Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Prelúdio
Mas, enquanto isso, e por um breve período, vamos sorrir e ser tão
gentis quanto possível. E para vocês, pessoas mais velhas, um
pouquinho de anedotas, danças e brincadeiras não fará nada mal. O
autor lhes deseja um feliz Natal e dá as boas-vindas à pantomima ao
pé da lareira.
― Ha, ha, ha! Agora Valoroso é homem outra vez! Mas, ah! ―
prosseguiu ele (ainda bebericando, lamento informar). ― Fosse eu
um rei, não precisaria deste gole inebriante; um dia, detestei o
conhaque de vinho quente, e não sorvia de nenhuma outra fonte além
do riacho da natureza. Ele não se precipitava sobre as rochas mais
rápido do que eu, pois, com o bacamarte em mãos, limpei o orvalho
da manhã e atirei na perdiz, na narceja ou no veado de galhada! Ah!
Vários dramaturgos ingleses podem proclamar: “Inquieta é a cabeça
que usa a coroa!”. Por que roubei meu sobrinho, meu jovem Lírio…?
Roubo, falei? Não, não, não, nada de roubo, nada de roubo. Deixe-
me retirar essa odiosa expressão. Peguei, e sobre minha cabeça viril
coloquei, a coroa real da Paflagônia; peguei, e com meu braço real
conduzi, o cetro da Paflagônia; peguei, e com minha mão estendida
segurei, o emblema real da Paflagônia! Poderia um menino pobre, um
menino chorão e tagarela, que ainda ontem estava nos braços de sua
babá, e choramingava por confeitos e fazia birra por bobagens,
aguentar o terrível peso da coroa, do emblema real, do cetro? Poderia
cingir a espada que meus pais reais usavam e enfrentar o duro
inimigo da Crimeia?
A Paflagônia, dez ou vinte mil anos atrás, parece ter sido um desses
reinos onde as leis de sucessão não tinham sido estabelecidas, pois
quando o rei Sávio morreu, deixando seu irmão como regente e
guardião da criança órfã que era seu filho, esse regente infiel não
levou em consideração o último desejo do falecido monarca:
proclamou-se soberano da Paflagônia sob o título de rei Valoroso
XXIV, teve a mais esplêndida coroação e ordenou a todos os nobres
do reino que lhe prestassem homenagem. Enquanto Valoroso
oferecia muitos bailes na corte, muito dinheiro e lugares lucrativos, a
nobreza da Paflagônia não se importava com quem era o rei; e
quanto ao povo, naqueles primeiros tempos, eles eram igualmente
indiferentes. Graças à tenra idade que tinha na época da morte do
pai, o príncipe Lírio não sentiu a perda da coroa e do império. Desde
que tivesse muitos brinquedos e guloseimas, um feriado cinco vezes
por semana, um cavalo e uma espingarda para atirar quando
crescesse um pouco e, sobretudo, a companhia da prima querida,
única filha do rei, o pobre Lírio estava satisfeito. Não invejava seu tio,
as vestes reais e o cetro, o grande e desconfortável trono e a enorme
e incômoda coroa que o monarca usava da manhã à noite. O retrato
do rei Valoroso foi deixado para nós, e acho que você concordará
comigo que às vezes ele devia ficar bastante cansado do veludo, dos
diamantes, da pele de arminho e da grandeza. Eu não gostaria de
ficar enfiado naquela túnica sufocante com uma coisa assim na
cabeça.
Sem dúvida, a rainha deve ter sido adorável na juventude, pois,
embora tenha se tornado bastante corpulenta depois, ainda assim
suas feições, como mostradas no retrato, são certamente agradáveis.
Se ela gostava de lisonjas, escândalos, cartas e roupas finas,
tratemos delicadamente de suas fraquezas, que, afinal, podem não
ser maiores que as nossas. Ela era gentil com o sobrinho, e se tinha
algum pingo de consciência sobre o marido tomar a coroa do jovem
príncipe, consolava-se pensando que o rei, embora fosse um
usurpador, também era um homem muito respeitável, e que a morte
dele restauraria o príncipe Lírio ao trono, que por sua vez o
compartilharia com a prima, a quem tanto amava.
