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A Herdeira Do Caos (I.K. Prado)
A Herdeira Do Caos (I.K. Prado)
A Herdeira Do Caos (I.K. Prado)
K Prado
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra de qualquer meio
eletrônico, mecânico e processo xerográfico, sem a permissão da autora.
(Lei 9,610/98)
Esta é uma obra literária de ficção. Todos os nomes, lugares e
acontecimentos retratados aqui são fruto da imaginação da autora.
Capa: Alycia Carvalho
Revisão: Isadora Duarte
Mapa: Rebecca Mendes
Diagramação: C. Oliveira
Prado, I. K.
A herdeira do caos / I. K. Prado. -- 1. ed. -- Esteio, RS: Ed.
da Autora, 2022.
ISBN 978-65-00-41095-2
1. Ficção brasileira I. Título.
22-104031 CDD-B869.3
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção: Literatura brasileira B869.3
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
Para meu eu de treze anos.
Nós conseguimos.
Sumário:
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Epílogo
Agradecimentos
Quando ela se levantou, foi com uma sabedoria desolada
Andando com dificuldade no oceano escuro e inquieto
na altura de seu pescoço.
Banhada em sua derrota
Rezou para agradecer cada fenda na armadura
de que ela nunca soube que precisava.
Em pé, ombro a ombro ao seu lado
estava um amor que era realmente genuíno
não apenas a ideia de genuíno.
Quando se virou para ir para casa,
Ela ouviu os ecos de novas palavras:
‘Que seu coração seja capaz de se partir de novo
mas nunca duas vezes pela mesma mão’
E mais alto:
‘Sem seu passado
você nunca poderia ter chegado
tão maravilhosa e brutalmente,
de propósito ou por alguma exótica e violenta coincidência
... aqui.’”
(Taylor Swift)
As mãos de Benjamin foram manchadas com sangue muito antes do
que ele era capaz de se lembrar.
O destino do príncipe já havia sido escrito com o líquido viscoso e
fedido a ferrugem nas primeiras horas após seu nascimento, quando a vida
de sua mãe foi tomada pelos deuses para que ele viesse ao mundo.
E mesmo depois de tantos anos, o homem de cabelos prateados que
nunca conheceu o colo de sua genitora, ainda gostava de pensar que ela
tinha sido poupada. Que os deuses foram, na verdade, misericordiosos ao
livrá-la de uma vida de decepções e sofrimento — da dor ao ver no que o
filho mais novo se tornaria um dia.
Um monstro.
Seus dedos foram cobertos de sangue pela segunda vez aos doze
anos, no momento em que atravessou o peito de seu irmão mais velho com
uma espada e deixou-o para morrer entre as árvores do palácio. Ninguém
parecia entender como o príncipe tinha sido capaz de empunhá-la, e ele
nunca se preocupou em contar que vinha praticando escondido há meses.
Quando a morte o visitou uma terceira vez, as mãos do garoto
estavam limpas. Tinham sido o luto e a revolta os responsáveis por ceifar a
vida de seu pai. Mas Benjamin sabia que se procurasse com calma,
encontraria o rastro de sangue que apontava como uma seta diretamente
para ele.
E no instante em que seu genitor se juntou à esposa e ao filho
preferido, o caminho até a Coroa se abriu como o céu azul em um dia de
verão.
Ele tinha catorze anos, quando o coração do Grande Rei de Duhn,
seu avô, também parou de bater. E pela primeira vez, o príncipe nada tinha
a ver com isso. Não era de seu interesse que a Coroa chegasse até ele cedo
demais.
Mas aconteceu.
E Benjamin era muito jovem.
O garoto assistiu seu tio Oliver assumir a regência do trono em seu
lugar. E mesmo sabendo que não passavam de desculpas esfarrapadas, não
havia nada que ele pudesse fazer além de assentir nos momentos em que
diziam que era apenas por algum tempo.
O que ninguém sabia era que o príncipe já conhecia os olhares e os
cochichos. Convivia com eles desde o momento em que perdera sua mãe.
Aprendeu a ler os sinais de quando zombavam dele, de quando o
subestimavam.
A Coroa jamais tocaria seus cabelos prateados se Benjamin não a
pegasse com as próprias mãos. E depois de tanto tempo, quantidade alguma
de sangue parecia sangue demais.
Ele tinha trinta e dois anos agora.
E era uma pessoa completamente diferente do garoto que se deixou
ser passado para trás, do garoto que se manteve em silêncio enquanto
roubavam o que era seu por direito.
Benjamin era melhor do que aquele garoto.
Benjamin era pior.
Ele desapareceu por tempo o suficiente para que todos acreditassem
que tinha desistido, e Oliver parecia ter realmente se esquecido do sobrinho.
Exibia a Coroa sobre sua cabeça como se lhe pertencesse, como se não
tivesse se aproveitado da pouca idade do garoto para conseguir aquilo que
sempre sonhou.
Mas o príncipe não esqueceu.
Dezessete anos haviam se passado desde o dia em que Benjamin
deixou o castelo para trás, e seu caminho até o trono estava prestes a se
abrir outra vez.
Faltava apenas varrer algumas impurezas para debaixo do tapete
primeiro.
Como seu tio.
E a garota.
PARTE I:
O sol já passava de seu ponto mais alto, avisando que o horário para
o almoço chegara.
As duas garotas ocuparam sua manhã distribuindo flores para
qualquer pessoa que caminhasse em frente à loja.
Grande parte delas respondia de forma exagerada ao gesto,
agradecendo infinitas vezes pela bondade de Vossa Alteza e desejando que a
vida fosse sempre generosa com ela como ela era com seu povo.
Não era como se Anya desprezasse a atenção. Ela até gostava, se
fosse honesta consigo mesma. Mas se tornava cansativo depois de um
tempo.
Sempre havia olhos sobre ela e isso lhe dava a sensação de que
todas as suas ações eram feitas na intenção de parecerem genuínas, e não
por serem genuínas de fato. Ninguém dava a impressão de duvidar dela,
claro. Mas o sentimento em seu peito permanecia.
Quando se é colocada no topo de um pedestal, todos conseguem ver
o momento em que você cai.
Anya já tinha caído uma vez. E não foi bonito.
Farah e ela encostavam a porta de metal da floricultura no momento
em que, não muito além da esquina, uma movimentação estranha começou
a se desenrolar.
Os mercadores em torno pareceram perceber também, saindo de
suas lojas e se amontoando na calçada para descobrir o que acontecia. Em
alguns segundos, ela estava tão cheia que Anya, mesmo com seus 1,75m de
altura, mal conseguia enxergar poucos metros à frente de si.
— Bruxaria! — gritou uma mulher de repente, bem no centro da
multidão.
Demorou alguns instantes até que a princesa conseguisse encontrá-
la, e reconheceu a senhora de estatura baixa e cabelos grisalhos. Era a dona
da loja de produtos de beleza onde Faen conseguia seus sabonetes de canela
preferidos.
A mulher empurrou a garota alvo de seu desespero, fazendo com
que ela caísse de joelhos sobre as pedras bem no meio da rua.
Cada vez mais gente se reunia ali, ainda sem entenderem muito bem
a cena que se desenrolava diante de seus olhos curiosos.
— Ela estava usando magia! — A mulher apontou com o dedo as
feições desenhadas em uma mistura de pavor e repulsa.
Com estas palavras, a multidão arfou.
Todos sabiam o que isso significava.
Traidora, alguns gritaram.
Inimiga da Coroa, completaram outros.
Chamem os soldados!
O corpo inteiro de Anya paralisou diante daquelas palavras, e Farah
entrelaçou devagar seus dedos nos dela. Os músculos da princesa decidiram
que não mais responderiam e se recusaram a se mover, mesmo que tudo o
que ela mais desejasse naquele momento fosse correr para longe dali.
Pediu silenciosamente aos deuses que os soldados chegassem logo,
que a vissem naquele canto e a levassem para casa. Amaldiçoou-se por ter
dispensado Isaac, por não ter avisado nenhum dos outros homens da guarda
que estava no Mercado.
As pessoas começaram a atirar coisas na jovem ainda caída, com
medo de se aproximarem demais, enquanto ela berrava e arremessava tudo
de volta.
Estava fora de si. Gritava palavras que ninguém entendia e seu rosto
se contorcia em espasmos de fúria.
Era nisso que a magia transformava um ser humano.
Numa criatura descontrolada e ameaçadora, sem qualquer controle
sobre suas ações.
Num monstro.
Anya conseguia ver a senhora lutando contra o próprio instinto de
correr quando se aproximou da garota e segurou-a pelos cabelos cor de
areia. Puxando-a para cima, colocou a conjuradora outra vez de pé, e ela
soltou um gemido de dor.
O som baixo e rouco saiu mais parecido com o ganido de um
animal, contrastando com as lágrimas que escorriam pelo rosto dela.
Anya apertou a mão de Farah no momento em que a conjuradora
levou as suas próprias até a mulher, debatendo-se e arranhando numa
tentativa de se soltar.
— Precisamos voltar para dentro da loja — a princesa sussurrou,
sem ter certeza de onde havia tirado a própria voz.
Sua amiga parecia ainda mais assustada que ela, com a testa
franzida em uma expressão de tristeza e cada parte do corpo chacoalhando
pelos tremores de medo.
Os gritos da multidão se tornaram mais intensos e a princesa
percebeu que a garota havia desistido de fugir. Ela encarava fixamente as
próprias mãos, curvando os dedos em garras invisíveis.
Um cheiro adocicado e enjoativo serpenteou pelo Mercado, trazendo
consigo uma ventania forte demais para ser natural. A senhora arregalou os
olhos diante do aroma — empurrando a jovem com toda a sua força para
que a surpresa a fizesse parar.
— Me ajudem a segurá-la! — berrou a mulher. — Não deixem que
ela use seus poderes!
O corpo de Anya por fim respondeu aos seus comandos, e ela puxou
Farah pelo braço enquanto tateava cegamente com a outra mão pela
maçaneta de metal na porta da floricultura.
Ao se jogarem para dentro da loja, a princesa ainda teve tempo de
ver os soldados se aproximando. Teve tempo de ver dois deles agarrando a
garota pelos braços conforme um terceiro colocava uma venda sobre seu
rosto, impedindo-a de se guiar pelos sentidos. Teve tempo de vê-la ser
jogada em uma carroça com pequenas janelas gradeadas, presa aos cavalos.
E antes que a porta se fechasse por completo, Anya viu os cortes nos
joelhos, o sangue escorrendo pela pele clara, os cabelos grudados na testa
pelo suor ou pelas lágrimas.
E então, suas próprias pernas desabaram no piso frio da floricultura.
Farah não dissera uma palavra sequer desde que a confusão toda
começara, e desapareceu loja adentro antes que a princesa tivesse a chance
de perguntar-lhe qualquer coisa.
Uma conjuradora.
Na região mais movimentada do reino.
O corpo inteiro de Anya tremia enquanto ela se dava conta do que
acabara de presenciar.
Magia havia sido proibida em Duhn há mais de quatrocentos anos,
quando um clã de bruxas que vivia dentro dos limites do reino se recusou a
baixar a cabeça para a autoridade de Tamal Dahnasa, o Grande Rei na
época. Elas atearam fogo no que, um dia, fora o palácio que pertencera à
realeza — transformando em cinzas cada ser vivo lá dentro. Inclusive a si
mesmas.
Assim como Tamal.
A princesa sabia que havia desertores, é claro.
Conjuradores que se negavam a acatar a lei e realizavam seus rituais
de iniciação às escondidas. Que traziam a magia para dentro de si ainda que
isso fosse contra não somente as regras do reino, mas como as regras do
mundo.
Existia um motivo para humanos não nascerem assim.
Conan já tinha capturado alguns deles, mas quando as histórias
vinham de sua boca, ainda pareciam... distantes. Ela jamais imaginou que
presenciaria algo assim, tampouco que aquelas pessoas se escondessem tão
ao alcance dos olhos de todos.
A ideia de outros como aquela garota, tão comuns, tão bem
disfarçados, circulando entre seu povo deixou-a enjoada.
Farah reapareceu pela porta dos fundos trazendo um copo de água
entre os dedos finos. Ela ainda parecia transtornada, sua pele havia perdido
o brilho e sua boca não passava de uma linha fina.
— O que acha que vão fazer com ela? — sussurrou, sentando-se ao
lado da princesa.
— Conan me disse que traidores são interrogados por horas, para a
guarda real ter certeza de que eles não estão acobertando mais ninguém —
Anya respondeu, pegando com as mãos trêmulas o copo que sua amiga lhe
oferecia. — Ele nunca quis me contar o que acontece depois, mas jamais
ouvi sobre ninguém sendo libertado.
Farah não disse mais nada, apenas escorou-se contra a porta gelada,
encarando a floricultura envolta em penumbra. A princesa olhou de soslaio
para a amiga e viu que lágrimas escorriam incessantes por seu rosto. Ela a
abraçou forte e as duas ficaram ali no chão pelo que poderiam ter sido
poucos minutos ou uma infinidade de horas, até que seus corpos parassem
de tremer.
Nenhuma outra flor seria distribuída naquele dia.
As sombras das árvores já se espichavam para longe quando Anya
foi ao encontro de Morg.
Ela esperou até que não houvesse qualquer sinal daquela confusão
toda para se despedir de Farah. Esperou até que os guardas voltassem para
suas posições originais e os mercadores recomeçassem seus afazeres,
mergulhando Wellin novamente em sons que envolviam ofertas,
negociações e cascos de cavalo.
Ainda assim, enquanto caminhava até a ponte de tijolinhos,
conseguia sentir a tensão e os sussurros entre os comerciantes e
compradores. Era quase tão palpável quanto sua própria pele.
Desenhou um sorriso em seu rosto para cara murmúrio de “Vossa
Alteza”, acenou para cada reverência e cumprimentou os soldados que
encontrou pelo caminho — um deles se juntando a ela em seu trajeto até
Morg.
— Comportou-se bem, dona Morgana? — sussurrou para a égua,
assim que a alcançou sob o salgueiro.
O animal estava esparramado na sombra da imensa árvore, a grama
ao seu redor apresentando vários pontos falhos dos quais ele havia usado
para se alimentar.
— É um belo cavalo — comentou o soldado.
— E uma tremenda folgada — brincou a garota, afagando o focinho
de Morg, que já se pusera de pé e sapateava no lugar, apressando a princesa
para montá-la.
Ela esperou até que o rapaz subisse em seu próprio animal e
partiram juntos de volta para castelo.
Não havia muito para se ver no caminho, apenas algumas casas de
mercadores que preferiam separar suas residências de seus armazéns e...
pinheiros.
Uma infinidade deles, costeando a estrada larga e de terra vermelha
que levava até os limites do castelo. A brisa fresca da manhã havia sido
substituída pelo clima abafado do meio de tarde e ela sentia o suor
escorrendo por sua nuca, mais arrependida do que nunca por manter os
cabelos soltos — as pequenas tranças já contavam com uma infinidade de
fios soltos, de tanto passar as mãos para afastá-las do ombro.
Seu vestido estava arruinado quando chegou aos portões prateados.
A barra se arrastara pelas pedras da cidade, a saia estava marcada pelas
celas e coberta de gravetos que se prenderam aos pelos de Morg ao longo
do dia.
Faen teria um desmaio assim que visse tal absurdo. Anya repetira
vezes e mais vezes o quanto preferia vestes que não tocavam o chão, mas
elas perdem toda a sua elegância e Vossa Alteza não tem mais sete anos de
idade, a camareira respondia.
As palavras soavam ainda mais engraçadas vindas de uma garota
que, provavelmente, tivera sete anos ao mesmo tempo que ela.
A princesa desmontou da cela, espanando o vestido como se seus
dedos pudesses mandar para longe as manchas de sujeira, e cumprimentou
os soldados que abriram os portões para ela.
Com Morg acompanhando-a fielmente lado a lado, apreciou os
jardins que se estendiam pelo caminho. A primavera dava os primeiros
sinais de sua chegada, desabrochando suas cores por todas as direções.
Heras entrelaçavam-se pela estrutura do castelo, escalando as
pilastras de pedra e pintando de verde as paredes em tons salmão. Elas se
enroscavam nas estátuas de jovens mulheres que decoravam o gramado e
subiam pelos corrimãos que ladeavam a escadaria.
O caminho de terra contornava por ambos os lados a imensa fonte
de pedra cinzenta que repousava a poucos metros da entrada do palácio, e
alguns respingos de água resfriaram a pele quente pelo sol da princesa.
Ela acenou cordialmente para Conan quando ele se aproximou para
levar sua égua até os estábulos, desejando poder envolvê-lo em um abraço e
contar a cena de horror que presenciara no Mercado.
Não o faria, é claro.
Ao invés disso, entregou-lhe Morg e se afastou, fingindo que as
atrocidades que marcavam o passado de seu reino não estiveram tão
próximas dela que, ao esticar de um braço, poderiam tê-la segurado pelos
tornozelos.
Balançou a cabeça conforme adentrava pela imensa porta de
madeira, afastando aqueles pensamentos e seguindo em direção a ala Oeste
— parte do castelo que acomodava camareiras, cozinheiras e demais
criadas.
Não conteve um sorriso ao ouvir os sons vindos da cozinha,
espreitando-se pela confusão de louças, cantorias e conversas. Adorava o
clima daquela parte do palácio, e cumprimentou cada uma das mulheres que
ali se encontravam.
Não queria estar por perto quando Faen descobrisse o estrago em
seu vestido, mas estava com tanta fome que nem mesmo isso a impediria de
esperar por um sanduíche. Toda aquela confusão impossibilitou que ela e
Farah saíssem para o almoço e estava faminta.
Enquanto aguardava pelo lanche, pediu a uma das criadas que lhe
preparasse o quarto de banho, então o cômodo já estava morno e cheirando
a ervas ao chegar até ele.
O vapor que se erguia da banheira dizia que a água estava mais
quente que o habitual, exatamente como havia pedido. Precisava focar seus
pensamentos em alguma coisa real para que se acalmasse, e a ardência em
sua pele costumava funcionar.
A imensa janela de vidro que ocupava a parede oposta da sala de
banho tinha vista para os fundos do castelo e a banheira era tão grande que
acomodaria com facilidade três pessoas — não que ela tivesse testado.
Anya deixou seu vestido escorregar por seu corpo, tomando cuidado
de mantê-lo longe das velas com aroma de canela que estavam acesas na
superfície de madeira.
Entrou devagar, voltando toda a sua atenção para a água aquecendo
seu corpo pedaço por pedaço, até cobri-la na altura dos seios. Desfez
devagar o que sobrou de suas tranças na lateral de seu cabelo, passando os
dedos por entre os fios e tirando os nós.
Deixou o restante de seu corpo escorregar pela água, até que lhe
tocasse o queixo e fechou os olhos.
Tentou acalmar seus pensamentos, afastar de sua mente os olhares
de medo nos rostos de seu povo ao descobrir uma conjuradora entre eles.
Não seria capaz de dizer quanto tempo ficou ali, mas quando abriu
os olhos outra vez, sua pele avermelhada voltara para o tom natural e seu
banho esfriara por completo.
Franziu o cenho para o entardecer que começava a cobrir os jardins
com noite, frustrada pelo tempo que passava rápido demais. Isso sempre a
incomodou mais do que qualquer outra coisa. A forma com que os minutos
se comportavam como segundos justamente nos momentos em que mais
precisava de paz. Sua quietude durava instantes, e as situações complicadas
pareciam se estender por horas.
Escorregou mais pela água, até que cobrisse seu rosto e molhasse os
cabelos por completo. Voltou à superfície e começou a se lavar.
Ameaçá-los tinha sido uma jogada arriscada, Anya sabia disso. Mas
conforme descia as escadas, percebeu como a curandeira se esforçava em
parecer despreocupada.
Por algum motivo que ela ainda não descobrira, precisavam dela ali.
E não teriam feito todo aquele esforço para trazê-la e curá-la se tivessem a
intenção de machucá-la outra vez.
Ao menos, era o que esperava.
Ela certificou-se de estampar um sorriso tímido quando pisou na
varanda. Uma lufada morna atingiu sua pele trazendo um aroma forte de
cascas e cedro, e a primeira coisa que viu foi...
Verde.
Muito verde.
O gramado cintilava pela luz do sol e as raízes se entrelaçavam nas
paredes das centenas de casas de madeira. Galhos cheios de folhas
serpenteavam sobre os telhados, e alguns até floresciam.
Havenmill era uma floresta subterrânea. Imponentes árvores
erguiam-se e se enrolavam umas nas outras, formando arcos sobre as
estreitas estradinhas de terra que se abriam para todos os lados.
A primavera também chegara lá embaixo. Um mar de flores
coloridas que Anya nem ao menos conhecia traçava desenhos pela grama,
dançando preguiçosamente ao som da melodia do vento.
A curandeira indicou com o ombro um caminho de terra que seguia
pela esquerda do chalé e Anya não protestou.
Pássaros voavam baixo e pousavam na grama, ciscando e saltitando
pelo gramado alto, parecendo pouco se importarem com a proximidade que
mantinham com os humanos. Estavam acostumados com o contato,
percebeu. Não viam motivo para temer.
Crianças corriam e saltavam sobre as raízes, segurando-se umas nas
outras e formando uma longa corrente. Riam, gritavam e cantavam as
mesmas canções que ela há anos não ouvia.
E foi um choque para a princesa perceber que, até aquele momento,
ela nunca havia dado um rosto para os conjuradores.
Nunca os tinha imaginado como pessoas, como famílias, crianças
que gargalhavam e sabiam as mesmas melodias infantis que ela.
— Não conheço você — disse uma garotinha de rosto coberto de
terra nos limites da estrada em que as duas seguiam.
Tinha parado de correr e, quando o fez, todas as outras a
acompanharam. Ficaram ali, encarando a princesa com olhares
desconfiados.
E antes que Anya pudesse dizer qualquer coisa, Silja abaixou-se,
ficando na mesma altura delas.
— Sofia, essa aqui é a Anya. Anya, essa aqui é a Sofia. — A
curandeira apontou de uma para a outra, e então deu de ombros. — Agora
vocês se conhecem.
— E o que ela faz aqui? — questionou mais uma vez, seus pequenos
olhinhos castanhos passando por cada pedaço da princesa.
— Está apenas conhecendo Havenmill. — Silja abaixou sua voz até
que não passasse de um sussurro quando continuou: — Você sabia que ela é
uma princesa?
Sofia arregalou tanto os olhos que os cílios poderiam tocar sua testa.
— Uma princesa de verdade? Como nas histórias?
— Aham! — A curandeira acenou. — Mas, ao contrário dos livros,
Anya não conhecia uma cidade encantada, por isso eu a trouxe pra cá.
Cidade encantada.
Um jeito curioso de se referir à Havenmill, considerando tudo o que
ela abrigava, mas foi o suficiente para que a criança abrisse um sorriso.
— É um prazer conhecê-la, Princesa Anya. — Ela puxou as duas
pontas do vestido azul que usava e saiu correndo outra vez, antes que a
princesa pudesse dizer... bom, qualquer coisa.
Sofia não a conhecia.
Não sabia quem ela era, e tampouco parecia saber que princesas
existiam fora dos livros. A possibilidade foi um choque.
— As coisas são um pouco diferentes aqui embaixo — Silja
explicou, percebendo sua reação.
— Diferentes? A menina nem sabia que princesas existiam —
resmungou.
— Parecia a coisa certa a se fazer. Não dar detalhes demais sobre o
mundo, quero dizer.
— As pessoas ao menos sabem que há um Rei?
— Claro que sabem. — A curandeira franziu o cenho, então voltou
a andar pela estrada de terra. — Os adultos, pelo menos. Todos sabem que
existe um mundo lá fora e que ele não é bom com pessoas como nós. Então,
falar sobre ele com as crianças é algo que fica pra depois, quando já são
grandes o suficiente para entender.
Pessoas como nós.
Silja falava como se não estivessem quebrando leis, traindo seu
reino e seu Rei.
— Vocês perderam a fé — ela constatou. Mais para si mesma do que
para a garota ao seu lado.
A curandeira estacou seus passos mais uma vez.
— Nós perdemos...? O quê?
— Vocês não acreditam mais. — Ela ajeitou as costas
desconfortável — Lá fora, as pessoas acreditam na Coroa. Não no Rei ou
nos conselheiros, mas na instituição. Se agirmos dentro de suas regras,
nunca nos falta nada. Talvez este seja o problema aqui.
— A Coroa falhou com a gente. — a garota rebateu — Não me leve
a mal, mas como eu poderia ter fé em algo que diz que minha existência é
errada?
— Não é assim que...
— Lá fora eu só conheci a dor. Acolhimento eu só encontrei aqui
embaixo.
Um mundo completamente diferente se escondia no subsolo de
Duhn. Alguma versão deturpada da história que ela já conhecia. E não
conseguia deixar de pensar que aquelas pessoas ali, isoladas do resto do
mundo, eram consequência da falta de todos os fatos.
Não era culpa deles.
Então, perguntou:
— E existe algo em que vocês acreditam?
Silja riu de forma seca e voltou a andar.
— Você não faz ideia.
Anya queria fazer mais perguntas, mas temia que elas soassem
interessadas demais. Não queria que a curandeira pensasse que ela estava
cedendo.
Porque não estava.
Eles precisariam de mais do que algumas crianças para convencê-la
de que havia algo bom ali.
Elas seguiram pela estrada ladeada por casinhas coloridas.
Suas varandas exibiam placas e informações sobre produtos: o
comércio de Havenmill. Sua estrutura lembrava um pouco a Aldeia dos
Pescadores, um vilarejo que ficava do outro lado do rio — no qual o rei
nunca havia permitido que a princesa pisasse. Talvez a cidade subterrânea
ficasse próxima daquelas terras...
Havia casas empoleiradas em galhos grossos de árvores, em todos
os tamanhos possíveis.
Um regato enevoado fazia seu caminho por entre a vegetação, sem
se importar em cruzar jardins, estradas ou até mesmo desaparecer sob
algumas residências.
Silja lançou-lhe um olhar travesso.
— Vai precisar erguer seu vestido. — Ela piscou, tirando os
mocassim de veludo e dando alguns passos para trás.
— Você não está sugerindo que eu...
Mas a curandeira já corria em direção à água, saltando segundos
antes de tocar a borda e deixando um gritinho animado escapar de seus
lábios. Ela pousou graciosamente do outro lado, abrindo um sorriso ao
dizer:
— Vem!
Anya encarou-a sem acreditar.
— De forma alguma.
— Ah, Princesa... Você prometeu que iria tentar.
Inacreditável.
— Você é maluca.
— Temos de seguir por este caminho — Silja insistiu — Você só
precisa pular, não é tão difícil quanto parece.
A princesa bufou.
Por todos os deuses, aquilo precisava valer à pena.
Ela encarou o regato com, pelo menos, um metro de largura, e
depois passou os olhos para seu vestido que quase tocava o chão. Puxou a
barra de sua saia e correu, antes que tivesse tempo para mudar de ideia.
Anya saltou quando seus pés já quase tocavam a água, garantindo
que sua aterrisagem acontecesse sobre a grama. Alguns fios escaparam de
sua trança, fazendo cócegas em suas bochechas que esquentavam de
constrangimento.
Silja a aguardava com um sorriso largo. A princesa o ignorou.
— Da próxima vez — a curandeira cochichou —, eu levo você pela
ponte.
Mais uma vez: inacreditável.
Então, ela percebeu o burburinho. As pessoas que a olhavam de
longe em suas varandas e lojas.
Havia reconhecimento em seus rostos. Reconhecimento e... medo.
Medo dela.
— Ninguém parece saber que vocês me trariam para cá.
— Não — Silja confirmou, apertando os próprios dedos enquanto
passava por cima de uma raiz alta demais. — As pessoas aqui se envolvem
o mínimo possível com as questões lá de fora. Temos o nosso próprio
Conselho, que é o mais perto de uma figura de autoridade que possuímos, e
eles confiam que nosso conselho seja capaz de resolver qualquer problema
envolvendo o que acontece além dos limites de Havenmill.
A garota estendeu-lhe a mão, para ajudá-la a cruzar a raiz também.
Após alguns segundos, ela aceitou. A raiz era alta e Anya precisou sentar-se
em cima dela para passar as pernas para o outro lado.
— Vocês nunca saem daqui?
— Não. Bom, alguns saem quando precisam de algo que não
conseguimos cultivar aqui embaixo. Não temos acesso a certos alimentos
ou remédios, e curandeiros só podem ajudar até certo ponto. — Ela deu de
ombros.
— Como assim cultivar?
— Você vai ver. É para onde estamos indo agora.
Anya resistiu ao impulso de revirar os olhos.
Para alguém que estava tentando convencê-la de algo, a curandeira
fazia suspense demais.
Elas caminharam em silêncio por mais algum tempo, enquanto a
princesa absorvia cada pedaço daquele lugar.
Era como ir parar em um universo paralelo. Eles tinham seu próprio
mundo, suas próprias regras e até seu próprio... governo. Mesmo que não
houvesse magia, aquilo por si só já era uma espécie de traição.
Anya pegou-se pensando no que faria quando finalmente saísse de
Havenmill. Ela os entregaria para o pai? Duvidava que ele fosse
compreensivo com o assunto. No entanto, a princesa não sabia se
conseguiria conviver consigo mesma se desse aquela informação ao Rei e
ele ordenasse que o lugar fosse invadido. Eram conjuradores, sim, mas
havia crianças ali. Pais, mães, famílias inteiras.
Talvez fosse melhor fazer algum tipo de acordo com eles. Pedir que
nunca deixassem a cidade em troca de seu silêncio sobre o assunto.
Se é que era capaz de esconder algo daquela magnitude.
— Então, apenas o seu Conselho sabia que eu seria trazia para cá?
— Anya questionou.
— É — a curandeira concordou. — O Conselho e eu.
— Você não faz parte dele?
Silja negou com a cabeça.
— Sou nova demais, dizem. — Seu tom dizia que ela achava isso
ridículo. — Mas como Alexzander faz parte, acabo sabendo de tudo o que
acontece por lá.
A menção ao nome do rapaz fez um calafrio percorrer seu corpo.
Manter seu personagem talvez fosse mais difícil na presença do homem que
a tinha sequestrado.
