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Sumário

Prelúdio

I. Como a Família Real se Reuniu no Café da Manhã

II. Como o Rei Valoroso Conseguiu a Coroa e o Príncipe Lírio Ficou


Sem Ela

III. Quem era a Fada Varinha-Preta, e Quem eram os Outros Grandes


Personagens

IV. Como Varinha-Preta Não Foi Convidada para o Batismo da


Princesa Angélica

V. Como a Princesa Angélica Escolheu uma Criadinha

VI. Como o Príncipe Lírio se Comportava

VII. Como Lírio e Angélica Brigaram

VIII. Como Bufanosa pegou o anel encantado e o príncipe Bulbo foi à


corte

IX. Como Betsinda Conseguiu Esquentar a Cama

X. Como o Rei Valoroso Estava Terrivelmente Apaixonado

XI. O que Bufanosa fez com Lírio e Betsinda

XII. Como Betsinda Fugiu e o que Aconteceu com Ela


XIII. Como a Rainha Rosalba Chegou ao Castelo do Ousado Conde
Porcão

XIV. O que Aconteceu com Lírio

XV. Voltamos a Rosalba

XVI. Como Racabeças Voltou ao Rei Lírio

XVII. Como uma Tremenda Batalha Ocorreu e Quem a Ganhou

XVIII. Como Todos Eles Voltaram Para a Capital

XIX. E Agora Vamos à Última Cena da Pantomima


Ou A História do Príncipe Lírio e do Príncipe Bulbo
William Makepeace Thackeray, 1854
Prelúdio

O signatário passou a última temporada de Natal em uma cidade


estrangeira, onde havia muitas crianças inglesas.

Naquela cidade, se você quisesse dar uma festa infantil, não ia


conseguir comprar nem um projetor, nem os personagens do Dia de
Reis ― aquelas imagens engraçadas pintadas do Rei, da Rainha, do
Amante, da Senhora, do Dândi, do Capitão e dos demais ―, que
nossas crianças costumam interpretar nessa época festiva.

Minha amiga, srta. Bunch, era governanta de uma grande família


que vivia no andar principal da casa habitada por mim mesmo e por
meus jovens filhos (era o Palazzo Poniatowsky, em Roma, e os
Spillmann, dois dos melhores confeiteiros da cristandade, com sua
loja no andar térreo). Ela me pediu para desenhar um conjunto dos
personagens do Dia de Reis, para o divertimento das nossas
crianças.
A srta. Bunch é uma senhora de imaginação vasta e fértil, e, tendo
visto os personagens, nós dois compusemos uma história a respeito
deles, a qual foi recitada aos pequenos à noite, servindo como nossa
pantomima ao pé da lareira.

Nossa jovem audiência ficou encantada com as aventuras de Lírio


e Bulbo, de Rosalba e Angélica. Devo dizer que o destino de Hall
Porter gerou uma comoção considerável, e a fúria da Condessa
Bufanosa foi recebida com extremo prazer.
Se as crianças se divertiram, pensei, por que os outros não se
divertiriam também? Em questão de alguns dias, os jovens amigos do
dr. Birch devem se reunir na trilha Rodwell Regis, onde vão aprender
tudo o que é útil e, sob os cuidados dos diligentes condutores, vão
continuar a tomar conta de suas vidinhas.

Mas, enquanto isso, e por um breve período, vamos sorrir e ser tão
gentis quanto possível. E para vocês, pessoas mais velhas, um
pouquinho de anedotas, danças e brincadeiras não fará nada mal. O
autor lhes deseja um feliz Natal e dá as boas-vindas à pantomima ao
pé da lareira.

M. A. Titmarsh. Dezembro de 1854.


I. Como a Família Real se Reuniu no Café da
Manhã

Este é Valoroso XXIV, rei da Paflagônia, sentado com sua rainha e


filha única na mesa de café da manhã real, recebendo a carta que
anuncia à Sua Majestade uma visita proposta pelo príncipe Bulbo,
herdeiro de Frigideira, governante da península da Crimeia Tártara.
Perceba o prazer na expressão real do monarca. Está tão
concentrado no escrutínio da carta do rei da Crimeia que deixa seus
ovos esfriarem, e seus augustos bolinhos, intocados.
― Como é! Aquele fantástico, corajoso e encantador príncipe
Bulbo! ― exclamou a princesa Angélica. ― Tão lindo, tão talentoso,
tão sagaz; o conquistador do Rimbombamento, onde massacrou dez
mil gigantes!

― Quem contou a você sobre ele, minha querida? ― perguntou


Sua Majestade.

― Um passarinho ― respondeu Angélica.

― Pobre Lírio! ― exclamou a rainha, servindo o chá.

― Lírio coitadinho! ― choramingou Angélica, erguendo a cabeça e


fazendo farfalhar mil papéis para definir cachos.

― Eu queria ― grunhiu o rei ―, eu queria que Lírio estivesse…

― Estivesse melhor? Sim, querido, ele está ― disse a rainha. ―


Betsinda, a criadinha da Angélica, me contou quando veio aos meus
aposentos esta manhã trazendo o chá.

― Você está sempre bebendo chá ― disse o monarca, com uma


careta.
― Melhor do que beber vinho do porto ou conhaque com água ―
retrucou ela.

― Bem, minha querida, eu apenas disse que você gosta de beber


chá ― comentou o Rei da Paflagônia, com esforço, tal como se
controlasse o humor. ― Angélica! Espero que tenha muitos vestidos
novos; a conta do chapeleiro já está alta demais. Minha querida
rainha, você deve arranjar algumas festas. Prefiro jantares, mas é
claro que escolherá um baile. Seu veludo azul-perpétuo me cansa
bastante: e, meu amor, eu gostaria que tivesse um novo colar.
Encomende um. Que não custe mais que cem ou cento e cinquenta
mil libras.

― E Lírio, querido? ― queria saber a rainha.

― LÍRIO PODE IR AO…

― Ah, senhor ― gritou ela. ― Seu próprio sobrinho! O único filho


do falecido rei.

― Lírio pode ir ao alfaiate e pedir que as contas sejam enviadas


para Tristonho pagar. Confunda-o! Quer dizer, que Deus o abençoe.
Ele não precisa de nada; dê a ele alguns guinéus como mesada,
querida. E é melhor você encomendar braceletes enquanto resolve a
questão do colar, sra. V.

A rainha, ou sra. V., como o monarca a chamava de modo jocoso


(pois mesmo a monarquia tem suas brincadeiras, e esta augusta
família era muito unida), abraçou o marido e, passando o braço pela
cintura da filha, saíram as duas da sala para começar os preparativos
para a chegada do estranho principesco.

Quando partiram, o sorriso que fizera cintilar os olhos do marido e


pai desapareceu ― o orgulho do rei desapareceu; o homem estava
sozinho. Tivesse eu a habilidade de um G. P. R. James, descreveria
os tormentos de Valoroso com a mais apurada linguagem, com a qual
também descreveria seus olhos brilhantes, suas narinas dilatadas;
suas vestes, seu lenço de lapela e botas. Mas devo dizer que não
tenho a habilidade de um escritor; basta dizer que Valoroso estava
sozinho.

Apressou-se em direção ao armário, pegando um dos muitos porta-


ovos com os quais sua mesa principesca era servida para a refeição
matinal, e, tirando uma garrafa de conhaque, encheu e esvaziou o
porta-ovos várias vezes, e o deixou cair com um rouco:

― Ha, ha, ha! Agora Valoroso é homem outra vez! Mas, ah! ―
prosseguiu ele (ainda bebericando, lamento informar). ― Fosse eu
um rei, não precisaria deste gole inebriante; um dia, detestei o
conhaque de vinho quente, e não sorvia de nenhuma outra fonte além
do riacho da natureza. Ele não se precipitava sobre as rochas mais
rápido do que eu, pois, com o bacamarte em mãos, limpei o orvalho
da manhã e atirei na perdiz, na narceja ou no veado de galhada! Ah!
Vários dramaturgos ingleses podem proclamar: “Inquieta é a cabeça
que usa a coroa!”. Por que roubei meu sobrinho, meu jovem Lírio…?
Roubo, falei? Não, não, não, nada de roubo, nada de roubo. Deixe-
me retirar essa odiosa expressão. Peguei, e sobre minha cabeça viril
coloquei, a coroa real da Paflagônia; peguei, e com meu braço real
conduzi, o cetro da Paflagônia; peguei, e com minha mão estendida
segurei, o emblema real da Paflagônia! Poderia um menino pobre, um
menino chorão e tagarela, que ainda ontem estava nos braços de sua
babá, e choramingava por confeitos e fazia birra por bobagens,
aguentar o terrível peso da coroa, do emblema real, do cetro? Poderia
cingir a espada que meus pais reais usavam e enfrentar o duro
inimigo da Crimeia?

E assim o monarca começou a discutir em sua própria mente


(embora não seja necessário dizer que o verso em branco não seja
argumento) que tinha um dever a cumprir e que, se tivesse cedido a
ideias de uma certa restituição, que não deve ter nome, a perspectiva
de um certo casamento unir duas coroas e duas nações que
estiveram ocupadas com guerras sangrentas e custosas, como o
povo da Paflagônia e o da Crimeia estiveram, colocava a ideia da
restauração do trono a Lírio fora de questão: não, se o irmão dele, rei
Savio, estivesse vivo, certamente tiraria a coroa do próprio filho para
realizar tal desejável união.

Assim, facilmente enganamos a nós mesmos! Assim, imaginamos


que o que desejamos é correto! O rei tomou coragem, leu os
documentos, terminou de comer os bolinhos e os ovos, e tocou o sino
para chamar o primeiro-ministro. A rainha, depois de ponderar se
deveria ver Lírio, que estivera doente, pensou: agora, não. Primeiro o
trabalho; depois o prazer. Verei o querido Lírio esta tarde, e agora irei
até o joalheiro procurar pelo colar e os braceletes. A princesa foi até
os próprios aposentos e fez Betsinda, sua dama de companhia, trazer
todos os seus vestidos. Quanto a Lírio, eles o esqueceram tanto
quanto eu esqueço o que comi na última terça-feira.
II. Como o Rei Valoroso Conseguiu a Coroa e
o Príncipe Lírio Ficou Sem Ela