O primeiro-ministro era Tristonho, um velho estadista, que com
muita alegria jurou fidelidade ao rei Valoroso, e em cujas mãos o
monarca deixou todos os assuntos do reino. Tudo o que Valoroso
queria era muito dinheiro, muita caça, muita bajulação e o mínimo de
problemas possível. Desde que se divertisse, o monarca pouco se
importava com o preço que seu povo pagava. Ele se envolveu em
algumas guerras e, claro, os jornais da Paflagônia anunciaram que o
rei conquistara vitórias prodigiosas; mandou erigir estátuas para si em
todas as cidades do Império; e, é claro, espalhou retratos seus por
toda parte, e em todas as gráficas: era Valoroso, o Magnânimo;
Valoroso, o Vitorioso; Valoroso, o Grande, e assim por diante ― pois,
mesmo naqueles tempos antigos, os cortesãos e as pessoas sabiam
como ser bajuladores.
O casal real teve uma única filha, a princesa Angélica, que, você
pode ter certeza, era um exemplo aos olhos dos cortesãos, aos dos
pais e aos dela mesma. Dizia-se que a garota tinha o cabelo mais
comprido, os maiores olhos, a cintura mais fina, os menores pés e a
aparência mais adorável que qualquer jovem dos domínios da
Paflagônia. As conquistas dela foram anunciadas como sendo até
superiores à sua beleza; e as tutoras costumavam envergonhar seus
ociosos pupilos, dizendo-lhes o que a princesa Angélica sabia fazer.
Só de ouvir, era capaz de tocar as músicas mais difíceis. Ela podia
responder a qualquer uma das questões do livro-texto de Mangnall;
conhecia todas as datas da história da Paflagônia e de todos os
outros países; sabia francês, inglês, italiano, alemão, espanhol,
hebraico, grego, latim, capadócio, samotrácio, egeu e tártaro da
Crimeia. Para resumir, era uma jovem criatura extremamente
talentosa; e sua governanta e dama de companhia era a severa
Condessa Bufanosa.
Você não imaginaria, a partir desse retrato, que Bufanosa deve ter
sido uma pessoa nascida na mais alta posição? Ela parece tão
arrogante que eu deveria ter pensado nela no mínimo como uma
princesa, com uma linhagem tão antiga quanto o Dilúvio. Mas essa
senhora não nasceu em melhor berço do que muitas outras senhoras
que se fingem de importantes; e todas as pessoas sensatas riam de
suas pretensões absurdas. O fato é que fora criada da rainha quando
Sua Majestade era apenas uma princesa, e seu marido fora lacaio-
chefe; porém, depois da morte ou desaparecimento dele, do qual
você ouvirá em breve, essa sra. Bufanosa, ao bajular, adular e
lisonjear sua senhora real, tornou-se a favorita da rainha (que era
uma mulher bastante fraca), e Sua Majestade deu-lhe um título e
nomeou-a governanta da princesa.
E agora devo lhe contar a respeito do aprendizado e das
realizações da princesa, pelas quais ela tinha uma reputação das
mais maravilhosas. Angélica certamente era esperta, mas tão
preguiçosa quanto possível. Olhando de longe, era mesmo! Podia
tocar uma ou duas peças e fingir que nunca as tinha ouvido antes;
podia responder a meia dúzia de perguntas do livro de Mangnall, mas
era necessário ter o cuidado de fazer as perguntas certas. Quanto a
idiomas, tinha muitos mestres, mas duvido que soubesse mais do que
algumas frases em cada língua, apesar de toda sua pretensão; e
quanto ao bordado e ao desenho, ela exibia belos exemplares, é
verdade, mas quem os fizera?
― Você vai ficar o dia e a noite toda, e por muitos e longos anos ―
disse a fada, de forma muito majestosa.
Ele fora transformado em metal! Por ter sido insolente! E não era
nem mais nem menos que uma aldrava! Lá estava ele, preso à porta
no dia escaldante de verão, até ficar quase em brasa; e lá estava ele,
preso à porta em todas as noites amargas de inverno, até que de seu
nariz de bronze pingassem pingentes de gelo. O mensageiro veio e
bateu nele, e o mais vulgar menino de recados veio com uma carta e
o bateu contra a porta.
