Ela mal me conhece. — Delilah ergueu as mãos, se esquivando
da responsabilidade.
— Lembre-se de todo o tempo que vocês terão de passar juntas
quando tiver que treiná-la, minha querida — debochou Silja.
— Acho que nós duas poderíamos fazer isso juntas — Farah
interrompeu-as, apontando para a curandeira. — Eu e Anya nos
conhecemos há muito tempo, e ela parece gostar de você também.
— Viu? — Silja mostrou a língua para Dell. — A princesa gosta de
mim.
Delilah simplesmente se levantou e caminhou até o fogão para
preparar o café, balançando a cabeça em uma irritação fingida.
— Certo — a artesã prosseguiu, ignorando as duas —, só
precisamos encontrar um jeito de fazer com que ela entenda tudo isso.
Quando é que as coisas se tornariam fáceis?
— Podemos ajudá-las a pensar em algo hoje à tarde, na reunião do
conselho — Dell comentou.
As duas garotas se calaram, tentando entender as palavras que
pairavam entre as três. Será que... Não, não poderia ser.
— Tem um lugar reservado para você na mesa, Farah — a meio-
bruxa continuou, abrindo um sorriso tímido. — Tenho certeza de que seu
pai gostaria que o aceitasse.
E as lágrimas que ela tentara conter com tanto afinco nas últimas
horas venceram. Sim, seu pai adoraria isso. Provavelmente, sorria
orgulhoso da filha naquele momento.
A mulher pousou uma xícara cheia de café na frente de cada uma
das garotas, logo depois, acariciou outra vez o ombro de Farah.
— E você — Dell apontou para Silja — é um pé no saco, mas já
estava na hora de aceitarem que você faça parte do Conselho também.
— O quê? — a curandeira gritou. — E Jett não teve um ataque
cardíaco por causa disso?
— Teve dois. — A mulher gargalhou. — Não se preocupe, estou
mais do que acostumada a lidar com meu pai.
Farah era incapaz de explicar o quanto sentira falta daquelas duas.
Ela secou as lágrimas com o dorso das mãos e jogou os olhos para o alto,
impedindo que novas brotassem.
E ali, reunidas naquela cozinha, não conseguia deixar de pensar em
como teria sido sua vida caso seu pai não tivesse aceitado aquela missão. Se
não tivessem se mudado para Wellin e ela tivesse crescido em Havenmill.
Com tantas pessoas que a amavam.
Talvez, Magmar ainda estivesse vivo.
Fugindo daquele pensamento, encontrou Delilah ainda a
observando. Seus lábios sorriam, mas a expressão não chegava aos olhos.
Era como se lesse cada um dos pensamentos da garota.
— Sempre seremos sua família — disse. — Seu pai foi o amigo
mais antigo que eu já tive e era o homem mais justo e bom que conheci.
Honrarei cada conselho, ajuda ou conversa boa que tivemos cuidando de
você.
E o choro que mal havia secado, irrompeu de sua garganta mais uma
vez. Ela lançou os braços para a mulher ao seu lado, sem se importar com
os segundos em que Dell simplesmente ficou paralisada. Porque quando a
meio-bruxa retribuiu o abraço, foi mais aconchegante do que qualquer
definição de lar que Farah já tivera.
Silja arrastou sua cadeira, disfarçando ao secar as próprias lágrimas
enquanto se despedia.
— Preciso ir. Tenho de avisar Gerry que as entregas serão suspensas
por... tempo indeterminado.
E Farah conseguia ver a tristeza no rosto de sua amiga por ter de
encerrar suas idas até Ediri. Não somente pelo namorado, mas porque o
mundo lá fora sempre foi o grande amor da vida garota.
— Tome cuidado — Delilah pediu. — E sinto muito que precise
fazer isso. Ah, não se atrase para sua primeira reunião como membro do
Conselho.
Silja apenas assentiu, desaparecendo para fora da casa.
— E você — prosseguiu — pode ficar aqui e almoçar comigo. O
chalé estará vazio até o fim do dia.
E Farah ficaria.
Pois apesar da dor em seu peito — e do café forte demais — ao
menos, não estava sozinha.
Quando Alexzander chegou ao gabinete para a reunião do Conselho,
soube na mesma hora que havia algo errado.
Sua irmã, que tanto almejava fazer parte daquela mesa,
simplesmente não estava ali.
Atrasada em seu primeiro dia.
Ele já tinha percebido seu comportamento estranho mais cedo,
quando a garota voltou de Ediri. Mal trocaram duas palavras ao se
encontrarem nas plantações, antes que ela disparasse para resolver qualquer
coisa no chalé.
Silja nunca ficava sem algo para contar.
Conversamos na reunião, dissera, com uma expressão transtornada
no rosto.
E agora, ela não estava ali.
— Cadê sua irmã? — Delilah questionou ao vê-lo chegar
desacompanhado.
— Não faço ideia. — Alexzander passou a mão pelos cabelos,
tentando disfarçar sua preocupação. — Mas algo aconteceu na floresta hoje.
— Como assim “algo aconteceu na floresta”? — indagou Farah, que
estava sentada no antigo lugar de Magmar.
Um misto de felicidade e pesar atingiu-o com a visão.
A artesã merecia a posição. Tinha feito um ótimo trabalho no
palácio, ainda que indiretamente, nos últimos anos. Mas era triste pensar
que Farah ocupava agora a cadeira de outra pessoa, e não que uma havia
sido acrescentada para ela.
Poucos passos foram necessários para que ele chegasse até a única
janela do pequeno escritório. A poeira se acumulava no vidro, impedindo
que a luz entrasse adequadamente.
A sala que mal acomodava uma mesa para seis pessoas era chamada
de gabinete por ser o mais próximo de uma locação oficial que Havenmill
possuía. Era pequena, úmida e cheirava a mofo. Mas era uma zona neutra,
imparcial. E os forçava a transformarem qualquer discussão na conversa
mais sucinta possível, para que pudessem abandonar o lugar com rapidez.
— Ela não quis me contar — respondeu, olhando as crianças
brincarem através da janela suja. — Mas estava preocupada.
— Acha que Gerry fez alguma coisa? — Dell questionou.
Alexzander chegou a pensar nisso. Que o rapaz não recebera bem a
notícia de que teriam de cancelar os encontros, e destratara a garota. Mas
isso deixaria Silja com raiva e não com a apreensão que ela trazia no rosto.
Sua irmã estava com medo.
E isso o assustava também.
— Não. Acho que ele, na verdade, trouxe alguma informação que
ela não gostou.
Alexzander conseguia sentir os olhos de todos cravados em suas
costas. Conseguia sentir a tensão de todos naquela sala, e se admirou que
Jett — pai de Delilah — ainda estivesse em silêncio.
O senhor de quase setenta anos colecionava comentários indelicados
e preferia cair morto a demonstrar qualquer tipo de gentileza. E era estranho
tê-lo tão quieto diante do atraso de Silja.
Cortesia não garante que as coisas sejam feitas, resmungava o
tempo todo. E o rapaz sentia pena da meio-bruxa por ter de lidar com ele a
vida inteira.
A porta rangeu um segundo depois, trazendo uma Silja de
bochechas rosadas e sem qualquer indício de preocupação no rosto.
Como se nada tivesse acontecido.
— Me perdoem pelo atraso. — Deu de ombros. Mas a voz a
entregou. Sim, algo tinha acontecido e ela estava tentando soar casual. —
Eu poderia jurar que o gabinete ficava mais perto do chalé.
Ninguém pareceu acreditar naquela justificativa, mas Dell apenas a
analisou por alguns segundos e respondeu com suavidade:
— Sem problemas, não estamos com pressa. — Ela sorriu.
Jett bufou, mas permaneceu em silêncio — o que já era um grande
avanço quando o assunto era polidez.
Alexzander puxou uma cadeira para irmã e sentou-se ao seu lado. E
quando a meio-bruxa estava prestes a começar a reunião, Silja suspirou alto
e disse:
— Quase fomos vistos em Ediri hoje.
Todos na sala pareceram prender a respiração, como se pudessem
ver a informação sendo jogada sobre a mesa de vidro.
— O que quer dizer, exatamente, com “quase”? — a meio-bruxa
perguntou.
A curandeira escondeu as mãos sob a mesa e mordeu o lábio
inferior.
— Quase como em “Benjamin colocou um soldado em cada esquina
de Wellin, Ardith e da Aldeia”. Estávamos conversando perto das fronteiras
da floresta quando ouvimos a movimentação por entre as árvores.
Silêncio mais uma vez.
— Está me dizendo — Delilah finalmente falou — que havia
soldados dentro de Ediri?
Silja assentiu.
— Parece que o ódio pelo que aconteceu com o Rei é mais forte do
que o medo que eles têm dessas terras. Estão procurando pela princesa.
— Não — Farah interrompeu. — Estão procurando por mim, porque
o príncipe sabe eu que iria até a princesa. Ele não consegue controlar todos
os guerreiros ao mesmo tempo, está usando seu poder apenas nos homens
que estavam no palácio durante o ataque, para que não falem sobre o que
aconteceu dentro daquelas paredes.
Magmar uma vez explicou como as coisas funcionavam com a
Guarda Real, que havia apenas uma tropa de confiança máxima com
autorização para circular pelo castelo.
— Os outros homens não precisam de magia para caçar
conjuradores — Farah prosseguiu —, fizeram isso a vida inteira. Mas como
Benjamin disse que Anya também foi morta naquela invasão, não acho que
ele colocaria os homens procurando por ela.
— Então, estão atrás de você — Alexzander completou.
A garota assentiu.
— Certo. — O rapaz suspirou. — Precisamos fortalecer as barreiras
de Havenmill. Com a magia de Verena em seu limite, temos de manter
olhos nas proteções permanentemente.
— Não temos Artesões preparados para isso. — Delilah esfregou os
olhos. — Magmar era o único em constante treinamento, pois estava
sempre em risco lá fora. Aqui embaixo... estão todos acomodados. Precisam
praticar.
— Isso foi um erro nosso — Jett resmungou, apoiando as mãos na
mesa com os dedos entrelaçados. — Deixamos que todos acreditassem que
Havenmill era uma solução permanente. As gerações passadas vêm fazendo
isso desde que a cidade foi fundada quando, na verdade, deveriam estar
buscando por soluções.
— Acha que consegue ajudá-los? — Alexzander perguntou para
Dell.
— Acho que você precisa ajudá-los — a meio-bruxa contrapôs,
fazendo uma careta quase imperceptível — Eu tenho que treinar a princesa.
Claro.
Delilah era a única pessoa forte o suficiente para lidar com a magia
recém-descoberta de um conjurador.
— E o que diremos para eles? — Silja questionou. — Como vamos
explicar que o único lugar seguro que eles conhecem está sob risco de
ataque? Estiveram no escuro sobre qualquer coisa que ocorre lá fora por
tempo demais.
— Contaremos a verdade — Jett respondeu. — Que durante o
tempo em que Magmar trabalhou no palácio, descobrimos que havia uma
chance de evitarmos que o reino fosse governado por um homem tão
desprezível quanto Benjamin. Que a vida da herdeira estava em risco, e que
ela poderia ser a chave para que Havenmill fizesse as pazes com a Coroa.
— E então, faremos com que pratiquem. Que aperfeiçoem seus
poderes para garantirmos que nossa cidade permaneça oculta até que tudo
se resolva. — Delilah complementou — E eu, transformo a princesa na
melhor conjuradora que eu puder.
— E você tem apenas um mês para fazer isso — Silja sussurrou.
— O quê? — disseram todos em uníssono.
— A coroação de Benjamin acontecerá em cinco semanas.
O chá ainda estava quente quando tocou os lábios da princesa. Ela
sabia que estava sentada naquela poltrona há muito tempo, e sabia que se
tratava de tempo real — não somente a ilusão caótica que tomava conta
dela vez ou outra.
Ainda assim, ele estava quente como se Verena o tivesse preparado
naquele momento.
Não havia nada de particularmente incomum a respeito de seu gosto,
entretanto. Apenas canela e um suave toque de mel. Mas foi bom ter a
bebida para manter-se ocupada, pois parecia que todas as palavras haviam
sido roubadas dela no instante em que voltara para o momento presente.
Aquelas memórias...
Pelos deuses.
Estava tudo errado!
Ano após ano, século após século, aquelas pessoas haviam sido
perseguidas por causa de uma história que era mentira. As bruxas não
atacaram Tamal. Ele as tinha atacado.
E agora, pensando sobre isso, todas as peças pareceram se encaixar.
Porque aquelas pessoas ainda cultuavam a magia — e Verena —, mesmo
quando isso trazia tanto risco para elas. Porque todos olhavam para Anya
com tanta desconfiança quanto ela olhava para eles.
Ela era a culpada por toda aquela perseguição.
Bom, a família dela, pelo menos.
E de repente, a princesa entendeu o seu papel em todo aquele jogo.
Poderia consertar as coisas.
Se ela conseguisse chegar ao trono, teria uma chance de fazer de
Duhn um lugar acolhedor para todas as pessoas que viviam ali. Ou, ao
menos, começar esse processo.
— Sinto muito — conseguiu dizer finalmente.
O fantasma de um sorriso passou pelos lábios da bruxa.
— Eu também. Mas não foi por isso que mostrei aquelas memórias.
A princesa entendeu o que ela quis dizer.
— Tamal era um conjurador — sussurrou e as palavras deixavam
um gosto amargo em sua boca, apesar do chá adocicado.
— Ele ainda é.
— O quê?
Verena respirou fundo, como se estivesse se preparando para contar
uma longa história.
— Tamal não se tornou apenas um conjurador. E é imortal.
A princesa não soube o que dizer. Aquelas eram as palavras mais
absurdas que ela já tinha ouvido. Mais do que todas as outras coisas
absurdas que haviam sido contadas a ela nos últimos dias. Humanos não
poderiam se tornar imortais, poderiam?
— Imagino que tenham lhe explicado sobre as Sete Bruxas antes de
vir para cá. — Verena prosseguiu, dando apenas tempo para que Anya
confirmasse com a cabeça. — Cada uma de nós somos responsáveis por um
dos aspectos primordiais que movem o mundo. A Luz, a Escuridão, os
quatro elementos básicos da natureza e... a Vida e a Morte. Os dois últimos
se complementam, assim como o Tempo.
— O Tempo?
— O que é o tempo se não a passagem da vida?
Ela não sabia o que responder.
— O motivo pelo qual nunca pudemos enfrentar Tamal quando ele
começou a nos perseguir é que ele recebeu os poderes dessa última bruxa.
Alethea é o nome dela.
Alethea.
A princesa se lembrava ter ouvido aquele nome em uma das visões.
— E ela é a Bruxa Primordial da Morte?
— Não existe nada que faça a morte se curvar. — Verena
prosseguiu, girando a aliança em seu dedo fino. — Nem mesmo a luz. E se
Alethea precisava de Tamal vivo, não existia nada que nós pudéssemos
fazer.
A garota estava errada. O antigo Rei ser imortal não era a coisa mais
absurda que ela já ouvira. Isso era.
— Por que uma bruxa tão poderosa precisaria de um humano? —
questionou.
— Para chegar até mim. — Uma risada sem humor escapou da
bruxa. — Tamal era um homem ganancioso e com sede de poder. E ele
sabia que jamais teria poder absoluto sobre este reino enquanto uma das
Bruxas Primordiais vivesse em seu território. Então, foi atrás da bruxa que
não somente poderia permitir que ele reinasse para sempre, como lhe daria
meios de me enfrentar.
— Mas por que Alethea queria chegar até você?
Ela sentia como se seu mundo inteiro abrisse debaixo de seus pés. A
história era uma mentira, o antigo rei era imortal e uma bruxa com poderes
da morte estava atrás daquela diante de si.
As paredes ao seu redor pareciam começar a se mover,
aproximando-se dela como se a quisessem sufocar, esmagar. Precisou
abandonar sua xícara sobre a mesinha para evitar que ela caísse no chão.
Verena percebeu o pânico que tomava conta dela, e fez com que
todos os itens do chá desaparecessem.
— Venha comigo, vamos para outro lugar — disse, levantando-se.
Anya acompanhou-a em silêncio pelo mezanino, aliviada pela
caminhada que a ajudava a respirar melhor.
O único som vinha dos passos da princesa, e seus olhos mal
conseguiam acompanhar a quantidade de detalhes que o lugar apresentava.
As paredes esculpidas até o teto pareciam contar histórias. Ela viu
mulheres com suas mãos erguidas, tecendo espirais de fumaça em direção
aos céus. Viu mulheres com suas mãos em concha, derramando algo sobre
rios. Viu mulheres com as mãos no solo, rodeadas por árvores e flores.
Sempre representações femininas.
Sempre em grupos de sete.
A criação do mundo, finalmente percebeu.
Eram as Sete Bruxas Primordiais.
Havia símbolos que se assemelhavam a letras de um idioma que ela
não conhecia, mas suspeitou que contava a história esculpida na pedra.
Chegaram ao fim do mezanino, em frente à uma porta de madeira
lustrosa e escura. E ela se abriu sem qualquer toque, gesto ou palavra.
A princesa reconheceu o escritório.
Estivera nele em uma das lembranças.
Como Verena.
Com Lavínia.
A bruxa se apressou até as pesadas cortinas, abrindo-as
agressivamente. Como se não pudesse suportar a escuridão que elas
derramavam sobre o lugar.
— Existe um Tratado — a mulher disse, depois de muitos minutos.
— E ele proíbe que magia seja compartilhada com humanos. Alethea
sempre me considerou estúpida e ingênua por acreditar que vocês são tão
merecedores destas bençãos quanto nós. Ela sempre acreditou que humanos
apenas se aproximavam visando nossos poderes. Que nos tratavam como
divindades para que pudessem se tornar deuses também.
“Eu nunca acreditei nisso, e segui fazendo as coisas como achava
certo. Presenteei humanos com sementes de poder sem me deixar levar
pelos preconceitos de Alethea. Mas ela não gostou de ter sua autoridade
questionada, e me procura desde então. As barreiras protetoras que ergui em
torno de Duhn são a única coisa que a impedem de chegar até mim.”
— E quando Tamal apareceu lá dizendo que também queria se livrar
de você... —Anya deduziu o resto.
— Exatamente. Ela ofereceu a imortalidade a ele, em troca de um
pequeno favor. Eu. — A bruxa sentou-se na imensa cadeia atrás da mesa de
vidro e apontou para um pequeno sofá que a princesa não reconheceu
daquelas memórias. — Sente-se, deve estar com fome.
E enquanto a princesa se acomodava entre as almofadas, que eram
muito mais confortáveis do que pareciam, uma cesta de pãezinhos com
manteiga surgiu sobre a mesa.
Mas apesar do cheiro incrível que vinha dali, sua fome tinha
desaparecido.
— Em uma das visões — a princesa estremeceu —, Lavínia disse
algo sobre algum tipo de falha sobre a imortalidade. Foi por isso que Tamal
conseguiu fazer aquilo com seu clã?
Ela não teve coragem para transformar “aquilo” em palavras mais
específicas.
— Existem duas formas para que Alethea controle a Vida. Ela pode
parar o Tempo e permitir que você jamais envelheça, e ela pode afastar a
Morte, impedindo que você... morra. Enquanto eu erguia meu escudo de
proteção, ela teve tempo de anular apenas um dos dois.
— A Morte — Anya sussurrou. — Por que ela faria isso com uma
das próprias irmãs?
Verena bufou, e foi o gesto mais humano que ela tivera desde que se
conheceram.
— Porque Alethea é uma tola. Diz que a imortalidade nos impede de
entender o real peso da Vida, então, simplesmente acabou com tudo. Bom,
ela tentou.
E quase conseguiu, a princesa pensou.
— E o que aconteceu com Tamal?
— Deixou Duhn para trás logo após o incêndio, não tive notícias
desde então — Ela deu de ombros. — Ele não faz ideia de que sobrevivi
àquela noite, e imagino que, ao provar do gosto da vida eterna, tenha
desistido de desperdiçá-la em uma simples Coroa.
Uma simples Coroa.
— Acha que Alethea pode ter reestabelecido a mortalidade dele?
— Sim, mas sua juventude permanece, pelo que ouvi. Alethea sabe
que ele falhou em sua missão comigo, no entanto, ficou satisfeita pelo resto
do estrago que ele deixou. Eu queria poder ir atrás dele, porém, estas
barreiras são a única proteção que tenho. — Verena parou de falar como se
ponderasse o que poderia contar. — E mesmo elas estão começando a
falhar.
Anya piscou, sem ter certeza se tinha entendido.
— Suas barreiras?
— Manter Havenmill têm exigido um esforço imenso de meu poder.
— A bruxa encarou as próprias mãos, parecia envergonhada. — O ritual
que realizei com Lavínia, ele...
As palavras pareceram fugir de Verena, como se a simples menção a
sua esposa fosse difícil demais.
O peito da princesa pesou. Ela não conseguia imaginar carregar o
peso da perda por tanto tempo. Parecia insuportável, e percebeu que
começava a se afeiçoar à bruxa.
— O ritual de união é o vínculo mais poderoso que pode ser criado
entre dois seres. Quando você vê a si mesmo no outro, quando encontra
alguém que faz com que tudo simplesmente tenha sentido, essa cerimônia
cria uma ligação para sempre. Vocês se transformam em um, habitando
corpos diferentes.
— Como almas gêmeas?
— Não. Chamar isso de “almas gêmeas” insinua que esse tipo de
ligação é predestinada, e o amor não funciona desse jeito. — O rosto dela
ao dizer aquelas palavras foi de cortar o coração. — Você encontra essa
pessoa e você escolhe estar com ela. O amor não é perfeito... Você precisa
aprender a gostar das falhas também. Não se pode colocar esse tipo de
decisão nas mãos do acaso.
Verena teve isso nas mãos e perdeu.
Não, ela teve isso nas mãos e foi roubada.
A princesa não sabia o que dizer, e sentiu os olhos arderem ao
imaginar o tipo de vazio que romper aquela união poderia deixar.
Como se lesse seus pensamentos, a bruxa prosseguiu:
— Quando Lavínia e eu nos unimos, quando nos transformamos em
uma só, minha magia também foi compartilhada. E quando o laço se partiu,
metade dos meus poderes se perdeu também.
— Pelos deuses — Anya praguejou.
E, para sua surpresa, Verena riu.
Não foi um riso alegre, mas parecia carregar algo como saudade.
— Já fui um dos deuses aos quais você chama — ela disse com
suavidade. — Minhas irmãs, para além do continente, ainda são tratadas
assim. Mas Duhn vêm enfrentando uma era de negação desde Tamal, e seu
trabalho foi tão bem-feito que as pessoas simplesmente... se esqueceram.
Elas não somente temem a magia, elas não sabem quem somos ou o que
criamos.
Anya pensou em sua conversa com Silja. E pareceu tão óbvio então!
Os Dahnasa substituíram a fé do povo nas Deusas pela Coroa, direcionaram
suas crenças para sua própria instituição antes que eles tivessem tempo de
buscar por outra divindade.
Elas foram desacreditadas e enterradas tão fundo no passado que
ninguém lá fora, ao menos, tinha consciência de sua existência.
— Farei o possível para que eles se lembrem e para que não precise
mais dedicar tanto de seu poder para sustentar Havenmill — a princesa
disse, e as palavras eram verdadeiras. — Quando isso tudo acabar, levarei
todos para Duhn.
Estava cansada de mentiras.
De ter tantas coisas roubadas de si.
Sua história, seus pais, seu reino...
— Agradeço que tenha, finalmente, aceitado nos ajudar de verdade.
— A bruxa pousou as mãos sobre a mesa e encarou-a. — Mas tem mais
uma coisa que você precisa saber.
A princesa suspirou alto e aguardou.
— Seu primo — Verena disse — possui a mesma magia de Tamal.
— O quê?
— Aquilo que viu Tamal fazer no palácio com os soldados... Faz
você lembrar de alguma coisa? Ou de alguém?
Benjamin.
Farah havia dito que Benjamin era um conjurador e que mantinha
seu controle sobre todos no castelo. Ele estava fazendo a mesma coisa que o
antigo Rei fizera há quatrocentos anos.
Seu primo havia encontrado Alethea.
E estava ali para terminar o que Tamal não conseguiu.
— Que chance eu tenho contra ele? — ela sussurrou. — Se nem
mesmo um clã inteiro de bruxas foi capaz de combater essa magia?
— Você precisa confiar em mim quando eu digo que suas chances
são muito melhores do que você imagina. — Seu rosto mostrava que ela
queria contar mais alguma coisa. No entanto, apenas completou com: — E
não terá de fazer nada sozinha. Todos eles estão lá para ajudá-la.
Ela sabia de quem Verena falava.
De Alexzander, que a tinha resgatado do castelo. Silja, que curara
seus ferimentos e tivera tanta paciência para mostrar a cidade a ela, mesmo
que a princesa não agisse de forma tão receptiva. E Farah... Sua amiga
Farah, que a acompanhou desde pequena, quando brincavam de boneca
juntas, até agora. Até ali.
— E eu também tenho uma coisa para você — a bruxa completou.
E quando Verena se levantou, já não era a mesma mulher que
estivera com ela naquela manhã.
Não.
Ela era a Bruxa Primordial da Luz, uma das Sete Deusas que
teceram o mundo por entre seus próprios dedos. Uma aura sobrenatural
cobria cada centímetro daquele corpo imortal.
Anya engoliu em seco, percebendo que os olhos de Verena já não
passavam de duas fendas minúsculas e que suas as narinas estavam
dilatadas.
A mulher se movia como se estivesse dançando uma música que
apenas ela era capaz de ouvir.
Uma predadora, ainda que a garota não sentisse medo.
Então, Verena estendeu sua palma em direção ao rosto da princesa, e
quando seus dedos mornos tocaram sua testa, ela sentiu.
A sala foi preenchida por um silêncio pesado marcado por um ruído
estático insuportável, enquanto a magia da Luz atravessava seu corpo com a
força de um raio e Anya perdia a consciência.
Por um momento, Anya chegou a pensar que estava novamente em
uma lembrança.
Mas não havia névoa ou sombras desta vez. Não havia coisa
alguma, na verdade.
Era como se corresse rápido demais e o mundo à sua volta não
passasse de um borrão. O vento chicoteava seu rosto com violência, e seus
olhos semicerrados ardiam, impedindo-a de identificar onde estava.
Ela sentia grama e gravetos espetando seus pés descalços, e o vulto
esverdeado ao seu redor a fizera pensar nos pinheiros naquela primeira
noite. Exceto que era dia, e que ela não corria por entre as árvores, e sim na
direção delas.
Seus cabelos longos voavam enfurecidos ao seu redor e Anya queria
tirá-los de sua frente, na esperança de que isso facilitasse sua visão. Mas seu
corpo novamente não obedeceu.
Preciso sair, preciso sair, preciso sair.
A voz que cortou seus pensamentos não era sua, mas a princesa a
conhecia com todo o seu coração.
Elysia.
Sua mãe.
Por favor, que as proteções não estejam longe demais, repetia ela.
De novo e de novo e de novo.
Seus pés doíam tanto que ela tropeçou, mas quando levou as mãos à
frente para amortecer a queda, quando finalmente tocou o chão, não estava
mais caindo.
Estava apenas deitada ali. A grama fazia cócegas em seu corpo e sua
visão já não estava embaçada. Seus dedos eram seus outra vez.
Era uma lembrança dela mesma.
E ao mesmo tempo, não era.
Pois não reconhecia aquele momento.
Estava em Ediri, com os pinheiros erguendo-se ao seu redor. Os
céus eram uma mistura estranha de ouro e prata, como se o sol estivesse na
dúvida de qual cor usaria para pintá-lo.
Quando ela se sentou, os tons mudaram.
Ficaram de um laranja intenso como o crepúsculo, e a princesa
reconheceu a forma de Verena ao longe.
A bruxa erguia as mãos ao alto, e seus cabelos impossivelmente
longos pareciam derramar-se para todos os lados e acompanhar o
movimento de seus dedos. Eles subiam, espiralando até o dossel que cobria
o mundo, manchando-o de pôr do sol.
Alguém apagou a luz.
Anya esfregou os olhos, mas era impossível enxergar qualquer
coisa.
Tinha a certeza de estar ao ar livre, mas não havia luar ou estrelas,
apenas o breu infinito. Um eclipse no qual nada se refletia além da própria
escuridão.
Entretanto, não havia incômodo no vazio, na ausência. Era tudo
estranhamente reconfortante.
Seu corpo formigava e Anya teve novos flashes de ouro e prata,
como fogos de artifício. Sua pele estava tão quente que era como se uma
tocha estivesse acesa ao seu lado, mesmo que o vento que voava contra ela
fosse frio como o inverno.
Ainda sentia a grama sob seus pés e, ao longe, havia o som de água
corrente. Talvez ainda estivesse em Ediri.
Uma música estranha soava, fraca, baixa, quase um sussurro.
A luz voltou ao mundo, e Anya estava novamente no escritório de
Verena.
Caída sobre as almofadas do sofá em suas roupas de treino.
Tinha voltado para o presente.
A bruxa estava sentada em sua cadeira atrás da mesa de vidro, as
mãos cruzadas sob o queixo.
Ela sorria.
Sorria como um artista admirando sua obra, sorria como um alguém
que conhecia um segredo único e transformador.
E a julgar pela posição do sol sobre o chão azulado, apenas alguns
minutos se passaram desde que a princesa apagara.
Tudo estava igual.
Mas ao mesmo tempo, não estava.
Não era algo visível ou palpável, apenas uma sensação.
Um formigamento que se espalhava por seu corpo como se fosse
feito de seu próprio sangue.
E achou estranho que aquilo fosse tão... bom.
Não sentia mais medo.
Logo ela, que sempre tivera horror a magia, tinha aquele poder
pulsando dentro de si. E não parecia mais errado.
Verena não demonstrava saber sobre aquelas estranhas visões, ou ao
menos, se importar com elas.
Apenas continuou sorrindo.
— É como chegar em casa, não acha? — a bruxa disse finalmente.
E as palavras exprimiram tudo o que se agitava dentro da princesa.
Era a resposta que ela procurava para explicar o que estava sentindo.
— O que acontece agora? — Anya perguntou. — Quero dizer, a
respeito de Benjamin, Tamal, Havenmill...
— Tamal não é um problema com o qual tenha de se preocupar.
Levei você até aquela noite pois precisava que entendesse. Que conhecesse
a nossa versão dos fatos. A verdade sobre tudo o que aconteceu. — Ela se
levantou. — E quanto ao seu primo, sugiro que converse com minha neta.
Ela poderá ajudá-la a descobrir como a magia irá se manifestar em você e
como usá-la.
Anya demorou alguns segundos para entender a última frase.
Claro, Delilah.
A meio-bruxa que treinava as crianças.
E que, aparentemente, treinaria ela também.
— Terminamos por aqui — Verena concluiu, abrindo a porta do
escritório e acenando para que a princesa saísse.
Elas refizeram o mesmo caminho até as escadas, e seguiram para o
grande salão de entrada.
A princesa não saberia dizer se a bruxa falara mais alguma coisa,
estava absorta na nova sensação que corria dentro dela — um misto de
surpresa e deslumbramento.
Não tinha certeza se deveria reagir de forma tão confortável àquilo,
e não foi capaz de afastar por completo o pensamento de que estava traindo
sua família. Sua Coroa.
Não.
Não estava.
A Coroa havia cometido um erro e ela estava ali para concertá-lo.
— Vai se acostumar. — Verena riu quando chegaram ao grande
portão que em nada se parecia à porta de madeira na qual Anya entrara. —
A magia está reconhecendo você.
Reconhecendo.
Como se elas já tivessem se encontrado antes.
Escolha estranha de palavras.
— Como você chama esse lugar? — A garota acenou para o salão.
— Casa. — A bruxa ergueu uma sobrancelha. — Em Havenmill, se
referem a este espaço como Refúgio. E ele funciona exatamente como o
nome que recebeu. Será sempre bem-vinda aqui quando precisar pensar ou
de conselhos. Ou só porque gostou do meu chá.
— Certo. — Ela riu. — Agradeço pela... magia. E por todas as
respostas. O que me mostrou hoje mudou tudo.
— Eu sei. E existe uma última coisa que precisará fazer. Para que
complete o ciclo da Travessia, quero dizer.
Anya ergueu uma sobrancelha, mas aguardou em silêncio.
— Seus amigos poderão explicar melhor para você. Mas existe uma
cerimônia que acontece depois de ser presenteada com meus poderes. — A
bruxa pousou uma mão em seu ombro e um arrepio cruzou o corpo da
princesa. — Sei que você tem muitos motivos para recusar uma
comemoração agora, mas é muito importante que participe. Para você e
para eles.
E antes que a princesa pudesse refletir sobre aquele pedido, antes
mesmo que absorvesse a forma como Verena se referiu àquelas pessoas
como seus amigos, as portas do Refúgio se abriram.
— Aceite a origem de seus poderes. — Foi a última coisa que ouviu
antes de ser empurrada para fora por um vento invisível.
Um segundo mais tarde, estava de volta à floresta, entre um
amontoado de rochas cobertas de musgo.
E a porta de madeira se dissolveu em nada, como se tudo não tivesse
passado de um sonho.
Conan precisava dizer que a amava.
Se ela sobrevivesse a isso.
Se ele sobrevivesse a isso.
Se algum dia ele saísse daquele maldito castelo e dos domínios
daquela magia terrível, precisava que Anya soubesse que aqueles olhos cor
de âmbar eram as únicas coisas que o mantinham longe da escuridão. Que
eram sua âncora quando as sombras tomavam conta de seus pensamentos,
quando as raízes prateadas ganhavam mais e mais espaço dentro dele.
Suas mãos tinham sido transformadas em armas e sua boca
respondia perguntas que poderiam ser vitais. Mas apesar disso, a mente do
soldado ainda resistia.
Por ela.
Pela mulher que ele tivera nos braços, que ele carregara dentro do
coração sem que ela jamais soubesse que era amada.
O abismo que o separava da realeza já não importava mais.
E caso Conan se libertasse daquelas garras invisíveis que o
controlavam, contaria a verdade.
Diria que o veludo daquela pele era a textura preferida de seus
dedos e que o meio sorriso dela poderia iluminar até o mais denso dos
breus. Diria que aquele aroma de canela e pinha ainda estava atrelado aos
lençóis que ele não ousara trocar, e que a falta dos cachos dela
esparramados sobre seu travesseiro era um peso constante.
E agora, seus dias se estendiam ao redor de um príncipe perverso, e
comandando os homens de sua tropa para que caçassem a mulher que
significava tudo para ele.
Conan também a caçava para ser honesto.
E apesar de todas as tentativas de resistir contra aquela obediência
cega que seu corpo tinha à magia de Benjamin, ele não conseguia.
Se a hora chegasse, se Anya cruzasse seu caminho cedo demais, o
poder senhor de suas mãos o submeteria a tomar a vida daquela que
carregava o coração dele junto com o próprio.
A cada segundo de cada dia, ele pedia a qualquer deus disposto a
ouvi-lo que o príncipe se cansasse de sua presença. Que o soldado se
tornasse descartável e inútil, e seu corpo fosse condenado ao fim antes que
sua alma se partisse para sempre.
Enquanto isso não acontecia, lhe restava apenas esperar que a
princesa estivesse longe. Que estivesse segura. E se o preço fosse nunca
mais voltar a vê-la, ele pagaria.
Mas caso sobrevivesse, Conan precisava dizer que a amava.
PARTE III:

O CAMINHO DO VENTO
A princesa não tinha certeza de como encontrou o caminho para o
chalé.
Sim, ela havia prestado atenção na estrada quando foi até o Refúgio,
mas estava tão perdida nos próprios pensamentos que, quando se deu conta,
já estava na praça central de Havenmill.
Ela não se lembrava de atravessar o portal de volta para a cidade ou
do trajeto até ali. Fizera tudo no modo automático, presa demais dentro de
si e da nova magia que tomava conta de seu corpo.
Queria poder saber o que seus pais pensariam se a vissem naquele
momento. Queria contar a eles que haviam cometido um erro, queria
mostrar a verdadeira história sobre aquele ataque e pedir que tentassem
reverter a situação.
Oliver seria difícil de persuadir. Ele trincaria o maxilar e seu rosto se
cobriria de vermelho. Suas mãos tremeriam pela raiva de ver sua filha se
unindo aos conjuradores.
Mas sua mãe... ela entenderia.
Choraria por toda a crueldade que a Coroa havia imposto sobre
aquelas pessoas e se comprometeria a tentar reparar o dano que havia sido
causado.
E por fim, convenceria o rei.
Elysia era o coração de Duhn, afinal.
Anya adentrou o chalé com os olhos cheios de lágrimas, sabendo
que sua mãe estava orgulhosa dela por fazer o que era certo. E encontrou
Silja encolhida em uma das poltronas verdes, observando Havenmill através
da janela aberta.
A curandeira estava com as pernas aninhadas contra seu peito, o
queixo apoiado nos joelhos, e parecia vagar por além do mundo real, ela
demorou para perceber que a princesa chegara ali.
— Está tudo bem? — Anya perguntou, estranhando a postura
introspectiva da garota.
— Eu não tinha assimilado o fato de que não veria Gerry novamente
até ter que me despedir dele.
A princesa se surpreendeu com a honestidade.
— Vocês brigaram?
A pergunta saiu antes do que ela conseguisse controlar, lembrando-
se do que Alexzander dissera sobre o comportamento do rapaz.
— Por que todo mundo me pergunta isso? — Ela revirou os olhos.
— Não, mas foi um encontro meio conturbado... As notícias lá de fora são
um tanto preocupantes.
O estômago de Anya se revirou.
— Preocupantes como?
— Não quero fazer suspense, mas prometi que contaria tudo a você
junto com Farah. — Silja ajeitou-se na cadeira, apontando para que a
princesa se sentasse na poltrona ao seu lado. — Como foi com Verena?
— Tão estranho quanto você pode imaginar. Mas foi meio
esclarecedor também.
A garota ergueu uma sobrancelha para ela enquanto a observava se
sentar.
— Verena me mostrou o que aconteceu durante o ataque — contou.
— Explicou melhor sobre as Sete. E Tamal. É... coisa demais para absorver
de uma vez só.
— Sinto muito. — A curandeira a observou com mais atenção,
então sorriu. — Você voltou diferente.
Ela certamente se sentia diferente.
— Sinto que conheço vocês um pouco melhor agora — a princesa
admitiu —, e isso me deixa mais à vontade. Quero dizer, não sei nada sobre
vocês de verdade, mas ajuda.
Anya não tinha muita certeza de como conversar com Silja agora
que eram realmente aliadas, e a forma como Verena se referiu à garota
como uma amiga ainda martelava em sua cabeça.
Será que poderiam mesmo?
Se tornarem amigas?
— Pergunte-me alguma coisa. — A curandeira sorriu.
— Ah?
— Vou preparar um lanche. Não sei você, mas eu não tive tempo de
comer coisa alguma desde que saí daqui pela manhã. — Ela se levantou em
um salto. — Enquanto cozinho, pergunte-me alguma coisa.
Anya permaneceu parada, encarando-a.
— Você disse que não sabe nada sobre mim. — Silja deu de ombros.
— Isso é fácil de se resolver.
— Eu não... sei o que perguntar.
— Tudo bem, eu começo. — Ela abriu o refrigerador e pegou
algumas fatias de queijo. — Qual a sua cor preferida?
A princesa riu.
— Minha cor preferida? Rosa?
— Você está me contando ou adivinhando?
— Eu nunca parei pra pensar nisso. — Ela deu de ombros. — Quero
dizer, se pensar na decoração de meus aposentos, por exemplo, é
definitivamente rosa. Ou dourado. Mas eu também gosto de roxo, pois me
faz pensar em minha mãe.
— Por que sua mãe?
— Lavandas são as flores preferidas dela. — Anya se encolheu. —
Eram as flores preferidas dela.
Silja assentiu, mordendo o interior da bochecha enquanto cortava
algumas fatias de pão.
— Também gosto de lavandas — disse por fim. — E qual é a sua
flor preferida.
Anya pensou por um momento, tentada a dizer que eram as mesmas
da mãe. Mas por alguma razão, o que veio à sua mente foram flores de
cerejeira.
Assim elas ficaram conversando por mais algum tempo, conforme a
curandeira preparava sanduíches e a princesa arrumava a mesa.
Ela descobriu que a cor preferida de Silja era amarelo e que a garota
amava gardênias. Que escolhia as roupas do irmão para usar baseada no
tipo de tecido.
Acho um crime desperdiçar linho de qualidade naquele troglodita,
ela tinha dito.
Anya contou sobre sua paixão pelo piano e sobre seus livros
preferidos, e se impressionou com o tanto que sentira falta de uma conversa
tão casual.
Simples.
No entanto, estragou tudo na pergunta seguinte.
— Como você e Alexzander vieram parar aqui?
O sorriso que a curandeira trazia murchou e ela encarou o lanche em
seu próprio prato.
— É uma história complicada.
— Não precisa me contar se não quiser.
— Não é isso. Só... não penso nela com muita frequência.
— Entendo.
Alguns segundos de um silêncio constrangedor se estenderam, até
que Silja voltou a falar.
— Alexzander sempre foi curioso, diziam meus pais. E ele não se
deixava limitar pelas histórias que eram contadas sobre Ediri. Nossa família
morava... mora na Aldeia dos Pescadores, perto de um dos trechos em que
ela faz divisa com a floresta.
A princesa respirou fundo, sentindo que a história que viria a seguir
não era boa.
— Em uma de suas explorações, como ele gostava de chamar,
Alexzander encontrou os lobos. Eles não lidaram bem com sua presença ali,
com o fato de que um humano tinha ousado adentrar naquele território. Ele
tinha uns onze anos na época. Enquanto fugia, Verena o encontrou. — Silja
parou por um momento, sorrindo. — Não sei, acho que ela viu alguma
coisa nele, pois se ofereceu para lhe contar histórias. Histórias sobre
criaturas míticas e magia. Alexzander era um sonhador, não tinha medo de
tais coisas. E Verena percebeu isso também. Pouco tempo depois, ele fez a
Travessia.
“Ela o fez jurar que não contaria sobre isso para ninguém, que
esconderia aquela magia como um segredo que apenas os dois
compartilhavam. E assim Alexzander o fez. Ano após ano, disfarçando seu
plantio que se desenvolvia mesmo em solo impróprio para isso, trazendo o
vento para embalar meu berço quando queria aproveitar seu tempo para ler.
Até que, dez anos atrás, quando Alexzander tinha vinte, um inverno
particularmente rigoroso assolou o reino.”
Anya se lembrava daquele inverno. Ela tinha treze anos e escondia-
se na biblioteca dia após dia envolta em cobertores enquanto lia e bebia
chocolate quente.
Mas algo lhe dizia que Alexzander e sua irmã não tiveram a mesma
sorte.
— As coisas são diferentes na Aldeia, sabe — Silja prosseguiu. —
Lá todos vivem da pesca e, há tempos, as coisas têm sido mais difíceis. E
naquele inverno, papai ficou tão doente que não conseguia sair da cama
para pescar ou para recolher lenha. Alexzander tentou trabalhar pelos dois,
mas mesmo os peixes se escondiam daquele inferno. E ele não levava jeito
algum para lenhar. Nós íamos morrer de frio, entende? Então, meu irmão
acendeu nossa lareira. Só isso. Ele manteve o fogo aceso por horas, aqueceu
nossa casa como já não acontecia há semanas.
“Nossa mãe reconheceu o cheiro. O aroma adocicado que chama
tanta atenção entre os humanos. Nós, conjuradores, não o sentimos, sabia?
Vai perceber que você mesma já não pode diferenciá-lo. Os soldados
apareceram em nossa porta no mesmo dia. Cinco deles. Mamãe tentou me
manter dentro de casa, impedir que eu visse o que estava acontecendo. Mas
eu vi mesmo assim. Ele lutou como eu nunca achei que seria capaz. Lutou e
chorou, desacreditado que nossa própria mãe, a pessoa que nos colocou no
mundo, o tinha denunciado como um traidor da Coroa.
“Ele perdeu no final, é claro. Desolado e machucado, foi assim que
chegou nas masmorras do castelo. Meu irmão carrega aquelas marcas nas
costas até hoje, mas duvido que elas tenham doído tanto quanto saber o que
mamãe fez. Alexzander nunca me contou o que fizeram com ele no palácio,
mas as cicatrizes horrendas em seu tronco falam por si só.”
A voz de Silja desapareceu conforme tentava controlar o choro, e a
princesa secou as próprias lágrimas que caiam descontroladas.
Era terrível.
O que o medo fazia com as pessoas era terrível.
E Anya sentiu vergonha por ser parte daquilo.
— Magmar havia se tornado Conselheiro há poucos meses. — A
curandeira retomou sua história. — Foi ele que ajudou meu irmão a fugir.
Quem o trouxe para Havenmill. Este chalé pertencia a ele.
A princesa respirou fundo pelo que percebeu ter sido a primeira vez
em vários segundos, como se mesmo o ar em seus pulmões não quisesse
conhecer a realidade do mundo que Silja tinha acabado de apresentar. Ela
olhou ao redor, absorvendo os detalhes da casa. O lugar onde sua melhor
amiga viveu antes de se conhecerem. Não o continente, não além do
oceano. Ali, bem debaixo de seu reino.
— E você? — perguntou por fim, temendo o que viria a seguir.
— Eu fugi. — A curandeira abriu um sorriso fraco. — Como eu
poderia viver sob o mesmo teto de pessoas que fizeram aquilo com meu
irmão? Com o próprio filho? Fazia cinco dias desde que Alexzander havia
sido levado quando tomei a coragem que precisava. Eu tinha nove anos, um
único casaco quente e muita, muita, raiva.
“Eu me escondi em um barco durante a noite e naveguei até Wellin.
O resto do caminho, eu percorri andando, e quando cheguei ao castelo, me
coloquei em frente aos portões, implorando para que libertassem meu
irmão. Mas ninguém admitiria que um conjurador tinha escapado, não é
mesmo? Então, me disseram que ele estava morto. Aquilo me destruiu.
Alexzander estava morto. Eu não poderia voltar para casa, e não tinha para
onde ir.
“Passei dois dias sentada diante daqueles portões abraçando minhas
pernas. Até hoje não sei como não congelei. Gosto de pensar que as Sete já
me abençoavam desde então, que viram algo em mim como Verena viu em
Alexzander. A notícia sobre a garota acampada na neve chegou até Magmar
e, assim como fez com meu irmão, ele me trouxe pra cá. Nós devemos tudo
àquele homem.”
Anya não sabia o que dizer, então apenas esperou que Silja secasse
suas lágrimas e se recuperasse.
Ela queria confortá-la, mas não tinha certeza se eram íntimas o
suficiente para tal contato.
Não conseguia afastar de sua mente a imagem de uma garotinha de
cabelos castanhos sentada em frente ao castelo, implorando pela liberdade
de Alexzander.
Quem estaria nos portões naquela ocasião?
Quem teria permitido que uma criança perecesse no frio daquele
inverno, quando a neve queimava contra a pele mais feroz do que qualquer
fogo jamais faria?
Onde ela mesma estaria?
Talvez em frente à janela da biblioteca aproveitando o sol enquanto
suas criadas lhe contavam histórias. Ou então, dançando pelo grande salão
enquanto se imaginava em bailes com príncipes, e todas as outras coisas
maravilhosas que a menina mal poderia esperar para crescer e participar —
e que deixavam de ser tão maravilhosas quando se tinha de lidar com elas
de fato, quando se perdia o olhar infantil e romantizado que envolvia a tal
vida perfeita da realeza.
Não era justo.
Para nenhum deles.
— Fico feliz que tenham encontrado esse lugar. — A princesa
suspirou. — Sei que isso não muda sua história, mas não permitirei que isso
aconteça com mais ninguém.
E a curandeira sorriu.
Aquele sorriso típico que rasgava suas bochechas e cobria metade
do rosto.
— Isso significa mais do que qualquer outra coisa — disse. — E
acho que você me conhece o suficiente agora.
Definitivamente.
Mas de repente, aquilo não pareceu certo para Anya. Que a garota
abrisse seu coração daquela forma e ela não tivesse nada para lhe dar em
troca.
Exceto que ela tinha.
Não um abraço, como imaginara.
Tinha sua própria história.
Aquela em que tentava com tanto afinco não pensar, que passara
tanto tempo deixando que os outros especulassem, aumentassem ou
diminuíssem como bem quisessem.
A história que fora um segredo só seu por três anos, que nunca dera
detalhes para ninguém.
Nem mesmo para Farah.
Nem mesmo para Conan.
Ela passou os dedos pela cicatriz que carregava como uma
lembrança constante, e Silja acompanhou o movimento com os olhos.
— Não precisa me contar — a curandeira esclareceu — Podemos
parar com o jogo de perguntas, se quiser.
— Eu sei. Mas está na hora de tomar o controle sobre o que me
aconteceu. — Respirando fundo, Anya começou a falar. — Preciso começar
dizendo que nunca descobrimos o motivo por trás daquilo. Meu pai viajou
até Kalon, pois tinha questões da fronteira para tratar e, como um presente
adiantado de aniversário, deixou que eu o acompanhasse. Eu nunca tinha
ido para lugar algum além de Wellin e, depois de muita insistência, ele
finalmente cedeu ao meu pedido de conhecer algo ao norte do reino.
Uma gargalhada rouca escapou de seus lábios.
Ah, se eles soubessem...
— Esperavam por nós na estrada — continuou. — Armaram uma
emboscada, quero dizer. Em poucos minutos, as carruagens, os cavaleiros...
Estávamos todos cercados no instante em que cruzamos os limites da
região. Nossos homens já haviam feito o reconhecimento da área, mas os
salteadores pareciam ter surgido como fumaça.
“Muitos soldados nos acompanhavam, meu pai dobrou a tropa
padrão quando decidiu que eu iria com eles. Ainda assim, não foram
suficientes. E às vezes, ainda ouço o tilintar das espadas quando talheres
caem no chão; ouço a porta da carruagem sendo escancarada quando batem
em meu quarto e estou distraída demais. E eu nunca, jamais, vou esquecer
do que senti quando aquele rosto coberto por uma máscara surgiu em minha
frente. Ou como ele prendeu meus pulsos com uma facilidade revoltante.
Suas mãos eram tão mais fortes que as minhas e ele conseguiu me arrastar
para fora de minha carruagem mesmo com os chutes, mesmo com os
gritos.”
Anya parou por um momento, esperando que o tremor lhe tomasse
conta. Que o medo paralisasse sua fala.
Mas isso não aconteceu.
Era a sua história afinal.
Dela e de mais ninguém.
E contá-la pareceu, de repente, como se livrar das mãos que
agarraram as dela. Não queria mais ser refém do seu passado.
Ela não teria mais medo dele.
Tomando fôlego mais uma vez, Anya continuou:
— Fui puxada e arrastada pela grama. Vi de relance os soldados
cercados, desarmados de uma maneira que parecia simplesmente
impossível. Vi meu pai dentro de sua própria carruagem com o rosto
pressionado contra o vidro, procurando por mim. Mas eles não queriam o
rei, não queriam os soldados. Queriam a princesa. E não fazia qualquer
diferença o quanto eu lutasse, o quanto me debatesse e tentasse escapar. O
homem era mais forte que eu, e toda a Comitiva Real foi deixada
desacordada. Nenhum ouro ou joias foi roubado, descobri mais tarde.
Apenas eu.
“Os homens desapareceram tão de repente quanto surgiram.
Restaram apenas a mim, dois deles, e o estalar dos galhos e da terra sob
meu corpo. Eu não lembro de por quanto tempo fui levada para dentro da
mata, nem de quando me amordaçaram e me amarraram em uma árvore.
Mas começava a escurecer, e fui forçada a assisti-los em silêncio, enquanto
acendiam uma fogueira para passarem a noite. Rezei para que a claridade
chamasse atenção, que a fumaça os delatasse. Mas não aconteceu.
“Aquela foi uma madrugada morna, um pequeno ato de misericórdia
do universo que atrasou a frente fria que cobria o reino quando o entardecer
dava as caras. Observei-os em silêncio enquanto comiam qualquer que
fosse a coisa que conseguiram assar, desejando com todas as minhas forças
que se engasgassem e caíssem mortos. Permaneceram de costas, me
impedindo de ver seus rostos, e falavam sobre me levar até as montanhas
quando amanhecesse. E isso não poderia acontecer.
“Eu li em um dos meus livros preferidos uma vez, que você não
pode deixar que seu agressor te leve para um lugar diferente. Que isso é
uma sentença de morte. Não poderia permitir que me arrastassem até as
montanhas, então, apenas esperei. O silêncio naquela floresta desconhecida
era quase sobrenatural. A vida noturna que se escondia por entre as árvores
aguardava atentamente para ver o que eu faria em seguida. Os homens
dormiram como bebês. E eu planejei.
“A manhã trouxe consigo uma coragem que eu não sentia de
verdade, e permaneci quieta, dócil. Deixei que eles acreditassem que não
teriam mais problemas comigo ao longo da nova viagem. Deixei que me
xingassem e ameaçassem enquanto eu implorava com bochechas ardendo
pela permissão de me aliviar antes de seguirmos adiante. Eles permitiram,
desde que um deles me acompanhasse.
“Eu acenei com os olhos baixos, me encolhi quando precisava e não
tive de fingir de verdade as lágrimas que escorriam por meu rosto conforme
pedia que o homem se virasse de costas. Abaixei-me na grama, balançando
o vestido já arruinado e rezando para que o som não me delatasse. Então,
cacei desesperadamente por pedras grandes o suficiente pelo chão e
escondi-as sob a saia coberta de terra.
“Depois disso, eu esperei. Esperei até que a impaciência daquele
homem vencesse qualquer resquício da honra que ele acreditava ter quando
me concedera aquela privacidade. Esperei até que ele se aproximasse o
suficiente para que eu me erguesse e o acertasse com a maior rocha que
encontrei. Com toda a força que me restava.
“E corri. Corri e gritei, e tentei desesperadamente me lembrar do
caminho pelo qual viemos. O agressor ainda estava caído, entoando
xingamentos e ordens ao outro. E ouvi botas pesadas vindo atrás de mim.
Mas eu não era rápida o suficiente, ágil o suficiente, e tropeçava de novo e
de novo nas raízes que se colocavam diante de meus pés.
“O impacto do homem que se jogara contra mim levou todo o ar que
ainda estava em meus pulmões, e a brutalidade com que me girou debaixo
de si é algo que nunca serei capaz de esquecer. Tampouco os olhos sem vida
que me encaravam.
“Nada mais naquele momento era fingimento. As súplicas eram
reais, o choro era real. O desespero e a necessidade de entender o motivo.
Nunca recebi nenhum. O homem cuspia contra meu rosto todas as coisas
horríveis que ele faria comigo e, neste momento, a lâmina apareceu.
“Eu a senti sendo pressionada contra minha pele enquanto o homem
gargalhava gabando-se da obra de arte que deixaria em mim. Talvez eu
escreva “vadia” em você quando terminar, ele sussurrou em meu ouvido.
A ardência era insuportável e o cheiro de ferrugem daquele sangue, o meu
sangue, tomava conta de tudo em nosso entorno. Comecei a perder os
sentidos.
“Mas não antes de ouvir um rugido de dor cortar a floresta. Não
antes de uma flecha voar a centímetros de nós e uma espada atravessar o
homem que me prendia, sua ponta raspando levemente contra meu braço.
Cabelos ruivos e olhos castanhos foram a última coisa que vi antes de
desmaiar por completo.”
A princesa fechou os olhos quando terminou.
Conan a tinha salvado.
O rapaz a carregou por todo o caminho até a estrada onde apenas
parte da tropa permanecera para procurar por ela. A outra metade fora
enviada imediatamente após o ataque de volta para o palácio, a segurança
do Rei era prioridade.
A curandeira que a tratara contou que ele manteve guarda em sua
porta dia e noite, que saía apenas tempo o suficiente para se alimentar. Que
perguntava por sua recuperação cada vez que o acesso para a enfermaria se
abria, dizendo que precisava atualizar seus superiores.
Eu mesma sou responsável pelos informativos sobre seu estado de
saúde, Sua Majestade, confidenciou a mulher, ele está preocupado com
você.
Três semanas mais tarde, Anya compartilhava os campos de
treinamento com Conan.
Assim como sua cama.
As duas permaneceram em silêncio por algum tempo, e a
princesa não se importou com as lágrimas que molhavam seu rosto.
Ela tinha contado.
Falou em voz alta sobre o que tinha sido feito com ela sem pausas,
sem tremores, sem medo. Falou sobre o que atormentara seus sonhos noite
após noite.
Silja tinha as mãos apertadas contra uma caneca de café que Anya
não havia percebido ter sido colocada sobre a mesa. Ela também chorava.
— O que aconteceu com os outros?
— Não foi difícil encontrá-los. Eles nem estavam tentando se
esconder na verdade. E negaram até o último segundo terem participado de
qualquer tipo de emboscada.
Ela tentava não pensar sobre aquele tal último segundo. Os soldados
eram treinados para tirar informações até do mais leal dos homens, mas
nenhum daqueles métodos pareceu surtir efeito nos salteadores.
Insistiram que jamais estiveram naquela estrada.
Mesmo que portassem máscaras iguais às dos homens que atacaram
a Comitiva entre seus pertences. Mesmo que estivessem em um
acampamento nos limites de Kalon com as montanhas, que é para onde
levariam a princesa.
Até a Floresta de Pedra.
A verdade atingiu-a com tanta força que sua cadeira quase virou.
Lembrou dos olhos sem brilho de seus sequestradores.
Ela sempre pensou naquilo como uma consequência de um coração
tão cruel que era capaz de fazer aquelas coisas terríveis. Mas então, se
lembrou de outra ocasião em que viu algo semelhante. Naquela mesma
manhã. No rosto dos soldados de Tamal em uma das memórias de Verena.
— Benjamin — ela sussurrou.
— O quê? — Silja franziu o cenho.
— Meu primo abandonou o palácio aos quinze anos e se escondeu
na Floresta de Pedra por mais de uma década. — Anya levou as mãos até a
boca. — Esse ataque foi a primeira vez que ele tentou me matar. Deve ter
sido quando descobriu que eu era uma herdeira legítima.
— Pode ser apenas coincidência, não? — Mas o rosto da curandeira
dizia que nem mesmo ela acreditava nisso.
— Não. Porque tem mais uma coisa que eu preciso contar sobre
minha visita até Verena hoje.
Neste momento, Farah abriu a porta do chalé.
A expressão das duas garotas à mesa deveria ser perturbadora, pois
ela congelou sob o portal de entrada e encarou as duas por alguns segundos.
— O que aconteceu?
— A princesa acha que foi Benjamin quem organizou o motim
conta a Comitiva Real três anos atrás — Silja respondeu, sem pestanejar.
— O quê? Por quê?
A princesa tentou acalmar seu coração acelerado, tentou pensar de
forma racional e escolher as palavras, ao invés de simplesmente jogá-las em
suas amigas.
— Verena reconheceu a magia que Farah descreveu em Benjamin
— Anya fechou os olhos, como se pudesse fugir daquela verdade — Ele
possui os mesmos poderes de Tamal.
Silêncio.
Um segundo se passou, então dez, e então...
— Está dizendo que o príncipe também se aliou à Alethea? — Farah
questionou.
— Claro que sim. — A curandeira deu um soco na mesa. — Como
não percebemos isso antes? Tamal também controlava seus soldados como
Farah disse que o príncipe faz.
— E Verena não apenas me contou sua história — a princesa
completou. — Ela compartilhou comigo suas memórias. Os olhos dos
homens sob o poder dele pareciam... mortos. Exatamente como os dos meus
sequestradores.
— Aquele filho da puta — Farah xingou.
E apesar de toda a tensão daquela conversa, Anya riu.
Nunca ouvira sua amiga falar daquela forma.
Mas a graça logo deu lugar à raiva.
Ah, seu primo deveria estar furioso por perceber que fracassara, não
uma, mas duas vezes em seus planos de matá-la.
E ela não deixaria nas mãos da sorte sua sobrevivência na terceira
investida.
Estaria preparada e esperando por ele.
Verena disse que ela precisava treinar com Delilah, e assim o faria,
encontraria um jeito de enfrentá-lo.
Anya entraria naquele castelo e recuperaria o que era seu por direito.
Sua casa.
Seu reino.
E a Coroa.

— E o que faremos agora? — a princesa perguntou.