A Paflagônia, dez ou vinte mil anos atrás, parece ter sido um desses
reinos onde as leis de sucessão não tinham sido estabelecidas, pois
quando o rei Sávio morreu, deixando seu irmão como regente e
guardião da criança órfã que era seu filho, esse regente infiel não
levou em consideração o último desejo do falecido monarca:
proclamou-se soberano da Paflagônia sob o título de rei Valoroso
XXIV, teve a mais esplêndida coroação e ordenou a todos os nobres
do reino que lhe prestassem homenagem. Enquanto Valoroso
oferecia muitos bailes na corte, muito dinheiro e lugares lucrativos, a
nobreza da Paflagônia não se importava com quem era o rei; e
quanto ao povo, naqueles primeiros tempos, eles eram igualmente
indiferentes. Graças à tenra idade que tinha na época da morte do
pai, o príncipe Lírio não sentiu a perda da coroa e do império. Desde
que tivesse muitos brinquedos e guloseimas, um feriado cinco vezes
por semana, um cavalo e uma espingarda para atirar quando
crescesse um pouco e, sobretudo, a companhia da prima querida,
única filha do rei, o pobre Lírio estava satisfeito. Não invejava seu tio,
as vestes reais e o cetro, o grande e desconfortável trono e a enorme
e incômoda coroa que o monarca usava da manhã à noite. O retrato
do rei Valoroso foi deixado para nós, e acho que você concordará
comigo que às vezes ele devia ficar bastante cansado do veludo, dos
diamantes, da pele de arminho e da grandeza. Eu não gostaria de
ficar enfiado naquela túnica sufocante com uma coisa assim na
cabeça.
Sem dúvida, a rainha deve ter sido adorável na juventude, pois,
embora tenha se tornado bastante corpulenta depois, ainda assim
suas feições, como mostradas no retrato, são certamente agradáveis.
Se ela gostava de lisonjas, escândalos, cartas e roupas finas,
tratemos delicadamente de suas fraquezas, que, afinal, podem não
ser maiores que as nossas. Ela era gentil com o sobrinho, e se tinha
algum pingo de consciência sobre o marido tomar a coroa do jovem
príncipe, consolava-se pensando que o rei, embora fosse um
usurpador, também era um homem muito respeitável, e que a morte
dele restauraria o príncipe Lírio ao trono, que por sua vez o
compartilharia com a prima, a quem tanto amava.
O primeiro-ministro era Tristonho, um velho estadista, que com
muita alegria jurou fidelidade ao rei Valoroso, e em cujas mãos o
monarca deixou todos os assuntos do reino. Tudo o que Valoroso
queria era muito dinheiro, muita caça, muita bajulação e o mínimo de
problemas possível. Desde que se divertisse, o monarca pouco se
importava com o preço que seu povo pagava. Ele se envolveu em
algumas guerras e, claro, os jornais da Paflagônia anunciaram que o
rei conquistara vitórias prodigiosas; mandou erigir estátuas para si em
todas as cidades do Império; e, é claro, espalhou retratos seus por
toda parte, e em todas as gráficas: era Valoroso, o Magnânimo;
Valoroso, o Vitorioso; Valoroso, o Grande, e assim por diante ― pois,
mesmo naqueles tempos antigos, os cortesãos e as pessoas sabiam
como ser bajuladores.

O casal real teve uma única filha, a princesa Angélica, que, você
pode ter certeza, era um exemplo aos olhos dos cortesãos, aos dos
pais e aos dela mesma. Dizia-se que a garota tinha o cabelo mais
comprido, os maiores olhos, a cintura mais fina, os menores pés e a
aparência mais adorável que qualquer jovem dos domínios da
Paflagônia. As conquistas dela foram anunciadas como sendo até
superiores à sua beleza; e as tutoras costumavam envergonhar seus
ociosos pupilos, dizendo-lhes o que a princesa Angélica sabia fazer.
Só de ouvir, era capaz de tocar as músicas mais difíceis. Ela podia
responder a qualquer uma das questões do livro-texto de Mangnall;
conhecia todas as datas da história da Paflagônia e de todos os
outros países; sabia francês, inglês, italiano, alemão, espanhol,
hebraico, grego, latim, capadócio, samotrácio, egeu e tártaro da
Crimeia. Para resumir, era uma jovem criatura extremamente
talentosa; e sua governanta e dama de companhia era a severa
Condessa Bufanosa.
Você não imaginaria, a partir desse retrato, que Bufanosa deve ter
sido uma pessoa nascida na mais alta posição? Ela parece tão
arrogante que eu deveria ter pensado nela no mínimo como uma
princesa, com uma linhagem tão antiga quanto o Dilúvio. Mas essa
senhora não nasceu em melhor berço do que muitas outras senhoras
que se fingem de importantes; e todas as pessoas sensatas riam de
suas pretensões absurdas. O fato é que fora criada da rainha quando
Sua Majestade era apenas uma princesa, e seu marido fora lacaio-
chefe; porém, depois da morte ou desaparecimento dele, do qual
você ouvirá em breve, essa sra. Bufanosa, ao bajular, adular e
lisonjear sua senhora real, tornou-se a favorita da rainha (que era
uma mulher bastante fraca), e Sua Majestade deu-lhe um título e
nomeou-a governanta da princesa.
E agora devo lhe contar a respeito do aprendizado e das
realizações da princesa, pelas quais ela tinha uma reputação das
mais maravilhosas. Angélica certamente era esperta, mas tão
preguiçosa quanto possível. Olhando de longe, era mesmo! Podia
tocar uma ou duas peças e fingir que nunca as tinha ouvido antes;
podia responder a meia dúzia de perguntas do livro de Mangnall, mas
era necessário ter o cuidado de fazer as perguntas certas. Quanto a
idiomas, tinha muitos mestres, mas duvido que soubesse mais do que
algumas frases em cada língua, apesar de toda sua pretensão; e
quanto ao bordado e ao desenho, ela exibia belos exemplares, é
verdade, mas quem os fizera?

Isso me obriga a dizer a verdade e, para isso, devo voltar muito no


tempo e contar a vocês sobre a Fada Varinha-Preta.
III. Quem era a Fada Varinha-Preta, e Quem
eram os Outros Grandes Personagens

Entre os reinos da Paflagônia e da Crimeia, vivia uma misteriosa


personagem, que era conhecida naqueles países como a Fada
Varinha-Preta, por conta da varinha ou vassoura de ébano que
carregava e às vezes usava para cavalgar até a lua, ou em outras
viagens a negócios ou lazer, e com a qual realizava suas maravilhas.
Quando jovem, e quando já tinha sido ensinada pelo necromante, o
pai dela, a arte de conjurar, estava sempre praticando suas
habilidades, zunindo de um reino para outro em sua vassoura preta e
fazendo favores de fadas a esse ou aquele príncipe. Ela tinha
dezenas de afilhados reais; transformou inúmeras pessoas perversas
em animais, pássaros, pedras de moer, relógios, bombas,
removedores de botas, guarda-chuvas ou outras coisas absurdas; e,
para resumir, era uma das mais ativas e oficiosas de todas as fadas.
Mas, depois de dois ou três mil anos assim, acho que Varinha-Preta
se cansou. Ou talvez tenha pensado: Que bem estou fazendo ao
levar esta princesa a dormir por cem anos? Prendendo um chouriço
no nariz daquele tolo? Fazendo cair diamantes e pérolas da boca de
uma menina, e víboras e sapos da boca de outra? Começo a pensar
que faço tanto mal quanto bem. É melhor parar com meus
encantamentos e assim deixar as coisas seguirem seu curso natural.
Lá estão minhas duas jovens afilhadas, a esposa do rei Savio e a
esposa do duque Frigideira. Dei a cada uma um presente, que era
para torná-las encantadoras aos olhos de seus maridos e garantir a
afeição daqueles cavalheiros enquanto vivessem. De que serviram
minha Rosa e meu Anel para essas duas mulheres? Para nada. Ao
terem todos seus caprichos atendidos pelos maridos, tornaram-se
birrentas, preguiçosas, mal-humoradas, absurdamente vaidosas,
lascivas e definhadas, e se imaginam irresistivelmente belas, quando
na verdade são muito velhas e horríveis, criaturas ridículas! Elas
costumavam mesmo ser condescendentes comigo quando eu as
visitava ― eu, a Fada Varinha-Preta, que conhece toda a sabedoria
dos necromantes e poderia tê-las transformado em babuínos, e todos
os diamantes delas em cebolas com um único aceno da minha
varinha!
Então, ela trancou os livros no armário, recusou-se a fazer outras
execuções mágicas e quase não usou mais a varinha, exceto como
bengala para andar.
Assim, quando a esposa do duque Frigideira teve um filhinho
(naquele tempo, o duque era apenas um dos principais nobres da
Crimeia), Varinha-Preta, embora convidada para o batizado, não
compareceu; apenas enviou cumprimentos e um pratinho de prata
para o bebê, que na verdade não valia mais do que alguns guinéus.
Mais ou menos na mesma época, a rainha da Paflagônia presenteou
Sua Majestade com um filho e herdeiro; canhões foram disparados; a
capital, iluminada e intermináveis festas foram organizadas para
celebrar o nascimento do jovem príncipe. Pensava-se que a fada, que
fora convidada para ser a madrinha, pelo menos o presentearia com
uma jaqueta invisível, um cavalo voador, uma bolsa mágica como a
de Fortunato ou algum outro valioso símbolo à sua escolha. Em vez
disso, Varinha-Preta foi até o berço do menino Lírio, quando todos o
admiravam e cumprimentavam seu papai e mamãe reais, e disse:
― Minha pobre criança, a melhor coisa que posso lhe enviar é um
pequeno infortúnio. ― E isso foi tudo o que disse, para desgosto dos
pais de Lírio, que morreram logo depois, quando o tio do menino
assumiu o trono, como lemos no capítulo I.
Da mesma forma, quando Couve-Flor, rei da Crimeia, batizou a
única filha, Rosalba, a Fada Varinha-Preta, que fora convidada, não
foi mais gentil do que no caso do príncipe Lírio. Enquanto todos
discutiam a respeito da beleza da querida criança e felicitavam os
pais, a fada lançou um olhar muito triste para o bebê e a mãe,
dizendo:
― Minha boa mulher ― pois a fada era muito íntima, e não se
importava mais com uma rainha do que com uma lavadeira ―, estas
pessoas que a seguem serão as primeiras a se voltarem contra você;
e, quanto a esta mocinha, a melhor coisa que posso desejar a ela é
um pequeno infortúnio.
Então, ela tocou Rosalba com sua varinha preta, lançou um olhar
severo para os cortesãos, fez um sinal de adeus à rainha e voou pela
janela.
Quando se foi, as pessoas da corte, que ficaram maravilhadas e
silenciosas em sua presença, começaram a falar:
― Que fada odiosa ela é. Uma fada bonita, de fato! Ora, ela foi ao
batizado do rei da Paflagônia e fingiu fazer todo tipo de coisas para
aquela família, e o que aconteceu? O príncipe, afilhado dela, foi
afastado do trono pelo tio. Permitiríamos que nossa doce princesa
fosse privada de seus direitos por algum inimigo? Nunca, nunca,
nunca, nunca!
E todos gritaram em coro:

― Nunca, nunca, nunca, nunca!


Agora, bem que eu gostaria de saber como esses finos cortesãos
mostraram fidelidade? Um dos vassalos do rei Couve-Flor, o duque
Frigideira, que acabei de mencionar, rebelou-se contra o rei, que saiu
para castigar seu súdito rebelde.

― Alguém se rebela contra nosso amado e augusto monarca! ―


gritaram os cortesãos. ― Alguém se opõe a ele? Pfff! Ele é
invencível, irresistível. Ele vai trazer Frigideira como prisioneiro,
amarrá-lo ao rabo de um burro e levá-lo pela cidade, dizendo: “É
assim que o Grande Couve-Flor trata os rebeldes”.
O rei saiu para derrotar Frigideira; e a pobre rainha, que era uma
criatura muito tímida e ansiosa, ficou tão assustada e doente que,
lamento dizer, morreu, deixando ordens para que suas damas
cuidassem da querida Rosalba. Claro que disseram que o fariam.
Claro que juraram que morreriam antes que qualquer mal acometesse
a princesa. A princípio, o Jornal do Tribunal da Crimeia afirmou que o
rei obtinha grandes vitórias sobre o audacioso rebelde; depois, foi
anunciado que as tropas do infame Frigideira estavam em fuga; por
fim, foi dito que o exército real logo alcançaria o inimigo, e então…
então veio a notícia de que o rei Couve-Flor fora derrotado e morto
por Sua Majestade, o rei Frigideira I!