― Ir para casa com você, sim! Sua princesa bunita! Ter um bom
jantar e usar um vestido novo!
― Lá está a Ursa.
― Onde? ― Lírio quis saber. ― Não tema, Angélica! Se uma dúzia
de ursos vier, vou matá-los antes que a machuquem.
― Ah, sua criatura tola! ― disse ela. ― Você é muito bom, mas não
é muito sábio.
Quando olharam para as flores, Lírio nada sabia sobre botânica
nem nunca tinha ouvido falar em Lineu, o botânico. Quando as
borboletas passaram, Lírio não sabia nada sobre elas, sendo tão
ignorante em entomologia quanto eu sou em álgebra. Agora veja
bem: Angélica, embora gostasse bastante do primo, o desprezava por
causa de sua ignorância. Acho que era provável que ela valorizasse
demais o próprio aprendizado; mas se autovalorizar em excesso é
defeito de pessoas de todas as idades e de ambos os sexos. Enfim,
quando ninguém estava por perto, Angélica gostava muito do primo.
O rei Valoroso tinha uma saúde bastante delicada, e ao mesmo
tempo gostava tanto de bons jantares (que lhe eram preparados por
seu cozinheiro francês, Marmitônio), que se supunha que não ia viver
muito mais. Agora, a ideia de algo acontecer com o rei aterrorizava o
astuto primeiro-ministro e a velha dama de companhia. Pois,
pensavam Tristonho e a condessa, quando o príncipe Lírio se casar
com a prima e ascender ao trono, que bela posição teremos nós, de
quem ele não gosta, e que sempre fomos indelicados para com ele.
Perderemos nossos lugares em um piscar de olhos; a sra. Bufanosa
terá que abrir mão de todas as joias, rendas, caixas de rapé, anéis e
relógios que pertenciam à rainha, mãe de Lírio; e Tristonho será
obrigado a restituir duzentas e dezessete mil milhões, novecentas e
oitenta e sete mil, quatrocentas e trinta e nove libras, treze xelins, seis
pence e meio centavo; dinheiro esse que fora deixado ao príncipe
Lírio por seu pobre e querido pai.
― Não, meu senhor, hoje não. ― Ou: ― Ela estava muito ocupada
praticando piano quando a vi. ― Ou: ― Ela estava escrevendo
convites para uma festa e não falou comigo.
― Ah, seu bobinho! Você é tão ignorante, de fato não está apto
para a sociedade! Você não sabe de nada além de cavalos e cães, e
só serve para jantar na masmorra com os dragões mais pesados de
meu pai real. Não fique tão surpreso comigo, senhor: vá e vista suas
melhores roupas para receber o príncipe, e deixe-me preparar a sala
de estar.
Lírio disse:
― Ah, Angélica, Angélica, não pensei isso de você. Esta não era a
sua linguagem quando, no jardim, você me deu este anel e eu lhe dei
o meu, e você me deu aquele bei…
Agora, Angélica mal sabia que o anel que Lírio lhe dera era um
anel encantado: se um homem o usasse, todas as mulheres se
apaixonariam por ele; se uma mulher usasse, todos os cavalheiros se
apaixonariam por ela. A rainha, mãe de Lírio, uma pessoa de
aparência bastante comum, era imensamente admirada enquanto
usava o anel, e seu marido ficava desvairado quando a esposa
adoecia. Mas quando ela chamou o pequeno Lírio e colocou o anel
no dedo do menino, o rei Sávio não mais parecia se importar tanto
com a esposa, e transferiu todo o seu amor para o filho. E, enquanto
ele tinha o anel, todos o amavam; mas quando, ainda criança, o deu
para Angélica, e as pessoas começaram a amá-la e admirá-la; e Lírio,
como se costuma dizer, foi deixado de lado.