Silja mal conseguia conter a raiva dentro de si.
Uma parte de seu coração se partira ao ouvir Anya contar sua
história e perceberem que Benjamin era o responsável por aquilo...
Quanta dor aquele homem seria capaz de causar? Quanto sofrimento
ele traria para todos ao seu redor sem ao menos se importar com isso?
— Agora você precisa começar a treinar. — A curandeira encolheu
os ombros. — Sei que é tudo muito recente, mas as notícias que Gerry me
trouxe hoje não são boas. Você precisa aprender o básico sobre seus poderes
o mais rápido possível.
Silja não queria pressioná-la, mas a princesa tinha de saber sobre o
prazo que possuíam. Que a cerimônia de coroação de Benjamin recebera
uma data, e que ela aconteceria muito — muito — em breve.
— Que notícias? — Anya pareceu estremecer.
— A coroação será em cinco semanas, precisamos agir antes que
seja tarde demais.
A princesa não reagiu imediatamente. Apenas encarou-a, como se as
palavras lhe soassem estranhas e sem sentido. Quando finalmente percebeu
o que aquilo realmente significava, disse:
— E nós temos algum plano de como vamos impedi-lo?
— Não — Farah sussurrou. — Mas vamos encontrar um jeito.
Precisa haver uma forma de pará-lo.
— Nós sabemos que forma é essa — a curandeira comentou, triste.
— Sabemos que Benjamin sempre será um risco enquanto viver.
E ali estava.
A verdade que Silja negou para si mesma desde que aquele plano
começou.
Ela não era uma assassina.
Tampouco seu irmão ou seus amigos.
Mas quantos mais em sua cidade encantada teriam suas vidas
ceifadas para que o príncipe conseguisse o que queria? E quantos ainda
seriam perseguidos depois?
Não existia outra maneira.
Não existia solução fácil.
O silêncio entre elas perdurou o que pareceu uma eternidade, até
que a princesa finalmente falou:
— E quando começo a treinar?
Ela pareceu tão segura daquelas palavras, tão diferente da garota que
aparecera em Havenmill dois dias atrás que Silja quase sorriu.
— Delilah estará esperando por você na clareira amanhã cedo —
respondeu. — E fará o possível para que você aprenda o suficiente. Ela
ajudará você, enquanto Alexzander reunirá o resto da cidade e praticará
com eles.
— Não vamos arrastá-los com a gente até o castelo — Anya
protestou.
— Não — Farah concordou. — Mas temos de fortalecer nossas
barreiras, mantê-los preparados. Uma das coisas que Silja descobriu em sua
ida até Ediri é que o príncipe está me procurando. Incansavelmente.
— Ele colocou soldados para invadirem a floresta — a curandeira
completou. — Precisamos garantir que Havenmill permaneça oculta, que
nossas proteções sejam capazes de mantê-los do lado de fora.
Benjamin possuía os poderes de Alethea.
Silja mal tivera tempo para absorver aquela informação, de tão
absurda que parecia.
Ele estava repetindo a história. Refazendo os passos de Tamal e
colocando em risco toda a existência dos conjuradores.
Seus poderes sobre a Vida permitiam que ele controlasse seus
soldados, mas por uma pequena misericórdia das Sete, essa magia não
funcionava em conjuradores — em portadores do poder de qualquer uma
das Bruxas Primordiais. Uma pequena esperança para que pudessem
construir um plano de ação.
Mas havia uma peça que ainda não se encaixava.
Algo que já não fizera sentido há quatrocentos anos e, agora,
acontecia novamente com Benjamin.
— Por que Alethea daria seus poderes para o príncipe, quando toda
a sua perseguição à Verena gira em torno da quebra do Tratado que proíbe
tal ação? — questionou.
— Ela nunca se importou com o Tratado — Farah fez uma careta.
— Alethea é a Bruxa da Morte, ter sua autoridade colocada à prova é o
verdadeiro problema. Saber que Verena quebrou uma regra criada por ela é
uma afronta ao seu ego imortal ridículo.
— Pensei que as Sete ocupassem o mesmo grau hierárquico. —
Anya franziu o cenho.
— Na teoria, ocupam. — A curandeira revirou os olhos. — Mas
acho que Farah tem razão. As outras Primordiais temem Alethea por seu
controle à Vida. Desde que ela desfez sua magia sobre a imortalidade
delas...
— Ela fez isso com todas as bruxas? Não apenas com Verena e suas
descendentes?
— Como eu disse — Farah bufou —, Alethea tem um ego tão
grande quanto sua reputação. Ela acredita que as bruxas perderam seu
direito à segurança da vida eterna, pois quando não se teme a Morte, não se
entende o valor da Vida.
— E é contra esse tipo de poder que temos que lutar para trazer paz
ao meu reino — Anya resmungou.
— Benjamin é um tolo, somos capazes de derrotá-lo. Sei que sim.
— Silja olhou para a janela, para sua cidade lá fora. Não era capaz de
mensurar tudo o que faria por aquelas pessoas. Daria sua própria vida por
eles. — Entraremos naquele castelo e recuperaremos sua Coroa. E
levaremos Havenmill para o lado de fora.
— É a segunda vez que Alethea coloca alguém atrás de Verena — a
princesa comentou. — Por quanto tempo teremos de lidar com essa guerra
entre bruxas?
Era uma boa pergunta.
Uma para a qual Silja não tinha uma resposta.
Teriam de pensar nisso mais tarde, quando o príncipe já não for uma
ameaça.
— Lidaremos com os problemas um de cada vez — disse. — A
primeira coisa que temos de fazer é aproveitar que sua magia está no seu
ponto mais forte e selvagem. Treiná-la para que canalize toda a sua energia
de recém-iniciada. Isso fará toda a diferença quando a hora chegar.
Anya arfou de repente, como se lembrasse de alguma coisa.
— Não posso começar a treinar amanhã — sussurrou. — Verena
disse que havia mais um passo da Travessia que eu deveria realizar. Algum
tipo de... cerimônia.
Ah, o Braan.
A curandeira estivera tão ocupada pensando em Gerry e em todos os
outros problemas, que se esquecera de que era a pessoa que deveria falar
sobre aquilo com a princesa. Aparentemente, Verena tinha facilitado seu
trabalho.
Ela sorriu.
— Isso não impede que você comece a treinar — explicou. —
Chamamos esta cerimônia de Braan, e é uma forma de apresentá-la para as
Sete quando você recebe sua magia. É a maneira que Verena encontrou de
nos manter próximos de todas as deusas, mesmo presos aqui embaixo.
— Sabemos que muita coisa aconteceu — complementou Farah
rapidamente — e que não temos realmente motivos para comemorar. Mas
Verena acha... Bom, nós achamos que seria importante que você
participasse. Você conheceu nosso mundo tão às pressas, foi obrigada a
lidar com nossa magia por questões além de seu controle. Se aliou a nós por
necessidade. Queremos que entenda a beleza por trás de todo esse poder.
Por trás de toda a nossa crença.
O Braan normalmente acontecia no Solstício de Verão, o dia mais
longo do ano. Aquele que era banhado pela Luz por mais tempo do que
todos os outros.
Mas não havia tempo para esperar.
Cinco semanas.
Aquelas palavras se repetiam de novo e de novo dentro de sua
cabeça. E Silja poderia apenas rezar para que fosse o suficiente.
No entanto, a princesa não parecia ter dúvidas.
— Posso fazer isso — afirmou. Sua expressão era de alguém
acostumada a se sujeitar a esse tipo de papel, fazendo a curandeira se
perguntar quantas vezes Anya não teria cedido ao personagem da princesa
obediente. Porque Silja sabia que era um personagem, tinha visto o
suficiente da garota para ter certeza disso. — O que eu descobri hoje
com Verena... aquela verdade vergonhosa sobre a história de meu reino e de
minha família... Eu não posso mais fugir do passado. Eu não vou mais fugir
do passado. Completarei o ritual. Participarei da cerimônia. E concertarei as
coisas.
A princesa se levantou e colocou-se entre as duas garotas, pousando
uma mão sobre o ombro de cada uma delas.
— Lutaremos e venceremos — Anya prosseguiu. E a curandeira
fingiu não perceber o tremor que acompanhou a princesa nas palavras
seguintes. — Me tornarei Rainha e vocês, assim como Havenmill inteira,
também são parte de meu povo.
O café forte demais era a única coisa que ajudaria Delilah a
enfrentar aquele dia. Conteve a vontade de fazer uma careta conforme o
sabor amargo irritava sua língua, e sentou-se próxima da única janela em
sua cozinha.
Ficou bons minutos ali, apenas assistindo sua cidade acordar.
Pensando em nada além das portas se abrindo e das pessoas se
acomodando em suas varandas, enquanto os raios de um falso sol se
espalhavam por Havenmill.
Mal sabiam que todas as mudanças que já tinham acontecido não
eram nada perto do que os aguardava.
Seu peito pesou.
Queria que houvesse outro jeito. Queria ser capaz de mantê-los
distantes de todas as ameaças terríveis que se aproximavam cada vez mais.
Em algumas horas, Alexzander reuniria a todos e contaria sobre os
planos. Sobre os treinamentos e os motivos pelos quais eles aconteceriam.
Seria um caos completo.
A veia sob a têmpora de Delilah latejou e a meio-bruxa suspirou
ruidosamente.
Quase não havia dormido naquela noite.
Estava preocupada. Em luto. E sem ter certeza de como lidaria com
a princesa durante os treinamentos que daria a ela.
Havenmill estava sob ameaça de uma invasão, as criaturas em Ediri
estavam em perigo, e a mulher só conseguia pensar na princesa. Na imagem
da garota estilhaçada no chalé após descobrir sobre a morte dos pais.
Nela recompondo-se com uma rapidez sobre-humana e decidindo o
quão profundamente se aliaria com a cidade escondida.
Delilah pensou que Anya nunca seria um deles. Que uma princesa
jamais seria capaz de entender realmente aquelas pessoas.
Até Farah lhe contar sobre o dia anterior.
Até a artesã lhe dar detalhes sobre a conversa com a princesa. Sobre
como Anya abraçara a ideia do Braan com o que pareceu ser uma
naturalidade impressionante.
E sobre a promessa que tinha feito.
Havenmill também é parte do meu povo.
Seria possível mesmo? Que para além de todo aquele prenuncio de
destruição houvesse um desfecho positivo?
Balançou a cabeça, afastando os pensamentos.
A meio-bruxa não poderia se dar ao luxo de acreditar em um final
feliz. Não poderia criar esperanças.
Ela subiu as escadas em espiral que levavam ao segundo andar de
sua casa, substituindo a camisola de cetim gasta pelos habituais trajes de
treino.
Não havia real necessidade para o gibão que decidira colocar de
última hora, mas gostava da sensação que a peça lhe trazia. Como se as
camadas extras de couro a blindassem do mundo ao seu redor, e
impedissem que falsas expectativas chegassem até ela.
Sentou-se na cama grande demais, lutando contra o zíper das botas
pretas que subiam até seus joelhos, e não se incomodou em abrir as
cortinas. Apesar de toda a Luz que envolvia sua vida, tinha certo apreço
pelas sombras. Como se elas a lembrassem de que nada fazia sentido
sozinho. Que o dia jamais brilharia se não houvesse a noite para que ele
deixasse saudade.
Deu as costas para o quarto, lançando um breve olhar para a pintura
que repousava em sua mesa de cabeceira. Sua mãe a tinha pintado quando
era pequena, e aquela mistura de tintas sobre tela tinham sido a única coisa
que Ravina deixou para trás quando foi embora de Havenmill.
Voltou para o andar inferior, afastando as lembranças da mãe.
Estava na hora de encontrar a princesa.
E, definitivamente, precisava de mais café.
Uma batida leve na porta foi o suficiente para despertar a princesa.
Tinha sido a primeira noite completa de sono desde a invasão ao
palácio. Toda a exaustão tomou conta de seu corpo de uma única vez, e ela
mal se lembrava como havia chegado até a cama, e estava certa de ter
adormecido antes mesmo de tocar os travesseiros macios.
Reaproveitou as roupas do dia anterior e não dedicou muito tempo
aos cabelos rebeldes. Apenas reconstruiu a trança que Silja lhe fizera na
outra manhã e desceu para o andar inferior.
A curandeira e Farah já a esperavam, apontando para a cadeira
vazia.
Anya abriu um sorriso sincero para as duas, e serviu-se de café
enquanto pensava sobre sua missão naquele dia.
Aprender a controlar sua magia.
Iria sozinha até a clareira pois, como suas amigas já haviam
explicado, estariam ocupadas começando os preparativos para a tal
cerimônia que aconteceria em quatro dias.
Braan.
Uma celebração dos poderes que agora corriam dentro dela.
Depois de algum tempo conversando na noite anterior, a princesa
descobriu que o evento era inspirado no antigo ritual de união que Verena
lhe contara. E não conseguiu deixar de pensar se não era uma forma que a
bruxa tinha encontrado para manter constante a lembrança de Lavínia
mesmo depois de tantos séculos.
Estremeceu com a ideia.
— Você parece tão empolgada para treinar — Farah zombou.
— Não sei bem o que pensar sobre isso ainda — admitiu — e
Delilah... não tive muito tempo para conhecê-la antes de, você sabe, tudo
isso.
— Vocês não precisam ser grandes amigas. — A curandeira deu de
ombros. — Só... tente não a irritar demais. Ela pode acabar ateando fogo
em você ou algo assim.
A princesa se engasgou com o comentário, fazendo café sair pelo
seu nariz enquanto as garotas choravam de tanto rir.
— Você fala como se ela não gostasse de mim. — Tentou dizer,
entre uma tosse e outra.
— Bom, ela não te odeia. — Silja gargalhou. — Estou só tentando
assustá-la. Delilah é uma ótima instrutora, apenas não tem muito jeito em
lidar com... gente.
— Pelas Sete, Silja — Farah a repreendeu com uma indignação
fingida. — Não está ajudando em nada!
Pelas Sete.
É claro.
Anya quase riu com a expressão, mas então, percebeu que estava na
hora de ir.
— Acho que preciso correr — comentou, roubando um pãozinho do
cesto e se levantando da cadeira. — Não quero que meu atraso seja o
motivo pelo qual serei reduzida a cinzas.
Deixando as garotas e as risadas para trás, ela seguiu seu caminho
até a clareira. Mas conforme se aproximava, sentia mais e mais seu
estômago apertar.
E se não fosse o suficiente?
Se qualquer que fosse a magia que agora morava nela, ainda não
representasse uma ameaça real ao príncipe?
Soltou o ar com um ruído.
Mas o que faria se conseguisse?
Não tinha sido criada para se colocar diante de um reino. Não tinha
sido treinada para carregar a Coroa em sua cabeça. E não tinha certeza se a
confiança que seu povo colocava sobre ela seria o bastante para que se
sustentasse no trono.
A clareira se abriu diante dela.
E pareceu ainda mais bonita do que na primeira vez.
Vibrante e delicada. Viva.
Como se aquelas flores jamais murchassem, como se vivessem em
uma primavera eterna.
Delilah já esperava por ela.
Os cabelos rosados rodopiavam sob uma brisa inexistente e ela
parecia não ter percebido sua presença ainda. Mas a meio-bruxa pegou dois
colchonetes de espuma e começou a arrastá-los até o centro da clareira.
— Princesa — cumprimentou, com uma leve reverência. Ainda que
sua voz fosse suave, um tom zombeteiro acompanhou a palavra, como se
Delilah se divertisse com o título da garota.
Isso irritou Anya, mas ela apenas sorriu — fingindo que não tinha
percebido nada — e acompanhou Delilah conforme ela acomodava-se de
pernas cruzadas em um dos colchonetes.
A meio-bruxa manteve os ombros para trás em uma postura perfeita
e trouxe os braços cruzados diante do peito, deixando em evidência os
músculos que desenhavam seus braços finos sob a túnica de mangas longas.
Anya permaneceu em silêncio, sustentando o olhar felino — tão
parecido com o de Verena — da meio-bruxa, que passava de forma analítica
por cada centímetro de seu corpo. Ele acompanhou sua cascata de cachos
caindo por sobre os ombros e, em seguida, voltou para seu rosto.
— Acabou? — questionou depois de alguns segundos, incomodada
com a avaliação.
Delilah piscou.
Então, ergueu um dos cantos da boca em um meio sorriso. E
caramba, era um belo sorriso.
— Você realmente se parece com ela — falou.
Não era o comentário que a princesa estava esperando.
— O quê?
— Sua mãe — ela explicou, e suas sobrancelhas se uniram no centro
de seu rosto. — Eu a vi alguns dias atrás. Eu estava acompanhando Magmar
enquanto ele mostrava o caminho pelo qual você seria trazida para cá.
Elysia passou por ele.
Anya não soube o que dizer.
Não esperava encontrar ninguém ali que conhecesse sua família, que
reconhecesse sua mãe em seu rosto.
— O que quer dizer com “estava acompanhando Magmar”? Se você
encontrou minha mãe, ela a teria visto também.
E nada poderia a ter preparado para o que aconteceu em seguida.
— Eu não estava lá de verdade — a voz de Delilah sussurrou em
seu ouvido.
Baixa, rouca, como se trazida pelo vento.
Exceto que a mulher permanecia no mesmo lugar e que sua boca
estava fechada.
— Como fez isso? — indagou, de olhos arregalados.
Dessa vez, Delilah formou um sorriso completo.
— Como. Fez. Isso. — Não soou como uma pergunta.
— Projeção — respondeu. — Primeira lição: a luz sempre mostrará
o caminho. Suponho que tenham explicado para você que a magia de
Verena está diretamente relacionada com a Luz.
Anya assentiu.
— Certo — Delilah prosseguiu. — Bom, no caso da projeção, nós
podemos usar a Luz como o próprio caminho, podemos nos guiar por ela. É
como... viajar através dela. Você pode enviar sua voz ou até mesmo sua
visão. Houve um tempo em que Verena era capaz de projetar a si mesma,
quase como se estivesse de corpo presente, mas isso foi antes de Lavínia.
A princesa tentou não estremecer, e mesmo sua irritação diminuiu
um pouco.
Viajar pela luz... Nem em um milhão de anos teria pensado que algo
assim seria possível.
— Também posso fazer isso?
— É o que precisamos descobrir. A magia reage diferente em cada
pessoa — explicou a meio-bruxa. — Quando uma Primordial compartilha
os próprios poderes, é impossível que você receba todos eles, apenas alguns
fragmentos. Um pequeno eco da magia da Primordial, dentre o leque de
possibilidades que ela pode oferecer.
— E quais são essas possibilidades?
Delilah descruzou os braços, deixando que eles caíssem em seu
colo. E havia alguma coisa no jeito como a mulher observou a princesa,
como se seus olhos fossem imãs que prendiam a atenção de Anya ali.
— Fico aliviada em perceber que está realmente interessada —
comentou.
A princesa se obrigou a quebrar o contato visual, encarando um
ponto qualquer sobre o ombro dela.
— Preciso entender como tudo funciona ser capaz de salvar
qualquer coisa — as palavras saíram mais secas do que pretendia, mas ter a
atenção de Delilah sobre si a estava deixando nervosa.
E nem sabia o porquê.
— Claro que sim. — Os lábios de Dell tremeram, como se
contivesse outro sorriso. — Acho que será mais fácil para você entender se
eu explicar como os grupos funcionam em Havenmill, ao invés de citar
todas as coisas que Verena é ou foi capaz de fazer. Pode ser?
Ela apenas assentiu, aguardando.
— Dentre as funções que temos aqui, temos Curandeiros, como
Silja, que são aqueles capazes de curar ferimentos e doenças que não
estejam avançadas demais. Artesões, como Farah, que tecem escudos
protetores e...
— Silja também pode fazer isso, não pode? — Anya interrompeu.
— Sim. Não existe uma explicação de por que isso acontece, mas
alguns humanos conseguem desenvolver mais de uma habilidade. Silja é
uma Curandeira, mas também uma Artesã, enquanto Farah, além de Artesã,
é também uma Elementarista. — Delilah parou por um momento, como se
procurasse a melhor maneira de explicar. — Este último grupo consiste em
manipular os quatro elementos básicos da natureza. E cada Elementarista
recebe afinidade com um, talvez dois, deles. Nunca todos.
— Quais elementos Farah pode controlar?
— Terra. — A mulher sorriu. — Deve ter percebido como ela gosta
de cultivar flores.
Anya não se conteve e espelhou o sorriso da meio-bruxa. Por isso os
jardins de sua amiga eram sempre os mais bonitos de Wellin.
— E Alexzander — Delilah prosseguiu — é um Elementarista com
afinidade com a terra, o ar e o fogo. O que já é bastante raro. Mas ele não
consegue manipular o fogo há anos.
O sorriso da princesa morreu ao lembrar-se da história que Silja
tinha lhe contado no dia anterior. E como se lesse os pensamentos dela, a
meio-bruxa pigarreou e prosseguiu.
— Por isso ele cuida das plantações. Por sua afinidade com a terra,
quero dizer.
As coisas começaram a fazer sentido para a garota. Havenmill tinha
seu próprio sistema de castas. Sua própria organização, divisão de tarefas...
— Pensei que houvesse uma bruxa para cada elemento — Anya
ouviu-se dizendo. — Por que Verena consegue conceder essa afinidade aos
humanos?
Uma luz pareceu se acender nos olhos verdes de Delilah, um misto
de surpresa e... mais alguma coisa.
O estômago da princesa se agitou.
— Ótima pergunta — a meio-bruxa pendeu a cabeça para o lado. —
Sim, existe uma Primordial para cada um dos elementos básicos da
natureza. Estas habilidades foram compartilhadas como uma espécie de
presente das bruxas.
— Presente? Mas o compartilhamento de magia não é proibido?
— Não foi sempre assim. Antes do Tratado, que é assunto para
outro momento, pois é uma longa história por si só, as bruxas não deixaram
de notar que os humanos, da sua própria maneira, encontraram uma forma
de controlar os elementos. — Ela olhou por sobre o ombro da princesa. —
Aprenderam a produzir fogo, canalizar água para consumo, descobriram os
segredos das terras e quais plantas se desenvolviam melhor em cada
ambiente. Então, acrescentaram estes elementos aos poderes que seriam
capazes de compartilhar. A própria Verena não os controla, apenas doa. E
quando ela ergueu as proteções que impedem Alethea de chegar até Duhn,
impossibilitou que as outras, mesmo sob ordens da irmã, anulassem esse
dom.
— Então, humanos não são capazes de produzir estes elementos,
apenas manipulá-los?
Novamente, aquele brilho reluziu nos olhos verdes de Delilah
enquanto assentia.
— E quanto à projeção? Como se chama o grupo com este poder?
— Rastreadores. — A mulher fez uma careta. — Mas há décadas
um humano com estas habilidades não aparece por aqui. Além de se
projetarem, eles também eram capazes de rastrear objetos ou pessoas
através da Luz. Com alguns limites de distância, claro. Mas ainda assim, era
uma magia muito útil para controlar como as coisas estavam indo fora de
Havenmill.
— Você consegue fazer isso.
— Eu não sou humana. — Delilah piscou um olho para ela e, por
todas as Sete, o gesto pegou a princesa completamente desprevenida.
Ela sentiu as bochechas esquentarem.
— Mais alguma pergunta, Princesa?
Ali estava aquele tom mais uma vez.
Delilah parecia brincar com ela. Como se fosse um animal selvagem
intimidando sua presa antes de atacar.
Mas Anya não era uma presa.
E sua irritação voltou com mais força do que nunca.
Sua pele ardeu e um arrepio cruzou seu corpo.
Ela estava ali. Tinha aberto mão de tudo o que achava que conhecia,
de tudo o que ela achava que era. E a meio-bruxa estava zombando dela. Do
título que carregava.
Daria no mesmo se insultasse sua própria família.
Sua garganta queimou conforme as palavras saiam, baixas,
ameaçadoras.
— Tome cuidado com a forma com que fala comigo, você precisa
de mim tanto quanto preciso de você.
Mas Delilah não olhava para ela.
Não, seus olhos acompanhavam algo sobre os ombros de Anya. Ela
tinha um sorriso satisfeito nos lábios e parecia... alegre.
Os cabelos cor de amanhecer balançavam com um vento que a
princesa não sentia sobre sua pele.
Foi quando percebeu.
O vento.
Por toda a clareira, as cerejeiras chacoalhavam furiosamente,
descontroladas. As pequenas flores desprendiam-se de seus galhos e
acompanhavam a ventania, girando em torno das duas mulheres sentadas
ali.
— Respire e conte até dez — a meio-bruxa instruiu, ainda sorrindo
para toda aquela confusão.
Anya não entendeu o motivo naquele momento, mas enquanto
obedecia ao pedido, viu o vento desacelerar. Se acalmar.
Só então compreendeu o que tinha acontecido.
Ela tinha controlado o vento.
Ela tinha invocado o vento.
Não estava preparada para o sentimento que a inundou em seguida.
Orgulho.
Orgulho da magia que ela jamais sonhara que um dia
experimentaria.
— Suas emoções influenciam diretamente no seu poder — Delilah
disse por fim.
E a princesa lembrou-se destas mesmas palavras, ditas no dia em
que as duas se conheceram.
— Você fez de propósito — Anya concluiu. — Estava me
provocando para descobrir como meus poderes reagiriam.
A mulher franziu o cenho, ainda que uma pequena curva marcasse
seus lábios cheios.
— Não entendi — Delilah indagou, erguendo uma sobrancelha. —
Eu a estava provocando?
Seu tom sarcástico fez a princesa bufar.
— E agora? — questionou, apenas.
— Bom, temos de ter certeza se alguma outra habilidade foi passada
para você. Mas antes disso — ela passou os olhos novamente pela princesa
—, precisamos nos certificar que você não arrancará estas árvores do solo
na próxima vez que alguma coisa a provocar.
Uma gargalhada escapou a contragosto da princesa, e Delilah
congelou diante do som. Durou menos de um segundo, e Anya chegou a
pensar que tinha apenas imaginado.
— E como faremos isso?
— Exercícios de respiração.
— Respiração?
— É. — A meio-bruxa deu de ombros.
E quando Delilah encarou-a novamente, a princesa sentiu cada uma
de suas terminações nervosas responderem ao gesto.
— Isso parecia uma ideia melhor antes de começarmos — reclamou
Silja, examinando a mesa coberta de metros e metros de tecido azul cobalto.
Pequenas tachas e contas douradas rolavam pela beirada da
superfície e desapareciam pelas frestas da madeira gasta no piso do chalé.
— Eu disse que deveríamos pedir ajuda para uma costureira
profissional. — Farah revirou os olhos enquanto tentava resgatar os
aviamentos suicidas.
A curandeira suspirou.
Tinham decidido naquela manhã que ela e a artesã fariam o vestido
que a princesa usaria no Braan.
Era uma desculpa, é claro. Uma forma de se manterem ocupadas, de
não pensarem em todas as formas que as coisas poderiam dar errado.
Então, costurariam.
Se envolveriam em chiffon e botões. Linhas e agulhas.
Realizar aquela cerimônia era uma coisa boa, mesmo que a própria
curandeira tivesse duvidado disso inicialmente. Mas era o momento certo
para fazê-la. Seria como uma respiração profunda segundos antes de
mergulharem em águas desconhecidas.
Perigosas.
Estavam fazendo a coisa certa.
Tinham de estar.
— Você tem alguma ideia? — Farah perguntou. — Do que podemos
fazer com esse monte de tecido?
— Tenho. Mas deveríamos ter pegado as medidas da princesa antes.
— Ela fez uma careta. — Então, sugiro que comecemos pela saia. A parte
de cima é arriscado demais de fazermos sem saber o tamanho.
Farah parecia prestes a dizer alguma coisa quando a voz de
Alexzander chamou a atenção das duas lá fora.
— Está começando. — A artesã suspirou.
Mas Silja não queria ouvir aquilo.
Não queria ter de ouvir os murmúrios e os lamentos de todos
enquanto absorviam as notícias que estavam prestes a receber. Estava
apreensiva o suficiente por conta própria.
Girando delicadamente os dedos, ergueu seu escudo em torno da
casa, abafando os sons que vinham da rua.
Era um pouco egoísta, sabia disso.
Mas já estava lidando com aquela situação há semanas.
Preocupações, planejamentos. E desde que souberam sobre a visita de
Benjamin no palácio, as coisas apenas pioraram.
Estava cansada e se daria ao luxo de ignorá-los apenas por aquele
dia.
— Queria poder ajudá-la com isso — Farah comentou, triste.
— Como assim?
A artesã mexeu desconfortavelmente em algumas tiras de tecido.
— Minha magia... — suspirou. — Ela sempre foi muito volátil. Às
vezes, tem picos de intensidade, mas na maior parte do tempo, parece...
adormecida? Frágil e lenta. E desde minha fuga do castelo, foi como se eu a
tivesse gastado por completo.
— Isso é impossível — Silja argumentou.
Farah deu de ombros.
— Talvez. Porém, não posso confiar muito nela.
— Vamos até a clareira quando tivermos um tempo, se tem alguém
que será capaz de te ajudar com isso, é Dell.
As vozes lá fora se intensificaram, mais altas até do que a barreira
era capaz de conter.
Seria um longo, longo dia.
Então, Silja se ocupou com a chaleira apitando e, depois, preparando
o café. Se ocupou cortando chiffon, separando contas douradas e pedindo
ideias para sua amiga sobre os gostos da princesa para roupas. Se ocupou
debatendo sobre o que elas mesmas usariam na cerimônia.
E tentou o máximo que pôde ignorar sua cidade encantada por
apenas algumas horas.

Alexzander lidou com o pânico e com as perguntas da melhor forma


que conseguiu.
Não, os treinos não significavam que Havenmill tinha sido
descoberta pelo príncipe.
Não, ele não acreditava que isso poderia acontecer.
Sim, todos precisavam participar.
Meias verdades, mas era o que poderia oferecer.
Ele não era Delilah, não saberia lidar com conjuradores com as
emoções à flor da pele. Poderiam eles mesmos acabarem por destruir a
cidade.
E Alexzander guardou a notícia sobre o Braan para o final. Sabia
que seria um pequeno alívio para eles.
Entre um misto se surpresa e contentamento, os moradores de
Havenmill mal conseguiram acreditar que a princesa tinha realizado a
Travessia.
Que ela era igual a eles agora.
Foi o bastante para que se controlassem um pouco. E o rapaz
prometeu que os treinos começariam só depois da cerimônia.
Todos se ocupariam preparando a praça central para o evento e,
agora tranquilizados com a presença da princesa, queriam mostrar a ela toda
a beleza do que tinham ali. Debatiam sobre as luzes, as tochas, a comida. O
Braan parecia prestes a se tornar um grande festival.
Alexzander sorriu fracamente.
Mas não poderia ajudá-los. Ainda não.
Tinha muito o que fazer.
Tinha de visitar as plantações e adiantar o trabalho que não
conseguiria fazer quando os treinos começassem. Tinha de encontrar uma
forma de saber como estavam as coisas em Ediri, com os lobos e todas as
criaturas que viviam lá. Tinha de organizar um cronograma para que não
houvesse confusão entre os grupos de conjuradores na hora das práticas.
Perguntou-se onde Anya se encaixaria. Quais seriam as habilidades
que recebera de Verena. E rezou para que a magia selvagem fosse o
suficiente para compensar a falta de prática.
Ele sentia falta disso. Da sensação de poder fazer qualquer coisa no
mundo que vinha acompanhada daqueles primeiros meses desde a
Travessia.
Queria poder tê-la aproveitado melhor, mas precisava se esconder.
Precisava manter sua habilidade em segredo como prometera à Verena. Era
levado até Havenmill para que Delilah o ajudasse a controlar o fogo que
corria junto de seu sangue, o formigamento constante.
Ele tinha quebrado aquela promessa anos depois. Mas a bruxa ainda
assim o acolheu em sua cidade. Verena era uma deusa compreensiva e
tolerante. Tão diferente da irmã que a caçava.
Alexzander não se arrependia. Mesmo com tudo o que passou por
causa daquele erro. E mesmo as cicatrizes que riscavam sua pele eram um
preço pequeno a se pagar pela vida que ele e a irmã tiveram a oportunidade
de desfrutar em Havenmill.
Era por isso que lutava.
Para que Silja nunca tivesse de enfrentar o mesmo que ele. Que a
garota pudesse andar livremente pelo mundo lá fora e desfrutar de toda a
beleza que se escondia sob camadas e camadas de preconceito.
E a princesa era a chave.
Não podia negar que estava se afeiçoando a ela. Anya era forte
como ele sequer cogitou que seria. Era determinada. E colocou as próprias
crenças de lado por acreditar que estava fazendo a coisa certa.
Seria uma rainha incrível.
E Alexzander finalmente teria orgulho de dizer que servia à Coroa.
Delilah estava há vários minutos de olhos fechados. Ela tinha uma
mão pousada sobre o peito e a outra no que dizia ser o diafragma, e
murmurava uma contagem lenta de respirações que a princesa tentava —
sem sucesso — imitar.
Não conseguia se concentrar.
Permanecia com um dos olhos abertos, analisando atentamente a
mulher à sua frente como não ousara antes.
Ela não costumava se deixar intimidar por pessoas bonitas. Sua
melhor amiga era uma das garotas mais belas que já vira na vida, e Conan...
bom, era difícil levá-lo à sério depois que o conhecia de verdade.
Mas Delilah?
Aquele olhar afiado e o sorriso debochado tinham se dissipado,
dando lugar a uma expressão tão relaxada que fazia Anya pensar nas
esculturas que decoravam o palácio.
— Por que não está contando? — A voz da mulher ecoou pela
clareira silenciosa.
A princesa sentiu as bochechas esquentarem por ter sido flagrada, e
só pôde rezar para que, dentre as habilidades da bruxa, não houvesse algo
como ler pensamentos.
— Não consigo me concentrar — admitiu. — Não entendo o que
você está fazendo.
Delilah redesenhou seu meio sorriso felino.
— Estou... respirando.
— É mais difícil do que você faz parecer. — Anya retrucou.
— Não precisa ficar tão na defensiva, sabe. Estou aqui para ajudá-
la.
E com isso, a mulher se levantou de seu colchonete e deu a volta,
parando mais ou menos um metro atrás da princesa.
A garota acompanhou-a com o olhar, a testa ainda franzida tentando
entender o que ela estava fazendo.
— Respirar é algo que fazemos inconscientemente, certo? — Ela
não esperou que Anya respondesse. — Estamos acostumados a fazer sem,
ao menos, pensar sobre isso. E quando tentamos controlar uma forma
específica de movimento, nosso corpo demora para entender. Posso
mostrar?
Delilah indicou com a mão em direção à princesa, que tentou
segurar o riso ao ver que a mulher pedia permissão para se aproximar.
— Pode.
Então, a meio-bruxa ajoelhou-se, ficando a poucos centímetros de
suas costas.
— Tem certeza? — repetiu, e seu hálito morno fez cócegas no
ombro esquerdo de Anya.
Um arrepio cruzou a espinha da garota e ela apenas assentiu,
temendo que sua voz falhasse se tentasse dizer qualquer coisa.
Voltou a encarar a frente, fugindo do olhar de Delilah. Podia senti-lo
fixo em seu rosto.
A mulher passou o próprio braço em torno de Anya, pousando sua
mão no abdômen dela. Conseguia senti-la completamente rígida atrás de si,
evitando que se tocassem mais do que o necessário.
Ainda assim, a princesa estremeceu.
Seu peito subia e descia rápido demais, ainda surpresa pelo
desenrolar da situação.
— Aqui — Delilah pressionou levemente a área onde a tocava. Sua
voz saía tão baixa quanto um sussurro, mas as palavras soavam claras. —
Feche os olhos e tente respirar sem mover seu peito.
Ela obedeceu, e foi como se a quebra do contato visual estimulasse
ainda mais seus outros sentidos. Percebia cada milímetro do toque morno
sobre sua pele, o aroma de mel e cedro que ela só poderia deduzir que vinha
da mulher. Conseguia ouvir com perfeição o farfalhar das árvores ao redor
delas, cantando uma canção que somente suas próprias folhas entendiam.
— Ignore isso — Delilah sussurrou, parecendo ler sua mente. —
Ignore tudo o que está acontecendo à sua volta, ignore também o que está
acontecendo dentro de você. Preste atenção apenas no som da minha voz.
O último comando era fácil, mas os outros...
A meio-bruxa começou a contar.
Um, dois, três...
Anya tentou se concentrar outra vez. Mas os números soavam
estranhos para ela, como se a única coisa em que sua cabeça conseguisse
prestar atenção fosse a proximidade em que se encontrava de uma completa
estranha. O quão vulnerável estava de olhos fechados, envolvida por uma
mulher que, pelas palavras de Silja, tinha poder suficiente para transformá-
la em cinzas.
Quatro, cinco, seis...
Mas ela não se sentia realmente ameaçada. Na verdade, poderia
pensar no sentido oposto, não poderia? A mulher com uma magia tão forte
estava ajudando-a. Eram aliadas. Todo aquele poder estava ao lado dela e
não contra ela.
Um, dois, três...
O que sua mãe pensaria se a visse agora? Delilah já a tinha
encontrado por meio de uma projeção, mas será que Elysia gostaria da
meio-bruxa? A princesa tinha certeza de que ela adoraria Silja, que a
curandeira só precisaria de um único sorriso para conquistá-la. Mas...
Quatro, cinco, seis...
A floresta pareceu se calar. Anya já não ouvia o regato ao fundo da
clareira, não ouvia o farfalhar das árvores. Delilah parecia tê-la abandonado
também. O toque quente já não estava mais ali e mesmo a presença
constante às suas costas desaparecera. Será que tinha ido embora? Será que
tinha decido que ajudar a princesa não valia à pena, ou que, de alguma
forma, percebeu que ela era fraca demais para a missão que tinha nas mãos?
Não costumava ser uma pessoa insegura.
Não a respeito de sua capacidade para fazer alguma coisa, pelo
menos. Mas desde que chegara em Havenmill, tantas coisas tinham saído de
seu controle, tiradas, roubadas, desfeitas...
Já não ouvia a contagem e quis abrir os olhos para ver o que estava
acontecendo. Mas eles não a obedeceram.
Seus pensamentos pulavam de um para o outro rápido demais,
desconexos demais. Levaram consigo o canto dos pássaros e a sensação da
brisa contra sua pele.
Ela visualizou jardins cobertos de lavandas e mergulhou em um mar
cheio de sereias. Um formigamento cobriu seu corpo, pedaço por pedaço.
Ela viu cores. Muitas cores, ganhando espaço, criando raízes.
Gavinhas de raios de sol dançavam ao redor de rios feitos de prata. Viu
todas as nuances de tons que coloriam os céus.
Viu pinheiros e cachoeiras e lembrou-se do quadro que decorava seu
salão de música. De repente, pareceu tão estranho que o castelo guardasse
algo que representasse Ediri. Uma amostra do mundo que era proibido para
humanos. Do cárcere que mantinha as criaturas mágicas.
Um, dois...
A voz sussurrada de Delilah reapareceu.
Três, quatro...
Sua mão estava novamente pousada sobre a princesa.
Cinco...
Os sons da floresta ressurgiram aos poucos.
— Seis.
Anya abriu os olhos.
Estava no mesmo lugar, Delilah ainda pousada atrás dela, mas, de
alguma forma, tudo parecia diferente.
O brilho do sol refletindo nas cerejeiras era mais vivo, ela sentia
melhor o aroma das flores e mesmo o vento parecia cheirar à grama recém-
cortada.
Tudo estava tranquilo, calmo.
E não apenas ao seu redor. Dentro dela também.
Suas preocupações pareciam ter sido todas carregadas para longe e a
princesa chegou a pensar que...
— É assim que não perdemos o controle da magia — Delilah
comentou, soltando-a delicadamente e voltando para o outro colchonete.
A falta de seu toque pareceu estranha por alguns segundos, como se
aquela mão já fizesse parte dela também.
— É... esquisito — respondeu.
Delilah riu, cruzando as pernas e observando-a atentamente.
— Fazemos isso para acalmar a mente. É mais difícil que suas
emoções tomem conta desse jeito. Depois de um tempo, você se acostuma a
manter seus pensamentos nesse estado, mesmo sem precisar de todo esse
processo.
Anya confirmou com a cabeça.
— E agora?
— Agora que você está mais tranquila, descobrimos o quanto
consegue controlar sua habilidade com o ar.
A garota pensou nas flores voando furiosamente ao seu redor.
Que as Sete a ajudassem.

A garota tinha cheiro de canela. Canela e algo amadeirado que


Delilah não conseguiu identificar.
E ela não sabia por que exatamente aquilo importava, mas a
ausência de reconhecimento a fez se dar conta de que existia um mundo lá
fora. Não que já não soubesse disso, mas aquele cheiro desconhecido
pareceu tornar ainda mais... real.
A fez pensar em todas as árvores e plantas que haveria fora de
Havenmill. Todas as flores. Os animais e paisagens. Tudo o que Delilah
nunca conheceu e que, de alguma forma, sentia que esperava por ela.
Agradeceu silenciosamente que a princesa estivesse perdida nos
próprios devaneios durante os exercícios, pois o silêncio a fez pensar em
como era irônico que a garota representasse, sozinha, os dois lados da
mesma moeda.
Que carregasse o peso de uma família e uma história de perseguição
mas, ao mesmo tempo, fosse um lembrete de que havia mais.
Mais do mundo, mais da vida.
Pelas Sete, estava soando como sua mãe.
Delilah riu sozinha.
As poucas horas de sono estavam cobrando seu preço. Ou talvez,
estivesse ficando louca.
— Eu não sei como trazer o vento — a princesa admitiu quando as
duas já estavam sentadas uma de frente para a outra. — Nem percebi que
tinha feito isso mais cedo, até você me pedir para contar até dez.
— Tente visualizar a magia dentro de si — instruiu. — Dê uma
forma para ela.
A garota ficou em silêncio por alguns segundos.
— Como raízes? — disse por fim.
Dell ergueu uma sobrancelha. Era assim que como imaginava seu
próprio poder.
— Isso. Podem ser raízes — concordou. — Certo, agora quero que
você imagine essas raízes crescendo, se expandindo. Quero que você deixe
que elas se derramem para fora de seus dedos, que as traga para o mundo
externo.
Anya franziu o cenho enquanto tensionava os dedos.
— Calma — a mulher não conseguiu controlar uma risada. — Não é
para você literalmente tirar a magia daí de dentro. Apenas deixe que ela
escorra para fora, como se seus dedos fossem um canal entre ela e o mundo.
— Tudo bem — Anya assentiu.
— E dê intenção ao gesto. Agora que tem consciência de sua
habilidade com o ar, imagine-o vindo até você.
Delilah não esperava que a princesa conseguisse fazer aquilo na
primeira tentativa, mas também não esperava tanta frustração nos olhos dela
quando falhasse.
— Tente mais uma vez — pediu com gentileza.
Novamente Anya tentou. E novamente nada aconteceu.
— Pode ter sido um erro — a garota disse, fingindo não se importar.
— Talvez eu não fosse a verdadeira causa da ventania que surgiu antes.
— Tente mais uma vez — repetiu.
E uma expressão parecida com tristeza ou... saudade cruzou os
olhos da princesa, antes que ela respirasse fundo e estendesse a mão.
Delilah a observou em silêncio, e se pegou desejando que a garota
conseguisse que qualquer sinal de magia brotasse para lhe dar alguma
confiança.
E então, ela sentiu.
Anya estava com os olhos fechados, os dedos estendidos diante de
seu corpo, e uma brisa tímida balançou os cabelos negros dela. Depois veio
até Delilah, acariciando sua pele com um toque frio.
Rodopiando um pouco mais rápido, o sopro de vento levou consigo
alguns grãos de terra, carregando-os pela clareira.
Estava dando certo.
A princesa estava controlando sua magia.
E tão rapidamente quanto este pensamento veio, a garota franziu o
cenho. Ainda de olhos fechados, a mão estendida tremeu e ela a fechou em
punho.
A brisa acelerou.
Mais.
E mais.
Algo estava acontecendo dentro da cabeça dela. Os pensamentos
pareciam tomar conta mesmo depois dos exercícios de respiração.
A clareira estava outra vez sendo chacoalhada por uma ventania
intensa. Os galhos das cerejeiras balançavam com ferocidade, flores se
desprendiam e rodopiavam, e até mesmo algumas de suas hastes se partiam.
Girado e girando para todos os lados.
— Respire fundo — Delilah instruiu, tentando falar calmamente
para não assustar a princesa.
Mas Anya franziu ainda mais o rosto e o vento se acelerou ainda
mais. Como se a ouvisse, mas não reconhecesse sua voz.
— Abra os olhos, Princesa. — Tentou outra vez. — Abra aos olhos
e controle a magia. Você tem o poder sobre o ar, e não o contrário.
Mais alguns segundos se passaram e a meio-bruxa começou a
pensar que teria de intervir. Não queria fazer isso. Sabia que envolver o
próprio poder influenciava na confiança de seus alunos, no entanto, estava
tudo saindo demais do controle.
— Ei — sussurrou, deixando que sua voz fosse carregada pela
ventania. Que serpenteasse ao redor da garota da mesma forma que a magia
o fazia. — Abra os olhos.
E Anya finalmente ouviu.
Suas pálpebras se arregalaram e Delilah percebeu um milhão de
dúvidas diferentes escondidas naquelas íris douradas.
A princesa controlou sua respiração e o ar pareceu acompanhar seu
ritmo, desacelerando pouco a pouco, até não passar de uma brisa tranquila
de primavera.
As duas ficaram alguns segundos se encarando em silêncio.
Delilah tentava decifrar o rosto dela, e Anya tentava assimilar onde
estava.
— Eu perdi o controle — sussurrou —, de novo.
E o peito da meio-bruxa pesou um pouco ao perceber o nível de
exigência que ela tinha colocado sobre si mesma.
Em um dia normal, ela concordaria. Diria que, da próxima vez, seria
preciso ficar mais atento aos comandos dela caso as coisas se agitassem
demais.
Mas não era o momento para isso.
— Não — disse por fim, abrindo um sorriso tímido. — Você
conseguiu.
A princesa piscou como se absorvesse suas palavras.
Então, um sorriso tomou conta dela também.
— Sim, eu consegui. — constatou.
E Delilah não foi capaz de deixar de notar como o semblante alegre
lhe caía bem.
Anya respirou fundo e repetiu a magia.
Dessa vez, não houve descontrole. Ela apenas sustentou uma dança
suave entre algumas flores. Com uma tranquilidade impressionante.
Seus olhos brilhavam, refletindo a felicidade desenhada na boca
levemente aberta. E a cena era tão bonita que Delilah teve vontade de
desenhá-la.
O pensamento pegou-a de surpresa.
Não tocava em seus cadernos desde que Ravina fora embora de
Havenmill. Era um passatempo que ela dividira com sua mãe e que perdeu
todo o encanto depois da partida dela.
Lembrou-se do que disse a si mesma naquela manhã, antes de sair
de casa. Sobre não poder se dar ao luxo de ter esperanças.
Mas estava com a princesa há poucas horas e a garota fez com que
ela sonhasse acordada duas vezes.
Aquilo precisava significar alguma coisa.
Nada faria com que Alexzander saísse daquele sofá. Cada músculo
de seu corpo doía ao menor dos movimentos, e ele sentia como se toda a
sua energia tivesse sido sugada de dentro dele.
Esparramado e sem espaço o suficiente para que coubesse por
inteiro ali, ouvia o tilintar das panelas na cozinha enquanto Silja preparava
o jantar. E, por mais que quisesse ajudá-la, suas pernas se recusavam a
obedecer aos comandos de seu cérebro que diziam para ir até lá.
— Precisamos de um sofá novo — ele resmungou. — Esse aqui é
pequeno demais.
— Você que ocupa muito espaço. — Silja riu. — E pare de gemer aí
sozinho, não é como se uma carroça tivesse passado por cima de você!
— É exatamente assim que eu me sinto — retrucou.
Esteve nas plantações durante toda a tarde, adiantando os trabalhos
que não teria tempo de fazer nas próximas semanas e instruindo aqueles que
ficariam responsáveis por suas funções.
Sua magia tinha sido drenada até a última gota e, talvez, nem
mesmo uma noite inteira de sono fosse o suficiente para recuperá-la.
Esta era uma das desvantagens de receber a magia ao invés de ter
origens mágicas no sangue. Os poderes esgotavam. E você tinha de
desacelerar tudo o que planejava fazer até que eles se restaurassem.
— Como vai o vestido? — perguntou, na esperança de que a
conversa mantivesse seus olhos abertos.
— Tenho sorte de ter estes poderes de cura. — Ela gargalhou. —
Não faz ideia do estado em que nossos dedos ficaram depois de horas
tentando domar aquelas agulhas selvagens.
— Agulhas selvagens — Alexzander repetiu, encolhendo-se de dor
pelas risadas que faziam seu corpo tremer.
— Juro para você! Era como se meus dedos tivessem alvos pintados
em vermelho e elas fossem muito competitivas!
— E por que, exatamente, você está fazendo isso?
— Sabe muito bem o porquê.
Ele assentiu, mesmo que a garota não pudesse ver seu rosto.
Pelo mesmo motivo que ele próprio se atolara em trabalho e
afazeres, que evitara passar qualquer segundo daquele dia em ócio. Tempo
livre era tempo para pensar, e as coisas que vinham à sua mente...
— Ao menos se preocupou em encontrar uma roupa para você
mesma usar no Braan?
Ela bufou.
— Claro, irmão. Escolhi um vestido cheio de babados e brilhos,
num tom que ressaltará o lindo azul dos meus olhos e...
Alexzander se engasgou com o próprio riso. A imagem que lhe veio
à mente de Silja usando qualquer coisa além das roupas dele era, no
mínimo, curiosa.
— Fique longe de minha camisa cor de creme — disse.
— Não se preocupe — Silja respondeu com doçura. — É na azul
com detalhes na gola que estou de olho.
Ele não se deu ao trabalho de responder.
— Do que estamos rindo? — Outra voz soou pelo chalé.
Alexzander se ergueu minimamente, acenando por sobre o encosto
do sofá para a princesa parada na porta.
Ela parecia tão cansada quanto ele, mas algo estava diferente.
Parecia alegre, como o rapaz ainda não tinha visto desde que a conheceu. A
pele estava coberta de areia e pequenos galhos estavam enroscados nos
cachos completamente descontrolados.
Ainda assim, estava radiante.
— Nada demais — sua irmã respondeu. — Estávamos falando sobre
o Braan.
Com muito esforço, o rapaz se sentou no sofá. E sentiu um pouco de
culpa ao ver a princesa lavar as mãos e oferecer ajuda à Silja.
— E o que era tão engraçado? — insistiu Anya.
Alguma coisa tinha acontecido entre as duas. Elas pareciam mais
próximas uma da outra, cúmplices de certa forma. Como se
compartilhassem um segredo só delas.
— Minha irmã estava ameaçando destruir todas as minhas roupas —
ele respondeu, levantando-se devagar e se arrastando até elas.
— Agora não preciso de você aqui. — Silja cutucou o ombro dele
com uma colher. Então, virou-se para a princesa. — Ele não está mentindo,
mas também não fala a verdade.
O rapaz revirou os olhos e sentou-se em torno da mesa.
— Como foi seu primeiro dia? — perguntou. — Com Delilah, quero
dizer.
Anya abriu um sorriso discreto.
— Surpreendente — admitiu. — Não imaginava que seria tão...
satisfatório ver as coisas acontecendo e saber que foi por minha causa.
Ele entendia. Mesmo tantos anos depois, ele ainda não deixava de se
admirar com a magia.
— E o que você conseguiu fazer? — Silja indagou, alcançando uma
faquinha para a garota ajudá-la a cortar algumas cenouras.
— Vento.. — Anya sorriu ainda mais — Digo, manipulei o ar.
— Bem-vinda ao time dos Elementaristas — Alexzander piscou um
olho para ela. — E causou um estrago muito grande na clareira?
A princesa arregalou os olhos.
— Como sabe disso?
— É normal no começo — ele acalmou-a. — Mesmo treinando a
respiração e tudo o mais.
— É. — Anya deixou uma risada escapar. — Tivemos de repetir a
meditação três vezes durante o dia.
— Pelas Sete! — Silja gargalhou. — Fico na dúvida se deixou
Delilah orgulhosa ou preocupada.
Baixando os olhos para as próprias mãos, a princesa apenas deu de
ombros. Mas o rapaz percebeu o leve rubor que subiu por suas bochechas.
Se sua irmã também reparou, não disse nada.
Alexzander pigarreou.
— Minha irmã lhe contou que ela e Farah estão fazendo um vestido
para você?
— O quê? — Anya exclamou.
— E lá. Se vai. A. Surpresa — Silja esbravejou, batendo a colher
com mais força do que o necessário dentro da panela.
Opa.
— Como assim? — insistiu a princesa.
— Bom, Farah e eu pensamos que seria legal se nós mesmas
costurássemos seu vestido para o Braan. Já que, você sabe, não tivemos
muito tempo para escolher roupas suas para trazer e nem esperávamos que
você fosse fazer a Travessia.
— Não precisam fazer isso — Anya falou baixinho.
— Mas você é uma princesa — o rapaz contrapôs. — Tem de se
vestir à altura.
— Não. — Sua irmã balançou a cabeça. — Estará vestida como
uma rainha! Amanhã, quando você voltar da clareira, pode se juntar a nós
duas e dar algumas opiniões sobre o vestido. Precisamos tirar suas medidas
de qualquer forma.
— Claro. — Anya sorriu. — Obrigada por isso. — Ela hesitou,
depois deu de ombros. — E por todo o resto.
— Deixe para agradecer quando o vestido estiver pronto. — Silja
indicou a escada com as duas mãos, expulsando a princesa da cozinha. —
Agora vá tirar essa terra dos cabelos. Pelas Sete, parece que passou o dia
inteiro rolando no chão!
— Silja! — Alexzander repreendeu.
Mas Anya apenas riu, seguindo para o segundo andar do chalé.
— Como sobreviveu tanto tempo com ela? — perguntou para o
rapaz, mas desapareceu antes que ele tivesse a chance de falar qualquer
coisa
Ótimo, pois não saberia o que responder.

Anya conseguia sentir a magia dentro de seu corpo. Curiosa,


pulsante, se espalhando como uma nova cadeia de vasos sanguíneos.
Era inacreditável.
Insano.
E...
Dela.
Ela tinha sido a pessoa a chamar o vento, a transformar a clareira em
uma confusão de terra, galhos e flores. Sim, tinha perdido o controle
algumas vezes. Mas só foi capaz de fazê-lo porque tinha aquela corrente
elétrica ganhando força dentro de si.
Estava eufórica e anestesiada ao mesmo tempo.
E entendeu as palavras de Verena ao dizer que a magia a estava
reconhecendo, pois aquilo não parecia algo novo. Parecia que sempre
estivera ali, esperando pelo momento certo.
Era irônico pensar que se sentia mais completa do que nunca,
mesmo tendo tantas partes suas faltando.
Anya preparou seu banho e entrou calmamente na banheira.
Fez uma careta para o próprio reflexo, puxando os pequenos galhos
presos em seus cachos. Silja estava certa, ela parecia mesmo ter passado a
tarde rolando na terra.
Escorando-se na borda, aproveitou o aroma de canela enquanto
passava o sabonete por seu corpo.
Apenas relaxando, respirando com calma.
Um pensamento cruzou sua mente.
Encarando a água, perguntou-se se seria capaz de manipulá-la.
Não, deveria fazer isso na presença de Delilah, caso alguma coisa
desse errado.
Mas o que, exatamente, poderia dar errado? Não havia água o
suficiente naquela banheira para causar um verdadeiro estrago e ela não
poderia criar mais.
Ela mal conteve a própria empolgação.
Balançou os dedos pelo líquido quente, respirou fundo, e derramou
sua magia para fora.
Tentou uma, duas, três vezes, mas nada aconteceu.
Não queria desistir, pois ainda naquela tarde, demorou até que
conseguisse chamar trazer o vento para si. Mas não estava funcionando.
Nem mesmo uma pequena movimentação.
Suspirou ruidosamente e parou.
— Nada de água para a princesa — murmurou.
Com a pele limpa, reclinou-se e fechou os olhos por um momento,
acompanhando o silêncio que parecia niná-la.
Pousou a mão sobre o abdômen, onde a de Delilah a tocara algumas
horas atrás. E uma risada seca escapou de seus lábios.
A mulher era terrível.
Não literalmente terrível.
Mas ela parecia ter um prazer imenso em fazer comentários
sarcásticos para deixar a princesa constrangida. No entanto, apesar do
desconforto, as piadas vinham nos momentos em que Anya precisava
relaxar.
Quando se cobrava demais ou parecia prestes a desistir.
Balançou a cabeça e voltou a atenção para a mão em sua barriga,
aproveitando da tranquilidade daquele banho para exercitar sua respiração.
Tinha prometido que repetiria a meditação sempre que pudesse, já
que o tempo que possuíam para praticar era limitado.
Começou a contar.
Deixou seus pensamentos flutuarem pela umidade do ar, espiralarem
atrelados ao vapor da água quente.
E vagarem para longe.
Sua pele formigava, mas sua mente não estava ficando mais
tranquila. Na verdade, seu coração se agitava cada vez mais. Ela viu as
cores, as raízes, porém a sensação era incômoda. Os raios de sol não mais
predominavam dentro dela, estavam perdendo espaço, sendo sufocados
pelas outras cores, pelas outras raízes.
De onde elas tinham vindo?
Tentou controlar sua respiração, retomar a contagem que perdeu o
ritmo.
Inspirar no um.
Expirar no quatro.
Inspirar no um.
Expirar no quatro.
Mas a sensação era de que o poder saía de seu corpo e se enrolava
em torno dela pelo lado de fora. Anya o sentia deslizar sobre sua pele,
enrolar-se em seus braços, ainda que não houvesse nada ali.
Subindo, subindo.
Ganhando espaço.
Não era a mesma sensação que tivera na clareira. Era...
claustrofóbico.
Anya tinha feito alguma coisa errada.
Diferente da meditação que havia praticado mais cedo e havia
despertado algo que não deveria.
Pare, por favor.
Pensou, sem conseguir pronunciar as palavras.
Pare.
Mas aquilo não a obedecia. Agarrava-se à sua pele como heras que
ganhavam vida própria e...
Duas batidas fortes ressoaram e, em um segundo, a sensação se foi.
O formigamento sumiu.
Não havia mais vapor pelo banheiro. A água estava fria.
— Você está bem? — a voz de Silja veio do outro lado da porta.
— Sim! Eu apenas... Não sei. — Tentou disfarçar o nervosismo, mas
seu coração batia tão forte que mal ouvia suas próprias palavras.
A curandeira riu.
— Acho que você dormiu. Já está aí dentro há uma hora sem fazer
barulho nenhum!
— O quê?
— Não queríamos incomodá-la, mas o jantar estava ficando frio e...
bom, achei que deveria vir avisá-la.
Não era possível. Tinha acabado de entrar ali.
Teria mesmo pegado no sono e imaginado a coisa toda?
Era uma boa explicação, não era?
— Ah, claro! Sem problemas — disse.
— Deixarei uma bandeja em seu quarto, princesa — a garota disse.
E Anya esperou que seus passos desaparecessem pelo corredor antes
de se levantar, antes de procurar pelos braços qualquer sinal daquela coisa
que tinha despertado.
Mas não havia nada.
E teve certeza de que tinha sonhado com tudo.
O céu feito de raízes deixou de parecer estranho para a princesa.
Não que a ideia de estar no subsolo do mundo não fosse surpreendente, mas
aquilo deixou de assustá-la. Não via mais o emaranhado de galhos
retorcidos com consternação, e sim com curiosidade.
E ali, deitada no centro da clareira observando o dossel esverdeado
de Havenmill, desejava entender seu funcionamento. Desejava compreender
como cada parte da cidade agia, agora que conhecia a estrutura daquele
poder.
Na noite anterior, tinha corrido direto para seu quarto após o banho
e, quando acordou pela manhã, ninguém comentou qualquer coisa sobre o
que aconteceu. Tinha certeza de que tudo não passou de um sonho que
prometeu a si mesma não pensar mais sobre aquilo.
Mas quanto mais aprendia sobre sua habilidade com o ar, mais tinha
a sensação de que havia algo errado crescendo dentro dela.
Delilah a tinha ajudado com a meditação logo que chegaram e tudo
correu bem. Exatamente como tinha acontecido na manhã anterior. E apesar
da mente tranquila que os exercícios de respiração proporcionavam, o
sentimento permanecia.
Rezou em silêncio para que, se o ignorasse por tempo o suficiente,
ele desaparecesse.
— Não pode ficar deitada nesse chão para sempre. — A meio-bruxa
cutucou-a com o pé.
Seus cabelos rosados entraram no campo de visão da princesa, que
fez uma careta ao responder:
— Claro que posso — retrucou. — Mereço cada segundo de
descanso depois de trabalhar perfeitamente com o ar a manhã inteira.
Era verdade.
Não tinha perdido o controle uma única vez.
— Só porque teve uma manhã tranquila, não significa que o
trabalho está pronto. — Dell revirou os olhos, cruzando os braços. —
Mesmo os conjuradores mais experientes podem ter picos de energia.
Anya bufou, sustentando o olhar de julgamento da mulher. E não
deixou de notar como a claridade dava um contorno luminoso bonito para
ela.
— Então, o que devo fazer agora? — reclamou, sentando-se na
terra.
— Almoçar. — Delilah estendeu a mão em sua direção para ajudá-la
a se levantar.
— Tudo bem. — Deu de ombros, ignorando a palma estendida. —
Mas que fique claro que apenas me levantei desse chão porque o motivo é
comida.
Erguendo uma sobrancelha, Dell observou-a espanar a terra de sua
roupa.
— Pensei que poderíamos almoçar em meu chalé hoje — disse. —
Assim, podemos comer algo melhor.
A princesa soltou um riso de escárnio. No dia anterior, Delilah tinha
preparado sanduiches para elas. Mas os trouxera cedo demais e estavam
quentes e murchos por causa do calor.
— Me parece uma boa ideia — Anya concordou.
Acompanhando a meio-bruxa, a princesa deu a volta pela pequena
cabana de equipamentos nas margens da clareira e estacou no momento em
que viu a imensa árvore para a qual elas se dirigiam.
A madeira se erguia até o alto, imponente, tão larga quando uma
casa. Seus galhos se abriam e alcançavam até muitos metros além de onde
elas estavam.
E em torno do tronco tão escuro que parecia preto, uma escada em
espiral tinha sido entalhada.
Delilah morava em uma casa na árvore, como aquelas das histórias.
Um chalé de paredes verdes, no mesmo tom das folhas, pousava por
entre alguns dos galhos mais grossos, e parecia vigiar Havenmill inteira.
Como não tinha percebido aquilo? Provavelmente, aquela árvore
podia ser vista de qualquer parte da cidade.
A mulher continuou seu caminho, subindo pela escada em espiral e,
vez ou outra, olhando por sobre o ombro para garantir que a princesa de
boca aberta ainda a acompanhava.
Era inacreditável.
Inacreditável e...
— Esse lugar é incrível — ousou dizer, e recebeu um sorriso em
resposta.
— Sim. É minha segunda vista preferida.
E Anya não conseguiu pensar em nada que fosse tão bonito, que
ganhasse o primeiro lugar quando comparado àquilo.
As únicas coisas tão altas quanto aquela árvore eram as raízes que
sustentavam o próprio céu, e todas as copas das plantas lá embaixo
formavam uma pintura abstrata com tantas cores que ela talvez nem
soubesse seus nomes.
Quando finalmente chegaram ao chalé, uma porta vermelha levou-as
até uma sala arredondada que acomodava uma cozinha e uma mesa de
jantar. Uma escada seguia até o segundo andar, mas a princesa não
conseguia ter qualquer vislumbre do que se escondia lá em cima.
— Sente-se. — Delilah apontou para a mesa de madeira. — Fique à
vontade.
A mulher pareceu nervosa de repente, como se tivesse percebido, de
alguma forma, que aquilo era uma ideia ruim.
Anya aceitou o convite, acomodou-se na cadeira que era
completamente coberta pelo sol entrando da única janela do andar.
Virando-se para o refrigerador, a meio-bruxa lhe ofereceu uma jarra
de suco e a princesa apenas assentiu, passando os olhos pela cozinha.
Algo chamou sua atenção na parede ao lado da janela.
Do teto ao chão, a madeira estava coberta por suportes que
acomodavam dezenas de adagas.
Elas tinham todas as formas e tamanhos. Eram pequenas, longas.
Algumas eram grossas e outras, tão finas quanto agulhas.
— Impressionante — disse, virando-se para a mulher.
— Obrigada. — Delilah respondeu, colocando um copo de vidro
diante da princesa e apontando para ele. — É de laranja.
Ela tinha a testa franzida. As sobrancelhas bem desenhadas uniam-
se no centro de seu rosto e seus olhos pareciam... consternados.
— Agradeço — Anya ergueu o copo. Até que sua curiosidade
venceu e ela perguntou: — Quantas são? As adagas, quero dizer.
— Quarenta e sete.
Algo na voz dela fez princesa pender a cabeça para o lado,
analisando.
A meio-bruxa parecia mal respirar, mexendo nervosa nos dedos. Ela
abriu e fechou a boca, como se tivesse desistido de dizer alguma coisa.
— Posso vê-las de perto?
Delilah apenas acenou, virando-se de costas rapidamente e apoiando
as mãos sobre a bancada da pia.
— Você está bem? — a princesa perguntou.
— Aham — afirmou —, é o calor.
Ela não tinha certeza se acreditava nisso, mas também acenou com a
cabeça e caminhou até a parede onde as armas eram mantidas.
Passando os olhos pelas lâminas, sua atenção se voltou para uma em
particular.
Era um pouco mais comprida que as outras, quase como uma espada
curta. Seu cabo era delicadamente decorado com espirais de galhos que se
abriam em um guarda-punho florido.
Anya conhecia aquelas flores.
Assim como a insígnia que repousava no centro.
Dois ramos de lavanda e uma coroa.
O brasão do reino.