Com a notícia, metade dos cortesãos correu para cumprir o dever


para com o chefe conquistador, e a outra metade fugiu, roubando os
melhores itens do palácio. A pobrezinha Rosalba foi deixada lá,
sozinha ― muito sozinha; e foi de um quarto a outro em seus
passinhos de criança, gritando:

― Condessa! Duquesa! ― Só que ela dizia “Pondessa! Luquesa!”,


já que não sabia falar direito. ― Quero sopa de carneiro; minha
Alteza Real com fome! Pondessa! Luquesa!

Ela ia dos aposentos para a sala do trono, e ninguém estava lá; e


dali para o salão de baile, e ninguém estava lá; e dali para a sala dos
escudeiros, e ninguém estava lá; e desceu a grande escada para o
salão, e ninguém estava lá; e a porta estava aberta, e ela foi para o
pátio, e para o jardim, e dali para a mata, e dali para a floresta onde
viviam as feras, e nunca mais se ouviu falar dela!
Um pedaço rasgado do manto dela e um dos sapatos foram
encontrados na boca de duas leoas filhotes que o rei Frigideira e um
grupo de caça real mataram ― pois ele era o rei agora, e reinava
sobre a Crimeia.

― Então a pobre princesinha se foi ― lamentou ele. ― Bem, o que


está feito, está feito. Cavalheiros, vamos almoçar!
Um dos cortesãos pegou o sapato e o colocou no bolso. E esse foi
o fim de Rosalba!
IV. Como Varinha-Preta Não Foi Convidada
para o Batismo da Princesa Angélica

Quando a princesa Angélica nasceu, os pais dela não apenas não


convidaram a Fada Varinha-Preta para o batizado como também
deram ordens ao porteiro para recusar a entrada dela. O nome desse
porteiro era Bufanosa, e ele fora escolhido para o cargo por Suas
Altezas Reais porque era um homem muito alto e feroz, capaz de
dizer “Não tem ninguém em casa” para um comerciante ou visitante
indesejado com tal grosseria que fazia a maioria dessas pessoas
partirem. Ele era o marido daquela condessa que acabamos de
mencionar, e, quando estavam juntos, brigavam da manhã até a
noite. Agora, esse sujeito usava de grosseria com muita frequência,
como você ficará sabendo. Pois a Fada Varinha-Preta veio chamar o
príncipe e a princesa, que estavam sentados à janela aberta da sala
de visitas, e Bufanosa não apenas negou que estivessem em casa,
mas fez o mais odioso gesto vulgar ao bater a porta na cara da fada!
― Dê o fora, Varinha-Preta! ― disse ele. ― Eu lhe digo, Suas
Altezas não estão em casa para você. ― E ele foi, como dissemos,
bater mesmo a porta.
Mas a fada usou a varinha para evitar que esta se fechasse; e
Bufanosa saiu furioso outra vez, praguejando da maneira mais
abominável, e perguntou à fada “se ela achava que ele ia ficar
naquela porta o dia todo”.

― Você vai ficar o dia e a noite toda, e por muitos e longos anos ―
disse a fada, de forma muito majestosa.

Bufanosa saiu pela porta, escarranchou-se diante dela com suas


grandes panturrilhas, desatando a rir, e gritou:
― Ha ha, ha! Essa foi boa! Ha… hã… o que é isso? Deixe-me
descer… Hum-hum.
E assim ficou mudo.

Pois, quando a fada acenou com a varinha sobre ele, Bufanosa


sentiu-se levantar do chão e esvoaçar contra a porta e, como se um
parafuso tivesse furado sua barriga, sentiu uma dor terrível e ficou
preso à porta. Então, seus braços voaram sobre a cabeça; e as
pernas, depois de se contorcerem loucamente, retorceram-se sob o
corpo. Ele sentiu frio, frio, tomando conta de si, como se estivesse se
transformando em metal, e disse: “Hum-hum”, até que não pôde dizer
mais nada, pois estava mudo.

Ele fora transformado em metal! Por ter sido insolente! E não era
nem mais nem menos que uma aldrava! Lá estava ele, preso à porta
no dia escaldante de verão, até ficar quase em brasa; e lá estava ele,
preso à porta em todas as noites amargas de inverno, até que de seu
nariz de bronze pingassem pingentes de gelo. O mensageiro veio e
bateu nele, e o mais vulgar menino de recados veio com uma carta e
o bateu contra a porta.

O rei e a rainha (eram a princesa e o príncipe à época) voltavam


para casa de uma caminhada naquela noite, ao que ele disse:

― Ó, minha querida! Você mandou colocar uma aldrava nova na


porta. Ora, é a cara do nosso porteiro! O que aconteceu com aquele
vagabundo bêbado?

A criada veio e esfregou o nariz de Bufanosa com uma lixa. Uma


vez, quando a irmãzinha da princesa Angélica nasceu, ele foi
amarrado com uma velha luva de pelica; e, outra noite, alguns jovens
baderneiros tentaram arrancá-lo com uma chave-inglesa e o levaram
à agonia mais excruciante ao parafusá-lo de volta. Então, a rainha
teve vontade de alterar a cor da porta; os pintores esfregaram
Bufanosa na boca e nos olhos, e quase o sufocaram enquanto o
pintavam de verde-ervilha. Garanto que ele teve tempo de se
arrepender de ter sido rude com a Fada Varinha-Preta!
Quanto à esposa, não sentia falta dele. Como o marido estava
sempre bebendo cerveja na taberna, e notoriamente brigando com
ela, endividado com os comerciantes, supunha-se que havia fugido
de todos esses males e migrado para a Austrália ou para a América.
E, quando o príncipe e a princesa escolheram se tornar rei e rainha,
deixaram sua antiga casa e ninguém mais pensou no porteiro.
V. Como a Princesa Angélica Escolheu uma
Criadinha

Um dia, quando a princesa Angélica era pequenina, estava


passeando no jardim do palácio com a sra. Bufanosa, a governanta,
segurando uma sombrinha sobre a cabeça para evitar que seu doce
rosto ficasse cheio de pintinhas. A princesa carregava um pãozinho
para alimentar os cisnes e patos no lago real.
As duas não haviam nem chegado ao lago dos patos quando se
aproximou delas uma garotinha tão engraçada! Tinha uma grande
quantidade de cabelo esvoaçando sobre as bochechas gordinhas e
parecia que não tomava banho nem se penteava havia muito tempo.
Usava uma capa esfarrapada e tinha apenas um sapato.
― Sua miseravelzinha, quem deixou você entrar aqui? ―
perguntou a sra. Bufanosa.

― Me dá pão ― disse a garotinha. ― Eu tô com fome.


― Com fome! Como assim? ― perguntou a princesa Angélica e
deu o pãozinho à criança.
― Ah, princesa! ― disse a sra. Bufanosa. ― Quão boa, quão
gentil, quão verdadeiramente angelical a senhorita é! Vejam, Vossas
Majestades ― disse ela ao rei e à rainha, que agora se aproximavam,
junto do sobrinho, o príncipe Lírio ―, como a princesa é gentil! Ela
encontrou essa miseravelzinha suja no jardim; não sei dizer como
entrou aqui ou por que os guardas não a mataram a tiros no portão!
Mas a querida princesa deu-lhe todo o pãozinho!
― Eu não queria o pão ― disse Angélica.

― Mas você é um anjinho querido mesmo assim ― afirmou a


governanta.
― Sim, sei que sou. Garotinha suja, você não me acha muito
bonita?
De fato, ela estava usando um dos melhores vestidos e chapéus; e,
como seu cabelo estava cuidadosamente enrolado, parecia mesmo
muito bem.
― Ah, bunita, bunita! ― disse a garotinha, saltitando, rindo,
dançando e mastigando seu pão; e, enquanto comia, começou a
cantar. ― Ah, que divertido ter um pão de ameixa!

Com isso, e por seu sotaque engraçado, Angélica, Lírio, o rei e a


rainha começaram a rir muito.

― Eu posso dançar tão bem quanto cantar ― disse a garotinha. ―


Posso dançar, posso cantar e posso fazer todo tipo de coiso ― Ela
correu para um canteiro de flores e, puxando alguns narcisos,
rododendros e outras flores, fez uma guirlanda para si mesma e
dançou diante do rei e da rainha com tanta graça e beleza que todos
ficaram encantados.
― Quem é sua mãe… quem são seus parentes, garotinha? ―
perguntou a rainha.
Ao que garotinha respondeu:

― O leãozinho era meu imão; a grande leoa, minha mãe; nunca


ouvi falar de mais ninhum.
Ela saltou em seu único sapato, e todos ficaram deveras distraídos.

Então Angélica disse à rainha:


― Mamãe, meu papagaio voou ontem para fora da gaiola, e não
me importo mais com nenhum dos meus brinquedos. Acho que essa
criancinha suja e engraçada vai me divertir. Vou levá-la para casa e
dar-lhe alguns dos meus vestidos velhos.

― Ah, que generosa! ― exclamou a sra. Bufanosa.


― Que já usei tantas vezes que até cansei ― continuou Angélica.
― E ela será minha criadinha. Você vem para casa comigo, garotinha
suja?
A criança bateu palmas, dizendo:

― Ir para casa com você, sim! Sua princesa bunita! Ter um bom
jantar e usar um vestido novo!

Todos riram de novo e levaram a criança para o palácio, onde, ao


ser lavada, penteada e receber um dos vestidos da princesa, ficou
quase tão bonita quanto Angélica. Não que Angélica pensasse assim,
pois esta pequena senhora nunca imaginou que alguém no mundo
pudesse ser tão bonito, tão bom ou tão inteligente quanto ela. Para
que a menina não se tornasse muito orgulhosa e presunçosa, a sra.
Bufanosa pegou as velhas vestes esfarrapadas e o sapato dela e os
colocou em uma caixa de vidro, com um cartão colocado sobre eles,
no qual estava escrito: “Estas foram as roupas velhas com as quais a
pequena Betsinda foi encontrada quando a grande bondade e
admirável gentileza de Sua Alteza Real, a princesa Angélica, recebeu
esta pequena pária”. A data foi adicionada, e a caixa, trancada.

Durante algum tempo, a pequena Betsinda foi a grande favorita da


princesa. Ela dançava, cantava e fazia pequenas rimas para divertir a
Alteza. Mas aí a princesa ganhou um macaco, depois um cachorrinho
e mais tarde uma boneca, e não se importou mais com Betsinda, que
ficou muito melancólica e quieta e não cantou mais canções
engraçadas, porque ninguém se importava em ouvi-la. E então, ao
crescer, tornou-se uma pequena dama da princesa; embora não
tivesse salário, trabalhava e remendava, penteava o cabelo de
Angélica, nunca ficava zangada quando repreendida, estava sempre
ansiosa para agradar a princesa, acordava cedo e dormia tarde todos
os dias, sempre por perto quando necessário, e de fato se tornou uma
perfeita criadinha.

Assim, as meninas cresceram, e, quando a princesa saía, Betsinda


não se cansava de esperá-la; fazia vestidos melhores do que os da
melhor modista e foi útil em uma centena de maneiras. Enquanto a
princesa estava com seus senhores, Betsinda sentava-se a observá-
los; dessa forma aprendeu muito, pois estava sempre acordada,
embora sua senhora não estivesse, e ouvia os sábios tutores quando
Angélica estava bocejando ou pensando no próximo baile. Quando o
mestre de dança vinha, Betsinda aprendia junto de Angélica; quando
o de música vinha, observava-o e praticava as peças da princesa
quando Angélica estava fora em bailes e festas; quando o de
desenho vinha, tomava nota de tudo o que ele dizia e fazia; e o
mesmo com o de francês, de italiano e todas as outras línguas ― ela
as aprendeu com os mestres que vinham por Angélica.
Quando a princesa saía à noite, dizia:

― Minha boa Betsinda, você pode terminar o que comecei.