— Quantos anos você tem? — Disfarçou.
— Dezenove — Silja fez uma careta —, mas sabe como é, todos
adoram decidir por você o que você é ou não capaz de fazer.
Isso tirou uma risada da princesa.
Sabia muito bem como aquelas palavras eram verdadeiras.
Havia algo em comum entre ela e a curandeira afinal.
Não.
Não havia.
Anya desviou o olhar rapidamente, acompanhando o caminho que a
vegetação fazia até o alto. Estacou seus passos, observando o emaranhado
de galhos e folhas que sustentavam o reino inteiro sobre suas cabeças.
— Como a luz chega aqui embaixo? — viu-se perguntando. —
Quero dizer, é como se vocês tivessem seu próprio sol.
Uma gargalhada que ela não entendeu muito bem saiu da garota.
— Magia.
Claro que sim.
Mas não deixou de perceber que, apesar de cada pedaço de terra ser
tocado pela claridade, o cheiro doce não fazia parte do lugar.
Um instante mais tarde, Silja saiu andando na sua frente e começou
a gritar.
— Seu miserável desprezível e estúpido! — berrou ela.
O coração de Anya se acelerou, e ela correu os olhos para todos os
lados, buscando por qualquer que fosse o motivo da agitação.
Involuntariamente, afastou um pouco as pernas e tensionou as
costas, pronta para... bem, ela não sabia ao certo.
Mas a curandeira já estava muitos passos à frente, arremessando
cascalhos e pedrinhas na figura que se aproximava.
A princesa reconheceu os olhos azuis. Mesmo no breu da floresta
eles se pareciam com o oceano. Mas ela não lembrava dos cabelos
castanhos. Nem de como eles caíam em ondas sobre o olho direito do rapaz
e desciam até o queixo. Tampouco do nariz levemente torto.
O maxilar quadrado era igual ao de Silja.
Alexzander era, com certeza, dez anos mais velho que a irmã, mas
eram tão parecidos que se passariam por gêmeos se você olhasse rápido
demais.
— Você quase estragou tudo! — a curandeira gritou.
O rapaz protegia o rosto com as mãos, e seu suspensório marrom
preso às calças de mesma cor caíam de seus ombros.
— Pare com isso! — ele gritou de volta, mas não parecia tão bravo
quanto gostaria de aparentar.
E quando a garota perdeu segundos preciosos buscando por novos
objetos para atirar, ele correu até ela e envolveu-a em um abraço por trás,
prendendo seus braços e revirando os olhos enquanto Silja se debatia e
chutava o ar. Ele era bem mais alto que ela.
Mais forte também.
A curandeira olhou por cima do ombro, com a testa franzida para o
irmão, mas parou de se mexer. Alexander lentamente afrouxou o aperto.
— Palavras, Silja. Use palavras, não as mãos — o rapaz repreendeu.
— E por que não usou palavras ontem à noite? — ela rebateu. —
Lobos, Alexzander. Lobos! Eu não sei como você conseguiu sobreviver à
fúria da Delilah, mas da minha você não vai!
Anya apenas observava a cena se desenrolar diante dela, sem ter
certeza se interferia ou apenas deixava os dois se estapeando. Será que isso
era ter irmãos?
E só então o rapaz pareceu perceber sua presença, arregalando os
olhos e cobrindo em rubor sua pele marrom.
— Princesa. — Ele fez uma reverência exagerada.
Ela semicerrou os olhos, analisando Alexzander. Ele já não parecia
mais tão ameaçador, e manteve os olhos nos próprios pés, como se
aguardasse que ela lhe desse permissão para erguê-los.
Silja deixou escapar um riso e então apertou os lábios em uma linha
fina, apontando com o queixo na direção dele, pedindo silenciosamente que
ela dissesse alguma coisa.
Ela não queria, mas sabia que precisava. Sabia que a curandeira não
era a única que precisaria confiar nela para que seu plano desse certo.
— Espero que tenha consciência do que fez — Anya falou,
encarando-o com a expressão séria.
Alexzander ergueu os olhos para responder.
— Tenho, Vossa Alteza. Eu realmente não sei como começar a me
desculpar, eu...
— Tem sorte que sua irmã se comunica melhor do que você — ela
interrompeu, e ignorou o sorriso que Silja abriu. — E repito o que eu disse
para ela. Não confio em vocês, mas vejo que talvez precisemos trabalhar
juntos. Faça valer a pena.
E talvez — apenas talvez — Anya tivesse exagerado em seu tom,
falando mais firme do que de costume.
— Gosto dela — Silja comentou.
A princesa não respondeu.
Alexzander se manteve em silêncio, caminhando alguns passos atrás
das duas garotas.
Sua irmã estava mostrando a cidade para a princesa mas, apesar da
conversa descontraída, ele a conhecia bem demais para acreditar na
tranquilidade que ela tentava demonstrar.
Ele percebia a tensão em seus ombros e como Silja apertava os
dedos entre as mãos — gesto que sempre fazia quando estava nervosa.
Como lançava olhares de soslaio constantes para o rosto da princesa
parecendo sempre buscar por sua aprovação.
O que quer que as duas tivessem conversado sozinhas, a estava
preocupando.
E Alexzander não a culpava por isso. Sabia o que estava em jogo. O
quão importante era fazer a princesa gostar dali.
Tinham trazido um deles para sua cidade. Para o lugar que os
manteve escondidos e seguros por séculos. Fora um movimento arriscado,
mas estavam todos tão exaustos daquilo!
De fugir. De se esconder.
Ele sentia falta do sol e de como sua magia se comportava melhor
quando estava na presença dele. Sabia que Verena dava o seu máximo para
transformar Havenmill no melhor lugar para eles, mas mesmo ela estava
ficando cansada.
E se uma das Deusas perdesse suas forças...
Balançou a cabeça.
Não deveria estar pensando nisso. Já estavam agindo para
solucionar aquele problema.
Alexzander podia sentir o desagrado da princesa com sua presença,
assim como podia sentir que ela se esforçava para disfarçar isso. Ele a tinha
assustado demais. Silja não estava tão errada ao chamá-lo de... quais foram
as palavras que usara mesmo?
Ah, sim.
Miserável desprezível e estúpido.
Ele apenas as estava acompanhando pois sua irmã levava a princesa
em direção às plantações, e era para onde ele mesmo se dirigia quando as
encontrou.
Já devia estar lá há bastante tempo, mas precisou usar sua manhã
inteira para tentar convencer o Conselho de que, apesar dos erros da noite
passada, ele ainda merecia respirar.
Não tinha sido uma tarefa fácil.
Delilah ameaçara arrancar seus miolos e Jett, pai dela, completou
dizendo que o faria pelo seu nariz. Criaturas fantásticas aqueles dois.
Mas agora, tinha muito trabalho a fazer. Então, acompanhou as
duas, observando discretamente a princesa que dava o seu melhor para
evitá-lo.
Sua pele recuperara o tom corado que havia lhe abandonado depois
de tudo o que aconteceu, e o vestido delicado desenhava as curvas de seu
quadril que desc... Ele ergueu o olhar, erubescendo.
— Então — ele ouviu a princesa dizer —, vocês plantam o que
consomem aqui embaixo?
Havia surpresa em sua voz, e ele compreendia. Qualquer um que
não estivesse acostumado com a magia teria a mesma reação.
— Isso — confirmou Silja. — Plantamos nossos legumes, verduras,
frutas, grãos... Você se surpreenderia com a quantidade de coisas que
podemos fazer quando não existem limites de território.
Era verdade. Ainda que respeitassem as fronteiras de Duhn, sendo o
único povo vivendo no subsolo, podiam usar o espaço que quisessem.
— E o que vocês não usam é levado para a Aldeia dos Pescadores
— Sua Alteza completou.
Não era bem uma pergunta, mas Alexzander se intrometeu mesmo
assim.
— Aquela região não tem as melhores terras para plantio, então
aproveitamos do espaço que temos aqui e levamos até eles.
A princesa olhou por cima do ombro, assentindo sem dizer nada. O
rapaz estava pronto para continuar falando quando atravessaram os grandes
portões da entrada das plantações.
A garota soltou o ar com força quando o viu.
Alexzander entendia.
Mesmo ele ainda se surpreendia com a força da magia em
Havenmill.
Centenas de metros se estendiam e se dividiam em zonas de
diferentes categorias. Vegetais, árvores frutíferas, plantas medicinais para as
curandeiras produzirem seus elixires... A magia permitia que o solo se
adaptasse às necessidades de cada planta ali.
— É bonito, né — Silja comentou, analisando a princesa pelo canto
dos olhos.
Mas a garota se recuperou do choque com rapidez, reassumindo sua
postura indiferente.
— Definitivamente, não é o que eu esperava — respondeu ela.
Como se estivesse aproveitando a deixa, Theo, um dos
Elementaristas que trabalhava com ele, surgiu de um dos depósitos de
armazenamento esfregando as mãos nas roupas para limpá-las enquanto
chamava por sua irmã.
— A carroça está abastecida! — gritou, já sumindo de vista outra
vez.
Abastecida? Mas não era dia de entrega... Vendo o olhar
questionador do irmão, Silja virou-se para ele.
— Pedi a Gerry que me trouxesse algumas coisas de Wellin, então
vou aproveitar e adiantar as entregas dessa semana.
Ah.
— E quando foi, exatamente, que você pediu isso a ele?
Gerry era o namorado de sua irmã. Um pescador simpático que
vivia na Aldeia e que recebia as entregas de vegetais em troca de alguns...
beijos. Alexzander fez uma careta.
— Na entrega da semana passada? — Silja desviou o olhar.
— Você tem ido a Ediri sem avisar o Conselho? — ele repreendeu.
A garota levou as duas mãos a cintura e olhou-o com desdém.
— Deviam ter pensado nisso antes de proibi-lo de vir até
Havenmill.
Ele não contra-argumentou.
O Conselho não permitia a entrada de ninguém que não possuísse
magia — até trazerem a princesa, pelo menos —, tampouco permitia que
visitas externas acontecessem sem que houvesse um motivo importante para
isso.
Mas Gerry era um cara legal, tratava bem sua irmã e era...
simpatizante em relação à magia — embora nunca tenha aceitado as ofertas
de Silja para que ele a recebesse também.
Alexzander achava uma pena que os encontros dos dois fossem tão
limitados, mas entendia a importância de se manter um controle em relação
às saídas para o lado de fora.
— Bom, tenho que ir — a curandeira prosseguiu. — Comporte-se
ou eu arranco os olhos azuis desse seu rostinho bonito.
— Posso ir com você, se quiser — a princesa ofereceu.
Silja negou com a cabeça.
— Não dessa vez, Princesa. — Ela corou. — Gerry e eu temos
algumas coisas... particulares para tratar.
— Com “particulares”, ela quer dizer “sem roupa” — Alexzander
provocou.
Silja jogou os braços para o alto, sem acreditar que ele havia dito
aquilo na frente da princesa.
Princesa esta que pareceu desapontada com a negativa. Desapontada
demais. Talvez ela não quisesse ficar sozinha com ele.
Sua irmã revirou os olhos e se despediu da princesa.
— Estarei no chalé para o jantar. Você tem permissão para se vingar
dele pelo que ele fez ontem. Apenas, por favor, deixe-o vivo. É ele quem
faz faxina na casa.
E antes que a garota pudesse responder, Silja já corria em direção ao
depósito de onde Theo a tinha chamado.
— Princesa, eu... — ele começou, pretendendo se desculpar mais
uma vez.
— Me chame de Anya, por favor. — Ela franziu o cenho. — E eu
sei. Você sente muito e tudo o mais.
— Era pra ser uma coisa muito menos traumática, eu juro. —
Alexzander encolheu os ombros — Não queria que você se perdesse na
noite de Ediri.
— Me fazer pular de uma cachoeira pareceu uma ideia melhor? —
Seu tom de voz parecia mais de deboche do que de ataque, mas ainda
assim, ele desviou o olhar. — Certo, cedo demais para fazer piada.
A garota deu uma risadinha, e o rapaz voltou a encará-la. Ela tinha
um humor parecido com o de sua irmã. E ele não sabia se seria capaz de
lidar com duas Siljas.
— Não é isso — ele tentou se explicar. — Eu apenas perdi o
controle e...
— Eu disse à Silja que vocês tinham o dia de hoje para me
convencer a não falar sobre esse lugar para o rei — ela interrompeu. — Ela
me mostrou crianças, córregos e paisagens bonitas. Enquanto você está
desperdiçando seu tempo pedindo desculpas.
Alexzander sentiu as bochechas arderem. Ela era igual a sua irmã.
Que as Sete o protegessem.
— Tudo bem — ele disse. — Tenho algumas coisas para verificar
aqui nas plantações, mas tentarei ser breve. Então, posso acompanhá-la de
volta para o chalé.
— Vou ajudá-lo. Duas pessoas trabalham mais rápido que uma. —
Ela deu de ombros.
— Não precisa fazer isso, se não quiser.
— Eu sei. Mas a outra opção é ficar esperando sem fazer nada.
— Certo. O que você sabe sobre agricultura?
Anya apertou os lábios, segurando uma risada.
O gesto respondeu o suficiente.
— Entendo. — Ele assentiu. — Bem, venha comigo então.
Ele a levou em direção à zona das verduras.
— É Gerry quem vende essas coisas na Aldeia? Ou Silja tem uma
loja?
— Nós não vendemos. Nós doamos — Alexzander explicou. — A
Aldeia é a região mais... carente de Duhn, você sabe. Eles se sustentam da
pesca que vendem no Mercado e em Ardith, mas com o crescimento dos
portos em Wellin, cada vez mais variedades de alimentos chegam dos
mercadores estrangeiros. Então, nós levamos algumas coisas até Gerry e ele
distribui tudo por lá.
Alexzander deve ter feito uma careta pois a garota riu ao dizer:
— Você não parede gostar muito dele. De Gerry, quero dizer.
Ela caminhava por entre algumas alfaces, examinando suas folhas
como se soubesse o que estava fazendo. Era bonitinho, ainda que inútil.
O rapaz disfarçadamente passava pelos mesmos lugares que ela,
fazendo sua própria checagem e procurando por possíveis pragas. Desde
que os problemas com Verena começaram, às vezes, algumas safras eram
perdidas.
— Ele é legal. Mas não gosto de como Silja tende a quebrar as
regras desde que o conheceu. Minha irmã não costumava agir assim. — Ele
deu de ombros. — Mas ela sempre foi boa demais para estar presa aqui
embaixo, de qualquer forma.
E era culpa dele que ela estivesse ali. Culpa que ele carregaria
consigo por todos os seus dias. Sua irmã tinha deixado tudo para trás por
um erro que apenas ele tinha cometido.
Mas uma parte egoísta dele, a parte de si mesmo que ele mais
odiava, ficava feliz que ela o tivesse seguido dez anos atrás. Silja era tudo o
que ele tinha.
— Não nasceram aqui? — Anya indagou. — Como vieram parar em
Havenmill?
— Já faz muito tempo — ele respondeu, rápido demais.
A princesa pareceu entender que se tratava de um tópico sensível,
então assentiu e continuou conferindo as verduras.
Mais de uma hora mais tarde, Alexzander suspirou ruidosamente e
informou:
— Terminamos por hoje, podemos voltar para o chalé.
— Certo. — A garota acenou. — Vamos então.
Anya estava se saindo bem em sua missão de ganhar confiança.
Tinha ficado decepcionada quando a curandeira recusou sua
companhia até Ediri, mas aquela conversa ao menos confirmou sua teoria
de que estavam próximos da Aldeia dos Pescadores — ou perto o
suficiente. E mesmo ela teria de admitir que seria fácil demais. Silja não
parecia uma garota tola.
E se fosse honesta, o rapaz também não era tão ruim assim. Ainda
que a deixasse com raiva cada vez que conferia o trabalho que ela já tinha
feito.
Saberia reconhecer uma praga, por favor!
De qualquer forma, não tinha se oferecido para ajudá-lo à toa. Sabia
que ele falaria sobre isso aos outros do Conselho e, como não tinha sido
formalmente apresentada a eles, tê-lo ao seu lado seria interessante.
Os primeiros sinais do entardecer davam as caras à cidade quando
os dois voltaram para o chalé.
Parecia que dois dias inteiros tinham sido encaixados naquelas
poucas horas desde que acordara em Havenmill. E seus pensamentos
transitavam entre seus pais e Conan.
O que seu primo teria feito com eles?
E será que Farah e Magmar teriam conseguido fugir?
Pensou nos demais soldados que não tinham aparecido para socorrê-
la e perguntou sobre eles para Alexzander, se tinha encontrado uma forma
de mantê-los ocupados. Mas ele respondeu que nada tinha a ver com aquilo.
E a forma como os ombros do conjurador se tensionaram para a
questão demonstrava que o assunto também o estava incomodando. Parecia
tão surpreso quanto ela.
Era muito estranho que os homens de seu pai não tivessem ido atrás
dela durante a invasão.
Agradeceu silenciosamente quando o rapaz não a fez saltar pelo
regato e, sim, levou-a até uma simpática ponte de madeira. E enquanto
refazia seus passos até o chalé, encarou a barra suja de terra de seu vestido.
Seu peito apertou um pouquinho mais ao pensar em Faen. Ela certamente a
repreenderia pelo estado de sua saia...
Anya sentiu falta disso. Da camareira. De sua família.
Havia muitas pessoas com que se preocupar. Muitas pessoas pelas
quais voltar.
Os rumores de sua presença em Havenmill tinham se espalhado.
Mais moradores a observavam, ainda sem coragem de se aproximar.
E ela não tinha certeza se queria que o fizessem. Mas ousou sorrir
discretamente vez ou outra. Ainda estranhando as feições que davam rostos
aos conjuradores.
Lembrou-se da garota em Wellin. De como havia sido estranho
descobrir um deles entre tantos conhecidos. Eles não tinham um rosto
específico ou uma marca.
Eram apenas... pessoas.
Será que aquela garota conhecia este lugar?
Será que isso a teria poupado daquele ataque em meio ao Mercado?
Não, ela não havia sido atacada, lembrou a si mesma. Ela
desobedecera à Coroa e foi punida por isso.
Mas as palavras de Silja martelavam em sua cabeça.
A Coroa falhou com a gente.
E se... fosse verdade? Quer dizer, eles realmente a tinham resgatado
de Benjamin.
Anya não confiava que seus motivos eram tão simples quanto Silja
havia tentado fazer parecer, mas no final das contas a princesa estava ali:
curada e inteira. Com suas próprias roupas trazidas de casa.
Quando chegaram ao chalé, Alexzander disse que tomaria um banho
rápido e prepararia o jantar. Ele parecia nervoso, ainda desesperado por
agradá-la. E a princesa ficou satisfeita ao confirmar suas suspeitas de que
sua presença ali era realmente importante.
Até se ofereceu para cortar os legumes enquanto o rapaz se lavava.
Ele protestou, mas Anya apenas ergueu a sobrancelha e pegou uma
faquinha sem serra, observando irredutível enquanto ele subia as escadas
batendo os pés.
Claro que depois que ele desapareceu no segundo andar, ela
precisou trocar por outra faca, pois aquela não parecia certa para cortar, e
claro que ela apenas descobriu isso depois de fazer duas batatas diferentes
saírem rolando pelo balcão de madeira.
O chalé era como ela imaginava que uma casa de bonecas deveria
ser. Sala e cozinha distribuídos em um único cômodo no primeiro andar,
divididos pela escada de madeira que ficava bem em seu centro. Uma mesa
feita de pinheiros que acomodava quatro pessoas encontrava-se próxima à
porta de entrada, e os móveis da cozinha acompanhavam a parede lateral
direita.
As luzes amareladas davam um ar aconchegante, tanto quanto as
cortinas bordadas com flores que emolduravam as amplas janelas de vidro.
Depois que batatas, cebolas e pimentões estavam devidamente
cortados, caminhou até a sala, onde uma lareira repousava em frente a um
sofá verde surrado. Duas poltronas da mesma cor estavam à direita dele, ao
lado de uma estante cheia de livros.
Ousou um olhar pela janela.
Lá fora, a noite já tomava conta e Anya só percebeu que prendia a
respiração quando ela lhe foi roubada de uma única vez.
As varandas das centenas de casinhas de madeira eram decoradas
por fios iluminados por pequenas lâmpadas amarelas, que ela não percebera
durante o dia. Ainda havia crianças brincando e rindo, como aquelas que
vira mais cedo.
Crianças que não a conheciam, tampouco conheciam o mundo lá
fora.
Não saberia dizer o momento em que aquele pensamento lhe
ocorreu, mas de repente se perguntou se elas, algum dia, correriam sob o
céu como corriam sob aquelas raízes.
Delilah Jo’na afiava a nova adaga que recebera para sua coleção
quando um burburinho atípico chamou sua atenção lá fora.
Ela caminhou até a janela de sua cozinha para ver o que acontecia, e
percebeu Alexzander e a Princesa atravessando a praça central. E que os
curiosos moradores de Havenmill pareciam divididos entre as reações com
sua presença.
Seria difícil explicar aquilo para eles. Ela mesma não tinha certeza
se trazer a garota para sua cidade tinha sido uma boa ideia.
Delilah encarou a lâmina em suas mãos, ainda intrigada pelos
segredos que ela poderia conter. Então, passou os dedos pelo entalhe
singular no centro do guarda-punho.
Dois ramos de lavanda e uma coroa.
Tornou a olhar para a princesa lá fora.
Não poderia ser coincidência. Verena nunca agia apenas por
coincidência.
Com um gesto simples de suas mãos, as cortinas turquesas se
fecharam.
E a meio-bruxa voltou a amolar a adaga.
Já era noite quando Silja voltou para o chalé. Perdera
completamente a noção do tempo escondida entre as cortinas verdes de
Ediri.
Gerry não tinha permissão para entrar em Havenmill, então sempre
que ele pedia para que ela ficasse mais um pouco, era impossível dizer que
não. Era impossível negar qualquer coisa quando o rapaz abria aquele
sorriso torto que ela tanto amava.
E ele sabia disso.
A discussão que tivera com o Conselho certa vez foi,
provavelmente, a mais constrangedora de sua vida inteirinha. Mas quando
Gerry repetiu que não aguentava ficar tanto tempo longe dela, a curandeira
pediu permissão para que seu namorado frequentasse a cidade.
Era um risco, é claro. Ele poderia ser visto, seguido e um milhão de
coisas horríveis poderiam acontecer ao seu lar só porque ela queria dormir
nos braços dele ao menos uma vez.
Desde então, Silja, com frequência, escapava de seus afazeres e ia
até Ediri encontrá-lo. Não deveria e sabia disso. Não conseguia evitar.
Ele mesmo já tinha desistido de convidá-la até sua própria casa na
Aldeia, pois a curandeira temia ser reconhecida. Estava mais segura longe
daqueles que, um dia, foram sua família.
O ar fresco da noite balançava as luminárias das varandas, fazendo
as sombras oscilarem pelo gramado infinito. Famílias sentadas à frente de
suas casas jogavam conversa fora, de olho nos pequenos que apostavam
corridas pelos jardins.
Silja sorriu. Não mentira em nada quando chamara Havenmill de
cidade encantada.
Esperava que a princesa conseguisse ver isso também.
Ela fizera um bom trabalho naquela tarde. Era difícil não se
apaixonar por aquele lugar, no final das contas.
Mas não poderia negar que via o medo pairando sobre a garota e não
a culpava. Eram muitas novas informações com que lidar, e tinha
consciência de que, sendo uma conjuradora, não estava na melhor posição
para transmitir confiança.
Continuaria tentando.
Precisava disso.
Silja passou as mãos pelos cabelos, ajeitando os fios bagunçados
pelas mãos de Gerry, e entrou no chalé.
A mesa já estava posta e Anya encontrava-se sentada na sala, em
uma das poltronas mais perto da janela. Ela observava o mundo lá fora e,
ainda que os cachos negros lhe escondessem o rosto, a curandeira sabia o
que encontraria ali.
Curiosidade.
— Sinto o perfume barato de Gerry daqui de cima! — gritou
Alexzander, enquanto descia as escadas trazendo aquele sorriso debochado
que a fazia querer socá-lo até o dia seguinte.
— Lembro-me perfeitamente de ouvir você me pedindo para
providenciar um igual — rebateu.
Ainda assim, sentiu as bochechas esquentarem.
Seu irmão jogou a cabeça para trás e gargalhou.
Serzinho desprezível, pensou, rindo também.
Ela revirou os olhos e caminhou até ele, envolvendo-o em um
abraço apertado. Rir deles mesmos foi o que os manteve firmes quando não
tinham mais nada pelo que lutar, além de um pelo outro.
Com o rosto enterrado nos travesseiros macios, Anya não se
importava que a ouvissem chorar. Aguentara bem o dia, mas ali, no escuro e
sozinha, não precisava fingir.
A banheira de cerâmica na qual se lavara não pareceu grande o
suficiente para acomodar a culpa que sentia. Seus pais estavam no castelo
com Benjamin enquanto ela estava naquela cidade estranha, acomodada
entre lençóis com cheiro de flores.
Estava fazendo o que precisava ser feito, sabia disso. Mas o
sentimento insistia em atormentá-la mesmo depois do banho. Mesmo
depois de voltar para o quarto. O remorso por ter decidido ficar. Precisava
encontrar o caminho para a Aldeia. E rápido. Talvez seguisse Silja da
próxima vez que ela fosse até lá.
Quando as lágrimas finalmente cessaram, o sono ainda insistia em
lhe faltar, então andou até a cômoda e encarou a noite. Já não havia
barreiras na janela, mas ao seu modo, ainda era uma prisão.
Farah teria adorado estes jardins, se pegou pensando. E as lágrimas
voltaram outra vez. Desejava poder, de algum jeito, saber como ela estava.
Se teria conseguido fugir.
Sua amiga era rápida, boa de luta, e quando se separaram, estavam
em uma parte afastada do palácio. Tinha chance de que já estivesse bem
longe. Talvez até procurasse por ela.
A possibilidade ainda não a tinha ocorrido. Claro que estavam
procurando por ela. Se não Farah, então seus pais, seus soldados, Conan.
Até mesmo Isaac.
Poderia encontrar o caminho sozinha. Só precisava ser silenciosa e
discreta, enfrentar a noite de Havenmill e descobrir uma forma de deixar o
local. Estariam esperando por ela lá fora.
Mas se saísse agora, se Benjamin a encontrasse primeiro... Entendia
por que ele a via como uma ameaça.
Ela, que nunca se imaginara como rainha, não conseguia deixar de
imaginar uma infinita possibilidade de “e se”. Anya sabia que as palavras
de Silja eram verdadeiras. Algo dentro dela, talvez a parte sonhadora e
escapista, que ousava pensar em coisas impossíveis, sempre soube que era
sim filha de Elysia e do Rei. Agora, isso não lhe parecia tão impossível.
E se de fato votassem por ela?
Se o Conselho a considerasse melhor do que seu primo, mesmo sem
ter sido criada para governar?
Não, ela não poderia voltar. Ainda não. Não sem um plano concreto
de como enfrentá-lo.
Tinha lhe parecido tão certo conquistar a confiança de Silja e seu
irmão para que a levassem lá fora, mas e se a princesa precisasse deles tanto
quanto precisavam dela?
Deveria realmente se aliar aos conjuradores? Por seus pais, sabia
que o faria.
Ainda assim, pensar nessa possibilidade apertava seu peito e
amaçava roubar todo o ar existente no mundo.
Suas pernas cederam e Anya desabou no chão. Sim, ela continuaria
fazendo o que precisava. Só não tinha certeza se poderia conviver consigo
mesma depois.
Sem forças para caminhar até a cama, puxou os joelhos para junto
de seu corpo e permaneceu ali até que o sono a levasse para longe.
Raios de sol teimosos atravessavam as frestas da persiana e
dançavam pelo rosto de Alexzander — não que isso o tivesse acordado, já
que mal conseguira pregar os olhos.
A princesa chorou a noite inteira. E a culpa pesava no peito dele.
Os soluços o fizeram lembrar de sua primeira noite em Havenmill,
quando ele se enclausurou dentro do próprio pranto. Por raiva, saudade e
dor. Foram semanas difíceis.
Então, o rapaz entendia.
E passara a madrugada envolto pela penumbra, encarando as
luminárias apagadas lá no alto. Consumido pela sensação de que se abrisse
a porta do quarto ao lado, encontraria a ele mesmo dez anos atrás.
Não, aquilo não era sobre ele.
A garota no quarto ao lado não tinha chegado em Havenmill por
escolha, tinha sido levada.
Ainda que as intenções fossem sinceras, que o Conselho realmente a
quisesse salvar, a princesa havia sido roubada de sua casa e trazida para um
lugar desconhecido. Trazida por ele.
Haviam debatido e votado, e a decisão foi unânime.
Benjamin jamais poderia alcançar a Coroa. Ele sabia demais, Verena
tinha dito. E com a quantidade certa de poder nas mãos, estaria tudo
acabado.
Para Havenmill, para seu povo e para a bruxa.
E quando a manhã chegou, concluiu que poderia fazer melhor. Que
poderia ser melhor. Então vestiu-se com rapidez, sem ao menos se
preocupar com os cabelos bagunçados, e desceu as escadas pulando os
degraus de dois em dois.
Encontrou sua irmã distribuindo pãezinhos com queijo na pequena
bandeja de madeira.
— Planejava fazer exatamente a mesma coisa — ele disse,
depositando um beijo nos cabelos dela, tão bagunçados quanto os próprios.
A risada que Silja lhe devolveu era como uma brisa fresca em um
dia quente de verão, o presente certo vindo na hora certa.
— Uma boa bandeja de café sempre nos trouxe manhãs melhores —
a garota respondeu.
Era uma coisa deles.
Conheciam um ao outro tanto quanto a si mesmos, e sabiam ler os
sinais quando algo estava errado. Então não faziam perguntas, e o café era
um lembrete silencioso de que não estavam sozinhos. Que sempre teriam
alguém com quem contar.
E enquanto a curandeira servia uma xícara da bebida fumegante,
Alexzander correu até a varanda. Analisou cuidadosamente as margaridas
que cercavam a casa, escolhendo duas das flores mais bonitas daquela
manhã.
— Quer que eu leve para ela? — perguntou, observando Silja
colocando as plantinhas em um copo de vidro.