“E você também, Jacky”, ela ia dizer; mas, olhando para ele… não,
ele já não era mais bonito, mas sim apenas o pequeno Jacky de
cabelos cor de cenoura. No entanto, elogios do mais feio dos homens
ou meninos são bem-vindos, e Bufanosa, mandando o menino
segurar a cauda de seu vestido, caminhou com muito bom humor. Os
guardas a saudaram com peculiar respeito.
O capitão Racabeças, na antessala, disse:
― Meu pai era rei deste país, e eu sou seu único filho, o príncipe!
― respondeu Lírio, com igual arrogância.
― Ah! ― disseram o rei e Tristonho, parecendo muito agitados;
mas o primeiro, recompondo-se, disse: ― Caro príncipe Bulbo,
esqueci de lhe apresentar à Vossa Alteza Real meu querido sobrinho,
Sua Alteza Real o Príncipe Lírio! Conheçam-se! Abracem-se! Lírio, dê
sua mão à Sua Alteza Real!
― Por que você foi tão cruel com o príncipe Bulbo, querido
príncipe?
― Porque eu o odeio.
― Apenas uma ordem para você assinar, caro príncipe, para dar
carvão e cobertores aos pobres, neste tempo frio. Olhe! O rei e a
rainha estão dormindo, e a ordem de sua alteza real vai bastar.
Então Lírio, que tinha coração bom, como Bufaninha bem sabia,
assinou a ordem imediatamente; e, quando a condessa a guardou no
bolso, você pode imaginar a postura dela. Estava pronta para sair da
sala antes mesmo da própria rainha, pois agora ela era a esposa do
rei por direito da Paflagônia! Não queria falar com Tristonho, que
considerava um bruto, por privar seu querido marido da coroa! E
depois as velas chegaram e ela ajudou a despir a rainha e a princesa,
foi para seu próprio quarto e praticou numa folha de papel: “Griselda
Paflagônia”, “Barbara Regina”, “Griselda Barbara, Paf.”, e não sei que
assinaturas além disso, pensando no dia em que seria rainha, com
certeza.
IX. Como Betsinda Conseguiu Esquentar a
Cama
Veja bem, era uma garota muito gentil, alegre, civilizada e bonita;
mas deve ter havido algo muito cativante a respeito dela esta noite,
pois todas as mulheres na sala dos criados começaram a repreendê-
la e insultá-la. A governanta disse que ela era uma coisinha atrevida e
arrogante: a criada perguntou como ela ousava usar aqueles cachos
e fitas, era muito inapropriado! A cozinheira (pois havia uma
cozinheira e um cozinheiro) disse à ajudante de cozinha que nunca
vira nada de mais naquela criatura. Mas quanto aos homens, todos
eles, o cocheiro John, Buttons, o pajem, e Monsieur, o criado do
príncipe da Crimeia, levantaram-se e disseram:
― Meus olhos!
― Uau!
― Ó céus!
― Não, nunca, até que você jure ser minha, tua adorável e corada
camareira divina! Aqui, aos teus pés, jaz o Bulbo Real, o trêmulo
cativo dos olhos de Betsinda.
― Estava?
― Peço perdão à Sua Alteza Real, mas você terá que agir por
conta própria, e é uma pena acordar o Barão Bota de Neve.
― Claro, capitão ― disse ele. ― Você veio tratar aquele caso com
o príncipe Lírio?
― Exatamente, aquele caso do príncipe Lírio.
Bufanosa, que tinha visto o que havia acontecido com o rei, e sabia
que Lírio deveria sofrer, levantou-se muito cedo na manhã seguinte e
foi fazer alguns planos para resgatar seu querido marido, forma como
a velha boba insistia em chamá-lo. Encontrou-o andando para cima e
para baixo no jardim, pensando em uma rima para Betsinda (linda e
vinda foram tudo o que ele conseguiu), e de fato tendo esquecido
tudo sobre a noite anterior, exceto que Betsinda era o mais adorável
dos seres.
― Ela será?
― Sim; e depois de pegar as joias, vá ao apartamento de
Tristonho, onde, debaixo da cama dele, você encontrará sacos
contendo dinheiro no valor de L2I7.000.000.987.439, 13S. 6 1/2d.,
todos pertencentes a você, pois ele o tirou do quarto de seu pai real
no dia em que este veio a morrer. Com isso vamos partir.