― Sim, senhorita ― dizia Betsinda, sentando-se muito alegre, não
para terminar o que Angélica começara, mas para fazê-lo.
Por exemplo, digamos que a princesa começava a desenhar a
cabeça de um guerreiro e, no início, era algo assim:
Mas, quando acabava, o guerreiro ficava assim:
(Só que ainda mais bonito, se possível), e a princesa assinava o
desenho. A corte, o rei e a rainha, e acima de tudo o pobre Lírio,
admiravam o desenho e diziam:
― Já existiu um gênio como Angélica?
Assim, lamento dizer, foi da mesma forma com os bordados e
outras realizações da princesa. Angélica realmente acreditou que ela
mesma fazia essas coisas e recebeu toda a lisonja da corte como se
cada palavra fosse verdade. A princesa começou a pensar que não
havia nenhuma jovem em todo o mundo igual a ela e que nenhum
jovem era bom o suficiente para si. Quanto a Betsinda, como não
ouviu nenhum desses elogios, não se empavonou com eles e, sendo
uma moça muito agradecida e bem-humorada, estava ansiosa
demais para fazer tudo o que pudesse dar prazer à sua senhora.
Agora, você começa a perceber que Angélica tinha os próprios
defeitos e não era de modo algum uma maravilha das maravilhas
como as pessoas representavam Sua Alteza Real.
VI. Como o Príncipe Lírio se Comportava

E agora falemos a respeito do príncipe Lírio, sobrinho do monarca


reinante da Paflagônia. Na página sete, já foi dito que desde que
tivesse um casaco elegante para vestir, um bom cavalo para montar e
dinheiro no bolso ― ou melhor, para tirar do bolso, pois o jovem tinha
um coração muito bom ―, meu príncipe não se importava com a
perda da coroa e do cetro, sendo um jovem despreocupado, pouco
inclinado à política ou a qualquer tipo de aprendizado. E, portanto, o
tutor dele tinha pouco trabalho.
Lírio não aprendia clássicos ou matemática, e o lorde chanceler da
Paflagônia, Squaretoso, fazia cara feia porque o príncipe não
estudava as leis nem a constituição do país; mas, por outro lado, os
caçadores do rei achavam o príncipe um apto pupilo; o professor de
dança declarou que o rapaz era um erudito muito elegante e assíduo;
o primeiro lorde da mesa de bilhar deu os relatos mais lisonjeiros a
respeito da habilidade do príncipe; e o mesmo fez o professor de
tênis; e, quanto ao capitão da guarda e mestre de esgrima, o valente
e veterano conde Cortafo Racabeças, ele confessou que desde que
comandava o Exército da Crimeia, o terrível Grumbuskin, nunca havia
encontrado um espadachim tão experiente quanto o príncipe Lírio.
Espero que você não imagine que houve algo inadequado quanto
ao príncipe e à princesa caminharem juntos no jardim do palácio, nem
quanto a Lírio ter beijado a mão de Angélica educadamente.
Em primeiro lugar, eles são primos; além disso, a rainha também
estava caminhando no jardim (você não poderia vê-la, pois ela estava
atrás daquela árvore), e Sua Majestade sempre desejou que Angélica
e Lírio se casassem. Lírio também; às vezes, Angélica também, pois
achava o primo muito bonito, corajoso e de bom coração. Mas saiba
que ela era tão inteligente e sabia tantas coisas, e o pobre Lírio não
sabia nada e nada dizia. Quando olharam para as estrelas, o que
Lírio sabia sobre os corpos celestes? Certa vez, numa doce noite na
sacada onde estavam, Angélica disse:

― Lá está a Ursa.
― Onde? ― Lírio quis saber. ― Não tema, Angélica! Se uma dúzia
de ursos vier, vou matá-los antes que a machuquem.

― Ah, sua criatura tola! ― disse ela. ― Você é muito bom, mas não
é muito sábio.
Quando olharam para as flores, Lírio nada sabia sobre botânica
nem nunca tinha ouvido falar em Lineu, o botânico. Quando as
borboletas passaram, Lírio não sabia nada sobre elas, sendo tão
ignorante em entomologia quanto eu sou em álgebra. Agora veja
bem: Angélica, embora gostasse bastante do primo, o desprezava por
causa de sua ignorância. Acho que era provável que ela valorizasse
demais o próprio aprendizado; mas se autovalorizar em excesso é
defeito de pessoas de todas as idades e de ambos os sexos. Enfim,
quando ninguém estava por perto, Angélica gostava muito do primo.
O rei Valoroso tinha uma saúde bastante delicada, e ao mesmo
tempo gostava tanto de bons jantares (que lhe eram preparados por
seu cozinheiro francês, Marmitônio), que se supunha que não ia viver
muito mais. Agora, a ideia de algo acontecer com o rei aterrorizava o
astuto primeiro-ministro e a velha dama de companhia. Pois,
pensavam Tristonho e a condessa, quando o príncipe Lírio se casar
com a prima e ascender ao trono, que bela posição teremos nós, de
quem ele não gosta, e que sempre fomos indelicados para com ele.
Perderemos nossos lugares em um piscar de olhos; a sra. Bufanosa
terá que abrir mão de todas as joias, rendas, caixas de rapé, anéis e
relógios que pertenciam à rainha, mãe de Lírio; e Tristonho será
obrigado a restituir duzentas e dezessete mil milhões, novecentas e
oitenta e sete mil, quatrocentas e trinta e nove libras, treze xelins, seis
pence e meio centavo; dinheiro esse que fora deixado ao príncipe
Lírio por seu pobre e querido pai.

Desse modo, a dama de honra e o primeiro-ministro odiavam Lírio


porque haviam feito mal ao rapaz; e essas pessoas sem princípios
inventavam uma centena de histórias cruéis sobre o pobre Lírio, a fim
de influenciarem a família real contra ele. As histórias eram a respeito
de como Lírio era tão ignorante que não conseguia soletrar as
palavras mais comuns, e escrevia Valloroso e Angéllica com dois l’s;
como bebia vinho demais no jantar e estava sempre ocioso nos
estábulos com os cavalariços; como devia muito dinheiro na
confeitaria e no armarinho; como costumava dormir na igreja; como
gostava de jogar cartas. A rainha também gostava de jogar cartas; o
rei também gostava de dormir na igreja, e comer e beber demais; e,
se Lírio devia uma ninharia por tortas, quem lhe devia duzentas e
dezessete mil milhões, novecentas e oitenta e sete mil, quatrocentas
e trinta e nove libras, treze xelins, seis pence e meio centavo, gostaria
de saber? Detratores e fofoqueiros (na minha humilde opinião) tinham
mais que cuidar da própria vida. Todas essas calúnias e fofocas
tiveram efeito sobre a princesa Angélica, que começou a ver o primo
com frieza, depois a rir dele e desprezá-lo por ser tão estúpido,
depois a zombar dele por ter amigos vulgares; e nos bailes da corte,
jantares e assim por diante, o tratava tão mal que o pobre Lírio ficou
muito doente, ficou de cama e mandou chamar o médico.
Sua Majestade, o Rei Valoroso, como vimos, tinha suas próprias
razões para não gostar do sobrinho. Quanto aos inocentes leitores
que perguntam o motivo, peço (com a permissão de seus queridos
pais) que os encaminhe às páginas de Shakespeare, onde vão ler por
que o rei John não gostava do príncipe Arthur. Para a rainha, a tia
real mas de mente fraca, Lírio não estar à vista era o mesmo que não
existir. Enquanto ela tinha seu uíste ― seu jogo de cartas ― e suas
festas noturnas, nada mais lhe importava.

Ouso dizer que dois vilões, os quais deixaremos sem nome,


desejavam que o dr. Pildrafto, médico da corte, tivesse matado Lírio
imediatamente. No entanto, só o fez sangrar e o medicou tanto que o
príncipe foi mantido no quarto por vários meses e ficou tão magro
quanto um graveto.

Enquanto Lírio estava doente, chegou à Corte da Paflagônia um


famoso pintor, chamado Tomaso Lorenzo, que pintava o Rei da
Crimeia, país vizinho à Paflagônia. Tomaso Lorenzo pintou toda a
Corte, que ficou encantada com suas obras; pois em seus retratos até
a Condessa Bufanosa parecia jovem, e Tristonho, de bom coração.
― Ele lisonjeia muito ― disseram algumas pessoas.

― Não! ― retrucou a princesa Angélica. ― Estou acima da lisonja,


e acho que ele não fez meu retrato bonito o suficiente. Não suporto
ouvir um homem de gênio chorar injustamente, e espero que meu
querido papai faça de Lorenzo um cavaleiro de sua Ordem do Pepino.

Embora os cortesãos jurassem que Sua Alteza Real desenhava tão


bem que a ideia de ela ter aulas era absurda, ainda assim a princesa
Angélica escolheu ter Lorenzo como professor, e foi maravilhoso,
desde que ela pintasse no estúdio dele, que lindos retratos a garota
fez! Algumas das performances foram gravadas no Livro da Beleza:
outras foram vendidas por quantias exorbitantes em bazares de
caridade. Angélica assinou embaixo dos desenhos, sem dúvida, mas
acho que sei quem fez as pinturas ― aquele astuto pintor, que foi até
Angélica com outros desenhos em vez de apenas ensiná-la a
desenhar.
Um dia, Lorenzo mostrou à princesa o retrato de um jovem de
armadura, com cabelos louros e os mais lindos olhos azuis; ao rosto
uma expressão ao mesmo tempo melancólica e interessante.

― Caro sr. Lorenzo, quem é esse? ― perguntou a princesa.

― Nunca vi ninguém tão bonito ― disse a Condessa Bufanosa,


falando charlatanice, como sempre.

― Esse ― respondeu o pintor ―, esse, senhorita, é o retrato de


meu augusto jovem mestre, Sua Alteza Real Bulbo, Príncipe Herdeiro
da Crimeia, Duque de Acroceráunia, Marquês de Poluphloisboio, e
Cavaleiro Grã-Cruz da Ordem da Abóbora. Essa é a ordem da
Abóbora, fulgente em seu peito viril e recebida por Sua Alteza Real de
seu augusto pai, Sua Majestade o rei Frigideira I., por sua bravura na
batalha de Rimbombamento, quando matou com as próprias mãos
principescas o Rei de Ograria e duzentos e onze gigantes dos
duzentos e dezoito que formavam a guarda do rei. O restante foi
destruído pelo bravo exército da Crimeia Tártara após um obstinado
combate, no qual os Tártaros sofreram severamente.

Que príncipe!, pensou Angélica. Tão corajoso, de aparência tão


calma, tão jovem, que herói!

― Ele é tão talentoso quanto é corajoso ― continuou o Pintor da


Corte. ― Conhece todas as línguas com perfeição; canta
deliciosamente; toca todos os instrumentos; compõe óperas que
foram encenadas mil noites consecutivas no Teatro Imperial da
Crimeia, e dançadas em um balé diante do rei e da rainha; em que
ele parecia tão bonito que sua prima, a adorável filha do rei de
Circassia, morreu por amor a ele.

― E por que ele não se casou com a pobre princesa? ― perguntou


Angélica, com um suspiro.

― Porque eram primos de primeiro grau, senhorita, e o clero proíbe


essas uniões ― disse o Pintor. ― E, além disso, o jovem príncipe
havia dado seu coração real em algum outro lugar.
― E para quem? ― perguntou Sua Alteza Real.

― Não tenho liberdade para mencionar o nome da princesa ―


respondeu o Pintor.

― Mas você pode me dizer a primeira letra ― exclamou a princesa.