Delilah não saberia o que dizer mesmo se a magia permitisse que ela
o fizesse. Seu coração batia forte demais em seu peito, e todo o ar do
mundo parecia querer entrar de uma única vez em seus pulmões.
A princesa encarava aquela maldita adaga de olhos arregalados, e
Dell amaldiçoava Verena em silêncio por colocá-la naquela situação.
— Por que você tem uma adaga com a insígnia de Duhn? — Anya
perguntou sem parar de encarar a lâmina.
— Verena me deu.
Isso fez a princesa se virar para ela.
— O quê?
— Verena a tinha e...
Ela não poderia dar a explicação que a princesa buscava. Ela nem ao
menos a tinha por completo. A magia que estava atrelada ao objeto impedia
que qualquer coisa sobre ele fosse dita em voz alta.
As adagas armazenavam memórias.
Algumas delas haviam sido compartilhadas, oferecidas para que
vivessem para sempre. Estas eram forjadas com lágrimas. Traziam a
intensão de saudade, do desejo de poder viver eternamente naqueles
momentos bons.
Outras foram usadas como moeda de troca. Eram arrancadas das
mentes que as vendiam e eram esquecidas. Perdiam-se pelo véu que
separava realidade de sonhos, e eram forjadas com sangue. Não era possível
remover alguma coisa sem deixar uma ferida para trás.
— E? — a princesa insistiu, sua voz saindo mais afiada do que
qualquer uma das lâminas naquela parede.
— E me pediu para entregá-la a você — mentiu.
Tinha acabado de quebrar uma regra milenar. O que era,
possivelmente, um erro terrível. Mas Verena sempre lhe pedia e pedia e
pedia, e jamais oferecia qualquer explicação em troca.
E até onde Delilah sabia, aquela adaga poderia pertencer a alguém
da família da garota. A Primordial não lhe teria dado o item dias antes de
Anya aparecer ali apenas por coincidência.
Não existia coincidência quando se tratava de Verena.
Então, deu um tiro no escuro.
E poderia apenas rezar para que os resultados não fossem
catastróficos.
— Ela não me disse nada sobre isso. — A princesa passava os olhos
da adaga para Delilah, a testa franzida pela incredulidade. — E você já
poderia tê-la me entregado.
— Estive no Refúgio ontem. — Deu de ombros. — Verena
reclamou que tinha se esquecido disso. Entenda, são muitas coisas
acontecendo ao mesmo tempo. De repente, a Princesa queria fazer a
Travessia e mesmo ela foi pega de surpresa.
Quando foi que mentir se tornou tão fácil? A desculpa saiu por
completo e Delilah nem ao menos piscou.
Pelas Sete!
Anya encarou-a por mais alguns segundos, parecendo em dúvida se
acreditava ou não.
E a meio-bruxa queria contar. Queria dizer que havia algo escondido
ali dentro, algo que ela não sabia o que era, nem a quem pertencia.
Mas era impossível.
A magia que ali repousava a impedia de falar sobre isso. Impedia de
contar que as memórias só poderiam ser restauradas através do mesmo
sangue ou lágrimas que a forjaram. Que se ela realmente pertencesse a
alguém da família da princesa, bastaria que um filete de seu sangue ou
algumas gotas de seu choro escorressem pela lâmina que ela teria todas as
respostas.
Mas Delilah não podia. As palavras não sairiam nem se tentasse
dizê-las.
Ser a Guardiã daquelas lembranças era uma honra e, ao mesmo
tempo, uma maldição.
— E você não sabe como Verena a tinha?
— Não.
A primeira verdade.
— Então, posso pegá-la? — Anya perguntou.
A meio-bruxa assentiu.
Suas mãos suavam contra a bancada, e seu coração batia rápido
demais.
Manteve-se em silêncio, observando enquanto a princesa pegava
sem dificuldade a lâmina que ela mesma precisava erguer os pés para
alcançar. Não tinha percebido até aquele momento que a princesa era mais
alta que ela.
Com a mão direita firme no cabo e a outra apoiando a lâminas, a
garota examinou os detalhes marcados no aço. E Delilah prendeu a
respiração ao ver os olhos dela brilharem com as lágrimas.
Devia estar pensando em casa. Na família.
E a meio-bruxa teve vontade de ir até ela, de dizer que sentia muito
por tudo o que tinha acontecido. Mas não sabia fazer esse tipo de coisa.
Todas as vezes em que tentava ser empática dizia as coisas erradas. Não era
muito boa lidando com gente.
Como se um sinal do destino, o forno apitou.
Ela nem se lembrava de ter colocado o peixe para assar, mas
agradeceu a interrupção.
Mesmo Anya pareceu voltar um pouco para a realidade, pousando
delicadamente a arma sobre a mesa e vindo até Delilah para pegar os pratos
e colocar na mesa.
— O cheiro está bom — a garota murmurou.
— Obrigada.
E sentaram-se.
Aquele foi o almoço mais silencioso de que Delilah conseguia se
lembrar. Mesmo considerando que já morava sozinha há anos.
A brisa fresca soprava contra o rosto de Anya e ela observava as
árvores da clareira formando desenhos de sombras no chão.
Não conseguira prestar atenção em muita coisa durante o almoço.
Sabia que Delilah tentava conversar, desfazer o clima estranho que ficou
entre elas. Mas estava perdida demais em pensamentos que giravam em
torno daquela adaga.
Havia acreditado na meio-bruxa.
Ela parecia dizer a verdade sobre não saber onde Verena conseguira
o objeto. No entanto, isso não transformava a situação em algo menos
incômodo.
E agora, de volta à clareira, a lâmina era um peso estranho em sua
cintura. Um lembrete desconfortável de todas as coisas que ela ainda não
entendia.
— Acho que poderíamos tentar uma coisa diferente — Delilah
comentou, juntando-se a ela.
— Diferente como?
A mulher mordeu o lábio, pensando.
— Como descobrir se há mais alguma habilidade em você. É bom
termos alguma noção de tudo o que pode fazer, para evitar qualquer...
desastre.
Uma risada seca escapou da princesa.
Queria dizer que poderiam descartar a afinidade com a água, pois já
havia tentado isso. Mas não lhe pareceu uma boa ideia mencionar qualquer
coisa sobre o que aconteceu na noite anterior.
Temia que Delilah visse em seu rosto algo além do que estava
disposta a contar.
— E como fazemos isso?
— Testando. — Ela deu de ombros. — Podemos começar por
similaridade. Sabemos que você pode manipular o ar, então,
experimentamos outro elemento.
Ah.
— E qual deles têm em mente?
Delilah observou-a em silêncio por alguns segundos.
— Me diga você.
A princesa bufou.
— Você não facilita mesmo, não é?
— Que graça teria? — Dell debochou, abrindo aquele sorriso
sarcástico que fazia o sangue de Anya fervilhar de irritação.
Sim, a mulher era terrível mesmo.
Com uma careta, a garota passou os olhos pela clareira. E não tinha
muita certeza do que a estava guiando, mas então, se viu diante de uma das
cerejeiras.
Ela observou o tronco escuro, acompanhando seus galhos que se
expandiam tranquilamente, enrolando-se nos das outras árvores à sua volta.
As sakuras estavam no ápice de sua beleza, cheias de cor e de vida, e a
princesa estendeu a mão para tocar uma das delicadas flores.
Tudo bem, pensou, posso tentar.
Conseguia sentir os olhos de Delilah em suas costas, mas evitou
pensar nela — nem no quanto a cor de seus cabelos se parecia com as
pequenas pétalas que tinha entre os dedos.
Elementaristas não podiam criar as coisas do nada, precisavam usar
aquilo que tinham à sua disposição, e a cerejeira pareceu uma boa forma de
começar.
Respirou fundo e deixou a magia fluir.
O formigamento voltou. Aquela sensação engraçada sobre sua pele
enquanto derramava suas raízes em torno do galho diante de si. Mas
diferente da água na banheira, ela sentiu a madeira áspera como se estivesse
realmente roçando os dedos por ela. Sentiu seu poder se atrelar à árvore e
sentiu quando novas flores brotaram ali.
Anya soltou o ar pesadamente.
Uma, duas, cinco sakuras surgiram por entre aquelas que já
existiam, e a surpresa a fez puxar rapidamente sua mão.
As flores desapareceram tão de repente quanto surgiram.
— Lembre-se — a voz de Delilah ecoou atrás dela —, não deixe
que suas emoções interfiram.
A princesa se virou para a meio-bruxa, e pegou-a com um sorriso
gigante no rosto. E culpou sua habilidade recém-descoberta pelo leve
descompasso que aconteceu dentro de seu peito.
— Acha que... — Anya falou baixinho —, quero dizer, o que eu
faço com isso?
— A Terra é um dos elementos com mais possibilidades para
manipulação — comentou, e ela parecia quase tão empolgada quanto a
própria princesa. — Teremos muita coisa para testar depois que
descobrirmos até onde sua habilidade vai.
Sim, ela estava empolgada.
— Você gosta de ensinar. — Não foi uma pergunta.
Delilah corou.
— Gosto. — Ela baixou os olhos. Depois começou a andar pela
clareira, como se tentasse fugir do alcance da princesa. Era bonitinho. —
Sabe, quando se passa a vida inteira escondida por ser considerada uma
ameaça, você começa a se questionar se as pessoas não estão certas. Mesmo
conhecendo a história, mesmo sabendo como as coisas aconteceram... às
vezes, é difícil aceitar que todos simplesmente odeiam quem você é.
Ensinar é uma forma de me lembrar que estamos do lado certo. Que a
magia é boa. — Delilah apontou para a cerejeira na qual Anya criara as
flores. — Como aquilo pode ser algo ruim?
Anya foi surpreendida pela sinceridade dela, que costumava
respondê-la com frases curtas e debochadas.
— Entendo — disse por fim.
— E de qualquer forma — A mulher voltou a encará-la, com o rosto
levemente inclinado para baixo. —, é sempre fascinante ver o olhar dos
conjuradores descobrindo o que podem fazer. Você não têm ideia da
expressão que tinha no rosto.
Mas apesar do rosto tingido de vermelho, as palavras que saíram da
boca da princesa foram:
— Quer dizer que estava fascinada com o meu rosto?
Por todas as Sete, o que foi aquilo?
Os lábios em formato de coração de Delilah tremeram pelo sorriso
que ela tentava conter.
— Que tal tentar algo diferente? — A meio-bruxa mudou de
assunto. Depois deu um passo para trás, abrindo espaço para a princesa.
Anya encarou as próprias mãos, refletindo sobre o que poderia fazer.
E se surpreendeu quando a magia pareceu respondê-la. O formigamento
transformou-se em um pensamento.
A princesa ajoelhou-se na terra, sentando-se sobre os tornozelos.
Então, fechou os olhos e pousou as duas mãos no chão. As pedrinhas por
entre a terra pinicavam suas palmas, mas ela as pressionou com mais força
contra o solo mesmo assim. Deixou a magia fervilhante sair, cravando suas
raízes no solo. Enterrando-se, espalhando e, por fim, brotando.
Silja estava certa, o aroma doce não existia mais. No entanto, havia
um novo perfume em seu entorno. Um perfume que ela reconheceu no
mesmo instante.
Mesmo com os olhos fechados, Anya sorriu. Sorriu e conseguiu
visualizar as lavandas que sabia terem brotado à sua frente.
Ela as encarou.
Arfou ao ver a terra, antes intocada, não somente abrigar os
pequenos galhinhos verdes e roxos. Ela havia se alterado, mudado sua
composição para que se tornasse o solo perfeito para a planta.
As lavandas começaram a ganhar vida, desabrochando e crescendo,
bonitas e brilhantes.
Exatamente como sua mãe tanto amava.
Exatamente como aquelas que as duas viam pelas janelas do salão
de música no que parecia ser séculos atrás.
O perfume das pétalas disformes espiralava ao redor da princesa,
trazendo as lembranças de Elysia. Trazendo a sensação de casa que
preenchia seu peito quando deitava a cabeça sobre o ombro da mãe, quando
era envolvida pelos seus abraços.
O aroma era como palavras de afeto que acariciavam seu rosto,
enchendo seu coração de amor.
Anya fechou os olhos outra vez, se entregando aos pensamentos.
Aquelas flores sempre seriam um pedaço de sua mãe, uma lembrança de
sua vida antiga.
Uma que não voltaria nunca mais.
Não, nada jamais seria igual.
Elysia não tornaria a ver suas flores preferidas, tampouco teria a
chance de ver sua amada filha se tornar a mulher que tanto se esforçara para
criar.
E Elysia nunca saberia que a princesa lutaria para honrar sua
família, para salvar o reino que ela tanto amava e para concertar os erros
que jamais saberia que foram cometidos.
Sua mãe não a veria com a Coroa sobre a cabeça.
Com os olhos fechados com força, sentiu as lágrimas escorrerem.
Elas lhe queimavam a pele conforme faziam seu caminho.
O perfume de lavanda foi abafado pelo aroma de terra molhada
durante uma tempestade, ainda que a princesa não sentisse chuva alguma
lhe atingir. Tudo pareceu apertado demais, pequeno demais, claustrofóbico
demais, e ela implorou por um pouco de ar.
O vento que a atingiu veio com tanta força que foi como uma
navalha riscando seu rosto.
Não importava.
Não importava, pois ela não tinha mais nada.
Alguém parecia chamar seu nome, no entanto, era algo distante — o
vento também abafava aquela voz.
Seus cabelos batiam contra sua pele como chicotes, e o mundo
girava e girava. Seu nome ainda ressoava em algum lugar. Mas ela não
queria abrir os olhos.
Não queria ver.
Não quer ver, não queria ver, não queria ver.
— ANYA!
Mãos seguraram seus ombros com força e o aroma de cedro e mel
atingiu seu nariz.
A princesa abriu os olhos.
Delilah estava ali.
Com a respiração acelerada, a meio-bruxa estava congelada diante
dela, encarando-a de olhos arregalados. Havia terra no seu rosto, gravetos
nos cabelos cor-de-rosa.
Estava tão perto.
Tão perto.
Delilah repetiu o nome da princesa de novo e de novo e de novo.
Respire, conseguiu ouvir.
Conte até dez como ensinei a você.
Anya obedeceu, sentindo seu coração disparado se acalmar
lentamente.
— Isso. — Delilah se aproximou ainda mais, e seus rostos ficaram
tão próximos que a respiração dela balançava os cabelos da princesa. —
Está tudo bem.
— O que aconteceu? — Sua garganta estava seca, as palavras saindo
como arranhões.
— Você deixou que seus pensamentos tomassem conta. — Não
havia crítica no comentário.
— Sinto muito.
— Ei, está tudo bem. É normal. — Só então, Delilah pareceu
perceber o quão perto estavam uma da outra. Colocando mais uma vez os
ombros para trás, ela se afastou. — Mas acho melhor ficarmos longe de
lavandas por um tempo.
— Sim — Anya sussurrou.
Estava atordoada demais para dizer qualquer coisa além disso. Seu
corpo tremia e ela estava... exausta.
A princesa olhou ao seu redor e arfou.
Havia pedaços de raízes retorcidas despontando da terra, caídas,
quebradas. O solo revirado se cobrira de buracos por todos os lados em
torno dela.
As lavandas jaziam alguns metros à frente.
Inconscientemente, levou a mão até a adaga em sua cintura, como se
a arma pudesse protegê-la da flor que ria de sua cara.
Fechou os olhos outra vez, respirando fundo.
— O que foi que eu fiz?
— Você... hum... tem uma habilidade muito boa para usar seus
poderes ao mesmo tempo — a meio-bruxa respondeu. E seu tom
preocupado começou a se suavizar, voltar para seu estado normal.
— Ah?
— Você puxou raízes que dançavam como serpentes e, quando
tentei me aproximar, usou o vento para que me impedisse de chegar até
você.
— Desculpa — sussurrou.
— Está tudo bem, estou acostumada a lidar com magia fora de
controle. — Delilah se levantou, fazendo a princesa perceber que ela
mesma ainda estava ajoelhada sobre a terra. — Vamos ter que aumentar a
frequência com que meditamos.
A garota apenas assentiu.
Não queria que a meio-bruxa perguntasse no que estava pensando
quando fez aquilo. Não queria ter que falar sobre sua mãe com ela. Não
queria falar sobre sua mãe com ninguém.
A pergunta estava estampada no rosto da mulher, mas quando abriu
a boca, o que disse era completamente diferente.
— Acho que podemos parar por hoje. Sei que está cedo, mas
podemos tentar de novo amanhã. — Delilah olhou por sobre o ombro da
princesa. — Se quiser, podemos voltar em minha casa para... não sei...
tomar café. Você toma café? Se não toma, pode ser outra coisa.
E apesar de tudo o que aconteceu, Anya teve vontade de rir. Por
alguma razão, uma meio-bruxa descendente de uma criatura mística milenar
estava tagarelando nervosa, enquanto a convidava para um café.
Era, no mínimo, bonitinho.
E não com pouca surpresa, Anya se pegou tentada a aceitar.
Desesperada por fazer alguma coisa minimante normal, que não envolvesse
lembranças ruins ou tempestades de vento.
Mas quando respondeu, as palavras não eram aquelas que tinha
imaginado.
— Prometi à Silja que a ajudaria com algum... vestido que ela está
fazendo. — Encolheu os ombros, como se pedisse desculpas. — Mas, quem
sabe, amanhã.
Não tinha certeza de por que havia negado o convite. No entanto, ao
fazê-lo, soube que era a coisa certa.
— É, quem sabe amanhã — repetiu Delilah, mexendo-se
desconfortável.
Anya se despediu e foi embora, seus pensamentos transitando entre
a misteriosa adaga em sua cintura, saudades de sua mãe e no sorriso que
Delilah abrira quando ela fez as sakuras surgirem.
Uma mistura estranha de sentimentos, concluiu.
Mas não eram tão ruins assim.
A princesa estava estranha naquela noite.
Silja não esperava vê-la tão cedo em casa e, quando a garota
adentrou a cozinha do chalé, já percebeu que algo estava errado. Ela tinha
um sorriso desenhado no rosto, mas os olhos estavam tristes.
A curandeira quis perguntar o que aconteceu no treino, se Delilah,
de alguma forma, havia exagerado em suas cobranças ou reclamações,
porém desistiu. Não parecia ser isso.
E duvidava que a mulher liberaria a princesa por algo bobo.
Silja guardou sua curiosidade para si, só ela sabia o quanto suas
próprias aflições vinham incomodando-a — e que as Sete a poupassem de
ter de responder perguntas sobre isso.
Daria tempo à princesa.
Anya já havia revelado coisas muito importantes sobre seu passado.
Quando estivesse pronta, falaria sobre o que tinha lhe acontecido.
E quando a garota perguntou se poderia se juntar a ela e Farah para
ajudar com o vestido, Silja apenas disse que seria ótimo, que estavam
precisando.
Passaram boas horas mexendo no tecido macio e fazendo piadas
umas com as outras para aliviar a tensão. Silja subiu em uma das cadeiras,
fingindo que era a única forma de conseguir tirar as medidas da princesa, já
que bons 15cm de altura as separavam.
Elas riram até chorar, mas ainda assim, uma sombra pairava nos
olhos de Anya. E quando encerraram a noite e as três se preparavam para
dormir, a garota pousou a mão no ombro da curandeira e agradeceu.
Não deu motivos, não deu explicações.
Agradeceu e entrou em seu quarto.
Aquilo entristeceu Silja mais do que qualquer coisa. Pois tinha sido
ela a virar a vida da princesa de cabeça para baixo. Ela, seu irmão, seus
amigos.
E não importava o que os tinha levado a fazer isso, sempre haveria
uma pontada de culpa em seu coração. Uma voz martelando em seus
pensamentos, dizendo que o bem que fizeram para a princesa não anulava o
sofrimento. Que era como dizer que seus pais estavam certos quando
denunciaram Alexzander, pois isso tinha levado os irmãos até Havenmill.
Não era uma comparação justa, sabia disso. Mas o sentimento
permanecia.
E foi para fugir dos pensamentos que ameaçavam atacá-la que a
curandeira parou em frente à porta do irmão, como fizera mil vezes
naqueles primeiros meses na cidade.
Batendo suavemente, não esperou até que ele respondesse para
entrar.
— Posso dormir com você? — sussurrou. E não precisou dizer mais
nada para que ele entendesse que algo a incomodava.
Alexzander sorriu, abriu espaço na cama e estendeu a mão para que
ela a pegasse.
De repente, Silja tinha nove anos de novo e seu irmão era sua única
certeza.

Já era meio da tarde do dia mais quente que a princesa já presenciara


em Havenmill — e talvez em toda a sua vida, afinal, Duhn não era
conhecida por ser um território de temperaturas altas.
Tivera uma manhã excepcionalmente estranha. Delilah parecia
distante — mais do que lhe era de costume —, e Anya só poderia rezar para
que não houvesse relação alguma com o café que tinha negado no dia
anterior.
Claro que não, pensou.
Estava dando créditos demais a própria companhia.
Delilah só estava tentando ser legal com ela depois do desastre que
ocorreu enquanto praticava quando a convidou.
De toda forma, quando a princesa chegou na clareira — já um tanto
irritada com o calor —, a meio-bruxa a aguardava sem sorrisos e com um
vinco entre as sobrancelhas.
Vinco este que ainda estava ali, meio coberto pelos cabelos cor de
rosa que lhe caíam sobre o rosto.
— Estou cansada das flores — Anya disse. — Quero dizer, elas são
lindas. Mas não vejo como isso me ajudará em relação a Benjamin.
Vinha pensando nisso desde que acordou.
Em como aqueles poderes recém-descobertos poderiam ser
realmente úteis quando o confronto chegasse.
— Mais importante do que o poder que você carrega, princesa, é
saber como usá-lo. — Delilah esboçou o primeiro sorriso do dia. — Você
precisa ser criativa.
Anya olhou ao seu redor, tentando encontrar o sentido daquelas
palavras entre as raízes retorcidas e o solo de terra revirada. Não havia nada
ali, no entanto, e ela suspirou alto.
— E qual a relação disso com as flores?
— Diretamente? Nenhuma. Mas preciso ter certeza de que consegue
manipular o básico antes de ensiná-la como usar isso para atacar ou se
defender.
Delilah não precisou dizer mais do que isso para que a princesa
entendesse. Ela pensou na mesma hora na confusão que seria perder o
controle durante... bom, o que quer que a meio-bruxa considerasse como
ataque.
— Isso significa que ficarei criando jardins e redemoinhos de vento
por mais alguns dias? — brincou, numa esperança de cortar o clima
estranho que se desenrolava entre as duas.
— Isso significa — a mulher balançou a cabeça, comprimindo os
lábios em um sorriso contrariado — que manteremos os treinos básicos
todas as manhãs, mas podemos ver um pouco sobre dinâmicas mais
ofensivas na parte da tarde.
Anya sentiu seu rosto se iluminar.
— Se — Delilah prosseguiu — você se comportar.
A princesa não sabia que sentira falta do tom sarcástico dela até
ouvi-lo outra vez. Levando as duas mãos ao peito, abriu a boca em uma
indignação fingida. Dando um passo em direção à meio-bruxa, ergueu uma
sobrancelha ao dizer:
— Não se esqueça que está falando com uma futura Rainha. —
Certificou-se de que as palavras carregassem a maior carga de superioridade
possível.
— Nem por um segundo, Princesa — Delilah respondeu,
caminhando em torno dela. E a frase seguinte foi dita tão perto que seus
cabelos chegaram a balançar. — Quem sabe você não deva usar suas raízes
para fazer uma Coroa? Não tem uma dessas para você aqui embaixo.
E ela conseguiu ouvir o sorriso da mulher se abrir por completo.
Um segundo depois, Anya sentiu o solo em torno de seus pés se
revirar. Não, ele estava chacoalhando. Com movimentos ágeis, Delilah se
afastou da princesa momentos antes que um tremor tomasse conta do
espaço no qual as duas estiveram.
A garota já leu sobre terremotos, mas sabia que Duhn nunca
presenciara um. E duvidava que aquelas forças da terra agissem em um raio
de apenas um metro.
Caindo de joelhos, a princesa soltou um gemido ao ter as palmas
arranhadas pelas pequenas pedrinhas no solo. E tão de repente quanto veio,
o tremor desapareceu.
Deixando apenas uma Delilah de braços cruzados e sobrancelha
erguida olhando para ela.
— Como eu disse — a meio-bruxa bateu duas vezes com o dedo na
própria têmpora —, criatividade.
Anya não tinha certeza se estava furiosa ou admirada com a
coragem. Havia apenas uma pessoa que ousava provocá-la dessa forma e,
normalmente, o tratamento pouco especial a divertia.
Mas Conan a conhecia há anos, Delilah não completara nem ao
menos uma semana em sua vida.
Tirando os cabelos do rosto, a princesa ergueu o nariz ao encarar a
mulher e dizer:
— Espero que saiba que isso terá consequências.
— Está me ameaçando, Princesa?
Bufando, a garota espalmou as mãos e começou a se levantar. Sentia
os olhos de Delilah sobre si, mas ignorou-a até que estivesse de pé.
E quando finalmente encarou-a, quase foi colocada de joelhos mais
uma vez. Não por magia, mas pelo sorriso dela.
Pelas Sete, quando foi que Delilah ficou tão bonita?
Ela sempre foi bonita, pensou.
Mas naquele momento... ela parecia estar parada no exato ponto
onde o falso sol de Havenmill reproduzia sua luz. O brilho dourado
despontava por trás de suas mechas rosadas, fazendo-a parecer com o
próprio amanhecer, e o sorriso que se formara em seus lábios...
Anya pigarreou, afastando aqueles pensamentos que, para ser
honesta, nem sabia de onde tinham vindo.
— Não, eu não a estou ameaçando — disse secamente.
— Uma pena. — Delilah riu. — Eu adoraria ver o que você pode
fazer.
E a princesa não saberia dizer se foi o tom que a meio-bruxa usou,
ou se foram os pensamentos que ela própria tivera há alguns instantes, mas
o comentário fez com que todo o seu corpo se aquecesse. Cada centímetro
de pele, como se houvesse uma chama acessa dentro dela.
A sensação logo foi substituída por outra. Uma necessidade de
provar à Delilah do que ela era capaz. De mostrar que ela não era apenas
uma garota tola que conseguia criar algumas flores.
Estava ficando louca. Teve certeza disso um segundo depois quando
abriu as mãos que nem percebera estarem cerradas em punho, e cravou as
raízes de seu poder no solo.
Anya não sabia como causar um terremoto, não entendia como eles
funcionavam, no entanto, havia algo que já aprendera a fazer. E quando
gavinhas despontaram ao redor de Delilah, a princesa as fez resistentes
como cipós e maleáveis como heras.
Subiram rapidamente em torno das pernas da meio-bruxa,
impedindo que ela saísse do lugar e, logo, outras raízes cortaram a terra
como chicotes, prendendo-lhe os pulsos.
Os olhos de Delilah brilharam, e ela afastou os lábios em surpresa e
um toque de divertimento. Como era possível que a mulher nunca se
irritasse?
Mas logo ela entendeu o motivo.
A luz que contornava o corpo da meio-bruxa começou a se derramar
por sobre sua pele, entrelaçando-se e formando uma grande rede.
Um escudo protetor.
E conforme as raízes douradas tocavam as amarras que a prendiam,
as heras pareciam queimar. Queimavam e se soltavam, murchando de volta
para o lugar de onde vieram.
Em poucos segundos, já não restava nada. E Delilah nem ao menos
piscou.
— Boa tentativa — zombou.
— Não é justo — a princesa reclamou. — Eu não tenho um escudo
desses para me defender.
— E é por isso que, quando se é um Elementarista da terra, você
precisa conhecer bem os tipos de solo, as plantas. Das mais sensíveis até as
mais fortes. — Delilah tinham um tom mais sério agora, e Anya soube que
eram informações importantes. — O que você fez aqui foi inteligente. E
rápido. No entanto, você precisa conhecer seu oponente, descobrir seus
pontos fracos e fortes. O que funciona para um, pode não funcionar para
outro. E você pode aprender a erguer o próprio escudo usando exatamente a
ideia que teve para me atacar.
— Um escudo de raízes — Anya disse, tentando visualizar a
imagem em sua cabeça.
Talvez ela nunca deixasse de se surpreender com até onde a magia
era capaz de chegar.
— Sim. — Delilah voltou a sorrir. — Saber improvisar é tão
importante quanto ser poderosa.
O peito da princesa pesou com aquelas palavras, que a levaram
direto para outro lugar. Com outra pessoa.
— Pode salvar minha vida. — Sorriu fracamente.
— O quê? — A meio-bruxa ergueu uma sobrancelha.
Mas ela não queria ter de explicar, então apenas deu de ombros.
— Esqueça.

Delilah jamais admitiria o quanto estava se divertindo irritando a


princesa.
Tinha rido mais naquela tarde do que costumava rir eu uma semana
inteira. Mas era impossível manter a expressão séria ao vê-la tão
determinada em ultrapassar seus escudos.
Quando chegou na clareira naquela manhã, a meio-bruxa estava
constrangida. Não sabia exatamente o motivo pelo qual convidara a
princesa para que tomassem um café juntas, mas entendia menos ainda por
que a incomodava tanto que Anya tivesse negado.
De qualquer forma, enquanto treinavam, qualquer resquício de
embaraço desapareceu por completo.
— Me ataque — disse.
— Não vou cair nessa outra vez — a princesa resmungou.
E Delilah apenas riu. Já havia se defendido das formas mais simples
e tolas possíveis. Soprara ventos carregados de terra no rosto da garota,
chicoteara raízes sob seus pés para derrubá-la, e a cada derrota, Anya se
levantava mais furiosa, mais determinada, mais sedenta para vencê-la.
Era viciante de assistir.
Ultrapassou limites que não haveria como voltar, mas via nos olhos
da princesa que ela estava mais irritada consigo mesma por não ser rápida o
bastante.
— Vamos, Princesa. Aproveite o que a terra tem a lhe oferecer e me
ataque. — E ergueu uma sobrancelha.
Acompanhou silenciosamente com o olhar enquanto Anya puxava
os fios de cabelo grudados em seu rosto e os unia ao resto em uma longa
trança. Observou como alguns cachos rebeldes ainda escapavam e
rodopiavam em torno do rosto anguloso, agora sujo de terra. E perdeu
muito tempo observando o dourado que forjava em ouro aqueles olhos
espertos demais para o próprio bem.
Tempo este que acabou cobrando seu preço.
As raízes que ela esperava que a princesa usasse não vieram e, ao
invés disso, uma muralha de vento se ergueu ao seu entorno. Girando cada
vez mais rápido, aquele redemoinho particular trouxe consigo terra e
pedregulhos, transformando-se em uma parede sólida o suficiente para que
Delilah não fosse capaz de visualizar a garota à sua frente. Ou às suas
costas. Não haveria como saber.
Uma gargalhada escapou de sua garganta.
A princesa era boa nisso.
Mas havia algo que era capaz de fazer que transformava a falta
contato visual em nada além de um pequeno inconveniente.
Projetando-se para além da muralha, conseguia saber exatamente
onde Anya se encontrava.
Esperou alguns segundos, deixando que ela aproveitasse o sabor da
breve vitória, e atacou.
Até aquele momento, havia apenas se defendido. No entanto, estava
curiosa para saber como a princesa reagiria. E quando suas próprias heras
prenderam as mãos da princesa, Delilah sentiu o vento vacilar.
Não, pensou, você sabe que consegue lidar com isso.
Era apenas o terceiro dia de treino da garota, e já estava claro que
ela seria uma excelente conjuradora.
Tinha se deixado levar pelas emoções algumas vezes, sim, mas os
resultados disso só comprovavam o potencial que sua magia tinha. O quão
bem ela se desenvolvia dentro da princesa.
Se bem treinada, Anya seria uma líder excepcional.
E Delilah poderia apenas rezar para que tivesse tempo o suficiente
para prepará-la.
A meio-bruxa puxou suas heras, tentando desestabilizar a garota. E
para sua surpresa, ela reagiu.
Ela deixou que o vento derrubasse toda a terra que carregava
consigo, e então puxou-o para si. Não, para o solo. E Delilah sabia que, na
velocidade certa, vendavais eram capazes de arrancar até a mais resistente
das árvores.
Anya também sabia.
E a meio-bruxa pôde apenas observar perplexa, enquanto suas
amarras eram sugadas violentamente do chão e arremessadas para o outro
lado da clareira.
Silêncio tomou conta da floresta. As cerejeiras congelaram em meio
à sua dança típica e observavam as duas mulheres paradas ali.
A mulher contemplava o sorriso mais sincero que já vira no rosto da
princesa, sabendo que ele refletia o que ela própria trazia no rosto.
Impressionante.
Criativo.
Ágil.
Tudo o que ela mais estimava quando se tratava de magia.
— Eu consegui — Anya sussurrou. E correu em sua direção,
fazendo Delilah pensar que ela a abraçaria.
Estacou quando apenas dois passos as separavam, parecendo
perceber o que estava prestes a fazer. E ficou ali, de olhos quase tão
arregalados quanto seu sorriso, com a postura ereta demais e as unhas
cravadas em suas palmas.
Encarava Delilah com tanta intensidade, que ela sentiu sua pele se
aquecer.
Que as Sete tenham pena de mim, pensou.
— Sim. — Conseguiu dizer, soltando todo o ar que prendia — Você
conseguiu.
Elas não se abraçaram, mas por qualquer motivo que fosse, a meio-
bruxa se pegou pensando até tarde da noite em qual seria a sensação de
fazê-lo.
— Não acredito que fizemos isso.
Farah escorou-se na madeira áspera da parede e deixou seu corpo
escorregar até o chão. Estava cansada demais para andar até uma das
cadeiras, cansada demais para fazer qualquer coisa além de contemplar a
cozinha do chalé.
Ela tinha esquecido como Havenmill conseguia ser quente, e se
perguntava se o calor excessivo era algum tipo de punição por viverem ali
se escondendo. E depois de um dia inteiro entocadas costurando, a sensação
de missão cumprida foi o suficiente para que a artesã decidisse que se sentar
à mesa era algo superestimado.
Não eram costureiras profissionais, nem costureiras amadoras, para
falar a verdade. E a quantidade de tecido desperdiçado e agulhas quebradas
seria o suficiente para produzir outro vestido quase igual. Mas fazia muitos
dias que ela não ria daquela maneira.
Não tinha entendido quando Silja insistiu que elas mesmas fizessem
aquilo. Parecia tão... fútil.
No entanto, depois de passar dois dias inteiros pensando em contas e
bordados dourados, tecidos desfiados e tesouras fugitivas, estava agradecida
que sua amiga tivera aquela ideia.
A artesã não teve tempo para pensar no peso que as próximas
semanas teriam, ou no quanto as coisas poderiam dar errado. Nem sobre o
sangue de seu pai espalhado em um piso de mármore.
Não.
Sua atenção estava naquele vestido. Naquela que era a primeira
coisa dando certo para ela em um bom tempo. Uma pequena vitória
particular.
Aquele vestido e a cerimônia do Braan, que não presenciava desde
pequena.
Farah não tivera a sua celebração da magia.
Não houve tempo.
Mal teve a chance de aprender o controle sobre seu poder antes de ir
embora. Antes de ser tirada do que conhecia como casa e ser levada para o
desconhecido, onde tinha de se esconder ainda mais.
— Eu disse que tudo acabaria bem — Silja riu fracamente,
mostrando que estava tão exausta quanto ela.
— Agora preciso descobrir o que eu vou usar amanhã. — Ela fez
uma careta. — Já que estou vivendo das roupas que Delilah tinha para me
emprestar, não faço ideia do que vestir.
— As roupas dela ficam bem melhor em você. — A curandeira deu
de ombros. — Qualquer coisa sempre vai ficar melhor em você.
Isso lhe roubou um sorriso.
— Não seja exagerada, Silja.
— Não estou sendo! Você é a garota mais bonita desse lugar e,
provavelmente, desse reino inteiro.
Revirando os olhos, ela atirou um beijo para a amiga.
— Se eu não estivesse tão exausta, ia até aí lhe dar um beijo decente
— brincou.
— Não tem problema, vai ficar me devendo.
E com isso, riram por mais uns cinco minutos.
Farah não conseguiu evitar de pensar em como teria sido crescer
com aquela amizade. Silja chegara em Havenmill logo depois que ela
mesma partira, e apenas se conheceram alguns anos mais tarde, quando
Magmar sentiu-se seguro o suficiente para levá-la consigo até ali.
— No que está pensando? — a curandeira perguntou.
— No quanto senti falta desse lugar. — Encostou a cabeça na parede
atrás de si e fechou os olhos. — E de vocês.
Lá fora, no entardecer alaranjado, as risadas das crianças se
espalhavam como melodia para o cantarolar dos adultos ocupados com as
preparações para o Braan. E, em breve, as ruas estariam cobertas de luzes
douradas e tochas cravadas no solo, que acompanhariam todo o caminho até
o altar que ela se imaginara tantas e tantas vezes subindo.
— Está em casa agora. — Ouviu a curandeira dizer.
— Sim. Finalmente estou.
Passadas apressadas soaram na varanda e a porta do chalé se abriu
segundos depois.
— Sabiam que estão pendurando fitas coloridas por toda a praça
central? — Anya disse, abismada.
— Bem-vinda a Havenmill — Silja bufou.
A princesa estava diferente.
Não olhava mais para a cidade com desagrado e o coração da artesã
se enchia de alívio por isso. Sempre tivera medo de que, se Anya
descobrisse quem ela realmente era, Farah perderia sua melhor amiga.
Mas ali estavam elas. Duas conjuradoras na cidade que se escondeu
por quatro séculos da Coroa, prestes a participar de uma celebração milenar.
— Você parece de bom humor — comentou.
— O treinamento foi... intenso — a princesa respondeu.
— E o que Delilah tinha de tão intenso para ensinar? — Silja
zombou.
Mas o vermelho vivo que cobriu o rosto da garota pegou as duas de
surpresa, e Farah trocou um olhar questionador com a curandeira — que
deu de ombros.
— Como jogar terra no meu rosto. — Anya pigarreou, apontando
para a pele coberta de sujeira.
— Posso perceber isso. — A artesã riu. —Você chega aqui todos os
dias parecendo que estava brincando na pracinha com as crianças.
— E Delilah é o valentão que incomoda todo mundo — Silja disse,
com o rosto tão sério que demorou alguns segundos para que todas
percebessem que ela estava brincando.
E enquanto riam, tanto que a barriga de Farah chegou a doer,
Alexzander entrou na cozinha. Ele olhava para o chão e apenas murmurou
alguns cumprimentos, seguindo apressado escada acima.
A batida da porta de seu quarto fez as garotas pularem.
— O que deu nele? — Anya indagou.
E Farah repreendeu o próprio coração por se apertar com aquilo.
Não era como se Alexzander já tivesse percebido que ela não tinha os
mesmos treze anos de quando se conheceram. Não era como se já tivesse
reparado os sentimentos que ela nutria por ele desde... bem, sempre.
— Não faço ideia. — Silja franziu o cenho. — Ele parecia bem ao
sair de manhã.
— Deixem que vou lá ver — disse a artesã, antes que pudesse
controlar o impulso de sua paixonite ridícula.
Ninguém questionou suas palavras, tampouco pareceram perceber
que ela as tinha dito por ser uma grande tola.
A porta do rapaz estava fechada, e ela se deu alguns segundos para
respirar fundo antes de bater com os nós dos dedos. Um baque surdo
pareceu vir lá de dentro, seguido pelo ranger das molas de uma cama.
— Alex — disse —, deixe-me entrar, por favor.
Silêncio se instalou por tanto tempo que ela quase se virou as costas
e desceu, mas então, ele disse:
— Está destrancada.
Suspirando de alívio, Farah girou a maçaneta. E culpou o metal frio
demais pelo arrepio que cruzou seu corpo. Não o rapaz deitado na cama,
cujos cabelos castanhos estavam caídos sobre seu olhos cerrados.
— O que quer? — ele perguntou.
Mas apesar das palavras afiadas, seu tom foi suave. Alexzander
sempre falava de forma gentil com ela.
Os cachos compridos demais cobriam aquele rosto bonito de um
jeito que fazia Farah desejar esticar seus dedos e tocá-los, afastá-los dos
traços perfeitos que formavam suas feições.
Cerrou os punhos, como se isso evitasse que suas mãos agissem por
conta própria.
— Apenas saber o que aconteceu. — Forçou-se a dizer.
Ela se sentou no espaço da cama ao lado dele, encarando a porta
pela qual passara para evitar que o observasse tempo demais.
O quarto tinha o perfume dele, os lençóis nos quais repousava
também. As notas amargas do café que ele sempre bebia, adoçadas pelo
aroma dos livros que colecionava.
Viu o violão escorado em uma parede, e sorriu ao perceber que ele
ainda tocava.
Farah lhe trouxe uma música uma vez.
Escondera uma das partituras de Anya entre os babados de seu
vestido e a carregara até Havenmill, apenas para entregá-la a ele. Fora
completamente inútil, claro. A melodia era muito complexa para ser usada
no violão.
Ao menos, foi o que ele disse. A artesã não sabia tocar coisa
alguma.
— Não consigo nem olhar para eles — Alexzander sussurrou,
abrindo os olhos e virando o rosto para observá-la. — Estão tentando se
distrair, mas posso ver a preocupação em seus rostos. Estão apavorados pela
possibilidade de ter seu esconderijo exposto.
Uma ruga se formou no meio de sua testa, conforme ele se sentava
na cama.
— E eu não sei o que dizer a eles — continuou. — Não sei se o que
posso fazer será o suficiente, se qualquer coisa será o suficiente. Não temos
certeza de nada! Até onde sabemos, tudo isso pode acabar sendo em vão.
Ele soltou o ar pesadamente.
Estavam tão próximos agora que Farah conseguia ver cada detalhe
seu, até mesmo os primeiros fios brancos que começavam a surgir por entre
a barba por fazer. Era fácil esquecer os onze anos que os diferenciavam
quando aqueles olhos cor de oceano a observavam tão intensamente.
— Não será em vão — pegou-se dizendo. — Somos bons, e somos
fortes. Benjamin é apenas um. Vamos superar isso.
— Você é otimista demais para seu próprio bem — ele resmungou.
— E você é reclamão demais. — Ela deu um soco de leve no braço
dele.
Mais alguns minutos de silêncio se estendeu entre os dois, conforme
a tensão do ambiente foi se dissolvendo.
— Vou cuidar de você. — Ele foi o primeiro a voltar a falar.
— Ah?
— Vou cuidar de você — repetiu. — Não pense nem por um único
segundo que está sozinha.
E Farah precisou desviar os olhos, sentindo a pele se aquecer. Sabia
o que ele queria dizer, sabia que seu coração acelerado era estúpido e vivia
em um mundo de fantasias. Mas ainda assim, ela abriu um sorriso gigante
quando respondeu:
— Eu sei.
— Você fez o quê? — Silja gritou.
E Anya estava rindo.
Sentia o rosto corado ao contar para a garota sobre seu dia de treino.
Sobre todas as derrotas vergonhosas, como sentira raiva e frustração, até
que...
— Nem eu mesma sei o que aconteceu — disse. — Em um
momento, eu estava tremendo por ver que Delilah estava conseguindo me
atacar e, no outro, a ideia de como me defender simplesmente surgiu.
— Isso foi genial. — A curandeira arregalou os olhos. — Delilah
deve ter ficado furiosa.
— Ela pareceu satisfeita, na verdade.
Pareceu a coisa errada a dizer, pois o olhar surpreso de sua amiga se
transformou em uma careta inquisitiva.
— Está me dizendo que Delilah, a meio-bruxa, neta de Verena, a
segunda criatura mais ranzinza que eu já vi em toda a minha vida, ficou
satisfeita ao ser derrotada em um treino?
A princesa se sentiu intimidada.
— Bom, ela não estava dando pulinhos de alegria — retrucou —,
mas pareceu contente ao me ver reagindo ao seu ataque.
E Anya sorriu ao pensar naqueles breves segundos, logo depois
disso. Quando o impulso a fez correr até Delilah para comemorar e, então,
congelou.
Suas palmas ainda ardiam devido à força com que as apertara. E
culpava a euforia da situação pelo coração acelerado.
Mas a forma como a mulher a olhou naquele momento... Sim,
Delilah estava satisfeita. Parecia até mesmo orgulhosa. E Anya guardaria
apenas para si a forma como aqueles olhos verdes brilharam para ela.
Silja arfou diante de seu silêncio repentino.
— Você gosta dela!
— O quê? — Foi a vez da princesa gritar.
— Pelas Sete! — A curandeira gargalhou. — Você gosta mesmo
dela!
— Não sei do que você está falando! — retrucou, sentindo o rosto
arder.
Mas ela sabia.
Ou, ao menos, desconfiava.
Desconfiava daquele nervosismo que sentia quando os olhos da
meio-bruxa a observavam. Da corrente elétrica que atravessava seu corpo
quando estavam próximas demais. E da simples lembrança do aroma de
cedro e mel que esboçava um sorriso em seu rosto.
E junto com a imagem de Delilah rindo para ela, também guardaria
aquela sensação apenas para si.
O tempo está passando rápido demais, Delilah pensava, virando sua
segunda xícara de café.
Já fazia sete dias desde que a princesa estava em Havenmill. Sete
dias que mudaram tudo. E o prazo que tinham insistia em se aproximar com
uma velocidade alarmante.
Cinco semanas.
Estranhamente, não era isso que a estava deixando nervosa naquele
momento. Era a cerimônia que teria de conduzir em algumas horas. E
enquanto a meio-bruxa contemplava a cozinha vazia, se perguntava por que
estava assim, mesmo depois de ter feito aquilo dezenas de vezes.
Ainda tinha algum tempo até que precisasse deixar seu chalé, mas as
conversas animadas que entravam pela janela diziam que a cidade já estava
em alvoroço. Que já se reuniam na praça central e encaminhavam os
últimos preparativos.
Estavam empolgados. E mereciam isso.
Delilah se perguntava quando Verena chegaria. E como contaria a
ela que se desfizera de uma das adagas que eram de sua responsabilidade
para proteger.
Anya não a trouxera consigo no treino do dia anterior, o que era um
certo alívio para a meio-bruxa. Duvidava que alguém associasse a lâmina
junto ao quadril da princesa àquelas que tinha em seu chalé, mas fofocas
corriam com rapidez na cidade. Se chegasse nos ouvidos da Primordial, ela
ligaria os pontos.
Mas apesar de todas essas preocupações, nenhuma delas era
responsável por Delilah arrastando sua cadeira e começando a andar de um
lado para o outro pela cozinha.
Não.
O motivo era o mesmo que a fizera conferir infinitas vezes o estado
do vestido que ela sabia estar perfeito. O motivo que a levara a trançar a
lateral esquerda de seus cabelos e delinear os olhos verdes grandes demais.
Sentiu-se ridícula alisando, com os dedos levemente trêmulos, a
roupa que sabia não trazer marca alguma.
Estava agindo como uma tola. Preocupada com algo que não
passava de um delírio, vivendo apenas em sua própria cabeça. Nada daquilo
era real.
Não poderia ser.
Poderia?
E até onde importava, Delilah não seria ela mesma naquela noite.
Não seria ninguém. Apenas um instrumento nas mãos das Sete, para que
abençoasse o novo ciclo que tinha início na vida da princesa.
A meio-bruxa riu mesmo sem graça de nada. Houve um tempo em
que aquela cerimônia era um grande ritual. Antes da guerra, antes do
Tratado. Quando humanos e bruxas eram livres para compartilharem suas
vidas uns com os outros, e a magia fluía tranquila entre eles.
A união recebeu outro nome e outro significado. Deixou de ser o
momento em que duas almas se fundiam, e se transformou em uma
celebração simbólica. Passos semelhantes, palavras semelhantes, um peso e
um nome completamente diferentes.
Braan na língua antiga significava aquela que traz luz, pois a única
Primordial oferecendo suas bençãos naquela noite seria Verena. E assim que
a escuridão cobrisse cada centímetro de Havenmill, a magia teria sua
chance de brilhar.

Os pensamentos de Anya corriam através do mundo há muitos


minutos. Tinha as mãos apoiadas sobre a madeira polida da cômoda, e os
olhos estavam tão arregalados que poderiam tocar o topo de sua cabeça. Do
mesmo jeito que estivera sete dias atrás, quando chegou ali.
Sete dias e sua história se transformou em uma mentira.
Sete dias e tudo o que amava simplesmente... deixou de existir.
Sete dias para que seus pais partissem.
Sete dias para que sua casa não mais fosse seu lar.
Sete dias para que família se tornasse inimigo.
Sete dias para que inimigos se tornassem aliados.
Todas as peças haviam tombado no tabuleiro, e rolavam pelas
bordas da mesa que era o mundo que Anya conhecia.
Mas ela estava decidida a dominar o novo jogo do qual foi obrigada
a participar. E naquela noite, faria mais um movimento em direção à vitória.
Sete dias.
Como eram as Sete bruxas.
E talvez fosse tudo uma grande coincidência, mas tinha deixado de
acreditar em coincidências há alguns dias.
Observou silenciosamente a cidade lá fora, as pessoas vestindo suas
melhores roupas e melhores sorrisos. As árvores adornadas com cordões
luminosos, enroscados em cada galho.
Foi assim o dia inteiro.
Tranquilo, leve.
Não houve treino e o almoço não passou de uma refeição solitária
— estavam todos ocupados demais com os últimos detalhes.
Anya não sabia o que esperar daquela cerimônia. A própria
Travessia não tinha sido nada parecida com qualquer coisa que tivesse
imaginado. Mas havia entendido que era algo importante.
Mesmo a Bruxa Primordial lhe disse que isso a faria... entender
melhor.
Vozes ressoaram na cozinha e a princesa suspirou. Precisava
terminar de se arrumar.
Fechou os discretos botões na saia de seu vestido enquanto
apreciava o trabalho de Farah e Silja.
O chiffon azul cobalto caía em leves camadas sobre as curvas bem
desenhadas de seu quadril, e duas faixas dele subiam por seu peito e se
prendiam atrás de seu pescoço. Era um corte simples, mas cada um de seus
detalhes era perfeito. Folhas de cedro douradas foram bordadas no decote,
descendo e se espalhando pela saia em fios brilhantes feitos de contas. Um
cinto segurava um sol feito de ouro bem no ponto onde as partes do decote
se encontravam.
Azul para o céu, dourado para a Luz e o sol para Verena, dissera
Silja.
Anya trançou seu cabelo como sempre fizera, deixando a maior
parte solta ao lado esquerdo do rosto, mas não gostou do resultado. Não era
mais a garota que escondia suas marcas.
Mas quando prendeu grossas mechas atrás da cabeça com uma
presilha de galhos retorcidos, deixando o rosto completamente exposto,
também não gostou de quem encontrou em seu reflexo.
Então, não tentou controlar seus cachos de forma alguma.
Deixou-os soltos, revoltos e selvagens como ela mesma se sentia.
Fechando as delicadas sandálias pretas, ela desceu para o primeiro
andar.
Alexzander a esperava ao pé da escada, como combinado, e abriu
um sorriso gigante quando a viu.
— Não acredito que elas conseguiram fazer esse vestido. — Ele riu.
— Vou fingir que esse elogio foi para mim — retrucou, alcançando
o último degrau.
— Eu chegaria nessa parte se você não tivesse me interrompido. —
Ele ergueu uma sobrancelha. — E sim, você está incrível, princesa.
E com isso, ele abaixou a cabeça, fazendo uma reverência
exagerada.
— Você também não está mal.
Era verdade. Alexzander vestia uma camisa cor de creme abotoada
até o alto de seu pescoço, as mangas largas se ajustavam nos punhos, e ele a
tinha presa dentro das calças pretas. Os cabelos compridos estavam
amarrados pela metade em um rabo de cavalo.
— Eu sei. — O rapaz gargalhou, então, estendeu seu braço para que
Anya o segurasse.
Um vento rodopiou pela cozinha, e todas as janelas do chalé se
fecharam ao mesmo tempo. Assim como no segundo andar.
— O que está acontecendo? — a princesa questionou, sentindo o
coração se acelerar.
— Está quase na hora.
Ela encarou a cozinha agora sem qualquer visão do mundo lá fora.
Não ouvia som algum. Nem das pessoas, nem dos animais, ou mesmo o
farfalhar das árvores.
Nada.
— Não pode mesmo me dizer como é esse negócio? — Era a
milésima vez que fazia aquela pergunta. Naquele dia.
— Eu contaria se me deixassem, sabe disso. — Ele encolheu os
ombros pedindo desculpas. — Mas você precisa sentir para entender. E
nada do que eu possa falar será o suficiente.
— O que quer dizer?
— Verá.
Anya bufou.
Sempre se surpreenderia com o quanto aquelas pessoas gostavam de
falar através de enigmas.
— Esta noite — Alexzander abriu um sorriso —, você se tornará
oficialmente uma de nós.
— E usarei isso pra fazer de vocês, os meus — respondeu, sorrindo
também.
O rapaz apertou seu braço com o dele.
— Pronta?
Respirando profundamente, a princesa fechou os olhos por alguns
segundos tentando se acalmar.
— Não — respondeu.
— Ótimo.
E a porta do chalé se abriu diante deles.
O crepúsculo que ela esperava encontrar não estava lá. Na verdade,
quase levou as mãos ao rosto para ter certeza de que abrira os olhos outra
vez.
A cidade com árvores iluminadas desaparecera, assim como as
pessoas, as fitas coloridas e as tochas cravadas na grama.
Não havia nada. Nem mesmo um único faixo de luz.
Até a claridade vinda do chalé parecia se dissolver no umbral da
porta, interrompendo seu caminho e não levando qualquer luminosidade
para o mundo além da varanda.
Havenmill estava coberta por uma escuridão densa, quase palpável,
conforme os dois seguiram hesitantes pela entrada do chalé. Ela não
conseguia enxergar nem mesmo onde pisava.
Exatamente como na visão que tivera no Refúgio.
Ouviu Alexzander se mexer ao seu lado e desvencilhar seu braço do
dela.
— Está tudo bem — ele sussurrou.
A porta atrás deles se fechou com um vento fantasma, levando
qualquer ponto de referência que lhe restava.
E quando o aroma da floresta a atingiu, mais forte do que nunca,
uma música começou a tocar.
Cada pequena parte de seu ser respondia à melodia, cada batida de
seu coração complementava o ritmo da canção que soava como uma
resposta para todas as perguntas do universo.
Seus ossos tremiam ao reverberar das palavras cantadas em uma
língua que Anya não conhecia.
E elas a acolheram de tal forma que nem mesmo o breu a assustava
mais.
Ela deu seu primeiro passo rumo ao desconhecido, e foi recebida
pelo sopro de uma brisa suave que a chamava para dançar. Sentiu o
primeiro degrau da varanda sob seus pés e não vacilou.
Não mais.
Seu vestido longo se fundira ao próprio vento e saía de seu caminho
conforme andava.
Perguntou-se quem seria capaz de tocar uma canção tão bela em
meio à completa escuridão, e desejou que qualquer indício de luz pudesse
iluminar a fonte daquela voz doce.
O último degrau chegou e Anya sentiu a grama roçar em seus
calcanhares. E ainda que não enxergasse nada, sorriu. Sorriu para o vento
que parecia abraçá-la, sorriu para o vazio que a envolvia.
Não sabia o que estava acontecendo, não sabia onde a luz tinha ido
parar, e chegou a questionar se estava mesmo em Havenmill. Mas quando
deu o passo seguinte, o primeiro completamente sobre o gramado, duas
tochas se acenderam.
Uma em cada lado da princesa, as chamas se ergueram imponentes,
ferozes. Tocando mais alto do que ela mesma era capaz. Elas tremeluziam e
balançavam, como se acompanhassem o ritmo da melodia.
Estavam tão próximas dela, que Anya conseguia sentir o calor que
emanavam. No entanto, o vento que ainda a conduzia, abria caminho em
meio a temperatura elevada e lhe mostrava por onde seguir.
Sua pulsação estava celerada, mas sensação era boa. Não estava
com medo. Era como se estivesse exatamente onde precisava, como se tudo
que havia acontecido a tivesse levado até ali, até aquele momento.
Não sabia de onde aquilo vinha, só sabia que parecia... certo.
A cada passo que dava, mais tochas se acendiam, sempre uma de
cada lado. E aos poucos, a escuridão foi dando espaço para a tímida luz do
fogo.
Os rostos começaram a aparecer ao seu redor.
Sim, ainda estava em Havenmill. E cada um de seus cidadãos lhe
fazia companhia. Não diziam nada, apenas sorriam e faziam uma curta
reverência conforme a princesa passava por eles.
Cada vez mais iluminada, a praça central começou a ganhar forma.
E ainda que boa parte do caminho se estendesse em noite diante dela, as
tochas deram a Anya o primeiro vislumbre de para onde ia. De quem a
esperava no topo do altar de madeira erguido adiante.
Quem cantava aquela canção extraordinária.
Delilah estava de olhos fechados.
O vestido branco descia em ondas até os pés descalços, marcado
apenas por um cinto grosso reluzindo em ouro. Mesmo sem alças, mangas
longas e largas prendiam-se com braçadeiras douradas, dançando com a
brisa ao som daquela melodia.
Era a coisa mais bonita que Anya já tinha visto na vida.
Mas não foi a fenda que se erguia na saia até o meio de sua coxa que
fez o coração da princesa disparar, ou as correntes atreladas em suas
delicadas tranças cor de alvorecer que atravessavam sua testa como uma
coroa.
Não.
Foram os olhos que se abriram naquele mesmo instante.
As duas esmeraldas que a encaravam com uma suavidade que
acabaria com guerras.
E ela sorria.
Pelas Sete, como sorria!
Ainda que sua voz reverberasse por cada canto da cidade, seu rosto
estava tranquilo. Imaculado.
Anya já não se lembrava dos outros. Não se lembrava do fogo ou do
vento, e chegou a se esquecer, durante alguns segundos, do porquê estava
ali. Apenas sorriu de volta.
Sorriu até estar diante do altar. Até perceber que percorrera todo o
caminho apenas olhando para ela.
E viu que não havia como chegar lá em cima, pois nenhuma escada
a aguardava ali.
O chão sob seus pés tremeu em resposta, trazendo galhos cobertos
de folhas verdes e gardênias, que se moldavam nos degraus que a levavam
até seu destino.
Enquanto a princesa subia, Delilah não desviou seu olhar uma única
vez. Estava cantando para ela, enquanto vinha em sua direção e estendia a
mão para ajudá-la naquele passo final.
Seu toque era tão quente e firme, tão acolhedor, que Anya teve a
sensação de que a seguiria até o fim do mundo se ela quisesse.
A canção chegava em seu ponto mais alto, a voz de Delilah subindo
e reverberando mais intensa do que nunca. Pedindo pela outra palma da
garota, envolveu suas duas mãos com uma faixa de tecido prateada e
translúcida, um véu que permitia e ao mesmo tempo bloqueava a visão do
que tinha do outro lado.
Foi quando a chuva começou a cair.
Não uma tempestade, mas uma garoa suave e refrescante que
acariciava e arrepiava sua pele. A água, no entanto, começou a, lentamente
apagar todas as tochas.
Até que Havenmill estivesse, outra vez, coberta pela escuridão.
A voz de Delilah ainda se erguia, e todos os rostos que já não
conseguia ver começaram a acompanhar as palavras que Anya desconhecia.
Mais e mais alto, até que mesmo a melodia fosse abafada pelo coro
entusiasmado.
Um pequeno ponto luminoso surgiu alguns passos atrás de Delilah,
e a princesa forçou os olhos para tentar reconhecer sua fonte em meio à
escuridão.
Então, a luz foi se expandindo, ganhando vida e crescendo para
todos os lados. E por trás daquele brilho estava Verena.
Parada nos limites do altar.
Era como se carregasse o sol em suas próprias mãos, e seus cabelos
alaranjados derramavam sua cor de volta ao mundo.
Se fez dia outra vez em Havenmill.
E conforme a canção ia se desfazendo, Delilah dava voltas e voltas
com a faixa prateada em torno de suas mãos, até que um nó simples e firme
selou suas palmas unidas no exato momento em que parou de cantar.
Verena se aproximou e tomou as mãos da princesa nas suas,
curvando-se até que sua testa tocasse nos dedos de Anya, sussurrando
palavras naquele estranho idioma.
Ela não sabia o que diziam, mas seu coração entendeu seu
significado.
Estava sendo abençoada, recebida pela Bruxa da Luz. Menos uma
princesa e mais uma deles.
Por alguma razão, a ideia não pareceu tão ruim.
E quando a bruxa se ergueu novamente, começou a falar:
— A escuridão, a luz, o fogo... — E a cada elemento citado,
chamas, vento, chuva e flores surgiam — Vida.
Ela apertou as mãos de Anya entre as suas.
Um arrepio percorreu cada centímetro do corpo da princesa quando
Delilah, parada ao lado da Bruxa Primordial, continuou o discurso:
— As mãos que forjaram o mundo, e enquanto as Sete abençoarem
a terra. De seus dedos fluíram a magia que rege tudo aquilo que existe, e
que agora também se derrama sobre você. — A voz de Delilah ecoou pela
praça central, mas ao mesmo tempo, as palavras pareciam sussurradas.
Suaves, envolventes, como uma canção de ninar. — É agora uma filha da
Luz, parte do Clã a quem deve jurar proteger. E por quem será protegida.
Ela parou de falar, e levou alguns segundos até que a princesa
entendesse que tinha de responder.
— Eu juro. — Tentou manter sua voz firme.
E quando seu juramento alcançou toda a praça, foi como se um raio
caísse sobre sua cabeça. Sua pele foi coberta por uma corrente elétrica,
pulsante. Sua magia se revirava dentro dela em comemoração. Seu coração
batia tão forte que tinha certeza de que as mulheres à sua frente o ouviam
também.
Verena e Delilah, ambas sorrindo, completaram sua prece em
uníssono.
— Seja bem-vinda, Anya Dahnasa, princesa herdeira da Coroa de
Duhn. Que a luz sempre ilumine seu caminho para casa.
A meio-bruxa pousou a testa nas mãos da princesa como Verena
fizera, e então, seus lábios mornos tocaram seus dedos.
Em coro, a cidade acompanhou.
— Que a luz sempre ilumine seu caminho para casa.
Aquelas palavras atingiram alguma coisa dentro de Anya.
Qual seria o destino para onde a Luz a levaria?
Onde era sua casa?
Tentou visualizar o palácio, o lugar onde cresceu e aprendeu tudo o
que sabia. O lugar que a moldou como a mulher que era hoje. Entretanto, o
sentimento de acolhimento e proteção não acompanhou o pensamento.
Ousou olhar por sobre o ombro, para Havenmill que se estendia
infinita, imponente. O lugar que a tinha recebido de braços abertos. Mas
que também não era seu destino.
E se não havia para onde voltar, onde pertencia?
Teria sobrado alguma coisa para que pudesse chamar de lar?
— Princesa? — sussurrou Delilah.
E quando seus olhos passaram pela aura dourada que contornava a
meio-bruxa, Anya entendeu.
Não sabia o porquê, tampouco era capaz de compreender como seu
caminho tinha sido traçado por aquela estrada. Mas a verdade lhe pareceu
tão óbvia de repente que uma risada escapou de sua garganta.
Lar era um sentimento.
E aquele formigamento pulsante dentro dela... aquele que aquecia
sua pele e a fazia se sentir mais viva do que jamais estivera...
Aquilo era casa.
Aquilo era seu destino.
Não um lugar, não uma pessoa.
Magia.
E perceber a verdade naquele pensamento a fez questionar como
seria possível que tivesse sido fadada a uma vida de mentiras quando o que
estava guardado para ela estava escondido bem debaixo de seus pés.
Delilah a encarava com dúvida nos olhos, sem compreender o misto
de sentimentos que a princesa sabia trazer estampado no rosto.
Mas a Luz sempre encontrava um caminho.
E ela tinha guiado Anya para casa, antes mesmo que a garota
soubesse que a estava procurando.
Delilah observava a festa sentada na imensa raiz de um carvalho.
Quando Alexzander lhe contou que os moradores estavam
transformando o Braan em uma espécie de festival, achou que ele estivesse
exagerando.
Não estava.
O perigo iminente de uma exposição da cidade pareceu uma
justificativa plausível para que houvesse menestréis, danças, cantorias e...
Pelas Sete, uma quantidade ofensiva de hidromel.
Ela riu sozinha, aliviada pela pequena amostra de normalidade.
Tudo tinha corrido perfeitamente bem.
A cerimônia se desenrolara como deveria. E o Cântico Sagrado
sempre a deixaria emocionada, não importava quantas e quantas vezes ela o
entoasse.
E só ela sabia que levaria muito tempo para esquecer o olhar
estupefato da princesa assim que as primeiras tochas iluminaram o rosto
dela.
Assim como o sorriso que abriu quando... Bom, teve qualquer que
fosse a revelação que pareceu tomar conta da garota no instante em que a
prece final se encerrou.
O pensamento levou seus olhos até onde a princesa estava sentada.
Ela sorria discretamente, como se na dúvida se deveria ou não se divertir.
Delilah entendia o sentimento.
Uma em cada extremidade da clareira, as mulheres observavam
enquanto todos dançavam o refrão da canção que falava sobre um caçador
apaixonado por um espírito da floresta.
Dell não escondeu o sorriso no momento em que a princesa se
levantou e aceitou a mão estendida de Farah.
O vestido azul acompanhava os movimentos de Anya como águas
puxadas pela correnteza até uma cachoeira. E a delicadeza com que ela
começou a dançar tornou impossível para a mulher desviar o olhar.
Sentiu-se como um galho recém-caído, sendo arrastado junto ao
fluxo do rio. E ainda que tentasse se manter na superfície, acabava sempre
sendo puxada mais e mais para baixo.
Delilah não conseguiria dizer com certeza em que momento aquela
atração começou, mas sabia que nada de bom poderia vir daquilo.
Era uma pessoa prática.
Tinham problemas sérios para resolver. E as soluções envolviam a
princesa desenvolvendo suas habilidades, e Delilah ajudando-a a fazer isso.
Qualquer coisa além disso se tornaria um problema em algum momento.
Além disso, a princesa não demonstrou nenhum tipo de interesse
nela. Era tudo coisa de sua cabeça.
Só precisava esperar passar.
E até lá, poderia observá-la de longe.
O olhar inabalável que contava mais histórias do que saíam dos
lábios sempre avermelhados. Como os cachos cor de ébano dançavam sua
própria música em torno de sua cintura. Até mesmo a cicatriz que, de
alguma forma, não alterava a beleza daquele rosto. Agia apenas como um
detalhe a mais.
— Acabou em uma bela festa, não?
A voz de Verena quase a fez cair para trás da raiz em que estava
sentada.
— Pelas Sete — praguejou. — Digo, oi.
— Por que não está dançando?
Delilah fez uma careta.
— Quantas vezes você me viu dançar?
— Exatamente. — A bruxa sorriu. — Não acha que é o momento
certo para garantir, ao menos, uma dança?
— Que pensamento mórbido.
— Não foi o que eu disse. — Verena sentou-se ao seu lado sem
parecer se importar que a terra sujasse seu vestido cor de salmão. —
Apenas acredito que você deveria se permitir um pouco mais.
— Nunca responde minhas perguntas, mas, de repente, quer me dar
conselhos. — Irritou-se, revirando os olhos.
— E que respostas são essas que você tanto almeja?
A meio-bruxa nem sabia por onde começar. Sua avó sempre teve
uma certa tendência a se esquivar de questionamentos. Parecia que sorteava
cartas em um baralho de respostas aleatórias e as usava mesmo que não
combinassem com o tema da pergunta.
— Diga-me o que tem naquela adaga — arriscou.
— Sabe que não posso fazer isso.
— Claro que pode. — Seu tom de voz subiu um pouco. — Você é
uma maldita Bruxa Primordial, pode fazer o que quiser!
— Sabe muito bem que não é minha magia que envolve o
funcionamento e armazenamento daquelas memórias — Verena esbravejou.
— Se Tallis disse que é proibido falar sobre o que as lâminas escondem,
então é proibido.
Delilah resmungou algo inaudível. Não conhecia nenhuma das Sete
além de Verena, mas sabia que eram todas tão individualistas quanto sua
avó.
— Não me diga que escondeu de mim uma adaga com a insígnia do
reino por sabe-se lá quanto tempo e, por coincidência, resolveu me entregá-
la exatamente quando uma Dahnasa apareceu em Havenmill. Tem de haver
um motivo!
— Há muito mais sobre a princesa do que você imagina. — Verena
suspirou, encarando ao longe. — E ela precisará de ajuda. Sua ajuda. A
garota tem de saber o que aquele item guarda, e você precisa encontrar uma
forma de instruí-la a como libertar aquela memória. Sem falar sobre isso
com ela.
Bufando, a mulher fez menção de se levantar, mas a bruxa segurou
seu pulso, impedindo-a.
— Aquelas lembranças são a única forma de derrotarem Benjamin.
As palavras fizeram Delilah congelar no lugar.
— Nem você é capaz de contar a ela?
Verena negou, seu semblante murchando aos poucos.
— Tallis é a Primordial da Escuridão, a única que controla
verdadeiramente as ilusões e truques da mente. Apenas ela pode desfazer
essa condição.
— E não temos tempo para ir atrás dela — completou a meio-bruxa.
— Exatamente.
— Odeio isso.
— Eu sei, mas precisa ser desse jeito. Não se esqueça do que eu
disse, a princesa e aquela adaga são nossa única esperança.
E antes que Delilah pudesse questionar mais alguma coisa, a bruxa
se levantou e saiu andando. Como se sua neta não fosse mais do que um
vento que se dispersou pelos ares.
Sentia o sangue fervilhar dentro de si.
Queria amaldiçoar sua avó pelas falas evasivas, e queria amaldiçoar
Benjamin por todas as outras coisas que não eram culpa de Verena. Queria
caminhar até a princesa e dizer...
— Ei. — Farah apareceu ao seu lado.
A artesã a olhava com preocupação, mas se ouviu qualquer coisa de
sua conversa com a bruxa, não deixou transparecer.
— Ei — Delilah respondeu.
Sentando-se ao seu lado, a garota colocou o braço em torno de sua
cintura, puxando-a para um abraço. A meio-bruxa estendeu a mão e tirou
uma mecha que caía entre os olhos dela, colocando-a para trás da orelha.
— Onde estão as verbenas? — perguntou, percebendo as mechas
pesadas cor de chocolate completamente soltas e sem nenhum enfeite. Tão
diferentes do que Farah costumava fazer.
— Não sei se ainda fazem sentido. — Deu de ombros. — Eram uma
forma de levar Havenmill para Duhn. Não existem verbenas no reino,
sabia? Não é uma flor que cresce sozinha por aquelas terras. Eu as usava
como uma piada. Uma coisa só minha para cada vez que alguém falava algo
ruim sobre magia ou conjuradores. Meu jeito de dizer “falem o quanto
quiserem, mas ainda estou aqui e vocês nem imaginam”.
E foi uma das poucas vezes em que Delilah ficara sem palavras.
Achou melhor permanecer em silêncio, então, apenas estendeu uma
mão para o solo, fazendo pequenas verbenas amarelas brotarem do chão —
a mesma cor do vestido bordado que a garota vestia.
Uma a uma, Delilah encaixou as pequenas e delicadas florezinhas
nos cabelos de sua amiga.
E levantando-se em um salto, a mulher decidiu quebrar uma de suas
regras mais importantes.
Puxando Farah pela mão, disse:
— Vem, vamos dançar.