― Ah, você… seu maldito! Você não me deu este papel jurando
casamento? ― gritou Bufaninha.
Então, quando o sino da rainha tocou duas vezes, Betsinda foi até
Sua Majestade e fez uma linda reverência. A rainha, a princesa e
Bufanosa estavam na sala. Assim que a viram, começaram a falar:
― Sua maldita! ― disse a rainha.
― Ai! Ai de mim!
Eventos muito lamentáveis ocorreram a Betsinda naquela manhã, e
tudo em consequência daquele negócio fatal da panela na noite
anterior. O rei se ofereceu para casar-se com ela; é claro que Sua
Majestade a rainha estava com ciúme. Bulbo se apaixonara por ela; é
claro que Angélica estava furiosa. Lírio estava apaixonado por ela, e,
ah, que fúria que Bufaninha sentia!
Mas uma fada bondosa aqueceu a neve macia para seus pezinhos,
e ela se enrolou no arminho de seu manto e se foi!
A princesa gritou:
― Hee-kareekaree! ― E desmaiou.
― Por Deus! Ela está sempre certa, aquela garota, e eu sou tão
distraído ― comentou o rei, olhando novamente para o relógio. ― Ah!
Soam os tambores! Mas que coisa estranha!
Quando Sua Majestade chamava em sua voz alta, ela sabia que
deveria obedecer, e voltou.
― Oh, meu príncipe! Meu senhor! Meu amor! Meu Bulbo! Tua
Angélica chegou a tempo de salvar tua preciosa existência, doce
botão de rosa; para evitar que você seja beliscado em sua juventude!
Se alguma coisa lhe tivesse acontecido, Angélica também teria
morrido, e saudaria a morte que a uniu ao seu Bulbo.
Quando o lenhador ouviu isso, ficou tão surpreso que foi muito
curioso ver o quão surpreso estava. Ele foi até o armário, tirou de
uma meia um pedaço de cinco xelins do rei Couve-Flor e jurou que
era exatamente igual à jovem.
Sua Majestade, de fato não tendo mais nada para dar, fez de todos
os seus seguidores Cavaleiros da Abóbora, marqueses, condes e
baronetes. E eles, por sua vez, fizeram uma pequena corte para ela,
além de uma coroa pequenina de papel dourado e um manto de
veludo de algodão; e discutiram a respeito dos lugares a serem
dados, da posição e precedência e dignidades; você não faz ideia de
quanto discutiram! Antes mesmo de completar um mês, a pobre
rainha estava muito cansada de suas honras, e ouso dizer que às
vezes até desejava voltar a ser uma camareira. Mas todos nós
devemos cumprir nosso dever em nossas respectivas posições, então
a rainha se resignou a cumprir o dela.
A ideia de se casar com uma criatura tão velha como Bufanosa foi tão
assustadora para o príncipe Lírio que, em um piscar de olhos, ele
correu até o quarto, arrumou as malas, chamou dois carregadores e
foi até a carruagem.
Ainda bem que ele foi muito rápido, não se demorou com a
bagagem e pegou a carruagem cedo, pois assim que o engano sobre
o príncipe Bulbo foi descoberto, o cruel Tristonho enviou dois oficiais
para o quarto do príncipe Lírio, com ordens para que o levassem para
Newgate e o decapitassem antes do meio-dia. Mas a carruagem saiu
dos domínios da Paflagônia antes das duas da manhã; e ouso dizer
que a diligência enviada em busca do príncipe Lírio não foi muito
rápida, afinal, muitas pessoas na Paflagônia tinham consideração por
Lírio, como filho do antigo soberano; um príncipe que, com todas as
suas fraquezas, era muito melhor que seu irmão, o reinante monarca
usurpador, preguiçoso, descuidado, nervoso, tirânico. Aquele príncipe
se ocupava com os bailes, festas, bailes de máscaras, caçadas etc.
que julgava apropriado dar por ocasião do casamento de sua filha
com o príncipe Bulbo. Confiemos que ele não estava arrependido por
o filho de seu irmão ter escapado do cadafalso.