― Vossa Alteza Real tem liberdade para adivinhar ― disse


Lorenzo.

― Começa com Z? ― perguntou Angélica.

O Pintor disse que não era Z; então ela tentou Y; em seguida, X;


depois, W e retrocedeu quase todo o alfabeto.

Quando chegou no D, e não era D, ela ficou muito irrequieta;


quando chegou em C, e não era C, ficou ainda mais nervosa; quando
chegou em B, e não era B, ela disse:
― Ó, meu querido Bufanoso, empreste-me seu frasco de cheirar!
― E, escondendo a cabeça no ombro da condessa, sussurrou
baixinho: ― Ah, senhor, pode ser A?

― É A. E embora eu não possa, por ordem do meu Mestre Real,


dizer à Vossa Alteza Real o nome da princesa, a quem ele ama com
ternura, loucura, devoção e êxtase, posso mostrar-lhe o retrato dela
― explicou o malandro e, conduzindo a princesa até uma moldura
dourada, puxou uma cortina que estava diante da garota.

Nossa! A moldura continha um espelho! E nele Angélica viu o


próprio rosto!
VII. Como Lírio e Angélica Brigaram

O Pintor da Corte de Sua Majestade o Rei da Crimeia voltou aos


domínios daquele monarca, levando consigo uma série de esboços
que havia feito na capital da Paflagônia (vocês, meus caros, sabem, é
claro, que o nome dessa capital é Blombodinga); mas a mais
encantadora de todas as peças era um retrato da princesa Angélica,
que todos os nobres da Crimeia vieram a ver. O Rei ficou tão
encantado com a obra que condecorou o Pintor com a Ordem da
Abóbora (sexta classe), e, daí em diante, o artista tornou-se Sir
Tomaso Lorenzo, soldado descascador de batatas.

O Rei Valoroso também enviou a Sir Tomaso sua Ordem do


Pepino, além de uma bela quantia de dinheiro, pois pintou o Rei, a
Rainha e a nobreza principal enquanto estava em Blombodinga, e se
tornou toda a moda, para a fúria completa de todos os artistas da
Paflagônia, pois o rei costumava apontar para o retrato do príncipe
Bulbo, que Sir Tomaso havia deixado para trás, e dizer:
― Entre vocês, qual pode pintar um quadro assim?

Estava pendurado no salão real sobre o aparador real, e a princesa


Angélica sempre podia olhar para ele enquanto estava sentada
tomando chá. A cada dia parecia ficar mais e mais bonito, e a
princesa gostava tanto de olhá-lo que muitas vezes derramava chá
sobre o pano, fazendo seus pais pestanejarem e balançarem a
cabeça e dizerem um ao outro:

― Aha! Olhe só como as coisas estão indo.


Enquanto isso, o pobre Lírio estava no andar de cima, em seu
quarto, muito doente, embora, como sendo o bom rapaz que era,
tomasse todos os remédios horríveis passados pelo médico; como
espero que vocês façam, meus queridos, quando estiverem doentes e
a mamãe mandar chamar o médico. E a única pessoa que visitava
Lírio (além de seu amigo capitão da guarda, que quase sempre
estava ocupado ou desfilando), era a pequena Betsinda, a criada, que
costumava arrumar o quarto e sala de estar dele, trazer-lhe seu
mingau e aquecer a cama do rapaz.

Quando a criadinha ia vê-lo pela manhã e à noite, o príncipe Lírio


costumava dizer:

― Betsinda, Betsinda, como está a princesa Angélica?

Ao que Betsinda respondia:


― A princesa está muito bem, obrigada, meu senhor.

E Lírio suspirava e pensava: Se Angélica estivesse doente, tenho


certeza de que eu não estaria muito bem.
E então questionava:

― Betsinda, a princesa Angélica perguntou por mim hoje?

E então Betsinda respondia:

― Não, meu senhor, hoje não. ― Ou: ― Ela estava muito ocupada
praticando piano quando a vi. ― Ou: ― Ela estava escrevendo
convites para uma festa e não falou comigo.

Ou inventava alguma desculpinha, não estritamente de acordo com


a verdade: pois Betsinda era uma criatura de tão bom coração que se
esforçava para fazer de tudo para evitar aborrecimentos ao príncipe
Lírio e até chegou a levar para ele frango assado e geleias da
cozinha (isso quando o doutor permitia, e quando Lírio estava
melhorando), dizendo “que a princesa tinha feito a geleia, ou o molho
de pão, com as próprias mãos, especialmente para Lírio”.
Ao ouvir isso, Lírio se animou e começou a se recuperar
imediatamente; devorou toda a geleia e pegou o último pedaço do
frango ― coxas, sobrecoxas, peito, pés, sambiquira e tudo a que
tinha direito ―, agradecendo sua querida Angélica; e sentiu-se tão
melhor no dia seguinte que se vestiu e desceu, onde quem mais
deveria encontrar senão Angélica entrando na sala? Todas as capas
estavam fora das cadeiras; os candelabros foram pendurados; as
cortinas cor de damasco, afastadas; os trabalhos e coisas, levados; e
sobre as mesas havia os álbuns mais bonitos. Angélica estava com o
cabelo em rolinhos: para resumir, era evidente que haveria uma festa.

― Minha nossa, Lírio! ― exclamou Angélica. ― Você aqui vestido


assim! Que figura você é!

― Sim, querida Angélica, desci as escadas e me sinto tão bem


hoje, graças ao frango e à geleia.

― E o que sei eu sobre frangos e geleias, para você mencionar


assim de maneira rude?

― Ora, não… você não os enviou, querida Angélica? ― perguntou


Lírio.

― Eu os enviei mesmo! Não, querido Lírio ― disse ela, zombando


do primo. ― Eu estava empenhada em preparar os quartos para Sua
Alteza Real o Príncipe da Crimeia, que vem fazer uma visita à corte
de meu pai.
― O… Príncipe… da… Crimeia! ― disse Lírio, horrorizado.

― Sim, o Príncipe da Crimeia ― confirmou Angélica, zombando. ―


Atrevo-me a dizer que você nunca ouviu falar de tal país. Mas, né, no
que você já ouviu falar? Você não sabe se a Crimeia fica no Mar
Vermelho ou no Mar Negro, ouso dizer.

― Sei, sim, é no Mar Vermelho ― retrucou Lírio.


A princesa começou a rir e disse:

― Ah, seu bobinho! Você é tão ignorante, de fato não está apto
para a sociedade! Você não sabe de nada além de cavalos e cães, e
só serve para jantar na masmorra com os dragões mais pesados de
meu pai real. Não fique tão surpreso comigo, senhor: vá e vista suas
melhores roupas para receber o príncipe, e deixe-me preparar a sala
de estar.

Lírio disse:
― Ah, Angélica, Angélica, não pensei isso de você. Esta não era a
sua linguagem quando, no jardim, você me deu este anel e eu lhe dei
o meu, e você me deu aquele bei…

Mas o que foi, nunca saberemos, pois Angélica, furiosa, gritou:

― Saia daqui, sua criatura atrevida e rude! Como você se atreve a


me lembrar de sua grosseria? Quanto ao seu anelzinho de dois
centavos, pronto, senhor, pronto!

E ela o jogou pela janela.

― Era a aliança de casamento da minha mãe! ― exclamou Lírio.

― Não me importa de quem era o anel de casamento ― gritou


Angélica. ― Case-se com a pessoa que pegar o anel; porque você
não vai se casar comigo. E me devolva o meu anel. Não tenho
paciência com pessoas que se gabam das coisas que dão! Eu sei
quem vai me dar coisas muito melhores do que você já me deu. Um
anel pobre que não vale nem cinco xelins!

Agora, Angélica mal sabia que o anel que Lírio lhe dera era um
anel encantado: se um homem o usasse, todas as mulheres se
apaixonariam por ele; se uma mulher usasse, todos os cavalheiros se
apaixonariam por ela. A rainha, mãe de Lírio, uma pessoa de
aparência bastante comum, era imensamente admirada enquanto
usava o anel, e seu marido ficava desvairado quando a esposa
adoecia. Mas quando ela chamou o pequeno Lírio e colocou o anel
no dedo do menino, o rei Sávio não mais parecia se importar tanto
com a esposa, e transferiu todo o seu amor para o filho. E, enquanto
ele tinha o anel, todos o amavam; mas quando, ainda criança, o deu
para Angélica, e as pessoas começaram a amá-la e admirá-la; e Lírio,
como se costuma dizer, foi deixado de lado.

― Sim ― disse Angélica, continuando com seu jeito tolo e ingrato.


― Eu sei quem vai me dar coisas muito mais finas do que as
perolazinhas meia-boca que você me deu.

― Muito bem, senhorita! Você pode pegar de volta seu anel


também! ― exclamou Lírio, seu olhar lançando fogo nela, e então,
quando seus olhos se abriram de repente, gritou: ― Rá! O que
significa isso? É esta a mulher por quem estive apaixonado toda a
minha vida? Fui tão tolo a ponto de sacrificar minha consideração por
você? Pois… na verdade… sim… você é um pouco torta!
― Ah, seu maldito! ― gritou Angélica.
― E, agora que estou vendo, você… você é um pouco vesga.

― Ora! ― exclamou Angélica.

― E seu cabelo é ruivo… e você está com varíola… e o quê? Você


tem três dentes postiços… e uma perna mais curta que a outra!

― Seu ogro, seu ogro! ― gritou Angélica. E ao pegar o anel com


uma das mãos, deu um, dois, três tapas no rosto de Lírio, e teria
arrancado os cabelos dele se o rapaz não tivesse começado a rir, e a
chorar…

― Ai meu Deus, Angélica, não puxe meu cabelo, está doendo!


Estou vendo que você pode remover uma grande quantidade dos
seus, sem tesoura, sem puxar nada. Oh, ho, ho! Ha, ha, ha! Ho, hi, hi!
E o príncipe quase se sufocou de tanto rir, e ela, de raiva; quando,
com uma reverência baixa, e trajando seu hábito da corte, o conde
Gambabella, o primeiro escudeiro, entrou e disse:

― Altezas Reais! Suas Majestades os esperam na Sala do Trono


Rosa, onde aguardam a chegada do Príncipe da Crimeia Tártara.
VIII. Como Bufanosa pegou o anel encantado
e o príncipe Bulbo foi à corte

A chegada do príncipe Bulbo agitara toda a corte. Todos foram


obrigados a vestir suas melhores roupas: os lacaios tinham suas
librés de gala; o Lorde Chanceler, sua nova peruca; os guardas, suas
últimas túnicas novas; e a Condessa Bufanosa, pode ter certeza, se
alegrou com a oportunidade de decorar o velho dela com suas
melhores coisas. Ela estava andando pelo pátio do palácio, a
caminho de servir Suas Majestades quando avistou algo brilhando na
calçada e pediu ao menino que a acompanhava para ir buscar o
objeto que lá brilhava. Era um coitadinho feio, com algumas das
roupas velhas do porteiro cortadas e apertadas demais para ele; e, no
entanto, quando pegou o anel (o que acabou sendo o objeto que
brilhava) e o levou para sua senhora, esta pensou que ele parecia um
pequeno cupido. Ele entregou o anel; era uma coisinha pequena
demais para qualquer um de seus dedos velhos, então ela o colocou
no bolso.
― Ah, mãe! ― disse o menino, olhando para ela. ― Como… como
você está bunita hoje, mãe!