Com os olhos fechados, Delilah tentou se deixar levar pela música,


mas era algo difícil.
Ela não dançava. Não era o tipo de pessoa que se perdia entre
pensamentos, que permitia ao seu corpo falar por ela e simplesmente...
acompanhava.
Sabia que via o mundo muito preto no branco e que isso não era
uma coisa boa. Mas não poderia mudar a si mesma. Não queria mudar a si
mesma.
Mas naquele momento, tudo o que desejava era que sua mente
corresse na direção oposta ao seu corpo.
Não queria pensar em Verena. Nas coisas que ela dissera. Nas coisas
que ela não dissera.
Queria apenas dançar.
Ouvia a voz rouca de Alexzander, que cantava empolgado com seu
violão. Ele não sabia cantar, porém, nunca foi do tipo que se importava com
essas coisas. Por alguns segundos, ela o invejou por isso.
Jett o acompanhava com outro violão, e seu pé batendo no chão era
o único indício que se divertia.
Delilah temia secretamente ser tão rabugenta quanto o pai.
Entretanto, temia ainda mais acabar como a avó. Verena se perdeu nos
próprios sentimentos, era guiada pelos ecos de um amor que nunca voltaria.
E sua mãe... Ravina era uma sonhadora. E quando se apostava alto
demais, quando se voava muito longe do chão, o estrago na queda era ainda
maior.
Então, Delilah se espelhava em Jett.
Mas estava ficando cada vez mais difícil.
Tinha se tornado um misto das duas mulheres com as quais tentou
nunca se parecer. Já havia cedido. Já havia amado. Já havia sonhado.
E agora, as pessoas com as quais mais se importava estavam em
risco. Agora, ousara sonhar com o gosto de uma liberdade que nunca
conheceu. Com o toque de um sol verdadeiro que jamais sentira sobre sua
pele. Com um mundo inteiro do qual nunca tivera qualquer vislumbre.
Balançou a cabeça.
Não.
Esta noite não.
Delilah ergueu o braço e girou Farah sob sua mão.
A garota gargalhou conforme se atrapalhava com a barra do vestido
longo demais, e esbarrava em Silja, que dançava sozinha próxima das duas.
— Não sei qual de vocês dança pior. — A curandeira gargalhou.
— Eu. — A meio-bruxa revirou os olhos. — Então, acho que é
melhor você fazer isso com ela. Vou pegar uma bebida.
Com uma reverência, alcançou a palma de Farah à curandeira, que
já a puxava apressada para o centro da praça.
Seguindo até os barris de hidromel, Delilah quase foi atropelada
pelas duplas que giravam e giravam fervorosamente. E agradeceu quando
chegou em segurança nas mesas com a bebida.
Seu copo já estava cheio pela metade no momento em que a voz da
princesa surgiu às suas costas.
— Se importa? — ela perguntou, apontando para o próprio copo
vazio.
— De forma alguma. — A mulher sorriu.
E quando ambos os copos estavam cheios e Delilah fez menção de
se afastar, Anya surpreendeu-a ao dizer:
— Quer... hum... sentar comigo em algum lugar?
— Claro — respondeu sem pensar.
Delilah ficou tensa com o próprio impulso. Aquela não parecia uma
boa forma de “esperar passar”.
Mas não havia uma parte sequer dela que não queria acompanhar a
garota.
Ela e a princesa caminharam até os degraus de uma varanda, e a
mulher tentava olhar para todos os lugares, menos para Anya. Observava as
luzes decorando as árvores, as fitas coloridas, as tochas que permaneciam
acesas.
Estavam muito próximas uma da outra. Próximas demais. Seus
ombros vez ou outra se tocavam, mas se a garota percebeu, parecia não se
importar.
Enquanto encarava somente à frente, sentia os olhos da princesa
dançarem por seu rosto. Como se quisesse dizer alguma coisa.
E mesmo depois que se sentaram, vários minutos mais foram
embalados pela voz de Alexzander sem que ela falasse nada.
Foi Delilah quem quebrou o silêncio, por fim.
— O que achou?
Anya prendeu a respiração.
— Ainda não sei dizer ao certo — admitiu, observando as pessoas
dançarem. — Aconteceu muita coisa de uma só vez, e ainda estou tentando
processar o que veio antes. Você sabe, a Travessia, a magia como um todo,
esse lugar.
Surpresa com a sinceridade, a meio-bruxa ousou um olhar para ela.
Viu-a suspirar e, então, abrir outro sorriso.
— Ainda me pergunto onde me encaixo em tudo isso — prosseguiu.
— Quando vocês falaram sobre encontrar o caminho de casa, eu...
As palavras sumiram no ar.
E Delilah finalmente entendeu o que deixou a garota pensativa nos
momentos finais da cerimônia.
— Pode transformar o que quiser em casa.
— Não é tão simples assim. — Anya fez uma careta. — Mas estou
tentando.
E quando o silêncio ameaçou tomar conta outra vez, a meio-bruxa
foi incapaz de controlar a própria língua antes de dizer:
— Você está linda, Princesa.
Arrependeu-se na mesma hora e, mordendo o interior de sua
bochecha, fechou os olhos enquanto sentia o rosto arder.
— Você também — a princesa respondeu.
E mesmo sem ver, sabia que a garota sorria.
Sentiu-se tola.
Intimidada.
Sem muita certeza do que fazer depois.
Estava parecendo uma adolescente.
Delilah trincou o maxilar e não disse nada.
— Nada de terra ou flores para brincarmos hoje? — a garota
zombou.
Isso fez a mulher abrir os olhos, virando-se para encará-la.
— Você quer que eu lhe dê uma flor? — Riu, erguendo uma
sobrancelha.
Anya se engasgou com sua bebida, e foi a vez dela em ter as
bochechas transformadas em vermelho puro.
— Não foi o que eu disse — conseguiu dizer finalmente.
— Claro que não — Delilah completou, mas algo no tom da garota
a fez sorrir.
A princesa parecia nervosa, concentrada demais em virar o que lhe
restava de hidromel em um único gole.
— Eu posso se você quiser — continuou, aliviada por ver que não
era a única pessoa sem jeito ali. — Mas preciso ser sincera, já dei flores à
outra garota esta noite.
E apontou com o copo para onde Farah dançava.
Levando as duas mãos ao peito, a princesa formou um “O” com a
boca, fingindo indignação.
— Não acredito nisso!
E talvez fosse a bebida começando a fazer efeito, mas Delilah pôde
jurar que a princesa se aproximou um pouco mais enquanto arrumava o
vestido.
Os braços das duas se encostavam completamente agora e, ainda
que sua manga longa impedisse que as peles se tocassem de verdade,
conseguia sentir a corrente elétrica que passava por elas.
Estavam tão próximas que tudo o que Delilah conseguia sentir era o
aroma de canela que vinha da princesa, a maciez dos cabelos volumosos
fazendo cócegas em seu ombro.
— Eu não sabia que você cantava — Anya comentou.
— Só em ocasiões especiais.
Era verdade.
Cantar em público era algo que só ousava fazer durante o Braan.
Chamava atenção demais sobre ela, e isso a incomodava. Mas quando
estava sozinha, arriscava vez ou outra testar os limites de sua voz.
— Eu acho que você deveria cantar sempre, se quer saber minha
opinião. — A garota cutucou-a com o cotovelo.
E mesmo sendo uma provocação, Delilah soltou todo o ar que nem
percebera que prendia. A princesa conseguia desestabilizá-la com os
comentários mais tolos, e a meio-bruxa só poderia culpar a própria
estupidez pelo que disse em seguida:
— Flores, uma serenata... Tem mais alguma coisa que eu precise
fazer para conquistá-la?
Pelas Sete, era definitivamente hora de parar de beber.
Anya pareceu em choque por alguns segundos, e tudo o que Delilah
queria era sair correndo. Voltar para dentro de seu chalé e ficar lá pelos
próximos anos.
Mas quando a princesa voltou a falar, mesmo as árvores pareceram
congelar para absorver suas palavras.
— Já está se saindo bem sem nada disso.
E quando segundos de silêncio se transformaram em minutos, e
ainda assim, o coração da meio-bruxa seguia disparado em seu peito, soube
que tinha um problema.
— Quer dançar? — Anya perguntou.
— Você não sabe o que está pedindo. — Riu, grata pelo novo rumo
da conversa. — Não acho que seus pés sobreviveriam a uma dança comigo.
— Mais bebida, então?
Ela deveria ter dito não.
Deveria ter agradecido, e dito que estava na hora de voltar para casa.
Ou de ir para qualquer outro lugar.
Mas Delilah não queria que aquela conversa terminasse. Não depois
de perceber que as coisas que acreditava acontecerem apenas dentro de sua
cabeça eram reais, afinal. Que a princesa também estava se esforçando para
mantê-la por perto.
Então, concordou.
Então, seguiu-a até aquela mesa.
Serviu-se de mais bebida.
E ignorou a voz em sua cabeça repetindo de novo e de novo que
deveria se afastar. Que lhe dava infinitos motivos pelos quais isso era uma
péssima ideia. A verdade, no entanto, era que estava morrendo de vontade
de saber onde isso iria parar.
Delilah se deixou levar pela conversa repentinamente fácil.
Acompanhou as risadas da princesa enquanto Silja tropeçava nos pés das
crianças que a puxavam para fazer parte de uma roda. Deixou que seu corpo
se aproximasse de Anya e que seus braços se tocassem mais uma vez.
Fingiu não reparar quando a garota trouxe o rosto próximo ao seu,
pois disse a si mesma que a música estava alta demais para que
conseguissem se ouvir de longe.
Seus olhos assistiram-na chegar mais perto, passando pela curvatura
dos cílios longos e descendo até a boca. Observou como ela se movia,
mesmo sem entender qualquer palavra que saía dali. Sentiu o hálito que era
uma mistura de mel e álcool fazer cócegas em sua orelha, e respondeu
qualquer coisa que pareceu apropriada para o que ela tinha dito.
Arrepiou-se quando a risada dela reverberou em cada um de seus
ossos, e levou a mão até os cabelos longos que lhe caíam sobre o rosto.
Eram tão macios quanto tinha imaginado. E demorou-se ao tocar sua pele
enquanto os colocava atrás de sua orelha, traçando suavemente uma linha
com a ponta dos dedos.
Delilah deixou que os olhos cor de âmbar a encarassem de volta, e
sorriu ao ver os lábios úmidos pela bebida se afastarem delicadamente. No
momento em que a mão da princesa pousou em seu quadril, mais uma vez
aquela descarga de energia atravessou seu corpo.
E quando apenas alguns centímetros mantinham suas bocas longe
uma da outra, hidromel voou para todos os lados.
Elas se afastaram rapidamente, como se tivessem sido pegas
cometendo um crime, amparando Silja — que tropeçara em uma das
infinitas crianças correndo na praça central e voara para cima das duas
mulheres.
— Pelas Sete, sinto muito! — A curandeira arregalou os olhos,
vendo a bebida marcar os vestidos delas. Então, olhou para a própria
camisa. — Alexzander vai me matar quando ver isso.
— Eu sei como resolver. — Delilah ouviu-se dizendo. — Vamos até
minha casa e eu ajudo a tirar essa mancha.
Ao se afastar de uma princesa tão constrangida quanto ela mesma,
se dava conta do quão próxima estivera de colocar tudo a perder.
E como não se arrependia em nada por isso.
Os cabelos brancos não combinavam com ele. Quando juntos da
palidez exagerada em sua pele, deixavam-no parecido demais com um
fantasma.
— Ou um demônio — Benjamin disse, sorrindo para seu reflexo no
espelho.
Mas apenas cinco semanas o mantinham longe da coroação. Cinco
semanas para que alcançasse o que almejara por tantos e tantos anos. Para
que pudesse parar de fingir.
E os cabelos eram a primeira coisa que mudaria quando aquela farsa
caísse por terra. Assim que todos descobrissem que não havia nada entre ele
e a eternidade sobre controle da Coroa.
Passou os dedos finos em uma sujeira inexistente na camisa cor de
café, e começou a fechar seus botões, observando os músculos que
desenhavam seu torso desaparecerem sob o tecido.
Do corpo ele gostava.
Quase magro demais, mas forte.
Tão agradável aos olhos que tirava a atenção do poder que
espreitava lá no fundo.
Porque ainda que apreciasse o medo, preferia ser obedecido por
adoração.
De qualquer forma, já estava entediado por desperdiçar aquela força
ancestral em coisas pequenas. Sentia falta das expressões de surpresa ao
libertar a magia que corria sob sua pele.
Mas a estava poupando.
E assim que fosse proclamado Rei, assim que garantisse o
desaparecimento permanente da princesa, teria outra missão importante
para cumprir. Uma ainda mais sigilosa.
Iria atrás dela.
Era para quem guardava seu pior.
Para bruxa que o havia enganado por tantos anos. Que o usara para
caçar a princesa e que, secretamente, não tinha intenção alguma em matá-la.
Não, ela queria Anya para si.
Porque a garota era importante demais para seus próprios planos.
Ele teria o prazer de estragar cada um deles.
A princesa seria morta por suas mãos, e não restaria nada à bruxa
além de ceder.
Benjamin se certificaria disso.
Uma batida firme na porta chamou sua atenção, e ordenou ao
soldado ruivo que entrasse. Sabia que era ele, pois era o único dos homens
no palácio que o príncipe permitia ali.
— Senhor — murmurou com aquela voz sem vida.
Estava ficando entediado com isso também.
Conan tinha sido tão inútil em encontrar a princesa quanto os outros
soldados nas buscas por Farah — ambas pareciam ter desaparecido como
fumaça.
O que deixava o príncipe apenas com a parte chata.
“Sim, senhor.”
“Não, senhor.”
“Claro, senhor.”
Já estava louco para se livrar dele.
Apenas mais cinco semanas.
— Fale logo — ordenou.
— As criadas já o estão aguardando no salão inferior, senhor. — Ele
encarava o chão. — Estão prontas para darem início à confecção de seus
trajes para a coroação.
Ah, isso era de seu interesse.
O trono que finalmente voltaria para ele.
E mal podia esperar para sentir aquele peso.
Da Coroa sobre sua cabeça, e do reino sob seus pés.
Benjamin consertaria as coisas. Desfaria o estrago causado por seu
tio.
Toda vez que pensava no que Oliver fizera com a família Dahnasa,
sentia cada gota de seu sangue ferver. Era desprezível, inaceitável.
E lhe dava vontade de bater em alguma coisa.
Encarou Conan de cima a baixo.
— Você sabe o que fazer — vociferou ao rapaz.
Por ora, serviria.
O rapaz se aproximou lentamente, ajoelhando-se aos seus pés. Os
ombros eretos demais eram o único sinal de rebeldia.
Benjamin conseguia ver o quanto o soldado se esforçava para
resistir às suas ordens, o quanto lutava para não se curvar.
Mas eles sempre se curvavam.
Pousando a mão sobre a testa do garoto, derramou sua magia e
observou o rosto dele mudar. Os cabelos longos e cor de fogo tornaram-se
castanhos e curtos. A expressão jovem ganhou marcas da idade. Em poucos
segundos, quem o encarava já não era Conan. Era Oliver Dahnasa, o enfim
falecido usurpador da Coroa.
Ah, como Benjamin adorava aquele poder.
Quando se tem o controle sobra a Vida, você pode moldá-la como
quiser, contou-lhe a bruxa certa vez.
E ele transformou aquilo em um novo passatempo.
Não se importava com o fato de que os olhos eram imutáveis. Que
ainda fossem castanhos como os do soldado e não negros como o de seu tio.
Mesmo um poder daqueles tinha suas limitações em humanos.
— Curve-se — ordenou.
E o Rei se curvou.
O príncipe se deliciou com a cena por alguns instantes, então,
pousou um único joelho no chão e ergueu bruscamente o queixo do homem
— obrigando-o a encará-lo.
— Vê o que suas decisões me forçaram a fazer? — sussurrou — Vê
a dor que causará neste garoto inocente?
O estalar de sua mão chocando-se contra o rosto de Oliver ecoou
pelo cômodo. O homem não se moveu.
— Você desonrou o nome de nossa família ao trazer aquele demônio
para dentro de nosso castelo. E não satisfeito, ainda se casou com ele —
outro tapa, dessa vez com as costas da mão. Suas palavras saíram baixas e
afiadas, mas não tanto quanto as pontas de seus anéis. E sorriu com
satisfação para os cortes deixados por eles na bochecha do rei — Achou que
ninguém descobriria, titio?
A terceira bofetada fez Oliver tombar.
Com as mãos apoiadas sobre chão de mármore, Oliver ofegava e
cuspia o sangue que brotava dali. E Benjamin ergueu seu rosto
violentamente mais uma vez.
— Pensou que não haveria ninguém a par de seus segredinhos? Que
ninguém investigaria o passado da forasteira com quem se deitou? Como
pôde ter sido tão tolo em acreditar que a colocaria em nossa casa sem que
alguém buscasse pelo passado da mulher que cruzou nossas fronteiras e
passou de estrangeira à Rainha? — Sua voz já não passava de um sussurro,
enquanto apertava cada vez mais o maxilar do rei. — Me diga, tio, Elysia
usou seu poder para fazê-lo casar-se com ela, ou você foi apenas burro o
suficiente para se unir à bruxa perdida do clã de Alethea?
O príncipe não se importava que o soldado ouvisse aqueles
segredos, ele não viveria o suficiente para contar a alguém.
— Mas ela não estava perdida, não é mesmo? Estivera aqui o tempo
todo, trepando com você. Ajudando-o a jogar no lixo o trabalho de séculos
que nossa família teve para limpar este reino daqueles monstros.
E conforme ele xingava no rosto do rei, sua raiva ia crescendo. Os
tapas logo se transformaram em socos, e o rei foi colocado mais uma vez
com as palmas no chão.
— Pobre Oliver, jamais imaginou que seria rei. Não fazia parte de
seus planos usurpar o trono de seu sobrinho? Que conveniente para você
que todos em seu caminho até a Coroa simplesmente... morressem. — os
cabelos prateados de Benjamin, outrora muito bem arrumados, agora caíam
em seus olhos e grudavam em sua pele suada. — Mas levar a bruxa para a
cama não era ofensa o suficiente para você, era? Precisava profanar também
a nossa linhagem! Gerar uma criança e manchar para sempre a herança dos
Dahnasa.
Dando um último pontapé, Benjamin pousou a mão com gentileza
no ombro do rei — enquanto suas feições voltavam para as do soldado.
— Mas não se preocupe. — Ele sorriu. — Anya morrerá antes de
saber que é meio-bruxa.
PARTE IV:

SANGUE E TERRA
Anya não conseguia lembrar em que momento voltara ao chalé,
tampouco como a camisola branca fora parar em seu corpo.
A claridade intensa que entrava pela janela aberta indicava que
dormira por muito tempo, mas o cansaço e a dor nas pernas provavam que
não havia sido o suficiente.
Ela não tinha certeza sobre em que momento decidira que
aproveitaria a festa em que o Braan se transformou, mas sabia que tinha
sido uma boa escolha. Sabia que precisava de um momento de alívio tanto
quanto qualquer um deles.
No entanto, havia um abismo imenso entre beber alguns copos de
hidromel e dançar, e... Pelas Sete!
Quase tinha beijado Delilah!
Anya levou os dedos aos lábios, como se pudesse limpar as provas
de algo que nem havia acontecido.
Poderia culpar a euforia, a magia e a música. Poderia dizer que
estava lidando com os efeitos daquela experiência inexplicável que fora a
cerimônia. Poderia fingir que estava apenas tentando mascarar as tristezas
com um pequeno momento bom.
Poderia qualquer uma destas coisas, poderia todas elas.
Mas a verdade, era que quase tinha beijado Delilah simplesmente
porque queria. Porque não era a primeira vez que se imaginava tão próxima
dela, e porque descobriu que estar assim era ainda melhor do que pensara.
Porque quando se inclinou para dizer a ela que estava começando a
entender a beleza da magia, encontrou a beleza em outro lugar.
No sorriso com os lábios ligeiramente afastados, como se
chamassem pelos dela. Nos olhos que refletiam o desejo que a princesa
sabia carregar nos seus. No aroma inebriante de cedro e mel misturado com
o amargo do álcool.
Poderia ter se embriagado apenas com aquela visão.
Então, levou sua mão à cintura dela, e seus dedos se encaixaram tão
bem ali que era como se fossem duas peças do mesmo quebra-cabeça.
Anya puxou um dos travesseiros e pressionou-o contra o rosto,
suspirando.
Estava perdendo a cabeça.
O mundo estava virando-se do avesso, e seus pensamentos estavam
em Delilah.
Sentiu-se culpada. Como poderia se preocupar com algo assim,
quando tudo estava desmoronando diante de seus olhos?
Mas a vida não era preto no branco. Havia nuances nas cores e nos
tons.
Sentimentos também eram assim. As brincadeiras e o frio na barriga
não anulavam a perda e a dor. Não. Aqueles eram sentimentos legítimos
que tornavam mais suportáveis as partes ruins.
E se Delilah compartilhava o mesmo que ela como de fato parecia...
Tem mais alguma coisa que eu precise fazer para conquistá-la?
A resposta da princesa fora verdadeira. Já estava conseguindo sem
ao menos tentar.
Só não tinha certeza de como deveria agir quando chegasse na
clareira na manhã seguinte. Deveria dizer algo? Esperar que Delilah o
fizesse? Ou fingir que nada aconteceu?
— Deixe este problema para a princesa do futuro — resmungou
contra o travesseiro.
E então, levantou-se com dificuldade, sentindo as panturrilhas
arderem com o movimento simples.
Tinha de lidar com o que havia sobrado de si. Sabia que estava uma
bagunça completa. Seus cabelos, as olheiras, os brilhos cintilantes que se
espalhavam por seu corpo... O que diabos era aquilo?
Lembranças da cerimônia vieram à sua mente.
As chamas, a chuva, a Luz... Tinha sido a coisa mais bonita que
Anya vira em muito tempo — se não, em sua vida toda.
E aquela canção...
Pensou em Delilah outra vez.
Ah, ela estava tão ferrada!
Balançando a cabeça, seguiu até a cômoda para separar as coisas
que vestiria. Não precisava de nada em especial, já que nada tinha sido
reservado para o dia.
Seu rosto se cobriu de vermelho ao abrir a primeira gaveta. Novas
peças íntimas tinham sido adicionadas ali. Em diversas cores e parecendo
todas do tamanho certo.
Fechou os olhos e pegou um par aleatoriamente, sem se preocupar
se as partes combinavam ou não. Gargalhando pela ousadia — e sabendo
que só poderia ter vindo de Silja —, saiu apressada para o banho.

Silja estava aliviada.


Tudo tinha ocorrido perfeitamente bem.
Não que ela esperasse algum grande problema durante o Braan, mas
a sensação de ver tudo dando certo era tranquilizadora.
A princesa era oficialmente uma deles.
Uma filha da Luz.
E estava claro em seu rosto o quanto tinha se encantado com a
cerimônia, com o Cântico Sagrado.
A curandeira não poderia negar que sentira o coração um pouquinho
mais leve ao ouvi-lo também. Ela não falava o idioma antigo, mas sabia o
que a música significava.
As palavras eram uma oração às Sete, às bruxas que já foram
Deusas. Agradeciam pela Luz e pela Terra, e por tudo o mais que as Mães
haviam criado. Pediam proteção às almas que se uniriam diante delas.
O Braan já não tinha essa função, mas o Cântico permanecia igual.
Silja tinha esperanças de presenciar o ritual de união algum dia, que
ele pudesse voltar a acontecer. Mas por enquanto, poderia se contentar com
o Braan. E admirava que Verena tivesse se esforçado para manter aquela
tradição viva, mesmo depois de tanto tempo. Quando duas pessoas uniam
suas almas, seus poderes eram partilhados, então era justo que a celebração
da Travessia fosse inspirada pelo ritual. Com ela, o compartilhamento era
unilateral, mas era válido da mesma forma.
Ouvir o Cântico sempre lhe deixava mais próxima da própria magia.
E ouvi-lo na voz de Delilah então...
Ah, como amava ouvir a meio-bruxa cantar! Uma pena que o fizesse
tão pouco.
Dell se escondia do mundo.
De todas as partes dele.
Usava Havenmill para fugir do que havia lá fora, e usava seu
temperamento para fugir do que havia ali dentro. Mas Silja conhecia bem o
que havia sob as camadas de sarcasmo e mau humor.
E durante a celebração, confirmou suas suspeitas de que outra
pessoa estava descobrindo isso também.
Riu sozinha, caminhando até a varanda com sua xícara de chá.
Sentia-se tão mal por tê-las interrompido! Era difícil lidar com
tantas crianças ao mesmo tempo, e acabou sendo atropelada por um grupo
delas quando se dirigia até o barril de hidromel.
E mesmo que Delilah tivesse fingido não entender do que ela falava
quando se desculpou, a curandeira não era boba. Tinha percebido os rostos
corados, a proximidade exagerada e a pressa com que se afastaram.
Uma reviravolta e tanto no rumo das coisas.
— Bom dia. — A voz da princesa quase a fez saltar no teto, e seu
chá esparramou-se por toda a varanda.
— Merda! — esbravejou, sentindo a bebida quente sobre sua pele.
Anya gritou várias desculpas conforme desaparecia dentro do chalé,
e voltou segundos mais tarde trazendo um pano nas mãos.
Os cabelos dela estavam molhados, e ela cheirava ao sabonete de
especiarias que Silja implorara a Gerry para conseguir na cidade — e que
tinha lhe custado uma pequena fortuna —, depois que Farah lhe contou que
era o preferido da princesa.
Mas tinha valido à pena.
E agora, cada vez que Anya chegava trazendo o aroma de canela
consigo, Silja sorria como se aquele fosse um segredo só delas. Como se
fosse um pouquinho mais parte daquilo.
No fundo, era tudo o que desejava.
Pertencer.
Sua vida estava em Havenmill, mas sua família estava lá fora. E seu
coração, vez ou outra, escapava para além dos limites de sua cidade
encantada, vagando por uma aldeia que, por algum tempo, foi sua casa.
Havia dias que se pegava perguntando a Gerry se ele tinha alguma notícia
de seus pais.
E doía seu coração esconder isso de Alexzander. Ela sabia que seu
irmão tinha todos os motivos do mundo para odiá-los. Ela também os
odiava um pouquinho.
Mas os amava também.
E ainda que jamais admitisse em voz alta, boa parte de seu desejo
em ver seu povo unido ao resto do reino vinha da esperança de ter sua
família completa de novo.
— Ao menos, fui vingada — Anya debochou, sentando-se ao seu
lado na varanda.
— O quê? — Ela ergueu uma sobrancelha.
— Você me deu um banho de hidromel ontem — riu —, e eu lhe dei
um de chá.
— Pelo menos faz bem para a pele. — A curandeira cutucou-a.
E queria falar mais sobre o acontecido, perguntar sobre Delilah e se
desculpar pela interrupção. Mas talvez ainda fosse cedo demais para tocar
no assunto, pois quando o fez, Anya apenas olhou para a praça central vazia
e disse:
— Não sei do que está falando.
Ela tinha um sorriso no rosto, um que Silja já tinha visto dois dias
atrás, quando a garota chegou de mais um dia de treino.
Tudo bem.
Esperaria até que ela estivesse pronta para lhe contar.
Dando de ombros, encarou ao longe também, assistindo em silêncio
o resto de sua cidade acordar.
Aquele era o último dia antes dos treinamentos começarem.
E Alexzander já não conseguia controlar o nervosismo que tomava
conta de seu corpo. Apenas mais aquele dia. E então, tudo mudaria.
Tudo se transformaria em apreensão e preocupação. Não haveria
descanso, não haveria pausas. E poderiam apenas rezar para que fosse o
suficiente, para que ninguém descobrisse sobre aquele lugar e, um dia,
pudessem pensar naquela época com alívio — e até um pouco de humor.
Mas a ansiedade tirou o rapaz da cama cedo, mesmo que já fosse
quase dia quando ele se deitou. Precisava ocupar sua cabeça, precisava
pensar em coisas tolas e fantasiosas. Então, foi até a parte mais afastada de
Havenmill, onde já não havia casas ou pessoas, com um livro novo e uma
xícara de café.
A manhã correu como se zombasse dele, como se tivesse um lugar
melhor para ir. Roubando-lhe rápido demais o seu último dia tranquilo, até
que precisasse voltar ao chalé sem ao menos descobrir como aquela história
terminava.
Uma folha de carvalho não era a melhor forma de marcar onde
havia parado de ler, mas funcionou bem o suficiente.
Silja e a princesa riam de alguma coisa conforme ele se aproximava
da varanda, e sentiu uma pontada de felicidade ao ver que a irmã parecia
alegre — que aparentava ter encontrado uma amiga com quem se sentisse
confortável para ser ela mesma.
Ele sempre seria grato por ela o ter seguido naquele inverno, e sabia
o quanto Silja amava Havenmill e se esforçava para ser feliz ali. Mas ela era
diferente.
A curandeira pertencia ao mundo, e o mundo se curvaria a ela se
tivesse a chance. E o rapaz trabalhava incansavelmente para proporcionar-
lhe isso.
— Por onde andou? — ela perguntou quando o viu. — Já tinha
desaparecido quando acordei.
— Lendo. — Ele apontou para o livro em suas mãos.
— Você poderia viver suas próprias aventuras, sabia disso?
— Acho que já temos aventuras demais esperando por nós, antes
que pensemos em outras — respondeu. Mas arrependeu-se imediatamente
ao ver o sorriso de sua irmã vacilar.
Percebendo a mudança repentina também, a princesa tentou mudar o
rumo da conversa.
— O que faremos com este dia de folga?
E algo em seus olhos denunciava a necessidade em manter-se em
movimento, em ocupar a cabeça com algo que impedisse seus pensamentos
de vagarem por onde não deveriam.
Alexzander a entendia.
— Prometi a Farah que treinaria com ela — Silja comentou. — Sei
que não faríamos isso hoje, mas ela tem alguns problemas com sua magia,
está constrangida em aparecer no meio de todo mundo assim.
— Que tipo de problemas? — Anya indagou, a preocupação
franzindo sua testa.
— Não temos muita certeza, na verdade. Temos de conversar com
Delilah sobre isso. Mas ela comentou que, desde sua fuga do palácio, é
como se todo o seu poder tivesse sido drenado. E ainda não normalizou.
— Ah. — Foi só o que a princesa conseguiu dizer.
E o peito do rapaz se apertou com as palavras de sua irmã. Ao
pensar em Farah enfrentando aquelas coisas sozinha e em silêncio, e ainda
mais, em saber que ela tinha vergonha em falar sobre isso.
Logo ela, cuja ajuda tinha sido fundamental para que todo aquele
plano desse certo.
— Acha que é algo que possam resolver? — a princesa insistiu.
— Não tenho certeza. — A curandeira deu de ombros. — Acho que
o problema real é ter passado tantos anos bloqueando a magia dentro de si,
com medo de ser descoberta lá fora. Não sei se isso é algo que pode
acontecer de verdade, mas faria sentido que oprimir seu poder pudesse
acabar afetando-o de alguma forma.
A princesa murchou. E Alexzander sabia que ela pensava em como
suas próprias ações tinham algum efeito naquilo. Já tinha percebido a
frequência com que ela fazia isso.
— E você — prosseguiu Silja, apontando para ele — fará
companhia para a princesa.
— Não preciso de uma babá — ela resmungou.
— E foi por isso que eu disse companhia — a curandeira reforçou.
— Teremos dias intensos daqui pra frente, aproveitem o dia descanso que
lhes foi oferecido.
Alexzander riu.
— Podemos ter nossa primeira lição com o violão — ofereceu.
E o rosto da princesa se iluminou. Se iluminou tanto que fez o rapaz
pensar sobre como ela havia realmente deixado muito mais para trás do que
eles haviam parado para pensar.
Claro que a perda dos pais era, de longe, a pior parte. Mas havia
muito sobre a vida dela que ela fora obrigada a abrir mão. Do quanto ela
devia estar com saudades de casa.
E só levou vinte minutos para que os dois estivessem aconchegados
no sofá do chalé, ele com o violão nas mãos, ela com os olhos atentos nas
cordas. E era bom ter alguém realmente interessado. Já havia tentado
ensinar sua irmã, mas Silja era inquieta demais para isso.
Alexzander mostrou à princesa alguns acordes simples, nada
elaborado demais. Mesmo que ela já tivesse conhecimentos sobre a música,
queria ter a certeza de não pular etapas.
Ele estendeu o instrumento para que ela os repetisse. Como era o
esperado, alguns erros marcaram suas tentativas. Mas Anya tinha dedos
ágeis e uma memória musical surpreendente. Percebeu que ela se guiava
mais pelo som que ele produzia do que pelas explicações que dava sobre as
notas. E não demorou até que ela pegasse o jeito. Que dominasse os acordes
mais simples e pudessem partir para algo mais complicado.
Reconheceu o brilho nos olhos dela, a satisfação de ter o
instrumento nas mãos e observar a melodia ganhando vida. Viu a si mesmo
ali, na sensação de transformar uma sequência de movimentos em algo tão
bonito quanto música.
Era um tipo diferente de magia.
— Você é boa nisso. — Ele sorriu.
— E você parece surpreso — retrucou, rindo. — Toca alguma coisa
para mim?
O pedido o pegou desprevenido.
Ainda que tivesse passado a noite tocando para toda Havenmill, ali,
sozinhos, se sentiu intimidado.
— Escolha uma música — ele disse, tentando disfarçar os dedos
repentinamente trêmulos.
— Não fique nervoso, não o estou avaliando nem nada assim —
Anya tranquilizou-o. — Toque algo que seu coração pede. Toque algo que o
faça se sentir bem.
E Alexzander entendeu o que ela estava fazendo. Queria distraí-los
um pouco mais.
Respirando fundo e dizendo a si mesmo que aquilo não era nada
demais, o rapaz começou a tocar.
Não saberia dizer por que escolheu aquela canção. Ela falava sobre
montanhas em chamas e céus cobertos de fumaça. Não era uma música
alegre, tampouco a melhor definição para “sentir-se bem”. Mas ela era tão
antiga quanto o chão sobre o qual pisavam, e apenas pareceu certo tocá-la.
Era uma história deles. Das criaturas míticas e milenares portadoras
de magia. E apesar das rimas melancólicas, contavam mais sobre aquele
mundo que estivera escondido por tanto tempo.
Deixou-se levar pela melodia. Fechou os olhos, aproveitando a
sensação dos dedos raspando pelas cordas. Sua voz era rouca e um tanto
desafinada, mas soava boa o suficiente. E não foi com pouca surpresa que
ele viu a garota acompanhá-lo.
— Como conhece essa música? — ele perguntou, quando chegaram
ao fim.
— Eu não sei. — Anya corou, baixando os olhos — Minha mente
simplesmente sabia... Parecia escondida em algum lugar na minha cabeça.
Alexzander impressionou-se.
— E você gostou?
— Vai servir. — Ela riu, como se tivesse contado alguma piada.
— Servir para o quê? — ele indagou.
— Seu talento e sua voz. — Ela piscou um olho. — Você poderá ser
útil quando precisarmos de música no palácio.
Ele se engasgou com uma gargalhada.
— Você quer que eu seja seu bobo da corte?
— Bobo você já é. — Ela revirou seus olhos. — O que estou lhe
oferecendo agora é a Corte.
O rapaz congelou por um momento, engolindo em seco. Queria
perguntar o que ela queria dizer com isso, mas as palavras não saíam.
— Se eu me tornar Rainha. — Ela pigarreou. — Quero dizer,
quando eu me tornar Rainha, terei de formar meu próprio Conselho. E acho
justo que eu una em minha corte Duhnianos e... Havenmillianos? — Anya
franziu o cenho. — Bom, quero que seja parte de meu Conselho. Todos
vocês, na verdade. Vocês fizeram o melhor que podiam para manter essa
cidade em segurança, e se pretendo unificar os povos, tenho de começar de
dentro para fora.
Alexzander não sabia o que falar.
Foi pego completamente desprevenido, pois aquilo era muito mais
do que eles ousaram sonhar quando tudo aquilo começou.
Um lugar na Corte.
Um lugar no mundo.
Sentiu os olhos arderem.
Estava acontecendo.
Mesmo com todas as coisas ruins, estava realmente acontecendo. Os
anos de fuga iam finalmente acabar. Ainda sem ter certeza de como lidar
com aquele convite, o que disse foi:
— Espere até Silja descobrir que você contou isso para mim
primeiro.
E Anya gargalhou.
— O que te faz pensar que já não falei com ela?
— Acha que ela não teria jogado isso na minha cara?
— É, teria sim. — A princesa se levantou, ainda rindo. Então,
estendeu a mão pra ele ao completar: — Estou com fome, vem comigo?
Alexzander soube que iria para qualquer lugar que ela o chamasse,
que eles eram agora algum tipo de família também.
E o sentimento era bom.
Mesmo enquanto comia, o formigamento ainda tomava conta do
corpo de Anya. Seus dedos apertavam o sanduíche em ecos dos
movimentos que fizeram enquanto tocava.
Sentira falta daquilo.
Sentira falta do controle que parecia ter sobre o mundo quando a
melodia irrompia do instrumento e espiralava ao seu redor. Quando ela
transformava seus movimentos simples em arte.
E ainda que o som e a técnica fossem outros, era bom o bastante.
Tentou não pensar em seu piano, ou na última vez em que se sentara
diante dele para deixar a mente correr livre. Tentou, sem sucesso, se afastar
das lembranças daquela noite. De seus dedos dançando pelas teclas e, mais
tarde, sentindo a maciez de cabelos vermelhos e de músculos bronzeados
por tantas horas expostos ao sol.
A última noite que tivera com seu melhor amigo.
Já eram oito dias sem que tivesse qualquer notícia sobre ele. Farah
não o tinha visto durante sua fuga, e ela só poderia rezar para que ele
estivesse bem. Para que sobrevivesse e ela pudesse abraçá-lo outra vez.
Havia tantas coisas que queria contar a ele, e tantas outras que
adoraria mostrar...
Anya voltaria ao palácio sendo uma pessoa completamente diferente
daquela que era quando o deixou, e dentre todos os motivos pelos quais isso
a assustava, Conan era o que mais a preocupava.
Será que ele a perdoaria por tê-lo deixado para trás?
Seria capaz de amá-la quando descobrisse sobre a magia que agora
corria dentro dela? Porque assim como Anya, o soldado crescera ouvindo
todas as histórias sobre os perigos da magia. E não apenas isso, ele passava
seus dias protegendo o palácio e lidando diretamente com conjuradores.
Esperava que sim.
Não poderia perder mais ninguém, principalmente ele.
Conan era sua última conexão com a vida antiga, e queria que o
soldado fizesse parte da nova também. Sem precisarem esconder a amizade
que tinham, sem precisarem fugir dos olhos julgadores de todo mundo.
Ele e Silja se dariam tão bem! Tinham o mesmo tipo de humor
volátil e cheio de grosserias não intencionais. A princesa já conseguia vê-
los no campo de treinamento se engalfinhando em lutas e duelos de espadas
— a curandeira lhe confessara naquela mesma manhã seu desejo de
aprender a manejar as lâminas, e não havia ninguém melhor do que Conan
para ensiná-la.
Bom, talvez Isaac — o soldado que a treinava com mais frequência
— duelasse melhor, mas não sabia se ele aceitaria.
Ah e por todas as Sete, Conan riria tanto de Anya quando ela lhe
contasse sobre Delilah... sobre como perdia até mesmo o controle de sua
respiração quando estava perto dela.
O soldado estava sempre lhe perguntando se ela havia conhecido
alguém. E a princesa simplesmente ria, dizendo que acreditava ser incapaz
de encontrar algo assim. E como poderia, quando soldados me escoltam em
cada lugar que vou?, respondia.
Minha única salvação é ter um destes soldados ao meu lado,
brincava. E logo depois lhe devolvia a pergunta.
Mas Conan apenas revirava os olhos dizendo que em seu coração só
havia espaço para uma única mulher, e que ela já era mais dona de sua cama
do que ele próprio. Sempre um conquistador.
Se ele a visse agora...
Sem perceber que algumas lágrimas escorriam por seu rosto, a
princesa teve os pensamentos interrompidos por Alexzander.
— Ei, o que foi?
— Nada. — Ela passou o dorso da mão nas bochechas úmidas. — É
difícil lembrar do que ficou para trás.
O rapaz lançou-lhe um sorriso fraco, enchendo sus canecas com um
pouco mais de chá de maçã.
— Vamos recuperar o que você deixou lá. Vamos recuperar e
reconstruir. Vamos erguer um reino digno de histórias e de baladas. — Ele
sorriu ainda mais — E seus pais saberão, de um jeito ou de outro, que
criaram a melhor rainha que Duhn já viu.
Anya devolveu-lhe o sorriso, sabendo que daria tudo de si para
honrar sua família. E mais: para consertar os erros do passado e deixar o seu
próprio legado.
Deixar sua marca na história.
E as perdas, nenhuma delas seria em vão.
Delilah não tirava um dia de folga há mais tempo do que conseguia
se lembrar. E depois do festival e do que quase aconteceu nele, aquele se
tornou um péssimo dia para se ter tempo livre.
Café algum pareceu forte o suficiente para afastar seus pensamentos
da sensação de ter a princesa tão perto de si. Da mão dela firme em seu
quadril e do sorriso que abriu segundos antes de se inclinar para beijá-la. E
antes que se deixasse levar de vez por aquelas lembranças, a meio-bruxa já
estava na praça central, ajudando a desmontar o altar, a desenrolar os
enfeites e a lidar com toda a bagunça que restou ali.
Ela se arrependeria disso mais tarde. Quando tudo ficasse agitado
demais, corrido demais, e mal restasse tempo para respirar. Mas por ora,
agradeceu por ter algo com o que manter as mãos ocupadas.
E assim que a noite caiu, seu corpo estava exausto demais para
divagar. Deixou que o sono a levasse antes mesmo que pousasse a cabeça
no travesseiro.
Seu dia de folga se esvaiu entre seus dedos, e quanto percebeu, um
novo alvorecer a levou direto para a clareira. Para mais um dia de
treinamento.
Para ela.
Delilah já tinha meditado antes mesmo de sair de casa, aguardando
pela princesa em meio às cerejeiras pensando somente em escudos
protetores e estratégias de defesa e ataque.
Mas no instante em que a garota surgiu por entre as árvores, todo o
seu raciocínio lógico espiralou pelos ares.
Tinha substituído os trajes de treino por calças justas de malha e
uma túnica folgada que descia até metade de suas coxas. Os cabelos
volumosos estavam perfeitamente contidos em uma trança sobre seu ombro.
Completamente de preto, não fosse pela única flor de cerejeira que
trazia atrás da orelha esquerda.
Sua expressão dizia que havia acabado de acordar, e Delilah se
censurou por pensar que ela nunca estivera mais bonita.
— Bom dia. — A garota abriu um sorriso tímido.
E a meio-bruxa percebeu que ela não deu aquele passo final para
dentro da clareira, que permaneceu parada entre os galhos cobertos pelas
mesmas flores que trazia no cabelo.
Tinha um olhar hesitante, parecendo na dúvida sobre o que fazer em
seguida.
Quem dera Delilah soubesse.
— Gostei da flor — elogiou sem pensar.
E isso tirou uma risada da princesa, que levou inconscientemente a
mão até onde a sakura repousava. Ela mordeu o lábio inferior e disse:
— Você não me deu nenhuma, então, tive que providenciar sozinha.
A meio-bruxa levou alguns segundos para entender que ela estava
brincando. Segundos estes em que seu coração mudou de ritmo três vezes
diferentes.
A garota era terrível.
— Ficou bom — disse finalmente, revirando os olhos.
— Obrigada, foi o mais próximo que já consegui chegar desse tom
de rosa — respondeu, encarando fixamente os cabelos de Delilah.
Ela sentiu as bochechas arderem.
Costumava ser ela a fazer os comentários que deixavam a princesa
sem jeito, não o contrário. E Anya parecia disposta a tomar seu lugar.
Mas aquele era um jogo que a meio-bruxa participaria com vontade.
E ela não jogava para perder.
— E o quão perto você gostaria de chegar?
Sem ao menos pensar, e tampouco desviar os olhos dos seus, Anya
desfez a distância que as separava, parando a centímetros de sua orelha e
sussurrando:
— O máximo que puder. — E continuou seu caminho até onde os
colchonetes esperavam por elas para a meditação.
Delilah estava errada.
Teria de se esforçar muito mais se quisesse vencer a garota.

— O que faremos hoje? — Anya questionou após os exercícios de


respiração.
Havia deixado o chalé naquela manhã sem ter certeza de como
agiria, se deveria fingir que nada tinha acontecido ou apenas ver para onde
as coisas se encaminhavam.
Mas ela não era assim.
Ela não sabia ignorar, não sabia esconder o que sentira.
Você transcreve todos os seus sentimentos na testa, sua mãe
costumava dizer. E Elysia estava certa.
Sempre lidou com aquele tipo de atração com provocações, com
piadas e bom humor. Conan era uma grande prova disso.
E quando Delilah brincou a respeito da proximidade que a princesa
desejava, não conseguiu evitar. E quis dizer cada maldita palavra.
Sim, ela queria que as duas ficassem mais perto.
Queria puxá-la para si e terminar o que mal haviam começado
naquela noite. Só para ver se isso acalmaria o frio na barriga, o arrepio em
sua pele.
— Ensinarei você a erguer escudos impenetráveis — Delilah sorriu
— e depois mostrarei como derrubá-los.
Anya achou graça.
— Não faço ideia do que isso significa.
Então, a meio-bruxa lhe mostrou.
Delilah ensinou-a a criar uma infinidade de plantas e raízes e provou
o que já havia dito sobre a eficiência da magia estar mais relacionada com
conhecer seu inimigo do que a intensidade de seu poder.
Juntas, ergueram e derrubaram barreira após barreira. Das mais
rígidas até as mais maleáveis. Feitas de terra ou feitas de vento.
Nenhum escudo era impenetrável, ela descobriu. Sempre haveria um
ponto fraco. Tanto no dela quando no do inimigo. Só precisava conhecê-los
bem.
Mas o tempo parecia pregar uma peça nelas, como sempre fazia.
Uma manhã inteira se desenrolando no que poderiam ter sido poucos
minutos.
Era verdade que ele corria mais rápido quando estava se divertindo,
mas tempo não era algo que tivessem de sobra. Precisavam de cada mísero
segundo e, ainda assim, ele se esvaía como água corrente por entre seus
dedos.
Mal pararam para almoçar, e quando voltaram para a clareira, Anya
estava mais determinada do que nunca. O tempo poderia debochar de sua
necessidade por ele, no entanto, não deixaria que isso a intimidasse.
— Concentre-se — repetia Delilah, todas as vezes em que conseguia
transpassar suas barreiras.
Para cada escudo que Anya erguia, a meio-bruxa lhe mostrava uma
nova forma de atravessá-lo. Descobriu que bambu, apesar de resistente, não
se fechava o suficiente para manter água ou vendo do lado de fora. Que
heras, apesar de frágeis, eram excelentes tentáculos — tanto para atacar
quanto para defender.
Assim, se passou o resto da tarde.
E Anya se surpreendia cada vez mais com a amplitude de
possibilidades que seu poder possuía.
Perguntava-se até que ponto ele se limitava, até onde ela seria capaz
de moldar terra ou ar. E morria de curiosidade se havia algo a mais
reservado para ela.
Ainda estava se adaptando ao título de Elementarista, mas não
conseguia evitar em pensar se poderia ser mais alguma coisa. Silja era uma
Curandeira e uma Artesã. Farah era uma Artesã e uma Elementarista.
E já que a princesa tinha chegado até ali, não se importaria caso
houvesse mais esperando por ela.
Queria perguntar a Delilah sobre isso, queria saber que tipo de
treinamento envolveria as outras funções.
Mas quando estava prestes a trazer à tona os infinitos pensamentos
que se sobrepunham em sua cabeça, a voz de Silja ecoou pela clareira.
— Aí estão vocês! — exclamou, mesmo sabendo que não havia
outro lugar onde pudesse as encontrar naquele momento.
Ela e Farah vinham de braços entrelaçados, caminhando apressadas
por entre as cerejeiras.
Só então, Anya percebeu que já estava escurecendo. Mais um dia
havia se passado. Mais um dia em que tivera seus poderes trespassados
pelos de Delilah de novo e de novo e de novo.
Precisava melhorar e rápido.
E precisava saber se poderia fazer mais alguma coisa para ajudar.
Amanhã perguntarei a ela, pensou.
Amanhã.

Farah estava com vergonha de falar sobre aquilo em voz alta. Já


havia contado à Silja como sua magia era estranha, instável, não confiável.
Mas ali, na frente de Delilah e de sua melhor amiga... Fazia tudo parecer
mais real.
Não queria que olhassem para ela com pena. Ou pior, decepção.
Não suportaria o desapontamento de quando descobrissem que estavam
contando com alguém incapaz de ajudar por completo.
O que faria caso a culpassem pelo que aconteceu no castelo? Caso
concluíssem que foi sua insuficiência a culpada pelo destino do Rei, da
Rainha, de seu próprio pai? Será que estariam todos vivos se qualquer outra
pessoa estivesse em seu lugar?
Só as Sete sabiam que Farah já se condenava o suficiente. O quanto
desejava ter contado tudo aquilo antes. Antes da invasão, antes dos planos,
antes de descobrirem a verdade sobre a linhagem da princesa.
Não lhe faltaram oportunidades. Mas era orgulhosa demais para
isso. Para admitir que seu corpo rejeitava o presente que recebeu de Verena.
Que apesar de ser uma filha da Luz, a Luz a estava abandonando.
O que isso dizia sobre ela?
Será que a Bruxa Primordial era capaz de ver tudo o que Farah
escondia dentro de si e, por isso, estava tirando dela seus poderes?
Porque a verdade era que a artesã nunca se sentiu parte de
Havenmill. Ainda que tivesse nascido ali, ainda que tivesse realizado a
Travessia e sentisse a energia correndo dentro de seu corpo.
Ela tinha sido levada embora cedo demais. Deixou sua casa, seus
amigos, tudo o que conhecia para trás. E foi obrigada a começar uma vida
nova.
Lá fora.
Onde tudo o que ela sabia sobre si mesma era abominado, temido,
perseguido. Se fosse honesta consigo mesma, cresceu com medo daquele
poder. Não pelo mesmo motivo das pessoas no Mercado, mas pelo que a
magia poderia causar a ela. As consequências que sofreria caso fosse
descoberta.
Farah só tinha nove anos.
Tinha nove anos quando seu pai foi escalado para se infiltrar no
Conselho Real. E por mais da metade de sua vida, Wellin foi sua casa.
Duhn sempre seria o lugar onde aprendeu a escrever seu nome, onde
conheceu sua melhor amiga e deu seu primeiro beijo. E doía, pelas Sete,
como doía que também não sentisse no reino a sensação de lar.
Farah pertencia a todos os lugares ao mesmo tempo. E no final do
dia, não pertencia a lugar algum.
E ali, no centro da clareira, na frente das pessoas que mais
importavam, admitir que suas habilidades falhavam com ela era como
cortar o último laço que restava com seu pai. Com o lugar onde nasceu.
— Não esperava vê-las hoje — Delilah comentou, vindo lhe
abraçar.
Anya sorria para ela logo atrás, e só então a artesã percebeu a
confusão em que a clareira se encontrava. Terra revirada, pedaços de galhos
retorcidos, folhas e flores espalhadas por todos os lados...
— Eu queria... pedir sua ajuda com uma coisa. — Forçou-se a dizer.
— Estamos atrapalhando vocês?
A princesa negou rápido demais.
— Já estava me preparando para voltar ao chalé. — Ela virou-se
para Delilah. — Vejo você amanhã?
E o que se seguiu foi uma sequência de cenas que deixaram Farah
perplexa.
Anya abriu um meio sorriso e piscou com um olho para Delilah,
que, por sua vez, pareceu prender a respiração por um segundo — e suas
bochechas ficaram tão cor de rosa quanto seus cabelos. Então, ela mesma
desenhou um sorriso zombeteiro no rosto e analisou cada centímetro da
princesa, finalmente dizendo:
— Eu espero que sim.
Farah conhecia a princesa bem demais, e viu em seus olhos antes de
ir embora tudo o que estava acontecendo. Ah, elas teriam muito sobre o que
conversar naquela noite.
E quando o contorno de Anya desapareceu por entre a floresta, a
artesã respirou fundo e começou a falar.