— Não precisa, vou deixar no lado de fora da porta. — Ela deu de
ombros. — Estamos ansiosos para que isso dê certo, mas precisamos dar
tempo a ela.
Sua irmã tinha razão, como quase sempre.
Então, Alexzander lhe deu outro beijo e saiu. Tinha coisas
importantes para fazer.
Mortos.
Seus pais estavam mortos.
Se qualquer outra pessoa tivesse proferido aquelas palavras, Anya
não teria acreditado. Teria dito que estavam todos loucos, pois aquela era a
coisa mais absurda que já tinha ouvido em toda a sua vida.
Mais absurda do que todas as outras coisas absurdas que lhe foram
ditas nos últimos dois dias.
No entanto, tinha sido Farah.
Farah, sua melhor amiga desde que era capaz de se lembrar.
O rugido que ecoava nos ouvidos da princesa a impedia de entender
o que os outros conversavam, e tudo parecia acontecer em câmera lenta.
Seus pés a levaram até uma das poltronas na sala e suas mãos
seguravam uma xícara de chá, mas tudo aquilo parecia tão banal e sem
propósito, afinal, o mundo era agora um lugar onde seus pais não existiam
mais.
Elysia não mais veria as flores que ela tanto amava, nem entraria de
fininho no salão de música para ouvir a filha tocar. As duas não discutiriam
mais os livros que liam e os braços de sua mãe nunca mais a envolveriam
em um abraço.
As raras, mas contagiantes, gargalhadas de seu pai não teriam a
chance de retumbar pelos corredores do palácio, e mesmo os seus
resmungos não preencheriam mais o silêncio dos cafés da manhã.
Anya sabia que cada parte de seu corpo estava tremendo, mesmo
que o chalé estivesse quente. Via pelo canto dos olhos que Silja caminhava
de um lado para o outro, escondendo suas lágrimas e tentando se fazer útil.
Talvez o chá nas mãos da princesa tivesse sido trazido por ela, mas
não tinha certeza disso.
Não tinha certeza de nada além do fato de que tudo o que ela
conhecia deixou de existir desde que saíra do castelo. Mal tinham se
passado dois dias, mas poderiam ter sido anos.
Farah estava sentada à sua frente, os ombros escondidos sob uma
toalha por causa da roupa molhada. Tinha sangue em seu rosto e em suas
mãos, e a princesa queria lhe perguntar como ela conseguira aqueles cortes,
mas as palavras insistiam em fugir cada vez que lembrava o que a garota
tinha feito.
Uma vida inteira de mentiras.
Não havia sequer um aspecto da existência de Anya que não tinha
sido roubado, refutado ou destruído.
Seu passado era uma mentira, suas crenças eram controversas e sua
amiga... Amiga. Aquela palavra ainda se aplicava? Seria aquele o preço por
se deixar levar com aquela história de magia? Perder todas as coisas que
achava que tinha?
O choque era a única coisa que a impedia de desabar por completo.
Não reconhecia sua voz quando falava, tampouco a postura que assumira.
Seus ombros nunca estiveram tão para trás e o queixo jamais estivera tão
erguido.
Se pegou ali, ouvindo Farah falar sobre os últimos dois dias no
palácio. Como seus pais foram interrogados — ela sabia que a palavra que
sua amiga evitava era torturados — enquanto ela estava brincando com
seres mágicos e correndo com lobos.
Queria sentir raiva da garota que mentira para ela, mas sabia que
Farah não possuía culpa alguma.
Ela não tinha feito aquelas coisas.
Seu primo tinha.
Aquele desgraçado.
— Como assim o Príncipe tem magia? — indagou Alexzander em
certo momento.
Mas Farah não soube explicar.
Benjamin os atacara com um poder que ela não foi capaz de
reconhecer. Era algo sombrio e que não apenas esmagava sua própria
magia, como mantinha os soldados e os criados do castelo presos a uma
rede de controle absoluto.
Eles não faziam nada além do que ele ordenava.
E ninguém ali parecia reconhecer qualquer traço daquele poder.
Anya tentou não pensar em Conan, no que o príncipe teria feito com
ele. Não sabia se aguentaria perder mais alguma coisa.
A princesa não sabia em que momento Delilah, a bruxa, chegara,
mas ela ficava questionando Farah sobre o tal poder que o príncipe possuía,
como se tivesse esperança de que qualquer pequeno detalhe fosse a peça-
chave daquele quebra-cabeça.
Queria mandá-la calar a boca, mas as palavras não saíram.
Ela estava com tanta raiva! Perguntava-se se, caso tivesse fugido
naquela primeira noite, as coisas teriam sido diferentes.
Se não a tivessem levado embora. Se Benjamin a tivesse
encontrado. Sabia que daria sua vida pela deles, sem pensar duas vezes.
Anya se entregaria se o primo jurasse que pouparia seus pais.
Mas ele nunca o faria.
Alguém como Benjamin não cumpria promessas.
E agora estava tudo perdido, agora...
— Ele disse que fomos nós — Farah sussurrou de repente.
— Como assim? — Delilah disse
— Benjamin emitiu um comunicado que conjuradores atacaram o
castelo na calada da noite. O reino está um caos completo. — Ela
recomeçou a chorar. — Estão atacando pessoas nas ruas. Qualquer
comportamento suspeito é denunciado e as pessoas estão sendo levadas
pelos soldados. Com ou sem provas.
— Não podemos mais permitir que ninguém saia de Havenmill — a
meio-bruxa anunciou. — Por qualquer motivo que seja. Não haverá mais
idas ao Mercado ou à Aldeia. Não podemos arriscar que um dos nossos
sejam pegos.
— Acha que podem entregar Havenmill? — Alexzander questionou.
— Todos aguentam apenas até certo limite. Não podemos arriscar.
Benjamin finalmente conseguiria o que queria.
Não havia Rei para impedi-lo de receber a Coroa e Anya estava ali
embaixo, sem que ninguém soubesse que era elegível para governar. Sem
que ninguém soubesse que estava viva.
Mas ele tinha assassinado seus pais.
Tinha assassinado Faen e o pai de sua melhor amiga.
Conan, pelo que ela sabia, poderia estar morto também.
Anya não poderia permitir que ele vencesse.
Precisava lutar com todas as armas que tinha e fazer delas o
suficiente. Mas como? Se ele era um conjurador, que chance ela teria?
A verdade atingiu-a com tanta força que chegou a arfar, e todos na
sala olharam para ela.
Sabia o que precisava fazer, ainda que não quisesse dizer aquelas
palavras em voz alta.
Decidiu que se aliaria aos conjuradores para salvar seus pais, mas
agora que eles não estavam mais ali... Chegou a pensar que não havia mais
nada pelo que lutar.
Mas havia.
Oliver tentou poupar Duhn de um governante perverso e teve sua
vida ceifada por ele. Precisava fazer com que aquilo não fosse em vão.
Algo dentro dela se revirou quando a princesa se levantou da
poltrona, encarando cada um dos rostos na sala para depois dizer.
— Quero que me ensinem magia — disse, por fim.
Todos os olhos na sala se arregalaram.
— O quê? — foi Farah quem sussurrou.
— Benjamin é agora um conjurador. — Anya não permitiu que as
palavras falhassem, mesmo que sentisse seu corpo inteiro tremer. — E a
única chance que eu tenho de enfrentá-lo é me tornando uma também.
Vocês disseram que existe um ritual de iniciação.
A princesa encarou Delilah quando prosseguiu:
— Você disse que existe um ritual. É possível que alguém que não
seja de Havenmill o realize?
— Não precisa fazer isso, Princesa — Delilah respondeu.
— É possível? — insistiu.
— Sim, mas... — A meio-bruxa parecia ter sua própria batalha
sendo travada dentro de si. Até que, por fim, foi capaz de formular uma
frase completa. — Sabemos o que a magia significa para você. Nós
podemos ajudá-la sem que abra mão de quem você é.
— Eu não sei mais quem eu sou — respondeu —, mas eu sei quem
eu não quero ser. Eu não quero ser alguém que dá as costas para meu povo,
que os abandona e os deixa à mercê de um monstro. Vocês me trouxeram
aqui por um motivo, é a chance de conseguirem o que queriam. Queriam
uma Rainha como aliada, mas podem conseguir uma Rainha igual a vocês.
Ela mal conseguia acreditar nas próprias palavras, mas sabia que
não havia outra opção.
Aquela era uma batalha dela, e queria todas as chances de vencê-la.
Vingaria seus pais e seus amigos, e salvaria seu reino de um
governante tirano.
— O Rei está morto — a princesa anunciou, com a voz mais firme
que foi capaz de produzir — e eu, Anya Dahnasa, herdeira legítima de
Oliver Dahnasa, assumirei seu lugar como Grande Rainha de Duhn.
E se para isso ela precisasse abandonar quem era, seria um preço
pequeno a se pagar.
Benjamin estava cansado dos gritos. Estava cansado de repetir as
mesmas perguntas e não ser respondido.
Seu tio realmente não sabia para onde a vadiazinha tinha fugido,
caso contrário, teria admitido enquanto estava sob domínio de seu poder.
Mas as súplicas que ecoavam por aquelas paredes estavam
estragando o café do príncipe. O Grande Rei de Duhn não parecia tão
grandioso agora.
Este castelo está caindo aos pedaços, pensou, encarando o salão ao
seu redor. O mármore claro estava coberto de poeira e cabeças de estátuas
derrubadas. E os arranhões na pedra não melhoravam em nada sua
aparência.
Aquelas bombas não tinham sido uma ideia tão boa, concluiu. Mas
as criadas resolveriam tudo em breve. Precisava do palácio impecável
quando a Coroa finalmente fosse sua, quando se sentasse no trono dourado
que almejara por tantos anos.
Havia esperado tempo demais por aquilo.
Uma vida inteira.
Tudo teria de ser perfeito.
A pequena reforma, ao menos, lhe daria alguns dias para encontrar
sua querida prima, para acabar de uma vez por todas com aquela piada que
Oliver trouxera para a família.
Mais gritos soaram pelas paredes de pedra. Femininos desta vez.
Com um gesto simples dos dedos, mais rápido que seu revirar de
olhos, Benjamin observou o soldado que se aproximava para escoltá-lo até
a sala de interrogatório.
Acabaria com a mulher primeiro. Queria ver os olhos de Oliver
quando sua esposa deixasse este mundo e fosse para... bom, se dependesse
dele, para o inferno.
Não precisava mais deles.
Não depois de descobrir que o soldado de cabelos ruivos ao seu lado
tinha certa ligação com a princesa desaparecida.
Era o motivo pelo qual o tinha escolhido como seu guarda pessoal,
mantendo-o consigo a cada instante.
Perguntara o nome dele por pura casualidade, já que não se
importava de fato.
E o colocara para caçar pistas sobre possíveis paradeiros da garota.
Era de interesse do soldado que ela vivesse.
Tudo bem, o príncipe mentira ao dizer que ela sobreviveria. Mas
com seu poder controlando cada ação do rapaz, não fazia diferença. Ele
obedeceria no final das contas.
E depois que Benjamin acusou os tais conjuradores para o povo de
capturarem o Rei, depois que se colocou à total disposição para enfrentá-los
e ofereceu recompensas para cada um que trouxesse um traidor da Coroa
até ele, estava ganhando a confiança de seus súditos.
Não que precisasse dela realmente, mas gostava da atenção.
Queria que vissem nele a salvação que eles tantos buscaram, quem
livraria Duhn daquelas abominações mágicas de uma vez por todas.
Sua própria magia era apenas um efeito colateral, uma consequência
de ousar se colocar contra aqueles monstros. Seria perdoado no final.
A história se repete, tinha dito ao povo. Após quatro séculos do
ataque que reduziu o palácio às cinzas, os traidores retornaram e levaram
mais um Rei. E era dever de Benjamin vingar sua morte.
Ele riu consigo mesmo.
Ah, se ao menos soubessem.
Mas para que tudo aquilo funcionasse, precisava encontrar a
Princesa. Evitar que ela reaparecesse de repente contando uma história que
colocaria a sua própria versão dos fatos à prova.
Também precisava se livrar do conselheiro.
O Príncipe sempre tivera o resto do Conselho nas mãos, mas aquele
conjurador medíocre não poderia mais fazer parte dele. Benjamin não
queria desperdiçar seu poder naquele homem.
Mas enquanto descia as escadas, novos gritos começaram.
Não de Oliver, não da rainha.
— Tranque todas entradas do castelo — rosnou para o garoto de
cabelos vermelhos. — Não deixe que ninguém entre ou saia daqui.
Aquela agitação não fazia parte de seus planos.
Benjamin acelerou seus passos e chegou às masmorras a tempo de
ver Magmar ser contido. Bom, ser atravessado por uma espada, na verdade.
— Ele escapou do calabouço — contou o soldado, com aquele tom
de voz monótono causado pela falta de personalidade. — Estava tentando
chegar à câmara do Rei.
Ótimo, tinham lhe poupado trabalho.
— A garota conseguiu correr — o sentinela continuou.
Merda.
A filha de Magmar deveria ter sido morta dias atrás, mas por algum
motivo, ousou poupá-la.
Esse era o preço pela misericórdia.
— Deixem-na para mim — gritou para ninguém em particular,
seguindo na direção apontada pelo soldado.
Sua magia pulsava dentro dele, pronta para atacar qualquer um que
surgisse à sua frente.
No entanto, quem se colocou diante dele era uma criada que ele não
tinha visto. Uma garota de cabelos laranjas que não apresentava qualquer
sinal de estar sob seu poder.
Uma rede de gavinhas douradas brotava de suas mãos, entrelaçando-
se umas nas outras e formando uma barreira protetora que o impedia de
chegar até a filha de Magmar.
O príncipe riu com escárnio.
— Garota tola — ronronou.
Pois sua magia já estava pronta e ele sabia melhor do que ninguém
que até mesmo a Luz se curvava para a Morte.
Levou menos de alguns segundos para que seu poder dissolvesse
aquele escudo, e sorriu quando a criada gritou ao ver sua rede ser corroída
centímetro por centímetro, como ácido jogado sobre um pano velho.
Ela lhe mostrou os dentes, como se quisesse mordê-lo, e Benjamin
gargalhou.
E o som de sua risada ainda ecoava quando ele envolveu o pescoço
dela, ainda ecoava quando ela caiu como uma casca vazia, inerte sobre o
piso esbranquiçado.
Afastou o corpo com o pé para que abrisse caminho e seguiu pelo
corredor, mas Farah já havia desaparecido.
Acompanhada de um grito, uma onda de poder explodiu do corpo
do príncipe, estendendo-se por todas as direções.
O castelo inteiro tremeu. Mais janelas estouraram, mais estátuas se
esfarelaram pelo chão.
A magia prateada irrompeu de seu corpo e, mesmo à distância,
Benjamin conseguiu ouvir o último lamentar de um rei e de uma rainha.
Apesar da raiva pela fuga da conjuradora, o príncipe sorriu.
Dois problemas a menos.
— Quero um soldado em cada centímetro deste reino — ele
vociferou para os guardas que surgiam atrás dele. — Qualquer pessoa
suspeita deve ser detida e interrogada. Encontrem Farah Habren e a tragam
de volta.
Ela iria atrás da princesa, Benjamin sabia.
Então, abriu ainda mais seu sorriso quando completou:
— Viva.
PARTE II:
LUZ E SOMBRAS
Não havia estrelas na noite de Havenmill, Anya percebeu depois de
muito tempo olhando pela janela.
Os dias eram envoltos por uma luz que se parecia muito com o sol,
mas quando a escuridão tomava conta, não havia qualquer sinal dos
pontinhos luminosos através das sombras lá no alto.
Ela mal viu a madrugada chegar.
Mas dessa vez, as horas não flutuaram para longe com aquela
velocidade exasperante. Não. Elas se arrastaram. Seus segundos se
espicharam, compridos, como se temessem serem deixados para trás.
Aquela mesma noite abrigara tempo o suficiente para que
Alexzander deixasse e voltasse ao chalé, para que Delilah e Farah partissem
para quaisquer que fossem seus destinos, e para que Silja levasse a princesa
até a banheira.
Ela não se importou quando a curandeira a despiu ou quando a
mergulhou na água morna. Já não havia exposição maior do que aquela na
sala horas atrás.
O sabonete cheirava a canela, exatamente como aquele que usava no
palácio, e a princesa se perguntou se era algum truque de magia. Uma
lembrança de casa para confortá-la.
Coubera tanto tempo naquela noite que Anya já estava de volta ao
que se tornara seu quarto, com cobertores até a altura de seu pescoço, mas
que não a aqueciam de verdade — não do jeito que importava.
As cortinas violeta dançavam tranquilamente, embaladas pelo
frescor noturno que parecia alheio ao terror que ameaçava partir o
horizonte.
Alexzander já havia retornado e estava escorado na cômoda à sua
frente. Os olhos avermelhados eram o único sinal de que tinha chorado.
Silja permanecia imóvel, sentada ao pé da cama, perdida em um mundo só
dela.
— Vocês disseram que eles estavam sendo protegidos. — A voz da
princesa saiu arranhada, como se não falasse há dias. Seus olhos se
enchendo novamente.
— As coisas saíram do controle — a curandeira sussurrou, sem
ousar encará-la. — Magmar era um dos melhores Artesões que tínhamos
aqui. Se havia alguém capaz de mantê-los em segurança, era ele.
— Artesões? — A pergunta saiu antes que pudesse evitar.
— Conjuradores com poderes de proteção. — Silja arriscou lançar-
lhe um olhar de soslaio. — Que criam escudos e barreiras, sejam elas
individuais ou com um alcance maior.
— Como você fez em Ediri.
— Como eu fiz em Ediri.
— E ainda assim... ele falhou. — A princesa pousou o rosto entre os
punhos.
— Ninguém poderia imaginar que Benjamin teria seus próprios
poderes — Alexzander interveio pela irmã.
E se aquilo significasse que ela nunca seria capaz de vencê-lo? Se
Magmar era tão bom quanto eles diziam e, ainda assim, não conseguiu
conter o príncipe...
Como se lesse seus pensamentos, Silja pousou a mão sobre a
coberta, tocando o tornozelo da princesa.
— Benjamin tinha o elemento surpresa. E isso está a nosso favor
agora.
A nosso favor.
Precisou apenas que sua mãe e seu pai fossem mortos para
conquistar aquela vantagem.
— Vocês nem conseguiram reconhecer que poderes são esses —
disse, simplesmente.
— Delilah está agora mesmo trabalhando para buscar respostas.
A princesa encarou a noite através da janela.
Silja dissera que ninguém se importava com Havenmill como a
meio-bruxa, e conseguiu imaginar a mulher coberta pela escuridão, caçando
informações como algum tipo de predador.
Perguntou-se se ela via o mundo de um jeito diferente. Um jeito de...
bruxa.
Então, seus pensamentos resolveram brincar com ela.
Partiram da noite na cidade escondida e vagaram para além dos
limites de Havenmill, tentando imaginar onde estariam os corpos de seus
pais. O que Benjamin teria feito com eles.
Será que tinham sofrido?
Não, não poderia ficar pensando nessas coisas.
— Onde está Farah? — Ela se encolheu ao dizer o nome de sua
amiga.
— Saiu com Delilah, mas não sei para onde foi. Ela quis te dar
tempo para... processar. — Alexzander suspirou. — Sabe, ela queria mesmo
te contar. Você precisa entender o risco que seria falar sobre esse lugar para
qualquer pessoa.
Ela não precisava entender nada.
No entanto, não era por aquele motivo que perguntara sobre a
garota.
O peito da princesa doía apenas ao pensar naqueles que perdera,
mas sabia que não tinha sido a única.
Magmar foi um bom conselheiro. Seu pai o adorava — ao seu
próprio modo, pelo menos.
Lembrou-se das flores no jardim que viu além das janelas daquele
quarto, e de como seu primeiro pensamento ao percebê-las tinha sido sua
amiga.
Como poderia odiá-la?
Eram inseparáveis desde crianças, sabia que o sentimento não tinha
sido mentira. Não poderia ser. E já tinha perdido o suficiente. Já tinha
perdido demais.
— Você tem certeza do que pretende fazer amanhã? — Alexzander
perguntou, de repente.
A princesa tinha.
Sabia que era o único jeito.
Entraria naquele palácio e faria Benjamin se arrepender de cada gota
de sangue derramada ao longo daquela vida miserável.
Para isso, precisava aprender magia.
Travessia, é como Delilah tinha chamado aquele ritual.
— Sim — Anya confirmou. — Tenho.
Mas amanhã, pensou.
Ali, naquela noite, ela apenas choraria.
Seus pais estavam mortos.
Faen estava morta.
Conan... ela não sabia.
Não tinha certeza se gostaria de saber.
A princesa se daria aquela noite, decidiu, para chorar e sentir tudo o
que precisasse; para transbordar tudo o que estava entalado em sua
garganta.
Apenas aquela noite.
O alvorecer secaria suas lágrimas e ela usaria sua dor como uma
armadura.
Não seria a primeira vez.
O silêncio não era uma boa companhia, Anya concluiu após alguns
minutos sozinha na cozinha. Não depois de todas as coisas que ouviu.
Ela duvidava que fosse permitido que manhãs começassem de forma
tão... complicada.
No entanto, ela sabia que diziam a verdade. A verdade deles, ao
menos.
Sobre a magia, sobre Verena, sobre... o mundo.
E Anya não pôde deixar que se perguntar em que ponto entre a
versão da história que ela conhecia e a que lhe contavam agora estava a
verdadeira.
Havia mais seis bruxas como aquela para além dos limites de seu
reino.
Não, não era o momento de pensar sobre isso. Não quando a
próxima coisa que faria naquela manhã era seguir até onde a tal Bruxa
Primordial se escondia.
Pelos deuses...
Ou deveria dizer pelas Deusas?
A princesa se apressou até a escada, pulando os degraus de dois em
dois, e foi atrás de Alexzander. Seus pensamentos tinham vida própria e ela
precisava fugir deles.
O rapaz colocava algumas coisas em sua mochila e mal percebeu
quando Anya escorou-se no batente da porta, braços apertados contra seu
peito acelerado demais.
O quarto dele era um espelho daquele no qual ela dormia, e cheirava
a café e... livros antigos. Livros estes que se espalhavam em uma
quantidade significativa por todo o cômodo.
E ela percebeu, tentando conter uma risada, a pilha recém-formada
de obras sobre uma escrivaninha. Eram aqueles que ela arremessara pelo
quarto no dia em que chegou. E ao lado deles, estava escorado um violão.
— Você toca — ela disse.
Um piscar de olhos foi o único sinal de surpresa que ele lhe deu ao
vê-la ali. Talvez a tivesse notado chegar, afinal.
— Ele estava aqui quando cheguei nessa casa — Alexzander
respondeu. — E eu tinha bastante tempo livre. Você também toca?
Ela assentiu.
— Quero dizer, violão não. Piano.
E ela não tinha percebido até aquele momento o quanto sentia falta
de tocar. Não que fizesse muito tempo desde a última vez, mas aquela
sempre tinha sido sua rota de fuga se as coisas iam mal. E tudo ia mal
agora.
Tentou não pensar se seu instrumento ainda estava no castelo. Se
sobrevivera ao ataque.
— Adoraria vê-la tocar — ele disse, e pareceu estar sendo sincero.
— Não consigo imaginar um futuro breve no qual eu consiga fazer
isso — ela suspirou —, mas quem sabe você...
Ela deixou as palavras morrerem.
Não deveria estar pensando naquilo. Não quando tudo estava tão
próximo de colapsar.
— Quem sabe eu? — Alexzander insistiu.
— Pensei que talvez... você pudesse me ensinar — Anya disse,
adentrando lentamente no quarto e caminhando até onde o instrumento
repousava. — É tolice minha. Sei que não devia estar pensando em algo tão
banal em um momento como esse.
Ela passou os dedos pelas cordas, encolhendo para o som desafinado
que ecoou pelo cômodo.
Estava de costas para o rapaz, mas sentiu ele abrir um sorriso.
— Não acho que esteja errada, Princesa — ele falou. — Precisamos
de algum tipo de conforto. Principalmente em momentos como esse.
Anya se virou e apoiou as mãos contra a escrivaninha, a madeira
disforme arranhando suas palmas.
O rapaz a observava com o exato sorriso que ela imaginara, mas
havia algumas rugas discretas se formando nas laterais de seus olhos azuis.
Só então ela percebeu o quão mais velho que Silja ele era. O quão mais...
adulto. Os primeiros fios brancos davam as caras pela barba por fazer, e as
marcas nos cantos de seus lábios denunciavam bons trinta anos de sorrisos
como aquele.
— Você talvez tenha razão — ela disse finalmente.
— Claro que tenho. — Alexzander riu. — E seria um prazer ensiná-
la.
Ela riu de volta enquanto ele colocava a mochila sobre o ombro e
partia em direção à porta.
— Pronta?
— Não — Anya estremeceu —, mas podemos ir mesmo assim.
A princesa rezou em silêncio para ninguém em particular, pedindo
que o tal ritual não fosse tão ruim quanto lhe soava. E só então percebeu
que, provavelmente, quem a ouvia fosse alguém que ela não desejava
dentro de sua cabeça.
Ao saírem pela varanda, viu que havia poucas pessoas na rua. Pouco
movimento, pouco barulho. Muitos olhares assustados.
Estamos no mesmo barco, ela se deu conta.
Ela e Alexzander não conversaram muito pelo caminho, mas Anya
reconheceu a estrada pela qual seguira com Silja no dia anterior. E se deu
aqueles momentos de silêncio para dar mais atenção à Havenmill. Para os
pássaros que claramente não suspeitavam do caos que espreitava fora da
cidade, para o aroma forte de cascas de tantas árvores diferentes.
Lembrava um pouco o Mercado.
Não que os cheiros se parecessem, mas variavam de tal forma que
ela sabia que, em cada canto, encontraria uma história nova se procurasse.
Quando, enfim, mudaram o curso do caminho que a levara até Ediri,
Anya viu-se em uma estreita estradinha de terra, onde mal passava uma
pessoa sozinha.
A grama alta acompanhava as margens da trilha que desaparecia por
entre imensas rochas cobertas de um musgo tão verde e brilhante que
pareciam joias.
— Chegamos — o rapaz avisou. — Você precisa continuar sozinha
agora.
Ela franziu o cenho.
— Mas não há nada aqui.
Alexzander, no entanto, não disse coisa alguma e ela revirou os
olhos ao colocar os pés na estradinha.
Uma brisa suave envolveu-a, trazendo o familiar aroma adocicado
— como se a magia fosse um organismo vivo serpenteando ao seu redor.
E talvez fosse, pois seus cabelos voaram sobre os olhos e, quando os
afastou, ela estava sozinha.
O rapaz havia desaparecido e mesmo as folhas das árvores pararam
de balançar, como se o mundo tivesse prendido a respiração para observá-
la.
Respirando profundamente, ela começou a andar.
Acompanhou o trajeto estreito de terra batida, sentido a grama se
prender em suas roupas de treino. Quase como se a quisessem impedir de
continuar.
Mas era só impressão.
Claro que era.
Anya seguiu seu caminho, contornando a pedra que parecia ainda
maior vista de perto.
Seu coração estava acelerado, batendo em seu peito com tal força
que talvez fosse abrir um buraco nele para saltar para fora e enquanto fazia
a curva pela rocha, viu que ela se abria em uma fenda larga, ladeada até o
alto pelo rochedo esverdeado.
A estrada terminava ali, um passo antes de adentrar na imensa
rachadura.
Um batimento cardíaco mais tarde, uma trama luminosa — tão
parecida com a de Silja no dia anterior — começou a se formar diante dela.
Anya sabia o que precisava fazer, e reunindo uma coragem que ela
não sentia de verdade, deu aquele último passo em direção ao portal que se
abrira.
Em direção à Travessia.
E a uma das bruxas mais poderosas do mundo.
Anya sabia que tinha atravessado para Ediri.
Mesmo que não parecesse.
Mesmo que os pássaros ao seu redor não cantassem, e as pequenas
criaturas feitas de grama não estivessem ali para cumprimentá-la.
Os enormes pinheiros, paralisados em meio a um sopro de vento,
refletiam os raios dourados do sol em cada uma de suas folhas. O céu estava
completamente escondido sob o dossel feito de galhos, e o aroma adocicado
deu espaço para o cheiro de... verde.
Ediri, não Havenmill.
Ainda que o rochedo diante de si fosse o mesmo que encontrara na
cidade escondida, que o portal a tivesse levado apenas um passo à frente, e
não para um cenário completamente novo.
Ao menos, era o que havia pensado.
Um segundo mais tarde, em meio às pedras esverdeadas, por entre o
limo e as raízes que despontavam do solo, uma porta de madeira surgiu.
Como se estivesse ali o tempo todo.
E a princesa sabia que ela era tão real quanto o chão sob seus
próprios pés.
E apesar da aparência desgastada, das fissuras e arranhões, ruído
algum veio dela enquanto se abria, sob o comando de alguma força
invisível aos olhos de Anya.
— Certo — murmurou para si mesma. — Consigo fazer isso.
Seus passos eram hesitantes, e suas pernas tremiam tanto que ela
mal entendia como era capaz de estar ainda de pé.
E quando atravessou a porta, apenas escuridão cumprimentou-a no
interior da rocha — tendo um suave click como único sinal de que ela havia
se fechado às suas costas. Trancando-a ali dentro.
Seu coração batendo forte era o único som que Anya era capaz de
ouvir e, mesmo forçando sua visão, o breu era tão denso ali que ela não
conseguia enxergar um centímetro à frente.
— Bem-vinda — sussurrou uma voz feminina, tão suave quanto o
roçar das águas de um rio contra seus calcanhares.
E como se em resposta ao som, a caverna iluminou-se de uma única
vez. Exceto que não se tratava de uma caverna, e sim de um imenso salão
impossivelmente grande se comparado às rochas que o abrigavam.
O piso era feito de uma pedra azulada e pálida, com pilastras da
mesma cor se erguendo até a abóbada a, tranquilamente, vinte metros de
altura — mais alta do que qualquer árvore jamais seria do lado de fora.
— Como isso... — começou a dizer, mas teve suas palavras
interrompidas outra vez por aquela voz.
— É bonito, não? O que a magia é capaz de fazer.