“E você também, Jacky”, ela ia dizer; mas, olhando para ele… não,
ele já não era mais bonito, mas sim apenas o pequeno Jacky de
cabelos cor de cenoura. No entanto, elogios do mais feio dos homens
ou meninos são bem-vindos, e Bufanosa, mandando o menino
segurar a cauda de seu vestido, caminhou com muito bom humor. Os
guardas a saudaram com peculiar respeito.
O capitão Racabeças, na antessala, disse:

― Minha querida senhora, você está como um anjo hoje.

E assim, curvando-se e sorrindo, Bufanosa entrou e tomou seu


lugar atrás de seus senhores reais, que estavam na sala do trono,
aguardando o príncipe da Crimeia. A princesa Angélica sentou-se aos
pés deles, e atrás da cadeira do rei estava o príncipe Lírio, parecendo
muito feroz.

O Príncipe da Crimeia fez sua aparição, com a presença do Barão


Bota de Neve, seu camarista, e seguido por um pajem negro
carregando a mais bela coroa que você já viu! Estava usando seu
traje de viagem, e seu cabelo, como se pode ver, estava um pouco
bagunçado.
― Já cavalguei quase quinhentos quilômetros desde o café da
manhã ― disse ele ―, tão ansioso estava para ver a prin… a corte e
a augusta família da Paflagônia, e não pude esperar um minuto
sequer antes de aparecer na presença de Vossas Majestades.

Lírio, detrás do trono, explodiu em uma gargalhada desdenhosa;


mas toda a comitiva real estava tão agitada que não ouviu essa
pequena explosão.

― Sua Majestade Real é bem-vinda em qualquer traje ― disse o


rei. ― Tristonho, uma cadeira para Sua Alteza Real.

― Qualquer traje que Sua Alteza Real use é um traje da corte ―


completou a princesa Angélica, sorrindo graciosamente.
― Ah! Mas vocês deveriam ver meus outros trajes ― disse o
príncipe. ― Eu deveria tê-los colocado, mas aquele transportador
estúpido não os trouxe. Quem é que está rindo?

Era Lírio rindo.

― Eu estava rindo porque você disse agora mesmo que estava


com tanta pressa para ver a princesa que mal podia esperar para
trocar de vestes ― disse ele. ― E agora você diz que vem com essas
vestes porque não tem outras.
― E quem é você? ― indagou o príncipe Bulbo, muito ferozmente.

― Meu pai era rei deste país, e eu sou seu único filho, o príncipe!
― respondeu Lírio, com igual arrogância.
― Ah! ― disseram o rei e Tristonho, parecendo muito agitados;
mas o primeiro, recompondo-se, disse: ― Caro príncipe Bulbo,
esqueci de lhe apresentar à Vossa Alteza Real meu querido sobrinho,
Sua Alteza Real o Príncipe Lírio! Conheçam-se! Abracem-se! Lírio, dê
sua mão à Sua Alteza Real!

E Lírio, dando a mão, apertou a do pobre Bulbo até que lágrimas


escorressem de seus olhos. Tristonho trouxe então uma cadeira para
o visitante real e colocou-a na plataforma onde estavam sentados o
rei, a rainha e o príncipe; mas a cadeira estava na beirada da
plataforma e, quando Bulbo se sentou, ela tombou, e ele foi junto,
rolando e urrando como um touro. Lírio rugiu ainda mais alto com
esse desastre, mas foi com risadas; o mesmo aconteceu com toda a
corte quando o príncipe Bulbo se levantou; pois embora ao entrar na
sala não parecesse muito ridículo, por um momento, ao se levantar
da queda, parecia tão excessivamente simples e tolo, que ninguém
pôde deixar de rir dele. Ao entrar na sala, foi visto carregando uma
rosa na mão, que caiu junto dele.

― Minha rosa! Minha rosa! ― gritou Bulbo; e seu camareiro


adiantou-se e apanhou-a, entregando-a ao príncipe, que então a
guardou no colete.

Então, as pessoas se perguntaram por que haviam rido; não havia


nada particularmente ridículo nele. Era bastante baixo, bastante
robusto, bastante ruivo, mas, enfim, para um príncipe, não era tão
ruim.

Então eles se sentaram e conversaram, os personagens reais


juntos, os oficiais da Crimeia com os da Paflagônia ― Lírio muito
confortável com Bufanosa atrás do trono. Olhou-a com olhos tão
tenros que o coração dela ficou batendo forte.
― Ah, querido Príncipe ― disse ela ―, como você pode falar tão
arrogantemente na presença de Suas Majestades? Declaro que
pensei que eu deveria ter desmaiado.

― Eu deveria ter pegado você em meus braços ― disse Lírio,


parecendo arrebatado.

― Por que você foi tão cruel com o príncipe Bulbo, querido
príncipe?
― Porque eu o odeio.

― Você está com ciúme dele, e ainda ama a pobre Angélica ―


chorou Bufanosa, cobrindo os olhos com o lenço.

― Amei, mas não amo mais! ― bradou Lírio. ― Eu a desprezo! Se


ela fosse herdeira de vinte mil tronos, eu a desprezaria. Mas por que
falar de tronos? Eu perdi o meu. Estou fraco demais para recuperá-lo.
Estou sozinho e não tenho amigos.

― Ah, não diga isso, querido príncipe! ― apaziguou Bufanosa.

― Além disso ― prosseguiu ele ―, estou tão feliz aqui atrás do


trono que não trocaria de lugar nem pelo trono do mundo!
― Acerca do que vocês estão conversando aí? ― A rainha, que
tinha um coração muito bom, embora não cheio de sabedoria, quis
saber. ― É hora de se vestir para o jantar. Lírio, leve o Príncipe Bulbo
ao quarto dele. Príncipe, se suas roupas não chegarem, ficaremos
muito contentes em vê-lo como está.

Quando o príncipe Bulbo chegou ao quarto, porém, a bagagem


estava lá e desfeita. O cabeleireiro entrou, barbeou e cortou os
cabelos do príncipe. Quando a campainha do jantar tocou, a
companhia real teve que esperar mais de vinte e cinco minutos até
que Bulbo aparecesse, período em que o rei, que não suportava
esperar, ficou o mais mal-humorado possível. Quanto a Lírio, durante
todo esse tempo ele não saiu do lado da Madame Bufanosa, mas
ficou com ela no parapeito de uma janela, fazendo-lhe cumprimentos.
Por fim, o cavalariço das câmaras anunciou Sua Alteza Real o
Príncipe da Crimeia! E a nobre companhia entrou na sala de jantar
real. Foi uma festa bem pequena; apenas o rei e a rainha, a princesa,
a quem Bulbo tirou, os dois príncipes, a Condessa Bufanosa,
Tristonho, o primeiro-ministro e o camarista do príncipe Bulbo. Pode
ter certeza de que eles jantaram muito bem ― pense no que você
mais gosta de comer e imagine que o prato estava servido à mesa.

Durante todo o jantar, a princesa conversou sem parar com o


príncipe da Crimeia, que comeu demais sem nunca tirar os olhos do
prato, exceto quando Lírio, que estava cortando um ganso, acabou
jogando recheio e molho de cebola em um deles. Lírio só fez rir
quando o príncipe enxugou a frente da camisa e o rosto com o lenço
de bolso perfumado. Não se desculpou. Quando o príncipe olhava
para ele, Lírio desviava o olhar.
― Príncipe Lírio, posso ter a honra de tomar uma taça de vinho
com você? ― perguntou Bulbo.
Lírio não respondeu. Só tinha conversa e olhos para a Condessa
Bufanosa, que você pode ter certeza de que estava satisfeita com as
atenções dos rapaz ― aquela velha criatura vaidosa! Quando Lírio
não estava tecendo elogios a ela, estava tirando sarro do príncipe
Bulbo, tão alto que Bufanosa ficava batendo nele com o leque, e
dizendo:

― Ah, seu príncipe brincalhão! Ah, diabos, o príncipe vai ouvir!

― Bem, eu não me importo ― dizia Lírio, mais alto ainda.

Felizmente, o rei e a rainha não ouviram; pois Sua Majestade a


rainha era um pouco surda, e o rei pensou tanto em seu próprio jantar
e fez um barulho tão terrível ao devorá-lo que não ouviu mais nada.
Após o jantar, Suas Majestades foram dormir em suas poltronas.
Foi então que Lírio começou suas travessuras com o príncipe
Bulbo, servindo aquele jovem cavalheiro com vinho do porto, xerez,
vinho madeira, champanhe, vinho marsala, aguardente de cereja e
cerveja clara, que Bulbo bebia sem parar. Mas, ao servir seu
convidado, Lírio foi obrigado a beber por conta própria e, lamento
dizer, tomou mais do que deveria, de modo que os jovens estavam
muito barulhentos, rudes e tolos quando se juntaram às damas depois
do jantar; e pagaram caro por essa imprudência, como agora, meus
queridos, vocês vão ficar sabendo!
Bulbo então foi sentar-se ao lado do piano, onde Angélica tocava e
cantava, e cantou desafinado, virou o café quando o lacaio o trouxe,
riu fora de hora, falou demais, e adormeceu e roncou horrivelmente.
Buuu, que nojento! Mas ali, deitada no sofá de cetim rosa, Angélica
ainda insistia em considerá-lo o mais belo dos seres humanos. Sem
dúvida, foi a rosa mágica que Bulbo usava que provocou essa paixão
por parte de Angélica; mas por um acaso ela é a primeira jovem a
achar um sujeito bobo encantador?

Lírio sentou-se ao lado de Bufanosa, cujo rosto velho ele também


começava a achar mais bonito a cada momento. Assim, teceu-lhe os
elogios mais ultrajantes: Nunca houve uma mais encantadora; mais
velha do que ele? Bobagem! Ele se casaria com ela, não aceitaria
nada além dela!
Casar-se com o herdeiro do trono! Ali estava uma chance! A astuta
assanhada pegou uma folha de papel e escreveu nela: “Venho por
meio desta informar que eu, Lírio, filho único de Sávio, rei da
Paflagônia, prometo me casar com a encantadora e virtuosa Barbara
Griselda, Condessa Bufanosa, e viúva do falecido Jenkins Bufanoso,
escudeiro”.

― O que você está escrevendo, charmosa Bufaninha? ― Lírio, que


estava recostado no sofá, junto à escrivaninha, quis saber.

― Apenas uma ordem para você assinar, caro príncipe, para dar
carvão e cobertores aos pobres, neste tempo frio. Olhe! O rei e a
rainha estão dormindo, e a ordem de sua alteza real vai bastar.

Então Lírio, que tinha coração bom, como Bufaninha bem sabia,
assinou a ordem imediatamente; e, quando a condessa a guardou no
bolso, você pode imaginar a postura dela. Estava pronta para sair da
sala antes mesmo da própria rainha, pois agora ela era a esposa do
rei por direito da Paflagônia! Não queria falar com Tristonho, que
considerava um bruto, por privar seu querido marido da coroa! E
depois as velas chegaram e ela ajudou a despir a rainha e a princesa,
foi para seu próprio quarto e praticou numa folha de papel: “Griselda
Paflagônia”, “Barbara Regina”, “Griselda Barbara, Paf.”, e não sei que
assinaturas além disso, pensando no dia em que seria rainha, com
certeza.
IX. Como Betsinda Conseguiu Esquentar a
Cama

A pequena Betsinda foi arrumar o cabelo de Bufanosa, e a condessa


ficou tão satisfeita que, por espanto, a elogiou.
― Betsinda, você arrumou meu cabelo muito bem hoje. Prometi-lhe
um presentinho. Aqui estão cinco xel… não, aqui está um lindo
anelzinho, que encontrei… que eu tenho há algum tempo.