— Você poderia ter me contado. — Delilah mordeu o lábio,


pousando delicadamente o braço sobre os ombros de Farah. — Eu teria
ajudado.
A artesã estava aliviada.
Ouvir de alguém experiente como Dell que treinamentos intensos
resolveriam o problema foi como respirar fundo pela primeira vez após
voltar de um mergulho.
Seus poderes tinham sido reprimidos por tanto tempo, que agora não
sabiam muito bem como se comportar.
Ela não estava sendo punida pelo seu fracasso. Verena não estava
tomando sua magia de volta por achar um desperdício mantê-la em alguém
como ela.
Era apenas uma consequência da vida que fora forçada a ter. Não
usava suas habilidades para nada além de cultivar suas flores em Wellin, e
ainda assim, o fazia antes de todo o comércio abrir, trancada dentro de sua
loja. Temendo que o cheiro da magia os denunciasse.
— Acha que o medo pode ter interferido também? — perguntou.
O abraço de Delilah se apertou um pouquinho, como se sentisse
cada uma daquelas palavras como uma dor sua.
— Com toda a certeza. Mas não precisamos mais falar ou pensar
nisso. Você treinará todos os dias, independente de qual grupo estiver
escalado para o dia. Será cansativo, mas daremos um jeito nisso.
Poderia fazer isso.
Faria isso.
— Acha que estarei pronta quando tivermos de lidar com o
Príncipe? — Farah estremeceu com o pensamento.
— Eu não sei se qualquer um de nós estará pronto para isso. —
Delilah suspirou. — Mas é a única opção que temos.
Tentou conter o pesar em seu coração, e se odiou por aqueles breves
segundos em que se irritou com o pai por tê-la levado embora. Não era
culpa dele.
Magmar se oferecera para aquela missão não somente por ser um
dos melhores Artesões de Havenmill, mas porque precisava
desesperadamente de novos ares. Viver ali o estava matando dia após dia.
A mãe da garota partiu de Havenmill deixando a filha ainda
pequena. Não suportava a pressão de viver escondida, e detestou cada
segundo de sua existência naquela cidade.
Então, foi embora.
Farah a odiava por isso.
Por tudo o que fizera seu pai passar.
E inicialmente, Magmar aceitara sair de Havenmill para procurar
por ela, para descobrir que parte do reino Elena escolhera para viver. Que
lugar em Duhn poderia ser melhor do que ao lado da filha.
Lugar nenhum, era a resposta. Pois Elena havia sido pega pela
Coroa pouco tempo depois de ter ido embora da cidade escondida. Ele
buscou por seus registros no gabinete uma vez.
Suspirando alto, Farah escorou a cabeça no ombro de Delilah.
Tudo ficaria bem.
Ela, que por tanto tempo estivera quase sozinha, estava agora
rodeada de pessoas que se importavam com seu bem-estar e sua segurança.
Era o bastante.
Duas semanas voaram tão rápido quanto o vento que Anya já
controlava com perfeição.
Ela tentava não pensar em como o tempo se esvaía com facilidade,
nem em como o inevitável se aproximava sorrateiramente para puxá-la
pelos tornozelos: seu encontro com Benjamin.
O momento que decidiria e mudaria tudo.
E ainda que a evolução de suas habilidades fosse impressionante
temia não ser o suficiente.
O fato de Delilah ter sugerido que passassem também a treinar um
pouco de combate não ajudava. Ela insistira de forma quase exagerada que
Anya passasse a trazer consigo a adaga com o brasão do reino para que
praticassem, e isso fez a princesa vacilar um pouco em sua segurança com a
magia.
Talvez fosse tudo em vão.
Talvez não houvesse chance alguma.
E essa possibilidade a atormentava a cada segundo de cada dia.
O que aconteceria com Duhn caso Benjamin a derrotasse? O que
seria de todas aquelas pessoas com as quais passara a se importar? E com
aquelas ainda presas no castelo, à mercê da magia de seu primo?
No entanto, a outra alternativa a angustiava tanto quanto essa.
O que faria caso ela vencesse?
Quando tudo aquilo começou, a necessidade de ajudar seu povo, de
salvar os pais e, mais tarde, vingá-los, se tornou mais importante do que
qualquer coisa. Mas a pergunta que agora a perseguia mesmo durante o
sono era... vingá-los como?
Em quem teria de se transformar para fazer o que era certo? E ainda
seria certo se precisasse mudar quem era?
Praticava todos os dias, melhorava todos os dias. Descobrira novas
habilidades, dominara as que já possuía, e ficava mais forte a cada instante.
Mas o que faria com isso?
Prenderia Benjamin nas masmorras pelo resto de sua vida? Se
Alethea parara o Tempo para ele, como todos suspeitavam que havia feito, a
existência da princesa não seria nada frente a todo o tempo que ele ainda
teria para conquistar o que queria.
Isso significava que teria de matá-lo?
Ela não era uma assassina. Se fizesse isso, se usasse da morte para
tirar os problemas do seu caminho, não seria em nada melhor do que ele.
Seria?
Mesmo com tantas perguntas sem resposta, os dias não
desaceleravam. O tempo não lhe dava trégua. Agora, apenas duas semanas
a separavam de ter de resolvê-las por definitivo.
E aquela maldita adaga em sua cintura a lembrava constantemente
de que poderia ser tudo em vão.
Quando a levou para casa naquele primeiro dia, passou madrugada
adentro examinando-a. Buscando por qualquer sinal que explicasse o que
ela fazia em Havenmill. A quem pertencera antes.
Era coincidência demais que houvesse algo assim na cidade, mas
Delilah sempre lhe dava respostas vagas sobre esse assunto. Não como se
tentasse desviar dele, mas como se apenas não se lembrasse. E Verena
parecia muito ocupada fazendo suas coisas de Bruxa Primordial para
recebê-la no Refúgio.
De qualquer forma, os dias da princesa tinham se tornado muito
mais ocupados.
O treinamento se intensificara ainda mais depois de pedir a Delilah
que a ajudasse a descobrir se havia outras habilidades dentro dela.
Havia, afinal.
Descobriram que Anya era capaz de projetar, que conseguia levar
sua voz através da luz e se comunicar de forma discreta. Era algo muito útil
em combate e até mesmo em defesa, a meio-bruxa havia lhe dito. Permitia
que se mantivesse em contato com seu grupo mesmo que separados.
Claro que seu alcance não era tão surpreendente assim, mal
conseguiu projetar para um passo além da clareira. Mas Rastreadores eram
raros, Delilah dissera. E a princesa deveria se orgulhar de si mesma.
A Luz, descobriu, era ainda mais difícil de manipular do que a terra.
Sim, ela estava em todos os lugares ao mesmo tempo, mas impossível
imaginá-la em uma forma específica — apenas Verena era capaz de
materializá-la —, isso dificultava o acesso e a influência sobre ela.
E havia outra coisa que ambas tinham descoberto sobre a projeção
da princesa. Uma que deixara Delilah tão empolgada que mal parecia a
mesma mulher que via todos os dias.
Anya também conseguia enxergar pela magia.
Elas mal conseguiram acreditar no que havia acontecido quando a
princesa treinava sua projeção e, ao invés de levar sua voz através do
mundo, levara sua visão — encontrando a mão de Delilah às costas, com o
dedo indicador cruzado sobre o dedo médio em uma superstição de boa
sorte.
A meio-bruxa ficou boquiaberta quando a princesa a repreendeu
pelo gesto — dizendo que para alguém conectada tão intrinsecamente com
a magia, colocar seu sucesso nas mãos do acaso era quase ofensivo —, e
levou algum tempo até que a própria garota percebesse o que havia acabado
de fazer.
Não se formava um Rastreador há décadas e, mesmo antes disso,
eles conseguiam falar ou ver usando magia. Não os dois.
E estavam há exatos quatro dias praticando apenas isso.
Tentando, na verdade.
Se simplesmente projetar já era difícil, fazer isso com a visão
parecia impossível. A princesa chegou a pensar que tudo não tinha passado
de um delírio delas, pois não conseguiu repetir a façanha uma única vez.
Então, ali estava ela.
Há três horas parada no centro da clareira, tentando encontrar um
bilhete escondido pelas árvores.
Ele vale um prêmio surpresa, dissera a meio-bruxa naquela manhã,
para encorajá-la a levar a busca a sério.
— Acho bom para você que valha à pena — resmungou Anya, que
já mal conseguia enxergar com os próprios olhos, muito menos através da
Luz.
— Prometo não te decepcionar — Delilah respondeu, abrindo
aquele sorriso que roubava o ritmo de seu coração.
Elas não haviam falado sobre o quase beijo, mesmo tantos dias
depois. Mas as coisas pareciam ter evoluído.
A princesa percebia os olhares frequentes que Delilah lhe dirigia
quando achava que ela estava desatenta. E os comentários sarcásticos que
eram de costume da meio-bruxa sempre vinham acompanhados de um
sorriso bonito demais para seu próprio bem.
E havia aquela... tensão.
Uma energia que parecia puxá-las uma para perto da outra, que
trespassava seus corpos com uma descarga elétrica quando suas peles
estavam a ponto de se tocar.
Mas elas nunca o faziam.
Era como um jogo silencioso para ver quem cederia primeiro.
Passavam os dias treinando uma em frente à outra, tão próximas que suas
respirações se mesclavam. E nenhuma delas desistia.
Apenas Anya sabia a vontade que tinha de beijá-la. De se inclinar
naqueles poucos centímetros que as afastavam e colocar seus lábios nos
dela.
Em sua cabeça, Delilah tinha gosto de café amargo e mel. Uma
combinação que a intrigava e a deixava desejando provar. E quando a
mulher sustentava seu olhar por muito tempo, quase conseguia sentir aquele
gosto na língua.
Que as Sete a protegessem.
— Vamos, Princesa — Delilah provocou, parada apenas um passo
às suas costas. — Não está tão difícil assim.
Anya olhou por sobre o ombro.
— Deveria tê-lo me mostrado antes de escondê-lo. É difícil
encontrar algo que você não sabe como se parece.
A meio-bruxa gargalhou. O som reverberou em cada uma de suas
terminações nervosas, fazendo os pelos de sua nuca se arrepiarem.
— Prometo a você que se parece com um pedaço de papel.
E quando Delilah parecia prestes a continuar provocando-a, Anya
soprou suas palavras para longe.
Literalmente.
Uma rajada morna de vento atravessou a clareira, abafando o som
que vinha da meio-bruxa.
Virando-se para encará-la, a princesa levou uma das mãos ao
ouvido.
— O quê? — gritou. — Pode falar mais alto, por favor?
Delilah fechou a boca, cruzou os braços e esperou. Esperou até que
Anya parasse de rir e acabasse com a ventania.
A mulher se aproximou devagar, seu rosto estava inclinado de forma
que os cabelos cobrissem parte dos olhos semicerrados. A sobrancelha
arqueada acompanhava a curva no canto de sua boca e, enquanto Delilah se
inclinava em sua direção, Anya pensou que ela tinha cedido.
Que a meio-bruxa finalmente lhe daria o que estava esperando dias
para conseguir.
E quando seus rostos estavam tão próximos um do outro que a
princesa afastou levemente os lábios, as palavras sussurradas de Delilah a
fizeram soltar todo o ar que prendia em uma única vez.
— Terá de recomeçar a busca, princesa. Seu vento mudou o bilhete
de lugar.
E o sorriso triunfante que desenhara no rosto mostrava que ela tinha
plena consciência de cada um dos pensamentos que acabaram de cruzas
pela cabeça da garota.

A praça central se transformou em uma confusão completa.


Claro que pessoas adultas que já usavam suas habilidades há anos
tinham um bom controle sobre elas. Mas eles eram muitos.
E falavam todos ao mesmo tempo.
Mesmo que Alexzander os tivesse dividido em grupos.
Havia colocado Curandeiros e Artesões para trabalharem juntos. As
proteções da cidade precisariam de Artesões constantemente alimentando
suas forças para garantir que mesmo com as oscilações no poder de Verena,
elas nunca caíssem. E os Curandeiros ficariam responsáveis por mantê-los
atentos às limitações de seus próprios corpos. Seriam eles a organizar os
turnos, os grupos, o tempo em que cada artesão seria capaz de usar suas
habilidades continuamente.
Eram as duas funções mais importantes e, por isso, Alexzander deu
prioridade aos seus treinamentos. Tinha esperança de que, em poucos dias,
tudo estivesse pronto para que eles começassem.
Quanto aos Elementaristas...
Bom, só poderiam rezar para que as coisas não chegassem àquele
ponto. Eles seriam usados caso as estratégias de contenção não fossem
suficientes. Caso alguém conseguisse se infiltrar em Havenmill e a cidade
precisasse se defender.
Ou atacar.
Aquele grupo tinha começado os treinamentos há dois dias, ainda
estavam agitados, lidando com a verdade de que a cidade escondida já não
era tão segura quanto fora um dia.
Depois de tantos anos vivendo lá embaixo, parecia que todos
haviam se esquecido de que existia algo além. E que este algo os queria
mortos.
Os dias eram tão agitados que ele mal via a irmã.
Silja não estava treinando com ele. Ela passava seu tempo reunida
com as crianças da cidade.
Tinha contado a elas sobre o que estava acontecendo, sobre por que
os adultos andavam tão ocupados. Não disse que havia uma ameaça real,
apenas que estavam se certificando que Havenmill sempre fosse um lugar
seguro para eles. E que quando ela, Alexzander e os outros fossem fazer
uma visita ao castelo, os pequenos precisariam se comportar direitinho para
que tudo funcionasse bem.
A curandeira tinha jeito para lidar com eles, conseguia transformar
situações assustadoras em coisas simples. E respondeu todas as perguntas,
por mais bobas que parecessem, quando contou que eles seriam reunidos
em pequenos grupos nas casas que ladeavam a praça central.
Será uma grande festa do pijama, tinha dito. E cada grupo de cinco
crianças teria um Artesão e dois Curandeiros para... entretê-los.
Alexzander chegou a sugerir que ela ficasse.
Que Silja acompanhasse as crianças ali mesmo quando os outros
fossem atrás de Benjamin. Sabia qual seria sua resposta, mas precisa tentar.
Era incapaz de colocar em palavras o quanto a ideia de que sua irmã
partisse em direção ao desconhecido o aterrorizava.
Ninguém sabia o que esperar daquele confronto.
Ninguém sabia o que fariam quando chegassem lá.
A única certeza que tinham era de que precisavam impedir o
príncipe, que precisavam pará-lo antes de ter a Coroa sobre sua cabeça. Os
meios que usariam para tal não passavam de suposições.
E como esperado, a curandeira lançou-lhe um olhar furioso ao dizer:
vou fingir que você não acabou de me dizer um absurdo desses.
Para ser honesto consigo mesmo, Alexzander a amava ainda mais
por isso. Por não desistir e nunca deixar nenhum dos seus para trás.
Colocando as mãos sobre o cercado de madeira da varanda, ele
observou sua cidade anoitecer, aproveitando os poucos minutos que teria
para simplesmente respirar um pouco.
Farah chegaria em breve para que continuassem seus treinos
particulares. E se impressionava com a dedicação da artesã.
Ela aparecia pontualmente todas as manhãs e tardes,
independentemente dos grupos presentes. E ainda pediu que Alexzander a
ajudasse nos fins de tarde.
A garota tinha potencial para ser tão boa quanto o pai, precisava
apenas exercitar melhor o uso de sua magia. E o rapaz conseguia ver o
quanto ela se culpava por isso. Por saber que era boa, mas não tinha sido
treinada o suficiente. Via naqueles olhos cor de avelã o quanto ela se
perguntava se teria sido capaz de salvar Magmar caso tivesse sido
preparada.
Queria conseguir tirar aquele pesar do peito dela, dizer que Farah
tinha feito o melhor que podia com aquilo que tinha à disposição. Dizer que
se orgulhava dela.
Mas tinha medo.
Tinha medo, pois via aquele outro sentimento estampado no gosto
da garota. Via em cada sorriso perfeito que ele se esforçava tanto para
ignorar.
Não havia possibilidade alguma de dar uma chance para aquilo, não
quando ela era filha de um de seus maiores amigos. Não quando tantos anos
separavam os dois.
Jamais perdoaria a si mesmo por magoá-la.
Então, só lhe restava fingir que não percebia.
Estava tão entretido nos próprios pensamentos que, quando
percebeu, uma princesa com os cabelos encharcados — tão molhados que
ela parecia ter acabado de sair de dentro de um rio — subiu os degraus da
varanda pisando duro. Um rastro de pingos grossos de água a seguiam por
todo o caminho que fazia.
— Devo perguntar? — Ele ergueu uma sobrancelha.
E com uma gargalhada alta, ela negou com a cabeça — jogando
algumas gotas até onde o rapaz estava.
— Melhor não.
Delilah estava cansada de esperar que a garota encontrasse o bilhete.
Não porque o choque ao descobrir que a princesa era uma
Rastreadora tivesse passado — isso era algo do qual não se recuperaria tão
cedo. Setenta e quatro anos já haviam se passado desde que o último deles
aparecera na cidade, e era ainda mais impressionante saber que Anya
projetava dois dos seus sentidos.
E também era verdade que tinha pregado uma peça nela quando
escondeu o bilhete da primeira vez. Colocou-o sob uma pedra, impedindo
que qualquer resquício de luz tocasse nele — tornando simplesmente
impossível rastreá-lo.
Anya ficou furiosa quando descobriu, o que resultou em uma
pequena disputa entre elas.
Riu sozinha ao pensar na garota indo embora completamente
ensopada, depois que a meio-bruxa usou a água do córrego para atacá-la.
Ainda assim, estava cansada.
Cansada e, principalmente, ansiosa.
A princesa já procurava por aquele bilhete há três dias. E por mais
que adorasse as provocações, que se divertisse ao ver a respiração dela se
acelerar cada vez que ficavam muito perto uma da outra, não aguentava
mais.
Estava oficialmente desistindo daquele jogo.
Precisava descobrir a sensação de tê-la em seus braços, precisava
saber se sua boca era tão macia quanto ela imaginava.
Então, tirou o bilhete de seu esconderijo original, substituiu a
mensagem e colocou-o no centro da clareira, à plena vista. Uma última
provocação, pois adorava ver a princesa irritada.
Você me deve um café, dizia o texto original.
Uma afirmação e um convite.
Todas as manhãs, Delilah deixava a mesa posta e preparava do seu
melhor café. Todas as noites, ela o bebia sozinha.
E isso lhe deu muitas noites mal dormidas para pensar em uma
forma melhor de chamar a garota para sair. Teve tempo para refletir sobre o
fato de que Anya era uma maldita princesa, que servir-lhe café em um copo
de vidro não era a melhor forma de impressioná-la.
Embora não tivesse muita certeza de por que queria impressioná-la.
Se o frio na barriga não era um sinal ruim o suficiente, os
batimentos acelerados certamente terminavam o trabalho. E quando
percebeu, o que tinha nas mãos era um vestido rodado e cheio de bolinhas
coloridas que ela nem ao menos lembrava que tinha.
— Nem pensar — disse para si mesma, atirando-o de volta no
armário.
Levar a princesa até seu lugar preferido de Havenmill era uma coisa,
vestir aquilo era outra completamente diferente.
Colocando uma túnica marfim para dentro das calças pretas,
adicionou seu corselet sem alças preferido. Não gostava de vestidos, mas
ainda queria parecer bonita.
Delilah massageou as têmporas. Estava realmente fazendo isso? Ela
nem sabia se Anya seguiria as instruções do bilhete e...
Que as Sete a ajudassem.
Pegando a cesta que preparara e segurando-a com toda a sua força,
saiu do chalé antes que tivesse tempo para mudar de ideia.

— Ela só pode estar de brincadeira — resmungou a princesa,


indignada.
Sabia que algo estava errado quando não avistou Delilah na clareira
ao chegar, ela nunca havia se atrasado. Mas o palpitar em seu coração e a
preocupação repentina logo deram lugar a outra coisa.
Descrença.
Porque não era possível que a meio-bruxa tivesse simplesmente
desistido. A princesa não queria acreditar que, depois de três dias dando o
seu máximo para rastrear aquele pedaço de papel maldito, a mulher tinha
resolvido que não valia a espera.
Mas ali estava ele, no centro da clareira.
Zombando dela.
Passou os olhos por entre as cerejeiras procurando pela meio-bruxa,
mas ela não estava ali. Não parecia se importar nem com a reação que Anya
teria.
Batendo os pés contra a terra, caminhou até onde o bilhete
repousava, rindo de sua cara.
Lembrando de respirar fundo para que sua raiva não causasse
nenhum estrago na clareira, puxou a adaga em sua cintura e cravou-a onde
o papel estava — puxando-o para si com a lâmina.
Por todas as Sete, estava furiosa.
Arrancando o bilhete com tanta força que ele quase se partiu em
dois, bufou e desdobrou o papel. As letras redondas e inclinadas de Delilah
a cumprimentaram.

Novo jogo: siga o córrego em direção à nascente

— Siga o... mas que diabos?! — Revirou os olhos, então gritou para
a clareira vazia. — Você nem me deu chance de vencer o primeiro!
Não era bem verdade.
Já fazia três dias que ela tentava rastrear aquele bilhete.
Três longos e cansativos dias.
— Tudo bem. — Suspirou, colocando a adaga de volta na bainha.
Seguiu em direção ao córrego nos fundos da clareira.
Sua respiração ainda estava acelerada pela raiva, mas também havia
nervosismo ali. Não sabia o que esperar.
Abaixou-se em frente à água cristalina, dando-se alguns segundos
para pensar. Passou os dedos pela correnteza fraca, observando os pequenos
galhos que eram arrastados com ela. Estava fria, ainda que Havenmill
estivesse envolta em uma onda de calor.
Era como se fosse ali fosse verão todos os dias, e Anya não
conseguiu deixar de pensar em como estaria lá fora. Duhn não era uma
região de altas temperaturas, mesmo em seus dias mais quentes havia quase
sempre um vento fresco que exigia, ao menos, um casaquinho leve.
Suspirou alto.
A cada dia que passava, sentia mais saudades de casa. E não houve
uma noite sequer em que seus pais não embalassem seu sono.
Sentia falta deles. Tanta, tanta falta!
Levantando-se novamente, a princesa começou a seguir o curso do
regato.
Caminhando lado a lado com ele, tentou desacelerar seus passos e
apreciar a paisagem. Nunca tinha ido naquela direção desde que chegara, e
perguntou-se o que poderia haver por lá.
As cerejeiras logo foram substituídas pelo verde habitual da cidade,
e os sons dos treinamentos na praça central foram ficando cada vez mais
distantes. Até que houvesse apenas ela, seus passos sobre a grama, e os
pequenos animais correndo por entre as árvores.
Os pássaros cantavam alegremente, acompanhando a melodia das
águas ao lado da princesa.
Ela seguia ladeando o córrego, como o bilhete dissera, mas bons
minutos já haviam se passado e não chegou a lugar algum.
E enquanto pensava sobre a possibilidade de Delilah estar pregando-
lhe outra peça — como fizera ao colocar o bilhete sob uma pedra —, Anya
ouviu o som de água se intensificar. Como se despencasse de um ponto alto
e se chocasse contra rochas.
Mesmo sem conhecer a região, sabia que estava chegando. O
córrego se tornava mais largo e, então, desaparecia sob uma cortina de
folhas de salgueiro.
A princesa já amassava o bilhete entre as mãos, pronta para atirá-lo
na meio-bruxa quando atravessou a folhagem que a impedia de ver o outro
lado. Mas assim que o fez, congelou no lugar.
O regato se abria em um pequeno lago e, ao fundo, uma cascata
descia por entre um paredão de rochas. Mas o que lhe chamou mais atenção
não foi a água impossivelmente azul, tampouco as flores que boiavam sobre
ela. Foi a minúscula ilha que repousava bem em seu centro.
O pedaço de grama reluzente acomodava um único salgueiro que
derramava suas folhas tão compridas, que algumas chegavam a tocar na
água.
E ela.
Delilah estava sentada sobre o gramado, escorada no tronco da
árvore de forma tão relaxada que Anya chegou a pensar que ela não a tinha
notado ali.
E por todas as Sete Bruxas, ela estava incrível.
Em meio a tanto verde, seus cabelos rosa claros se destacavam ainda
mais, e seus olhos pareciam quase entediados enquanto girava uma flor
entre os dedos.
— Vai ficar parada me encarando ou pretende vir até aqui? — A voz
de Delilah fez a princesa se arrepiar.
— Eu não... como... — gaguejou, ainda surpresa com a situação
toda. — Que lugar é esse?
A mulher não respondeu.
— Não sei como chegar aí — Anya insistiu.
E gesticulou na direção das águas, onde nenhum tipo de ponte ou
trilha parecia existir.
Delilah finalmente olhou para ela.
As duas esmeraldas brilharam mesmo de longe, e aquele sorriso
debochado que ela abriu fez cada terminação nervosa da princesa reagir em
resposta. Levantando-se da grama, a mulher caminhou até a beirada da ilha.
— Ora, Princesa, seja criativa. — Ela apontou para uma pequena
cesta que tinha ao lado dos pés, uma que a princesa nem havia percebido
ainda. — Não espera que eu lhe entregue tudo de forma fácil, não é
mesmo?
E Anya não sabia se era por causa do tom que ela usava, ou a forma
como se arrastou na palavra quando a chamou de princesa, mas seu coração
disparou tão rápido que poderia abrir um buraco em seu peito.
Mas entendeu o que Delilah queria dizer.
E derramou seu poder no chão sob seus pés, sem esconder o sorriso
que surgiu quando as raízes começaram a se entrelaçar em uma ponte que a
levava até a pequena ilha.
A risada da meio-bruxa ecoou pelo vazio.
— Está bom o suficiente.
— Bom o suficiente? — chiou a princesa, levando as duas mãos à
cintura. — Vai me explicar o que está acontecendo aqui ou primeiro terei de
me aventurar sobre essas águas que eu não faço ideia alguma de qual
profundidade têm?
— Você sabe nadar? — Foi a pergunta de Delilah.
— Sei.
— Então, explicarei quando você chegar aqui.
— Terrível! — Anya gritou. — Você é terrível!
Uma gargalhada alegre foi a única resposta que teve.
Dando uma última olhada para sua ponte improvisada, a princesa
disparou por sobre as raízes. Ela correu para que não tivesse a chance de
mudar de ideia, e tentou não pensar na madeira rangendo sob suas botas.
E mesmo com o medo de simplesmente afundar naquelas águas,
Anya riu. Riu alto, como não ria em muito tempo.
A mão estendida de Delilah recebeu-a do outro lado, e a princesa
segurou-a com força antes mesmo de perceber o que estava fazendo.
Com um sorriso tão grande quanto o dela própria, a meio-bruxa
puxou-a para a segurança da ilha e, em poucos segundos, a princesa estava
envolvida em seus braços, gargalhando enquanto alguns galhos do salgueiro
se prendiam em sua trança.
Até aquele momento, não tinha realmente percebido como Delilah
era mais baixa que ela. Não quando a mulher era tão segura de si que
poderia muito bem ter dois metros de altura.
Mas enquanto a estava abraçando, percebeu que aqueles poucos
centímetros a menos eram o suficiente para que a respiração da meio-bruxa
viesse de encontro diretamente com a curva de seu pescoço, causando uma
centena de reações diferentes em seu corpo.
Finalmente reparando o quão próximas estavam, Anya deu um
passo para trás, afastando-se do toque.
— Agora vai me explicar o que está acontecendo? — perguntou,
esforçando-se para manter a voz firme.
— Estou desistindo. — Os olhos de Delilah brilharam.
— Desistindo?
Algo no peito da garota se revirou.
Decepção.
Ela foi atingida pelo sentimento com força, e quase precisou de um
passo para trás para recobrar o equilíbrio. No entanto, a meio-bruxa se
aproximou novamente — desfazendo o pouco espaço que havia entre elas.
— Essa coisa de fingir que não me importo — Delilah disse, com os
olhos fixos nos lábios da garota. — Desisto. Você venceu.
E todas as palavras não ditas pairaram entre elas.
O vento prendeu a respiração e as hastes do salgueiro congelaram
em meio a um movimento. Até mesmo as águas que as contornavam
silenciaram sua canção e aguardaram pelo que aconteceria em seguida.
Anya não conseguia dizer o que sentia.
Só ela sabia o quanto tinha fantasiado com aquilo. E ali, naquele
lugar incrível, Delilah estava diante dela admitindo que também a queria.
Que se importava.
E ainda assim, a princesa não sabia o que fazer. Queria envolvê-la
pela cintura e puxar seu corpo para junto do dela. Queria descobrir a
sensação daqueles lábios perfeitos contra os seus e se perder no aroma de
cedro e mel que espiralava ao seu redor.
Queria tanto.
Mas poderia?
Era justo colocar todo o seu treinamento, todo futuro em risco por
puro desejo?
Você sabe que é mais do que isso, seu coração parecia dizer. E ainda
assim...
Ainda assim.
— Anya? — E naquela única palavra, ao chamá-la pelo nome pela
primeira vez, Delilah transmitiu mais sobre si mesma do que fizera nas
últimas semanas. Vontade, sim, e também medo, insegurança, e algo como
arrependimento.
Anya também estava cansada de fingir.
Ela não queria mais fingir.
Mandou para longe todas as dúvidas, todos motivos que a deixavam
com um pé atrás e levou sua mão ao rosto da mulher à sua frente.
Deixou que ela visse a descarga elétrica que percorreu seu corpo
quando suas peles se tocaram e uma risada curta lhe escapou quando viu
Delilah tremer também.
Nem todo o ar do mundo parecia ser suficiente para que sua
respiração se mantivesse controlada, e observou o olhar inquieto que a
encarava de volta.
Inquieto e impaciente.
Não porque estivesse com pressa, mas porque aqueles míseros
centímetros entre suas bocas pareciam a maior injustiça do mundo.
Anya encaixou sua mão na curva do pescoço de Delilah e puxou-a
para si. Finalmente, puxou-a para si.
E quando seus lábios se tocaram foi como se tudo o que existia
implodisse e, então, se reconstruísse outra vez. Melhor, mais resistente,
mais bonito.
Delilah tinha exatamente o gosto que ela imaginava, no entanto, era
melhor. E então, os dedos da meio-bruxa correram por sua cintura e
puxaram-na para que seus corpos se colassem um no outro.
Mais, Anya queria dizer.
Porque perto ainda parecia dolorosamente longe.
Envolveu os cabelos de Delilah com firmeza, prendendo o rosto dela
ao seu e um gemido baixo escapou entre elas. Não sabia de quem ele tinha
vindo.
Elas eram pergunta e resposta. Duas peças de um mesmo jogo que
estavam perdidas e foram colocadas juntas mais uma vez.
Eram calor e desejo e palavras não ditas.
E a princesa não saberia dizer em que momento elas se moveram,
em que momento Delilah envolveu seu pescoço com ambos os braços e elas
se colocaram contra o salgueiro.
Suas respirações se mesclavam em sincronia, e Anya queria nunca
mais ter de parar de beijá-la. Queria erguê-la e tocá-la, e queria tantas,
tantas coisas.
Mas acima de tudo, queria mais tempo.
Queria que conseguissem enfrentar tudo o que pairava no horizonte
para que tivessem a chance de descobrirem mais. De se conhecerem mais.
De serem mais.
E o vento recobrou seu fôlego, as árvores voltaram a dançar e o
campo foi preenchido novamente pela canção das águas.
Porque ali, sob aquele salgueiro e dentro daquele beijo, Anya
encontrou o que seu coração tanto buscava.
Se Anya não se levantasse da cama naquele segundo, com certeza
chegaria atrasada para o treino. Mas seu corpo protestava ao menor dos
movimentos, e ela puxou o travesseiro sobre o rosto, gemendo.
Quase não dormira à noite.
Queria tanto que seu dia com Delilah não tivesse fim, que reviveu-o
de novo e de novo. E, quando percebeu, os primeiros raios de sol já
atravessavam os vidros das janelas.
A meio-bruxa tinha organizado um piquenique para elas. Com
direito a suco, frutas, bolos e pãezinhos.
E conheceram mais uma sobre a outra naquele campo do que em
todos os dias que já haviam passado juntas.
Não tanto quanto gostaria, pensou corando.
Mas entre todos os beijos que trocaram naquele pequeno pedaço de
paraíso, suas histórias simplesmente... saíram.
Como se pudessem falar em voz alta sobre todas as coisas
importantes, porque elas nunca deixariam as cortinas daquele salgueiro.
Anya falou sobre a saudade de casa e sobre como sentia falta de
tocar piano. Falou sobre a imensidão e a beleza dos campos de lavanda, e
Delilah entendeu por que a flor a tinha feito perder o controle naqueles
primeiros dias de treinamento.
O que ela significava.
E a princesa prometeu que o próximo encontro aconteceria lá, onde
roxo, verde e infinito se encontravam.
— Então, isso aqui é um encontro? — Delilah perguntou.
Ela estava rindo, mas Anya sabia que a mulher queria realmente
saber a resposta.
— Se você quiser, é — tinha respondido, e o beijo que se seguiu
confirmou suas palavras.
A garota também falou sobre seus pais, sobre como ela era pequena
quando Oliver assumiu a Coroa e como não tinha qualquer lembrança de
sua vida antes disso. Contou o quanto tinha ficado triste ao descobrir que
eles tinham escondido a verdade dela, mas que agora ela finalmente
entendia. Entendia os motivos, entendia que eles estavam certos. Que
aquela mentira era única coisa que a mantivera a salvo.
Com o coração apertado, falou sobre Conan também. Sobre os
treinamentos, sobre a amizade, sobre a intimidade que compartilhavam.
Não sabia por que pareceu importante contar aquilo para ela, mas sentiu que
era a coisa certa a se fazer.
E quando finalmente chegou na história mais pessoal, aquela que,
por alguma razão, confidenciara em detalhes somente para Silja, não
chorou. As palavras saíram fáceis, claras, e talvez fosse porque já tinham
sido ditas uma vez.
Delilah ouviu em silêncio, passando os dedos por seus cabelos
enquanto elas permaneciam deitadas na grama, uma de frente para a outra.
E então, falou sobre si mesma.
Falou de sua infância, e como era estranho ser a única criança com
sangue de bruxa em toda Havenmill.
Anya descobriu que ela era muito mais próxima de Magmar do que
teria imaginado. Que os dois tinham crescido juntos e compartilhavam a
amizade mais sincera que a meio-bruxa tivera na vida.
E finalmente, Delilah falou sobre sua mãe.
Ravina.
A princesa entendeu por que a meio-bruxa, às vezes, carregava
rancor em sua voz ao falar de Verena. A Bruxa Primordial tivera Ravina
não porque desejava ser mãe, mas porque queria garantir que sua linhagem
se mantivesse viva.
— Se uma Bruxa Primordial deixasse de existir — Delilah contou
—, o poder por ela regido se perderia. No caso de Verena, os dias, aos
poucos, se tornariam mais curtos e o mundo seria banhado em noite para
sempre. Com uma herdeira, ela teria alguém capaz de reivindicar a Luz para
si.
— Mesmo sendo uma meio-bruxa? — a princesa tinha perguntado.
Delilah confirmou. Disse que, ainda que de forma limitada, Ravina
poderia ser um canal de sustentação para a Luz. Teria apenas uma meia-
vida. Seria um instrumento da magia para que não houvesse desequilíbrio
no mundo. Mas era a única solução, já que todas as outras bruxas de seu clã
tinham sido mortas.
Por isso Ravina tinha partido.
Quando Delilah já era grande o suficiente — se é que alguém
poderia ser grande o suficiente para lidar com uma perda dessas —, sua
mãe deixou Havenmill. Queria conhecer tudo o que havia de bonito no
mundo, antes que tivesse sua vida roubada para servir apenas à Luz. E
tendo Alethea como uma ameaça direta à Verena, era impossível saber se
esse dia demoraria ou não a chegar.
A princesa surpreendeu-se ao perceber que a meio-bruxa não falava
sobre a mãe com mágoa, apenas saudade. “Ela sempre foi boa demais para
estar escondida”, brincou. E falou sobre seu desejo de, quem sabe,
encontrá-la algum dia.
Enquanto isso, seu pai — e membro do Conselho de Havenmill —,
não pareceu tão satisfeito pela esposa aventureira. Esqueceu-se que não
tinha apenas a própria dor com a qual lidar, e, sim, a da filha de apenas
quinze anos. Delilah não falou muito sobre ele, e a princesa achou melhor
não fazer perguntas.
Depois, os assuntos voltaram para temas mais leves, tranquilos.
Falaram mais um pouco sobre música, instrumentos preferidos, a voz de
Delilah...
A mulher corou quando Anya disse que precisariam cantar juntas —
que a princesa adoraria tocar para acompanhar a voz incrível dela.
Anya suspirou mais uma vez contra o travesseiro e se levantou.
Estava definitivamente atrasada.
Trocou de roupa em poucos minutos e, quando estava prestes a sair
do quarto, avistou a adaga sobre a cômoda. A insígnia que ela conhecia tão
bem quanto a si mesma a encarava, como se debochasse. Parecia dizer “Ei,
eu ainda estou aqui. E você ainda não sabe nada sobre mim”. E naquele
momento, aquilo a incomodou mais do que nos outros dias.
Mais do que quando a viu na casa de Delilah, mais do que quando a
meio-bruxa insistiu para que ela a levasse durante os treinos.
Aquela adaga ainda era um mistério.
E Anya precisava de respostas.
Pegou a arma com cuidado, prendendo sua bainha nas calças e
partiu.
Prestou pouca atenção no café da manhã e o trajeto até a clareira foi
feito de modo completamente automático. Só conseguia repassar em sua
cabeça a enxurrada de perguntas que tinha para Delilah.
E insistiria até que as tivesse.
— Bom dia, Princesa.
Anya sorriu, antes mesmo de vê-la.
Passou a gostar de como o título soava na boca da meio-bruxa.
Deixou de ver aquilo como uma provocação — ao menos, do jeito que
importava.
— Bom dia.
Elas se encararam por alguns segundos, parecendo não ter certeza de
como reagir. Anya não sabia se devia apenas seguir para o centro da
clareira, se devia beijá-la ou qualquer coisa do tipo.
Tudo parecia mais fácil quando estavam escondidas sob aquele
salgueiro.
Delilah decidiu pelas duas, estendendo a mão para que a princesa a
pegasse. E quando seus dedos se entrelaçaram nos dela, seu coração agitado
se acalmou um pouquinho.
Era uma sensação boa.
Conan e ela nunca puderam andar de mãos dadas. Não quando
faziam tudo em segredo. E quando era mais nova... Bom, para ser sincera,
todas as vezes em que esteve próxima de algum tipo de relacionamento,
tinha sido fora das vistas de seu pai. Apenas Elysia sabia sobre as pessoas
com quem a princesa se envolvia. Exceto pelo soldado.
E ter a mão de Delilah na sua foi tão surpreendentemente bom, que
ela quase esqueceu o que estava tão obstinada a fazer naquela manhã.
Obter respostas.
— Delilah — chamou, e algo no seu tom fez a meio-bruxa encará-la
mais seriamente —, você precisa ser honesta comigo.
Delilah nunca sentira tanta raiva de Verena quanto estava sentindo
ali, mentindo para a princesa.
A garota tinha perguntado mais uma vez sobre a adaga e, mais uma
vez, a meio-bruxa procurava formas de se esquivar do assunto.
Sentadas sob a sombra de uma das cerejeiras, ela tentava manter a
surpresa no rosto, a expressão de desentendimento ao repetir as mesmas
respostas de sempre.
Que tinha perguntado inúmeras vezes para a matriarca sobre a
lâmina. Que não fazia ideia do que ela poderia significar. Que não sabia o
porquê a Bruxa Primordial a tinha.
Uma verdade.
Uma meia verdade.
Uma mentira completa.
Mas as palavras de Verena não a deixavam em paz desde aquela
noite no Braan.
A princesa é nossa única chance de vencer Benjamin.
E isso a atormentava mais do que qualquer outra coisa.
Temia o que Anya precisaria fazer, temia o que poderia acontecer
com ela e, principalmente, temia que ela não encontrasse a resposta a
tempo.
Delilah insistiu para que praticassem um pouco com as lâminas
também. Que a princesa trouxesse a sua para que lutassem. Mas era o
máximo que poderia fazer.
Todas as vezes que tentava explicar, que tentava falar a verdade para
ela, as palavras ficavam trancadas em sua garganta. E ela amaldiçoava
Verena, a magia e até mesmo Tallis por isso. Então, precisava esconder.
Mentir.
E amaldiçoava também a si mesma por desejar que a garota se
atrapalhasse com a lâmina, que se cortasse e derramasse seu sangue sobre
ela.
Uma única gota já era o suficiente.
Anya, no entanto, duelava muito melhor do que parecia acreditar.
Não cometera um erro sequer.
E de certa forma, Delilah sentia um pouco de orgulho disso. O rapaz
que a treinava no castelo — Isaac, como ela tinha contado — a fazia usar as
armas erradas. Se Anya não conseguia controlar uma espada longa, ele
devia ter-lhe dado uma diferente.
E com uma lâmina curta em cada mão, a princesa poderia fazer um
bom estrago.
— Quero ir até Verena — Anya disse de repente.
Não havia qualquer cenário em que aquilo parecesse uma boa ideia.
E nem mesmo a matriarca seria capaz de dar as respostas que a garota
queria.
Delilah estava com raiva.
Depois do piquenique na tarde anterior, ela chegou a pensar que
algo bom poderia sair de toda aquela confusão. Que ela e a princesa, talvez,
tivessem uma chance.
Mas quando a garota soubesse que, mesmo com todas as histórias
que tinham compartilhado uma com a outra, a meio-bruxa ainda mentiu
para ela sobre aquilo...
— Princesa, eu não acho que...
— Sei que você conhece a verdade — Anya disse, com uma calma e
uma gentileza que chegaram a surpreendê-la. — E sei que são ordens dela
que a impedem de me contar. Não vou insistir mais uma vez para que
quebre qualquer que seja a promessa que parece ter feito, mas ainda assim,
eu preciso de respostas. Essa adaga — ela segurou a bainha com tanta força
que os nós de seus dedos ficaram brancos — tem alguma história. Eu sei
que tem. E eu tenho muitas perguntas. Não posso abrir mão disso, não
quando eu já deixei tanta coisa para trás.
A princesa colocou a mão sobre a de Delilah delicadamente,
deixando um rastro de formigamento onde seu polegar desenhava pequenos
círculos. E havia no gesto e nas palavras dela tanto entendimento que o
peito da meio-bruxa se aqueceu.
Elas talvez tivessem uma chance, afinal. Mesmo com toda aquela
confusão.
Foi quando os gritos começaram.
A primeira coisa que Alexzander viu foi a fumaça.
Bem ao longe, na direção do portal para Ediri, o nevoeiro
acinzentado se esparramava por entre as raízes que compunham o
firmamento de Havenmill.
O reflexo alaranjado por entre as copas das árvores foi o segundo
sinal de que algo estava errado.
Ele acenou para que os Elementaristas parassem seus treinamentos
por alguns instantes, franzindo o cenho para a estranha paisagem.
As vozes na praça foram morrendo pouco a pouco, os rostos se
voltando para o mesmo ponto onde o rapaz encarava.
Todos os Elementaristas estavam ali com ele, em seus aquecimentos
para mais um dia de treino. Os Artesões e Curandeiros estavam reunidos
um pouco mais ao Leste, organizando seus grupos para que, em dois dias,
pudessem dar início aos trabalhos nas proteções.
Não havia ninguém na direção em que a fumaça se erguia.
Ou, pelo menos, não deveria.
Um silêncio pesado e incômodo tomou conta da praça, conforme os
outros faziam as mesmas contas que ele. O momento de calmaria que
escreveu as primeiras linhas do capítulo final na história de Havenmill.
Algo estava errado.
Algo estava muito errado.
Porque a fumaça continuava se espalhando, e os reflexos
alaranjados finalmente tomaram a forma que ele mais temia ver.
Fogo.
— Reúnam todos — Alexzander disse, mesmo sem entender o que
estava acontecendo. — Peguem as crianças e corram para o rio.
Então, flechas irromperam por entre as árvores.
Uma saraivada trespassando os galhos disformes da floresta, voando
na direção em que Alexzander e todos os outros estavam.
Mas elas não conseguiriam alcançar a praça. Os atiradores, quem
quer que fossem, estavam muito longe.
E ele percebeu que os alvos não eram as pessoas, e sim as copas
fechadas da mata. Porque na ponta de cada uma das flechas, havia uma
chama acesa. E conforme elas cravavam por entre o verde, mais e mais
pontos se incendiavam.
Quando as pessoas começaram a gritar, levou alguns segundos até
que Alexzander se desse conta do que realmente estava acontecendo.
Que era aquilo que temiam há semanas, a situação para qual mal
tiveram tempo para começarem a se preparar.
Havenmill tinha sido descoberta.
E estava sob ataque.
Era impossível saber em quantos eram, pois os focos em chamas se
mesclavam uns aos outros. Mas estavam se aproximando.
O rapaz tinha certeza disso pois, aos poucos, o silêncio vindo da
floresta era substituído pelo som dos animais disparando por entre a
vegetação. Correndo pelas folhagens em direção à praça.
Na verdade, todos corriam para lá.
Tentando manter qualquer resquício de controle, Alexzander dividiu
a multidão em dois grupos. Parte dos Elementaristas, Artesões e
Curandeiros seriam responsáveis por reunir crianças e idosos, e levá-los
para o portal que dava para o rio.
O segundo grupo, consideravelmente menor, ficaria ali, atrasando os
invasores para que o primeiro conseguisse fugir.
Incluindo ele.
A segunda onda de flechas partiu o horizonte.
Estavam mais perto. Muito mais perto. Pareciam se deslocar em
silêncio, impedindo que ele tivesse qualquer noção de suas localizações até
que atacassem.
Foram as primeiras lanças que cravaram sobre casas. Elas
espalhavam suas chamas pela madeira rapidamente, ferozes. E o cheiro de
queimado fez seu estômago se embrulhar.
O caos se instalou por completo.
Outros Elementaristas se colocaram ao seu lado, esperando por
novas instruções.
Alexzander não era pessoa certa para isso. Ninguém em Havenmill
era a pessoa certa para isso. Mas pelo seu povo, ele o faria.
E assim, começou a gritar ordens.
Eles não conseguiriam conter as flechas, mas poderiam diminuir o
estrago que causavam.
Puxando para si as águas do regato que se desmembrava ali, eles
ergueram uma parede — isso, ao menos, deteria o fogo.
Tentaram lançá-la em direção às chamas nas árvores, mas eram
muitos pontos que se incendiavam. Não havia Elementaristas o suficiente
com essa habilidade.
Nem tempo, pois os invasores emergiram da floresta.
Mesmo de longe, Alexzander reconheceu os uniformes, as insígnias
em seus peitorais.
Homens do Rei.
Homens de Benjamin.
Suas formações eram perfeitas. Os atiradores se colocavam no
fronte, seguidos por soldados com suas lanças e, logo depois, aqueles
empunhando espadas.
Não eram tantos quanto o rapaz imaginara, mas eram muito mais
preparados que qualquer um ali.
A terceira saraivada de flechas não veio acompanhada de fogo, mas
os soldados não precisavam mais dele, pois estavam perto. Perto demais.
Alexzander soube, mesmo antes de ouvir os gritos, que seu grupo
começaria a cair.
Ainda assim, seu peito se apertou diante do som. Nada nunca o teria
preparado para ele — o rasgar de pele e ossos sob a ponta de uma lança.
Não conseguiu controlar o próprio impulso de olhar ao redor, de
buscar pelo homem caído. Ele sentiu a bile subindo por sua garganta
quando outra coisa captou sua visão.
Silja gritava enquanto tentava organizar os grupos de fuga.
Alexzander não ousara impor qualquer uma das equipes sobre ela,
mas sentiu-se aliviado ao ver que sua irmã não estava entre aqueles que
enfrentariam diretamente os soldados.
Mais homens caíram ao seu lado, e o fogo estava de volta.
E percebeu que, naqueles poucos segundos em que observara sua
irmã partir, mais flechas foram lançadas, mais homens foram derrubados, e
que a barreira de água não existia mais.
Ele ergueu as próprias mãos à frente, deixando que sua magia
escorresse.
Junto com os demais manipuladores do ar, jogaram seus ventos
adiante, soprando fogo e fumaça para a direção contrária da praça. E só
então, se deu conta do erro que tinha cometido. Não restara nenhum
Elementarista das chamas ali. Tinha mandado todos eles com o grupo de
fuga.
Alexzander tentou acessar aquela parte de si que havia enterrado dez
anos atrás. Aquela que causara tanto sofrimento para ele e sua irmã.
Mas o fogo já não respondia a ele. Não depois de tanto tempo
rejeitando-o.
Talvez fosse alguma punição.
Talvez o rapaz merecesse.
E enquanto afastavam as labaredas com a única arma que lhes
restava, sentiu o chão sob seus pés tremer.
Raízes despontaram diante dos soldados, entrelaçando seus
calcanhares e pulsos, impedindo seus movimentos.
Alexzander abandonou o vento e se uniu aos manipuladores da terra.
Eram em menor quantidade e estavam tão cansados quanto ele, pois se
dividiam entre os treinos e as plantações.
Não estavam prontos.
Ele sabia disso.
E mesmo que semanas de treinamento já tivessem transcorrido, eles
nunca estariam. Não para algo assim. Não para verem sua cidade em
chamas, seus amigos caindo com flechas cravadas no peito, ou aquela
mistura de choro e gritos.
O rapaz fez uma prece silenciosa.
Sabia que havia apenas uma Primordial que ainda tocava aquelas
terras. Que ao se proteger dentro de Duhn, Verena trancou as outras deusas
do lado de fora.
Mas ainda assim, rezou para todas elas.
Pediu que protegessem Havenmill só por aquele dia. Que ajudassem
seu povo a enfrentar aquela situação. Que mais nenhum dos seus caísse.
Alexzander era um tolo.
As Bruxas Primordiais nunca o atenderiam.
E teve certeza disso quando sentiu uma dor lancinante atravessar seu
braço, tão forte que chegou a pensar ter sido atingido por uma flecha.
Mas não era um ataque físico que o tinha alcançado, e sim, um
ataque mágico. Porque as raízes que ele havia erguido para conter os
soldados que estavam cedendo.
Não, estavam mudando.
Elas se desprendiam dos guerreiros e, não importava o quanto o
rapaz tentasse e tentasse, elas não mais o obedeciam.
Uma nova fisgada cruzou seu corpo, e isso quase o deixou de
joelhos. Os fios dourados que ele imaginava quando acessava seus poderes
pareciam estar sendo puxados.
Manipulados por outra pessoa.
E o resto de esperança que ainda guardava no coração lhe
abandonou no instante em que viu os imensos elementais erguendo-se do
chão — os espíritos que sustentavam boa parte dos pilares de Havenmill.
Estavam adormecidos desde que a cidade fora fundada. Cederam
suas forças para que todas aquelas pessoas pudessem sobreviver. E agora,
retomavam o controle sobre si e... lutavam contra os conjuradores.
As raízes que os Elementaristas invocavam passaram a ser
dominadas por eles, assim como aquelas que já repousavam ali há muito
tempo.
Mais gritos ecoavam, conforme os outros manipuladores recebiam
as descargas elétricas de terem suas habilidades tocadas pela magia de outro
conjurador.
E Alexzander não entendia.
Não entendia porque os elementais não os estavam ajudando,
porque estavam defendendo os soldados que se aproximavam cada vez mais
com suas flechas e lanças e escudos e espadas e morte.
Morte, mais morte e mais morte.
Debatendo-se contra aquelas garras que tomavam o poder sobre suas
habilidades, ele tentou invocar o vento.
E graças às Sete, ele respondeu.
— Não usem a Terra! — ele gritou para os demais. — Já não temos
mais controle sobre ela!
E enquanto ainda tentava entender as razões de aquilo estar
acontecendo, das coisas terem fugido tanto de seu controle, ele viu.
Na fileira mais afastada de soldados.
Aquela mancha acinzentada entre o oceano de armaduras de couro.
Benjamin.

— Minha cidade encantada — sussurrou Silja quando as lágrimas


começaram a transbordar.
Benjamin tinha descoberto Havenmill, e ela assistiu atordoada
enquanto seu irmão e outros Elementaristas tentavam impedir que os
soldados avançassem rápido demais.
Para que os outros conseguissem fugir.
Quando Alexzander não lhe dirigiu ordem alguma, pensou em ficar.
Em protegê-lo e tentar curar qualquer um que fosse derrubado.
Foi quando ela viu a primeira criança.
Uma com as quais vinha trabalhando há tantos dias.
Sofia olhava para todos os lados sem parecer compreender a
gravidade da situação. Apenas gritava pela mãe e pelos irmãos dos quais
havia se perdido quando a confusão começou.
Silja pegou-a no colo e correu.
Correu e puxou para si qualquer criança que encontrasse pelo
caminho. Reuniria todos mais tarde. Quando estivessem fora dali. Naquele
momento, não havia tempo para que buscassem por seus pais, para que
vagassem desacompanhados em meio àquele caos.
E isso a deixou mais furiosa do que qualquer outra coisa.
Havenmill era uma cidade cheia de crianças, cheia de famílias, cheia
de vida. Nada disso parecia importar para o príncipe.
Nenhum deles era importante.
Então, a curandeira prosseguiu.
Uma a uma, arrastou consigo cada criança que parecia minimamente
perdida, até que tivesse seu pequeno time particular.
O mundo se partia atrás dela. Sua cidade se desfazia em chamas,
mas não poderia deixar que seu rosto transparecesse o quão devastada
estava com aquilo. E quando, enfim, avistou Farah por entre a multidão,
suspirou aliviada pela primeira vez desde que tudo aquilo começou.
— Leve-os até a caverna — gritou para a artesã, alcançando-lhe as
crianças. — Certifique-se de que as nixies deem prioridade a elas na hora
de atravessarem o rio.
— E você? — sua amiga gritou em resposta.
Era quase impossível distinguir as palavras entre tantos outros sons.
— Não posso deixá-lo sozinho.
E Farah sabia de quem a curandeira falava.
Olhando fixamente para a garotinha ainda em seus braços, Silja
colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha dela ao dizer:
— Tenho um trabalho muito importante para você. — Ela passou o
dedo suavemente por uma lágrima que escorria no rosto de Sofia, tentando
manter a voz no tom mais suave possível. — Preciso que você mantenha
todos os seus amiguinhos juntos, tudo bem? Peça que todos deem as mãos,
como naquela brincadeira que vocês tanto adoram. Como ela se chama
mesmo?
— Hum, roda? — a garota respondeu, franzindo a testa como se
Silja fosse doida.
— Isso. Isso mesmo. Deem as mãos como se estivessem brincando
de roda. E só deixe que soltem quando encontrarem os próprios pais, certo?
Acha que pode fazer isso por mim?
A menina assentiu e, então, desvencilhou-se dos braços da
curandeira.
— Perfeito. Agora vá com Farah, eu preciso ficar aqui só mais um
pouquinho.
Trocou um último olhar com sua amiga, e observou-a partir com as
crianças.
Então, Silja correu.
Voltando na direção da praça central, pretendia unir-se aos Artesões
para que erguessem escudos em torno dos Elementaristas. Roubar para eles
um pouco de tempo.
Mas quando chegou lá, viu que os soldados haviam avançado muito
mais do que ela esperava. Que tinham alcançado a praça e lutavam
diretamente com os conjuradores.
Espadas contra magia.
Não parecia justo.
Não quando os homens caídos eram, em sua grande maioria, seus
amigos, seus vizinhos.
Tentou não olhar para os corpos no chão, e gemeu baixinho ao ver
que Alexzander ainda estava de pé. Que estava vivo e parcialmente bem.
Então, viu os elementais.
As imensas criaturas feitas de troncos retorcidos, uns entrelaçados
aos outros. Os espíritos que estavam adormecidos há séculos.
Estavam ali e, pelas Sete, estavam lutando contra Havenmill!
Silja tentou respirar fundo, juntando-se aos demais Artesões na
praça e libertando sua magia, atrelando-a nas deles. As gavinhas douradas
se contorciam umas por entre as outras, erguendo um domo ao redor da
praça central.
Não se importou que alguns dos soldados estivessem lá dentro
também. Precisava conter primeiro as flechas. E mesmo sabendo o que
esperar, a curandeira ainda tremeu ao ver as lanças se dissolvendo na trama
dourada.
Foi quando Alexzander olhou em sua direção.
Exausto, quase completamente drenado. Era assim que seu irmão
estava. Ainda que distantes, conseguia ver as manchas fundas em torno de
seus olhos, o sangue escorrendo por seu nariz.
Seus olhos arderam conforme as lágrimas irrompiam com força de
seu peito.
Queria pedir que ele saísse dali, que deixasse tudo para trás e fugisse
com ela. Mas ele não o faria.
E quando uma espada quase o acertou, Silja soube que o estava
distraindo. Alexzander não seria capaz de manter toda a sua atenção no
combate enquanto ela estivesse tão perto. Tão exposta. Tão em perigo.
A curandeira não queria ir embora. Não queria dar as costas para sua
gente, sua cidade, seu irmão. No entanto, sabia que se continuasse ali,
talvez o rapaz não saísse com vida.
E isso era algo que ela não poderia suportar.
Lentamente afrouxando suas habilidades, desvencilhou-se do domo,
e gritou a plenos pulmões segundos antes de partir.
— Eu te amo!
Alexzander não respondeu, mas Silja sabia que tinha ouvido. Então,
abandonou a praça central.
E enquanto se afastava com um vazio desolador dentro de seu peito,
simplesmente soube: nunca mais voltaria para sua cidade encantada.
Ousou um último olhar para ela.
Para a cidade que amava com todo o seu coração. Para o paraíso que
a acolheu quando nenhum outro lugar o fez.
O que viu a atormentaria para sempre.
Havenmill se desfazia em pedaços, e estava tudo acabado.
Era uma cena saída direto de pesadelos.
Quando os gritos cortaram a floresta, a princesa e Delilah
dispararam por entre as árvores antes que tivessem tempo de pensar sobre o
que poderia estar acontecendo. E mesmo quando se aproximaram o
suficiente, ainda era difícil acreditar.
Porque havia soldados com os uniformes da Guarda Real ali. Porque
Anya avistou tantos rostos conhecidos que chegou a perder o ar. Porque eles
atacavam os cidadãos de Havenmill com nenhum sinal de dúvida no olhar.
E porque estavam vencendo.
Com uma vantagem assustadora.
Um domo dourado cercava a praça central, mas mesmo ele estava
começando a falhar. Os conjuradores estavam assustados demais, chocados
demais. Desesperados com os corpos que caíam um a um. Não conseguiam
sustentar suas forças.
E o peito de Anya se apertou ainda mais ao avistar Silja ao longe,
lançando um último olhar para o irmão — que estava ocupado demais
desviando de uma espada para notar — e partindo logo depois.
Delilah estava congelada ao seu lado, perplexa. Seus olhos
passavam por todos os lugares ao mesmo tempo, e a princesa sabia no que
ela estava pensando. Porque ela mesma percebia também.
Era o fim de Havenmill.
Não importava como a cena diante delas se desenrolasse, a cidade
nunca se recuperaria.
Elas estavam a poucos metros da praça, escondidas pela vegetação
enquanto absorviam o que estava acontecendo. Então, o chão tremeu sob
seus pés. Ela quase não conteve o grito quando viu imensas árvores
ganhando vida, transformando a cidade pouco a pouco em escombros.
E naquele momento, o choque da meio-bruxa passou. Delilah abriu
as mãos ao lado do corpo e sussurrou:
— Eu sinto muito, princesa.
Anya não entendeu de imediato o motivo daquelas palavras, mas
então, ela viu.
Nas mãos dos arqueiros, flechas em chamas brilharam. Mais
intensas, mais altas, mais letais. E o fogo dançou por sobre os homens,
unindo-se como uma corrente. Transformando-se em um só.
Um por um, os arcos também arderam. E os soldados começaram a
gritar.
Delilah os estava incinerando.
A princesa sentiu a bile subir em sua garganta ao ser atingida pelo
odor de carne queimada. Ela se curvou e vomitou sobre a grama, os olhos
ardendo pelas lágrimas que se formavam.
Anya conhecia a maioria daqueles homens. E sabia que o que eles
estavam fazendo era consequência de séculos de mentiras, da raiva que lhes
foi provocada pelas falsas histórias que Benjamin contou sobre as mortes de
Oliver e Elysia.
Foram condicionados.
E por mais que ela desejasse que todos em Havenmill saíssem com
vida, queria o mesmo para os soldados também.
Não havia beleza alguma na batalha, concluiu. Não havia certo e
errado. Apenas uns derramando o sangue dos outros, acreditando
cegamente que estavam fazendo uma coisa boa.
E a princesa não conseguiu evitar de buscar Conan por entre os
rostos. Procurar os cabelos vermelhos pelo mar de soldados de pé e caídos.
Ele não estava lá — uma pequena misericórdia. Mas Isaac, sim. E
Anya fez uma prece silenciosa para que ele conseguisse sair de lá com vida.
A mão de Delilah sobre seu ombro a fez perceber que tremia. Que
cada pequena parte dela chacoalhava intensamente. Os olhos da meio-bruxa
estavam preocupados e tristes. Embaçados pelas próprias lágrimas que
tentava conter — destruída pelo que suas próprias mãos tinham acabado de
fazer.
Anya não poderia ficar apenas assistindo. Precisava fazer alguma
coisa. E quando viu que a terra era algo que já não tinham mais controle, ela
chamou o vento.
Chamou o vento e estava prestes a sopras aquelas nuvens de fumaça
para longe quando Delilah sussurrou:
— Não posso pedir que ataque seus próprios homens. Tenho de tirar
você daqui.
— Não vamos deixar ninguém para trás — ela protestou.
Mas as palavras seguintes da meio-bruxa foram tão verdadeiras
quanto dolorosas.
— Tudo isso terá sido em vão se algo acontecer com você.
Delilah estendeu sua mão para ela, e estava claro em seus olhos o
quanto doía ir embora.
Tudo aquilo era injusto demais.
E quando entrelaçou seus dedos nos dela, preparando-se para correr,
uma onda de poder explodiu por entre a floresta.
A terra tremeu e as árvores balançaram furiosamente. Os soldados
congelaram em meio aos seus movimentos, como se mudassem de ideia
sobre o que fazer em seguida.
O domo começou a ceder.
Como ácido jogado sobre a trama dourada, uma luz prateada corria
de cima para baixo a barreira de proteção erguida pelos Artesões.
— Acabem logo com isso! — Ecoou aquela voz que Anya conhecia
tão bem.
Benjamin.
A princesa puxou sua mão de volta para si, sentindo a raiva
crescendo dentro do peito. Era sua chance de acabar com tudo. Sua chance
de pôr um fim em toda aquela dor, todo aquele medo, todo o sofrimento.
Vinte e três anos de mentiras arderam em sua garganta.
Vinte e três anos de ódio.
Os dedos de Delilah se fecharam em seu pulso no momento em que
partia na direção do primo. Seu toque era gentil, mas firme.
— Não — pediu. — Temos que sair daqui.
— Ele está lá, Delilah! — ela gritou, sem se importar que sua voz
denunciasse sua localização. — Eu preciso fazer isso. Preciso pará-lo.
Ainda há uma chance para Havenmill, só preciso que todos saibam que...
Suas palavras desapareceram pelo ar.
É claro!
Benjamin disse a todos que ela estava morta. Que os conjuradores
tinham assassinado o rei, a rainha e a princesa. Mas ela estava ali.
Estava prestes a sair de seu esconderijo para que todos a
enxergassem, que soubessem que ela estava viva e bem. Que o príncipe
mentira para eles todo esse tempo. Então, os comandos de Benjamin foram
seguidos.
Mas as ordens não foram dirigidas para os soldados.
Não, eles recuavam. Marchavam na direção dos portais de Ediri
como se não estivessem ceifando vidas há poucos segundos.
Quem obedeceu, no entanto, foram os elementais.
Eles estenderam suas mãos feitas de galhos e puxaram do solo as
árvores que ainda restavam. Que não haviam sido queimadas.
— Vão colocar Havenmill abaixo — Delilah sussurrou com
urgência.
E o grito de Alexzander espelhou o terror que a meio-bruxa
carregara em cada palavra.
— Recuem!
E todos os conjuradores obedeceram.
Porque os elementais não estavam arrancando apenas árvores. Eles
puxavam para si os alicerces que sustentavam a cidade, arremessando para
longe os pilares que mantinham todo o lugar de pé.
— Precisamos chegar até o rio — Delilah gritou.
E elas deixaram Havenmill para trás.