Estava muito frio e nevava. Lírio, que escolheu o nome simples de
sr. Giles, ficou muito feliz por conseguir um lugar confortável no cupê
da diligência, onde se sentou com o condutor e outro cavalheiro.
Na primeira etapa de Blombodinga, quando pararam para trocar de
cavalo, chegou à diligência uma mulher muito comum, de aparência
vulgar, com uma bolsa sob o braço, pedindo um lugar. Todos os
lugares internos estavam ocupados, e a jovem foi informada de que,
caso desejasse viajar, deveria subir no telhado. O passageiro que
estava no lado de dentro com Lírio (uma pessoa rude, na minha
opinião), colocou a cabeça para fora da janela e disse:
― Meu caro Lír… meu bom sr. Giles, você é jovem e tem muito
tempo pela frente. Você não tem nada a fazer além de melhorar.
Quem sabe você possa encontrar uso para o seu conhecimento
algum dia? Quando… quando pode ser que lhe desejem em casa,
como acontece a algumas pessoas.
Mas, ao abrir a bolsa, o que você acha que estava lá? Uma escova
preta e um pote de graxa, onde se lia:
― Quem eu vejo? Sim! Não! É, é! Uau! Não, não pode ser! Sim! É
meu amigo, meu galante e fiel veterano, capitão Racabeças! Ei!
Racabeças! Não conheces teu príncipe, teu Lírio? Bom capitão, acho
que já fomos amigos. Ah, sargento, se minha memória não me falha,
tivemos muitas lutas juntos.
O altivo Porcão pousou seu binóculo e olhou de cara feia para o rei
e seus guardas.
― Não toquem em mim, atrevidos ― alertou ele ―, ou por São
Nicolau, o Velho, vou acabar com a raça vocês! Vossa Majestade
acha que Porcão está com medo? Não, nem de cem mil leões! Siga-
me até a arena, rei Frigideira, e lute contra um de teus brutos. Tu não
ousas. Que venham os dois, então!
E, abrindo uma grade do camarote, ele pulou para dentro da arena.
WURRA WURRA WURRA WUR-AW-AW-AW!!!
por
aqueles leões,
esse foi
o fim dele.
Com isso, o rei disse:
― Bem feito para esse rufião rebelde! E agora, como aqueles leões
não vão comer aquela jovem…
― Ah! Meu menino, meu menino, meu Bulbo não era um traidor! ―
gritou Frigideira.
― O príncipe Bulbo, longe de vir até nós, fugiu, senhor; mas eu o
peguei. O príncipe é prisioneiro do nosso exército, e as mais terríveis
torturas o aguardam se um fio de cabelo da princesa Rosalba for
arrancado.
― Meu bom suserano, não tive coragem de olhar e ver uma bela
dama fervendo. Levei sua mensagem real a Frigideira e lhe dei as
costas. Eu disse a ele que você responsabilizaria o príncipe Bulbo.
Ele apenas disse que tinha vinte filhos tão bons quanto Bulbo, e
imediatamente ordenou que os implacáveis carrascos prosseguissem.
― Ó pai cruel… ó filho infeliz! ― choramingou o rei. ― Vão e
tragam o príncipe Bulbo aqui.
Mas olhar pela janela era uma coisa, pular era outra: e o relógio da
cidade bateu sete horas. Então Bulbo foi dormir um pouco, mas o
carcereiro veio e o acordou.
― Levante-se, Sua Alteza Real, por favor, faltam dez para oito!
Quando ouviram:
Haw… wurraw… wurraw… aworr!
Ouviu-se um rugido de feras selvagens. E quem entrou cavalgando
na cidade, assustando os meninos, e até o sacristão e o policial,
senão Rosalba!
O fato é que, quando o capitão Racabeças entrou no pátio do
castelo Snapdragon e estava conversando com o rei Frigideira, os
leões fugiram pelo portão aberto, engoliram os seis guardas em um
instante e foram embora com Rosalba montada nas costas de um
deles. As feras então a carregaram por aí até chegarem à cidade
onde o exército do príncipe Lírio acampava.