E então deu a Betsinda o anel que havia pegado no pátio. Se


encaixava perfeitamente no dedinho da menina.

― É como o anel que a princesa costumava usar ― disse a criada.

― Nada disso ― retrucou Bufanosa. ― Eu o tenho há muito tempo.


Pronto, aconchegue-me bem confortável na cama; e agora, como é
uma noite muito fria ― a neve batia na janela ―, você pode ir
aquecer a cama do querido príncipe Lírio, como uma boa menina, e
então pode desenrolar minha seda verde, e depois pode me fazer um
gorro para a manhã, e também consertar aquele buraco na minha
meia de seda, e depois disso você pode ir para a cama, Betsinda.
Lembre-se de que vou querer minha xícara de chá às cinco horas da
manhã.
― Acho melhor aquecer a cama dos dois cavalheiros, senhora.

Bufanosa, em resposta, disse:

― Hau-au-ho! Grauhawhoo! Hong-hrho! ― Na verdade, ela estava


roncando profundamente.
O quarto dela, você sabe, ficava ao lado do quarto do rei e da
rainha, e o da princesa ficava ao lado do deles. A bela Betsinda foi
buscar as brasas na cozinha, onde encheu a panela real de
esquentar a cama.

Veja bem, era uma garota muito gentil, alegre, civilizada e bonita;
mas deve ter havido algo muito cativante a respeito dela esta noite,
pois todas as mulheres na sala dos criados começaram a repreendê-
la e insultá-la. A governanta disse que ela era uma coisinha atrevida e
arrogante: a criada perguntou como ela ousava usar aqueles cachos
e fitas, era muito inapropriado! A cozinheira (pois havia uma
cozinheira e um cozinheiro) disse à ajudante de cozinha que nunca
vira nada de mais naquela criatura. Mas quanto aos homens, todos
eles, o cocheiro John, Buttons, o pajem, e Monsieur, o criado do
príncipe da Crimeia, levantaram-se e disseram:

― Meus olhos!

― Caramba! Que menina bonita é Betsinda!

― Uau!
― Ó céus!

― Tirem as mãos, nada de serem impertinentes, seu povo vulgar e


baixo! ― resmungou Betsinda, saindo com a panela de carvão.
Enquanto subia, ouviu os jovens cavalheiros jogando bilhar: primeiro
foi até a cama do príncipe Lírio, que ela aqueceu, e depois para o
quarto do príncipe Bulbo.

Assim que terminou, ele entrou; e assim que a viu…

― Aaaaaaaaa! Que liin-iiin-da criatura você é! Seu anjo, seu… seu


botão de rosa, deixe-me ser teu bubu… teu Bulbo também! Voe para
o deserto, voe comigo! Nunca vi uma jovem gazela para me alegrar
com seu olho azul-escuro que tinha olhos como brilho. Tu, ninfa de
beleza, pegue, pegue este jovem coração. Um tão sincero nunca
ficou quieto dentro do colete de um soldado. Seja minha! Seja minha!
Seja princesa da Crimeia! Meu pai real aprovará nossa união; e,
quanto àquela Angélica-cabelo-de-cenoura, não me importo mais com
ela.

― Vá embora, Alteza Real, e vá para a cama, por favor ― disse


Betsinda, com a panela.

Mas Bulbo disse:

― Não, nunca, até que você jure ser minha, tua adorável e corada
camareira divina! Aqui, aos teus pés, jaz o Bulbo Real, o trêmulo
cativo dos olhos de Betsinda.

E assim continuou, fazendo-se tão absurdo e ridículo que Betsinda,


cheia de graça, deu-lhe um toque com a panela, que, eu prometo, o
fez gritar “Uuuu” de uma maneira muito diferente.

O príncipe Bulbo fez tanto barulho que o príncipe Lírio, ouvindo da


sala ao lado, entrou para ver qual o que estava acontecendo. Assim
que viu a cena, Lírio, furioso, atirou-se sobre Bulbo, chutou-o da
maneira mais rude até o teto e continuou chutando-o até seu cabelo
ficara completamente desgrenhado.

A pobre Betsinda não sabia se ria ou chorava; o chute com certeza


devia machucar o príncipe, mas ele estava tão engraçado! Quando
Lírio terminou de derrubá-lo no chão, e enquanto o príncipe se
esfregava em um canto, o que você acha que o primeiro fez? Ele foi
até Betsinda de joelhos, pegou a mão dela, implorou que ela
aceitasse seu coração e se ofereceu para se casar com a criada
naquele mesmo momento. Imagine o estado de Betsinda, que
estivera apaixonada pelo príncipe desde que o vira pela primeira vez
no jardim do palácio, quando ainda era muito pequena.
― Ah, divina Betsinda! ― disse o príncipe. ― Como vivi quinze
anos em tua companhia sem ver tuas perfeições? Que mulher em
toda a Europa, Ásia, África e América, ou melhor, na Austrália, que
ainda não foi descoberta, pode presumir ser tua igual? Angélica? Pff!
Bufanosa? Até parece! A rainha? Há, ha! Tu és minha rainha. Tu és a
verdadeira Angélica, porque tu és realmente angelical.

― Ah, príncipe! Sou apenas uma pobre camareira ― disse


Betsinda, parecendo, no entanto, muito satisfeita.

― Não cuidaste de mim na minha doença, quando todos me


abandonaram? ― prosseguiu Lírio. ― Sua mão gentil não afofou meu
travesseiro e me trouxe geleia e frango assado?
― Sim, querido príncipe, eu fiz essas coisas ― disse Betsinda ―, e
também costurei os botões da camisa de Sua Alteza Real, se quer
saber, Sua Alteza Real ― disse esta donzela ingênua.

Quando o pobre príncipe Bulbo, que então estava loucamente


apaixonado por Betsinda, ouviu tal declaração, quando viu os olhares
inconfundíveis que ela lançou sobre Lírio, começou a chorar
amargamente e arrancou tufos de cabelo, até que o chão estivesse
coberto de fios.
Betsinda havia deixado a panela no chão enquanto os príncipes
conversavam, e como eles passaram a brigar e a serem muito
ferozes um com o outro, achou melhor escapulir dali.

― Seu grande tonto chorão, arrancando cabelos; é claro que você


vai me dar satisfação por ter insultado Betsinda. Você se atreve a se
ajoelhar diante da princesa Lírio e beijar a mão dela!

― Ela não é a princesa Lírio! ― rugiu Bulbo. ― Ela será a princesa


Bulbo, e nenhuma outra assumirá essa posição.

― Você está noivo da minha prima ― gritou Lírio.


― Eu odeio sua prima ― retrucou Bulbo.

― Você me vai me dar satisfação por insultá-la! ― gritou Lírio,


enfurecido.
― Vou tirar sua vida.

― Vou passar por cima de você.

― Vou cortar sua garganta.


― Vou estourar seus miolos.

― Vou arrancar sua cabeça.

― Mandarei um amigo para acabar com você amanhã de manhã.

― Vou te dar um tiro à tarde.


― Nos veremos outra vez ― disse Lírio, brandindo o punho
fechado diante de Bulbo; e pegando a panela, beijou-a, porque
Betsinda a havia tocado, e desceu correndo.

O que ele viu no patamar senão Sua Majestade conversando com


Betsinda, a quem chamava por todos os tipos de nomes carinhosos.
Sua Majestade tinha ouvido uma briga, afirmou e, sentindo o cheiro
de algo queimando, saiu para ver o que estava acontecendo.

― Talvez sejam os jovens cavalheiros fumando, senhor ― sugeriu


Betsinda.

― Charmosa camareira ― disse o rei (como todos os outros) ―,


não se preocupe com os rapazes! Dê atenção a um autocrata de
meia-idade, que em seu tempo não foi considerado feio.
― Ah, senhor! O que Sua Majestade vai dizer? ― exclamou
Betsinda.

― Sua Majestade! ― riu o monarca. ― Que Sua Majestade seja


enforcada. Não sou o Autocrata da Paflagônia? Não tenho bloqueios,
cordas, machados, carrascos… hein? Não corre um rio pela muralha
do meu palácio? Não tenho sacos para dentro dos quais costurar
esposas? Diga apenas a palavra, e será minha; sua senhora será
imediatamente costurada em um saco, e você terá meu coração e
trono.

Quando Lírio ouviu esses sentimentos atrozes, esqueceu o respeito


geralmente prestado à realeza, ergueu a panela e derrubou o rei
como uma panqueca; depois disso, Mestre Lírio saiu correndo e fugiu,
e Betsinda saiu gritando, e a rainha, Bufanosa e a princesa saíram de
seus quartos. Imagine seus sentimentos ao ver seu marido, pai,
soberano, naquela posição!
X. Como o Rei Valoroso Estava Terrivelmente
Apaixonado

Assim que as brasas começaram a queimá-lo, o rei voltou a si e se


levantou.
― Ei! Meu capitão dos guardas! ― Sua Majestade exclamou,
batendo seus pés reais com raiva.

Que espetáculo lamentável! O nariz do rei estava torto pelo golpe


que o príncipe Lírio dera! Sua Majestade rangeu os dentes de raiva.

― Racabeças ― disse ele, tirando uma sentença de morte do


bolso do roupão. ― Racabeças, bom Racabeças, pegue o príncipe.
Você o encontrará no quarto dele. Ele se atreveu, com mão sacrílega,
a bater na touca sagrada de um rei, Racabeças, e a me derrubar com
uma panela! Vá, chega de objeções, o vilão deve morrer! Garanta
que isso seja feito, ou então, hum-hum, a culpa será sua! ― E,
seguido pelas damas, levantando as caudas de seu roupão, o rei
entrou em seu próprio quarto.

O capitão Racabeças, que gostava sinceramente de Lírio, ficou


muito afetado.
― Pobre, pobre Lírio! ― disse ele, as lágrimas rolando por seu
rosto viril e escorrendo por seus bigodes. ― Meu nobre jovem
príncipe, é minha mão que deve levá-lo à morte?
― Engane ele ― disse uma voz feminina. Era Bufanosa, que tinha
saído de roupão quando ouviu o barulho. ― O rei disse que você
deveria enforcar o príncipe. Bem, enforque o príncipe.

― Não entendi ― disse Racabeças, que não era um homem muito


inteligente.

― Seu bobo! Ele não disse qual Príncipe ― explicou Bufanosa.

― Não, ele certamente não disse qual ― concordou Racabeças.


― Bem, então pegue Bulbo e enforque-o!

Quando o capitão Racabeças ouviu isso, começou a dançar de


alegria.

― A obediência é a honra de um soldado ― disse ele. ― A cabeça


do príncipe Bulbo servirá muito bem. ― E foi prender o príncipe logo
na manhã seguinte.

Ele bateu na porta.


― Quem está aí? ― perguntou Bulbo. ― Capitão Racabeças?
Entre, por favor, meu bom capitão. Estou encantado em vê-lo, eu
estava mesmo esperando você.

― Estava?

― Bota de Neve, meu camarista, atuará por mim ― informou o


príncipe.

― Peço perdão à Sua Alteza Real, mas você terá que agir por
conta própria, e é uma pena acordar o Barão Bota de Neve.

O príncipe Bulbo ainda parecia encarar o assunto com muita frieza.

― Claro, capitão ― disse ele. ― Você veio tratar aquele caso com
o príncipe Lírio?
― Exatamente, aquele caso do príncipe Lírio.