— Verena está vindo — Delilah sussurrou para a princesa, puxando-


a apressadamente por entre as árvores.
Perdera segundos preciosos da fuga tentando se comunicar com a
bruxa, mas a Primordial finalmente respondeu sua projeção. Havenmill
tinha de ser evacuada, mas Verena tentaria mantê-la erguida
Qualquer que fosse a magia que Benjamin tivesse usado para
alcançar a cidade, tinha cegado os sentidos da matriarca. A bruxa não sabia
que Havenmill estava sob ataque até sentir o chão sob seus pés tremer.
Delilah e a princesa já não se importavam em se manter ocultas,
apenas corriam por entre a floresta.
Conseguiam ver Alexzander e os demais vários metros à frente.
Seu coração doía e ela não tinha coragem para olhar para trás. Não
sabia se conseguiria aguentar ver as nuvens de fumaça que se formavam no
alto de sua cidade. Ou o fogo que ardia ao longe e tomava conta da
vegetação.
Ela não sabia como tudo não tinha sido reduzido às cinzas. Como as
chamas estalavam e queimavam, mas não tinham se espalhado por
completo. Talvez as Sete não tivessem abandonado completamente aquele
lugar, afinal.
Ainda assim, Delilah não queria ver.
Sua cidade. O único lar que conheceu, onde colecionou todas as
lembranças que tinha de sua mãe.
Sendo deixado para trás.
Embrenhando-se cada vez mais na floresta, temendo que alguém
ainda as perseguisse, galhos arranhavam seu rosto e prendiam-se em seus
cabelos.
Sua pele ardia pelos pequenos cortes, e todas as pedras no chão
pareciam ter-se organizado para fazê-la tropeçar.
A princesa corria em silêncio ao seu lado, a mão segurando
firmemente na sua — não a tinha soltado desde que começaram a fugir.
— Acha que Verena chegará logo? — Anya gritou.
Só poderia esperar que sim, caso contrário, seriam todos soterrados.
E tudo não teria passado de tempo perdido.
— Precisamos ser mais rápidas. — Foi o que respondeu.
E então lhe ocorreu.
Rápidas para onde?
Não havia mais lugar seguro para elas. Para qualquer um deles.
Sairiam de Havenmill, atravessariam o rio com as nixies. Mas e depois?
Os soldados já tinham invadido Ediri uma vez. E quando Benjamin
descobrisse que havia outro portal na cidade, que os conjuradores
conseguiram escapar...
Delilah parou de correr.
Deixou que sua mão pendesse ao lado do corpo e a falta do toque da
princesa se transformou em um eco frio.
— Dell? — a garota chamou, virando-se para ela e interrompendo o
próprio movimento.
Não adiantava fugir.
Nunca adiantaria.
É tudo em vão, pensou, dobrando-se e colocando as palmas sobre os
joelhos.
A verdade atingiu-a com a intensidade de um soco.
Ano após ano, século após século, e lá estavam eles. Ainda
correndo. Ainda se escondendo.
Sua cidade estava em chamas, e era o único lugar em todo aquele
maldito reino em que tinham algum tipo de paz. Segurança. E estava tudo
acabado.
Delilah era um eco.
Da mulher que poderia ter sido, da vida que poderia ter tido e dos
sonhos que poderia ter realizado.
Seu sangue de bruxa era uma grande piada, pois o mundo jamais
teria um lugar para ela. Era diferente demais para ser humana, mas humana
demais para deixar tudo para trás e viver como bruxa.
Porque ela sentia.
Porque ela se importava.
Por todas as Sete, ela se odiava por se importar.
Encarando a grama sob seus pés, Delilah gargalhou. Foi uma risada
seca, rouca, dolorosa. Saiu arranhando sua garganta como se não falasse há
anos.
— Em vão — sussurrou para os próprios pés. — Foi tudo em vão.
— Delilah, o que foi? — Ela ouviu a princesa dizer.
Mas não sabia como responder aquela pergunta.
Não saberia explicar que seu peito estava se desfazendo em mil
pedaços, porque Havenmill estava acabada. Porque não havia nada mais
para ela.
E de repente, foi como se todo o ar tivesse lhe escapado.
Não, havia ar demais. Como se de um instante para o outro todo o ar
do mundo resolvesse ir para dentro dela de uma única vez.
Delilah levou os dedos ao pescoço, desesperada para arrancar aquele
bolo em sua garganta. Estava se afogando em oxigênio.
— Ei! — Os pés da princesa entraram em seu campo de visão.
Então, a garota colocou as duas mãos ao seu rosto e ergueu-o para
si.
Quando aqueles olhos dourados encontraram os seus, a piada
cósmica pareceu ainda maior. Porque tudo o que ela queria era ter mais
tempo. Para seu povo, para a princesa, para si mesma. Para elas.
Porque elas tinham acabado de começar.
Porque eram muitas as coisas que Delilah queria aprender sobre
Anya.
— Estamos quase lá — a princesa disse. — Só precisamos correr
mais um pouquinho e ficará tudo bem.
E a meio-bruxa queria tanto acreditar naquilo!
Que ficaria tudo bem.
— Consegue continuar? — Anya tentou outra vez, observando
como a respiração de Delilah estava fora do ritmo.
Não tinha certeza, mas o tremor sob seus pés e o som de coisas
despencando — sendo arrancadas do chão — era urgente.
Então, assentiu.
Anya passou o braço em torno de sua cintura tentando equilibrá-la e
correram juntas.
Ela estava certa, estavam quase chegando.
E em poucos minutos, avistaram Alexzander na entrada da caverna
que dava para o rio. Olhos fundos, rastros de sangue pelo rosto, lábios
ressecados.
Exausto.
Esgotado.
Desolado.
— Graças às Sete! — ele gritou, quando viu as duas se
aproximando. — O que aconteceu? Ouvi vocês logo atrás de nós e então....
vocês sumiram!
O rapaz estava apavorado, percebeu. Pensou que as duas tivessem
sido pegas.
— Nos perdemos — Anya respondeu, tentando parecer convincente.
Alexzander apenas assentiu, lançando um olhar de soslaio para a
meio-bruxa. Ele sabia que era mentira. E mesmo assim, não perguntou mais
nada.
— Somos o último grupo? — Delilah perguntou, observando os
outros cinco Elementaristas que estavam amontoados dentro da caverna.
— Sim. — O rapaz assentiu. — Somos só nós.
E ela não quis pensar no real significado daquelas palavras. Em
quantos poderiam nem ter chegado até ali.
As nixies se colocaram diante da barreira de água naquele momento,
aguardando para atravessá-los.
— Farah? — Anya perguntou, e Delilah apertou sua mão ao ouvir o
tremor na voz dela. — Silja?
— Conseguiram — o rapaz afirmou. — Jett também.
Delilah agradeceu por não ter de fazer aquela pergunta.
— Vamos? — ela indagou, tentando não pensar que era a última vez
que veria Havenmill.
E a primeira em que pisaria lá fora.
Silja já tinha havia conferido aquele escudo três vezes, e ainda não
estava convencida de que era bom o suficiente.
Nada parecia bom o suficiente.
Atravessou o rio em um dos primeiros grupos, logo após se
certificar de que todas as crianças estavam diante das cavernas.
Então, quando chegou a Ediri, assumiu a responsabilidade de
orientar a todos conforme emergissem ali. Deveriam se manter reunidos
naquelas margens, tentando ser o mais discretos que conseguissem. Não
poderiam dar chance de que soldados à espreita descobrissem sua nova
localização.
Assim que colocou os pés na floresta, percebeu que os lobos
esperavam por ela ali. Que haviam percorrido o perímetro para garantirem
de que era uma região segura — ao menos por enquanto. E suspirou
aliviada ao ver que estavam todos bem.
Ela e outros Artesões reforçaram as buscas na área, apenas para
terem certeza. Não seria nada permanente, mas precisavam de um lugar
para reunir os sobreviventes.
Aquela palavra.
Aquela maldita palavra.
Estremeceu, tentando não pensar em como poucas horas poderiam
ter tomado tantas coisas dela. E também tentou não pensar nos gritos, no
som das árvores se partindo, ou no crepitar das chamas que insistiam em
engolir cada pedaço de sua cidade encantada.
Mas todos os fios que derramava sobre aquela nova rede de proteção
dourada serviam como um lembrete de que aquela não era sua casa, que não
estava mais em Havenmill, que tinha deixado tudo para trás.
Juntos, os Artesões teceram um novo escudo, aproveitando do
pouco que a luz direta do sol intensificava seus poderes — ao menos
durante o dia. E enquanto os raios dourados tocassem na trama protetora,
eles se fundiriam ao domo e ocultariam o que havia lá dentro. Ocultaria
quem havia lá dentro.
E por ora, teria de bastar.
Mesmo sabendo que a magia de Benjamin era capaz de desfazê-lo, o
príncipe teria de encontrá-los primeiro.
Silja suspirou ruidosamente.
Estavam cheios de medidas temporárias. Mas sem qualquer
resquício de um plano concreto.
E quando a noite caísse, a Luz perderia suas forças. O escudo ainda
os protegeria, mas se tornariam tão visíveis quanto qualquer outra coisa.
Mas não havia outra solução.
Não havia outro lugar para onde pudessem ir. O Refúgio, a casa de
Verena, era o esconderijo perfeito. Mas ficava do outro lado da floresta, e os
soldados da Coroa ocupavam aquela direção na hora da fuga.
Então, ali estava ela, conferindo de novo e de novo o trabalho feito
pelos Artesões.
Ao menos, a vista era bonita.
Estavam próximos de onde a Grande Queda, a imensa cachoeira que
cortava a parte leste de Ediri, se chocava contra o rio. E a curandeira rezava
para que o estrondo das águas fosse suficiente para disfarçar qualquer som
que poderia ser produzido no acampamento.
Os pinheiros que a rodeavam deixavam um aroma forte de cascas ao
seu redor, e o sol reluzia nas folhas brilhantes, fazendo com que parecessem
joias preciosas. E era estranho que, com tantos recursos em Havenmill,
aquelas árvores não fossem cultivadas lá embaixo.
Ediri também era sua casa de alguma forma. Tinha passado muitas
tardes naquela floresta, mesmo que do outro lado do rio.
Mas não deveria estar ali agora.
Ainda não.
— Está acontecendo rápido demais — murmurou para si mesma.
Seu tempo havia sido roubado.
As semanas de preparação com as quais tinham contado foram
cortadas pela metade. Agora, com todos expostos daquele jeito, precisavam
agir.
Ir atrás de Benjamin era a única forma de retomar qualquer
resquício de controle.
E ainda assim, o que fariam depois?
Adentrariam as cidades como se pertencessem a elas desde o início?
A curandeira duvidava que fosse fácil assim, mesmo se tivessem a rainha a
seu favor.
Passos abafados sobre a grama chamaram sua atenção, e ao se virar,
encontrou Farah vindo até ela. Trazia uma expressão séria no rosto. Séria e
triste.
Silja fechou os olhos e aguardou.
— Ninguém mais atravessou na última hora — a artesã sussurrou.
— Todos os que conseguiram escapar já estão aqui.
A curandeira soltou o ar pesadamente.
Sabia o que vinha agora, mas se manteve em silêncio enquanto
Farah prosseguia.
— Precisamos... contá-los.
Claro.
Tinham de saber quantos tinham conseguido sair. Organizar os
abrigos, buscar mantimentos e... informar as famílias.
Fazer parte do Conselho já não soava tão bom assim.
— Certo. — Silja estremeceu. — Vamos.
O sol já passava pelo seu ponto mais alto e ameaçava descer em
direção do horizonte. E fazia tanto tempo que ela não contava as horas
pelos movimentos dele que lhe pareceu estranho. Em Havenmill, tinham
aqueles pequenos mecanismos que se conectavam por um fio de luz ao
mundo externo. Eles informavam quando o sol despontava pela manhã,
quando atingia seu ápice e quando mergulhava na noite.
Não era a mesma coisa.
Os raios mornos contra sua pele eram infinitamente melhores, mas
Silja lamentou que não conseguisse se sentir feliz com a sensação.
A curandeira soltou todo o ar que prendia quando chegou ao ponto
onde todos se reuniam.
Havia muitos deles — mais do que seu coração se permitiu
imaginar.
Reconheceu cada um dos rostos, e abriu um sorriso para todos eles.
Manteve sua postura firme, sem deixar que sua própria expressão vacilasse.
Mesmo que reconhecesse também todos aqueles que faltavam. Todas as
ausências.
Silja caminhou lentamente até onde os pequenos se reuniam,
podendo apenas rezar para que eles algum dia se recuperassem de todo o
trauma reunido naquele dia.
Estremeceu ao ver a mãe de um deles, alguns metros ao longe. Os
olhos da mulher estavam inchados, com uma aparência sem vida, e ela
mexia de forma nervosa em seus dedos — olhando para todos os lados,
como se seu marido pudesse magicamente se materializar ali.
Quem dera a magia funcionasse dessa forma.
Aproximou-se dela com um sorriso triste no rosto, e apertou-a com
força quando a mulher jogou os braços ao seu redor.
— Viviane — sussurrou Silja.
E mais nenhuma outra palavra precisou ser dita. Elas se entenderam.
Assim o resto do dia se desenrolou.
Farah e a curandeira se aproximavam das famílias e faziam
perguntas já temendo pelas respostas. Consolavam aqueles que precisavam.
Agradeciam junto daqueles que podiam.
Quando criança, logo após fazer a Travessia, Silja desejou que suas
habilidades de cura pudessem sarar também corações e almas partidas. E
ali, depois de ver sua casa ser invadida e destruída, repetiu o desejo mais
uma vez.
Mas isso era impossível.
Então, apenas seguiu adiante.
Até a próxima família.
Até a próxima perda.
Até a próxima dor.
Não havia restado um único fragmento de magia em Alexzander.
Seus poderes haviam sido drenados, sugados, e jaziam no subsolo
abandonado que, até aquela manhã, ele chamara de casa.
Os outros Elementaristas pareciam tão exaustos quanto ele. Todos
resistiram bravamente, lado a lado, até que não houvesse qualquer coisa a
se fazer além de fugir.
E ele ainda não acreditava que isso tinha acontecido.
Que assistiu seu lar ruir e se desfazer em cinzas, que viu o sangue de
seus amigos ser derramado sobre a terra que jurou proteger.
Era como reviver dez anos atrás, quando Alexzander não tinha para
onde ir, tampouco um lugar para o qual voltar.
Sentia como se tivesse andado em círculos por todo esse tempo.
Chegou a pensar que havia esperança, que havia mais. E se viu novamente
em seu ponto de partida.
Ao menos estou vivo, pensou.
E Silja também.
Poderia lidar com o resto.
E naquele momento, o que precisava de sua atenção eram os abrigos
nos quais todos passariam aquela noite.
Ou melhor dizendo, a falta deles.
Então ali estava ele, comandando os elementaristas que ainda
possuíam alguma sombra de seus poderes. E agradeceu em silêncio pelo
plano improvisado de separar os conjuradores em dois grupos na hora de
saírem da cidade.
Aqueles que partiram antes, ainda eram capazes de usar suas
habilidades para construírem o acampamento.
Estavam trabalhando no modo automático, ele percebeu. Como se
ainda não tivessem realmente se dado conta de todas as coisas que tinham
acontecido nas últimas horas.
Pareciam sob o efeito de algum elixir anestésico. Se movimentavam
de forma lenta, tinham olhares vagos e perdidos, não diziam coisa alguma.
Mal pareciam perceber que estavam, pela primeira vez em suas vidas, fora
de Havenmill.
Para o rapaz, incapaz de produzir uma brisa sequer, restava apenas
ordenar a situação. Orientar os manipuladores da terra a construírem camas
com raízes e cobri-las com várias camadas de folhas, entrelaçar galhos em
mais galhos para erguer pequenas cabanas.
Chegaram a pensar em acomodar todos sob um único teto, mas
chamaria atenção demais. E não sabiam quanto tempo teriam de ficar ali,
quanto tempo teriam de se esconder à plena vista. Então, os abrigos
precisavam ser pequenos e discretos. Camuflados por entre a vegetação.
Ainda seria difícil conseguir fogo.
Os conjuradores eram capazes apenas de moldá-lo, não de trazê-lo
do nada. E a região era úmida demais. Estavam tendo dificuldade em
encontrar gravetos secos o suficiente para começar uma pequena fogueira
do modo tradicional.
— Daremos um jeito — falou baixinho.
Precisavam dar.
Para o fogo, para o povo, para o futuro.
Dariam um jeito, ele acreditava nisso.
Não era a primeira vez que as coisas mudavam de um segundo para
o outro.
E Verena tinha encontrado uma solução quatrocentos anos atrás.
Precisavam acreditar que ela o faria de novo.
Só tinham de aguentar mais um pouco.
Mais algumas noites.
Mais algumas batalhas.
Alexzander não sabia de onde aquele otimismo repentino tinha
surgido, mas agarrou-se nele com toda a força que lhe restava.
A Bruxa Primordial encontraria uma forma de ajudá-los. Eles eram
o povo dela, afinal. Seus seguidores, adoradores e... bom, o rapaz se sentia
como família de certa forma.
Tentou não pensar no fato de que não tiveram notícias da bruxa
desde que ela dissera que tentaria conter os elementais em Havenmill. E,
sem pensar, ergueu os olhos para os céus.
Ainda era dia.
Ainda era azul.
Exatamente como ele se lembrava.
Verena estava viva. Em algum lugar.
Talvez estivesse reconstruindo a cidade escondida e... Não, o
pensamento era ingênuo demais. Mas o silêncio da Bruxa Primordial da
Luz começou a incomodá-lo.
Preocupá-lo.
E pela segunda vez naquele dia, Alexzander rezou.
Delilah nunca tinha visto o céu.
Ela o conhecia das histórias. Das gravuras em seus livros de infância
e dos pequenos vislumbres por entre a mata fechada demais que circundava
a entrada do Refúgio. Ela também conhecia a luz do sol, ou ao menos, o
pequeno eco dos feixes dourados que chegavam em Havenmill.
Mas ali, ao pé da Grande Queda, a imensidão impossivelmente azul
se abria bem diante de seus olhos, mais fascinante do que qualquer delírio
seu jamais teria sido capaz de criar.
Pássaros voavam tão alto que desapareciam do alcance de sua vista,
mesclando-se às nuances de tons de azul e branco.
O céu era poesia.
Um poema escrito ao alcance dos olhos do mundo, mas que sempre
estivera longe dos dela.
Isso a fez pensar em Verena. Na extensão e perfeição de sua magia,
e no quanto esperava que a bruxa estivesse forte o suficiente para conter o
desastre iminente em Havenmill.
Balançou a cabeça espantando os pensamentos.
Não era o momento para pensar em Verena, nem no seu silêncio
desde o momento em que dissera estar indo até a cidade escondida.
Ela está bem, disse para si mesma, sem ter certeza se acreditava nas
próprias palavras.
— Por onde andam seus pensamentos? — A voz da princesa lhe
roubou um sorriso fraco. Não tiveram tempo para trocar muitas palavras
desde que atravessaram até ali.
— Estão voando na verdade — respondeu, observando de soslaio
enquanto Anya se colocava ao seu lado.
Conseguia ver a tensão em sua postura — testa franzida, os lábios
comprimidos em uma linha fina. Ela tinha os braços cruzados diante do
corpo e parecia apertá-los com força contra si.
— Cheguei a esquecer como o céu era bonito — a princesa
comentou, encarando o alto.
— Eu nunca pensei que o veria.
Isso fez Anya olhar para ela, e trazia no rosto um misto de surpresa
e tristeza.
— Você nunca saiu de Havenmill — sussurrou, e não foi uma
pergunta.
— Eu nunca saí de Havenmill.
Elas ficaram em silêncio por alguns minutos, observando a
cachoeira se chocar contra o rio, os pássaros voando, nuvens se desfazendo
enquanto outras surgiam do vazio.
— Eu tinha medo — Delilah admitiu depois de um tempo — de
gostar demais. Do que tem aqui fora, quero dizer. Tinha medo de descobrir
o quão bonito o mundo é e não ser mais capaz de me contentar com
Havenmill.
Ela nunca tinha dito aquilo em voz alta. Nunca falou do medo de
sonhar com o mundo como sua mãe fazia. De não se satisfazer mais com o
que tinha sido destinado para ela.
— O mundo pode ser seu agora. — Anya abriu um sorriso tímido.
— Vai descobrir que o céu é muito mais do que azul e branco.
A meio-bruxa riu.
— É? — respondeu, erguendo uma sobrancelha.
— Uhum. — A princesa se aproximou, até que o braço dela tocasse
o seu. — Ele pode ser laranja, dourado ou vermelho. Ele, às vezes, pode ser
cinzento e tão pesado que parece que irá se desfazer sobre nossas cabeças.
À noite, ele é tão escuro que você não sabe onde começa ou termina, e as
estrelas... Ah, você precisa ver as estrelas.
Anya desenhou um sorriso mais sincero, virando-se para ela e
levando uma mão até os cabelos de Delilah. A mulher fechou os olhos
diante do toque gentil.
— E, às vezes... — prosseguiu, colocando uma mecha para trás da
orelha da meio-bruxa — às vezes, ele pode ser rosa. Dias bons começam
em tons de rosa claro.
A meio-bruxa voltou a abrir os olhos, buscando todas as palavras
implícitas naquela frase até a princesa pousar delicadamente um beijo em
seu ombro.
Um gesto estranhamente íntimo.
E talvez a mulher estivesse demonstrando mais em seu rosto do que
acreditava, pois a garota se afastou ao dizer:
— Cedo demais?
— Não — Delilah gaguejou. — Pode... hum... me beijar o quanto
quiser.
Por todas as Sete, condenou-se em silêncio, sentindo as bochechas
esquentarem.
— Um beijo pra cada cor do céu. — Anya soltou uma risada suave.
— Quando tudo isso acabar, lhe darei um beijo para cada cor do céu.
— Vossa Majestade acha que terá tempo para tudo isso?
Pareceu a coisa errada a se dizer, pois o sorriso da princesa vacilou.
— Honestamente? Nem sei se chegarei a ser uma Vossa Majestade.
— Claro que vai. — Tentou tranquilizá-la. — Não vamos deixar que
Benjamin vença.
— Não é disso que estou falando. Quero dizer, talvez eu não me
torne uma Grande Rainha, no final das contas. Não fui criada para isso. Não
fui treinada para isso.
— Você aprenderá. — Delilah arriscou envolver a cintura dela com
seu braço, surpreendendo-se ao sentir a adaga ainda presa ali. Tantas coisas
aconteceram desde aquela manhã na clareira que nem parecia estar no
mesmo dia. Anya não se afastou do toque. — Veja seu pai! Ele era o
segundo filho, também não esperava se tornar rei. E fez um ótimo trabalho
mesmo assim.
Se desconsiderassem toda a questão de perseguição aos
conjuradores e tudo o mais. Mas ela achou melhor guardar esse pensamento
para si mesma.
— E apenas eu e minha mãe sabemos o quanto isso nos custou
como família. — A princesa suspirou. Não tinham falado muito sobre
Oliver na tarde anterior. A garota contou muitas coisas sobre Elysia, mas
quase não mencionou o pai. — Não quero acabar como ele. Perdida em
minhas obrigações e sem tempo para... viver. Não sei se quero ser rainha.
Ah. Ah.
— Não terá que fazer isso sozinha, sabe disso — confortou-a. — Só
precisa saber pedir ajuda.
Anya assentiu, encarando ao longe e mordendo o interior da
bochecha.
— Isso faz de mim uma pessoa horrível? — suas palavras saíram
não mais do que um sussurro.
— Nunca.
Ficaram mais alguns minutos em silêncio até que Delilah
desvencilhou-se do abraço. Seu momento de admirar o céu — e buscar nele
qualquer sinal de que Verena estava em apuros — havia terminado.
— Preciso encontrar Alexzander — disse para a princesa. — Tenho
que ajudá-lo a erguer o acampamento.
— Vou com você.
— Não precisa fazer isso.
— Preciso, sim — Anya insistiu. — Se a Coroa é algo do qual não
posso fugir, farei as coisas do jeito certo. Começarei ajudando aqueles que
mais perderam até aqui.
Um calor tomou conta do peito de Delilah, e ela não teve dúvida
alguma de que a princesa seria uma líder incrível.
Percebeu também, com um pouco de surpresa, que adoraria estar ao
lado dela para ver isso acontecer.

— Acha que Verena está bem? — Anya perguntou.


A floresta começava a ser banhada em noite e os primeiros pontos
luminosos invadiam os céus.
Conseguia sentir a meio-bruxa prendendo o ar ao seu lado em um
misto de fascínio ao ver as estrelas e preocupação pelo desconhecido que
era a noite fora de Havenmill. Todos pareciam enfrentar a mesma hesitação.
— Espero que sim. — Delilah mordeu o lábio.
O acampamento improvisado estava silencioso.
As pessoas falavam baixo, contidas, temendo pelo que o breu
poderia esconder delas. E não ajudava o fato de que o escudo protetor que
os envolvia já não os ocultava como fazia durante a tarde.
A Luz direta do sol quando refletida no domo mágico, camuflava o
que se escondia dentro dele — era a mesma magia que impedia o Refúgio
de ser visto em Ediri, Delilah explicou. Mas agora, em meio à noite,
estavam mais expostos do que nunca.
Estavam todos apreensivos, temendo que soldados de Benjamin se
escondessem entre os pinheiros, apenas esperando que se distraíssem.
Os sons da Grande Queda ecoavam pela floresta. E mesmo depois
de tudo o que aconteceu, Anya estremeceu ao pensar na primeira vez em
que viu a cachoeira. A noite em que estava tão desesperada por qualquer
tipo de controle sobre si mesma, que se jogar lá do alto pareceu uma ideia
melhor do que ser capturada.
Tanto tinha mudado desde então e, mesmo assim, ainda estava
fugindo neste seu segundo encontro com a cascata.
A princesa adentrou a pequena tenda, os braços cruzados contra o
corpo. Estava preocupada com Verena.
Não tiveram notícia alguma dela desde aquela manhã, e temiam que
algo tivesse acontecido. Mantiveram os olhos no céu durante toda a tarde, e
apesar de não ter nenhuma mudança aparente, o medo começava a ganhar
espaço.
O solo permanecer intacto na outra margem do rio também era um
indicativo de que, ao menos, Havenmill ainda estava de pé. Mas o silencio
da Bruxa Primordial era agoniante. E não ajudava o fato de que à noite não
houvesse Luz para que Delilah se projetasse até ela.
As limitações mágicas do mundo externo eram curiosas e
surpreendentes. As madrugadas eram regidas por outra bruxa — uma que
Anya descobrira o nome durante sua Travessia.
Tallis, a Bruxa Primordial da Escuridão.
Será que ela ouviria caso a princesa a chamasse? Será que a noite
entregaria a ela um recado sobre a irmã desaparecida? Será que ela ainda se
importava?
Delilah seguiu para a tenda logo atrás da princesa parecendo tão
inquieta quanto ela.
Tinham feito um ótimo trabalho com o abrigo. As raízes retorcidas
formavam pequenas cavernas em meio à vegetação, despontando do chão e
se erguendo em um arco pouco mais alto que Anya. Uma pequena
superfície de galhos e heras era o que usariam como cama, e não havia
espaço para nada além disso.
Ela dividiria aquela tenda com Farah. Quanto à Delilah... para ser
honesta, não fazia ideia de onde a meio-bruxa passaria a noite. Não tiveram
muito tempo para conversar.
A mulher passava os dedos logo acima da pequena chama que ardia
continuamente em uma vela improvisada. Tinha sido a única a conseguir
acender fogo, e mesmo ela teve bastante dificuldade. A floresta é úmida
demais, disseram.
Todos evitariam o uso dele à noite — para que não se tornassem
mais visíveis do que já estavam —, mas a meio-bruxa precisava manter
pelo menos aquela chama queimando.
Para que não tivessem aquele problema novamente mais tarde.
Seus dedos finos desenhavam sombras na parede, e ela encarava
fixamente o fogo dançando sob sua palma. A tensão a mantinha de ombros
eretos demais e seus cabelos tentavam sem sucesso esconder o vinco que
trazia entre as sobrancelhas.
— O que foi? — Anya perguntou de repente, fugindo do silêncio.
— Ela precisa me responder. — A meio-bruxa falou baixinho. —
Precisa.
Sabia que ela falava de Verena, e não tinha muita certeza do que
deveria dizer em seguida. Então, sentou-se no retorcido de galhos e folhas
onde dormiria, e escorou sua cabeça na parede.
— Assim que o sol nascer, você tenta falar com ela de novo. — Ela
fechou os olhos. — Até lá, tente descansar um pouco. Não seremos capazes
de fazer coisa alguma exaustas como estamos.
A meio-bruxa deu o único passo que a separava da cama e sentou-se
ao seu lado.
— Não sei se conseguirei dormir essa noite — sussurrou. — Meu
instinto me diz que preciso ficar atenta.
— Tipo... instinto de bruxa? — Anya tentou fazer piada, cutucando-
a com o cotovelo.
— Não, Princesa. — E ela pôde ouvir Delilah revirando os olhos. —
Meu instinto de criatura que jamais viu uma madrugada se passar aqui fora.
O peito da princesa pesou.
— Entendo. — Foi o que conseguiu dizer.
— O que minha parte bruxa me permite fazer — continuou, depois
de alguns segundos. — É isso aqui.
Curiosa, Anya abriu apenas um olho. E arfou ao ver uma pequena
flor de cerejeira na palma da mulher.
— O que é isso? — perguntou.
— Acabei de perceber que ainda lhe devia uma dessas. Desde
aquela noite no Braan.
Sorrindo ao se lembrar da noite em que quase se beijaram, a
princesa inclinou a cabeça para que Delilah colocasse a flor atrás de sua
orelha.
— Ficou bom?
— Ficou perfeita. — A meio-bruxa abriu um sorriso.
E enquanto Anya se inclinava para colocar seus lábios nos dela, um
uivo cortou a noite.
Depois outro.
Outro.
E mais outro.
A alcateia estava em alvoroço.
E os estava avisando de alguma coisa.
— O que está acontecendo? — perguntou rapidamente, encarando a
entrada da tenda.
O lamento dos lobos parecia vir de perto e de longe ao mesmo
tempo, como se o som ricocheteasse nas paredes do escudo e reverberasse
por todo o acampamento.
Algo estava errado.
Delilah levantou-se com um movimento tenso, parando na abertura
do abrigo enquanto olhava para todos os lados.
Anya conseguia ouvir a voz de Alexzander falando baixo a alguns
metros de distância, sussurrando com quem quer que fosse sobre os lobos
terem avistado algo nos limites da proteção.
— Fique aqui — Delilah pediu, já saindo da tenda.
— De jeito nenhum. — A princesa se levantou. — Vou com vocês.
— Anya — ela sussurrou, e seu tom foi de partir o coração —, só
quero descobrir o que está acontecendo primeiro. Volto em alguns minutos.
— Vai me contar mesmo se for ruim?
— Principalmente — Delilah respondeu.
— Certo.
Ela observou a mulher desaparecer na noite, e o silêncio de sua
ausência se tornou incômodo rápido demais.
Sentada na cama com as duas mãos pousadas no colo, sentiu-se
como uma criança de castigo por mau comportamento. E seu coração
acelerado fazia mais barulho que a cachoeira a alguns metros da tenda.
Mais vozes se destacaram na escuridão, e a preocupação foi
crescendo. O medo foi crescendo. A ansiedade. A curiosidade.
Os minutos que se seguiram triplicaram de tamanho, se estenderam,
se arrastaram. Pareciam horas. Seus dedos tamborilavam na madeira da
cama incessantemente, e seu pé batia tão forte contra o chão que um buraco
começava a se formar na terra.
Seus olhos correram pela noite além do abrigo, e então voltaram ali
para dentro. Pousaram na parede oposta à cama. Na adaga largada no canto.
A insígnia real a encarava de volta, rindo de sua falta de coragem.
Como deseja comandar um reino inteiro, se foge e se esconde ao
primeiro sinal de perigo?
É o que a arma parecia dizer.
Não, tinha dito à Delilah que esperaria por ela ali.
Mas a noite cochichava em seu ouvido. Pedia que fosse atrás deles,
que os ajudasse. Dizia que se algo acontecesse, ninguém descobrira até de
manhã.
— Que se dane — xingou o vazio.
E antes que mudasse de ideia, levantou-se, pegou a adaga e partiu
escuridão adentro.
Muitos rostos curiosos a cumprimentaram, todos pareciam
apreensivos pela movimentação estranha. Tão temerosos quanto ela.
Mas não havia sinal algum de Alexzander ou Delilah.
Não avistou nem mesmo Farah.
Ou Silja.
Só então, percebeu que os lobos não uivavam mais. Que já não
uivavam há bons minutos. No entanto, eles ainda não tinham retornado.
Anya se embrenhou pela floresta tentando ser o mais silenciosa
possível. Sua mão pousava firmemente sobre a lâmina, pronta para usá-la
caso isso se tornasse necessário.
Na mata fechada, sentiu-se outra vez na noite em que fora tirada do
castelo. Os pinheiros altos e próximos demais uns dos outros impediam boa
parte da luz da lua de chegar até a terra.
— Devia ter trazido a vela comigo — murmurou para si mesma. E
apenas um silêncio sepulcral lhe respondeu.
O cheiro de pinha era mais intenso do que se lembrava. Quase
enjoativo.
Ela apressou seu passo, temendo que Delilah voltasse antes dela e
avistasse sua tenda vazia. Não queria preocupá-la — ou a qualquer um
deles.
Mas depois de alguns minutos, concluiu que estava indo para o lado
errado. Que não havia nada ali além das árvores, ela e o retumbar da
cachoeira — que pareceu estranhamente afastado.
Estava longe demais.
Preparando-se para retornar, ouviu um som de galhos secos se
partindo. Anya olhou para os próprios pés, percebendo que não pisava em
nada além de grama.
Aquilo veio de outro lugar.
Ela não estava sozinha.
Congelando no meio de um movimento, Anya agradeceu a
vegetação fechada. Talvez conseguisse se manter oculta a tempo de
descobrir quem a acompanhava tão embrenhado na escuridão.
Forçando seus olhos a se acostumarem com o breu, buscou
assustada pela mata. A lua pareceu misericordiosamente encontrar um
caminho até ela, transformando as formas fantasmagóricas mais uma vez
em árvores, e as mãos feitas de sombras em galhos.
Mais gravetos se partiram.
Perto.
Merda, xingou mentalmente.
E percebeu que estava próxima demais dos limites da barreira de
proteção. Não conseguia enxergá-la, mas sentia sua presença.
Um formigamento estranho tomou conta de sua pele. Um aviso de
que precisava sair dali. Que tinha de partir.
Volte.
Volte.
Volte.
Um gemido fraco cortou a noite e a princesa virou o rosto na direção
do som.
Cabelos cor de fogo brilharam sob a fraca luz da lua, esparramados
pela grama além do escudo.
— Conan — ela gritou, sem se importar que chamasse atenção.
Que sua discrição fosse para o inferno!
Anya correu até o escudo, com medo de que se piscasse, seu melhor
amigo desaparecesse.
Mas ele não desapareceria.
Porque a princesa não estava alucinando, não estava ficando louca.
E Conan estava bem ali na sua frente, caído sobre a terra.
A uma barreira de distância.
O soldado parecia tão pequeno, tão indefeso, com as mãos cravadas
sobre a grama como se tentasse entrar para dentro dela.
— Conan — ela repetiu, mais suave dessa vez. Da forma como
costumava dizer aquele nome quando o rapaz aparecia de surpresa em sua
porta.
E Conan olhou para ela.
Um choro pesado irrompeu de sua garganta quando viu o rosto dele.
Aquele rosto tão bonito que ela amava. Destruído. Coberto por hematomas
em todos os tons e estágios de cura possíveis. O nariz, apesar de parecer
bem, projetava-se levemente fora do lugar bem no centro, como se tivesse
sido quebrado e cicatrizado do jeito errado.
— Conan. — A princesa chorou, e colocou as mãos sobre a
proteção.
Ela tinha feito isso.
Ela o tinha deixado para trás.
E ainda assim, ele a tinha encontrado. Tinha voltado para ela. Batido
de surpresa em sua porta mais uma noite.
O soldado arregalou os olhos, estendendo sua mão trêmula na
direção dela.
Reconhecimento.
O braço dele tremia tanto que poderia ser capaz de se quebrar,
parecia fraco demais para o próprio bem.
Mais tarde, Anya descobriria que Conan estava tentando evitar
aquela aproximação. Que o tremor era sua mente tentando resistir aos
impulsos de um corpo sobre o qual já não tinha mais controle. Mais tarde,
lembraria dos olhos castanhos que costumavam sorrir mais que a boca e
perceberia o quão sem vida eles estavam.
Mais tarde.
Mas não naquele momento.
Ali, tudo o que ela queria era puxá-lo para si. Colocá-lo para dentro
da barreira e protegê-lo de tudo o que havia além delas.
Silja poderia curá-lo, mandar para longe toda aquela dor que refletia
em cada pequeno movimento.
— Ei — Anya sussurrou para ele. — Preciso que você venha até
aqui. Acha que consegue fazer isso?
O soldado encarou-a por alguns segundos, seu rosto franzido em
uma luta interna que ela nem poderia nem imaginar. Ele se ergueu com
dificuldade, suas pernas tremendo tanto quanto os braços, e caminhou.
Caminhou arrastando os pés até o escudo que os separava.
A princesa não sabia o que fazer. Não sabia como abrir aquele domo
invisível, como permitir que seu amigo passasse.
Com as mãos pressionadas contra o escudo, ela chorou. Chorou pela
primeira vez desde que o dia se transformou em puro caos. Chorou por tudo
o que tinha acontecido até ali, por tudo o que ainda viria a acontecer.
Chorou por seu melhor amigo que se desfazia nos próprios pedaços bem
diante de seus olhos.
Anya encostou a testa na barreira também.
Fechando os olhos, sussurrou o nome do soldado infinitas vezes.
— Por favor — ela disse para o nada. — Por favor, me ajude a
deixá-lo entrar.
Não sabia a quem estava pedindo, tampouco quem poderia tê-la
ouvido. Mas suas palmas se aqueceram e uma luz prateada brilho tão forte
que, mesmo de olhos fechados, a princesa percebeu. E enquanto os abria, o
brilho cor de prata dissolvia a trama invisível bem diante dela.
Como... como... ácido.
A luz prateada estava desfazendo o escudo como ácido.
Anya não teve tempo para pensar sobre o que aquilo poderia
significar.
O importante era que a proteção estava se abrindo.
E Conan estava bem ali, vivo, exatamente como ela se lembrava.
— Amo você. — Ela sorriu, as palavras falhando conforme as
derramava rápido demais. — Tanto! Vamos resolver isso. Prometo que
vamos! Benjamin nunca mais tocará em você, ninguém nunca mais tocara
em você. Está me ouvindo, meu amor? Prometo. Vingarei cada dor que ele
te fez passar.
Finalmente, a fenda tornou-se grande o suficiente para que o
soldado entrasse, e Anya estendeu a mão para pegar a dele, pronta para
puxá-lo.
Seu toque era morno e familiar. Foi o bastante para que uma nova
onda de soluços se apossasse dela.
Era real.
Conan estava ali na sua frente!
Tudo ficaria bem.
Fechando os dedos sobre o pulso dele, começou a trazê-lo para
dentro. No entanto, a mão dele se entrelaçou com a sua e, com um único e
poderoso puxão, Conan arrastou-a para o lado de fora.
Amo você.
Amo você.
Amo você.
Amo você.
Amo você.
Aquelas duas palavras se repetiam incansavelmente na cabeça de
Conan, desde o segundo em que seus olhos encontraram os dela.
Anya havia dito que o amava e tudo o que ele mais desejava era
conseguir respondê-la. Conseguir dizer que era exatamente assim que ele se
sentia todos os dias há três anos.
E agora, o soldado se amaldiçoava pelo que estava fazendo. Por tê-
la drogado segundos após cometer sua terrível traição. Por tê-la
desacordada em seus braços enquanto a carregava noite adentro.
Mas Conan não era mais dono do próprio corpo.
Já fazia algumas semanas que aquelas mãos não agiam por suas
vontades.
E tinha ordens a cumprir.
Quando avistou aqueles cabelos negros como a escuridão que se
derramava sobre eles, tudo o que sua mente conseguia gritar era não.
Por favor, não.
Por favor, ela não.
Não.
Porque encolhido sobre a grama, curvado por uma dor que não era
totalmente falsa, o soldado já sabia o que precisava fazer. E tentou! Por
todos os deuses, como ele tentou dar as costas para a princesa e correr para
o palácio.
Ele não o fez. Não conseguiu.
Conan sabia que Benjamin já não a queria morta. Que ele queria ser
o senhor de suas mãos. Que queria controlá-la.
O príncipe parecia não ter consciência, ou simplesmente não se
importava, que o soldado ainda era ele mesmo dentro de sua cabeça. Ainda
que sua aparência tivesse mudado.
Ele sentiu cada tapa, soco e pontapé que lhe foi dirigido enquanto
suas feições mostravam o rosto de outra pessoa.
E absorveu cada palavra também.
Cada maldita palavra sobre o sangue de bruxa que corria nas veias
da mulher que ele amava. Benjamin a transformaria em uma escrava,
exatamente como fizera com o soldado.
Conan não estava certo de como se sentia sobre isso. Sobre
descobrir a verdadeira herança de Anya.
Ele conhecia de perto os conjuradores. Protegeu seu reino daquelas
garras por anos, e sabia muito bem de todas as monstruosidades que eles
eram capazes de fazer.
E ter sangue de bruxa...
O soldado ouvira as histórias. Ouvira sobre a necessidade das bruxas
em se reafirmarem como superiores, como divindades. Esperavam que os
humanos as tratassem com devoção e obediência.
Mas ainda que temesse aquele poder desconhecido que se escondia
sob a pele dela — aquela pele tão macia que inundava seu mundo em um
aroma de canela e pinhas — jamais condenaria Anya a um destino como o
que ele próprio agora vivenciava. Não se pudesse evitar.
Benjamin era poderoso.
Mais poderoso do que qualquer conjurador que ele já conhecera, e
temia o que ele fosse capaz de fazer se conseguisse controlar uma meio-
bruxa e seus poderes. De alguém com uma conexão ainda mais profunda
que a dele com aquela magia.
E sob as novas ordens do príncipe, Conan carregava a garota em
seus braços rumo a um destino ainda pior do que a morte.
Jamais seria capaz de perdoar a si mesmo por isso.
Havia prometido protegê-la. Anos atrás, depois de encontrá-la em
Kalon. Depois de aguardar dia após dia na porta da enfermaria, desesperado
por notícias dela. Depois da primeira noite que passaram juntos.
Prometeu que sempre a manteria em segurança.
E tinha falhado.
Infinitas vezes, ele tinha falhado.
Conan seguiu por entre os pinheiros, caminhando no ritmo mais
lento que os comandos do príncipe lhe permitiam. Uma última tentativa de
dar a ela uma chance de fugir.
Benjamin estava se cansando daquela encenação.
O soldado conseguia sentir isso a cada nova ordem que recebia.
Estava cansado de fingir para o reino o quão obstinado estava em
encontrar os culpados pelo assassinato do Grande Rei. Cansado de ter de
parecer bom na frente do Conselho por tempo o suficiente para que a Coroa
chegasse à sua cabeça.
E naquela mesma manhã, com aquela invasão ao esconderijo dos
conjuradores — o lugar onde Anya tinha sido mantida por todo esse tempo
— ele poderia ter colocado tudo a perder. Foi imprudente, impulsivo,
improvisado.
Benjamin poderia ter sido morto.
Só os deuses sabiam o quanto Conan rezou para que isso
acontecesse. Rezou mesmo sem ter certeza para quem.
Mas desde que um pescador chamado Gerry tinha sido capturado
dentro de Ediri, Benjamin estava obcecado.
O refém nem precisou de tortura. Foi fácil para o príncipe entrar em
sua cabeça e o obrigar a falar. Conseguiu tirar cada informação sobre a
cidade escondida, sobre como acessá-la, e o pescador garantiu que Anya
estava lá.
Descobrir todas aquelas coisas deixou o príncipe descontrolado. Ele
queria apenas invadir e atacar, usar aquela ação como a vingança que tanto
prometera ao povo em nome do Grande Rei e de sua Rainha.
E a pressa em conseguir o que queria estava deixando Benjamin
cada dia mais descuidado. Seus comandos eram cada vez menos
específicos.
Não, Conan não estaria presente no ataque. Ficaria à espreita na
floresta, atento a qualquer sinal de fuga dos conjuradores escondidos. Tinha
de aguardar a oportunidade perfeita para que erros não fossem cometidos.
E isso era fácil de ser burlado — diria que a lentidão em seus passos
servia para que sua movimentação não o delatasse em meio à floresta.
O príncipe ordenou que ela fosse levada até as masmorras, mas
também não disse nada sobre imobilizá-la. A corda que colocara em seus
pulsos tinha folga o bastante para que ela conseguisse se movimentar. E
definitivamente, Benjamin não pronunciou uma única palavra sobre deixá-la
desarmada.
Conan não tinha qualquer poder sobre suas mãos, sobre seu corpo,
sobre seu rosto. Mas em seu âmago, ele sorriu.
Sorriu e ignorou a adaga que permanecia presa à cintura da garota
conforme a carregava noite adentro.
— Isso foi... estranho — Delilah franziu o cenho enquanto voltavam
para o acampamento.
— Para dizer o mínimo — Silja concordou ao seu lado.
O coração da meio-bruxa ainda batia forte contra seu peito, mesmo
depois de descobrirem que não havia nada verdadeiramente errado.
Estavam todos apreensivos demais, temerosos demais, e uma
movimentação estranha na floresta deixou os lobos em alvoroço. Mas no
fim, não passavam de alguns animais noturnos incomodados com a
presença humana no local.
— Tem certeza de que não havia nada de estranho na barreira? —
Alexzander insistiu. — A alcateia parecia realmente preocupada.
— Tenho, irmão. — A curandeira enganchou o braço ao do rapaz,
falando baixo. — Chequei cada pedacinho dela naqueles arredores. Mas
posso fazer uma varredura em todo o perímetro se isso vai ajudá-lo a
relaxar.
— Nada vai me fazer relaxar. — Suspirou ele. — Não acho que uma
nova inspeção nas proteções faça qualquer diferença.
Delilah concordou em silêncio.
Tinha certeza de que não pregaria os olhos naquela noite.
Enquanto seguiam até o acampamento, tentando não chamar atenção
demais mesmo depois de toda a agitação com os lobos, a meio-bruxa se
permitiu admirar a floresta.
Os pinheiros se erguiam tão altos que poderiam tocar os céus, seus
galhos cruzando uns com os outros como uma gigantesca trama de madeira.
Eles tinham o mesmo aroma da princesa, ela percebeu. Aquele tom
amadeirado atrelado à canela que passara tantos dias tentando reconhecer.
E isso dizia muito sobre a forma como ela via a princesa. A beleza
do desconhecido que estivera tão perto todo aquele tempo. Um mundo
inteiro bem acima de sua cabeça, e que Delilah só precisaria se permitir ver.
— Está tudo bem? — Farah perguntou, esperando por eles logo na
entrada do acampamento.
Tinham pedido que ela ficasse, para que o povo não se agitasse
demais com a falta de todos eles.
— Sim — Silja afirmou. — Os lobos estão tão apreensivos quanto
nós. A movimentação os deixou agitados.
— Eles precisam se manter em silêncio. — A artesã fez uma careta.
— Aquele barulho poderia ter colocado tudo a perder.
— Não vai acontecer de novo — Alexzander garantiu.
E conforme avançavam para o meio do acampamento, as pessoas
tomavam coragem para saírem de suas cabanas e perguntar o que tinha
acontecido.
Eles explicaram brevemente como a tensão estava deixando todos
paranoicos, e que estavam vendo coisas onde não havia nada.
Aos poucos, todos foram retornando para seus abrigos, e os quatro
já começavam a se despedir uns dos outros para fazerem o mesmo, quando
alguém puxou a mão de Delilah.
Ela encarou a garotinha de olhos arregalados que segurava seu pulso
com força.
— Vocês não podem voltar para a tenda ainda — sussurrou.
— Está tudo bem, meu amor — a meio-bruxa tranquilizou-a. —
Não era nada sério. Pode voltar para seu abrigo.
— Mas a princesa não chegou ainda — insistiu. — Precisamos
esperar por ela.
Delilah congelou no lugar.
— Como assim, querida? — perguntou, franzindo o cenho. Uma
sensação estranha subindo por sua garganta.
— Ela saiu logo depois de vocês, mas ainda não voltou.
Sem dizer nada, Silja saiu correndo, parando em frente ao abrigo da
princesa. Mesmo sem vê-lo por dentro, a meio-bruxa soube que estava
vazio.
— Você disse que ela tinha ficado aqui. — a curandeira falou, num
tom que era ao mesmo tem um grito e um sussurro.
— Ela tinha — Delilah murmurou, indo até onde Silja estava
parada.
E ainda que soubesse que encontraria a tenda vazia, ainda ficou
alguns segundos encarando o espaço desocupado. Na esperança de que,
alguns piscares de olhos mais tarde, a princesa pudesse se materializar ali.
— Onde ela está? — murmurou Farah, parando ao seu lado.
E por todas as Sete, como Delilah gostaria de saber!
Ela chutou a estrutura da tenda com força, fazendo-a chacoalhar por
inteiro.
Seus olhos, então, pousaram em um canto em seu interior. Naquele
espaço vazio que, mais cedo, fora ocupado por uma adaga.
— Não.
Delilah não tempo que ninguém fizesse qualquer pergunta, ela
apenas correu.
Correu, mesmo sem saber para onde.
Correu, sentindo seus amigos seguindo logo atrás.
Eles falavam com ela, mas a meio-bruxa não conseguia prestar
atenção ao que diziam. Continuou avançando na direção oposta do
acampamento, pois sabia que teriam cruzado com Anya se ela os tivesse
seguido.
Talvez estivesse exagerando, talvez topassem com a garota em
poucos minutos e todo aquele medo apertando seu peito tivesse sido à toa.
Mas ela tinha aquela... sensação. Algo estava errado.
Sabia que sim.
Então, continuou correndo.
Trespassou os pinheiros com uma velocidade que mal sabia que
tinha, e amaldiçoou a lua por ser tão pequena e incapaz de produzir uma
boa luz. Odiou Verena, pelos poderes que se tornavam tão limitados durante
a noite.
Alexzander já quase alcançava seu ritmo, mas ela não ousou desviar
o olhar do caminho a sua frente.
— Estamos quase nos limites da barreira. — Farah ofegou logo
atrás. — Melhor tentarmos por outra direção.
— Ela pode ter apenas saído para dar uma volta — Silja completou,
mas sua voz dizia que nem mesmo ela acreditava naquelas palavras.
Delilah parou abruptamente.
— Não enquanto aquela confusão estava acontecendo — respondeu,
tensa. — Não carregando aquela adaga com ela.
— Que adaga? — a curandeira questionou.
Mas a meio-bruxa apenas balançou a cabeça. Não tinha tempo para
explicar, não poderia explicar.
Seus batimentos cardíacos estavam acelerados demais, o rugido em
seus ouvidos ecoava tão intensamente que mal conseguia ouvir seus
próprios pensamentos.
Passando os olhos pela floresta ao seu redor, dividida entre seguir
até a barreira ou mudar o caminho, esbravejou para a noite.
— Onde ela está? — Elevou sua voz como se a escuridão pudesse
respondê-la.
Nada. Nem um mísero suspiro.
Então, um brilho chamou sua atenção alguns metros à leste. Era tão
discreto que poderia tê-lo confundido com um simples reflexo da lua.
Exceto que não havia nada ali além da barreira.
Seguindo apressada até lá, sentiu como se uma mão atravessasse seu
peito e puxasse seus pulmões para fora. Todo o ar do mundo fugiu, e
Delilah conseguiu apenas encarar ofegante a imagem à sua frente.
Havia um buraco na proteção. Um contorno prateado que a meio-
bruxa conhecia bem.
Morte.
Alethea.
Benjamin.
A magia escorria pelas bordas da abertura como se os limites do
domo sangrassem em prata.
E bem em frente aos seus pés, tão próxima que Delilah quase pisou
em cima sem perceber, jazia uma delicada flor de cerejeira.
Exatamente igual àquela que colocara nos cabelos da princesa.
A noite é realmente uma porcaria fora de Havenmill.
Silja sabia que deveria estar preocupada com coisas mais
importantes. Como a princesa que estava desaparecida há quase uma hora e
o caos em que o acampamento começava a entrar.
Mas enquanto estava sentada sobre aquele tronco caído, esperando
que o Conselho se agrupasse para uma reunião de emergência, enquanto
observava Farah andando de um lado para o outro tantas vezes que poderia
abrir uma fenda sob seu caminho, a curandeira só conseguia pensar na Luz.
Ou na falta dela, melhor dizendo.
Era como se estivesse anestesiada.
Seus pensamentos transitavam por coisas tão irrelevantes que
chegou a pensar ter ficado louca.
Refletia sobre como Havenmill estava em vantagem com o mundo
ali fora, pois mesmo quando a cidade escurecia, ainda era Verena quem a
controlava. Não havia noite, havia apenas a falta da Luz.
E ali, na floresta que ela visitara tantas vezes em tardes ensolaradas,
a madrugada era completamente entediante. O mundo real era entediante.
Não gostava da sensação de estar nas mãos de uma bruxa que
conhecia apenas pelo nome, mesmo sabendo que era uma das Primordiais
mais queridas por Verena.
A escuridão, a verdadeira escuridão, que Tallis controlava era
intimidadora.
E a curandeira já sentia falta do dia, da Luz e, principalmente, de
sua cidade.
Sim, a noite era uma grande porcaria.
Depois de reunido, o Conselho passou bons minutos debatendo de
forma exaltada sobre o que fazer em seguida.
Os lobos tinham feito uma varredura dentro das proteções e,
aparentemente, ninguém havia entrado no acampamento. Mas a magia de
Benjamin partiu o escudo da mesma forma como fizera na praça central de
Havenmill. E Anya tinha sido levada para o lado de fora.
Precisavam agir logo.
No entanto, assim que se colocassem para fora do domo, não
haveria volta. Ir atrás da princesa era o mesmo que ir atrás de Benjamin. E
não poderiam fazer isso sem o mínimo de planejamento.
— Temos de ir atrás deles agora — argumentou Farah com o tom de
voz mais firme que Silja já a viu usar. — Se nós os alcançarmos ainda na
floresta, teremos o elemento surpresa. É óbvio que o príncipe estará nos
esperando no castelo.
— Não podemos sair durante a noite — a curandeira comentou,
franzindo o cenho para os pensamentos finalmente se encaixando em sua
mente. — Metade das nossas habilidades estão comprometidas pela
escuridão.
— E esgotamos nossos poderes tentando proteger Havenmill e
erguendo este acampamento — Alexzander completou, e sua voz falhou ao
dizer aquilo.
— E o que você sugere? — Farah retrucou. — Que passemos uma
noite tranquilos no acampamento e amanhã, pacificamente, batamos nos
portões do palácio e perguntemos “ei, por acaso a princesa está trancada aí
dentro?”
— Não fale comigo como se eu fosse burro — Alexzander
respondeu, ríspido. — Tenho plena consciência do que está em jogo aqui.
Mas não adianta partirmos para um confronto completamente
despreparados.
— Já fizemos isso uma vez — a artesã rebateu.
— E veja o que isso nos custou. — Ele apontou para o
acampamento. — Sei que você quer ajudá-la, Farah. Nós também
queremos. Mas não podemos simplesmente correr noite adentro e rezar para
dar tudo certo.
— Farah — Delilah disse com suavidade. E havia algo em sua voz
que fez um nó se formar na garganta da curandeira. Ela estava tentando
manter o controle, tentando não demonstrar o quanto estava preocupada. —
Alexzander está certo. Precisamos pensar em algo com calma.
A artesã soluçou, o único sinal de que estava tentando controlar suas
lágrimas. A curandeira se surpreendeu com a fortaleza em que sua amiga
tinha se transformado.
— Não posso falhar com ela mais uma vez. — Foi a última coisa
que Farah disse.
E tudo fez sentido para Silja naquele momento. Todas as farpas e
palavras duras. Sua amiga ainda se culpava.
Pelas mentiras, pelos problemas no caminho, por tudo. E o coração
da curandeira doeu mais um pouquinho.
Suspirando pesadamente, Delilah se virou para Jett, que permaneceu
em silêncio o tempo todo — talvez soubesse que seus comentários azedos
não seriam bem-vindos naquele momento e, na falta de algo melhor para
falar, preferiu não dizer nada.
— Você ficará no acampamento. Seu trabalho será manter todos
acomodados, organizados e o mais silenciosos possível. — Quando o
homem assentiu, ela se virou para Alexzander. — Você, vá para sua tenda
agora mesmo. E se eu passar por aquela porta e você não estiver dormindo,
terá de se ver comigo.
Silja observou seu irmão se afastar. Jett também sumia pela noite,
restando somente as duas garotas e a meio-bruxa.
— Vocês também precisam dormir — Delilah disse. — Sairemos no
momento em que o primeiro raio de sol despontar no horizonte, e eu
erguerei um escudo em torno de nosso grupo para nos manter escondidos.
Mas tenho que me certificar de que vocês estarão com suas habilidades
carregadas para uma emergência.
A curandeira assentiu, passando os olhos por Farah, que permanecia
imóvel e olhando por sobre o ombro da meio-bruxa.
— Acha que ela está bem? — a artesã sussurrou.
— Acho — Silja afirmou. — Dell treinou-a bem.
Um sorriso fraco surgiu no rosto de Delilah, mas ele não chegava
aos seus olhos.
— E qual é o plano? — ousou perguntar.
— Não existe plano. — O sorriso se desfez. — Não temos como
prever como as coisas no castelo vão se desenrolar.
— Mas e se tudo der errado? — Farah insistiu.
E mesmo na escuridão de Ediri, os olhos verdes de Delilah
brilharam com as lágrimas não derramadas.
— Essa não é uma opção.
Alexzander quase não dormiu. E enquanto o alvorecer ainda parecia
em dúvida sobre dar as caras, o rapaz temeu que as poucas horas de sono
não tivessem recarregado sua magia o suficiente.
Ele simplesmente não conseguiu se desprender dos acontecimentos
do dia anterior. A invasão, a fuga, o sequestro da princesa. Era coisa
demais, tempo de menos. E agora, tinham de partir em direção ao confronto
do qual não tiveram a chance de se preparar o suficiente.
Talvez aquele fosse o plano de Benjamin desde o início. Deixá-los
acreditarem que havia uma chance, dar esperanças de que as coisas
poderiam se resolver e, no fim, arrancar tudo o que eles tinham de uma
única vez.
Invadir sua cidade, exaurir suas forças e então, levar a princesa.
Deixá-los sem nada.
Sentou-se lentamente na cama improvisada da tenda, sentindo suas
costas reclamarem da posição ruim em que passara a noite. Cutucou sua
irmã, que estava adormecida bem ao seu lado, e saiu do abrigo antes do sol
acordar.
Já temendo pelo pior, Alexzander flexionou os dedos repetidas
vezes testando sua magia. Como uma pequena misericórdia, ela pareceu
obedecer.
Estava fraca, sim. Longe de seu alcance total.
E teria de se esforçar para usá-la de forma inteligente.
Revirou os olhos para si mesmo. Não estava em posição para
reclamar.
Silja deixou a tenda naquele momento, vindo até ele e envolvendo-o
pela cintura.
— Chegou a hora — ela sussurrou, esfregando os olhos.
— Sim. — Ele abraçou-a de volta. — Chegou.
— Como você está?
Alexzander encolheu os ombros.
— Bem o suficiente. Você?
— Péssima — sua irmã gemeu. — Sinto como se não dormisse há
dez anos.
Ele apenas assentiu, puxando-a para si com mais força.
Precisava protegê-la. Jamais se perdoaria caso algo acontecesse com
sua irmã.
— Pare com isso — murmurou a garota, com o rosto espremido
contra o peito dele e empurrando-o com as mãos. — Parece que está se
despedindo.
— Não estou. — O rapaz a soltou. — Mas nunca se sabe.
— Eu sei — garantiu, erguendo uma sobrancelha. — Nada de ruim
vai acontecer. Vamos encontrar a princesa, enfrentar Benjamin e depois...
qualquer coisa. Depois seremos livres, poderemos fazer o que quisermos.
— Livres — ele repetiu, testando a palavra em sua boca.
A esperança tinha um gosto doce.
E talvez eles fossem tolos completos por procurarem um final feliz
para si mesmos, mas era tudo o que lhes restava.
Delilah e Farah se juntaram a eles no instante em que o primeiro
raio de sol despontou do horizonte, exatamente como combinado.
A artesã mexia de forma nervosa na ponta da trança grossa que
pendia sobre seu ombro esquerdo.
Todos se cumprimentaram, tensos.
— Não sabemos o que nos aguarda no castelo — Delilah disse,
depois de alguns segundos de silêncio. — Benjamin, com certeza, está nos
esperando. E ainda estamos fracos, não podemos depender apenas da
magia.
— O que quer dizer com isso? — Silja ergueu uma sobrancelha.
— Quero dizer que precisaremos de armas. Estou certa de que
encontraremos muitos soldados antes de chegarmos à princesa, devemos
tentar roubar algumas de suas espadas.
Alexzander viu a meio-bruxa estremecer ao se referir à garota. As
sombras arroxeadas sob os olhos dela mostravam que não tivera uma noite
muito melhor que a dele, e ele nem poderia imaginar como ela estava se
sentindo com aquela situação.
Todos ali, com exceção de Farah, conheciam Anya há pouco tempo,
mas Delilah e ela estavam... bom, recém começando.
E agora, a princesa tinha sido levada.
— Não vamos ter de matá-los, né? — Farah indagou. — Os
soldados, quero dizer. Eles não... Eles estão sendo controlados, não estão
agindo por...
— Mesmo que Benjamin não estivesse sobre poder das mentes
deles, não pensariam duas vezes antes de no atacarem. — Alexzander sentiu
a raiva subir pela garganta de repente, despontando de uma parte de seu
coração que ele não acessava há muito tempo. Conhecia melhor do que
qualquer um deles o que acontecia nas masmorras daquele castelo. — Você
mesma disse que o príncipe mantinha sua magia apenas sobre aqueles
dentro do palácio. Quantos dos homens que destruíram Havenmill você
acha que estavam sob efeito do poder dele? E quando atravessaram flechas
no peito de nossos amigos?
Suas palavras saíram mais duras do que ele pretendia, e arrependeu-
se do tom que usou no instante em que terminou de dizê-las. Mas a artesã
não recuou, e respondeu tão firme quanto ele:
— Foram condicionados. — Fulminou-o com o olhar. E mesmo
sendo muito mais alto que ela, o rapaz sentiu como se a garota o encarasse
de cima. — Anos, séculos, de mentiras. Eles acreditam que assassinamos o
Rei, pelo amor de todas as Sete! Foram tão manipulados quanto a própria
princesa, que só conheceu a verdadeira história depois que a sequestramos.
E não me olhe desse jeito, foi exatamente o que fizemos. Não se esqueça,
nem por um segundo, que já estavam planejando levá-la até Havenmill. As
coisas saíram do controle porque Benjamin atacou primeiro, mas vocês já
estavam procurando por formas de fazer isso há meses. Aqueles homens no
castelo são consequência do passado tanto quanto Anya. Tratá-los de forma
diferente apenas porque não são tão úteis para nós como ela, é, no mínimo,
cruel.
Ele não soube o que dizer.
Ficou apenas olhando para a garota à sua frente, como o peito dela
subia e descia tão rapidamente. E entendeu. Farah cresceu no castelo.
Cresceu com a princesa e... ela conhecia parte daqueles homens. Se não a
maioria deles.
Claro que ela não queria ter de machucá-los.
E o arrependimento começou a tomar conta. Mas antes que tivesse a
chance de pedir desculpas, Delilah pigarreou.
— Não faremos nada além do necessário. Tentaremos deixá-los
desacordados, amarrados, qualquer coisa. Nosso objetivo é encontrar a
princesa, nada mais ou menos do que isso.
— E depois? — Silja questionou. — Quando Anya estiver com a
gente, o que faremos?
— Improvisamos. — A meio-bruxa suspirou. — E é por isso que
precisamos das armas. Precisamos de um plano B.
— Pelas Sete — Alexzander sussurrou.
— Talvez não possamos contar nem com elas — murmurou Delilah,
e o rapaz soube que Verena ainda não a tinha respondido.
Ficaram em silêncio mais alguns minutos, aguardando enquanto
Farah ajudava Silja a prender punhos improvisados com tiras de couro.
Tiveram sorte em estarem todos em treinamento no momento do ataque, ao
menos, conseguiriam partir para o castelo em trajes mais... práticos.
Delilah estava perdida em seus próprios pensamentos, com os olhos
voltados para os céus ainda rosados pelo alvorecer. Se pareciam com os
cabelos dela, ele percebeu pela primeira vez. E a meio-bruxa talvez
estivesse constatando a mesma coisa, pois o rapaz percebeu a lágrima
solitária que desceu pelo rosto dela.
Por fim, ela balançou a cabeça e começou a andar.
— Vamos? — disse.
E partiram.
Assim que atravessaram o escudo que envolvia o acampamento,
Delilah envolveu-os com outro. Teriam de andar juntos, e fazer o mínimo
de barulho possível.
Silja olhava para todos os lados procurando por soldados que
poderiam estar escondidos pela mata. Mas não havia ninguém além deles.
Refazendo os passos que dera na noite em que invadiu o palácio,
não conseguiu evitar que as palavras de Farah ecoassem em sua mente.
Tudo o que ela disse era verdade. Tinham sequestrado a princesa para
ganho próprio, e não importava o quanto tinham se afeiçoado a ela mais
tarde. Tudo começou como uma ação egoísta e desprezível.
E Anya sabia.
Ela descobriu a verdade na noite em que Farah chegou a Havenmill.
E passou por cima de tudo isso, abriu mão das próprias crenças e se aliou a
eles mesmo assim. Porque seu reino era mais importante. Porque seu povo
era mais importante. E passou a confiar neles de tal forma, que ofereceu um
lugar no Conselho Real.
A princesa talvez fosse melhor do que ele jamais seria.
Caminharam em silêncio por Ediri.
Ele e Farah seguiam na frente, sendo os únicos que sabiam como
chegar no castelo. Mas não trocaram uma palavra sequer.
Alexzander observava o maxilar trincado dela, os ombros tensos.
Sabia que, embora estivessem indo para uma missão da qual não tinham
qualquer controle, aquela postura era em boa parte culpa dele.
— Eu sinto muito — ele sussurrou. — Pelo que eu disse.
— Depois — ela devolveu. E mesmo sussurrando também, o rapaz
conseguiu distinguir a mágoa na voz dela.
— Não quero entrar naquele castelo brigado com você. Não
sabemos o que pode acontecer.
Farah pareceu prender a respiração, e ficou em silêncio por tanto
tempo que ele pensou que não receberia resposta alguma.
Até que ela disse:
— Eu também já estive presa naquelas masmorras, sabe. Não me
atacaram diretamente. — Ela estremeceu. — Até hoje não sei o motivo.
Mas eu vi o que faziam com os outros prisioneiros. Com meu pai...
Alexzander era um completo idiota.
— Eu conheço muitos daquele soldados. — ela prosseguiu. —
Alguns deles são pouco mais velhos do que eu e... precisam daquele
emprego. São pessoas normais como você e eu. São pessoas boas. E se,
mesmo com a magia de Benjamin, ainda existir um pouco deles lá dentro?
Sua voz morreu.
Farah cruzou os braços diante do peito, como se isso evitasse que
partes dela se descolassem do resto do corpo.
O rapaz sentia os olhos de Silja às suas costas. Sabia que ela não o
julgava pelo que tinha dito, mas sabia também que ela concordava com as
palavras da artesã.
— Acha que ainda pode haver algo deles dentro de suas mentes? —
Foi o que conseguiu dizer.
— Espero que sim — Farah sussurrou. — E espero que o que
faremos hoje os ajude a nos ver com um pouco de compreensão.
Ninguém disse mais nada.
O sol já estava em seu ponto mais alto quando atravessaram a linha
que delimitava as fronteiras de Ediri. A marcação era apenas um aviso para
aqueles que andavam desatentos, um lembrete de que Ediri era território
proibido para humanos.
Estavam se movimentando mais rápido do que naquela noite com a
princesa. Já estava quase amanhecendo quando ela despencou pela Grande
Queda.
Agora, menos de duas horas os separavam do castelo.
Silêncio os acompanhou durante o resto caminho, e quando se
aproximaram do fim das árvores, pararam alguns minutos para decidirem o
que fazer a seguir.
— Já podemos avistar o palácio — ele avisou, e viu o leve arregalar
dos olhos de Delilah ao perceber o mesmo.
— Essa é a parte mais difícil. — Ela suspirou. — Não poderemos
mais usar esse escudo mágico. Nós não sentimos o cheiro doce da magia,
mas os sentinelas sim. Isso nos denunciaria. Deixem para acessar suas
habilidades quando não estivermos mais... escondidos.
— Quando atacarmos — Silja corrigiu, estremecendo.
— Sim.
Aproximaram-se com cuidado das muralhas que contornavam a
estrutura, procurando sempre se manterem ocultos pela vegetação.
Mas o caminho estava curiosamente livre.
Os sentinelas que faziam a guarda pareciam desatentos, olhando
para todos os lugares, exceto aqueles por onde Alexzander e seu grupo
passavam.
E sem qualquer tipo de problema, atravessaram a pequena área
arborizada que escondia o acesso aos túneis dos reservatórios de água.
Como esperado, ninguém dava muita importância para os túneis.
Em teoria, eles possuíam apenas um acesso para o interior das muralhas,
que ficava bem ao fundo.
Adentraram as câmaras subterrâneas e o breu que os cumprimentou
era tão denso que o rapaz mal conseguia distinguir os contornos de suas
amigas.
Farah colocou-se na frente.
Era a única que conhecia bem aquele castelo.
Continuaram avançando pelo escuro, e a artesã segurou
delicadamente seu pulso. Alexzander ignorou o arrepio que sentiu e, por sua
vez, estendeu a outra mão à Silja — que repetiu o gesto com Delilah.
— Aqui — Farah sussurrou depois de vários minutos, parando de
andar.
O som de uma maçaneta antiga demais foi seguido pelo ranger de
uma porta se abrindo.
Todos se encolheram quando o barulho ecoou pela câmara.
— Essa porta pareceu mais discreta quando bombas explodiam
como tema de fundo — ele reclamou, colocando-se na frente da garota para
entrar.
— Não. — Ela colocou a mão sobre seu peito. — Eu continuo na
frente. Conheço melhor toda a estrutura desse castelo.
E não lhe deu tempo de protestar.
Farah adentrou a passagem tão mal iluminada quanto o túnel, e
Alexzander resmungou.
— Essa escadaria é terrível — disse, lembrando-se da dificuldade
que teve para descê-la.
Na ocasião, Faen tinha se certificado de que as tochas estariam
acessas. Desta vez, não poderiam contar nem mesmo com isso.
— Fiquem atentos — Farah sussurrou. — Pisem com cuidado e
recomendo que acompanhem a linha da parede com a mão.
Era tão ruim quanto Alexzander se lembrava.
Estreito, escuro e tão úmido que sentia a água fazendo suas botas
rangerem.
— Como eles tiveram coragem de chamar isso aqui de rota de fuga?
— ele sussurrou. — Se descer essa escada correndo e cair, pode rolar até o
inferno!
Silja abafou uma risada logo atrás dele.
— Shhhhhh! — repreendeu Farah — Silêncio!
O rapaz tentou manter a boca fechada. Tinha aquele péssimo
costume de fazer piadas quando estava nervoso.
Eles continuaram subindo, a escada fazendo voltas e voltas por entre
as paredes de pedra.
Até que a artesã voltou a falar:
— Quando entrarmos no depósito, aquele onde deixei a princesa
naquela noite, teremos de abrir uma pequena fresta na porta para que
Delilah se projete pelo corredor. — Ela fez uma pausa. — Sei que é
arriscado, que se algum soldado estiver próximo demais o cheiro nos
denunciará, mas precisamos ter certeza da localização de todos naquele
andar.
O rapaz assentiu, e só então percebeu que a garota não conseguia o
ver.
— Certo — sussurrou.
— A maioria dos homens costumava ser colocada ao entorno do
castelo, não dentro dele. Alguns guarneciam o salão principal mas, de
forma geral, os corredores eram bem vazios. — prosseguiu. — Mas se
Benjamin já está contando que venhamos atrás da princesa, talvez os tenha
alocado em pontos cegos por toda a estrutura.
— E se ele souber dessa passagem? — Silja indagou.
— Acho que não. Apenas dois funcionários do palácio sabiam sua
localização para acompanhar o Grande Rei em uma necessidade de fuga. Os
dois estão mortos. — Sua voz falhou. — E é a única forma que temos para
entrar.
Silêncio completo tomou conta da escadaria.
— Chegamos — disse por fim, e todos pararam de se mover.
— Em que andar estamos? — ele perguntou, pois na noite em que
viera atrás da princesa, não tivera chance de ver nada além do pequeno
depósito.
— Quarto. Ao final do corredor à direita, existe uma porta que leva
para a ala dos funcionários internos. É a forma mais simples de se
movimentar pelo castelo sem sermos vistos.
— Se é o caminho mais simples, talvez devêssemos evitá-lo —
Delilah sugeriu.
— A outra opção é descer pela ala Leste, que dá direto para os
alojamentos dos soldados — ela parou — e as masmorras. Sei que é
provavelmente onde eles estão mantendo Anya, mas é muito arriscado.
— E como vamos atravessar o castelo sem sermos vistos? — o
rapaz perguntou.
— Existem tuneis subterrâneos. Os soldados têm acesso à maior
parte dos cômodos do primeiro andar por caminhos sob o castelo para
emergências.
— Muitas emergências são esperadas aqui dentro — Silja
resmungou.
— A realeza é mais bonita quando vista de fora — Farah respondeu,
então, abriu a porta que levava ao depósito.
E assim que Alexzander adentrou o cômodo, soube que algo estava
errado. Pois havia uma solitária vela queimado no lado oposto da pequena
salinha.
— Esperem... — começou a dizer, virando-se para empurrar sua
irmã e Delilah de volta para o corredor.
Mas elas já tinham passado por ele.
Já estavam ao seu lado.
E a porta pela qual entraram fechou-se sozinha com um estrondo
acompanhado de um click.
A parede que dava acesso àquele depósito secreto abriu-se sozinha
um segundo depois.
— Sejam muito bem-vindos. — Uma voz ressoou pela abertura.
Demorou alguns segundos para que Alexzander a reconhecesse.
Então, os cabelos brancos perfeitamente penteados para trás apareceram sob
o portal.
— Estava esperando por vocês — Benjamin completou.
Delilah foi a primeira a reagir.
Ela flexionou as mãos ao lado do corpo, pronta para buscar sua
magia. Alexzander imitou o gesto, rezando para que estivesse recuperado o
suficiente.
Quando quatro soldados adentraram no depósito de uma única vez,
Alexzander chamou os ventos. Sentiu sua irmã ao seu lado, pronta para
ergueu seu escudo entre os homens da Coroa e eles.
Mas nada aconteceu.
Ele tentou mais uma vez, amaldiçoando as horas de sono que lhe
foram roubadas. Ao tentar tentou tocar os fios dourados que corriam por
suas veias, simplesmente não os viu ali.
Sua magia não fora apenas drenada, ela tinha desaparecido.
Enquanto os soldados atravessavam o cômodo em um único passo, o
rapaz lançou um olhar desesperado para a meio-bruxa ao seu lado, rezando
para que ela fosse rápida o suficiente.
Mas Delilah encarava as próprias mãos com os olhos tão
arregalados quanto ele sabia que estavam os seus.
Com o pânico subindo pela garganta, pulou na direção do guarda
que partia para cima de Silja. O choque de seu corpo contra o dele foi
intenso, e todo o seu ar pareceu ter sido roubado de uma única vez.
Depois disso, tudo aconteceu rápido demais.
Os soldados avançaram contra cada uma das garotas, girando-as até
levar seus braços às costas com uma velocidade assustadora.
Um braço prendeu-o pelo pescoço enquanto sentia uma lâmina ser
pressionada entre duas de suas costelas, num acesso fácil até seu coração.
— Conan! — Farah gritou de repente. — Conan, sou eu! Olhe para
mim!
Mas quando Alexzander tentou buscar quem quer que a artesã
chamasse, a ponta da lâmina foi pressionada ainda mais contra ele.
Ela se debatia tentando se libertar com movimentos inteligentes e
bem treinados — mas não foram o suficiente. E o rapaz assistiu com terror
enquanto o mesmo acontecia com sua irmã.
E com Delilah.
Tentou novamente acessar sua magia, no entanto, ela... não estava
ali.
Seu captor não parecia muito preocupado em imobilizar suas mãos,
pois o cotovelo apertando seu pescoço o estava deixando sem ar, e isso,
combinado com a adaga — ou espada, ele não tinha como saber —, já dizia
o suficiente sobre o que poderia acontecer se ele tentasse se soltar.
Silja ainda forçava seu corpo para a frente e gritava xingamentos
para o soldado de cabelos vermelhos que prendia seus braços de um jeito
doloroso às suas costas.
Era para aquele soldado que Farah olhava fixamente. Tão
concentrada que parecia ter desistido de lutar contra seu próprio captor.
— Conan — ela insistiu. — Por favor!
Delilah gritava palavras ininteligíveis, tensionando os dedos e
lançando o corpo contra o homem que a segurava com tal intensidade que
mesmo um soldado tão grande cambaleou para trás.
— Onde ela está? — a meio-bruxa gritou.
Benjamin riu.
— Não se preocupe, querida. Ela também está ansiosa para ver
vocês. Mas preciso avisá-los de um pequeno detalhe — ele fez uma pausa
dramática —, ela talvez esteja um pouquinho mais... obediente quando
vocês se encontrarem.
— O que você fez? — foi Farah quem berrou dessa vez.
— Bem-vinda de volta, conjuradora. — Ele abriu um sorriso de
dentes brancos demais. — Sinto muito que seu pai não possa recebê-la aqui
hoje. Mas talvez ele esteja esperando por você em outro lugar quando eu
terminar.
A artesã se debateu mais uma vez.
— Você não consegue entrar na mente dela — Delilah disse,
entendendo as insinuações do príncipe. — Anya é uma de nós agora. Você
não pode controlar os poderes de Verena.
— Mas não são os poderes de sua amada Bruxa da Luz que estou
planejando usar, querida. São os outros. Até porque, devem ter notado que a
magia de vocês não funciona em meu castelo.
Benjamin abriu ainda mais seu sorriso.
São os outros. O que diabos aquilo significava?
E como ele sabia que a magia deles não estava respondendo?
O príncipe, então, começou a brincar com os vários anéis que trazia
nos dedos. Não, ele começou a tirar um deles.
E ergueu o aro de prata simples diante do rosto, como se examinasse
a joia. O tremeluzir da única vela que iluminava o cômodo formou sombras
diante da pele tão branca quanto papel. Ele mal parecia ter sangue correndo
dentro de si.
— Isso te lembra de alguma coisa? — Benjamin debochou,
aproximando-se de Delilah.
A meio-bruxa parou de lutar.
A aliança de Lavínia.
Todo o corpo de Delilah pareceu parar de funcionar no instante em
que seus olhos pousaram no objeto que o príncipe trazia nas mãos.
— Onde conseguiu isso? — sussurrou.
Ela tentou se soltar mais uma vez, mas o soldado que mantinha suas
mãos às costas puxou-as com tanta força que sua visão escureceu nas
bordas.
— Acalme-se bruxa — Benjamin repreendeu. — Temos muito o
que conversar. Devemos ir para um lugar mais... reservado.
O príncipe saiu do depósito, e Delilah sentiu o homem que a
segurava empurrá-la com força em direção à porta.
Ela não tinha forças para lutar.
Bom, tinha. Mas durante toda a sua vida, ela sentiu aquele
formigamento sob a pele. Sempre conseguiu ouvir a magia se movendo
dentro dela. E agora... estava no escuro. A ausência de seus poderes era
caótica, dolorosa. E isso a impedia de reagir.
Mal conseguia respirar diante daquele vazio.
Então, enquanto o soldado a arrastava pela porta, enquanto seus
amigos eram levados logo atrás dela...
Delilah não resistiu.
O anel de Lavínia estava com Benjamin e isso simplesmente não
fazia sentido. Assim como as outras palavras do príncipe.
Mas não são os poderes de sua amada Bruxa da Luz que estou
planejando usar, querida. São os outros. O que diabos aquilo significava?
Quando os homens viraram à esquerda, o peito de Delilah sentiu um
pequeno sinal de esperança.
Estavam indo para a ala Leste.
O lugar onde Anya deveria estar.
Precisava pensar. Precisava encontrar uma forma de se libertar
enquanto desciam até o ponto onde encontrariam a princesa.
Ao passarem pela porta de madeira simples ao final do corredor de
mármore, o que se estendeu diante deles era uma sala completamente
diferente. O pequeno saguão era feito de tijolos avermelhados e mal-
cuidados. Não havia janelas, apenas duas tochas ardendo na lateral
esquerda. Vazio e cheirando à umidade, levava até uma escada estreita e em
curva logo à frente.
Os alojamentos dos soldados. E o caminho para as masmorras.
Mesmo sabendo que nada aconteceria, tentou usar seus poderes
mais uma vez. Mas aquela luz dourada que dividia espaço com sua alma
simplesmente a tinha abandonado.
Seus amigos pareciam tão anestesiados quanto ela, sendo arrastados
para os degraus de pedra. Silja era a única que ainda se debatia, arranhava e
chutava o ar.
Delilah a invejou por isso.
— O que fez com minha magia? — a curandeira gritou.
Benjamin suspirou de forma dramática, e virou-se para eles. Os
soldados congelaram diante de seu olhar.
No corredor de pedra, com as chamas iluminando seu rosto, a meio-
bruxa conseguia vê-lo em detalhes. A pele sem marcas, imaculada, sem
qualquer sinal de tempo.
Jovem. Benjamin era jovem demais.
Trinta e poucos anos, no máximo.
— Seja paciente — ele disse. — Estamos quase chegando.
— Não vamos a lugar nenhum! — foi Farah quem gritou.
O príncipe revirou os olhos.
— Mas foi você quem voltou para cá, meu amor — ele debochou.
— Pensei que estivesse com vontade de participar dos meus... jogos.
A pele da artesã pareceu perder a vivacidade de sua cor de bronze.
— Não — ela sussurrou.
— Ah — Benjamin sorriu. — Você se lembra. Me diga, Farah, você
consegue dormir à noite ou ainda ouve seu pai gritando? Magmar foi um
homem tão fraco, não acha? Incapaz de proteger o rei, a rainha e... a filha.
— Você pagará por cada gota de sangue que derramou — a artesã
gritou, parecendo recuperar as energias e se debatendo continuamente.
— Acho que não. — O príncipe retomou sua descida pela escadaria.
Estava quase fazendo a primeira curva para a esquerda. — Tentei ser legal
com você uma vez. Deixei-a protegida nas masmorras, mesmo enquanto
seu pai me arranjava todo aquele trabalho. Mas então, você fugiu. Não
cometerei o mesmo erro duas vezes, garota. Na verdade, acho que vou
começar por você.
O torpor abandonou o corpo de Delilah naquele instante.
Farah não.
Não a filha de seu melhor amigo.
O príncipe estaria morto antes que suas mãos tocassem a artesã.
Delilah estava desarmada, sem magia, mas ainda era forte.
Teria de bastar.
Ao invés de se lançar para a frente, usou todo o seu peso para
empurrar o soldado para trás. A surpresa o fez cambalear alguns passos, e
Delilah girou os pulsos dentro daquele aperto e puxou-os para si. Com toda
a força que tinha em seu corpo.
Farah entendeu a deixa, e espelhou seus movimentos no mesmo
instante. Assim como Silja, e até mesmo Alexzander — que parecia
estranhamente perdido em um mundo só dele.
Era a falta da magia, ela percebeu.
O silêncio e o vazio o estavam afetando demais.
— Ah, por todos os deuses — Benjamin esbravejou, encarando seus
soldados. — Vocês são mais inúteis do que parecem.
O príncipe torceu as mãos e os homens caíram de joelhos. Eles
olhavam para o chão, as mãos pendendo ao lado dos corpos.
Completamente sem reação.
Era a sua chance de correr.
Trocando um olhar rápido com Farah ao seu lado, ela se preparou.
— Nem pensem nisso. — O príncipe riu. — Vocês não são ninguém
sem seus poderes.
— O que fez com eles? — Delilah bradou. — E por que o anel de
Lavínia está com você?
— Bom, já que parecem tão ansiosos, posso explicar aqui mesmo. E
não façam nenhuma gracinha, sabem que tenho meios muito mais eficientes
para contê-los do que com soldados fracassados.
Ele abriu as mãos e seus dedos brilharam em prateado.
Os homens permaneciam de joelho no chão, e Alexzander puxou
delicadamente Silja para trás de si — colocando-a entre ele e a parede.
— Comovente — Benjamin zombou. Ele brincou outra vez com a
aliança e virou-se para Delilah, escorando um ombro na lateral da escadaria.
Estava à vontade e despreocupado, e isso fez a raiva arder ainda mais no
peito da meio-bruxa. — Magia com a sua não evapora pelo ar, você sabe.
Não me entenda mal, eu adoraria dizer que arranquei seus poderes e
mandei-os de volta para o inferno. Eu seria considerado um maldito deus se
conseguisse fazer isso. Mas as coisas não são tão simples assim.
Passos ecoaram pela escadaria, e Delilah soube que mais soldados
estavam subindo.
— Durante muito tempo — ele prosseguiu, como se não tivesse
notado —, acreditou-se realmente que a Bruxa da Luz tinha sido morta
naquela noite. Mas ela não tinha herdeiros, então como era possível que o
mundo ainda fosse banhado em Luz? Que ainda houvesse dia? Como eu
disse, magia não se desfaz, apenas se... perde. Vaga. E com o tempo, deixa
de ser manipulável. Então, era de se imaginar que os poderes da Primordial
estivessem em algum lugar. Ou — ele fez uma pausa dramática e ergueu o
anel — em algum objeto.
— Mas Verena está... — Delilah parou sua frase no meio,
percebendo a informação que estava prestes a entregar.
— Viva? — Benjamin gargalhou, e mesmo o castelo pareceu tremer
diante do som. — Ah, não se preocupe. Sei disso. Ela se esconde naquela
floresta como o rato que é. Mas ela já não era dona de todos os seus
poderes, era? Ela os tinha compartilhado com alguém. Alguém que estava
no castelo em seu lugar.
Lavínia.
Lavínia carregava consigo metade dos poderes da Bruxa Primordial.
— Quando a bruxa morreu — ele sorriu — os poderes que ela
carregava se prenderam a única representação física daquela união. Já que a
matriarca estava longe e, bom, era noite. A magia não tinha para onde ir.
Benjamin se virou para a escada, descendo alguns degraus
lentamente. Não se importava em ficar de costas para eles. Sabia que estava
em vantagem. O som de botas contra a pedra ficava cada vez mais alto.
— E é interessante, sabe? Que da mesma forma que a Bruxa
Primordial pode dar a magia dela para vocês, ela pode simplesmente... —
cinco soldados apareceram pela curva da escadaria — tirá-la.
— O anel está fazendo isso com a gente — Farah sussurrou.
— E a humana é mais inteligente do que a bruxa — ele debochou,
colocando a joia de volta em seu dedo. — Mas não há novidade alguma
nisso. E ainda que eu não consiga usá-lo, sou a única criatura aqui com
poderes que ainda funcionam. — Benjamin acenou para os soldados e
ordenou: — Não me decepcionem dessa vez.
Os homens de joelhos se levantaram já com as espadas em mãos.
Ela deveria saber.
Anya deveria ter percebido os sinais quando Conan foi até ela ser
dizer uma única palavra. Ou enquanto ele a encarava com olhos opacos e
sem vida através da barreira protetora que os separava.
E ali, naquela cela escura e sem janelas, de tijolos tão úmidos que a
água escorria sobre sua cabeça escorada na parede, ela conseguia se lembrar
de cada um dos sinais.
Não o culpava, no entanto. Não sentia raiva. Nem ao menos se
sentia traída.
Era incapaz de imaginar todas as coisas terríveis pelas quais seu
melhor amigo tinha passado. Que histórias se escondiam por trás das
marcas que ele trazia em seu rosto — e todas as outras que ela não poderia
ver.
E ainda assim, Conan se lembrava dela.
Anya teve certeza disso no momento em que abriu os olhos. Quando
sentiu a adaga ainda presa em sua cintura.
Suas mãos estavam atadas às costas, dormentes. Mas ela não havia
sido desarmada. E sabia que não tinha sido por descuido, e sim porque ele
tentou ajudá-la.
Isso significava que Conan ainda estava lá dentro. Que apesar da
magia de Benjamin ter controle sobre seu corpo, o coração ainda era o dele,
e por ora, aquilo bastava.
Os sentidos da princesa voltavam aos poucos, as pernas estendidas
diante dela estavam adormecidas e a boca estava tão seca que seus lábios
pareciam ter sido colados um no outro.
Queria poder esfregar os olhos para ajustar sua visão à pouca luz,
mas ainda assim, tinha certeza de que estava nas masmorras do castelo.
Conhecia bem as paredes de tijolos vermelhos da ala Leste, e a cela diante
de si completava o quebra-cabeça.
Não havia nenhum outro prisioneiro ao alcance de seus olhos,
entretanto. A cela diante da sua e as duas ao lado dela estavam vazias e, a
julgar pelo silêncio, aquele corredor inteiro estava desabitado.
Exceto por ela.
E o soldado de pele negra e cabelos raspados parado do outro lado
do corredor à direita.
— Isaac. — Ela tentou chamá-lo, e sua garganta doeu.
Passou a língua pelos lábios ressecados, fazendo careta para o gosto
de poeira que tomou conta de sua boca.
— Isaac? — Tentou outra vez.
Mas apesar de as palavras saírem altas o suficiente, o soldado nem
ao menos voltou seus olhos para ela. E ele parecia desinteressado demais
para ter qualquer ciência da arma que ela trazia consigo.
Fez uma prece silenciosa para que o soldado, assim como Conan,
ainda fosse ele mesmo dentro daquela marionete que Benjamin criara. E foi
por isso que ela sussurrou:
— Isaac, sei que você está me ouvindo. Que aí dentro, você ainda
é... você. — Engoliu em seco quando as palavras saíram novamente
arranhadas. — Quero que saiba que vou tirar a gente daqui. E que eu te
perdoo. Pelo que está sendo obrigado a fazer agora e pelo que fez em
Havenmill. Você me ensinou muito quando eu precisei, e quando isso
acabar, será minha vez de retribuir.
Nenhuma resposta.
Tinha de pensar em um plano.
Tentou mexer os dedos nas amarras atrás de seu corpo e seus pulsos
arderam, sua pele tinha se queimado pelo roçar das cordas.
Se conseguisse erguer raízes fortes o suficiente, poderia usá-las para
arrebentar as grades da cela. Mas por algum motivo estranho, não conseguia
sentir seu poder dentro de si.
O formigamento tinha desaparecido.
Estava tudo um tanto... quieto.
Claro, se deu conta. As masmorras ficavam no subsolo, onde a luz
direta do sol nunca chega. Talvez fosse isso que estivesse interferindo em
seu funcionamento.
Mesmo assim, tentou chamar o vento. Apenas como um teste. Nada
aconteceu. Tentou mais uma vez. Nada.
Anya bufou.
Então, outra possibilidade cruzou sua mente.
Será que algo tinha acontecido com Verena? E se o silêncio
significasse que não havia mais magia da Luz no mundo?
Pelas Sete! Há quanto tempo ela tinha deixado o acampamento?
Deviam estar todos tão preocupados com ela! E Delilah... seu peito deu um
salto ao pensar nela. Delilah devia ter ficado furiosa quando não a
encontrou em sua tenda como havia prometido.
A princesa precisava sair dali.
Rápido.
Não havia tempo para planejar coisa alguma.
Com a respiração acelerada, e o coração batendo tão forte que
chegava a doer, tateou cegamente a lateral de seu corpo tentando chegar até
a adaga.
Não conseguiu.
Lançou um olhar para Isaac, rezando para que ele não estivesse
prestando atenção. Mas ele parecia perdido nos próprios pensamentos,
encarando os tijolos bem diante de seu rosto.
Arrastando-se devagar, Anya girou as pernas e colocou-se de
joelhos, sentada sobre os tornozelos. Moveu-se um pouco para a direita na
intenção de sair do alcance de visão do soldado, e não conteve uma careta
ao sentir as pernas se umedecerem pela água que escorria das paredes.
Levou novamente as mãos até a adaga, agradecendo o pouco de
mobilidade extra que a nova posição lhe deu. Seus dedos esbarraram no
cabo da lâmina, e Anya xingou baixinho quando não conseguiu segurá-lo.
Arqueou as costas e tentou mais uma vez. Quando chegou até a arma,
segurou-a com tanta força que suas juntas doeram.
Puxá-la foi ainda mais difícil, e estava começando a ficar irritada.
Enquanto mexia o corpo para ajudar a adaga a deslizar para fora da bainha,
mordeu os lábios com tanta raiva que sentiu gosto de sangue na boca.
— Isso! — comemorou por impulso quando sentiu a arma deslizar.
Prendendo a respiração, manteve-se congelada no lugar e aguardou.
Isaac não demonstrou qualquer sinal de movimento.
Girando a lâmina entre os dedos, apontou-a para o teto e começou a
cerrar a corda em seus punhos.
Aquilo sim levaria tempo.
Seus pensamentos transitavam entre as mais assustadoras
possibilidades do que poderia ter acontecido à Verena, Delilah, Farah e seus
outros amigos enquanto ela estivera ali. Perguntou-se por que Conan não
estava guardando sua cela, afinal, tinha sido o soldado a buscá-la. Desejou
que ele estivesse bem.
Que todos estivessem bem.
Suas mãos tremiam, e Anya não saberia dizer se era por causa do
nervosismo, da dormência ou da posição terrível em que elas se
encontravam. Seus pulsos ardiam mais e mais, cada vez em que roçavam
contra a corda que os prendia.
Só mais um pouquinho, pensou. Só mais um pouquinho.
— Merda — grunhiu, quando a lâmina acertou sua pele.
A mão de Anya queimou, e logo depois, ela sentiu o sangue escorrer
rapidamente. O corte não tinha sido muito profundo, mas era extenso.
Ela virou a lâmina para baixo, tentando impedir que o líquido
viscoso escorresse pelo cabo e dificultasse ainda mais sua missão em
segurá-lo.
O sangue continuou fluindo intensamente, fazendo seu caminho
pelo punho e, então, pela lâmina da adaga.
A arma pareceu vibrar em suas mãos, e se a princesa não precisasse
tanto dela, a teria atirado longe. O cabo se aqueceu como se estivesse em
chamas e, um batimento cardíaco mais tarde, a visão de Anya escureceu.