Só então, Anya encontrou-a.
Sentada nos degraus de uma escada em aço preto, que subia em
espiral até o mezanino que circundava o andar acima, a dona daquela voz a
encarava com um misto de desconfiança e divertimento.
Verena era tão deslumbrante quanto a princesa imaginava que uma
bruxa com tamanho poder seria. Seus cabelos laranja avermelhados se
derramavam ao redor da pele cor de bronze de tal maneira que desciam
pelos degraus da escada e tocavam os tornozelos da mulher. Se as mechas
rosadas de Delilah fizeram a princesa pensar no céu ao amanhecer, a Bruxa
Primordial era o sol poente.
A mulher levantou-se, estreitando os olhos verdes como os da neta
de uma forma felina, analisando cada músculo do corpo de Anya.
— Bem-vinda — Verena disse, mais uma vez.
— Obrigada — a princesa respondeu sem conseguir desviar os
olhos da bruxa.
E o sorriso que se abriu naqueles lábios carmesim foi apenas mais
um lembrete da vida imortal que Anya tinha diante de si.
— Ouvi dizer que vir até mim foi uma iniciativa sua — Verena
comentou, cruzando os dedos finos e de unhas longas em frente ao corpo.
— Tem certeza de que é isso que quer?
— Farei o que precisa ser feito — respondeu, buscando pelo tom
mais confiante que conseguiu.
A bruxa sorriu ainda mais, exibindo dentes que eram tão brancos
quanto o vestido longo de cetim que usava. Ela pareceu ponderar sobre ir
até Anya, mas então, virou-se de costas e começou a subir as escadas.
— Me acompanhe, por favor.
A garota observou Verena se afastar, aumentando o espaço entre elas
antes de caminhar até o primeiro degrau.
Cada passo parecia mais difícil que o anterior.
Aquilo era loucura. O que estava fazendo ali?
O peso dos últimos acontecimentos espreitava por todos os lados,
ameaçando agarrá-la pelos tornozelos.
No entanto, não havia como voltar.
Não havia para onde voltar.
Ninguém a esperava em casa, se é que ainda poderia chamar o
castelo dessa forma.
Então, continuou andando.
Um passo depois do outro, mesmo que a levassem por um caminho
que ela tanto temia.
Subindo a escadaria em espiral, Anya observou cada canto daquele
lugar. As infinitas estantes de madeira acomodavam tantos livros que era
impossível ler todos no tempo de uma vida humana.
Ou talvez, cinco vidas humanas.
Havia muitas mesas de mogno acomodadas sob o mezanino do lado
oposto do salão. E a quantidade de cadeiras com estofado esverdeado
acomodaria cada um dos moradores de Havenmill.
Verena seguia silenciosa como um gato. Seus movimentos eram
graciosos, etéreos, e o vestido comprido demais desenhava ondas sobre os
degraus conforme ela subia mais e mais por aquela escada que parecia não
ter fim.
A magia naquele lugar parecia algo palpável, deixando um rastro de
formigamento sobre sua pele enquanto prosseguia.
Quando chegou ao balcão superior, a bruxa já a aguardava sentada
em uma poltrona que era um tanto... comum em comparação ao resto do
lugar.
Sem muita certeza do que fazer em seguida, a princesa manteve-se
parada ali, aguardando que a mulher lhe desse qualquer tipo de instrução
sobre como o tal ritual se desenrolaria.
— Chá? — Verena perguntou, simplesmente, indicando com a unha
pontiaguda para a poltrona vazia ao seu lado.
E Anya se encolheu ao ver um bule surgir sobre a mesinha de vidro
entre os dois assentos.
Respirando fundo, ela se sentou ao lado da bruxa.
Xícaras que combinavam com a porcelana branca que já repousava
ali surgiram entre elas logo depois.
— Não, obrigada.
— Criaturas estranhas, vocês humanos — refletiu Verena, servindo
chá para ela mesma. — Desconfiados demais.
A pouca distância, ela conseguia ver a pele imaculada da mulher
reluzir pequenos brilhos dourados, como se pedrinhas feitas de raios de sol
decorassem seu corpo.
Ela carrega a magia da Luz, explicou para o coração disparado.
Anya permitiu-se encará-la. Observar a criatura lendária que se
colocava diante dela.
— O que está achando da cidade? — Verena indagou, analisando-a
com olhos ligeiros que se curvavam nos cantos, acompanhando o sorriso
selvagem.
A garota piscou.
Não esperava uma pergunta tão... trivial.
Mas quando estava pronta para responder, percebeu que não sabia o
que dizer. Pensou no medo que sentira ao chegar e na raiva que tomara
conta dela ao perceber que apenas a tinham levado até ali por ganhos
pessoais. Então, pensou nas pequenas criaturas em Ediri, e nos lobos e nas
crianças que acreditavam viver em uma cidade encantada.
Pensou outra vez na garota no Mercado e no olhar de Alexzander
quando Anya a tinha mencionado. Ele a conhecia. E a princesa não sabia
por que ficara tão incomodada com aquilo. Claro que conhecia. Assim
como todos os outros conjuradores levados pela Guarda Real ao longo de
anos.
— Você gosta daqui — a bruxa disse, quando o silêncio se estendeu
por tempo demais.
— Não acho que gostar seja o termo correto, mas eu não detesto.
— E sente-se culpada por isso.
E ali estava.
A verdade jogada aos pés da princesa para que fosse obrigada a lidar
com ela.
Com as mãos pousadas sobre o colo, a princesa passou os olhos por
todos os lugares, menos para a mulher ao seu lado. Mas ainda assim,
acompanhava seus movimentos.
Sabia que Verena servia-se de uma nova xícara de chá, e percebeu o
anel prateado que adornava sua mão esquerda. Sabia também que a bruxa
apenas segurava a bebida próxima de seu rosto, sem realmente bebê-la.
— Sinto muito por seus pais. — Verena deixou que as palavras
flutuassem entre elas, como se fossem tão leves quanto o próprio ar, e não
pesadas como uma daquelas pilastras que sustentavam o teto sobre suas
cabeças.
— Não tenho certeza se acredito nisso. — A resposta saiu mais
rápido do que a princesa foi capaz de contê-las, virando-se outra vez para
sua anfitriã.
Verena inclinou a cabeça, as esmeraldas que formavam seus olhos
passeando por todo o rosto da garota. Pareciam capazes de captar cada
mudança nela, como se enxergassem através do véu que separava o mundo
do lugar para onde as emoções iam.
— Me considero no direito de desgostar da Coroa e até mesmo da
realeza como um todo — ela estalou a língua —, mas jamais deixarei de
lamentar por uma família destruída. Por vidas que foram tomadas cedo
demais.
Anya assentiu sem ter certeza do que fazer em seguida.
— É engraçado — a bruxa prosseguiu — ter o destino de todo o
meu povo nas mãos de uma garota que detesta tudo o que somos.
— E por que você precisa de mim? — Anya chiou, incomodada. —
Se, de fato, é tão poderosa quanto todas aquelas pessoas acreditam que seja,
o que teria eu a oferecer?
— Não preciso de você, garota tola. — Verena revirou os olhos. —
Sua posição apenas... facilita as coisas para meu povo. E por eles, faço o
que for preciso. Até mesmo me aliar com alguém como você.
A princesa não saberia dizer se a bruxa falava a verdade ou se
apenas usava das palavras que ela mesma disse momentos atrás. Preferiu
permanecer em silêncio até que a mulher continuasse.
— Mas, de fato, não estou tão forte quanto estive um dia.
Erguendo uma sobrancelha, a princesa precisou de todo o seu
autocontrole para não perguntar o que aquilo significava. Sabia que a bruxa
explicaria de qualquer forma.
Verena realmente parecia gostar de se ouvir falar, percebeu com
irritação.
Mas ela apenas deu um gole em seu chá que, possivelmente, já
estava frio e ofereceu-lhe outra vez uma xícara, que foi negada.
— Está na hora de saber a verdade. — A bruxa encarou-a.
E a princesa apenas encarou-a de volta, observando enquanto a
mulher erguia a manga larga de seu vestido, expondo todo o seu antebraço.
— O que está fazendo? — questionou a princesa, o pânico tomando
conta de sua voz.
Porque Verena estava usando sua longa unha em ponta para cortar a
própria pele, traçando uma linha do pulso até a altura de seu cotovelo. O
sangue que começou a brotar parecia mais preguiçoso do que deveria,
demorando-se para sair pelo corte.
— Deixe-me mostrar — respondeu simplesmente, estendendo o
braço cortado em direção à princesa. — Você só precisa segurar minha mão.
Anya queria dizer-lhe que ela era louca, mas algo dentro dela a
convenceu a fazer o que a bruxa pedia. Aquele mesmo formigamento que
sentira antes agitou-se mais uma vez.
Então, estendeu sua palma até Verena, respirando com rapidez
enquanto suas peles se tocavam. A bruxa fechou seus dedos em torno do
antebraço da princesa, que imitou seu movimento.
A sensação era supreendentemente quente, viva.
Os olhos da bruxa se fecharam e sua cabeça pendeu para trás, mas
antes que Anya pudesse ter qualquer tipo de reação, o mundo tornou-se um
borrão negro. Sombras serpentearam ao redor das duas, mais rápido e mais
rápido, jogando seus cabelos por sobre seu rosto.
O grito que se preparava para deixar a garganta da garota morreu,
pois da mesma forma que surgiram, as sombras desapareceram.
Ela ainda estava sentada na mesma poltrona, mas Verena não se
encontrava ao seu lado.
Não.
Sua voz vinha do andar de baixo, de onde a princesa chegara
naquela manhã.
A garota correu até o parapeito do mezanino, encontrando a bruxa
em meio ao grande salão. E não estava sozinha.
Centenas de outras mulheres, que Anya sabia serem bruxas também,
reuniam-se em uma profusão inacreditável de estilos, formas e cores de
cabelo. Cochichavam baixo umas com as outras, parecendo aguardar que
alguém finalmente se dirigisse a todas.
Um pigarro alto o suficiente para que as paredes tremessem
silenciou-as.
Verena encontrava-se bem ao centro de todas as bruxas, um vestido
de chiffon vermelho esparramando-se ao seu redor. Quando combinada com
seus cabelos laranjas, a peça a transformava no próprio fim de tarde.
— O Rei Tamal convocou uma reunião. — A voz ecoando por entre
as pilastras. — Diz que tem um acordo para nos propor.
A ênfase que dera naquela palavra. Os olhares que todas as bruxas
trocaram.
Anya entendeu onde estava.
Ou melhor, quando estava.
Pois não era a mesma manhã morna de primavera que a
cumprimentava, e aquelas bruxas estavam mortas há muito tempo.
Estava vivendo uma lembrança de Verena.
Anya não percebeu que prendia a respiração até se engasgar pela
necessidade de ar. Os nós de seus dedos doíam tamanha era a força com que
se agarrava à borda do mezanino.
Ela estava em uma memória.
Uma memória de Verena.
E a princesa sabia como ela terminaria, mas não tinha certeza se
estava pronta para ver com seus próprios olhos.
As bruxas lá embaixo trocavam olhares umas com as outras,
contrariadas, em dúvida. Não muito satisfeitas pelas palavras de sua
matriarca.
— Em três dias, nos reuniremos com o Rei. Todas. Juntas. — E sua
voz mostrava que ela desgostava daquilo tanto quanto as outras, mas os
ombros levemente curvados diziam que ela sabia ser a única opção.
A agitação entre as mulheres aumentou, então um caminho por
entre elas se abriu até Verena, revelando uma jovem com um rosto
impassível que calou todas as outras. Os cabelos dela caíam até sua
cintura em um emaranhado de tons acinzentados e branco — uma
tempestade, pensou a princesa.
— Senhora — a cabeça baixa demonstrava total respeito e
submissão, mas a voz forte como um trovão dizia tudo o que sua postura
tentava disfarçar —, tem certeza de que é uma boa ideia?
Verena encarou-a e, mesmo lá de cima, Anya conseguiu perceber
que seus olhos se suavizaram por alguns segundos. Mas apenas por alguns
segundos.
— Quanto tempo mais você quer se esconder aqui dentro? — A voz
da Bruxa Primordial cortava como mil adagas. — Entendo que goste do
nosso pequeno palácio, Lavínia, mas eu, particularmente, gostaria de
voltar a ter a vida que tínhamos antes de Tamal resolver que era inseguro
demais para ver sua autoridade ameaçada por uma bruxa.
A jovem permaneceu irredutível, mas não disse nada.
— Quantas mais de suas irmãs precisam ser caçadas pelo medo
daqueles que julgam ser donos destas terras? — e então, Verena passou a
falar com todas as bruxas: — Entraremos naquele palácio e ouviremos o
que Tamal tem a nos dizer. Não estamos em posição de ignorar essa
reunião. Negociaremos com o Rei, imploraremos se for preciso. Ele
destruiu a fé que os humanos tinham na magia. Não temos ninguém além
de nós mesmas para nos tirar dessa situação. E quanto mais fugirmos, mais
certos eles ficarão de que estamos escondendo algo.
As bruxas sabiam que as palavras dirigidas a todas eram ditas, na
verdade, para aquela única jovem. E permaneceram imóveis, como se
esperassem que a matriarca simplesmente não as notasse ali.
Lavínia parecia prestes a dizer mais alguma coisa, finalmente
erguendo os olhos para encarar sua superiora, mas Verena lhe deu às
costas tão rápido que suas palavras morreram antes mesmo que pudessem
sair.
A trama de sombras negras embaçou mais uma vez a visão da
princesa, envolvendo-a em um casulo de noite e rodopiando ainda mais
agitada que da primeira vez.
Um segundo se passou.
Depois outro.
E uma nova visão começou.
Anya estava agora sentada em uma cadeira confortável, com
braçadeiras largas e estofadas em um veludo cor de vinho. Uma mesa
retangular com tampo de vidro repousava à sua frente, com diversos papéis
espalhados bagunçando na superfície fria.
Ela olhou ao redor.
A sala era pequena, abrigando apenas um armário de mogno na
parede esquerda e duas poltronas simples e esverdeadas diante da mesa.
Parecia um escritório.
Mas então, percebeu algo estranho.
Um tecido rosa pálido cobria seu corpo, diferente das roupas de
treino que usava naquela manhã. Suas mangas justas iam até seus pulsos e
suas mãos... suas mãos! Uma pele marrom que não lhe pertencia terminava
em unhas longas e afiadas.
Tentou se mover, mas o corpo não a obedeceu.
Verena.
A princesa percebeu que não mais assistia de fora, e sim pela visão
da própria bruxa que compartilhava aquelas memórias com ela.
Uma batida suave na porta veio acompanhada de um cheiro de
chuva.
— Entre — Verena disse.
E a princesa teria estremecido ao ouvir aquela voz saindo de sua
boca, caso fosse capaz de reagir.
Uma familiar cortina de cabelos cor de tempestade surgiram na
porta, acompanhada de olhos cinzentos e observadores.
Seu coração — o coração de Verena — vacilou por meio segundo
quando a jovem fechou a porta atrás de si.
— Senhora — sussurrou Lavínia, abaixando a cabeça.
— Lavínia — a bruxa cumprimentou com gentileza sua imediata,
apreciando a sensação daquele nome dançando por seus lábios.
A garota encarou-a finalmente, e o peito de Verena pesou ao ver
toda a preocupação do mundo sendo carregada por aquele olhar triste.
— Ele está planejando alguma coisa, senhora. — Sua voz fora do
tom completava a expressão em seu rosto.
— Claro que está — respondeu, suspirando e girando sua cadeira
para a janela que pousava atrás de si.
Um rosnado exasperado soou às suas costas.
— Então não entendo! — Lavínia elevou o tom. — Por que se
arriscar dessa forma? Por que levar de bandeja até Tamal tudo aquilo que
ele tem caçado há anos?
— Porque eu estou cansada, Lavínia. Porque é insuportável saber
que todo o poder que carrego comigo não é o suficiente para manter vocês
em segurança, para acabar com essa caça às bruxas. Porque é injusto que
a Luz sempre de curve para a Morte, mesmo quando a magia de Alethea se
manifesta através de um humano tão cruel quanto o rei.
Anya não teve tempo para processar aquelas palavras, não teve
tempo para se perguntar quem seria Alethea ou sobre o fato de que Verena
acabara de insinuar que o Grande Rei Tamal possuía magia. Não teve
tempo pois a discussão parecia se intensificar ainda mais.
Verena sabia que sua imediata se encolhia ao ouvir suas palavras,
assim como sabia que ela não se calaria.
— Tem que haver outro jeito — Lavínia bradou. — Uma forma de
negociar sem que você seja colocada em risco.
— O que sugere, então? — a matriarca grunhiu.
— Que você não vá conosco.
— De forma alguma.
Um soco na mesa obrigou Verena a virar-se outra vez para a
garota.
Os olhos acinzentados de Lavínia estavam cheios de lágrimas, e
rugas se formavam em sua testa franzida. Se eram de medo ou raiva, a
Bruxa Primordial não sabia dizer. Mas aquilo partiu seu coração.
— Sabe que Tamal não dirá coisa alguma se eu não estiver
presente. — A bruxa suavizou sua voz — Preciso ir.
— Isso só prova que estou certa — Lavínia insistiu. — Que não é
seguro que você vá até lá, principalmente agora que a imortalidade sobre
nós é falha.
Mais uma vez, Anya não entendeu o que aquilo significava. A lista
de coisas para questionar Verena era interminável. E a incomodava que
seus próprios pensamentos se perdessem por entre os da mulher.
Mas silêncio foi a única resposta da bruxa para as palavras da
garota. Verena sabia que ela estava certa. Que era um risco grande demais.
No entanto, era algo que somente a matriarca poderia fazer.
— Jurei que a protegeria — prosseguiu Lavínia. — Sabe que as
consequências que a morte de uma das Sete traria para o mundo vão muito
além do luto ou da perda. Causaria um desequilíbrio no próprio
funcionamento da natureza.
Verena apoiou os cotovelos sobre a mesa, esfregando os olhos
enquanto pensava. Claro que sabia.
— Posso me cuidar sozinha. Venho fazendo isso há milhares de
anos.
— Você não vai!
E antes que a Bruxa Primordial fosse capaz de, ao menos, se
surpreender com a falta de respeito de sua imediata, um choro
descontrolado irrompeu da garota. Nunca tinha visto Lavínia agir daquela
maneira, nem mesmo quando elas foram forçadas a se trancarem dentro
dos limites de Duhn.
Com ambas as palmas sobre a mesa, a garota mantinha sua cabeça
abaixada, colecionando as lágrimas que caíam sobre o vidro frio.
Verena levantou-se e caminhou até sua imediata, pousando a mão
gentilmente sobre seu ombro.
Lavínia se virou e jogou os braços em torno de sua cintura,
enterrando o rosto na curva do pescoço da Bruxa Primordial.
Abraçando-a de volta, a bruxa desejou poder morar ali para
sempre. Onde não havia perseguição ou dor, apenas o cheiro de chuva
inebriante que subia daqueles cabelos cinzentos e a sensação morna de
ambas as peles se tocando.
Segurando com delicadeza o queixo de Lavínia, a mulher pousou
um beijo em sua testa. Então, beijou cada uma das lágrimas que escorriam
por sua pele clara até que, por fim, colocou seus lábios sobre os dela.
Um ruído baixo escapou da boca da imediata e Anya quis fechar os
próprios olhos, tendo a sensação de que invadia um momento que não lhe
pertencia.
Mas, gentilmente, as bruxas logo se afastaram gentilmente, e Verena
acariciou as bochechas de sua imediata.
— Vamos encontrar um jeito.
— Eu aceito — sussurrou Lavínia de repente. — O pedido que me
fez há trinta anos... O pedido que começou toda essa confusão e nunca
tivemos a chance de concretizar. Eu aceito. Deixe que eu me una a você,
que nos tornemos a mesma alma diante do véu que rege todo o universo e...
— Você quer ir em meu lugar — constatou a matriarca.
Um aceno de cabeça.
— Tamal não desconfiará de nada. O ritual me dará poderes. Seus
poderes. Podemos usar do elixir que o clã da Noite te ensinou a fazer e me
deixar parecida com você.
— Não posso permitir que corra esse risco passando-se por mim.
E a expressão que dançou pelo rosto de sua imediata fez com que
Verena suspirasse ruidosamente. Aquele seria um longo dia...
As sombras surgiram mais uma vez, turvando a visão da princesa
como se ela enxergasse através de um espelho d’água. E ainda pelos olhos
de Verena, encontrou-se de frente para a entrada do salão. Encarando a
porta fechada.
A Bruxa Primordial tinha a certeza de que seu coração escalaria
sua garganta e saltaria pela boca.
Isso foi uma péssima ideia, pensava, começando a andar de um lado
para o outro pelo piso de calcita azul. Seus passos ecoavam através do
palácio vazio, mais vazio do que jamais estivera.
Não era desse jeito que tinha sonhado com sua união à Lavínia.
Não deveria acontecer por aquele motivo.
Não era o que sonhara quando levou sua amada até a Grande
Queda e recitou o Cântico Sagrado, pedindo que vivessem por toda a
eternidade como uma só. A canção que era o início e o fim e o todo.
Cantada por aquelas cujas mãos derramaram seus poderes para forjar o
mundo.
Tinham quebrado regras e provado a todos que ninguém poderia
ficar entre elas, mas ali estava Verena.
Finalmente ligada à mulher que amava, mas sem tê-la ao seu lado.
O pedaço de prata envolvendo seu dedo carregava o peso de dois
mundos inteiros. O peso de tudo o que ela tinha a perder caso as coisas
dessem errado.
— Chegamos. — Uma voz doce preencheu seus pensamentos.
Lavínia. — Muitos soldados protegem o salão do trono, circundando suas
paredes por todos os lados. Mas não parecem muito interessados no que
está para acontecer aqui. Seus rostos parecem meio... vazios.
— Tomem cuidado — implorou a bruxa, sentindo seu corpo
estremecer. — Tamal está aí?
— Não, mas deve chegar em breve. — Uma pausa. — Deixe que eu
te mostre o que está acontecendo, já que não consegue se projetar até aqui.
Era estranho ouvir Lavínia falar assim.
A garota tinha se adaptado com facilidade aos poderes da Bruxa
Primordial, como se tivesse nascido para que se unissem daquela forma.
Eram agora uma única alma dividindo dois corpos e todos os poderes de
Verena eram compartilhados com sua imediata.
A união era o ritual mais antigo do mundo, e agora Lavínia
conseguia transformar seus olhos nos da matriarca, permitir que ela visse
tudo o que acontecia dentro do castelo.
— O rei chegou — a garota informou. — Está sozinho.
Verena fechou os olhos e concentrou-se, deixando que os sentidos de
sua amada funcionassem pelos dela.
Então, viu o palácio.
O lugar enorme, coberto de joias e riquezas inúteis. Viu os
soldados, exatamente como sua imediata descrevera, mas algo a respeito
deles a incomodou. Pareciam distraídos, o que destoava do excesso de
proteções que Tamal ostentava ali dentro.
Ela amava os humanos, mas aquele homem em particular, postado
diante de seu trono dourado... A bruxa cerrou as mãos em punho.
O rei a encarava fixamente.
Não, encarava Lavínia.
O elixir que Tallis — a Bruxa Primordial da Escuridão — a tinha
ensinado a produzir e funcionara perfeitamente. Não havia um traço sequer
da imediata que não se parecesse com Verena.
E mesmo que conhecesse Tallis há tanto tempo quanto existia, não
deixava de se impressionar com os poderes de sua irmã preferida. O breu
esconde e engana, e ilusões eram a especialidade do clã da Escuridão.
O pensamento chocou a princesa, que quase se esquecera de que
ainda era ela ali. Tallis devia ser outra das Sete e, enquanto Verena era a
Luz, aquela representava o Breu.
— Estou tão contente de ver todas vocês aqui esta noite — Tamal
disse finalmente, com deboche marcando cada palavra.
— Você disse que tinha um acordo para oferecer — Lavínia
respondeu, e a matriarca encheu-se de orgulho pela determinação em sua
voz. — Eu não poderia me recusar a ouvir o que tem para nos dizer.
O rei sentou-se em seu trono, repousando os braços em seu encosto
e abrindo um sorriso zombeteiro.
— Claro. — Ele assentiu. — Um acordo.
Um arrepio desceu pela espinha de Verena — de Lavínia — quando
o homem colocou um dos cotovelos sobre a braçadeira e apoiou o queixo
nos dedos.
— Saia daí — a Bruxa Primordial disse.
Mas antes que sua imediata pudesse respondê-la, Tamal acenou
para os soldados.
— Vocês sabem o que fazer.
E como se fossem apenas um, os homens lacraram portas e janelas.
O coração da matriarca deu um pulo dentro de seu peito.
— Lavínia... — repetiu.
Então, o primeiro grito surgiu.
As tochas que iluminavam o palácio tiveram seus fogos roubados e
foram disparados em direção às bruxas.
O maldito também era um Elementarista.
— Uma pena para vocês — o rei comentou, sentado em seu trono
como se nada estivesse acontecendo — que meu poder não seja forte o
suficiente para controlar seus corpos tão facilmente quanto os dos
humanos. Vocês poderiam ser úteis vivas.
Não houve tempo para que o clã revidasse, não houve tempo para
que tomassem o controle sobre o fogo e o fizesse parar. As chamas se
torciam como correntes em torno das bruxas que gritavam pelo terror de
sentir suas peles queimarem.
Elas morreriam.
O pensamento atravessou Verena de forma tão intensa que ela sabia
que ambas haviam pensado a mesma coisa.
— Fuja — ela sussurrou.
— Amo você — sua esposa respondeu quando o fogo a atingiu.
— NÃO! — rugiu a matriarca.
Mas então, ela perdeu o contato.
Tentou concentrar-se ainda mais, mas Lavínia parecia ter
bloqueado seu acesso às visões do palácio.
Verena tentou projetar-se até lá, mesmo sabendo que viajar através
da Luz era impossível durante a noite.
O Rei pensara em todos os detalhes. Chamou-as no momento em
que seu clã tinha menos controle sobre o que acontecia ao seu redor.
— Me deixe ver — sussurrou para a garota.
Ela tentava e tentava, mas as palavras não atravessavam a parede
que sua amada erguera entre as duas.
Um tremor veio do outro lado da união e então... Verena sentiu.
Em cada osso de seu corpo.
Cada pedaço de pele imortal que cobria sua alma parecia em
chamas, até que a dor jogou-a no chão.
Verena gritava, rolando sobre o piso azulado e se entrelaçando nos
próprios cabelos esparramados.
Fogo sobre gelo.
Suas costas se arqueavam em espasmos dolorosos quando a
barreira entre ela e Lavínia finalmente caiu.
E isso não era um bom sinal.
— As mãos que forjaram o mundo — começou a garota, recitando
aqueles versos que a Primordial conhecia tão bem.
— NÃO! — Verena gritou outra vez.
— Enquanto as Sete abençoarem a Terra... — ela continuava
falando.
Por que estava falando? Precisava poupar seu fôlego, guardar suas
forças para...
— Lavínia. — As lágrimas ardiam em seus olhos, tanto quanto sua
pele que ainda reagia às chamas.
— Meu amor... — a garota sussurrou. — Saiba que eu não me
arrependo de nada.
E a dor física desapareceu.
Rodopiou para longe como se nunca tivesse existido, restando
apenas...
Nada.
Apenas um silêncio sepulcral a cumprimentava do outro lado.
Foi tudo em vão.
Foi tudo em vão.
Tudo o que fizeram e enfrentaram. A fúria de Alethea da qual elas
fugiram tantos anos atrás.
Em vão.
Um grito puramente animal rompeu sua garganta enquanto ela
chutava e socava a pedra debaixo de si.
Enquanto ela...
A visão se desfez.
Anya estava outra vez sentada no mezanino com aquele bule de
porcelana pousado ao lado dela. Seus cabelos estavam grudados em seu
rosto pelas lágrimas que ela nem sentiu caírem, enquanto Verena puxava o
próprio pulso para si.
O corte que ela abrira ali já não passava de um simples arranhão, e
seu rosto encarava por sobre o ombro da princesa. E os olhos da garota
pousaram novamente no aro prateado na mão esquerda da bruxa.
O anel de casamento.
Ou seja lá o que era aquele ritual de união sobre o qual tinham
falado.
— Tem certeza de que não quer chá? — Verena repetiu, com os
olhos marejados e apenas a sombra de um sorriso triste.
Demorou alguns segundos para que Anya percebesse que ela falava
sério. Mas então, ela entendeu.
Criaturas estranhas, vocês humanos. Desconfiados demais.
A bruxa precisava que ela confiasse.
Então, pegou a xícara vazia e ergueu-a até Verena.
Farah observava em silêncio a extensa coleção de adagas de Delilah,
perfeitamente penduradas na parede de madeira envernizada. Perguntava-se
quem as tinha forjado e quais eram os segredos que se escondiam através do
aço. Mesmo depois de tanto tempo, ainda estranhava que memórias fossem
marcadas com sangue. Que lembranças pudessem ser compartilhadas ou
desfeitas como se fossem moeda de troca, como se fossem nada.
A claridade amanteigada que atravessava as cortinas desenhava
sombras pela pequena cozinha da meio-bruxa, que discutia fervorosamente
com Silja.
— A princesa vai odiar essa ideia... — resmungou a curandeira,
apoiando a testa sobre o tampo da mesa de madeira.
— E eu não a culpo por isso. — Delilah deu de ombros. — Mas
Verena pediu que realizássemos o Braan como se ela fosse uma de nós.
O Braan era uma tradição de Havenmill, um tipo de apresentação
formal dos novos conjuradores para que recebessem as bençãos das Sete.
Exceto que a única das Bruxas Primordiais presente seria Verena. E que o
pequeno festival fosse inspirado diretamente por um antigo ritual de união
que era comum entre as bruxas muitos séculos atrás.
Quando eram presenteados pela bruxa da Luz com uma fração de
sua magia, toda a cidade se reunia na praça central. Então, o Cântico
Sagrado era entoado, enquanto os sete poderes que regem o mundo
aceitavam, abençoavam e acolhiam o novo conjurador em uma cerimônia
que era considerada o momento mais importante da vida de um morador de
Havenmill.