Quando o rei soube da chegada da rainha, você pode pensar como
esse saiu correndo para entregar a rainha ao leão! Os leões estavam
gordos como porcos agora, tendo comido Porcão e todos aqueles
guardas, e eram tão mansos que qualquer um poderia acariciá-los.
Enquanto Lírio se ajoelhava (muito graciosamente) e ajudava a
princesa, Bulbo, por sua vez, correu e beijou o leão. Ele lançou seus
braços ao redor do rei da floresta; o abraçou, e riu e chorou de
alegria.
― Ah, sua querida velha fera, ah, como estou feliz em ver você, e a
querida, querida Bets… isto é, Rosalba.
Assim que o rei Frigideira ouviu o que já sabemos, que sua vítima, a
adorável Rosalba, havia escapado, a fúria dele não teve limites, e
lançou o lorde chanceler, o lorde camarista e todos os oficiais da
coroa que pudesse encontrar no caldeirão de óleo fervente preparado
para a princesa. Então, ordenou que viesse todo o seu exército,
cavalos, infantaria e artilharia e partiu à frente de uma multidão
incontável com, acho, vinte mil tambores, trompetistas e flautistas.
Você pode ter certeza de que a guarda avançada do rei Lírio o
manteve informado a respeito dos movimentos do inimigo e, portanto,
não ficou desconcertado. Era educado demais para alarmar a
princesa, sua adorável convidada, com quaisquer rumores
desnecessários acerca de batalhas iminentes; pelo contrário, fazia de
tudo para diverti-la, deu-lhe um café da manhã, jantar e almoço muito
elegantes e preparou um baile naquela noite, quando bailou com ela
em todas as danças.
A rainha desmaiou.
― Corte a cabeça dela ― exclamou o impetuoso.
― Sufoque a velha bruxa! ― sugeriu Racabeças.
― Não vou, não posso, não vou… antes disso renunciarei à coroa
― gritou Lírio, arrancando a mão; mas Bufaninha agarrou-se a ela.
― Me casar com ele, sim! O que isso tem a ver com você? Por
favor, senhora, não diga “você” para uma rainha ― gritou Bufanosa.
The End
Extra: William Makepeace Thackeray
William Makepeace Thackeray nasceu em Calcutá, na Índia, em julho
de 1811. Considerado inglês por ter nascido na colônia britânica, foi
romancista, caricaturista, desenhista ocasional e ilustrador.
Quando tinha apenas cinco anos, Thackeray perdeu o pai e foi
mandado para a Inglaterra para estudar. Seu pai morreu quando ele
tinha apenas cinco anos, e Thackeray foi enviado para a Inglaterra
para estudar. Frequentou a Charterhouse School – instituição
conhecida por sua disciplina rigorosa – e os abusos sofridos na
instituição deixariam marcas que respingariam em algumas de suas
futuras obras. William também frequentou a Trinity College, em
Cambridge, a qual deixou depois de dois anos, sem completar os
estudos.
William Makepeace Thackeray recebeu uma herança de seu pai e
passou os anos seguintes viajando pela Europa, mas perdeu sua
fortuna em jogos de azar e investimentos fracassados. Casou-se
enquanto vivia em Paris até voltar para Londres, onde investiu em
sua carreira como jornalista e escritor. Trabalhou para periódicos
como freelancer, escrevendo críticas literárias, artigos e textos
ficcionais sob diversos pseudônimos.
Thackeray começou sua trajetória literária quando ainda era
estudante. Começou com textos curtos como poemas, tendo alguns
publicados na Punch, periódico da época. Além da escrita, Thackeray
desenvolveu suas habilidades artísticas pintando e escrevendo desde
cedo. Em um período em que as publicações ilustradas estavam em
alta com períodos literários e revistas especializadas, Thackeray uniu
seu talento como ilustrador e autor e foi o único grande escritor a
ilustrar suas próprias obras durante o período vitoriano, mas levou um
tempo até que pudesse viver do trabalho como autor.