— Você sabe como a magia funciona, não é mesmo? — Verena


perguntou.
A Primordial estava sentada na cadeira de seu escritório com os
cotovelos apoiados na mesa e as mãos cruzadas sob o queixo anguloso. A
luz que entrava pela janela atrás dela iluminava seu contorno como um
halo, e Elysia só conseguia pensar que ela era tão encantadora quanto
diziam os rumores além da fronteira.
A rainha suspirou. Sabia que não havia outra alternativa. Aquela
era a única forma de manter sua filha em segurança.
— Quando meu sangue for derramado sobre o aço dessa lâmina —
Elysia respondeu —, minhas lembranças serão tiradas de mim e
armazenadas nela. E em troca, estas mesmas lembranças também serão
apagadas de todas as outras pessoas nesse reino.
— Elas não serão apagadas — Verena corrigiu. — Serão ocultadas.
Guardadas no fundo da memória de cada um deles, tão distantes que
ninguém perceberá que estão lá.
A rainha assentiu.
— E ninguém lembrará que Anya é nossa filha.
— E ninguém lembrará que a garota é filha legítima.
Seu peito doía tanto que parecia se desfazer em pedaços. Como
seria possível olhar para a pequena criança de bochechas rosadas e olhos
curiosos e não ver a si mesma nela? Não a reconhecer como sua?
Por todas as Sete, aquilo era insano.
E ainda assim, precisava ser feito.
— Você sabe como a Escuridão funciona — Verena prosseguiu. —
Ela oculta, engana. O sentimento ainda será o mesmo, mas suas mentes
irão ignorar as semelhanças físicas. Irão ignorar as divergências nas
histórias. Se disserem que ela foi adotada, será verdade. Se disserem que é
uma filha bastarda, será verdade. Se mudarem a versão dos fatos ao longo
dos anos, ainda assim, será verdade.
Era um preço alto a se pagar. Mas por Anya, por sua bruxinha de
sorriso doce, ela o faria.
A cada dia, o clima entre seu marido e Benjamin ficava pior. Sabia
que Oliver exagerava com o garoto às vezes. Mas ele parecia incapaz de
olhar para o príncipe e enxergar qualquer coisa além de seus erros. Do que
fizera ao irmão mais velho, dos efeitos que suas ações tiveram no pai.
Mas o garoto também não via Oliver como tio, e sim, como uma
barreira entre ele e a Coroa que sempre desejou.
Elysia se surpreendia com o quanto alguém tão jovem era capaz de
ser tão ambicioso. E isso era muito perigoso quando combinado com a
imaturidade que acompanhava a adolescência.
Ela percebia o jeito que Benjamin olhava para Anya. Quase
conseguia enxergá-lo fazendo cálculos mentais sobre as chances da garota
se tornar um empecilho real. E ela temia por sua filha.
— Acredita mesmo que o garoto faria algo contra a prima? Oliver é
apenas... temporário — indagou Verena.
— Você sabe o que Benjamin fez com o próprio irmão. — Elysia fez
uma careta. — E... bem, Oliver pretende adiar o máximo que conseguir a
devolução da Coroa.
A Primordial ergueu uma sobrancelha.
— Ele quer governar — ponderou, abrindo um sorriso estranho que
Elysia não entendeu.
— Não! — apressou-se em responder. — Apenas queremos que
Benjamin amadureça o suficiente. Que tenha a chance de entender a
verdadeira importância do cargo que tanto deseja.
— Duvido que o príncipe enxergue as coisas dessa forma — zombou
a bruxa.
— E é por isso que estou aqui. — A Rainha endureceu a voz.
— Tudo bem. Vamos fazer isso de uma vez.
Verena levantou-se de sua cadeira e acenou em direção à porta do
escritório.
Elas seguiram pelo corredor extenso do mezanino, e Elysia estava
impressionada com a beleza daquele lugar. Era cheio de cores, arte e... Luz.
As paredes exibiam a história da criação do mundo, do momento em que as
Sete Bruxas Primordiais derramaram seus poderes divinos sobre a terra.
Tão aconchegante, tão diferente de seu antigo clã.
De sua antiga casa.
Não.
Não poderia pensar nela.
Não quando havia deixado tudo para trás, quando havia fugido de
sua matriarca por não concordar com a forma como ela via o mundo.
Como ela via a Vida.
Descendo pela escada em caracol, Verena pareceu ler cada um de
seus pensamentos ao dizer:
— Talvez devesse abrir mão de suas memórias da magia também.
Elysia congelou antes de pisar no primeiro degrau.
— O quê?
A Bruxa Primordial não olhou para trás, apenas continuou seu
caminho até o salão no primeiro andar.
— Oliver sabe sobre sua descendência, querida? — Foi a única
coisa que perguntou.
— Está me perguntando se meu marido, pertencente à família que
caçou conjuradores por séculos, sabe que sou uma bruxa? Mas é claro que
não!
— Então, talvez seja mais seguro para você e para a garota que se
esqueçam disso também.
Elysia pensou por um momento.
Quando chegou em Duhn, ela sabia que o reino possuía uma
política anti-magia rigorosa. Que perseguiam, torturavam e assassinavam
qualquer conjurador que fosse detectado pela Coroa. Mas era o único
pedaço de terra no continente inteiro no qual a magia de Alethea não
conseguia interferir. O único lugar onde Elysia conseguiria se manter em
segurança.
Então, quando atravessou as fronteiras, quando ultrapassou a
barreira que, mesmo tantos anos depois, ainda não compreendia como a
tinha deixado entrar, inventou um passado para si mesma. Disse que havia
perdido a família em um naufrágio, que vinha de muito longe e não tinha
mais nada nem ninguém.
Não era totalmente mentira.
Perdera sua família, e não tinha mais ninguém.
Estava sempre se mudando. Morou em todas as regiões de Duhn.
Inúmeras vezes. Precisava trocar de cenário sempre que as pessoas ao seu
redor começavam a envelhecer e sua pele permanecia sem qualquer sinal
da idade.
Em uma destas viagens, conheceu um jovem príncipe.
O rapaz mal passava de seus vinte anos e era um perfeito
galanteador. Segundo filho, não tinha qualquer responsabilidade com a
Coroa, e aproveitava cada segundo de sua juventude pelos lugares mais
questionáveis do reino.
E viu na forasteira uma nova forma de afrontar o pai.
Mas logo a diversão se transformou em outra coisa, e o humano
passou a carregar o coração da bruxa com carinho entre os dedos.
Casaram-se, e Elysia achou que seria melhor manter seus poderes e
sua linhagem apenas para si mesma. Não havia motivos para colocar
tantos anos de cautela em risco.
Até que engravidou.
Cada vez que a pequena bruxinha se mexia dentro de seu ventre, era
tomada por amor e por... medo. Medo do que diria à garotinha quando sua
magia se manifestasse. Como explicaria a ela que aquilo era um segredo?
Que nem mesmo seu pai poderia saber as coisas que ela era capaz de
fazer?
E agora que seu marido tinha sido coroado, ainda que de forma
temporária, talvez fosse sua chance de colocar um fim àquela caça à
magia. Talvez pudesse sussurrar no ouvido de Oliver aos poucos e
convencê-lo de que aceitar conjuradores de volta era a coisa certa a se
fazer.
— Diga-me com sinceridade, querida — Verena interrompeu seus
pensamentos, já esperando por ela no centro do salão de pedra azul —,
acha mesmo que há qualquer chance de aceitarem sua descendência? Acha
mesmo que um homem que pretende se manter sobre controle de uma
Coroa que não lhe pertence verdadeiramente fará qualquer coisa que possa
desagradar o povo? Não seja ingênua de pensar que ele é a chave para
acabar com todos esses anos de perseguição. Ele é apenas mais um
Dahnasa, nunca se esqueça disso.
Elysia se apressou pela escada em caracol, realmente refletindo
sobre aquela possibilidade.
— Mas e quando Anya começar a manifestar seus poderes? Ela
acabou de fazer cinco anos, não demorará muito até que isso aconteça.
Verena ficou em silêncio por alguns minutos.
Atravessando o salão principal, elas contornaram as infinitas
estantes de livros, até que chegaram em uma nova porta, no canto mais
afastado do Refúgio.
A pequena câmara estava tão quente que Elysia chegou a ficar
tonta, devido ao fogão à lenha crepitando na parede oposta da sala. Um
pequeno caldeirão negro pendia sobre as chamas.
Mas Verena ignorou-o. Ao invés disso, caminhou até uma parede
coberta por pequenas gavetas entalhadas.
A Primordial passou as unhas pontiagudas pela superfície,
caminhando lentamente pelo cômodo.
— A magia da Vida, da Morte e do Tempo se manifesta de forma
mais discreta que a maioria — disse, por fim. — Se ninguém souber que há
sangue de bruxa correndo pelas veias da princesa, será difícil identificar os
sinais. A percepção do Tempo pode mudar vez ou outra, quando as emoções
da garota estiverem afloradas demais. Mas quem nunca perdeu a noção das
horas enquanto fazia algo de que gosta? E quanto a você, sabe que bruxas
não perdem o controle da mesma forma que meios-sangue.
Elysia fechou os olhos, pensativa.
Era loucura.
Como poderia esconder sua descendência?
Já havia abandonado tanto de si nas últimas décadas e... Pelas
Sete!
— Mas e quanto à nossa imortalidade? Quando as aparências
minha e de minha filha pararem no tempo... Não, isso é completamente
insano!
Verena sorriu.
E foi um sorriso tão predatório que a rainha conseguiu enxergar
Alethea nele.
— Você não parecia preocupada com isso antes. Digamos que você
ainda lembre de sua linhagem, o que fará? Fugirá outra vez? Levará a
garota consigo? Sabe, subir ao trono não me parece a melhor forma de se
camuflar pelo reino.
A Primordial parou de andar, seu dedo pousava bem no centro de
uma das gavetas, ela puxou-a e tirou dali de dentro uma adaga.
— Eu ainda não tinha planejado isso — murmurou a rainha.
— Claro que não — retrucou Verena. Então, propôs: — Podemos
fazer um acordo. Quando Benjamin tiver a Coroa sobre sua cabeça, eu
devolvo essa adaga para você e a ilusão será desfeita. Toda ela. Você se
lembrará da magia, de sua filha e de todo o resto. Precisará apenas
derramar seu sangue sobre a lâmina.
Era um teste, Elysia soube no mesmo instante.
Como se Verena esperasse que ela admitisse que as intenções de seu
marido com a Coroa não fossem tão nobres quanto o sangue que
carregava. Mas eram. Ela sabia disso.
Conhecia Oliver com todo o seu coração.
— E se algo acontecer — a bruxa completou —, prometo a você que
contarei a verdade para a garota. Quero dizer, o ritual não permite que as
memórias gravadas no aço sejam reveladas em voz alta, nem mesmo por
mim. Mas vocês dividem a mesma descendência, Anya será capaz de
libertar essas memórias com o próprio sangue.
A proposta pareceu interessante, de repente. Viver uma vida sem
preocupações, sem ter de se esconder pois nem ela mesma se lembraria. E
se houvesse a chance de desfazer tudo mais tarde...
— Eu aceito — disse.
E Verena trouxe a adaga até ela.
A arma era um pouco mais comprida que o normal, mas ainda era
curta demais para ser considerada uma espada. E uma risada amarga
escapou de seus lábios ao ver a insígnia entalhada em seu guarda-punho.
Dois ramos de lavanda e uma coroa.
— Você tem um senso de humor muito peculiar. — Ergueu uma
sobrancelha.
— Depois de tanto tempo sozinha, você aprende a fazer piada com
as coisas mais tolas. — A frase carregava um tom de tristeza que destoava
das palavras.
Elysia poderia apenas imaginar a verdadeira dor que a
acompanhava. Verena tinha perdido seu clã, sua amada, sua liberdade. E
ainda assim, estava ali, disposta a ajudar uma bruxa cujo sangue descendia
da Primordial mais cruel de todas as Sete.
Era aquilo que realmente diferenciava Verena de Alethea, percebeu.
A Bruxa da Luz não deixou que sua compaixão morresse. Ainda era capaz
de ser boa, mesmo quando o mundo não tinha sido bom com ela.
A matriarca colocou uma grade retangular a centímetros das
labaredas no fogão à lenha, e largou a adaga sobre ela. Elysia seguiu-a até
o forno, respirando fundo e dando-lhe a palma para que a Primordial a
cortasse.
— Enquanto a lâmina se aquece — Verena disse —, antes que você
esqueça de tudo... Preciso perguntar uma coisa.
A hesitação em sua voz foi de partir o coração, então a rainha
apenas aguardou.
— O que te fez deixar seu clã para trás? Como se esconder em um
reino que abomina cada parte do seu ser é melhor do que viver com
Alethea?
A pergunta pegou-a completamente desprevenida, e viu que, de
alguma forma, aquilo parecia importante para a bruxa. Como se ela
precisasse de uma confirmação de que estava do lado certo. Então, Elysia
decidiu ser honesta em sua resposta.
— As coisas lá fora saíram do controle. Alethea perdeu o pouco de
sanidade que ainda lhe restava. Acho que a loucura é o preço a se pagar
por ser o início e o fim de todos os ciclos, por ser a primeira e a última a
deixar o mundo. Ela começou a fazer coisas tão... horríveis. Coisas com as
quais eu jamais seria capaz de compactuar. Não havia nada que eu pudesse
fazer além de fugir, mas você conhece sua irmã melhor do que eu. Ninguém
se esconde da Dama da Morte. Então, vim para o único lugar neste
continente onde ela não conseguiria me alcançar.
“Não sei o que aconteceu para que ela chegasse em seu limite, o
que a levou a perder a cabeça por completo. Mas você sabe bem o que ela
fez com nossa imortalidade. E por um tempo, isso não foi exatamente um
problema lá fora. Mas então, as bruxas começaram a morrer. Alguém
estava nos caçando, e Alethea não parecia interessada o suficiente para
tentar encontrar uma solução. Seu próprio clã estava se desfazendo, e ela
insistia naquela ideia absurda de que a Vida perde o valor quando a temos
para sempre. Disse que aquilo era um incentivo para que todas
enxergassem a Vida como a coisa frágil que deveria ser.”
Verena bufou.
— Algumas coisas não vão mudar nunca. — Revirou os olhos.
— Não mesmo. Nosso clã se reduziu a menos de um terço, e Alethea
não parecia ligar para isso. Então, eu fugi.
— Entendo — a bruxa disse simplesmente.
Tateando em um armário ao lado do forno, puxou um objeto que
Elysia não reconheceu e usou-o para pegar a adaga e largá-la sobre uma
mesa de ferro.
— Tem mesmo certeza disso? — Verena perguntou uma última vez.
Não, quis responder.
Mas era a coisa certa.
— Tenho. — Estendeu sua palma em direção à bruxa.
A Primordial segurou sua mão delicadamente e entoou uma oração
no idioma antigo.
Enquanto ela falava, as paredes ao redor da rainha pareciam
balançar — como se fossem cortinas finas sendo levadas pelo vento.
Verena, então, usou da própria unha para abrir um corte na palma de
Elysia.
O sangue escorreu por sobre a lâmina, e a pele da rainha ardeu
como se estivesse segurando diretamente no metal quente. O líquido
viscoso escorreu pela adaga fazendo seu caminho por sobre a mesa.
Elysia prendeu a respiração ao ver Verena erguer um martelo por
sobre o ombro, e quando a bruxa o desceu com toda a força — quando a
ferramenta se chocou contra a lâmina banhada em sangue — tudo
desapareceu.

Anya não saberia dizer em que momento começou a chorar. Mas


quando se viu novamente naquela cela, seu corpo balançava com os soluços
de um pranto dolorido — que a machucava mais por dentro do que por fora.
Ouvir a voz de sua mãe foi... um presente.
Assustador, mas ainda um presente.
Ela sentiu o amor de Elysia em todas as vezes que a mulher a
mencionara naquela conversa, e era mais forte do que qualquer coisa que a
princesa jamais pudesse ter imaginado.
Ainda com as mãos atadas às costas, Anya curvou-se sobre os
joelhos, sem se importar com os cabelos arrastando na pedra empoeirada,
ou com a ardência da mão ainda sangrando.
Sua mãe não tinha mentido para ela.
Não tinha escondido a verdade durante toda a sua vida. Ela tinha
esquecido. Tinha aberto mão suas memórias para mantê-la em segurança.
Elysia já não sabia que a princesa era sua filha, e ainda assim...
amou-a com todo o seu coração.
E ela era uma bruxa.
Sua mãe era uma bruxa e tinha fugido de Alethea para se salvar. Isso
significava que Anya era...
— Por todas as Sete — sussurrou em meio às lágrimas.
Anya era uma meio-bruxa.
E de repente, todas as peças se encaixaram.
Porque o Tempo sempre escapava por entre seus dedos, porque os
minutos de felicidade pareciam segundos e as angústias duravam horas.
Suas emoções interferiam na magia, e quando estava muito feliz ou
muito triste, inconscientemente alterava as percepções de tempo ao seu
redor.
Verena sabia de tudo.
Sabia e não poderia contar para ela.
E Delilah... Delilah insistia tanto para que a princesa usasse aquela
adaga, mesmo que isso levantasse perguntas que ela não fosse capaz de
responder.
Será que ela sabia sobre isso também?
Anya achava que não. A mulher nunca insinuou testar qualquer
magia diferente daquela que Verena tinha compartilhado.
E a Bruxa Primordial cumpriu sua promessa. Encontrou uma forma
de lhe contar a verdade, ainda que tivesse levado tempo demais.
Chorando sobre as próprias pernas, a princesa achou estranho que
uma história tão inacreditável lhe caísse tão bem. Ela não duvidava de uma
única palavra do que tinha acabado de ouvir.
Bruxinha, sua mãe a tinha chamado.
E aquela palavra tão simples pareceu significar o mundo inteiro de
um segundo para o outro.
Lembrou-se da estranha visão que tivera quando realizou a
Travessia — a mulher correndo pela mata em direção à barreira nos limites
de Duhn — e percebeu que era uma memória. Talvez a magia de Verena
tivesse servido como algum tipo de gatilho para que a magia que recebera
da própria mãe lhe desse um sinal.
Então, percebeu.
Anya carregava dentro de si o poder de duas das Bruxas
Primordiais. Sua parte bruxa trazia a magia da Vida, da Morte e do Tempo.
E sua parte humana... trazia a Luz.
Isso precisava significar alguma coisa.
Gritos ecoaram ao longe, e a princesa sentou-se rapidamente,
virando o rosto em direção ao som.
— Não — sussurrou, ao reconhecer a voz de Farah.
Ela tinha que sair dali.
A princesa tinha uma chance de vencer Benjamin, afinal. Ele
acreditava ter vantagem graças aos poderes que carregava, mas Anya
também os tinha.
Eram desconhecidos, sem treinamento, mas ainda assim... ela tinha
uma chance.
E faria valer a pena.
Por ela e por sua mãe. Por todas as coisas que Elysia tivera de abrir
mão. A rainha era realmente o coração do reino, percebeu.
O ponto no qual os dois povos se uniam.
A prova de que humanos e bruxas funcionavam juntos.
Os gritos se intensificaram e, como se o próprio ar sussurrasse para
ela, percebeu o que precisava ser feito.
Jurou a si mesma que era apenas por necessidade, que não repetiria
aquela monstruosidade nunca mais em sua vida. Então, rastejou até as
grades de sua cela.
Isaac permanecia congelado na mesma posição, e Anya se
perguntou se aquela visão durou horas como parecia, ou apenas segundos.
Ela não sabia como os poderes de sua mãe se pareciam, e quando
tensionou os dedos, tentou visualizar não cores, mas um sentimento. O
amor que reverberou por Elysia quando pensou na filha, o carinho quando
se referiu a ela como bruxinha.
E a magia escorreu por seus dedos em raízes cor de prata.
Ela riu, lembrando-se da cor que refletira em seus olhos quando a
fenda nas barreiras do acampamento se abriu.
Prata.
Os poderes de Alethea eram prateados.
Anya projetou sua magia até Isaac, que ainda encarava a parede.
Deixou que as raízes invisíveis o envolvessem.
O soldado virou o rosto para ela, como se sentisse sua presença.
— Isaac — chamou gentilmente. — Abra esta cela e me tire daqui.
Agora.
Seu corpo inteiro recebeu uma descarga elétrica, e ela sentiu o poder
de Benjamin lutando contra o dela. Tentando resistir.
Mas ela não era uma simples conjuradora.
Anya tinha o sangue de Alethea correndo dentro de si. Era filha de
Elysia, descendente da Vida, da Morte e do Tempo.
E quando uma bruxa falava, o mundo parava para ouvir.
— Isaac — repetiu, dessa vez um pouco mais firme. — Esta é a
última vez que seu corpo obedecerá aos comandos de alguém além de você
mesmo. Liberte-me.
Os olhos do soldado permaneceram sem vida, mas ela sentiu a
magia de seu primo ceder. E não conteve um gemido baixo quando o rapaz
caminhou até as grades, quando suas mãos cobertas de cicatrizes soltaram o
cadeado e escancararam as portas da cela.
Ela sorriu para Isaac, mesmo que ele não fosse capaz de vê-la na
penumbra, quando ele desamarrou a corda que ela nunca terminou de cortar.
Anya se levantou trêmula, e se deu alguns segundos para recuperar
o controle total das pernas.
— Obrigada — sussurrou para o soldado. — Mas fique aqui. Você
não lutará ao meu lado hoje, não lutará contra seus próprios amigos. E
quando tudo isso acabar, será uma escolha apenas sua continuar comigo ou
não.
Ela não esperou para ver se a magia tinha entendido aquilo como
uma ordem ou se fora apenas um pedido. Teria de aprender a diferença
entre ambos mais tarde.
A princesa juntou a adaga caída no chão e apenas correu em direção
as escadas.
Em direção ao som das espadas, dos gritos e do caos.
Delilah nunca tinha matado ninguém.
Ela não entendia como alguém poderia ser tão arrogante a ponto de
se ver no direito de decidir quem deveria ou não viver. Quem voltaria para
casa ao fim do dia e quem não veria sua família outra vez.
Até a invasão em Havenmill.
Até lançar as chamas daquelas flechas contra os arqueiros que as
seguravam.
Tinha tentado manter aquelas lembranças guardadas em uma caixa
envolta em correntes, bem no fundo de seus pensamentos. Mas agora,
quando novos soldados se colocaram diante dela e a meio-bruxa se viu
obrigada a lutar, os gritos voltaram todos ao mesmo tempo.
Foi como ver o mundo em câmera lenta.
Os homens que se aproximavam com passadas pesadas e espadas
em punho, traziam expressões sem vida, mas os olhos dela insistiam em vê-
los com suas bocas abertas em um urro de desespero. Insistiam em
transformar suas posturas perfeitas em ombros curvados pela dor.
Delilah projetava naqueles soldados as imagens dos guerreiros que
nunca voltariam para casa.
Porque ela os tinha matado.
Porque ela tinha roubado todos os sonhos que eles tinham.
Suas pernas pareciam ter virado pedra, pareciam ter-se unido ao
chão e se recusavam a obedecer. Se recusavam a qualquer movimento.
Ela tinha sido arrogante e ela tinha matado.
E percebeu que talvez precisasse fazer isso de novo.
Havia prometido à Farah que não machucariam ninguém além do
necessário. Mas quando soldados avançavam em sua direção com
quatrocentos anos de ódio ardendo no peito, o necessário se tornava mais
pesado, mais cruel.
Ao ouvir o medo nos gritos de seus amigos, no entanto, obrigou-se a
mandar para longe todo o torpor. Toda a letargia.
Tinha de agir.
Passou os olhos rapidamente pelo saguão em que se encontravam, e
viu Benjamin desaparecendo escadaria abaixo.
Os quatro soldados que a carregaram com seu grupo até ali já
estavam de pé outra vez.
Espadas em punho, prontos para atacar. E nos últimos degraus,
outros cinco avançavam furiosamente.
Nove contra quatro.
Espadas contra... nada.
Que as Sete os protegessem.
Delilah sabia que o príncipe estava indo atrás de Anya. O que quer
que ele estivesse planejando fazer, incluía a princesa. E a meio-bruxa
precisava impedi-lo.
Precisava encontrá-la.
A mera lembrança da princesa disparou uma nova carga de
adrenalina por seu corpo.
Sim, estava desarmada. Mas Delilah sabia lutar. E para ajudar os
outros, só precisava ser esperta.
Nove homens empunhando espadas em um espaço tão pequeno...
Ela poderia virar a desvantagem de número para seu favor.
A meio-bruxa girou o corpo com agilidade, se esquivando não em
direção às escadas, mas para a parede oposta.
O movimento foi consideravelmente fácil, afinal, os soldados
estavam preocupados em bloquear as rotas de fuga. Não o canto onde duas
tochas tremulavam suavemente.
Elas precisavam sair dali.
Delilah puxou-as rapidamente e arremessou-as sobre a cabeça dos
soldados, fazendo com que os bastões em chamas rolassem pelas escadas e
desaparecessem de vista.
A pequena câmara perdeu sua única fonte de luz.
Ela aproveitou os poucos segundos de vantagem que a penumbra lhe
proporcionou. Ela aproveitou a surpresa que parou os guerreiros por alguns
instantes.
Ela correu.
— Precisamos descer! — gritou. — Benjamin está indo atrás da
princesa!
Uma espada cortou o ar tão próxima dela que Delilah encolheu o
corpo. Mas a ardência não veio.
Ao invés disso, o gemido de dor soou centímetros a sua esquerda.
Tinha funcionado.
A escuridão atrapalhou os soldados.
Delilah não deu tempo para descobrir se havia sido um corte
profundo ou se o homem apenas foi pego de surpresa. Ela se jogou contra
ele e empurrou-o com toda a força que tinha.
Apesar de forte, o soldado deu alguns passos para trás, tentando
recobrar o equilíbrio. E foi o suficiente para que seu pé encontrasse o vazio
do primeiro degrau.
Enquanto o guerreiro despencava meio lance de escadas, a espada
que ele trazia nas mãos tombou para o lado oposto.
Delilah acompanhou o objeto, se jogando contra o piso de pedra e
sentindo o tecido sobre seus joelhos se rasgar conforme alcançava a arma.
Ela não se deu tempo para sentir a ardência na pele arranhada.
Apenas agarrou o cabo da lança e prendeu a respiração ao perceber que
precisaria das duas mãos para erguê-la.
Não era à toa que Anya tinha tanta dificuldade com elas.
Ouvindo seus amigos tentando imitar seus movimentos, não se
permitiu um olhar para trás.
Não havia tempo.
Desviando do homem caído na curva do corredor, soltou um
xingamento ao vê-lo já recobrando seu equilíbrio.
Tão logo estava de pé, o soldado já se lançou em sua direção.
Delilah pulou sobre as tochas que havia arremessado ali, sendo
recebida por uma nova câmara.
Maior que a anterior, suas paredes de tijolos acomodavam pesadas
portas de metal. Elas tinham a aparência enferrujada, gasta, como se não
vissem nenhum tipo de manutenção há um bom tempo. E a umidade parecia
ser um traço bastante comum nas áreas mais negligenciadas do castelo.
Estava na ala Leste, lembrou a si mesma. Aqueles eram,
possivelmente, os alojamentos dos soldados. E só poderia rezar para que
outros homens não surgissem por ali.
Outra escada, mais larga que a que acabara de descer, levava até
mais uma câmara cheia de portas no andar inferior.
Não conseguiu ter qualquer vislumbre de Benjamin através do novo
corredor, mas não teve tempo de procurá-lo com calma.
Quatro soldados já faziam o mesmo caminho que ela e saltavam em
sua direção.
Farah surgiu atrás deles segundos mais tarde, seguida por
Alexzander, Silja e o eco dos passos dos outros guerreiros.
Delilah sabia que as coisas estavam prestes a ficar feias.
Alexzander pegou uma das tochas caídas e bateu-a com tanta força
na lateral da cabeça de um dos soldados que o som ecoou pela câmara. E
enquanto o conjurador girava o corpo para acertar mais um, sua irmã
juntava a outra tocha e imitava seus movimentos.
Em um piscar de olhos, quatro soldados estavam caídos —
parecendo mais próximos de perderem a consciência do que de levantarem.
E o pequeno grupo de conjuradores agarrava as espadas caídas.
Correram para se juntar à Delilah no instante em que os soldados
restantes saltaram os últimos degraus e se colocaram diante deles.
A meio-bruxa testou o peso da lâmina entre seus dedos, ainda
incomodada com o quão desconfortável ela era.
— Você viu para onde o príncipe foi? — Silja perguntou,
colocando-se ao seu lado.
— Não — respondeu, erguendo sua arma — Mas ele só pode ter
descido.
Percebeu então, com o coração batendo forte demais, que haviam
ficado no lado oposto às escadas. Que em uma nova piada cósmica, atrás de
seu grupo havia portas fechadas e paredes de tijolos.
À frente, cinco soldados furiosos.
Estavam encurralados.
Não conteve a risada amarga ao ver toda a ironia da situação. A
câmara não possuía janelas, não era tocada por qualquer sinal de Luz e a
magia os tinha abandonado.
Sozinhos como nunca estiveram antes.
Mais tochas ardiam pelas paredes, transformando as sombras do
grupo em espectros fantasmagóricos que dançavam pela sala.
Os homens avançaram, e Delilah não pôde fazer nada além de
erguer sua própria espada e recebê-los.
O impacto de lâmina contra lâmina reverberou por todo o seu corpo.
E ela se encolheu quando sua espada acertou um deles; ela prendeu a
respiração quando o viu sangrar. Estava tentando causar ferimentos que
apenas os atrasariam, coisas que curandeiros pudessem reverter mais tarde.
Priorizava desarmá-los a machucá-los demais.
Ainda que os soldados não fizessem o mesmo.
Delilah sentiu o braço arder quando a lâmina de um dos homens a
acertou de raspão. Ousou apenas um olhar para o ferimento, soltando o ar
ao ver que era apenas superficial.
Mas por todas as Sete, aquilo doeu como o inferno!
A meio-bruxa continuou lutando.
Desviando.
Atacando.
Precisava ganhar espaço, precisava chegar às escadas.
Seus lábios sangravam pela força com que os mordia, e novos cortes
marcaram seus braços e pernas.
As roupas que vestia estavam arruinadas também. O tecido grosso
ainda era fino demais para lâminas afiadas como aquelas.
Não importava.
Seu grupo resistia, e a meio-bruxa só conseguia pensar naqueles
poucos metros que os afastavam do andar inferior. Tinha de chegar até ali.
Logo.
Tinha de chegar até a princesa, tinha de impedir Benjamin de dar
continuidade de qualquer que fosse seu plano naquele momento.
Delilah tinha os pensamentos tão focados em Anya que podia jurar
que ouvia sua voz.
Não.
Ela realmente ouvia sua voz.
Virando a cabeça na direção de onde vinha o som, a meio-bruxa viu
os cabelos brancos de Benjamin surgirem ao pé da escadaria. O príncipe ria
de alguma coisa, e tinha os braços cruzados de forma debochada diante do
corpo.
Anya apareceu um segundo depois.
Dentro de todas as possibilidades terríveis que já tinham cruzado a
mente de Delilah, ela parecia bem.
Inteira.
E isso deu à Delilah a energia que ela precisava para continuar
lutando.