Era emocionante.
Mas naquele caso, uma ideia terrível.
— Ela acabou de perder os pais — Farah sussurrou, massageando as
têmporas.
— Também perdemos muitos dos nossos — Delilah contrapôs
suavemente, e a artesã não deixou de notar que a mulher tentou não
mencionar seu pai. Ou Faen. — Verena acredita que não podemos ignorar
algo tão importante para nosso povo. Nunca houve, em toda a história de
Havenmill, alguém que fizesse a Travessia e não realizasse o ritual.
— Assim como nunca houve ninguém da Coroa em nosso território,
ou recebendo magia, ou qualquer uma dessas coisas — Silja reclamou. —
Isso não significa que devemos forçá-la a participar de uma tradição nossa.
Cada vez que eu olho para a princesa, ainda fico na dúvida se ela vai me
acompanhar ou sair correndo.
Farah fechou os olhos, concentrando-se no calor do sol sobre sua
pele. Não havia resposta certa, não havia solução simples.
E ela estava simplesmente exausta.
Desde que Anya lhe dissera que Benjamin estaria no palácio, não
houve um único momento nem mesmo para respirar.
Foram planejamentos intermináveis seguidos de horas angustiantes
presa no calabouço do castelo, perguntando-se se Alexzander conseguira
fugir com a princesa ou se tudo aquilo tinha sido em vão. E as coisas apenas
pioraram desde então.
Desde que chegara em Havenmill, se manteve ocupada,
respondendo perguntas e buscando explicações para a magia de Benjamin.
Não se permitiu pensar por tempo demais no pai. Tinha medo de que não
conseguisse se recuperar daquilo.
E precisavam dela.
Quando, na noite anterior, cada um de seus amigos encontrara algo
que precisava fazer, Farah foi visitar a família da garota que salvara sua
vida.
Ainda não sabiam sobre Faen.
E assim, ela passou a madrugada, consolando-os por sua dor para
que não precisasse pensar na própria, contando a história sobre como a
garota tinha sido corajosa e a protegera para que tivesse uma chance de
chegar até ali.
Falou sobre como Faen tinha sido forte e destemida, e como a
barreira protetora que teceu reluzia como o mais puro dos ouros.
Não mencionou como a garota tinha gritado, não contou sobre o
som de seu corpo caindo sobre o chão de pedra. Estas coisas, apenas Farah
precisava saber.
E quando Alexzander surgiu na porta do chalé da família
procurando por ela, passou a dividir suas próprias histórias. Das vezes em
que viu Faen pela cidade e como ela sempre carregava um sorriso no rosto,
trazendo consigo toda a gentileza do mundo.
Uma mão macia afagou seu ombro, e Farah ergueu o rosto,
encontrando o poço esverdeado que eram os olhos de Delilah em sua forma
mais branda, tão suaves que destoavam da seriedade que lhe era habitual.
A meio-bruxa sorriu, puxando uma cadeira e sentando-se ao lado
dela.
— Concordo com vocês — ela começou —, também não sei o
quanto de nós a princesa ainda consegue aguentar. Mas Verena diz que é
essencial que o Braan aconteça. Ela acha que a cerimônia será decisiva para
que a aliança com a princesa se fortaleça.
Silja bufou.
— Verena nem a conhece. Elas estão se encontrando pela primeira
vez nesse exato momento!
— Não se esqueça que os olhos dela alcançam qualquer lugar onde
haja luz. — Delilah deu de ombros. — E que ela adora falar em enigmas.
— A vida imortal deixou-a entediada — Farah murmurou. — Seu
passatempo deve ser nos observar tentando decifrar suas charadas.
Isso roubou uma risada de suas amigas, e a artesã se permitiu sorrir
também.
Com um gesto simples dos dedos, Delilah enviou uma brisa suave
até o fogão, apagando sua chama que aquecia água em uma chaleira de
barro.
— Café — disse apenas.
Farah sorriu ainda mais.
Passara tanto tempo vivendo em Wellin tendo de esconder sua
magia do mundo, que, às vezes, até mesmo esquecia que poderia usá-la.
Não precisava mais fingir, não para elas.
Não em Havenmill.
— Exibida. — Silja fez biquinho.
— Não seja maldosa, minha querida. — A meio-bruxa gargalhou.
— Podem pensar que está com inveja de poderes elementais.
— Jamais. — A curandeira revirou os olhos. — Quem contará para
a princesa que ela precisará colocar um vestido bonito e comemorar a
existência de uma magia que ela odeia?
Todos os sorrisos desapareceram.
— Ela mal me conhece. — Delilah ergueu as mãos, se esquivando
da responsabilidade.
— Lembre-se de todo o tempo que vocês terão de passar juntas
quando tiver que treiná-la, minha querida — debochou Silja.
— Acho que nós duas poderíamos fazer isso juntas — Farah
interrompeu-as, apontando para a curandeira. — Eu e Anya nos
conhecemos há muito tempo, e ela parece gostar de você também.
— Viu? — Silja mostrou a língua para Dell. — A princesa gosta de
mim.
Delilah simplesmente se levantou e caminhou até o fogão para
preparar o café, balançando a cabeça em uma irritação fingida.
— Certo — a artesã prosseguiu, ignorando as duas —, só
precisamos encontrar um jeito de fazer com que ela entenda tudo isso.
Quando é que as coisas se tornariam fáceis?
— Podemos ajudá-las a pensar em algo hoje à tarde, na reunião do
conselho — Dell comentou.
As duas garotas se calaram, tentando entender as palavras que
pairavam entre as três. Será que... Não, não poderia ser.
— Tem um lugar reservado para você na mesa, Farah — a meio-
bruxa continuou, abrindo um sorriso tímido. — Tenho certeza de que seu
pai gostaria que o aceitasse.
E as lágrimas que ela tentara conter com tanto afinco nas últimas
horas venceram. Sim, seu pai adoraria isso. Provavelmente, sorria
orgulhoso da filha naquele momento.
A mulher pousou uma xícara cheia de café na frente de cada uma
das garotas, logo depois, acariciou outra vez o ombro de Farah.
— E você — Dell apontou para Silja — é um pé no saco, mas já
estava na hora de aceitarem que você faça parte do Conselho também.
— O quê? — a curandeira gritou. — E Jett não teve um ataque
cardíaco por causa disso?
— Teve dois. — A mulher gargalhou. — Não se preocupe, estou
mais do que acostumada a lidar com meu pai.
Farah era incapaz de explicar o quanto sentira falta daquelas duas.
Ela secou as lágrimas com o dorso das mãos e jogou os olhos para o alto,
impedindo que novas brotassem.
E ali, reunidas naquela cozinha, não conseguia deixar de pensar em
como teria sido sua vida caso seu pai não tivesse aceitado aquela missão. Se
não tivessem se mudado para Wellin e ela tivesse crescido em Havenmill.
Com tantas pessoas que a amavam.
Talvez, Magmar ainda estivesse vivo.
Fugindo daquele pensamento, encontrou Delilah ainda a
observando. Seus lábios sorriam, mas a expressão não chegava aos olhos.
Era como se lesse cada um dos pensamentos da garota.
— Sempre seremos sua família — disse. — Seu pai foi o amigo
mais antigo que eu já tive e era o homem mais justo e bom que conheci.
Honrarei cada conselho, ajuda ou conversa boa que tivemos cuidando de
você.
E o choro que mal havia secado, irrompeu de sua garganta mais uma
vez. Ela lançou os braços para a mulher ao seu lado, sem se importar com
os segundos em que Dell simplesmente ficou paralisada. Porque quando a
meio-bruxa retribuiu o abraço, foi mais aconchegante do que qualquer
definição de lar que Farah já tivera.
Silja arrastou sua cadeira, disfarçando ao secar as próprias lágrimas
enquanto se despedia.
— Preciso ir. Tenho de avisar Gerry que as entregas serão suspensas
por... tempo indeterminado.
E Farah conseguia ver a tristeza no rosto de sua amiga por ter de
encerrar suas idas até Ediri. Não somente pelo namorado, mas porque o
mundo lá fora sempre foi o grande amor da vida garota.
— Tome cuidado — Delilah pediu. — E sinto muito que precise
fazer isso. Ah, não se atrase para sua primeira reunião como membro do
Conselho.
Silja apenas assentiu, desaparecendo para fora da casa.
— E você — prosseguiu — pode ficar aqui e almoçar comigo. O
chalé estará vazio até o fim do dia.
E Farah ficaria.
Pois apesar da dor em seu peito — e do café forte demais — ao
menos, não estava sozinha.
Quando Alexzander chegou ao gabinete para a reunião do Conselho,
soube na mesma hora que havia algo errado.
Sua irmã, que tanto almejava fazer parte daquela mesa,
simplesmente não estava ali.
Atrasada em seu primeiro dia.
Ele já tinha percebido seu comportamento estranho mais cedo,
quando a garota voltou de Ediri. Mal trocaram duas palavras ao se
encontrarem nas plantações, antes que ela disparasse para resolver qualquer
coisa no chalé.
Silja nunca ficava sem algo para contar.
Conversamos na reunião, dissera, com uma expressão transtornada
no rosto.
E agora, ela não estava ali.
— Cadê sua irmã? — Delilah questionou ao vê-lo chegar
desacompanhado.
— Não faço ideia. — Alexzander passou a mão pelos cabelos,
tentando disfarçar sua preocupação. — Mas algo aconteceu na floresta hoje.
— Como assim “algo aconteceu na floresta”? — indagou Farah, que
estava sentada no antigo lugar de Magmar.
Um misto de felicidade e pesar atingiu-o com a visão.
A artesã merecia a posição. Tinha feito um ótimo trabalho no
palácio, ainda que indiretamente, nos últimos anos. Mas era triste pensar
que Farah ocupava agora a cadeira de outra pessoa, e não que uma havia
sido acrescentada para ela.
Poucos passos foram necessários para que ele chegasse até a única
janela do pequeno escritório. A poeira se acumulava no vidro, impedindo
que a luz entrasse adequadamente.
A sala que mal acomodava uma mesa para seis pessoas era chamada
de gabinete por ser o mais próximo de uma locação oficial que Havenmill
possuía. Era pequena, úmida e cheirava a mofo. Mas era uma zona neutra,
imparcial. E os forçava a transformarem qualquer discussão na conversa
mais sucinta possível, para que pudessem abandonar o lugar com rapidez.
— Ela não quis me contar — respondeu, olhando as crianças
brincarem através da janela suja. — Mas estava preocupada.
— Acha que Gerry fez alguma coisa? — Dell questionou.
Alexzander chegou a pensar nisso. Que o rapaz não recebera bem a
notícia de que teriam de cancelar os encontros, e destratara a garota. Mas
isso deixaria Silja com raiva e não com a apreensão que ela trazia no rosto.
Sua irmã estava com medo.
E isso o assustava também.
— Não. Acho que ele, na verdade, trouxe alguma informação que
ela não gostou.
Alexzander conseguia sentir os olhos de todos cravados em suas
costas. Conseguia sentir a tensão de todos naquela sala, e se admirou que
Jett — pai de Delilah — ainda estivesse em silêncio.
O senhor de quase setenta anos colecionava comentários indelicados
e preferia cair morto a demonstrar qualquer tipo de gentileza. E era estranho
tê-lo tão quieto diante do atraso de Silja.
Cortesia não garante que as coisas sejam feitas, resmungava o
tempo todo. E o rapaz sentia pena da meio-bruxa por ter de lidar com ele a
vida inteira.
A porta rangeu um segundo depois, trazendo uma Silja de
bochechas rosadas e sem qualquer indício de preocupação no rosto.
Como se nada tivesse acontecido.
— Me perdoem pelo atraso. — Deu de ombros. Mas a voz a
entregou. Sim, algo tinha acontecido e ela estava tentando soar casual. —
Eu poderia jurar que o gabinete ficava mais perto do chalé.
Ninguém pareceu acreditar naquela justificativa, mas Dell apenas a
analisou por alguns segundos e respondeu com suavidade:
— Sem problemas, não estamos com pressa. — Ela sorriu.
Jett bufou, mas permaneceu em silêncio — o que já era um grande
avanço quando o assunto era polidez.
Alexzander puxou uma cadeira para irmã e sentou-se ao seu lado. E
quando a meio-bruxa estava prestes a começar a reunião, Silja suspirou alto
e disse:
— Quase fomos vistos em Ediri hoje.
Todos na sala pareceram prender a respiração, como se pudessem
ver a informação sendo jogada sobre a mesa de vidro.
— O que quer dizer, exatamente, com “quase”? — a meio-bruxa
perguntou.
A curandeira escondeu as mãos sob a mesa e mordeu o lábio
inferior.
— Quase como em “Benjamin colocou um soldado em cada esquina
de Wellin, Ardith e da Aldeia”. Estávamos conversando perto das fronteiras
da floresta quando ouvimos a movimentação por entre as árvores.
Silêncio mais uma vez.
— Está me dizendo — Delilah finalmente falou — que havia
soldados dentro de Ediri?
Silja assentiu.
— Parece que o ódio pelo que aconteceu com o Rei é mais forte do
que o medo que eles têm dessas terras. Estão procurando pela princesa.
— Não — Farah interrompeu. — Estão procurando por mim, porque
o príncipe sabe eu que iria até a princesa. Ele não consegue controlar todos
os guerreiros ao mesmo tempo, está usando seu poder apenas nos homens
que estavam no palácio durante o ataque, para que não falem sobre o que
aconteceu dentro daquelas paredes.
Magmar uma vez explicou como as coisas funcionavam com a
Guarda Real, que havia apenas uma tropa de confiança máxima com
autorização para circular pelo castelo.
— Os outros homens não precisam de magia para caçar
conjuradores — Farah prosseguiu —, fizeram isso a vida inteira. Mas como
Benjamin disse que Anya também foi morta naquela invasão, não acho que
ele colocaria os homens procurando por ela.
— Então, estão atrás de você — Alexzander completou.
A garota assentiu.
— Certo. — O rapaz suspirou. — Precisamos fortalecer as barreiras
de Havenmill. Com a magia de Verena em seu limite, temos de manter
olhos nas proteções permanentemente.
— Não temos Artesões preparados para isso. — Delilah esfregou os
olhos. — Magmar era o único em constante treinamento, pois estava
sempre em risco lá fora. Aqui embaixo... estão todos acomodados. Precisam
praticar.
— Isso foi um erro nosso — Jett resmungou, apoiando as mãos na
mesa com os dedos entrelaçados. — Deixamos que todos acreditassem que
Havenmill era uma solução permanente. As gerações passadas vêm fazendo
isso desde que a cidade foi fundada quando, na verdade, deveriam estar
buscando por soluções.
— Acha que consegue ajudá-los? — Alexzander perguntou para
Dell.
— Acho que você precisa ajudá-los — a meio-bruxa contrapôs,
fazendo uma careta quase imperceptível — Eu tenho que treinar a princesa.
Claro.
Delilah era a única pessoa forte o suficiente para lidar com a magia
recém-descoberta de um conjurador.
— E o que diremos para eles? — Silja questionou. — Como vamos
explicar que o único lugar seguro que eles conhecem está sob risco de
ataque? Estiveram no escuro sobre qualquer coisa que ocorre lá fora por
tempo demais.
— Contaremos a verdade — Jett respondeu. — Que durante o
tempo em que Magmar trabalhou no palácio, descobrimos que havia uma
chance de evitarmos que o reino fosse governado por um homem tão
desprezível quanto Benjamin. Que a vida da herdeira estava em risco, e que
ela poderia ser a chave para que Havenmill fizesse as pazes com a Coroa.
— E então, faremos com que pratiquem. Que aperfeiçoem seus
poderes para garantirmos que nossa cidade permaneça oculta até que tudo
se resolva. — Delilah complementou — E eu, transformo a princesa na
melhor conjuradora que eu puder.
— E você tem apenas um mês para fazer isso — Silja sussurrou.
— O quê? — disseram todos em uníssono.
— A coroação de Benjamin acontecerá em cinco semanas.
O chá ainda estava quente quando tocou os lábios da princesa. Ela
sabia que estava sentada naquela poltrona há muito tempo, e sabia que se
tratava de tempo real — não somente a ilusão caótica que tomava conta
dela vez ou outra.
Ainda assim, ele estava quente como se Verena o tivesse preparado
naquele momento.
Não havia nada de particularmente incomum a respeito de seu gosto,
entretanto. Apenas canela e um suave toque de mel. Mas foi bom ter a
bebida para manter-se ocupada, pois parecia que todas as palavras haviam
sido roubadas dela no instante em que voltara para o momento presente.
Aquelas memórias...
Pelos deuses.
Estava tudo errado!
Ano após ano, século após século, aquelas pessoas haviam sido
perseguidas por causa de uma história que era mentira. As bruxas não
atacaram Tamal. Ele as tinha atacado.
E agora, pensando sobre isso, todas as peças pareceram se encaixar.
Porque aquelas pessoas ainda cultuavam a magia — e Verena —, mesmo
quando isso trazia tanto risco para elas. Porque todos olhavam para Anya
com tanta desconfiança quanto ela olhava para eles.
Ela era a culpada por toda aquela perseguição.
Bom, a família dela, pelo menos.
E de repente, a princesa entendeu o seu papel em todo aquele jogo.
Poderia consertar as coisas.
Se ela conseguisse chegar ao trono, teria uma chance de fazer de
Duhn um lugar acolhedor para todas as pessoas que viviam ali. Ou, ao
menos, começar esse processo.
— Sinto muito — conseguiu dizer finalmente.
O fantasma de um sorriso passou pelos lábios da bruxa.
— Eu também. Mas não foi por isso que mostrei aquelas memórias.
A princesa entendeu o que ela quis dizer.
— Tamal era um conjurador — sussurrou e as palavras deixavam
um gosto amargo em sua boca, apesar do chá adocicado.
— Ele ainda é.
— O quê?
Verena respirou fundo, como se estivesse se preparando para contar
uma longa história.
— Tamal não se tornou apenas um conjurador. E é imortal.
A princesa não soube o que dizer. Aquelas eram as palavras mais
absurdas que ela já tinha ouvido. Mais do que todas as outras coisas
absurdas que haviam sido contadas a ela nos últimos dias. Humanos não
poderiam se tornar imortais, poderiam?
— Imagino que tenham lhe explicado sobre as Sete Bruxas antes de
vir para cá. — Verena prosseguiu, dando apenas tempo para que Anya
confirmasse com a cabeça. — Cada uma de nós somos responsáveis por um
dos aspectos primordiais que movem o mundo. A Luz, a Escuridão, os
quatro elementos básicos da natureza e... a Vida e a Morte. Os dois últimos
se complementam, assim como o Tempo.
— O Tempo?
— O que é o tempo se não a passagem da vida?
Ela não sabia o que responder.
— O motivo pelo qual nunca pudemos enfrentar Tamal quando ele
começou a nos perseguir é que ele recebeu os poderes dessa última bruxa.
Alethea é o nome dela.
Alethea.
A princesa se lembrava ter ouvido aquele nome em uma das visões.
— E ela é a Bruxa Primordial da Morte?
— Não existe nada que faça a morte se curvar. — Verena
prosseguiu, girando a aliança em seu dedo fino. — Nem mesmo a luz. E se
Alethea precisava de Tamal vivo, não existia nada que nós pudéssemos
fazer.
A garota estava errada. O antigo Rei ser imortal não era a coisa mais
absurda que ela já ouvira. Isso era.
— Por que uma bruxa tão poderosa precisaria de um humano? —
questionou.
— Para chegar até mim. — Uma risada sem humor escapou da
bruxa. — Tamal era um homem ganancioso e com sede de poder. E ele
sabia que jamais teria poder absoluto sobre este reino enquanto uma das
Bruxas Primordiais vivesse em seu território. Então, foi atrás da bruxa que
não somente poderia permitir que ele reinasse para sempre, como lhe daria
meios de me enfrentar.
— Mas por que Alethea queria chegar até você?
Ela sentia como se seu mundo inteiro abrisse debaixo de seus pés. A
história era uma mentira, o antigo rei era imortal e uma bruxa com poderes
da morte estava atrás daquela diante de si.
As paredes ao seu redor pareciam começar a se mover,
aproximando-se dela como se a quisessem sufocar, esmagar. Precisou
abandonar sua xícara sobre a mesinha para evitar que ela caísse no chão.
Verena percebeu o pânico que tomava conta dela, e fez com que
todos os itens do chá desaparecessem.
— Venha comigo, vamos para outro lugar — disse, levantando-se.
Anya acompanhou-a em silêncio pelo mezanino, aliviada pela
caminhada que a ajudava a respirar melhor.
O único som vinha dos passos da princesa, e seus olhos mal
conseguiam acompanhar a quantidade de detalhes que o lugar apresentava.
As paredes esculpidas até o teto pareciam contar histórias. Ela viu
mulheres com suas mãos erguidas, tecendo espirais de fumaça em direção
aos céus. Viu mulheres com suas mãos em concha, derramando algo sobre
rios. Viu mulheres com as mãos no solo, rodeadas por árvores e flores.
Sempre representações femininas.
Sempre em grupos de sete.
A criação do mundo, finalmente percebeu.
Eram as Sete Bruxas Primordiais.
Havia símbolos que se assemelhavam a letras de um idioma que ela
não conhecia, mas suspeitou que contava a história esculpida na pedra.
Chegaram ao fim do mezanino, em frente à uma porta de madeira
lustrosa e escura. E ela se abriu sem qualquer toque, gesto ou palavra.
A princesa reconheceu o escritório.
Estivera nele em uma das lembranças.
Como Verena.
Com Lavínia.
A bruxa se apressou até as pesadas cortinas, abrindo-as
agressivamente. Como se não pudesse suportar a escuridão que elas
derramavam sobre o lugar.
— Existe um Tratado — a mulher disse, depois de muitos minutos.
— E ele proíbe que magia seja compartilhada com humanos. Alethea
sempre me considerou estúpida e ingênua por acreditar que vocês são tão
merecedores destas bençãos quanto nós. Ela sempre acreditou que humanos
apenas se aproximavam visando nossos poderes. Que nos tratavam como
divindades para que pudessem se tornar deuses também.
“Eu nunca acreditei nisso, e segui fazendo as coisas como achava
certo. Presenteei humanos com sementes de poder sem me deixar levar
pelos preconceitos de Alethea. Mas ela não gostou de ter sua autoridade
questionada, e me procura desde então. As barreiras protetoras que ergui em
torno de Duhn são a única coisa que a impedem de chegar até mim.”
— E quando Tamal apareceu lá dizendo que também queria se livrar
de você... —Anya deduziu o resto.
— Exatamente. Ela ofereceu a imortalidade a ele, em troca de um
pequeno favor. Eu. — A bruxa sentou-se na imensa cadeia atrás da mesa de
vidro e apontou para um pequeno sofá que a princesa não reconheceu
daquelas memórias. — Sente-se, deve estar com fome.
E enquanto a princesa se acomodava entre as almofadas, que eram
muito mais confortáveis do que pareciam, uma cesta de pãezinhos com
manteiga surgiu sobre a mesa.
Mas apesar do cheiro incrível que vinha dali, sua fome tinha
desaparecido.
— Em uma das visões — a princesa estremeceu —, Lavínia disse
algo sobre algum tipo de falha sobre a imortalidade. Foi por isso que Tamal
conseguiu fazer aquilo com seu clã?
Ela não teve coragem para transformar “aquilo” em palavras mais
específicas.
— Existem duas formas para que Alethea controle a Vida. Ela pode
parar o Tempo e permitir que você jamais envelheça, e ela pode afastar a
Morte, impedindo que você... morra. Enquanto eu erguia meu escudo de
proteção, ela teve tempo de anular apenas um dos dois.
— A Morte — Anya sussurrou. — Por que ela faria isso com uma
das próprias irmãs?
Verena bufou, e foi o gesto mais humano que ela tivera desde que se
conheceram.
— Porque Alethea é uma tola. Diz que a imortalidade nos impede de
entender o real peso da Vida, então, simplesmente acabou com tudo. Bom,
ela tentou.
E quase conseguiu, a princesa pensou.
— E o que aconteceu com Tamal?
— Deixou Duhn para trás logo após o incêndio, não tive notícias
desde então — Ela deu de ombros. — Ele não faz ideia de que sobrevivi
àquela noite, e imagino que, ao provar do gosto da vida eterna, tenha
desistido de desperdiçá-la em uma simples Coroa.
Uma simples Coroa.
— Acha que Alethea pode ter reestabelecido a mortalidade dele?
— Sim, mas sua juventude permanece, pelo que ouvi. Alethea sabe
que ele falhou em sua missão comigo, no entanto, ficou satisfeita pelo resto
do estrago que ele deixou. Eu queria poder ir atrás dele, porém, estas
barreiras são a única proteção que tenho. — Verena parou de falar como se
ponderasse o que poderia contar. — E mesmo elas estão começando a
falhar.
Anya piscou, sem ter certeza se tinha entendido.
— Suas barreiras?
— Manter Havenmill têm exigido um esforço imenso de meu poder.
— A bruxa encarou as próprias mãos, parecia envergonhada. — O ritual
que realizei com Lavínia, ele...
As palavras pareceram fugir de Verena, como se a simples menção a
sua esposa fosse difícil demais.
O peito da princesa pesou. Ela não conseguia imaginar carregar o
peso da perda por tanto tempo. Parecia insuportável, e percebeu que
começava a se afeiçoar à bruxa.
— O ritual de união é o vínculo mais poderoso que pode ser criado
entre dois seres. Quando você vê a si mesmo no outro, quando encontra
alguém que faz com que tudo simplesmente tenha sentido, essa cerimônia
cria uma ligação para sempre. Vocês se transformam em um, habitando
corpos diferentes.
— Como almas gêmeas?
— Não. Chamar isso de “almas gêmeas” insinua que esse tipo de
ligação é predestinada, e o amor não funciona desse jeito. — O rosto dela
ao dizer aquelas palavras foi de cortar o coração. — Você encontra essa
pessoa e você escolhe estar com ela. O amor não é perfeito... Você precisa
aprender a gostar das falhas também. Não se pode colocar esse tipo de
decisão nas mãos do acaso.
Verena teve isso nas mãos e perdeu.
Não, ela teve isso nas mãos e foi roubada.
A princesa não sabia o que dizer, e sentiu os olhos arderem ao
imaginar o tipo de vazio que romper aquela união poderia deixar.
Como se lesse seus pensamentos, a bruxa prosseguiu:
— Quando Lavínia e eu nos unimos, quando nos transformamos em
uma só, minha magia também foi compartilhada. E quando o laço se partiu,
metade dos meus poderes se perdeu também.
— Pelos deuses — Anya praguejou.
E, para sua surpresa, Verena riu.
Não foi um riso alegre, mas parecia carregar algo como saudade.
— Já fui um dos deuses aos quais você chama — ela disse com
suavidade. — Minhas irmãs, para além do continente, ainda são tratadas
assim. Mas Duhn vêm enfrentando uma era de negação desde Tamal, e seu
trabalho foi tão bem-feito que as pessoas simplesmente... se esqueceram.
Elas não somente temem a magia, elas não sabem quem somos ou o que
criamos.
Anya pensou em sua conversa com Silja. E pareceu tão óbvio então!
Os Dahnasa substituíram a fé do povo nas Deusas pela Coroa, direcionaram
suas crenças para sua própria instituição antes que eles tivessem tempo de
buscar por outra divindade.
Elas foram desacreditadas e enterradas tão fundo no passado que
ninguém lá fora, ao menos, tinha consciência de sua existência.
— Farei o possível para que eles se lembrem e para que não precise
mais dedicar tanto de seu poder para sustentar Havenmill — a princesa
disse, e as palavras eram verdadeiras. — Quando isso tudo acabar, levarei
todos para Duhn.
Estava cansada de mentiras.
De ter tantas coisas roubadas de si.
Sua história, seus pais, seu reino...
— Agradeço que tenha, finalmente, aceitado nos ajudar de verdade.
— A bruxa pousou as mãos sobre a mesa e encarou-a. — Mas tem mais
uma coisa que você precisa saber.
A princesa suspirou alto e aguardou.
— Seu primo — Verena disse — possui a mesma magia de Tamal.
— O quê?
— Aquilo que viu Tamal fazer no palácio com os soldados... Faz
você lembrar de alguma coisa? Ou de alguém?
Benjamin.
Farah havia dito que Benjamin era um conjurador e que mantinha
seu controle sobre todos no castelo. Ele estava fazendo a mesma coisa que o
antigo Rei fizera há quatrocentos anos.
Seu primo havia encontrado Alethea.
E estava ali para terminar o que Tamal não conseguiu.
— Que chance eu tenho contra ele? — ela sussurrou. — Se nem
mesmo um clã inteiro de bruxas foi capaz de combater essa magia?
— Você precisa confiar em mim quando eu digo que suas chances
são muito melhores do que você imagina. — Seu rosto mostrava que ela
queria contar mais alguma coisa. No entanto, apenas completou com: — E
não terá de fazer nada sozinha. Todos eles estão lá para ajudá-la.
Ela sabia de quem Verena falava.
De Alexzander, que a tinha resgatado do castelo. Silja, que curara
seus ferimentos e tivera tanta paciência para mostrar a cidade a ela, mesmo
que a princesa não agisse de forma tão receptiva. E Farah... Sua amiga
Farah, que a acompanhou desde pequena, quando brincavam de boneca
juntas, até agora. Até ali.
— E eu também tenho uma coisa para você — a bruxa completou.
E quando Verena se levantou, já não era a mesma mulher que
estivera com ela naquela manhã.
Não.
Ela era a Bruxa Primordial da Luz, uma das Sete Deusas que
teceram o mundo por entre seus próprios dedos. Uma aura sobrenatural
cobria cada centímetro daquele corpo imortal.
Anya engoliu em seco, percebendo que os olhos de Verena já não
passavam de duas fendas minúsculas e que suas as narinas estavam
dilatadas.
A mulher se movia como se estivesse dançando uma música que
apenas ela era capaz de ouvir.
Uma predadora, ainda que a garota não sentisse medo.
Então, Verena estendeu sua palma em direção ao rosto da princesa, e
quando seus dedos mornos tocaram sua testa, ela sentiu.
A sala foi preenchida por um silêncio pesado marcado por um ruído
estático insuportável, enquanto a magia da Luz atravessava seu corpo com a
força de um raio e Anya perdia a consciência.
Por um momento, Anya chegou a pensar que estava novamente em
uma lembrança.
Mas não havia névoa ou sombras desta vez. Não havia coisa
alguma, na verdade.
Era como se corresse rápido demais e o mundo à sua volta não
passasse de um borrão. O vento chicoteava seu rosto com violência, e seus
olhos semicerrados ardiam, impedindo-a de identificar onde estava.
Ela sentia grama e gravetos espetando seus pés descalços, e o vulto
esverdeado ao seu redor a fizera pensar nos pinheiros naquela primeira
noite. Exceto que era dia, e que ela não corria por entre as árvores, e sim na
direção delas.
Seus cabelos longos voavam enfurecidos ao seu redor e Anya queria
tirá-los de sua frente, na esperança de que isso facilitasse sua visão. Mas seu
corpo novamente não obedeceu.
Preciso sair, preciso sair, preciso sair.
A voz que cortou seus pensamentos não era sua, mas a princesa a
conhecia com todo o seu coração.
Elysia.
Sua mãe.
Por favor, que as proteções não estejam longe demais, repetia ela.
De novo e de novo e de novo.
Seus pés doíam tanto que ela tropeçou, mas quando levou as mãos à
frente para amortecer a queda, quando finalmente tocou o chão, não estava
mais caindo.
Estava apenas deitada ali. A grama fazia cócegas em seu corpo e sua
visão já não estava embaçada. Seus dedos eram seus outra vez.
Era uma lembrança dela mesma.
E ao mesmo tempo, não era.
Pois não reconhecia aquele momento.
Estava em Ediri, com os pinheiros erguendo-se ao seu redor. Os
céus eram uma mistura estranha de ouro e prata, como se o sol estivesse na
dúvida de qual cor usaria para pintá-lo.
Quando ela se sentou, os tons mudaram.
Ficaram de um laranja intenso como o crepúsculo, e a princesa
reconheceu a forma de Verena ao longe.
A bruxa erguia as mãos ao alto, e seus cabelos impossivelmente
longos pareciam derramar-se para todos os lados e acompanhar o
movimento de seus dedos. Eles subiam, espiralando até o dossel que cobria
o mundo, manchando-o de pôr do sol.
Alguém apagou a luz.
Anya esfregou os olhos, mas era impossível enxergar qualquer
coisa.
Tinha a certeza de estar ao ar livre, mas não havia luar ou estrelas,
apenas o breu infinito. Um eclipse no qual nada se refletia além da própria
escuridão.
Entretanto, não havia incômodo no vazio, na ausência. Era tudo
estranhamente reconfortante.
Seu corpo formigava e Anya teve novos flashes de ouro e prata,
como fogos de artifício. Sua pele estava tão quente que era como se uma
tocha estivesse acesa ao seu lado, mesmo que o vento que voava contra ela
fosse frio como o inverno.
Ainda sentia a grama sob seus pés e, ao longe, havia o som de água
corrente. Talvez ainda estivesse em Ediri.
Uma música estranha soava, fraca, baixa, quase um sussurro.
A luz voltou ao mundo, e Anya estava novamente no escritório de
Verena.
Caída sobre as almofadas do sofá em suas roupas de treino.
Tinha voltado para o presente.
A bruxa estava sentada em sua cadeira atrás da mesa de vidro, as
mãos cruzadas sob o queixo.
Ela sorria.
Sorria como um artista admirando sua obra, sorria como um alguém
que conhecia um segredo único e transformador.
E a julgar pela posição do sol sobre o chão azulado, apenas alguns
minutos se passaram desde que a princesa apagara.
Tudo estava igual.
Mas ao mesmo tempo, não estava.
Não era algo visível ou palpável, apenas uma sensação.
Um formigamento que se espalhava por seu corpo como se fosse
feito de seu próprio sangue.
E achou estranho que aquilo fosse tão... bom.
Não sentia mais medo.
Logo ela, que sempre tivera horror a magia, tinha aquele poder
pulsando dentro de si. E não parecia mais errado.
Verena não demonstrava saber sobre aquelas estranhas visões, ou ao
menos, se importar com elas.
Apenas continuou sorrindo.
— É como chegar em casa, não acha? — a bruxa disse finalmente.
E as palavras exprimiram tudo o que se agitava dentro da princesa.
Era a resposta que ela procurava para explicar o que estava sentindo.
— O que acontece agora? — Anya perguntou. — Quero dizer, a
respeito de Benjamin, Tamal, Havenmill...
— Tamal não é um problema com o qual tenha de se preocupar.
Levei você até aquela noite pois precisava que entendesse. Que conhecesse
a nossa versão dos fatos. A verdade sobre tudo o que aconteceu. — Ela se
levantou. — E quanto ao seu primo, sugiro que converse com minha neta.
Ela poderá ajudá-la a descobrir como a magia irá se manifestar em você e
como usá-la.
Anya demorou alguns segundos para entender a última frase.
Claro, Delilah.
A meio-bruxa que treinava as crianças.
E que, aparentemente, treinaria ela também.
— Terminamos por aqui — Verena concluiu, abrindo a porta do
escritório e acenando para que a princesa saísse.
Elas refizeram o mesmo caminho até as escadas, e seguiram para o
grande salão de entrada.
A princesa não saberia dizer se a bruxa falara mais alguma coisa,
estava absorta na nova sensação que corria dentro dela — um misto de
surpresa e deslumbramento.
Não tinha certeza se deveria reagir de forma tão confortável àquilo,
e não foi capaz de afastar por completo o pensamento de que estava traindo
sua família. Sua Coroa.
Não.
Não estava.
A Coroa havia cometido um erro e ela estava ali para concertá-lo.
— Vai se acostumar. — Verena riu quando chegaram ao grande
portão que em nada se parecia à porta de madeira na qual Anya entrara. —
A magia está reconhecendo você.
Reconhecendo.
Como se elas já tivessem se encontrado antes.
Escolha estranha de palavras.
— Como você chama esse lugar? — A garota acenou para o salão.
— Casa. — A bruxa ergueu uma sobrancelha. — Em Havenmill, se
referem a este espaço como Refúgio. E ele funciona exatamente como o
nome que recebeu. Será sempre bem-vinda aqui quando precisar pensar ou
de conselhos. Ou só porque gostou do meu chá.
— Certo. — Ela riu. — Agradeço pela... magia. E por todas as
respostas. O que me mostrou hoje mudou tudo.
— Eu sei. E existe uma última coisa que precisará fazer. Para que
complete o ciclo da Travessia, quero dizer.
Anya ergueu uma sobrancelha, mas aguardou em silêncio.
— Seus amigos poderão explicar melhor para você. Mas existe uma
cerimônia que acontece depois de ser presenteada com meus poderes. — A
bruxa pousou uma mão em seu ombro e um arrepio cruzou o corpo da
princesa. — Sei que você tem muitos motivos para recusar uma
comemoração agora, mas é muito importante que participe. Para você e
para eles.
E antes que a princesa pudesse refletir sobre aquele pedido, antes
mesmo que absorvesse a forma como Verena se referiu àquelas pessoas
como seus amigos, as portas do Refúgio se abriram.
— Aceite a origem de seus poderes. — Foi a última coisa que ouviu
antes de ser empurrada para fora por um vento invisível.
Um segundo mais tarde, estava de volta à floresta, entre um
amontoado de rochas cobertas de musgo.
E a porta de madeira se dissolveu em nada, como se tudo não tivesse
passado de um sonho.
Conan precisava dizer que a amava.
Se ela sobrevivesse a isso.
Se ele sobrevivesse a isso.
Se algum dia ele saísse daquele maldito castelo e dos domínios
daquela magia terrível, precisava que Anya soubesse que aqueles olhos cor
de âmbar eram as únicas coisas que o mantinham longe da escuridão. Que
eram sua âncora quando as sombras tomavam conta de seus pensamentos,
quando as raízes prateadas ganhavam mais e mais espaço dentro dele.
Suas mãos tinham sido transformadas em armas e sua boca
respondia perguntas que poderiam ser vitais. Mas apesar disso, a mente do
soldado ainda resistia.
Por ela.
Pela mulher que ele tivera nos braços, que ele carregara dentro do
coração sem que ela jamais soubesse que era amada.
O abismo que o separava da realeza já não importava mais.
E caso Conan se libertasse daquelas garras invisíveis que o
controlavam, contaria a verdade.
Diria que o veludo daquela pele era a textura preferida de seus
dedos e que o meio sorriso dela poderia iluminar até o mais denso dos
breus. Diria que aquele aroma de canela e pinha ainda estava atrelado aos
lençóis que ele não ousara trocar, e que a falta dos cachos dela
esparramados sobre seu travesseiro era um peso constante.
E agora, seus dias se estendiam ao redor de um príncipe perverso, e
comandando os homens de sua tropa para que caçassem a mulher que
significava tudo para ele.
Conan também a caçava para ser honesto.
E apesar de todas as tentativas de resistir contra aquela obediência
cega que seu corpo tinha à magia de Benjamin, ele não conseguia.
Se a hora chegasse, se Anya cruzasse seu caminho cedo demais, o
poder senhor de suas mãos o submeteria a tomar a vida daquela que
carregava o coração dele junto com o próprio.
A cada segundo de cada dia, ele pedia a qualquer deus disposto a
ouvi-lo que o príncipe se cansasse de sua presença. Que o soldado se
tornasse descartável e inútil, e seu corpo fosse condenado ao fim antes que
sua alma se partisse para sempre.
Enquanto isso não acontecia, lhe restava apenas esperar que a
princesa estivesse longe. Que estivesse segura. E se o preço fosse nunca
mais voltar a vê-la, ele pagaria.
Mas caso sobrevivesse, Conan precisava dizer que a amava.
PARTE III:
O CAMINHO DO VENTO
A princesa não tinha certeza de como encontrou o caminho para o
chalé.
Sim, ela havia prestado atenção na estrada quando foi até o Refúgio,
mas estava tão perdida nos próprios pensamentos que, quando se deu conta,
já estava na praça central de Havenmill.
Ela não se lembrava de atravessar o portal de volta para a cidade ou
do trajeto até ali. Fizera tudo no modo automático, presa demais dentro de
si e da nova magia que tomava conta de seu corpo.
Queria poder saber o que seus pais pensariam se a vissem naquele
momento. Queria contar a eles que haviam cometido um erro, queria
mostrar a verdadeira história sobre aquele ataque e pedir que tentassem
reverter a situação.
Oliver seria difícil de persuadir. Ele trincaria o maxilar e seu rosto se
cobriria de vermelho. Suas mãos tremeriam pela raiva de ver sua filha se
unindo aos conjuradores.
Mas sua mãe... ela entenderia.
Choraria por toda a crueldade que a Coroa havia imposto sobre
aquelas pessoas e se comprometeria a tentar reparar o dano que havia sido
causado.
E por fim, convenceria o rei.
Elysia era o coração de Duhn, afinal.
Anya adentrou o chalé com os olhos cheios de lágrimas, sabendo
que sua mãe estava orgulhosa dela por fazer o que era certo. E encontrou
Silja encolhida em uma das poltronas verdes, observando Havenmill através
da janela aberta.
A curandeira estava com as pernas aninhadas contra seu peito, o
queixo apoiado nos joelhos, e parecia vagar por além do mundo real, ela
demorou para perceber que a princesa chegara ali.
— Está tudo bem? — Anya perguntou, estranhando a postura
introspectiva da garota.
— Eu não tinha assimilado o fato de que não veria Gerry novamente
até ter que me despedir dele.
A princesa se surpreendeu com a honestidade.
— Vocês brigaram?
A pergunta saiu antes do que ela conseguisse controlar, lembrando-
se do que Alexzander dissera sobre o comportamento do rapaz.
— Por que todo mundo me pergunta isso? — Ela revirou os olhos.
— Não, mas foi um encontro meio conturbado... As notícias lá de fora são
um tanto preocupantes.
O estômago de Anya se revirou.
— Preocupantes como?
— Não quero fazer suspense, mas prometi que contaria tudo a você
junto com Farah. — Silja ajeitou-se na cadeira, apontando para que a
princesa se sentasse na poltrona ao seu lado. — Como foi com Verena?
— Tão estranho quanto você pode imaginar. Mas foi meio
esclarecedor também.
A garota ergueu uma sobrancelha para ela enquanto a observava se
sentar.
— Verena me mostrou o que aconteceu durante o ataque — contou.
— Explicou melhor sobre as Sete. E Tamal. É... coisa demais para absorver
de uma vez só.
— Sinto muito. — A curandeira a observou com mais atenção,
então sorriu. — Você voltou diferente.
Ela certamente se sentia diferente.
— Sinto que conheço vocês um pouco melhor agora — a princesa
admitiu —, e isso me deixa mais à vontade. Quero dizer, não sei nada sobre
vocês de verdade, mas ajuda.
Anya não tinha muita certeza de como conversar com Silja agora
que eram realmente aliadas, e a forma como Verena se referiu à garota
como uma amiga ainda martelava em sua cabeça.
Será que poderiam mesmo?
Se tornarem amigas?
— Pergunte-me alguma coisa. — A curandeira sorriu.
— Ah?
— Vou preparar um lanche. Não sei você, mas eu não tive tempo de
comer coisa alguma desde que saí daqui pela manhã. — Ela se levantou em
um salto. — Enquanto cozinho, pergunte-me alguma coisa.
Anya permaneceu parada, encarando-a.
— Você disse que não sabe nada sobre mim. — Silja deu de ombros.
— Isso é fácil de se resolver.
— Eu não... sei o que perguntar.
— Tudo bem, eu começo. — Ela abriu o refrigerador e pegou
algumas fatias de queijo. — Qual a sua cor preferida?
A princesa riu.
— Minha cor preferida? Rosa?
— Você está me contando ou adivinhando?
— Eu nunca parei pra pensar nisso. — Ela deu de ombros. — Quero
dizer, se pensar na decoração de meus aposentos, por exemplo, é
definitivamente rosa. Ou dourado. Mas eu também gosto de roxo, pois me
faz pensar em minha mãe.
— Por que sua mãe?
— Lavandas são as flores preferidas dela. — Anya se encolheu. —
Eram as flores preferidas dela.
Silja assentiu, mordendo o interior da bochecha enquanto cortava
algumas fatias de pão.
— Também gosto de lavandas — disse por fim. — E qual é a sua
flor preferida.
Anya pensou por um momento, tentada a dizer que eram as mesmas
da mãe. Mas por alguma razão, o que veio à sua mente foram flores de
cerejeira.
Assim elas ficaram conversando por mais algum tempo, conforme a
curandeira preparava sanduíches e a princesa arrumava a mesa.
Ela descobriu que a cor preferida de Silja era amarelo e que a garota
amava gardênias. Que escolhia as roupas do irmão para usar baseada no
tipo de tecido.
Acho um crime desperdiçar linho de qualidade naquele troglodita,
ela tinha dito.
Anya contou sobre sua paixão pelo piano e sobre seus livros
preferidos, e se impressionou com o tanto que sentira falta de uma conversa
tão casual.
Simples.
No entanto, estragou tudo na pergunta seguinte.
— Como você e Alexzander vieram parar aqui?
O sorriso que a curandeira trazia murchou e ela encarou o lanche em
seu próprio prato.
— É uma história complicada.
— Não precisa me contar se não quiser.
— Não é isso. Só... não penso nela com muita frequência.
— Entendo.
Alguns segundos de um silêncio constrangedor se estenderam, até
que Silja voltou a falar.
— Alexzander sempre foi curioso, diziam meus pais. E ele não se
deixava limitar pelas histórias que eram contadas sobre Ediri. Nossa família
morava... mora na Aldeia dos Pescadores, perto de um dos trechos em que
ela faz divisa com a floresta.
A princesa respirou fundo, sentindo que a história que viria a seguir
não era boa.
— Em uma de suas explorações, como ele gostava de chamar,
Alexzander encontrou os lobos. Eles não lidaram bem com sua presença ali,
com o fato de que um humano tinha ousado adentrar naquele território. Ele
tinha uns onze anos na época. Enquanto fugia, Verena o encontrou. — Silja
parou por um momento, sorrindo. — Não sei, acho que ela viu alguma
coisa nele, pois se ofereceu para lhe contar histórias. Histórias sobre
criaturas míticas e magia. Alexzander era um sonhador, não tinha medo de
tais coisas. E Verena percebeu isso também. Pouco tempo depois, ele fez a
Travessia.
“Ela o fez jurar que não contaria sobre isso para ninguém, que
esconderia aquela magia como um segredo que apenas os dois
compartilhavam. E assim Alexzander o fez. Ano após ano, disfarçando seu
plantio que se desenvolvia mesmo em solo impróprio para isso, trazendo o
vento para embalar meu berço quando queria aproveitar seu tempo para ler.
Até que, dez anos atrás, quando Alexzander tinha vinte, um inverno
particularmente rigoroso assolou o reino.”
Anya se lembrava daquele inverno. Ela tinha treze anos e escondia-
se na biblioteca dia após dia envolta em cobertores enquanto lia e bebia
chocolate quente.
Mas algo lhe dizia que Alexzander e sua irmã não tiveram a mesma
sorte.
— As coisas são diferentes na Aldeia, sabe — Silja prosseguiu. —
Lá todos vivem da pesca e, há tempos, as coisas têm sido mais difíceis. E
naquele inverno, papai ficou tão doente que não conseguia sair da cama
para pescar ou para recolher lenha. Alexzander tentou trabalhar pelos dois,
mas mesmo os peixes se escondiam daquele inferno. E ele não levava jeito
algum para lenhar. Nós íamos morrer de frio, entende? Então, meu irmão
acendeu nossa lareira. Só isso. Ele manteve o fogo aceso por horas, aqueceu
nossa casa como já não acontecia há semanas.
“Nossa mãe reconheceu o cheiro. O aroma adocicado que chama
tanta atenção entre os humanos. Nós, conjuradores, não o sentimos, sabia?
Vai perceber que você mesma já não pode diferenciá-lo. Os soldados
apareceram em nossa porta no mesmo dia. Cinco deles. Mamãe tentou me
manter dentro de casa, impedir que eu visse o que estava acontecendo. Mas
eu vi mesmo assim. Ele lutou como eu nunca achei que seria capaz. Lutou e
chorou, desacreditado que nossa própria mãe, a pessoa que nos colocou no
mundo, o tinha denunciado como um traidor da Coroa.
“Ele perdeu no final, é claro. Desolado e machucado, foi assim que
chegou nas masmorras do castelo. Meu irmão carrega aquelas marcas nas
costas até hoje, mas duvido que elas tenham doído tanto quanto saber o que
mamãe fez. Alexzander nunca me contou o que fizeram com ele no palácio,
mas as cicatrizes horrendas em seu tronco falam por si só.”
A voz de Silja desapareceu conforme tentava controlar o choro, e a
princesa secou as próprias lágrimas que caiam descontroladas.
Era terrível.
O que o medo fazia com as pessoas era terrível.
E Anya sentiu vergonha por ser parte daquilo.
— Magmar havia se tornado Conselheiro há poucos meses. — A
curandeira retomou sua história. — Foi ele que ajudou meu irmão a fugir.
Quem o trouxe para Havenmill. Este chalé pertencia a ele.
A princesa respirou fundo pelo que percebeu ter sido a primeira vez
em vários segundos, como se mesmo o ar em seus pulmões não quisesse
conhecer a realidade do mundo que Silja tinha acabado de apresentar. Ela
olhou ao redor, absorvendo os detalhes da casa. O lugar onde sua melhor
amiga viveu antes de se conhecerem. Não o continente, não além do
oceano. Ali, bem debaixo de seu reino.
— E você? — perguntou por fim, temendo o que viria a seguir.
— Eu fugi. — A curandeira abriu um sorriso fraco. — Como eu
poderia viver sob o mesmo teto de pessoas que fizeram aquilo com meu
irmão? Com o próprio filho? Fazia cinco dias desde que Alexzander havia
sido levado quando tomei a coragem que precisava. Eu tinha nove anos, um
único casaco quente e muita, muita, raiva.
“Eu me escondi em um barco durante a noite e naveguei até Wellin.
O resto do caminho, eu percorri andando, e quando cheguei ao castelo, me
coloquei em frente aos portões, implorando para que libertassem meu
irmão. Mas ninguém admitiria que um conjurador tinha escapado, não é
mesmo? Então, me disseram que ele estava morto. Aquilo me destruiu.
Alexzander estava morto. Eu não poderia voltar para casa, e não tinha para
onde ir.
“Passei dois dias sentada diante daqueles portões abraçando minhas
pernas. Até hoje não sei como não congelei. Gosto de pensar que as Sete já
me abençoavam desde então, que viram algo em mim como Verena viu em
Alexzander. A notícia sobre a garota acampada na neve chegou até Magmar
e, assim como fez com meu irmão, ele me trouxe pra cá. Nós devemos tudo
àquele homem.”
Anya não sabia o que dizer, então apenas esperou que Silja secasse
suas lágrimas e se recuperasse.
Ela queria confortá-la, mas não tinha certeza se eram íntimas o
suficiente para tal contato.
Não conseguia afastar de sua mente a imagem de uma garotinha de
cabelos castanhos sentada em frente ao castelo, implorando pela liberdade
de Alexzander.
Quem estaria nos portões naquela ocasião?
Quem teria permitido que uma criança perecesse no frio daquele
inverno, quando a neve queimava contra a pele mais feroz do que qualquer
fogo jamais faria?
Onde ela mesma estaria?
Talvez em frente à janela da biblioteca aproveitando o sol enquanto
suas criadas lhe contavam histórias. Ou então, dançando pelo grande salão
enquanto se imaginava em bailes com príncipes, e todas as outras coisas
maravilhosas que a menina mal poderia esperar para crescer e participar —
e que deixavam de ser tão maravilhosas quando se tinha de lidar com elas
de fato, quando se perdia o olhar infantil e romantizado que envolvia a tal
vida perfeita da realeza.
Não era justo.
Para nenhum deles.
— Fico feliz que tenham encontrado esse lugar. — A princesa
suspirou. — Sei que isso não muda sua história, mas não permitirei que isso
aconteça com mais ninguém.
E a curandeira sorriu.
Aquele sorriso típico que rasgava suas bochechas e cobria metade
do rosto.
— Isso significa mais do que qualquer outra coisa — disse. — E
acho que você me conhece o suficiente agora.
Definitivamente.
Mas de repente, aquilo não pareceu certo para Anya. Que a garota
abrisse seu coração daquela forma e ela não tivesse nada para lhe dar em
troca.
Exceto que ela tinha.
Não um abraço, como imaginara.
Tinha sua própria história.
Aquela em que tentava com tanto afinco não pensar, que passara
tanto tempo deixando que os outros especulassem, aumentassem ou
diminuíssem como bem quisessem.
A história que fora um segredo só seu por três anos, que nunca dera
detalhes para ninguém.
Nem mesmo para Farah.
Nem mesmo para Conan.
Ela passou os dedos pela cicatriz que carregava como uma
lembrança constante, e Silja acompanhou o movimento com os olhos.
— Não precisa me contar — a curandeira esclareceu — Podemos
parar com o jogo de perguntas, se quiser.
— Eu sei. Mas está na hora de tomar o controle sobre o que me
aconteceu. — Respirando fundo, Anya começou a falar. — Preciso começar
dizendo que nunca descobrimos o motivo por trás daquilo. Meu pai viajou
até Kalon, pois tinha questões da fronteira para tratar e, como um presente
adiantado de aniversário, deixou que eu o acompanhasse. Eu nunca tinha
ido para lugar algum além de Wellin e, depois de muita insistência, ele
finalmente cedeu ao meu pedido de conhecer algo ao norte do reino.
Uma gargalhada rouca escapou de seus lábios.
Ah, se eles soubessem...
— Esperavam por nós na estrada — continuou. — Armaram uma
emboscada, quero dizer. Em poucos minutos, as carruagens, os cavaleiros...
Estávamos todos cercados no instante em que cruzamos os limites da
região. Nossos homens já haviam feito o reconhecimento da área, mas os
salteadores pareciam ter surgido como fumaça.
“Muitos soldados nos acompanhavam, meu pai dobrou a tropa
padrão quando decidiu que eu iria com eles. Ainda assim, não foram
suficientes. E às vezes, ainda ouço o tilintar das espadas quando talheres
caem no chão; ouço a porta da carruagem sendo escancarada quando batem
em meu quarto e estou distraída demais. E eu nunca, jamais, vou esquecer
do que senti quando aquele rosto coberto por uma máscara surgiu em minha
frente. Ou como ele prendeu meus pulsos com uma facilidade revoltante.
Suas mãos eram tão mais fortes que as minhas e ele conseguiu me arrastar
para fora de minha carruagem mesmo com os chutes, mesmo com os
gritos.”
Anya parou por um momento, esperando que o tremor lhe tomasse
conta. Que o medo paralisasse sua fala.
Mas isso não aconteceu.
Era a sua história afinal.
Dela e de mais ninguém.
E contá-la pareceu, de repente, como se livrar das mãos que
agarraram as dela. Não queria mais ser refém do seu passado.
Ela não teria mais medo dele.
Tomando fôlego mais uma vez, Anya continuou:
— Fui puxada e arrastada pela grama. Vi de relance os soldados
cercados, desarmados de uma maneira que parecia simplesmente
impossível. Vi meu pai dentro de sua própria carruagem com o rosto
pressionado contra o vidro, procurando por mim. Mas eles não queriam o
rei, não queriam os soldados. Queriam a princesa. E não fazia qualquer
diferença o quanto eu lutasse, o quanto me debatesse e tentasse escapar. O
homem era mais forte que eu, e toda a Comitiva Real foi deixada
desacordada. Nenhum ouro ou joias foi roubado, descobri mais tarde.
Apenas eu.
“Os homens desapareceram tão de repente quanto surgiram.
Restaram apenas a mim, dois deles, e o estalar dos galhos e da terra sob
meu corpo. Eu não lembro de por quanto tempo fui levada para dentro da
mata, nem de quando me amordaçaram e me amarraram em uma árvore.
Mas começava a escurecer, e fui forçada a assisti-los em silêncio, enquanto
acendiam uma fogueira para passarem a noite. Rezei para que a claridade
chamasse atenção, que a fumaça os delatasse. Mas não aconteceu.
“Aquela foi uma madrugada morna, um pequeno ato de misericórdia
do universo que atrasou a frente fria que cobria o reino quando o entardecer
dava as caras. Observei-os em silêncio enquanto comiam qualquer que
fosse a coisa que conseguiram assar, desejando com todas as minhas forças
que se engasgassem e caíssem mortos. Permaneceram de costas, me
impedindo de ver seus rostos, e falavam sobre me levar até as montanhas
quando amanhecesse. E isso não poderia acontecer.
“Eu li em um dos meus livros preferidos uma vez, que você não
pode deixar que seu agressor te leve para um lugar diferente. Que isso é
uma sentença de morte. Não poderia permitir que me arrastassem até as
montanhas, então, apenas esperei. O silêncio naquela floresta desconhecida
era quase sobrenatural. A vida noturna que se escondia por entre as árvores
aguardava atentamente para ver o que eu faria em seguida. Os homens
dormiram como bebês. E eu planejei.
“A manhã trouxe consigo uma coragem que eu não sentia de
verdade, e permaneci quieta, dócil. Deixei que eles acreditassem que não
teriam mais problemas comigo ao longo da nova viagem. Deixei que me
xingassem e ameaçassem enquanto eu implorava com bochechas ardendo
pela permissão de me aliviar antes de seguirmos adiante. Eles permitiram,
desde que um deles me acompanhasse.
“Eu acenei com os olhos baixos, me encolhi quando precisava e não
tive de fingir de verdade as lágrimas que escorriam por meu rosto conforme
pedia que o homem se virasse de costas. Abaixei-me na grama, balançando
o vestido já arruinado e rezando para que o som não me delatasse. Então,
cacei desesperadamente por pedras grandes o suficiente pelo chão e
escondi-as sob a saia coberta de terra.
“Depois disso, eu esperei. Esperei até que a impaciência daquele
homem vencesse qualquer resquício da honra que ele acreditava ter quando
me concedera aquela privacidade. Esperei até que ele se aproximasse o
suficiente para que eu me erguesse e o acertasse com a maior rocha que
encontrei. Com toda a força que me restava.
“E corri. Corri e gritei, e tentei desesperadamente me lembrar do
caminho pelo qual viemos. O agressor ainda estava caído, entoando
xingamentos e ordens ao outro. E ouvi botas pesadas vindo atrás de mim.
Mas eu não era rápida o suficiente, ágil o suficiente, e tropeçava de novo e
de novo nas raízes que se colocavam diante de meus pés.
“O impacto do homem que se jogara contra mim levou todo o ar que
ainda estava em meus pulmões, e a brutalidade com que me girou debaixo
de si é algo que nunca serei capaz de esquecer. Tampouco os olhos sem vida
que me encaravam.
“Nada mais naquele momento era fingimento. As súplicas eram
reais, o choro era real. O desespero e a necessidade de entender o motivo.
Nunca recebi nenhum. O homem cuspia contra meu rosto todas as coisas
horríveis que ele faria comigo e, neste momento, a lâmina apareceu.
“Eu a senti sendo pressionada contra minha pele enquanto o homem
gargalhava gabando-se da obra de arte que deixaria em mim. Talvez eu
escreva “vadia” em você quando terminar, ele sussurrou em meu ouvido.
A ardência era insuportável e o cheiro de ferrugem daquele sangue, o meu
sangue, tomava conta de tudo em nosso entorno. Comecei a perder os
sentidos.
“Mas não antes de ouvir um rugido de dor cortar a floresta. Não
antes de uma flecha voar a centímetros de nós e uma espada atravessar o
homem que me prendia, sua ponta raspando levemente contra meu braço.
Cabelos ruivos e olhos castanhos foram a última coisa que vi antes de
desmaiar por completo.”
A princesa fechou os olhos quando terminou.
Conan a tinha salvado.
O rapaz a carregou por todo o caminho até a estrada onde apenas
parte da tropa permanecera para procurar por ela. A outra metade fora
enviada imediatamente após o ataque de volta para o palácio, a segurança
do Rei era prioridade.