Silja não tinha ideia do que estava fazendo.


Ela erguia aquela espada pesada demais com ambas as mãos, e
rezava para que sua intuição não falhasse enquanto tentava descobrir por
onde o próximo ataque viria.
Ainda assim, tudo em que conseguia pensar era que não sabia como
tinha acabado ali. O que tinha feito de tão errado que merecesse ter sido
colocada naquela situação.
Nas últimas semanas, chegou a ser tola o suficiente para acreditar
que, algum dia, entraria naquele castelo pelos portões da frente. Que seria
recebida pelas pinturas e esculturas que Anya havia lhe contado que
decoravam o salão principal. Que apreciaria os coloridos jardins e
aprenderia a duelar.
Mas esse tipo de coisa não acontecia com aqueles que chegavam
sem convite, ou com aqueles que entravam pelos portões dos fundos.
Com aqueles que nunca seriam bem-vindos.
As espadas eram tão belas quanto havia imaginado, mas percebeu
que, talvez, morresse com uma nas mãos antes que tivesse a chance de
aprender a usá-la.
Observava de soslaio enquanto Farah lutava com uma ferocidade e
destreza invejáveis, e tentava desesperadamente espelhar seus movimentos.
Também percebeu a mudança de comportamento repentina de
Delilah, e seguiu seus olhos até enxergar Benjamin pelo corredor que
levava ao andar inferior.
Benjamin e... Pelas Sete!
Anya!
Mas não teve muito tempo para observar a cena, não enquanto
espadas disparavam em sua direção.
Havia quatro soldados caídos, e estremeceu ao pensar no choque
que cruzou seu corpo ao acertar dois deles com uma tocha. Estavam
apagadas, claro, mas ainda assim, rezou em silêncio para que não tivesse
causado danos sérios demais.
De qualquer forma, os homens ainda de pé já causavam problemas o
bastante. Não apenas pela vantagem em número, mas pelas habilidades
também.
Eles giravam aquelas lâminas como se não fossem nada, como se
não pesassem como o inferno.
Ao menos, Silja tinha Farah lutando ao seu lado.
A artesã era muito habilidosa, e a curandeira a invejou por alguns
segundos.
Percebia o quanto ela se esforçava para não machucá-los de
verdade. E percebia que isso não estava funcionando.
Tentar poupá-los não salvaria nenhum dos seus, e se amaldiçoou
imediatamente pelo pensamento.
Silja não queria se tornar uma assassina.
Então, seguiu imitando os movimentos de sua amiga. Desviando dos
soldados, mirando em suas pernas e braços. Nunca no tronco ou no rosto.
Eles não tinham a mesma consideração.
Avançavam de forma impiedosa, e a curandeira viu pelo canto dos
olhos quando seu irmão foi encurralado.
Alexzander sabia controlar uma espada tanto quanto ela, e estava
perdendo espaço para o soldado de cabelos vermelhos.
Ela sabia quem ele era. Reconheceu-o no instante em que Farah o
chamou pelo nome.
Conan, o melhor amigo da princesa.
E aquilo era muito, muito ruim.
Silja ouvira como o rapaz tinha ensinado Anya a lutar, ouvira como
ele era bom no que fazia. E seu peito doeu.
Doeu porque Alexzander não tinha chance alguma se o enfrentasse
sozinho. Doeu porque ela estava afastada demais.
E tinha de tentar ajudá-lo.
Não estava mais preocupada em avançar.
Nem com as escadas. Nem com Benjamin.
Já não tinha nem mesmo sua magia ao seu lado!
Era apenas ela e seu irmão. Sempre seriam eles dois.
Então, desviou de novo e de novo das lâminas que voavam em sua
direção, e correu.
Precisava chegar até Alexzander, precisava pegar o garoto ruivo
desprevenido e desarmá-lo. Tirá-lo do caminho do rapaz. Pegar seu irmão
mais velho e fugir.
Silja só queria ir embora.
Por todas as Sete, enquanto contornava os soldados e avançava até
seu irmão, tudo o que desejava era sair dali.
Passou tempo demais sonhando com o mundo fora de Havenmill,
mas se aquilo era o que o mundo tinha para ela, a curandeira não o queria.
Pro inferno com a união entre os povos. Pro inferno com viver do
lado de fora.
O mundo era um lugar cruel.
Não merecia que ela sonhasse com ele.
E enquanto corria até Alexzander, a curandeira chorou.

Anya conhecia aqueles corredores tão bem quanto qualquer um dos


soldados, e não precisou de Isaac para que encontrasse o caminho.
Muitas foram as noites em que se aventurou pela ala Leste, e ainda
que as masmorras fossem território proibido para ela, precisou apenas
encontrar as grades que separavam a prisão dos andares superiores.
Estavam destrancadas, e não se deu tempo para pensar se isso era
um bom ou um mau sinal.
Acompanhou as curvas que os corredores faziam, e estranhando o
vazio e a ausência dos soldados.
Guiando-se pelo som de vozes e tilintar de espadas, sentiu o coração
se apertar a cada passo que dava naquela direção, temendo pelo que
encontraria quando finalmente os alcançasse.
Reconheceu a voz de Silja também, ainda que não soubesse o que a
curandeira gritava.
Apressou ainda mais sua corrida, rezando para alcançá-las a tempo.
Rezando para que suas habilidades não treinadas fossem fortes o suficiente
para se sobrepor ao poder de Benjamin e libertar os soldados que
encontrasse.
A primeira de todas as coisas impossíveis que precisava fazer.
Mas se tinha algo que Anya aprendera nas últimas semanas, era que
planejar, na maioria das vezes, se mostrava inútil. Porque as coisas sempre
saiam de seu controle em um piscar de olhos.
E enquanto chegava ao segundo andar do palácio — estremecendo
ao perceber que já fazia quase um mês desde que pisara naquele saguão
pela última vez —, encontrou Benjamin.
Bem ali, de braços cruzados diante do peito. Sorrindo como um
predador.
Estava esperando por ela, percebeu. E seu coração parou por apenas
um segundo ao vê-lo.
As poucas tochas, quando combinadas com as paredes vermelhas,
davam um ar demoníaco para o ambiente. E refletiam em laranja nos
cabelos brancos demais de seu primo.
— Achou que eu não perceberia sua magia lutando contra a minha?
— ele disse suavemente, num tom de desdém exatamente como aquele que
a princesa se lembrava. — Vejo que aprendeu uma coisa ou outra, bruxa.
A raiva fez sua garganta arder, e ela sentiu sua respiração se
acelerar.
Estava diante do homem que destruiu sua família.
O motivo pelo qual ela cresceu sem conhecer sua verdadeira
história. O motivo pelo qual sua mãe sentira um medo tão profundo que
achou melhor esquecer-se da filha. O motivo pelo qual os pais da princesa
tinham sido arrancados dela.
Anya não conseguiu evitar de levar a mão ao rosto, até a cicatriz que
marcaria para sempre a primeira vez que Benjamin tentou tirar sua vida.
Os olhos cinzentos de seu primo acompanharam o gesto, e seu
sorriso se abriu ainda mais.
Ele gostava daquilo.
Do sofrimento, da dor, das mortes.
Do controle.
Aquele era o homem que tirou a vida de Faen e Magmar. Que levou
os soldados até Havenmill e assassinou todos aqueles conjuradores. E
aquele era o homem que teria Duhn em suas mãos caso ela falhasse.
E foi pensando em todas as perdas que ela ergueu o queixo e fez seu
caminho até ele. Foi pensando em Conan e em cada marca que ele trazia em
seu rosto. Pensando em Alexzander e Silja, que sofreram tanto nas mãos da
Coroa. Pensando em todas as mudanças que ela faria naquele reino quando
se tornasse Grande Rainha.
Toda aquela dor acabava ali.
Toda aquela perseguição.
No entanto, o príncipe ainda sorria. Seus cabelos esbranquiçados
estavam penteados para trás com perfeição, e suas roupas estavam
arrumadas demais para alguém que a esperava para um confronto.
Benjamin era o retrato da arrogância em sua forma mais pura.
Ele não demonstrou qualquer reação à movimentação dela, e parecia
quase entediado girando um simples anel de prata em seu dedo.
Anya precisava agir, precisava... alguma coisa.
Mas sua mente só conseguia pensar em duas únicas palavras. De
novo e de novo e de novo.
— Por quê? — questionou.
— Você não sabe, Princesa? — ele ironizou, zombando do título
como se não fosse nada. Como se não fosse tudo. — Depois de tudo o que
seu pai fez?
O príncipe deu um passo à frente e Anya resistiu ao impulso de dar
outro para trás.
— Depois de desonrar nosso legado trazendo aquela... aberração
para dentro da família? — ele prosseguiu, antes que ela tivesse a chance de
dizer qualquer coisa — Depois de gerar você? Séculos de trabalho jogados
no lixo. Oliver transformou nossa linhagem em uma piada e você me
pergunta por quê?
— Você estava prestes a conseguir o que desejou sua vida inteira!
Sua coroação aconteceria em breve! — Anya gritou. — E você os matou
ainda assim!
— Acredita mesmo que seu pai me faria Grande Rei? É realmente
tão ingênua assim? — Benjamin gargalhou. E o som fez os pelos na nuca da
princesa se arrepiarem. — Oliver dizia que não ligava para o cargo, mas a
Coroa o seduziu. Ela tem esse poder, sabe? Uma vez que você a tem sobre
sua cabeça, não quer mais perdê-la. — Ele parou dramaticamente. Então
suspirou, suavizando seu tom de forma exagerada. — Pobre Oliver
Dahnasa, que tragédia para o jovem príncipe ter de assumir a Coroa no
lugar do sobrinho!
Pelas Sete, Anya estava ficando furiosa.
Ela sentia o formigamento sob sua pele.
Sentia sua magia implorando para ser libertada, para acabar com
tudo aquilo de uma vez. Ainda assim, estava com medo.
Sabia o que precisava ser feito, sabia que era a única forma de
acabar com tudo. Mas ainda se perguntava se seria capaz.
Não queria ser como ele.
— Você não sabe do que está falando — Anya rebateu, e conforme
as palavras saíam, mais altas se tornavam. Elas voavam e ecoavam por toda
a câmara do alojamento. — Meu pai nunca quis isso, ele mal teve tempo
para viver depois de assumir o cargo! Essa Coroa custou tudo para nossa
família! Eles esqueceram de mim, esqueceram quem eu era! E morreram
sem lembrar que éramos ligados pelo sangue!
Pela primeira vez, o príncipe pareceu demonstrar algum tipo de
reação. Seu rosto se transformou em uma máscara de puro ódio, ainda que a
palidez de sua pele não apresentasse qualquer alteração de cor.
— A única coisa que seu sangue carrega é a indecência de sua
herança bruxa! — ele berrou. — Você não faz parte dessa família, você é
uma anomalia que terei o prazer de riscar para sempre da história dos
Dahnasa.
Dessa vez, a garota cedeu ao medo e recuou.
— Cale a boca — sussurrou — Não ouse falar sobre o que você não
sabe.
Benjamin riu mais uma vez.
— Ah, querida. Quase sinto pena de você — ele ergueu um dedo —
Quase. Mesmo assim, farei você implorar como a covarde da sua mãe.
Depois, você queimará como todas as outras bruxas que cruzaram meu
caminho.
E antes que Anya tivesse tempo de processar aquelas palavras, de
tentar entender o que elas significavam, garras arranharam o topo de sua
cabeça.
— Mas não se preocupe — o príncipe completou — Tenho outros
planos para você antes de mandá-la de volta para o inferno.
As garras invisíveis deixavam um formigamento semelhante ao da
magia da princesa, mas ele vinha de fora, não de dentro. Como se estivesse
buscando uma forma de entrar.
E era uma sensação tão... reconfortante que Anya permitiu.
A voz de Benjamin soou dentro de sua cabeça.
Eles estão reunidos no andar de cima. Acabe com todos.
O primeiro impulso da garota foi o de obedecer.
Suas pernas quase cederam, seu corpo quase se virou para a
escadaria ao seu lado.
Mas ela ainda era mais forte.
Ainda era filha de uma bruxa, e sua própria magia cutucou-a como
se dissesse resista.
Anya resistiu. Agarrou a magia de seu primo com suas próprias
raízes prateadas e arremessou-as para longe. Atacou-as como serpentes,
sufocou-as como um deslizamento de terra.
Ela quase conseguiu ver fogo nos olhos do príncipe ao sentir seu
controle ser chicoteado para longe.
— Uma pena — foi o que ele disse. Sua voz saiu baixa,
ameaçadora. Fria como a Morte. — Era a única coisa que a manteria viva
por mais tempo.
Mas antes que Benjamin avançasse até ela, um grito de dor fez as
paredes do palácio tremerem.

Alexzander não sabia lutar.


Ele mal conseguia manter a espada nas mãos.
Durante aquelas semanas, enquanto ajudava Farah com a magia
dela, a artesã tentou ensiná-lo alguns movimentos básicos. Mas o rapaz
estava contando com sua magia. Jamais se imaginou assim, incapaz de usar
suas habilidades e tendo de recorrer para uma lâmina mais longa que seu
próprio torso.
Por todas as Sete, aquilo era absurdo!
E o soldado de cabelos vermelhos era muito — muito — bom no
que estava fazendo.
Alexzander se esquivava da espada que passava a centímetros de
sua pele contando com nada além de pura sorte. Ao passo que sua própria
arma quase escapava por entre seus dedos a cada movimento.
Quando conseguia usá-la para bloquear o guerreiro, todos os
músculos de seus braços ardiam. Pelo impacto, pela dor, pelo cansaço.
O rapaz era bom em muitas coisas, era forte também. Sabia disso.
Mas se as coisas continuassem daquele jeito...
Não, não poderia pensar naquela possibilidade.
Precisava resistir. Se não por si mesmo, por Silja, que lutava a
alguns metros dele tão bravamente que ele mal conseguia acreditar que
pertenciam a mesma família.
Ela sempre foi melhor que ele, de qualquer forma. Sempre foi mais
inteligente, mais esperta, mais expressiva. Simplesmente... melhor. Silja era
tudo o que ele só poderia sonhar em ser.
O soldado avançou mais uma vez, e um choque de dor atravessou o
ombro de Alexzander quando conteve a espada que se lançava em sua
direção.
Tentou recuar mais um pouco, e percebeu que estava se
aproximando demais do canto da câmara. Estava se afastando não apenas
dos outros soldados, mas de seu grupo também.
Havia apenas ele, o guerreiro de cabelos vermelhos diante de si e a
parede de tijolos zombando de seu azar às suas costas.
Nunca conseguiria vencer aquele homem, tinha de encontrar uma
forma de fazê-lo perder sua espada. Impedir que continuasse atacando.
Mas Alexzander estava tão cansado!
Não queria mais lutar.
E jurou que, se por alguma misericórdia das Sete ele saísse dali,
pegaria sua irmã e iria embora daquele maldito reino.
Já deveria ter feito isso há muito tempo, mas insistiu no amor por
uma deusa que não parecia se importar tanto assim com ele.
Os dois poderiam começar uma vida do zero na parte mais afastada
do continente. Onde não precisariam fingir. Onde não seriam caçados. Onde
poderiam finalmente viver a paz com a qual se iludiram nos últimos dez
anos.
E foi sonhando com aquela nova vida que Alexzander ergueu sua
espada mais uma vez.
Avançou para o soldado mirando seus braços na intenção de fazê-lo
largar a própria arma. Silja poderia curar aqueles ferimentos mais tarde.
Curar as marcas deixadas por Alexzander e... todas as outras que o rapaz
carregava no corpo.
O peito do conjurador pesou.
O guerreiro trazia seus sofrimentos riscados na pele da mesma
forma que ele. E percebendo isso, entendeu um pouco melhor as palavras
que Farah lhe disse mais cedo.
Estavam todos em situações semelhantes. Foram todos vítimas —
ainda que de maneiras diferentes — das mesmas mentiras.
Benjamin não se importava com ninguém além dele mesmo, e o
rapaz soube então que até mesmo aqueles soldados tinham prazo de
validade. Soube que o príncipe não se importaria o suficiente para usar suas
habilidades com eles por todo o seu reinado.
Não, Benjamin arrumaria um exército novo.
Aqueles homens não representavam nada.
O quão tolo Alexzander era por temer também pelo inimigo?
O tilintar das espadas se tornou insuportável. Os gritos ecoavam
pela câmara, e ela pareceu muito menor de repente. Como se as paredes
estivessem encolhendo, movendo-se para roubar o pouco espaço de recuo
que ainda lhe restava.
Mais um passo para trás e estaria colado aos tijolos.
Aquele único passo era tudo o que ele tinha.
O soldado se movia a uma velocidade inacreditável. Atacava uma,
duas, três vezes.
Alexzander já não sabia quanto tempo mais conseguiria contê-lo. O
cansaço físico tomava conta de cada pequena parte de seu corpo.
Ele já tinha entrado naquele castelo sem forças. Tinha entrado logo
após um ataque que roubara toda a sua magia. E ainda que ela não estivesse
respondendo, o esgotamento permanecia.
A exaustão ganhava espaço junto a desesperança e o medo.
Pelas Sete, ele estava aterrorizado!
Sua visão aos poucos escurecia. Seu foco desaparecia e, então,
voltava segundos mais tarde. E retornava reduzido pela metade.
Seus braços tremiam e o peso daquela maldita espada estava se
tornando insuportável.
E estava começando a delirar.
Aquela era a única explicação para estar ouvindo a voz de sua mãe
dentro de sua cabeça — repetindo aquelas mesmas palavras de dez anos
atrás. Aquelas que o rapaz passou tanto tempo sufocando em seu coração.
Ela dizia que ele tinha cometido um erro. Que ele tinha escolhido se
transformar em um monstro.
Que não merecia mais ser chamado de seu filho.
Por alguns instantes, por alguns malditos instantes, Alexzander se
pegou pensando se ela não estava certa. Ele não estaria nessa situação se a
tivesse escutado. Se tivesse se mantido longe das florestas, dos lobos, das
bruxas...
Da magia.
Ele deu sua vida pela magia.
Deixou tudo para trás para honrá-la.
E ali estava ele, sem uma única gota daquele poder.
A Luz tinha falhado com ele.
Verena tinha falhado com ele.
Onde estava a bruxa quando ele foi arrastado por soldados da
Coroa? Enquanto sua irmã, ainda pequena, gritava pela janela assistindo-o
ser levado a socos e pontapés?
Onde ela estava agora?
Diante daquelas alucinações traiçoeiras, lembrou-se das noites
dolorosas e solitárias nas masmorras, poucos andares abaixo de onde
estava. Seria irônico se tudo acabasse ali. Se sua história com Havenmill
terminasse no mesmo lugar onde havia começado.
Lembrou-se do dia em que Silja apareceu na cidade escondida. Da
confusão que sentira ao vê-la naquele lugar tão inusitado. De como seu
coração se encheu de amor ao ouvi-la dizer que não poderia viver sem o
irmão.
Sempre preocupada em fazer a coisa certa.
Pensou nas madrugadas em que ela pedia para dormir com ele,
porque a noite na cidade escondida era muito diferente daquela que ela
conhecia. E pensou em como ela manteve o mesmo hábito mesmo tantos
anos depois, sempre que alguma coisa a aborrecia.
Alexzander ousou um olhar para além do soldado, e percebeu com
terror que os homens desacordados começavam a recobrar seus sentidos.
As coisas tinham fugido completamente do controle.
Perdido nos próprios infortúnios, não percebeu em que momento
Silja começou a se mover em sua direção. Quando se deu conta, ela já
desviava e atacava qualquer um no caminho entre eles.
Mas Alexzander não queria que sua irmãzinha o alcançasse.
Não queria que ela visse.
Porque no momento em que a lâmina do soldado desceu novamente
até ele, no momento em que Alexzander tentou dar mais um passo para trás,
ele bateu contra a parede.
E percebeu tarde demais que as laterais daquele lugar eram tão
úmidas quanto a escadaria que descera para chegar ali. Tão úmidas quanto a
rota de fuga que enfrentou com a princesa desacordada em seus braços
semanas atrás.
Já era tarde demais quando ergueu sua espada novamente, porque o
baque de seu corpo contra os tijolos custou seu equilíbrio no único passo de
recuo que ainda lhe restava.
Seu pé deslizou sobre a pedra molhada, e o rapaz sentiu seu peso
inteiro acompanhá-lo.
A espada do guerreiro ainda se movia e ele soube que estava tudo
acabado. Soube que nunca teria a chance de ir embora daquele lugar. Que
nunca preencheria nem recusaria o lugar na Corte que Anya tinha oferecido
dias atrás.
Um grito de dor cortou sua garganta no instante em que a lâmina
acertou seu peito. E outro grito ecoou ao seu quando Silja viu o que tinha
acontecido.
Queria implorar para que ela parasse de correr, para que não viesse
até ele. Para que não visse o que estava prestes a acontecer.
Queria um fôlego longo o suficiente para dizer que a amava e pedir
que ela não deixasse isso destruir quem ela era.
Mesmo sabendo que o faria.
Mas palavra alguma era capaz de sair dele, porque tudo era dor,
sangue e fogo. Era como se seu peito estivesse em chamas e quase sentiu o
gosto de cinzas na boca.
Quase sentiu o cheiro.
E quando a dor se tornou insuportável, quando o mundo se tornou
apenas brasa, Alexzander deixou que a Luz morresse.
Pela primeira e última vez, ele se entregou para a escuridão.
Anya não deu tempo para que Benjamin reagisse. No instante em
que aquele grito cortou o ar, a princesa disparou pelas escadas.
Ela não se importou em dar as costas para o primo, não se importou
com o que ele poderia fazer.
Precisava seguir aquele som, precisava descobrir o que tinha
acabado de acontecer para que tanta dor reverberasse pelas paredes de sua
casa.
Precisava, mas não queria.
Não queria ver.
Porque nem mesmo o pior de seus pesadelos a teria preparado para
aquilo. Porque quando estava prestes a alcançar o segundo andar, ela viu.
Viu Alexzander tombando contra o canto de uma parede, viu o
sangue escorrendo de sua boca, viu a espada. E refletido na prata da lâmina
que ela não via há muito tempo, Anya reconheceu um par de olhos
castanhos.
Terror tomou conta de seu corpo quando ela encarou o soldado que
pusera aquela espada ali.
— Não — ela sussurrou.
Pois era Conan.
Seu melhor amigo.
A princesa mal teve tempo de assimilar a cena por completo.
Havia quatro soldados caídos.
Havia Delilah.
Havia Farah.
E Silja.
Que corria até o corpo de seu irmão sem se importar que outros
quatro soldados ainda empunhassem suas armas. A curandeira gritava o
nome de Alexzander com cada fôlego que carregava dentro de si, como se
esperasse que a qualquer momento, o rapaz fosse atendê-la.
Foi o pior som que a princesa ouviu em toda a sua vida.
Ela sabia que aquele nome assombraria as paredes daquele
alojamento mesmo quando ninguém mais estivesse ali. Que aquela dor
permaneceria presa no castelo até o fim de seus dias.
Alexzander.
Um soluço de pesar escapou dos lábios da princesa ao perceber que
havia pelo menos três vidas completamente arruinadas diante de seus olhos.
Silja não se recuperaria daquilo.
Conan jamais se perdoaria.
E o peito de Anya se encheu de um ódio tão puro que era como
brasa ardendo no lugar onde seu coração deveria bater.
Ela se virou novamente para escadaria a tempo de ver Benjamin
pisando no primeiro degrau. Ele trazia um sorriso largo, debochado.
O sorriso de um demônio.
Anya sentiu o corpo vibrar, sua pele ardeu enquanto a magia recém-
descoberta implorava para sair. As raízes ameaçavam se romper com a
raiva, com a frustração, com o desejo de vingança.
O palácio tremeu em resposta.
E o peito da princesa se rasgou com uma onda de poder mais forte
do que qualquer coisa que já tivesse experimentado.
Benjamin foi lançado contra a parede no outro lado da câmara em
que se encontrava, de olhos arregalados e com a boca contorcida em um
“O” de puro choque.
E o Tempo desacelerou.
Desacelerou porque Anya era uma bruxa, e porque o Tempo
respondia a ela. Porque ela já o tinha controlado muitas vezes ao longo de
sua vida sem saber.
E todos que estavam próximos dela congelaram no meio de um
movimento. Lâminas erguidas, gritos interrompidos, os olhos de Delilah
encarando-a fixamente.
Os soldados não mais representavam uma ameaça, e Anya jurou
que, quando o Tempo voltasse, os homens seriam eles mesmos outra vez.
Porque ali, naquele momento, só havia o silêncio.
Ela.
E Benjamin.
O príncipe conseguiu resistir ao seu poder, percebeu. Eram
semelhantes de certa forma.
Mas Anya viu o medo nos olhos do primo.
E quando avançou até ele, abriu um sorriso.
Sorriu porque seu próprio medo a tinha abandonado.
Ela, que momentos mais cedo teve dúvidas se seria capaz de fazer o
que era necessário, não duvidava mais. Porque toda aquela destruição era
culpa do homem diante dela.
Porque ele era o motivo de ela ter perdido sua família, de Farah ter
perdido o pai, e agora, de Silja ter perdido o irmão.
Ele tinha transformado sua casa no palco de um show de horrores.
Tinha transformado seu melhor amigo em uma casca.
Assim como Isaac e todos os outros soldados.
Era culpa de Benjamin.
Anya buscou por aquela magia prateada dentro de si. A magia de
sua mãe, a ligação que as manteria unidas para sempre.
Ergueu as mãos diante do corpo, preparando-se para testar outra
parte daqueles poderes. Perguntando-se se a Morte a receberia tão bem
quanto o Tempo.
Mas em um piscar de olhos, o príncipe se dissolveu no ar. Como
fumaça, espiralando bem ao alcance de seus olhos.
Não era reação ao poder que ela tentou invocar, tinha certeza disso.
As raízes prateadas nem ao menos saíram de seus dedos.
Ainda assim, Benjamin tinha desaparecido.
Fugido como o covarde que realmente era.
Anya encarou o lugar vazio, como se ainda conseguisse ver o primo
ali.
Como era possível que ele tivesse escapado bem diante de seus
olhos?
E como era possível que Alexzander...
O choro irrompeu de seu peito com espasmos dolorosos, e a
princesa caiu de joelhos ao pé da escada. Sentiu a palma ainda cortada arder
contra a pedra áspera do chão.
Ela não se importou.
Continuou chorando, derramando todas as lágrimas que ainda
restavam em seu corpo.
E numa tentativa de tirá-la daquele momento terrível, o Tempo
voltou a correr.
Delilah nunca tinha sentido aquele tipo de estática contra seu corpo.
Uma energia fria que envolvia e arrepiava sua pele.
E que parecia segurá-la no lugar.
Em um segundo, ela corria em direção à Silja. Queria ampará-la
quando seu mundo inteiro viesse abaixo.
Um instante mais tarde, uma luz prateada chamou seus olhos para o
andar inferior.
Então, estava ali.
Congelada bem no meio de todas as suas intenções. Não, ela ainda
se movia. Mas era com uma letargia desesperadora, como se cada segundo
tivesse se estendido e se espichado por horas, e seu corpo estivesse se
adaptando àquele novo ritmo.
Mas seus pensamentos se moviam em sua velocidade normal. Assim
como seus sentimentos. E enquanto tentava entender o que estava
acontecendo com o mundo, seu peito rasgava com uma dor inacreditável.
Seus olhos ardiam pelas lágrimas que demorariam séculos para
serem derramadas, mas a dor... a dor tinha pressa. Ela estava se espalhando
como uma praga, ganhando espaço dentro de Delilah mais rápido do que ela
era capaz de acompanhar.
A meio-bruxa tinha o rosto voltado para as escadas, mas sabia o que
encontraria caso conseguisse virar para o lado.
Veria Alexzander em meio ao que poderia ser seu último sopro de
vida, com o brilho desaparecendo aos poucos de seus olhos cor de oceano.
Veria Silja congelada em sua corrida até o irmão, ainda sem
compreender de verdade o que estava prestes a acontecer.
Veria Farah também disparando, talvez tentando conter o inevitável.
Mas Delilah não olhava para o lado quando o tempo parou, ela
olhava para a frente, para a escada que se estendia até o andar inferior.
E pelas Sete, que bom que teve mais do que poucos segundos para
absorver o que estava acontecendo, pois não teria acreditado nas próprias
memórias se dependesse somente delas.
Porque a princesa, parada em meio aos degraus, não estava
congelada como todos os outros. Não. Anya se movia em direção ao
príncipe caído do outro lado da câmara inferior. Ela tinha as mãos
tensionadas em garras ao lado do corpo, e parecia ignorar o sangue que
escorria de uma delas.
Delilah teria arregalado os olhos se conseguisse, quando as peças se
encaixaram em sua cabeça. Pois presa na cintura da garota, ao lado da
palma ensanguentada, estava...
A adaga.
Aquela maldita adaga.
E enquanto a meio-bruxa se dava conta de que, o que quer que
estivesse acontecendo, estava relacionado às memórias que Anya tinha
libertado, outra coisa chamou sua atenção.
O contorno iluminado que envolvia a princesa.
A luz feita de prata que saia dela e se dissolvia no ar, que se
derramava de seus dedos quase como um reflexo. Aquela que a tinha feito
olhar naquela direção.
Ela conhecia aquele brilho. Já o tinha visto antes.
E viveu tempo demais dentro daquele mundo coberto por magia
para acreditar em coincidências.
A aura luminosa possuía o mesmo tom prateado que rompeu os
escudos de proteção do acampamento. O mesmo tom prateado que
Benjamin invocara em Havenmill. O mesmo tom prateado que preenchia a
fita usada para unir as mãos dos conjuradores no ritual do Braan.
A magia de Alethea.
Por todas as Sete, ela quis gritar.
Porque ela entendeu.
E mesmo vendo-a apenas de costas, sabia que a princesa estava em
fúria. Porque ela avançava como uma predadora até o primo, e cada
centímetro de sua postura dizia que estava prestes a soltar contra ele o poder
concentrado entre seus dedos.
Mas em um segundo — tão rápido que mesmo dentro daquela
estranha distorção do Tempo, Delilah não conseguiu acompanhar —
Benjamin se desfez no ar.
Como pó.
Como vento.
Como nada.
E enquanto Anya dava aqueles últimos passos pela escada, ainda
procurando pelo homem que lhe tirou tudo, a meio-bruxa observou.
Viu-a se entregar ao choro e cair de joelhos.
O mundo respirou fundo mais uma vez, tão rápido quanto tinha
parado, e a câmara foi preenchida pela tormenta que tinha sido apenas
adiada.
O grito interrompido de Silja voltou a retumbar entre as paredes
apertadas demais, o tilintar de espadas ceifando o nada e, em seguida, sendo
jogadas contra o chão empoeirado de pedra.
Uma corrente elétrica atravessou o corpo da meio-bruxa.
De repente, a sensação de vazio dentro dela foi novamente
preenchida. A quietude sufocante finalmente substituída pelo formigamento
da Luz. Sua magia estava de volta.
Porque Benjamin tinha fugido.
E tinha levado a aliança de Lavínia.
Mas Delilah não conseguiu assimilar aquilo da forma adequada, não
quando tantas coisas aconteciam ao mesmo tempo.
Soldados cambaleavam para trás, encarando as próprias mãos como
se as estivessem vendo pela primeira vez.
E estavam, ela se deu conta.
O príncipe havia soltado as cordas de suas marionetes e deixado
todos os brinquedos para trás.
Eles pareciam tão perdidos na liberdade recém-conquistada que
ignoravam completamente a presença dos conjuradores. Ou do choro. Ou
dos gritos.
Apenas olhavam uns para os outros, indo até os homens caídos que
recobravam seus sentidos.
Todos exceto Conan.
O soldado de cabelos vermelhos que, mesmo sem o poder de
Benjamin em torno de si, carregava uma expressão tão sem vida quanto
antes. E, por todas as Sete, ele era tão jovem!
Jovem demais.
Ele ainda estava congelado naquele momento, como se estivesse
esperando alguém avisar que o Tempo corria mais uma vez.
Silja o empurrou para longe, afastando-o do corpo de Alexzander.
Então, desmoronou ao lado dele, produzindo um som que ia entre choro e
grito — como um animal ferido sendo afastado de seu filhote.
As lágrimas que o Tempo havia impedido que rolassem agora
transbordavam de Delilah como uma tempestade. Queria tirar a garota dali,
queria impedir que aquela se tornasse a última lembrança que a curandeira
teria do irmão.
Farah chegou primeiro.
Ela envolveu a amiga pela cintura e, entre o próprio choro dolorido,
tentava afastá-la. Mas a garota tinha as mãos agarradas à camisa de
Alexzander, e as apertava com tanta força que os nós dos dedos já perdiam
a cor.
Ela sussurrava de novo e de novo a mesma palavra, que saía quase
ininteligível entre os soluços. Delilah percebeu, com uma dor que não sabia
ser capaz de se tornar mais forte, que ela estava tentando curá-lo.
— Funcione — Silja sussurrou. — Funcione!
Havia tanto desespero naquela prece que sua magia se derramou
visível aos olhos, como se ela tecesse um escudo protetor. As heras
douradas serpenteavam pelo corpo de Alexzander, porém, ainda que
fechassem os arranhões e pequenos cortes, ele já não estava ali quando a
garota começou.
A Luz não reverteria a Morte.
Os olhos de Delilah ardiam enquanto chorava, pensando em todas as
coisas que ele nunca veria. Pensando na vida que seu amigo não teria a
chance de aproveitar. E ela sentia seu peito se rasgar um pouco mais a cada
soluço sofrido que partia das garotas ali jogadas.
Conan ainda encarava as próprias mãos e uma raiva queimou na
garganta dela. Ele tinha feito aquilo, era por culpa dele que suas amigas
agora se desfaziam em um milhão de pequenos pedaços que nunca seriam
colados de volta. Era culpa dele que...
Não.
Benjamin era o culpado.
E os olhos castanhos do garoto diziam por si só que ele tinha
consciência do que acabara de fazer. Que apesar das mãos agindo sem sua
permissão, estivera o tempo todo ali dentro assistindo.
Delilah se surpreendeu com quantas coisas poderiam ser contadas
em um único olhar. Conan se afastava lentamente, sem conseguir desviar a
atenção do estrago que tinha causado. Parecia querer fugir de dentro do
próprio corpo.
O que era irônico de certa forma.
Já que ele tinha acabado de recuperar o controle sobre si mesmo.
E quando um soldado de cabelos raspados e pele negra surgiu pelas
escadas vindo em direção ao garoto ruivo, os olhos da meio-bruxa se
lançaram para o andar inferior.
Para a jovem ainda de joelhos, com as mãos espalmadas sobre o
chão de pedra empoeirado.
E Delilah foi até ela.
Anya não queria se levantar.
Queria fingir que todos os gritos aconteciam apenas em sua cabeça,
que eram apenas seus próprios sentimentos e frustrações tentando se
manifestar. Que eles logo se cansariam e teriam fim.
Queria que não passassem de uma grande mentira.
Mas o lamento e os murmúrios que ecoavam pelos corredores
daqueles alojamentos confirmavam o suficiente.
— Princesa? — A voz de Isaac soou ao seu lado.
Ela ergueu o rosto, sem se importar que o soldado visse a dor que
carregava. Soltou o ar ao ser recebida por aqueles olhos cor de avelã,
aliviada por vê-los reagindo sem o controle de Benjamin.
Ou o dela.
Estavam tão gentis quanto Anya se lembrava. Gentis e preocupados.
A ruga entre eles transmitia a hesitação de não saber ao certo como agir
com a princesa. De não saber que nível de intimidade compartilhavam
depois de tudo o que aconteceu.
Mas não pareciam ter medo.
Nem dela, nem da demonstração de poder que Isaac presenciara
naquelas masmorras.
— Eles precisam mais de você do que eu — ela sussurrou, as
palavras cortadas pelo choro. Então, abaixou novamente a cabeça. — Só
você conseguirá entendê-los.
Não era mentira.
Anya testemunhou o que seu primo tinha feito com aqueles homens,
mas poderia apenas imaginar o que significava.
Tudo o que pudesse fazer para ajudá-los, ela faria. Entretanto, eles
precisariam uns dos outros mais do que qualquer outra coisa.
E ela queria mais alguns segundos sozinha.
Sabia o que a esperava além daquele corredor.
Sabia quem precisaria ser quando o atravessasse.
E não estava pronta para aquele papel. Ainda não.
— Só mais alguns segundos — sussurrou, sem ter certeza se Isaac já
tinha partido.
Ficou ali, encarando as dolorosas verdades que descobrira naquele
dia, procurando respostas entre as falhas nas pedras gastas do chão.
Anya tinha sangue de bruxa.
Tinha o poder de Alethea correndo por seu corpo.
Tinha parado o Tempo.
E entrado na mente de Isaac.
O que isso dizia sobre ela? Será que era melhor que seu primo? Será
que seus motivos eram nobres o suficiente para justificarem aquela...
invasão?
Sua mente dizia que sim, mas seu coração discordava.
E tudo aquilo havia sido em vão no final das contas. Benjamin tinha
escapado por entre seus dedos como se fosse feito de fumaça. E
Alexzander...
Anya estremeceu.
Passadas rápidas acompanharam alguém escadaria abaixo, mas
quando a princesa se virou para insistir que Isaac a deixasse sozinha, foram
os olhos de Delilah que cruzaram com os dela.
Parada como uma estátua a poucos passos de distância, parecia tão
confusa quanto o soldado estivera sobre a maneira correta de tratá-la.
Então, Anya passou o dorso das mãos nos olhos para afastar as
lágrimas e se levantou, completando o caminho que as separava.
Seu coração se apertou ao ver os cortes espalhados na pele dela. Ao
ver o sangue e as roupas rasgadas.
Delilah acompanhou seu olhar e suspirou.
— Não são tão ruins quanto parecem. — Sua voz saiu rouca,
exausta. Ainda assim, ouvi-la aliviou um pouco a ansiedade em seu peito.
— Certo. — Foi o que conseguiu responder.
Elas se encararam por mais alguns segundos. Delilah mantinha a
cabeça curvada para o chão, observando-a pelo canto dos olhos. Até que
sua atenção desceu para as mãos da princesa.
Para a palma cortada.
— Como descobriu? — perguntou, hesitante.
— Por acidente. Tentei usar a lâmina para soltar as amarras em
meus pulsos e... me cortei. — Anya fez uma careta, repentinamente ciente
dos pulsos queimados e doloridos. — Era de minha mãe. A adaga, quero
dizer. Ela era... ela era uma bruxa também.
Se Delilah ficou surpresa, não demonstrou qualquer sinal. Apenas
assentiu, trazendo sua atenção para o rosto da princesa mais uma vez.
— Eu queria te contar — a mulher admitiu, por fim.
Foi a vez de Anya assentir.
Ela sabia disso.
— Verena prometeu para minha mãe que, se algo acontecesse,
encontraria uma forma de me mostrar a verdade. — A princesa levou a mão
até a lâmina em sua cintura. — Ela cumpriu a promessa.
— Quer falar sobre isso?
— Ainda não — admitiu.
Ela se sentia entorpecida. O mundo desmoronando ao seu redor
parecia bater contra uma parede invisível e cair aos seus pés, para que
tivesse de juntar, limpar e guardar mais tarde.
As coisas apenas não faziam sentido.
Mesmo as lágrimas e o choro eram como a música de fundo em uma
peça de teatro ruim. Uma piada de mal gosto que a princesa ainda não tinha
entendido.
— Eu parei o Tempo — sussurrou de repente, arregalando os olhos.
— Sim. — E o rosto de Delilah transmitia que as peças iam, aos
poucos, se encaixando dentro de sua cabeça. — Como soube que era capaz
de fazer isso?
— Eu não sabia, não até estar acontecendo. Mas eu estava com tanta
raiva! Queria tanto que Benjamin simplesmente... deixasse de existir —
admitiu em voz baixa, culpada. — Eu perdi o controle.
— E estava no seu direito de fazê-lo. — A meio-bruxa tentou
confortá-la. — Isso tudo é... coisa demais.
— Acho que sim. — Assentiu, secando as novas lágrimas que ainda
insistiam em brotar. — O Tempo sempre escapou de mim, sabe? Sempre
pareceu correr para longe, cansado de minha companhia. Agora sei o
motivo.
Delilah cruzou os braços com força diante do peito.
— Você é uma meio-bruxa. Como eu — disse.
— Sou. — Ela ousou um olhar por sobre o ombro de Delilah,
mesmo sem conseguir ver a confusão lá em cima. — Acha que posso salvá-
lo?
Não conseguiu dizer o nome dele.
Não conseguiu transformar aquilo em palavras.
— Existe apenas uma bruxa capaz de reviver os mortos. — Sua voz
falhou, e lágrimas começaram a rolar pelo rosto dela.
Anya quis abraçá-la. Estender seus dedos e afastar o choro de seu
rosto perfeito. Quis fingir que alguns poucos beijos as faziam íntimas o
suficiente para aquilo.
Mas mesmo se fossem de fato íntimas o suficiente, não havia tempo.
Havia muitas coisas que ela precisava fazer.
Havia mais um personagem para a princesa interpretar.
Respirando profundamente, passou por Delilah e subiu aquelas
escadas.
Nove soldados viraram seus rostos para ela.
Estavam devastados.
Tinham suas mãos sobre os ombros uns dos outros e olhares
perdidos. Pareciam estar em um mundo diferente.
E o coração da princesa se partiu mais um pouquinho quando viu
seu melhor amigo.
Conan estava irreconhecível.
Machucado, magro, com olheiras profundas demais para o próprio
bem.
Isaac tinha uma mão ao redor de seu torso, como se fosse a única
coisa capaz de mantê-lo em pé.
Foi quando um dos soldados a viu.
— Princesa! — Ele arregalou os olhos, tão surpreso que levou
alguns segundos para abaixar a cabeça em uma reverência. — Está viva!
Os outros homens murmuraram também, chocados.
— Estou — ela respondeu, tentando manter sua voz suave e firme
ao mesmo tempo. — E eu...
As palavras morreram no instante em que sua atenção caiu sobre
Silja, Farah e...
Ela se engasgou ao tentar controlar o choro. Não sabia o que fazer.
Não sabia o que dizer.
Anya era a única Dahnasa restante dentro daquele castelo, e tinha
consciência de que aquele era o momento em que mais precisariam que ela
agisse como tal.
Mas não estava pronta.
Talvez nunca estivesse.
E por todas as Sete, havia tantas coisas que ela precisava explicar!
Sobre si mesma, sobre sua mãe, sobre Benjamin.
A verdade escondida por tantos anos sobre a Coroa e os
conjuradores.
— Posso apenas imaginar o que vocês passaram aqui — recomeçou
—, e sinto muito, muito mesmo por cada coisa terrível que meu primo
causou. Mas preciso que saibam que foi Benjamin o responsável por isso,
não a magia.
Ela parou de falar, esperando pela reação dos soldados. Ninguém
ousou dizer coisa alguma.
— Não foram os conjuradores que assassinaram o Grande Rei —
prosseguiu. — Não foram os conjuradores que assassinaram sua Rainha.
Foi ele. E eu preciso que vocês confiem em mim. Preciso que acreditem
quando eu digo que nosso verdadeiro inimigo estava aqui dentro o tempo
todo, não lá fora. Aquele homem — ela se engasgou novamente, ao apontar
para Alexzander —, aquele homem era um conjurador. E salvou a minha
vida três semanas atrás.
Pela primeira vez, os soldados pareceram reagir às suas palavras.
Eles trocaram olhares desconfiados, embora o silêncio permanecesse.
— Tenho muitas coisas para contar a vocês, muitas histórias para
desmentir. E eu sei... — sua voz falhou — eu sei que será difícil. Foi difícil
para mim também. Mas preciso que acreditem em mim. Preciso que...
Ela desistiu.
Não conseguia fazer aquilo. Não quando havia tanta dor partindo
seu peito em dois. Não quando suas amigas estavam caídas ao lado do
corpo inerte de alguém por quem ela sentia tanto carinho.
Não quando já tinha perdido tanto.
— Princesa... — Conan sussurrou, hesitante.
E aquilo doeu ainda mais.
A forma como a palavra saiu estilhaçada, carregada de um
sofrimento que refletia o dela.
Tinha de lidar com aquilo também.
Mas as paredes de tijolos vermelhos começaram a se fechar ao seu
redor, tentando esmagá-la, soterrá-la, transformá-la em nada.
O palácio que Anya tanto amava não tinha mais traços de lar. Ele se
tornou um mausoléu. Uma caixa de pedra que enterrou sua mãe, seu pai e
seu amigo.
Precisava sair dali.
E enquanto percebia que era herdeira de nada além de puro caos, ela
correu.
Refez o caminho que a cumprimentou por tantas manhãs naqueles
últimos anos. Atravessou os corredores estreitos e mal iluminados,
acompanhando as tochas que formavam espectros nas paredes descuidadas
e úmidas demais.
Não olhou para trás ao ouvir passos que a seguiam, sem forças para
gritar que a deixassem em paz.
Tinha de sair dali.
Tinha de sair de dentro daquele castelo.
Em um piscar de olhos, estava fora da ala Leste, adentrando o salão
principal.
Não teve tempo de lidar com o fato de estar outra vez em casa. De
que o mármore cor de baunilha estava exatamente como ela se lembrava.
De que as estátuas ainda a cumprimentavam nos mesmos lugares, nas
mesmas poses. De que nada tinha mudado.
Mesmo que tudo fosse diferente agora.
Não prestou atenção se havia mais soldados ali. Se havia criados. Se
outras pessoas dentro do castelo estavam livres das cordas que Benjamin
usara para manipulá-las.
Anya atravessou as imensas portas de madeira e soluçou ao ver os
jardins. Ao ver as flores e a fonte atirando água para todos os lados.
Reconhecimento.
Desacelerando sua corrida, arrastou os pés até a grama, deixando-se
cair sobre ela. Não se importou com a dor do impacto em seus joelhos, ou
com a ardência em sua mão raspando na vegetação. Apenas se curvou e
chorou.
Como se curvou e chorou tantas vezes naquele dia.
Chorou tanto que seu corpo tremia em espasmos, uma dor quase
física entrelaçada em cada lágrima.
Os passos que a seguiam cessaram também, e Anya sentiu uma mão
ser pousada sobre suas costas. O familiar aroma de cedro e mel
acompanhou o gesto.
Delilah não disse nada.
Apenas ficou ali.
Parada.
Em silêncio.
Aguardando enquanto Anya derramava todas as suas frustações
sobre aquele gramado.
Ela tinha falhado.
Esteve diante do homem que assassinou sua família e deixou que ele
escapasse.
Será que aquilo nunca teria fim?
Será que nunca voltaria a ter paz?
Todas as pessoas que Anya amava estavam mortas ou em perigo, e
ela não tinha mais força alguma para lidar com isso.
Ergueu o corpo aos poucos, ainda encarando ao longe, e sentiu
Delilah se ajoelhar atrás dela.
Ficando a poucos centímetros de suas costas, exatamente como
naquele primeiro treino na clareira, a meio-bruxa não pediu permissão antes
de envolvê-la com os braços.
Não dessa vez.
Não depois de tudo.
Delilah não parecia mais se importar se eram ou não íntimas o
suficiente para aquilo. Se alguns beijos justificavam ou não um abraço tão
apertado.
E enquanto Anya buscava nos céus qualquer sinal de uma deusa que
havia desaparecido por completo, ela ousou um olhar por sobre o ombro.
Para a mulher de olhos mais verdes que a grama na qual estavam e
de sorriso mais brilhante que o sol sobre suas cabeças. Mesmo o rosto
vermelho e inchado pela dor que sentia, ainda era emoldurado pelo rosa
claro de uma manhã de tempo bom.
E era a coisa mais bonita que Anya já tinha visto.
Delilah era como um jardim repleto de cores vivas em meio à
tempestade cinzenta que se formava no coração da princesa.
O reino tinha perdido o Grande Rei e sua rainha, e ainda assim, a
primavera estava ali. Os aromas doces. Os tons extravagantes.
E pareceu tão, tão estranho que o mundo simplesmente...
continuasse. Que apesar de todo o sangue derramado, a terra — e ela —
ainda fosse capaz de florescer.
Benjamin sentia falta da chuva.
De olhos fechados, o príncipe tentou se lembrar da sensação das
gotas frias tocando sua pele. Do cheiro que se erguia da grama quando caía
uma tempestade, e do alívio que ela trazia para um dia quente demais.
Mas fazia tantos anos que ele não via chuva de verdade, que já não
tinha certeza se ela era realmente assim. Talvez fosse apenas um truque de
sua mente. Uma forma de fazê-lo lembrar que havia algo lá fora.
Depois de quase vinte anos trancado em cômodos úmidos e
banhados em luzes artificiais, ele poderia nem reconhecer o maldito sol se
fosse colocado de frente para ele.
Nos porões das cordilheiras não havia dia ou noite. Não havia
primavera ou verão. Estas eram coisas que o príncipe não via desde que
fora embora do castelo.
Ele tinha quinze anos no dia em que decidiu deixar para trás o
sofrimento que, até então, parecia inevitável.
Havia acabado de sair da pior briga que tivera com seu tio Oliver, e
concluiu que nunca conheceria a verdadeira felicidade naquele lugar.
Pelo que depender de mim, você nunca carregará essa Coroa, seu
tio tinha dito. E o príncipe não o culpava.
Ninguém era capaz de confiar no garoto que assassinou o próprio
irmão. Ninguém era capaz de perdoar o garoto que causou a morte do
próprio pai. Ninguém era capaz de entender como a vida dele era mais
valiosa que a de sua mãe — a mulher mais doce que Duhn já conheceu —,
para que os deuses a levassem em seu lugar durante um parto difícil.
Mas a verdade que ninguém sabia — porque ninguém nunca se
importou em perguntar —, era que não se passava um dia sem que ele
sentisse falta do irmão mais velho.
Jarek era tudo aquilo que Benjamin sempre quis ser, a única coisa
que ele ousou amar. Tinha a risada mais engraçada do mundo, tinha o
abraço mais confortável.
Nas noites de pesadelo, seu irmão não fazia perguntas. Apenas
rolava para o lado e abria espaço debaixo das cobertas para que Benjamin
se deitasse ali também.
E enquanto seu pai parecia fingir que o filho mais novo não existia,
Jarek o estava ensinando a duelar. Acordavam todas as manhãs junto com o
sol e corriam até a floresta nos limites do castelo.
Treinavam por horas e horas, mas nunca se enfrentaram de verdade.
Tinham medo de que o tilintar das espadas denunciasse aos soldados suas
atividades secretas.
Até que, depois de meses, Jarek disse que ele estava pronto. Que
Benjamin sabia o suficiente para que lutassem de verdade.
Infelizmente, seu irmão estava certo.
Benjamin estava pronto.
Pronto demais.
Mais tarde, o garoto não soube explicar a espada. Não soube
explicar o corpo caído. Não soube explicar o sangue em suas mãos.
Estava em choque e em negação.
Pois como poderia ser verdade que Jarek, a pessoa mais inteligente
que o príncipe conhecia, não tinha conseguido desviar de seu ataque?
Aquilo simplesmente não fazia sentido.
Então, quando perguntaram, ele não chorou.
Quando o acusaram, ele acreditou.
Jarek era bom demais em todas as coisas. Se aquilo tinha
acontecido, só poderia ser porque Benjamin tinha trapaceado. Porque
Benjamin era invejoso. Porque Benjamin queria a Coroa.
E a história se espalhou.
Príncipe Benjamin assassinou o irmão mais velho, pois queria ser
rei. E seu pai, que nunca gostou dele tanto assim, morreu também, semanas
depois.
O garoto tinha quatorze anos quando herdou a Coroa.
Era jovem demais, todos disseram. Mas ele sabia a verdade. Sabia
que não era sua idade que estava entre ele e o trono. Era seu passado.
Foi quando Benjamin conheceu um viajante no Mercado.
Aquele homem de sotaque engraçado que foi a primeira pessoa
desde Jarek a lhe mostrar um pingo de compreensão. Que jurou que
entendia a tristeza escondida no fundo de seu peito.
O príncipe já deveria saber que aquilo era impossível, que palavras
tão gentis nunca seriam ditas para alguém como ele.
Não de forma genuína.
Mas o viajante começou a voltar com frequência.
Encontravam-se no Mercado e o homem trazia presentes. Livros,
pequenas esculturas, roupas diferentes de culturas que o príncipe poderia
apenas sonhar em conhecer.
E naquele dia, depois daquela briga definitiva com Oliver, o viajante
lhe ofereceu uma alternativa.
Venha comigo, tinha dito, podemos conhecer o mundo juntos.
Parecia melhor do que tudo aquilo.
Então, Benjamin foi.
E no momento em que adentraram a Floresta de Pedra, quando
avançaram pelas cordilheiras em direção às fronteiras mais afastadas do
reino, o viajante lhe contou seu verdadeiro nome.
O príncipe não acreditou, é claro. Aquelas eram as palavras mais
absurdas que o jovem tinha ouvido em toda a sua vida.
Pois como poderia ser possível que Tamal, um rei morto há
quatrocentos anos durante um incêndio, pudesse estar ali?
Você é louco, tinha respondido entre as risadas.
Tinha certeza de que era uma piada.
Mas aquela foi a última vez que Benjamin viu o sol.
Não demorou até que ele descobrisse a verdade.
Tamal, o Grande Rei, cruzou as fronteiras e trabalhou para uma
bruxa. Ele foi recompensado com a imortalidade e forjou a própria morte
para que pudesse retornar anos mais tarde e recuperar um trono no qual
governaria para sempre.
O rei imortal queria a Coroa, e Benjamin tinha o rosto que ele
precisava para fazer isso sem que desconfiassem dele.
Aquele foi o dia em que o príncipe mais esteve próximo de perder a
cabeça — o dia em que viu as feições de Tamal mudarem e se
transformarem nas suas.
Era um dos poderes que a bruxa tinha lhe dado.
Ninguém nunca prestou atenção o suficiente em Benjamin para
notar as pequenas diferenças. Ninguém se lembrava que seus olhos na
infância eram castanhos e não acinzentados como os do falso príncipe; ou
que seus cabelos eram prateados como os de sua mãe e não brancos como a
neve.
E agora, naquelas masmorras de tijolos vermelhos que ele não via
há quase vinte anos, o príncipe chorou.
Chorou porque seu tio Oliver acreditou até o momento de sua morte
que o sobrinho era um monstro. Chorou porque foi olhando para seus
cabelos brancos que Elysia chamou pela filha uma última vez. Chorou
porque foi sob os comandos de sua voz que um exército de soldados
transformou uma cidade em cinzas.
Aos olhos de Duhn, o príncipe era um demônio.
Mas algo estava diferente. A ardência incômoda que tomava conta
de sua pele quando Tamal vestia seu rosto tinha desaparecido.
Talvez o rei tivesse fugido.
Talvez o rei estivesse morto.
O príncipe chorou ainda mais ao pensar nessa possibilidade.
Ele encostou o rosto na parede de tijolos sentindo a umidade e o frio
contra sua bochecha.
Será que alguém o encontraria ali?
Será que o soldado de cabelos raspados que lhe trazia comida estava
vivo? Será que se lembrava dele?
E enquanto chorava pensando que talvez as coisas finalmente
mudassem, as lágrimas geladas caíram sobre sua pele como gotas de chuva.
Sem ousar abrir os olhos, Benjamin se viu lá fora. Nos jardins de um
palácio que ele nem conseguia imaginar como se parecia, de braços abertos
para a tempestade que se derramava.
Tentou visualizar o céu acinzentado, as nuvens pesadas e tão baixas
que se esticasse os dedos o suficiente, talvez pudesse tocá-las.
E quanto mais o príncipe chorava, mais parecia chover.
Eu sei, eu sei. Você provavelmente tá me odiando nesse momento.
Eu entendo porque já estive nessa posição. E acredite: doeu eu mim
também.
Mas se você chegou até aqui sem ter um ataque dos nervos e sem
aparecer na minha porta com um chinelo na mão, deixo o meu mais sincero
OBRIGADA.
Por tudo.
Obrigada a você, leitor, que abraçou cada uma das minhas palavras
com carinho — e com um pouquinho de raiva.
Obrigada pra você que panfletou, que compartilhou e que surtou
comigo em cada passo dessa loucura que foi publicar A Herdeira do Caos.
Em especial Júnior, Larissa, Monique, Rochelle e Vitória, que fizeram um
mutirão surreal quando o projeto chegou em noventa porcento da meta —
que resultou em completar os últimos dez porcento em três dias. Três.
Malditos. Dias.
E obrigada — principalmente — para todos os apoiadores do
projeto no Catarse. Sem vocês, não haveria personagem morto e nem
personagem vivo, porque a história estaria guardada em uma gaveta só pra
mim.
Agradeço imensamente às minhas leitoras beta: Polyana, Bianca e
Nadja. Obrigada por todos os comentários que me fizeram gargalhar. O
processo de escrita não teria sido tão divertido sem vocês.
Poly, tu foi a primeira pessoa pra quem eu contei que estava
escrevendo um livro. E não houve UM SEGUNDO SEQUER em que tu
não esteve ali me dizendo que tava tudo indo muito bem (mesmo quando
não tava, não kkkkk).
Bia, minha primeira amiga no bookig: obrigada por todas as dicas e
conversas que tivemos sobre plot, sobre construção de personagens e por
todas as reclamações recíprocas sobre como é chato escrever personagem
masculino (não foi à toa que um dos poucos que eu criei... morreu).
Nadja... Eu não sei por onde começar a agradecer. Tu foi a maior
panfleteira de AHC desde o início, e já era uma grande inspiração pra mim
bem antes disso. Agradeço demais por termos criado uma amizade tão
incrível, mesmo que baseada em “ah, não, Ingrid!” e “é domingo, Ingrid,
não é dia de me fazer sofrer”.
Obrigada Mel, por todos os sprints de escrita que duraram horas,
mesmo quando estava muito difícil e eu odiava cada palavra do meu texto.
Escrever contigo até à 1h da manhã foi bom demais.
Naty, obrigada por ser a melhor mentora do mundo. Obrigada por
cada palavra de incentivo, e por mostrar que escrever bem é questão de
prática — e não uma iluminação divina que chega só pra algumas pessoas.
Obrigada por ensinar com tanta dedicação, sensibilidade e pó de fada.
Um obrigada mais do que especial pro Marcelo, por ter levado
comida (e vinho) pra mim no escritório todas as noites em que eu escrevi
até às 3h da manhã. Foram muitas. E também por todos os brainstorms que
a gente fez — o sistema de magia e as Sete não seriam nem de longe tão
consistentes se não fosse pelas tuas ideias. Vale ressaltar que, enquanto eu
escrevo isso aqui, tu tá gritando do meu lado jogando RPG, e tá bem difícil
pensar (e te elogiar). Mas eu te amo mesmo assim.
E por fim (e definitivamente não menos importante) obrigada aos
meus pais, por todos os livros infantis que vocês sempre me incentivaram a
ler — fossem sobre contos de fadas, fossem sobre dinossauros. Também por
me levarem nas feiras do livro, nas peças de teatro e nos museus. Eu já era
artista antes mesmo de ser, e isso é graças a vocês.
Como eu disse, não se publica um livro sozinho. E que bom que eu
tive uma rede de apoio foda como essa.
Obrigada. Obrigada. E obrigada.
Table of Contents
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Epílogo
Agradecimentos

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