A curandeira que a tratara contou que ele manteve guarda em sua
porta dia e noite, que saía apenas tempo o suficiente para se alimentar. Que
perguntava por sua recuperação cada vez que o acesso para a enfermaria se
abria, dizendo que precisava atualizar seus superiores.
Eu mesma sou responsável pelos informativos sobre seu estado de
saúde, Sua Majestade, confidenciou a mulher, ele está preocupado com
você.
Três semanas mais tarde, Anya compartilhava os campos de
treinamento com Conan.
Assim como sua cama.
As duas permaneceram em silêncio por algum tempo, e a
princesa não se importou com as lágrimas que molhavam seu rosto.
Ela tinha contado.
Falou em voz alta sobre o que tinha sido feito com ela sem pausas,
sem tremores, sem medo. Falou sobre o que atormentara seus sonhos noite
após noite.
Silja tinha as mãos apertadas contra uma caneca de café que Anya
não havia percebido ter sido colocada sobre a mesa. Ela também chorava.
— O que aconteceu com os outros?
— Não foi difícil encontrá-los. Eles nem estavam tentando se
esconder na verdade. E negaram até o último segundo terem participado de
qualquer tipo de emboscada.
Ela tentava não pensar sobre aquele tal último segundo. Os soldados
eram treinados para tirar informações até do mais leal dos homens, mas
nenhum daqueles métodos pareceu surtir efeito nos salteadores.
Insistiram que jamais estiveram naquela estrada.
Mesmo que portassem máscaras iguais às dos homens que atacaram
a Comitiva entre seus pertences. Mesmo que estivessem em um
acampamento nos limites de Kalon com as montanhas, que é para onde
levariam a princesa.
Até a Floresta de Pedra.
A verdade atingiu-a com tanta força que sua cadeira quase virou.
Lembrou dos olhos sem brilho de seus sequestradores.
Ela sempre pensou naquilo como uma consequência de um coração
tão cruel que era capaz de fazer aquelas coisas terríveis. Mas então, se
lembrou de outra ocasião em que viu algo semelhante. Naquela mesma
manhã. No rosto dos soldados de Tamal em uma das memórias de Verena.
— Benjamin — ela sussurrou.
— O quê? — Silja franziu o cenho.
— Meu primo abandonou o palácio aos quinze anos e se escondeu
na Floresta de Pedra por mais de uma década. — Anya levou as mãos até a
boca. — Esse ataque foi a primeira vez que ele tentou me matar. Deve ter
sido quando descobriu que eu era uma herdeira legítima.
— Pode ser apenas coincidência, não? — Mas o rosto da curandeira
dizia que nem mesmo ela acreditava nisso.
— Não. Porque tem mais uma coisa que eu preciso contar sobre
minha visita até Verena hoje.
Neste momento, Farah abriu a porta do chalé.
A expressão das duas garotas à mesa deveria ser perturbadora, pois
ela congelou sob o portal de entrada e encarou as duas por alguns segundos.
— O que aconteceu?
— A princesa acha que foi Benjamin quem organizou o motim
conta a Comitiva Real três anos atrás — Silja respondeu, sem pestanejar.
— O quê? Por quê?
A princesa tentou acalmar seu coração acelerado, tentou pensar de
forma racional e escolher as palavras, ao invés de simplesmente jogá-las em
suas amigas.
— Verena reconheceu a magia que Farah descreveu em Benjamin
— Anya fechou os olhos, como se pudesse fugir daquela verdade — Ele
possui os mesmos poderes de Tamal.
Silêncio.
Um segundo se passou, então dez, e então...
— Está dizendo que o príncipe também se aliou à Alethea? — Farah
questionou.
— Claro que sim. — A curandeira deu um soco na mesa. — Como
não percebemos isso antes? Tamal também controlava seus soldados como
Farah disse que o príncipe faz.
— E Verena não apenas me contou sua história — a princesa
completou. — Ela compartilhou comigo suas memórias. Os olhos dos
homens sob o poder dele pareciam... mortos. Exatamente como os dos meus
sequestradores.
— Aquele filho da puta — Farah xingou.
E apesar de toda a tensão daquela conversa, Anya riu.
Nunca ouvira sua amiga falar daquela forma.
Mas a graça logo deu lugar à raiva.
Ah, seu primo deveria estar furioso por perceber que fracassara, não
uma, mas duas vezes em seus planos de matá-la.
E ela não deixaria nas mãos da sorte sua sobrevivência na terceira
investida.
Estaria preparada e esperando por ele.
Verena disse que ela precisava treinar com Delilah, e assim o faria,
encontraria um jeito de enfrentá-lo.
Anya entraria naquele castelo e recuperaria o que era seu por direito.
Sua casa.
Seu reino.
E a Coroa.
Delilah não saberia o que dizer mesmo se a magia permitisse que ela
o fizesse. Seu coração batia forte demais em seu peito, e todo o ar do
mundo parecia querer entrar de uma única vez em seus pulmões.
A princesa encarava aquela maldita adaga de olhos arregalados, e
Dell amaldiçoava Verena em silêncio por colocá-la naquela situação.
— Por que você tem uma adaga com a insígnia de Duhn? — Anya
perguntou sem parar de encarar a lâmina.
— Verena me deu.
Isso fez a princesa se virar para ela.
— O quê?
— Verena a tinha e...
Ela não poderia dar a explicação que a princesa buscava. Ela nem ao
menos a tinha por completo. A magia que estava atrelada ao objeto impedia
que qualquer coisa sobre ele fosse dita em voz alta.
As adagas armazenavam memórias.
Algumas delas haviam sido compartilhadas, oferecidas para que
vivessem para sempre. Estas eram forjadas com lágrimas. Traziam a
intensão de saudade, do desejo de poder viver eternamente naqueles
momentos bons.
Outras foram usadas como moeda de troca. Eram arrancadas das
mentes que as vendiam e eram esquecidas. Perdiam-se pelo véu que
separava realidade de sonhos, e eram forjadas com sangue. Não era possível
remover alguma coisa sem deixar uma ferida para trás.
— E? — a princesa insistiu, sua voz saindo mais afiada do que
qualquer uma das lâminas naquela parede.
— E me pediu para entregá-la a você — mentiu.
Tinha acabado de quebrar uma regra milenar. O que era,
possivelmente, um erro terrível. Mas Verena sempre lhe pedia e pedia e
pedia, e jamais oferecia qualquer explicação em troca.
E até onde Delilah sabia, aquela adaga poderia pertencer a alguém
da família da garota. A Primordial não lhe teria dado o item dias antes de
Anya aparecer ali apenas por coincidência.
Não existia coincidência quando se tratava de Verena.
Então, deu um tiro no escuro.
E poderia apenas rezar para que os resultados não fossem
catastróficos.
— Ela não me disse nada sobre isso. — A princesa passava os olhos
da adaga para Delilah, a testa franzida pela incredulidade. — E você já
poderia tê-la me entregado.
— Estive no Refúgio ontem. — Deu de ombros. — Verena
reclamou que tinha se esquecido disso. Entenda, são muitas coisas
acontecendo ao mesmo tempo. De repente, a Princesa queria fazer a
Travessia e mesmo ela foi pega de surpresa.
Quando foi que mentir se tornou tão fácil? A desculpa saiu por
completo e Delilah nem ao menos piscou.
Pelas Sete!
Anya encarou-a por mais alguns segundos, parecendo em dúvida se
acreditava ou não.
E a meio-bruxa queria contar. Queria dizer que havia algo escondido
ali dentro, algo que ela não sabia o que era, nem a quem pertencia.
Mas era impossível.
A magia que ali repousava a impedia de falar sobre isso. Impedia de
contar que as memórias só poderiam ser restauradas através do mesmo
sangue ou lágrimas que a forjaram. Que se ela realmente pertencesse a
alguém da família da princesa, bastaria que um filete de seu sangue ou
algumas gotas de seu choro escorressem pela lâmina que ela teria todas as
respostas.
Mas Delilah não podia. As palavras não sairiam nem se tentasse
dizê-las.
Ser a Guardiã daquelas lembranças era uma honra e, ao mesmo
tempo, uma maldição.
— E você não sabe como Verena a tinha?
— Não.
A primeira verdade.
— Então, posso pegá-la? — Anya perguntou.
A meio-bruxa assentiu.
Suas mãos suavam contra a bancada, e seu coração batia rápido
demais.
Manteve-se em silêncio, observando enquanto a princesa pegava
sem dificuldade a lâmina que ela mesma precisava erguer os pés para
alcançar. Não tinha percebido até aquele momento que a princesa era mais
alta que ela.
Com a mão direita firme no cabo e a outra apoiando a lâminas, a
garota examinou os detalhes marcados no aço. E Delilah prendeu a
respiração ao ver os olhos dela brilharem com as lágrimas.
Devia estar pensando em casa. Na família.
E a meio-bruxa teve vontade de ir até ela, de dizer que sentia muito
por tudo o que tinha acontecido. Mas não sabia fazer esse tipo de coisa.
Todas as vezes em que tentava ser empática dizia as coisas erradas. Não era
muito boa lidando com gente.
Como se um sinal do destino, o forno apitou.
Ela nem se lembrava de ter colocado o peixe para assar, mas
agradeceu a interrupção.
Mesmo Anya pareceu voltar um pouco para a realidade, pousando
delicadamente a arma sobre a mesa e vindo até Delilah para pegar os pratos
e colocar na mesa.
— O cheiro está bom — a garota murmurou.
— Obrigada.
E sentaram-se.
Aquele foi o almoço mais silencioso de que Delilah conseguia se
lembrar. Mesmo considerando que já morava sozinha há anos.
A brisa fresca soprava contra o rosto de Anya e ela observava as
árvores da clareira formando desenhos de sombras no chão.
Não conseguira prestar atenção em muita coisa durante o almoço.
Sabia que Delilah tentava conversar, desfazer o clima estranho que ficou
entre elas. Mas estava perdida demais em pensamentos que giravam em
torno daquela adaga.
Havia acreditado na meio-bruxa.
Ela parecia dizer a verdade sobre não saber onde Verena conseguira
o objeto. No entanto, isso não transformava a situação em algo menos
incômodo.
E agora, de volta à clareira, a lâmina era um peso estranho em sua
cintura. Um lembrete desconfortável de todas as coisas que ela ainda não
entendia.
— Acho que poderíamos tentar uma coisa diferente — Delilah
comentou, juntando-se a ela.
— Diferente como?
A mulher mordeu o lábio, pensando.
— Como descobrir se há mais alguma habilidade em você. É bom
termos alguma noção de tudo o que pode fazer, para evitar qualquer...
desastre.
Uma risada seca escapou da princesa.
Queria dizer que poderiam descartar a afinidade com a água, pois já
havia tentado isso. Mas não lhe pareceu uma boa ideia mencionar qualquer
coisa sobre o que aconteceu na noite anterior.
Temia que Delilah visse em seu rosto algo além do que estava
disposta a contar.
— E como fazemos isso?
— Testando. — Ela deu de ombros. — Podemos começar por
similaridade. Sabemos que você pode manipular o ar, então,
experimentamos outro elemento.
Ah.
— E qual deles têm em mente?
Delilah observou-a em silêncio por alguns segundos.
— Me diga você.
A princesa bufou.
— Você não facilita mesmo, não é?
— Que graça teria? — Dell debochou, abrindo aquele sorriso
sarcástico que fazia o sangue de Anya fervilhar de irritação.
Sim, a mulher era terrível mesmo.
Com uma careta, a garota passou os olhos pela clareira. E não tinha
muita certeza do que a estava guiando, mas então, se viu diante de uma das
cerejeiras.
Ela observou o tronco escuro, acompanhando seus galhos que se
expandiam tranquilamente, enrolando-se nos das outras árvores à sua volta.
As sakuras estavam no ápice de sua beleza, cheias de cor e de vida, e a
princesa estendeu a mão para tocar uma das delicadas flores.
Tudo bem, pensou, posso tentar.
Conseguia sentir os olhos de Delilah em suas costas, mas evitou
pensar nela — nem no quanto a cor de seus cabelos se parecia com as
pequenas pétalas que tinha entre os dedos.
Elementaristas não podiam criar as coisas do nada, precisavam usar
aquilo que tinham à sua disposição, e a cerejeira pareceu uma boa forma de
começar.
Respirou fundo e deixou a magia fluir.
O formigamento voltou. Aquela sensação engraçada sobre sua pele
enquanto derramava suas raízes em torno do galho diante de si. Mas
diferente da água na banheira, ela sentiu a madeira áspera como se estivesse
realmente roçando os dedos por ela. Sentiu seu poder se atrelar à árvore e
sentiu quando novas flores brotaram ali.
Anya soltou o ar pesadamente.
Uma, duas, cinco sakuras surgiram por entre aquelas que já
existiam, e a surpresa a fez puxar rapidamente sua mão.
As flores desapareceram tão de repente quanto surgiram.
— Lembre-se — a voz de Delilah ecoou atrás dela —, não deixe
que suas emoções interfiram.
A princesa se virou para a meio-bruxa, e pegou-a com um sorriso
gigante no rosto. E culpou sua habilidade recém-descoberta pelo leve
descompasso que aconteceu dentro de seu peito.
— Acha que... — Anya falou baixinho —, quero dizer, o que eu
faço com isso?
— A Terra é um dos elementos com mais possibilidades para
manipulação — comentou, e ela parecia quase tão empolgada quanto a
própria princesa. — Teremos muita coisa para testar depois que
descobrirmos até onde sua habilidade vai.
Sim, ela estava empolgada.
— Você gosta de ensinar. — Não foi uma pergunta.
Delilah corou.
— Gosto. — Ela baixou os olhos. Depois começou a andar pela
clareira, como se tentasse fugir do alcance da princesa. Era bonitinho. —
Sabe, quando se passa a vida inteira escondida por ser considerada uma
ameaça, você começa a se questionar se as pessoas não estão certas. Mesmo
conhecendo a história, mesmo sabendo como as coisas aconteceram... às
vezes, é difícil aceitar que todos simplesmente odeiam quem você é.
Ensinar é uma forma de me lembrar que estamos do lado certo. Que a
magia é boa. — Delilah apontou para a cerejeira na qual Anya criara as
flores. — Como aquilo pode ser algo ruim?
Anya foi surpreendida pela sinceridade dela, que costumava
respondê-la com frases curtas e debochadas.
— Entendo — disse por fim.
— E de qualquer forma — A mulher voltou a encará-la, com o rosto
levemente inclinado para baixo. —, é sempre fascinante ver o olhar dos
conjuradores descobrindo o que podem fazer. Você não têm ideia da
expressão que tinha no rosto.
Mas apesar do rosto tingido de vermelho, as palavras que saíram da
boca da princesa foram:
— Quer dizer que estava fascinada com o meu rosto?
Por todas as Sete, o que foi aquilo?
Os lábios em formato de coração de Delilah tremeram pelo sorriso
que ela tentava conter.
— Que tal tentar algo diferente? — A meio-bruxa mudou de
assunto. Depois deu um passo para trás, abrindo espaço para a princesa.
Anya encarou as próprias mãos, refletindo sobre o que poderia fazer.
E se surpreendeu quando a magia pareceu respondê-la. O formigamento
transformou-se em um pensamento.
A princesa ajoelhou-se na terra, sentando-se sobre os tornozelos.
Então, fechou os olhos e pousou as duas mãos no chão. As pedrinhas por
entre a terra pinicavam suas palmas, mas ela as pressionou com mais força
contra o solo mesmo assim. Deixou a magia fervilhante sair, cravando suas
raízes no solo. Enterrando-se, espalhando e, por fim, brotando.
Silja estava certa, o aroma doce não existia mais. No entanto, havia
um novo perfume em seu entorno. Um perfume que ela reconheceu no
mesmo instante.
Mesmo com os olhos fechados, Anya sorriu. Sorriu e conseguiu
visualizar as lavandas que sabia terem brotado à sua frente.
Ela as encarou.
Arfou ao ver a terra, antes intocada, não somente abrigar os
pequenos galhinhos verdes e roxos. Ela havia se alterado, mudado sua
composição para que se tornasse o solo perfeito para a planta.
As lavandas começaram a ganhar vida, desabrochando e crescendo,
bonitas e brilhantes.
Exatamente como sua mãe tanto amava.
Exatamente como aquelas que as duas viam pelas janelas do salão
de música no que parecia ser séculos atrás.
O perfume das pétalas disformes espiralava ao redor da princesa,
trazendo as lembranças de Elysia. Trazendo a sensação de casa que
preenchia seu peito quando deitava a cabeça sobre o ombro da mãe, quando
era envolvida pelos seus abraços.
O aroma era como palavras de afeto que acariciavam seu rosto,
enchendo seu coração de amor.
Anya fechou os olhos outra vez, se entregando aos pensamentos.
Aquelas flores sempre seriam um pedaço de sua mãe, uma lembrança de
sua vida antiga.
Uma que não voltaria nunca mais.
Não, nada jamais seria igual.
Elysia não tornaria a ver suas flores preferidas, tampouco teria a
chance de ver sua amada filha se tornar a mulher que tanto se esforçara para
criar.
E Elysia nunca saberia que a princesa lutaria para honrar sua
família, para salvar o reino que ela tanto amava e para concertar os erros
que jamais saberia que foram cometidos.
Sua mãe não a veria com a Coroa sobre a cabeça.
Com os olhos fechados com força, sentiu as lágrimas escorrerem.
Elas lhe queimavam a pele conforme faziam seu caminho.
O perfume de lavanda foi abafado pelo aroma de terra molhada
durante uma tempestade, ainda que a princesa não sentisse chuva alguma
lhe atingir. Tudo pareceu apertado demais, pequeno demais, claustrofóbico
demais, e ela implorou por um pouco de ar.
O vento que a atingiu veio com tanta força que foi como uma
navalha riscando seu rosto.
Não importava.
Não importava, pois ela não tinha mais nada.
Alguém parecia chamar seu nome, no entanto, era algo distante — o
vento também abafava aquela voz.
Seus cabelos batiam contra sua pele como chicotes, e o mundo
girava e girava. Seu nome ainda ressoava em algum lugar. Mas ela não
queria abrir os olhos.
Não queria ver.
Não quer ver, não queria ver, não queria ver.
— ANYA!
Mãos seguraram seus ombros com força e o aroma de cedro e mel
atingiu seu nariz.
A princesa abriu os olhos.
Delilah estava ali.
Com a respiração acelerada, a meio-bruxa estava congelada diante
dela, encarando-a de olhos arregalados. Havia terra no seu rosto, gravetos
nos cabelos cor-de-rosa.
Estava tão perto.
Tão perto.
Delilah repetiu o nome da princesa de novo e de novo e de novo.
Respire, conseguiu ouvir.
Conte até dez como ensinei a você.
Anya obedeceu, sentindo seu coração disparado se acalmar
lentamente.
— Isso. — Delilah se aproximou ainda mais, e seus rostos ficaram
tão próximos que a respiração dela balançava os cabelos da princesa. —
Está tudo bem.
— O que aconteceu? — Sua garganta estava seca, as palavras saindo
como arranhões.
— Você deixou que seus pensamentos tomassem conta. — Não
havia crítica no comentário.
— Sinto muito.
— Ei, está tudo bem. É normal. — Só então, Delilah pareceu
perceber o quão perto estavam uma da outra. Colocando mais uma vez os
ombros para trás, ela se afastou. — Mas acho melhor ficarmos longe de
lavandas por um tempo.
— Sim — Anya sussurrou.
Estava atordoada demais para dizer qualquer coisa além disso. Seu
corpo tremia e ela estava... exausta.
A princesa olhou ao seu redor e arfou.
Havia pedaços de raízes retorcidas despontando da terra, caídas,
quebradas. O solo revirado se cobrira de buracos por todos os lados em
torno dela.
As lavandas jaziam alguns metros à frente.
Inconscientemente, levou a mão até a adaga em sua cintura, como se
a arma pudesse protegê-la da flor que ria de sua cara.
Fechou os olhos outra vez, respirando fundo.
— O que foi que eu fiz?
— Você... hum... tem uma habilidade muito boa para usar seus
poderes ao mesmo tempo — a meio-bruxa respondeu. E seu tom
preocupado começou a se suavizar, voltar para seu estado normal.
— Ah?
— Você puxou raízes que dançavam como serpentes e, quando
tentei me aproximar, usou o vento para que me impedisse de chegar até
você.
— Desculpa — sussurrou.
— Está tudo bem, estou acostumada a lidar com magia fora de
controle. — Delilah se levantou, fazendo a princesa perceber que ela
mesma ainda estava ajoelhada sobre a terra. — Vamos ter que aumentar a
frequência com que meditamos.
A garota apenas assentiu.
Não queria que a meio-bruxa perguntasse no que estava pensando
quando fez aquilo. Não queria ter que falar sobre sua mãe com ela. Não
queria falar sobre sua mãe com ninguém.
A pergunta estava estampada no rosto da mulher, mas quando abriu
a boca, o que disse era completamente diferente.
— Acho que podemos parar por hoje. Sei que está cedo, mas
podemos tentar de novo amanhã. — Delilah olhou por sobre o ombro da
princesa. — Se quiser, podemos voltar em minha casa para... não sei...
tomar café. Você toma café? Se não toma, pode ser outra coisa.
E apesar de tudo o que aconteceu, Anya teve vontade de rir. Por
alguma razão, uma meio-bruxa descendente de uma criatura mística milenar
estava tagarelando nervosa, enquanto a convidava para um café.
Era, no mínimo, bonitinho.
E não com pouca surpresa, Anya se pegou tentada a aceitar.
Desesperada por fazer alguma coisa minimante normal, que não envolvesse
lembranças ruins ou tempestades de vento.
Mas quando respondeu, as palavras não eram aquelas que tinha
imaginado.
— Prometi à Silja que a ajudaria com algum... vestido que ela está
fazendo. — Encolheu os ombros, como se pedisse desculpas. — Mas, quem
sabe, amanhã.
Não tinha certeza de por que havia negado o convite. No entanto, ao
fazê-lo, soube que era a coisa certa.
— É, quem sabe amanhã — repetiu Delilah, mexendo-se
desconfortável.
Anya se despediu e foi embora, seus pensamentos transitando entre
a misteriosa adaga em sua cintura, saudades de sua mãe e no sorriso que
Delilah abrira quando ela fez as sakuras surgirem.
Uma mistura estranha de sentimentos, concluiu.
Mas não eram tão ruins assim.
A princesa estava estranha naquela noite.
Silja não esperava vê-la tão cedo em casa e, quando a garota
adentrou a cozinha do chalé, já percebeu que algo estava errado. Ela tinha
um sorriso desenhado no rosto, mas os olhos estavam tristes.
A curandeira quis perguntar o que aconteceu no treino, se Delilah,
de alguma forma, havia exagerado em suas cobranças ou reclamações,
porém desistiu. Não parecia ser isso.
E duvidava que a mulher liberaria a princesa por algo bobo.
Silja guardou sua curiosidade para si, só ela sabia o quanto suas
próprias aflições vinham incomodando-a — e que as Sete a poupassem de
ter de responder perguntas sobre isso.
Daria tempo à princesa.
Anya já havia revelado coisas muito importantes sobre seu passado.
Quando estivesse pronta, falaria sobre o que tinha lhe acontecido.
E quando a garota perguntou se poderia se juntar a ela e Farah para
ajudar com o vestido, Silja apenas disse que seria ótimo, que estavam
precisando.
Passaram boas horas mexendo no tecido macio e fazendo piadas
umas com as outras para aliviar a tensão. Silja subiu em uma das cadeiras,
fingindo que era a única forma de conseguir tirar as medidas da princesa, já
que bons 15cm de altura as separavam.
Elas riram até chorar, mas ainda assim, uma sombra pairava nos
olhos de Anya. E quando encerraram a noite e as três se preparavam para
dormir, a garota pousou a mão no ombro da curandeira e agradeceu.
Não deu motivos, não deu explicações.
Agradeceu e entrou em seu quarto.
Aquilo entristeceu Silja mais do que qualquer coisa. Pois tinha sido
ela a virar a vida da princesa de cabeça para baixo. Ela, seu irmão, seus
amigos.
E não importava o que os tinha levado a fazer isso, sempre haveria
uma pontada de culpa em seu coração. Uma voz martelando em seus
pensamentos, dizendo que o bem que fizeram para a princesa não anulava o
sofrimento. Que era como dizer que seus pais estavam certos quando
denunciaram Alexzander, pois isso tinha levado os irmãos até Havenmill.
Não era uma comparação justa, sabia disso. Mas o sentimento
permanecia.
E foi para fugir dos pensamentos que ameaçavam atacá-la que a
curandeira parou em frente à porta do irmão, como fizera mil vezes
naqueles primeiros meses na cidade.
Batendo suavemente, não esperou até que ele respondesse para
entrar.
— Posso dormir com você? — sussurrou. E não precisou dizer mais
nada para que ele entendesse que algo a incomodava.
Alexzander sorriu, abriu espaço na cama e estendeu a mão para que
ela a pegasse.
De repente, Silja tinha nove anos de novo e seu irmão era sua única
certeza.
SANGUE E TERRA
Anya não conseguia lembrar em que momento voltara ao chalé,
tampouco como a camisola branca fora parar em seu corpo.
A claridade intensa que entrava pela janela aberta indicava que
dormira por muito tempo, mas o cansaço e a dor nas pernas provavam que
não havia sido o suficiente.
Ela não tinha certeza sobre em que momento decidira que
aproveitaria a festa em que o Braan se transformou, mas sabia que tinha
sido uma boa escolha. Sabia que precisava de um momento de alívio tanto
quanto qualquer um deles.
No entanto, havia um abismo imenso entre beber alguns copos de
hidromel e dançar, e... Pelas Sete!
Quase tinha beijado Delilah!
Anya levou os dedos aos lábios, como se pudesse limpar as provas
de algo que nem havia acontecido.
Poderia culpar a euforia, a magia e a música. Poderia dizer que
estava lidando com os efeitos daquela experiência inexplicável que fora a
cerimônia. Poderia fingir que estava apenas tentando mascarar as tristezas
com um pequeno momento bom.
Poderia qualquer uma destas coisas, poderia todas elas.
Mas a verdade, era que quase tinha beijado Delilah simplesmente
porque queria. Porque não era a primeira vez que se imaginava tão próxima
dela, e porque descobriu que estar assim era ainda melhor do que pensara.
Porque quando se inclinou para dizer a ela que estava começando a
entender a beleza da magia, encontrou a beleza em outro lugar.
No sorriso com os lábios ligeiramente afastados, como se
chamassem pelos dela. Nos olhos que refletiam o desejo que a princesa
sabia carregar nos seus. No aroma inebriante de cedro e mel misturado com
o amargo do álcool.
Poderia ter se embriagado apenas com aquela visão.
Então, levou sua mão à cintura dela, e seus dedos se encaixaram tão
bem ali que era como se fossem duas peças do mesmo quebra-cabeça.
Anya puxou um dos travesseiros e pressionou-o contra o rosto,
suspirando.
Estava perdendo a cabeça.
O mundo estava virando-se do avesso, e seus pensamentos estavam
em Delilah.
Sentiu-se culpada. Como poderia se preocupar com algo assim,
quando tudo estava desmoronando diante de seus olhos?
Mas a vida não era preto no branco. Havia nuances nas cores e nos
tons.
Sentimentos também eram assim. As brincadeiras e o frio na barriga
não anulavam a perda e a dor. Não. Aqueles eram sentimentos legítimos
que tornavam mais suportáveis as partes ruins.
E se Delilah compartilhava o mesmo que ela como de fato parecia...
Tem mais alguma coisa que eu precise fazer para conquistá-la?
A resposta da princesa fora verdadeira. Já estava conseguindo sem
ao menos tentar.
Só não tinha certeza de como deveria agir quando chegasse na
clareira na manhã seguinte. Deveria dizer algo? Esperar que Delilah o
fizesse? Ou fingir que nada aconteceu?
— Deixe este problema para a princesa do futuro — resmungou
contra o travesseiro.
E então, levantou-se com dificuldade, sentindo as panturrilhas
arderem com o movimento simples.
Tinha de lidar com o que havia sobrado de si. Sabia que estava uma
bagunça completa. Seus cabelos, as olheiras, os brilhos cintilantes que se
espalhavam por seu corpo... O que diabos era aquilo?
Lembranças da cerimônia vieram à sua mente.
As chamas, a chuva, a Luz... Tinha sido a coisa mais bonita que
Anya vira em muito tempo — se não, em sua vida toda.
E aquela canção...
Pensou em Delilah outra vez.
Ah, ela estava tão ferrada!
Balançando a cabeça, seguiu até a cômoda para separar as coisas
que vestiria. Não precisava de nada em especial, já que nada tinha sido
reservado para o dia.
Seu rosto se cobriu de vermelho ao abrir a primeira gaveta. Novas
peças íntimas tinham sido adicionadas ali. Em diversas cores e parecendo
todas do tamanho certo.
Fechou os olhos e pegou um par aleatoriamente, sem se preocupar
se as partes combinavam ou não. Gargalhando pela ousadia — e sabendo
que só poderia ter vindo de Silja —, saiu apressada para o banho.
— Siga o... mas que diabos?! — Revirou os olhos, então gritou para
a clareira vazia. — Você nem me deu chance de vencer o primeiro!
Não era bem verdade.
Já fazia três dias que ela tentava rastrear aquele bilhete.
Três longos e cansativos dias.
— Tudo bem. — Suspirou, colocando a adaga de volta na bainha.
Seguiu em direção ao córrego nos fundos da clareira.
Sua respiração ainda estava acelerada pela raiva, mas também havia
nervosismo ali. Não sabia o que esperar.
Abaixou-se em frente à água cristalina, dando-se alguns segundos
para pensar. Passou os dedos pela correnteza fraca, observando os pequenos
galhos que eram arrastados com ela. Estava fria, ainda que Havenmill
estivesse envolta em uma onda de calor.
Era como se fosse ali fosse verão todos os dias, e Anya não
conseguiu deixar de pensar em como estaria lá fora. Duhn não era uma
região de altas temperaturas, mesmo em seus dias mais quentes havia quase
sempre um vento fresco que exigia, ao menos, um casaquinho leve.
Suspirou alto.
A cada dia que passava, sentia mais saudades de casa. E não houve
uma noite sequer em que seus pais não embalassem seu sono.
Sentia falta deles. Tanta, tanta falta!
Levantando-se novamente, a princesa começou a seguir o curso do
regato.
Caminhando lado a lado com ele, tentou desacelerar seus passos e
apreciar a paisagem. Nunca tinha ido naquela direção desde que chegara, e
perguntou-se o que poderia haver por lá.
As cerejeiras logo foram substituídas pelo verde habitual da cidade,
e os sons dos treinamentos na praça central foram ficando cada vez mais
distantes. Até que houvesse apenas ela, seus passos sobre a grama, e os
pequenos animais correndo por entre as árvores.
Os pássaros cantavam alegremente, acompanhando a melodia das
águas ao lado da princesa.
Ela seguia ladeando o córrego, como o bilhete dissera, mas bons
minutos já haviam se passado e não chegou a lugar algum.
E enquanto pensava sobre a possibilidade de Delilah estar pregando-
lhe outra peça — como fizera ao colocar o bilhete sob uma pedra —, Anya
ouviu o som de água se intensificar. Como se despencasse de um ponto alto
e se chocasse contra rochas.
Mesmo sem conhecer a região, sabia que estava chegando. O
córrego se tornava mais largo e, então, desaparecia sob uma cortina de
folhas de salgueiro.
A princesa já amassava o bilhete entre as mãos, pronta para atirá-lo
na meio-bruxa quando atravessou a folhagem que a impedia de ver o outro
lado. Mas assim que o fez, congelou no lugar.
O regato se abria em um pequeno lago e, ao fundo, uma cascata
descia por entre um paredão de rochas. Mas o que lhe chamou mais atenção
não foi a água impossivelmente azul, tampouco as flores que boiavam sobre
ela. Foi a minúscula ilha que repousava bem em seu centro.
O pedaço de grama reluzente acomodava um único salgueiro que
derramava suas folhas tão compridas, que algumas chegavam a tocar na
água.
E ela.
Delilah estava sentada sobre o gramado, escorada no tronco da
árvore de forma tão relaxada que Anya chegou a pensar que ela não a tinha
notado ali.
E por todas as Sete Bruxas, ela estava incrível.
Em meio a tanto verde, seus cabelos rosa claros se destacavam ainda
mais, e seus olhos pareciam quase entediados enquanto girava uma flor
entre os dedos.
— Vai ficar parada me encarando ou pretende vir até aqui? — A voz
de Delilah fez a princesa se arrepiar.
— Eu não... como... — gaguejou, ainda surpresa com a situação
toda. — Que lugar é esse?
A mulher não respondeu.
— Não sei como chegar aí — Anya insistiu.
E gesticulou na direção das águas, onde nenhum tipo de ponte ou
trilha parecia existir.
Delilah finalmente olhou para ela.
As duas esmeraldas brilharam mesmo de longe, e aquele sorriso
debochado que ela abriu fez cada terminação nervosa da princesa reagir em
resposta. Levantando-se da grama, a mulher caminhou até a beirada da ilha.
— Ora, Princesa, seja criativa. — Ela apontou para uma pequena
cesta que tinha ao lado dos pés, uma que a princesa nem havia percebido
ainda. — Não espera que eu lhe entregue tudo de forma fácil, não é
mesmo?
E Anya não sabia se era por causa do tom que ela usava, ou a forma
como se arrastou na palavra quando a chamou de princesa, mas seu coração
disparou tão rápido que poderia abrir um buraco em seu peito.
Mas entendeu o que Delilah queria dizer.
E derramou seu poder no chão sob seus pés, sem esconder o sorriso
que surgiu quando as raízes começaram a se entrelaçar em uma ponte que a
levava até a pequena ilha.
A risada da meio-bruxa ecoou pelo vazio.
— Está bom o suficiente.
— Bom o suficiente? — chiou a princesa, levando as duas mãos à
cintura. — Vai me explicar o que está acontecendo aqui ou primeiro terei de
me aventurar sobre essas águas que eu não faço ideia alguma de qual
profundidade têm?
— Você sabe nadar? — Foi a pergunta de Delilah.
— Sei.
— Então, explicarei quando você chegar aqui.
— Terrível! — Anya gritou. — Você é terrível!
Uma gargalhada alegre foi a única resposta que teve.
Dando uma última olhada para sua ponte improvisada, a princesa
disparou por sobre as raízes. Ela correu para que não tivesse a chance de
mudar de ideia, e tentou não pensar na madeira rangendo sob suas botas.
E mesmo com o medo de simplesmente afundar naquelas águas,
Anya riu. Riu alto, como não ria em muito tempo.
A mão estendida de Delilah recebeu-a do outro lado, e a princesa
segurou-a com força antes mesmo de perceber o que estava fazendo.
Com um sorriso tão grande quanto o dela própria, a meio-bruxa
puxou-a para a segurança da ilha e, em poucos segundos, a princesa estava
envolvida em seus braços, gargalhando enquanto alguns galhos do salgueiro
se prendiam em sua trança.
Até aquele momento, não tinha realmente percebido como Delilah
era mais baixa que ela. Não quando a mulher era tão segura de si que
poderia muito bem ter dois metros de altura.
Mas enquanto a estava abraçando, percebeu que aqueles poucos
centímetros a menos eram o suficiente para que a respiração da meio-bruxa
viesse de encontro diretamente com a curva de seu pescoço, causando uma
centena de reações diferentes em seu corpo.
Finalmente reparando o quão próximas estavam, Anya deu um
passo para trás, afastando-se do toque.
— Agora vai me explicar o que está acontecendo? — perguntou,
esforçando-se para manter a voz firme.
— Estou desistindo. — Os olhos de Delilah brilharam.
— Desistindo?
Algo no peito da garota se revirou.
Decepção.
Ela foi atingida pelo sentimento com força, e quase precisou de um
passo para trás para recobrar o equilíbrio. No entanto, a meio-bruxa se
aproximou novamente — desfazendo o pouco espaço que havia entre elas.
— Essa coisa de fingir que não me importo — Delilah disse, com os
olhos fixos nos lábios da garota. — Desisto. Você venceu.
E todas as palavras não ditas pairaram entre elas.
O vento prendeu a respiração e as hastes do salgueiro congelaram
em meio a um movimento. Até mesmo as águas que as contornavam
silenciaram sua canção e aguardaram pelo que aconteceria em seguida.
Anya não conseguia dizer o que sentia.
Só ela sabia o quanto tinha fantasiado com aquilo. E ali, naquele
lugar incrível, Delilah estava diante dela admitindo que também a queria.
Que se importava.
E ainda assim, a princesa não sabia o que fazer. Queria envolvê-la
pela cintura e puxar seu corpo para junto do dela. Queria descobrir a
sensação daqueles lábios perfeitos contra os seus e se perder no aroma de
cedro e mel que espiralava ao seu redor.
Queria tanto.
Mas poderia?
Era justo colocar todo o seu treinamento, todo futuro em risco por
puro desejo?
Você sabe que é mais do que isso, seu coração parecia dizer. E ainda
assim...
Ainda assim.
— Anya? — E naquela única palavra, ao chamá-la pelo nome pela
primeira vez, Delilah transmitiu mais sobre si mesma do que fizera nas
últimas semanas. Vontade, sim, e também medo, insegurança, e algo como
arrependimento.
Anya também estava cansada de fingir.
Ela não queria mais fingir.
Mandou para longe todas as dúvidas, todos motivos que a deixavam
com um pé atrás e levou sua mão ao rosto da mulher à sua frente.
Deixou que ela visse a descarga elétrica que percorreu seu corpo
quando suas peles se tocaram e uma risada curta lhe escapou quando viu
Delilah tremer também.
Nem todo o ar do mundo parecia ser suficiente para que sua
respiração se mantivesse controlada, e observou o olhar inquieto que a
encarava de volta.
Inquieto e impaciente.
Não porque estivesse com pressa, mas porque aqueles míseros
centímetros entre suas bocas pareciam a maior injustiça do mundo.
Anya encaixou sua mão na curva do pescoço de Delilah e puxou-a
para si. Finalmente, puxou-a para si.
E quando seus lábios se tocaram foi como se tudo o que existia
implodisse e, então, se reconstruísse outra vez. Melhor, mais resistente,
mais bonito.
Delilah tinha exatamente o gosto que ela imaginava, no entanto, era
melhor. E então, os dedos da meio-bruxa correram por sua cintura e
puxaram-na para que seus corpos se colassem um no outro.
Mais, Anya queria dizer.
Porque perto ainda parecia dolorosamente longe.
Envolveu os cabelos de Delilah com firmeza, prendendo o rosto dela
ao seu e um gemido baixo escapou entre elas. Não sabia de quem ele tinha
vindo.
Elas eram pergunta e resposta. Duas peças de um mesmo jogo que
estavam perdidas e foram colocadas juntas mais uma vez.
Eram calor e desejo e palavras não ditas.
E a princesa não saberia dizer em que momento elas se moveram,
em que momento Delilah envolveu seu pescoço com ambos os braços e elas
se colocaram contra o salgueiro.
Suas respirações se mesclavam em sincronia, e Anya queria nunca
mais ter de parar de beijá-la. Queria erguê-la e tocá-la, e queria tantas,
tantas coisas.
Mas acima de tudo, queria mais tempo.
Queria que conseguissem enfrentar tudo o que pairava no horizonte
para que tivessem a chance de descobrirem mais. De se conhecerem mais.
De serem mais.
E o vento recobrou seu fôlego, as árvores voltaram a dançar e o
campo foi preenchido novamente pela canção das águas.
Porque ali, sob aquele salgueiro e dentro daquele beijo, Anya
encontrou o que seu coração tanto buscava.
Se Anya não se levantasse da cama naquele segundo, com certeza
chegaria atrasada para o treino. Mas seu corpo protestava ao menor dos
movimentos, e ela puxou o travesseiro sobre o rosto, gemendo.
Quase não dormira à noite.
Queria tanto que seu dia com Delilah não tivesse fim, que reviveu-o
de novo e de novo. E, quando percebeu, os primeiros raios de sol já
atravessavam os vidros das janelas.
A meio-bruxa tinha organizado um piquenique para elas. Com
direito a suco, frutas, bolos e pãezinhos.
E conheceram mais uma sobre a outra naquele campo do que em
todos os dias que já haviam passado juntas.
Não tanto quanto gostaria, pensou corando.
Mas entre todos os beijos que trocaram naquele pequeno pedaço de
paraíso, suas histórias simplesmente... saíram.
Como se pudessem falar em voz alta sobre todas as coisas
importantes, porque elas nunca deixariam as cortinas daquele salgueiro.
Anya falou sobre a saudade de casa e sobre como sentia falta de
tocar piano. Falou sobre a imensidão e a beleza dos campos de lavanda, e
Delilah entendeu por que a flor a tinha feito perder o controle naqueles
primeiros dias de treinamento.
O que ela significava.
E a princesa prometeu que o próximo encontro aconteceria lá, onde
roxo, verde e infinito se encontravam.
— Então, isso aqui é um encontro? — Delilah perguntou.
Ela estava rindo, mas Anya sabia que a mulher queria realmente
saber a resposta.
— Se você quiser, é — tinha respondido, e o beijo que se seguiu
confirmou suas palavras.
A garota também falou sobre seus pais, sobre como ela era pequena
quando Oliver assumiu a Coroa e como não tinha qualquer lembrança de
sua vida antes disso. Contou o quanto tinha ficado triste ao descobrir que
eles tinham escondido a verdade dela, mas que agora ela finalmente
entendia. Entendia os motivos, entendia que eles estavam certos. Que
aquela mentira era única coisa que a mantivera a salvo.
Com o coração apertado, falou sobre Conan também. Sobre os
treinamentos, sobre a amizade, sobre a intimidade que compartilhavam.
Não sabia por que pareceu importante contar aquilo para ela, mas sentiu que
era a coisa certa a se fazer.
E quando finalmente chegou na história mais pessoal, aquela que,
por alguma razão, confidenciara em detalhes somente para Silja, não
chorou. As palavras saíram fáceis, claras, e talvez fosse porque já tinham
sido ditas uma vez.
Delilah ouviu em silêncio, passando os dedos por seus cabelos
enquanto elas permaneciam deitadas na grama, uma de frente para a outra.
E então, falou sobre si mesma.
Falou de sua infância, e como era estranho ser a única criança com
sangue de bruxa em toda Havenmill.
Anya descobriu que ela era muito mais próxima de Magmar do que
teria imaginado. Que os dois tinham crescido juntos e compartilhavam a
amizade mais sincera que a meio-bruxa tivera na vida.
E finalmente, Delilah falou sobre sua mãe.
Ravina.
A princesa entendeu por que a meio-bruxa, às vezes, carregava
rancor em sua voz ao falar de Verena. A Bruxa Primordial tivera Ravina
não porque desejava ser mãe, mas porque queria garantir que sua linhagem
se mantivesse viva.
— Se uma Bruxa Primordial deixasse de existir — Delilah contou
—, o poder por ela regido se perderia. No caso de Verena, os dias, aos
poucos, se tornariam mais curtos e o mundo seria banhado em noite para
sempre. Com uma herdeira, ela teria alguém capaz de reivindicar a Luz para
si.
— Mesmo sendo uma meio-bruxa? — a princesa tinha perguntado.
Delilah confirmou. Disse que, ainda que de forma limitada, Ravina
poderia ser um canal de sustentação para a Luz. Teria apenas uma meia-
vida. Seria um instrumento da magia para que não houvesse desequilíbrio
no mundo. Mas era a única solução, já que todas as outras bruxas de seu clã
tinham sido mortas.
Por isso Ravina tinha partido.
Quando Delilah já era grande o suficiente — se é que alguém
poderia ser grande o suficiente para lidar com uma perda dessas —, sua
mãe deixou Havenmill. Queria conhecer tudo o que havia de bonito no
mundo, antes que tivesse sua vida roubada para servir apenas à Luz. E
tendo Alethea como uma ameaça direta à Verena, era impossível saber se
esse dia demoraria ou não a chegar.
A princesa surpreendeu-se ao perceber que a meio-bruxa não falava
sobre a mãe com mágoa, apenas saudade. “Ela sempre foi boa demais para
estar escondida”, brincou. E falou sobre seu desejo de, quem sabe,
encontrá-la algum dia.
Enquanto isso, seu pai — e membro do Conselho de Havenmill —,
não pareceu tão satisfeito pela esposa aventureira. Esqueceu-se que não
tinha apenas a própria dor com a qual lidar, e, sim, a da filha de apenas
quinze anos. Delilah não falou muito sobre ele, e a princesa achou melhor
não fazer perguntas.
Depois, os assuntos voltaram para temas mais leves, tranquilos.
Falaram mais um pouco sobre música, instrumentos preferidos, a voz de
Delilah...
A mulher corou quando Anya disse que precisariam cantar juntas —
que a princesa adoraria tocar para acompanhar a voz incrível dela.
Anya suspirou mais uma vez contra o travesseiro e se levantou.
Estava definitivamente atrasada.
Trocou de roupa em poucos minutos e, quando estava prestes a sair
do quarto, avistou a adaga sobre a cômoda. A insígnia que ela conhecia tão
bem quanto a si mesma a encarava, como se debochasse. Parecia dizer “Ei,
eu ainda estou aqui. E você ainda não sabe nada sobre mim”. E naquele
momento, aquilo a incomodou mais do que nos outros dias.
Mais do que quando a viu na casa de Delilah, mais do que quando a
meio-bruxa insistiu para que ela a levasse durante os treinos.
Aquela adaga ainda era um mistério.
E Anya precisava de respostas.
Pegou a arma com cuidado, prendendo sua bainha nas calças e
partiu.
Prestou pouca atenção no café da manhã e o trajeto até a clareira foi
feito de modo completamente automático. Só conseguia repassar em sua
cabeça a enxurrada de perguntas que tinha para Delilah.
E insistiria até que as tivesse.
— Bom dia, Princesa.
Anya sorriu, antes mesmo de vê-la.
Passou a gostar de como o título soava na boca da meio-bruxa.
Deixou de ver aquilo como uma provocação — ao menos, do jeito que
importava.
— Bom dia.
Elas se encararam por alguns segundos, parecendo não ter certeza de
como reagir. Anya não sabia se devia apenas seguir para o centro da
clareira, se devia beijá-la ou qualquer coisa do tipo.
Tudo parecia mais fácil quando estavam escondidas sob aquele
salgueiro.
Delilah decidiu pelas duas, estendendo a mão para que a princesa a
pegasse. E quando seus dedos se entrelaçaram nos dela, seu coração agitado
se acalmou um pouquinho.
Era uma sensação boa.
Conan e ela nunca puderam andar de mãos dadas. Não quando
faziam tudo em segredo. E quando era mais nova... Bom, para ser sincera,
todas as vezes em que esteve próxima de algum tipo de relacionamento,
tinha sido fora das vistas de seu pai. Apenas Elysia sabia sobre as pessoas
com quem a princesa se envolvia. Exceto pelo soldado.
E ter a mão de Delilah na sua foi tão surpreendentemente bom, que
ela quase esqueceu o que estava tão obstinada a fazer naquela manhã.
Obter respostas.
— Delilah — chamou, e algo no seu tom fez a meio-bruxa encará-la
mais seriamente —, você precisa ser honesta comigo.
Delilah nunca sentira tanta raiva de Verena quanto estava sentindo
ali, mentindo para a princesa.
A garota tinha perguntado mais uma vez sobre a adaga e, mais uma
vez, a meio-bruxa procurava formas de se esquivar do assunto.
Sentadas sob a sombra de uma das cerejeiras, ela tentava manter a
surpresa no rosto, a expressão de desentendimento ao repetir as mesmas
respostas de sempre.
Que tinha perguntado inúmeras vezes para a matriarca sobre a
lâmina. Que não fazia ideia do que ela poderia significar. Que não sabia o
porquê a Bruxa Primordial a tinha.
Uma verdade.
Uma meia verdade.
Uma mentira completa.
Mas as palavras de Verena não a deixavam em paz desde aquela
noite no Braan.
A princesa é nossa única chance de vencer Benjamin.
E isso a atormentava mais do que qualquer outra coisa.
Temia o que Anya precisaria fazer, temia o que poderia acontecer
com ela e, principalmente, temia que ela não encontrasse a resposta a
tempo.
Delilah insistiu para que praticassem um pouco com as lâminas
também. Que a princesa trouxesse a sua para que lutassem. Mas era o
máximo que poderia fazer.
Todas as vezes que tentava explicar, que tentava falar a verdade para
ela, as palavras ficavam trancadas em sua garganta. E ela amaldiçoava
Verena, a magia e até mesmo Tallis por isso. Então, precisava esconder.
Mentir.
E amaldiçoava também a si mesma por desejar que a garota se
atrapalhasse com a lâmina, que se cortasse e derramasse seu sangue sobre
ela.
Uma única gota já era o suficiente.
Anya, no entanto, duelava muito melhor do que parecia acreditar.
Não cometera um erro sequer.
E de certa forma, Delilah sentia um pouco de orgulho disso. O rapaz
que a treinava no castelo — Isaac, como ela tinha contado — a fazia usar as
armas erradas. Se Anya não conseguia controlar uma espada longa, ele
devia ter-lhe dado uma diferente.
E com uma lâmina curta em cada mão, a princesa poderia fazer um
bom estrago.
— Quero ir até Verena — Anya disse de repente.
Não havia qualquer cenário em que aquilo parecesse uma boa ideia.
E nem mesmo a matriarca seria capaz de dar as respostas que a garota
queria.
Delilah estava com raiva.
Depois do piquenique na tarde anterior, ela chegou a pensar que
algo bom poderia sair de toda aquela confusão. Que ela e a princesa, talvez,
tivessem uma chance.
Mas quando a garota soubesse que, mesmo com todas as histórias
que tinham compartilhado uma com a outra, a meio-bruxa ainda mentiu
para ela sobre aquilo...
— Princesa, eu não acho que...
— Sei que você conhece a verdade — Anya disse, com uma calma e
uma gentileza que chegaram a surpreendê-la. — E sei que são ordens dela
que a impedem de me contar. Não vou insistir mais uma vez para que
quebre qualquer que seja a promessa que parece ter feito, mas ainda assim,
eu preciso de respostas. Essa adaga — ela segurou a bainha com tanta força
que os nós de seus dedos ficaram brancos — tem alguma história. Eu sei
que tem. E eu tenho muitas perguntas. Não posso abrir mão disso, não
quando eu já deixei tanta coisa para trás.
A princesa colocou a mão sobre a de Delilah delicadamente,
deixando um rastro de formigamento onde seu polegar desenhava pequenos
círculos. E havia no gesto e nas palavras dela tanto entendimento que o
peito da meio-bruxa se aqueceu.
Elas talvez tivessem uma chance, afinal. Mesmo com toda aquela
confusão.
Foi quando os gritos começaram.
A primeira coisa que Alexzander viu foi a fumaça.
Bem ao longe, na direção do portal para Ediri, o nevoeiro
acinzentado se esparramava por entre as raízes que compunham o
firmamento de Havenmill.
O reflexo alaranjado por entre as copas das árvores foi o segundo
sinal de que algo estava errado.
Ele acenou para que os Elementaristas parassem seus treinamentos
por alguns instantes, franzindo o cenho para a estranha paisagem.
As vozes na praça foram morrendo pouco a pouco, os rostos se
voltando para o mesmo ponto onde o rapaz encarava.
Todos os Elementaristas estavam ali com ele, em seus aquecimentos
para mais um dia de treino. Os Artesões e Curandeiros estavam reunidos
um pouco mais ao Leste, organizando seus grupos para que, em dois dias,
pudessem dar início aos trabalhos nas proteções.
Não havia ninguém na direção em que a fumaça se erguia.
Ou, pelo menos, não deveria.
Um silêncio pesado e incômodo tomou conta da praça, conforme os
outros faziam as mesmas contas que ele. O momento de calmaria que
escreveu as primeiras linhas do capítulo final na história de Havenmill.
Algo estava errado.
Algo estava muito errado.
Porque a fumaça continuava se espalhando, e os reflexos
alaranjados finalmente tomaram a forma que ele mais temia ver.
Fogo.
— Reúnam todos — Alexzander disse, mesmo sem entender o que
estava acontecendo. — Peguem as crianças e corram para o rio.
Então, flechas irromperam por entre as árvores.
Uma saraivada trespassando os galhos disformes da floresta, voando
na direção em que Alexzander e todos os outros estavam.
Mas elas não conseguiriam alcançar a praça. Os atiradores, quem
quer que fossem, estavam muito longe.
E ele percebeu que os alvos não eram as pessoas, e sim as copas
fechadas da mata. Porque na ponta de cada uma das flechas, havia uma
chama acesa. E conforme elas cravavam por entre o verde, mais e mais
pontos se incendiavam.
Quando as pessoas começaram a gritar, levou alguns segundos até
que Alexzander se desse conta do que realmente estava acontecendo.
Que era aquilo que temiam há semanas, a situação para qual mal
tiveram tempo para começarem a se preparar.
Havenmill tinha sido descoberta.
E estava sob ataque.
Era impossível saber em quantos eram, pois os focos em chamas se
mesclavam uns aos outros. Mas estavam se aproximando.
O rapaz tinha certeza disso pois, aos poucos, o silêncio vindo da
floresta era substituído pelo som dos animais disparando por entre a
vegetação. Correndo pelas folhagens em direção à praça.
Na verdade, todos corriam para lá.
Tentando manter qualquer resquício de controle, Alexzander dividiu
a multidão em dois grupos. Parte dos Elementaristas, Artesões e
Curandeiros seriam responsáveis por reunir crianças e idosos, e levá-los
para o portal que dava para o rio.
O segundo grupo, consideravelmente menor, ficaria ali, atrasando os
invasores para que o primeiro conseguisse fugir.
Incluindo ele.
A segunda onda de flechas partiu o horizonte.
Estavam mais perto. Muito mais perto. Pareciam se deslocar em
silêncio, impedindo que ele tivesse qualquer noção de suas localizações até
que atacassem.
Foram as primeiras lanças que cravaram sobre casas. Elas
espalhavam suas chamas pela madeira rapidamente, ferozes. E o cheiro de
queimado fez seu estômago se embrulhar.
O caos se instalou por completo.
Outros Elementaristas se colocaram ao seu lado, esperando por
novas instruções.
Alexzander não era pessoa certa para isso. Ninguém em Havenmill
era a pessoa certa para isso. Mas pelo seu povo, ele o faria.
E assim, começou a gritar ordens.
Eles não conseguiriam conter as flechas, mas poderiam diminuir o
estrago que causavam.
Puxando para si as águas do regato que se desmembrava ali, eles
ergueram uma parede — isso, ao menos, deteria o fogo.
Tentaram lançá-la em direção às chamas nas árvores, mas eram
muitos pontos que se incendiavam. Não havia Elementaristas o suficiente
com essa habilidade.
Nem tempo, pois os invasores emergiram da floresta.
Mesmo de longe, Alexzander reconheceu os uniformes, as insígnias
em seus peitorais.
Homens do Rei.
Homens de Benjamin.
Suas formações eram perfeitas. Os atiradores se colocavam no
fronte, seguidos por soldados com suas lanças e, logo depois, aqueles
empunhando espadas.
Não eram tantos quanto o rapaz imaginara, mas eram muito mais
preparados que qualquer um ali.
A terceira saraivada de flechas não veio acompanhada de fogo, mas
os soldados não precisavam mais dele, pois estavam perto. Perto demais.
Alexzander soube, mesmo antes de ouvir os gritos, que seu grupo
começaria a cair.
Ainda assim, seu peito se apertou diante do som. Nada nunca o teria
preparado para ele — o rasgar de pele e ossos sob a ponta de uma lança.
Não conseguiu controlar o próprio impulso de olhar ao redor, de
buscar pelo homem caído. Ele sentiu a bile subindo por sua garganta
quando outra coisa captou sua visão.
Silja gritava enquanto tentava organizar os grupos de fuga.
Alexzander não ousara impor qualquer uma das equipes sobre ela,
mas sentiu-se aliviado ao ver que sua irmã não estava entre aqueles que
enfrentariam diretamente os soldados.
Mais homens caíram ao seu lado, e o fogo estava de volta.
E percebeu que, naqueles poucos segundos em que observara sua
irmã partir, mais flechas foram lançadas, mais homens foram derrubados, e
que a barreira de água não existia mais.
Ele ergueu as próprias mãos à frente, deixando que sua magia
escorresse.
Junto com os demais manipuladores do ar, jogaram seus ventos
adiante, soprando fogo e fumaça para a direção contrária da praça. E só
então, se deu conta do erro que tinha cometido. Não restara nenhum
Elementarista das chamas ali. Tinha mandado todos eles com o grupo de
fuga.
Alexzander tentou acessar aquela parte de si que havia enterrado dez
anos atrás. Aquela que causara tanto sofrimento para ele e sua irmã.
Mas o fogo já não respondia a ele. Não depois de tanto tempo
rejeitando-o.
Talvez fosse alguma punição.
Talvez o rapaz merecesse.
E enquanto afastavam as labaredas com a única arma que lhes
restava, sentiu o chão sob seus pés tremer.
Raízes despontaram diante dos soldados, entrelaçando seus
calcanhares e pulsos, impedindo seus movimentos.
Alexzander abandonou o vento e se uniu aos manipuladores da terra.
Eram em menor quantidade e estavam tão cansados quanto ele, pois se
dividiam entre os treinos e as plantações.
Não estavam prontos.
Ele sabia disso.
E mesmo que semanas de treinamento já tivessem transcorrido, eles
nunca estariam. Não para algo assim. Não para verem sua cidade em
chamas, seus amigos caindo com flechas cravadas no peito, ou aquela
mistura de choro e gritos.
O rapaz fez uma prece silenciosa.
Sabia que havia apenas uma Primordial que ainda tocava aquelas
terras. Que ao se proteger dentro de Duhn, Verena trancou as outras deusas
do lado de fora.
Mas ainda assim, rezou para todas elas.
Pediu que protegessem Havenmill só por aquele dia. Que ajudassem
seu povo a enfrentar aquela situação. Que mais nenhum dos seus caísse.
Alexzander era um tolo.
As Bruxas Primordiais nunca o atenderiam.
E teve certeza disso quando sentiu uma dor lancinante atravessar seu
braço, tão forte que chegou a pensar ter sido atingido por uma flecha.
Mas não era um ataque físico que o tinha alcançado, e sim, um
ataque mágico. Porque as raízes que ele havia erguido para conter os
soldados que estavam cedendo.
Não, estavam mudando.
Elas se desprendiam dos guerreiros e, não importava o quanto o
rapaz tentasse e tentasse, elas não mais o obedeciam.
Uma nova fisgada cruzou seu corpo, e isso quase o deixou de
joelhos. Os fios dourados que ele imaginava quando acessava seus poderes
pareciam estar sendo puxados.
Manipulados por outra pessoa.
E o resto de esperança que ainda guardava no coração lhe
abandonou no instante em que viu os imensos elementais erguendo-se do
chão — os espíritos que sustentavam boa parte dos pilares de Havenmill.
Estavam adormecidos desde que a cidade fora fundada. Cederam
suas forças para que todas aquelas pessoas pudessem sobreviver. E agora,
retomavam o controle sobre si e... lutavam contra os conjuradores.
As raízes que os Elementaristas invocavam passaram a ser
dominadas por eles, assim como aquelas que já repousavam ali há muito
tempo.
Mais gritos ecoavam, conforme os outros manipuladores recebiam
as descargas elétricas de terem suas habilidades tocadas pela magia de outro
conjurador.
E Alexzander não entendia.
Não entendia porque os elementais não os estavam ajudando,
porque estavam defendendo os soldados que se aproximavam cada vez mais
com suas flechas e lanças e escudos e espadas e morte.
Morte, mais morte e mais morte.
Debatendo-se contra aquelas garras que tomavam o poder sobre suas
habilidades, ele tentou invocar o vento.
E graças às Sete, ele respondeu.
— Não usem a Terra! — ele gritou para os demais. — Já não temos
mais controle sobre ela!
E enquanto ainda tentava entender as razões de aquilo estar
acontecendo, das coisas terem fugido tanto de seu controle, ele viu.
Na fileira mais afastada de soldados.
Aquela mancha acinzentada entre o oceano de armaduras de couro.
Benjamin.