― Serão pistolas ou espadas, capitão? ― pergunta Bulbo. ― Sou


muito habilidoso com ambas, e farei pelo príncipe Lírio tão certo
quanto meu nome é Minha Alteza Real Príncipe Bulbo.
― Há algum engano, meu senhor ― disse o capitão. ― Aqui a
questão é tratada com machados.
― Machados? Que perigo! Chame meu camarista, ele será meu
segundo, e em dez minutos, eu me gabo, você verá a cabeça do
mestre Lírio fora de seus ombros impertinentes. Estou sedento por
seu sangue. Uuuhh! ― Ele parecia tão selvagem quanto um ogro.
― Peço desculpas, senhor, mas com este mandado devo prendê-lo
e entregá-lo ao… ao carrasco.
― Pfff, pfff, meu bom homem! Pare, eu digo. Ahhh, uhaaa! ― foi
tudo o que esse infeliz príncipe foi capaz de dizer, pois os guardas de
Racabeças o agarraram, amarraram um lenço na boca e no rosto
dele e o levaram para o local da execução.
O rei, que por acaso estava conversando com Tristonho, viu-o
passar, tomou uma pitada de rapé e disse:

― Pobre Lírio. Agora vamos tomar o café da manhã.


O capitão da guarda entregou seu prisioneiro ao xerife, com a
ordem fatal:
“À vista, corte a cabeça do portador. ― Valoroso XXIV.”

― Isso é um erro ― disse Bulbo, que parecia não entender nada


do negócio.
― Pfff, pfff ― retrucou o xerife. ― Traga Jack Ketch imediatamente.
Jack Ketch!
E o pobre Bulbo foi levado ao cadafalso, onde um carrasco com um
bloco e um machado enorme estava sempre pronto para o caso de
ser procurado.

Mas agora devemos voltar a Lírio e Betsinda.


XI. O que Bufanosa fez com Lírio e Betsinda

Bufanosa, que tinha visto o que havia acontecido com o rei, e sabia
que Lírio deveria sofrer, levantou-se muito cedo na manhã seguinte e
foi fazer alguns planos para resgatar seu querido marido, forma como
a velha boba insistia em chamá-lo. Encontrou-o andando para cima e
para baixo no jardim, pensando em uma rima para Betsinda (linda e
vinda foram tudo o que ele conseguiu), e de fato tendo esquecido
tudo sobre a noite anterior, exceto que Betsinda era o mais adorável
dos seres.

― Bem, querido Lírio.

― Bem, querida Bufaninha ― cumprimentou Lírio, só que ele foi


bastante satírico.

― Estive pensando, querido, o que você deve fazer nesta


enrascada. Você deve viajar pelo país por um tempo.

― Que enrascada? Viajar pelo país? Nunca sem ela, a que eu


amo, condessa.

― Não, ela vai acompanhá-lo, querido príncipe ― disse ela, em


seu tom mais persuasivo. ― Primeiro, devemos pegar as joias
pertencentes aos nossos pais reais, e as dela e as de sua atual
Majestade. Aqui está a chave, pegue; são todas suas, você sabe, por
direito, pois você é o legítimo rei da Paflagônia, e sua esposa será a
legítima rainha.

― Ela será?
― Sim; e depois de pegar as joias, vá ao apartamento de
Tristonho, onde, debaixo da cama dele, você encontrará sacos
contendo dinheiro no valor de L2I7.000.000.987.439, 13S. 6 1/2d.,
todos pertencentes a você, pois ele o tirou do quarto de seu pai real
no dia em que este veio a morrer. Com isso vamos partir.

― Nós vamos partir? ― Lírio quis saber.

― Sim, você e sua noiva… sua Bufaninha! ― exclamou a


Condessa, com um olhar lânguido.

― Você minha noiva! ― horrorizou-se Lírio. ― Você, sua velha


horrorosa!

― Ah, você… seu maldito! Você não me deu este papel jurando
casamento? ― gritou Bufaninha.

― Saia, sua gansa velha! Eu amo Betsinda, e apenas Betsinda! ―


E em um ataque de terror ele correu dela o mais rápido que pôde.

― He! He! He! ― gritou Bufaninha. ― Uma promessa é uma


promessa se houver leis na Paflagônia! E quanto a essa monstra,
essa maldita, esse demônio, essa megera feia; quanto a essa ingrata,
essa fera, Betsinda, mestre Lírio não terá pouca dificuldade em
descobrir seu paradeiro. Ele pode procurar muito antes de encontrá-
la, eu garanto. Ele mal sabe que a srta. Betsinda é…

É o quê? Agora, você ouvirá. A pobre Betsinda levantou-se às


cinco da manhã de inverno para levar chá para sua cruel senhora; e,
em vez de encontrá-la de bom humor, encontrou Bufaninha com a pá
virada. A condessa deu meia dúzia de socos nas orelhas de Betsinda
enquanto se vestia; mas como a pobrezinha estava acostumada a
esse tipo de tratamento, ela não se sentiu alarmada.

― E agora ― disse a condessa ―, quando Sua Majestade tocar a


campainha duas vezes, vou incomodá-la, senhorita, para comparecer.

Então, quando o sino da rainha tocou duas vezes, Betsinda foi até
Sua Majestade e fez uma linda reverência. A rainha, a princesa e
Bufanosa estavam na sala. Assim que a viram, começaram a falar:
― Sua maldita! ― disse a rainha.

― Sua coisinha vulgar! ― disse a princesa.

― Sua besta! ― disse Bufanosa.

― Saia da minha frente! ― disse a rainha.


― Vá embora, vá! ― disse a princesa.

― Saia daqui! ― disse Bufanosa.

― Ai! Ai de mim!
Eventos muito lamentáveis ocorreram a Betsinda naquela manhã, e
tudo em consequência daquele negócio fatal da panela na noite
anterior. O rei se ofereceu para casar-se com ela; é claro que Sua
Majestade a rainha estava com ciúme. Bulbo se apaixonara por ela; é
claro que Angélica estava furiosa. Lírio estava apaixonado por ela, e,
ah, que fúria que Bufaninha sentia!

― Tire esse chapéu/casaco/vestido que lhe dei! ― disseram elas, e


começaram a rasgar as roupas da pobre Betsinda.

― Como (o Rei?) ― exclamou a rainha ― você ousa (príncipe


Bulbo?) ― a princesa ― flertar com (o príncipe Lírio?) ― a condessa.
― Dê a ela os trapos que ela usava quando chegou aqui! ― disse
a rainha.
― Lembre-se de que ela não vai com os meus sapatos, que eu lhe
emprestei com tamanha gentileza ― disse a princesa; e de fato os
sapatos desta eram grandes demais para Betsinda.

― Venha comigo, sua assanhada imunda! ― E, pegando o cetro


da rainha, a cruel Bufanosa levou Betsinda para seu quarto.

A condessa foi até a caixa de vidro em que por tanto tempo


guardara o velho manto e o sapato de Betsinda e disse:

― Pegue esses trapos, sua mendigazinha, e tire de seu corpo tudo


que pertence a pessoas honestas e vá cuidar de seus assuntos. ― E
ela realmente arrancou quase todas as suas coisas da pobre coisinha
delicada, e disse-lhe para sair de casa.

A pobre Betsinda enrolou o manto nas costas, no qual estavam


bordadas as letras PRIN. . . ROSAL. . . e então veio uma grande
ruptura.
Quanto ao sapato, o que ela faria com uma pobre sandália
pequena? A tira ainda estava nela, então Betsinda o pendurou no
pescoço.

― Você não me daria um par de sapatos para sair na neve, ó


minha senhora, por favor, minha senhora? ― gritou a pobre coitada.

― Não, sua besta malvada! ― retrucou Bufanosa, conduzindo-a


com o atiçador, conduzindo-a pelas escadas frias, conduzindo-a pelo
corredor frio, atirando-a para a rua fria, de modo que a própria aldrava
derramou lágrimas ao vê-la!

Mas uma fada bondosa aqueceu a neve macia para seus pezinhos,
e ela se enrolou no arminho de seu manto e se foi!

― E agora vamos pensar no café da manhã ― disse a gananciosa


rainha.

― Que vestido devo colocar, mamãe? O rosa ou o verde-ervilha?


― perguntou Angélica. ― De qual você acha que o querido príncipe
vai gostar mais?
― Sra. V.! ― cantarolou o rei de seu camarim. ― Comeremos
salsichas no café da manhã! Lembre-se de que o príncipe Bulbo está
conosco!

E todos foram se aprontar.

Chegaram às nove horas, e estavam todos na sala para o café da


manhã, e ainda nada do príncipe Bulbo. A panela assobiava e zunia:
os bolinhos fumegavam ― um monte de bolinhos! Os ovos estavam
prontos, havia um pote de geleia de framboesa e café, e um lindo
frango e língua na mesa lateral. Marmitônio, o cozinheiro, trouxe as
salsichas. Ah, como cheiravam bem!
― Onde está Bulbo? ― O rei quis saber. ― John, onde está Sua
Alteza Real?
John disse que tinha levado água de barbear para sua autezareal,
além de roupas e coisas dele, e que ele não estava em seu quarto.
John supôs que sua autezarial tinha dado o fora.

― Saiu na neve, antes do café da manhã! Impossível! ― disse o


rei, enfiando o garfo numa salsicha. ― Minha querida, pegue uma.
Angélica, você não quer uma salsicha?
A princesa, que gostava muito delas, pegou uma; e, nesse
momento, Tristonho entrou com o capitão Racabeças, ambos
parecendo muito perturbados.

― Receio, Vossa Majestade… ― começou Tristonho.

― Nada de negócios antes do café da manhã, Tristô! ―


interrompeu o rei. ― Café da manhã primeiro, negócios depois. Sra.
V., um pouco mais de açúcar!

― Senhor, temo que se esperarmos até depois do café da manhã


seja tarde demais ― disse Tristonho. ― Ele… ele… ele será
enforcado às nove e meia.

― Não estrague meu café da manhã falando em enforcamento, seu


homem grosseiro e vulgar ― exclamou a princesa. ― John, um
pouco de mostarda. Por favor, quem deve ser enforcado?

― Senhor, é o príncipe ― sussurrou Tristonho ao rei.

― Fale sobre negócios depois do café da manhã, já lhe falei! ―


disse Sua Majestade, muito mal-humorado.
― Por conta disso, teremos uma guerra, senhor ― disse o ministro.
― O pai dele, o rei Frigideira…

― O pai, o rei quem? ― perguntou o rei. ― O rei Frigideira não é o


pai de Lírio. Meu irmão, o rei Sávio, era o pai de Lírio.
― É o príncipe Bulbo que será enforcado, senhor, não o príncipe
Lírio ― informou o primeiro-ministro.
― Você me disse para enforcar o príncipe, e eu peguei o feio ―
disse Racabeças. ― Claro que não pensei que Vossa Majestade
pretendia matar sua própria carne e sangue!

O rei jogou o prato de salsichas na cabeça de Racabeças.

A princesa gritou:
― Hee-kareekaree! ― E desmaiou.

― Usem a panela para acordar Sua Alteza Real ― disse o rei, e a


água borbulhante a fez voltar a si gradualmente. Sua Majestade olhou
para o relógio, comparou-o com o relógio da sala e com o da igreja na
praça oposta; então deu corda nele e o olhou outra vez. ― A grande
questão é ― disse ele ―: vou rápido ou devagar? Se eu for devagar,
podemos continuar com o café da manhã. Se eu for rápido, ora, só
existe a possibilidade de salvar o príncipe Bulbo. É um erro bobo e
desajeitado, e, juro, Racabeças, tenho a maior vontade de mandar
enforcá-lo também.

― Senhor, eu fiz apenas o meu dever; um soldado apenas cumpre


ordens. Não esperava, depois de quarenta e sete anos de serviço fiel,
que meu soberano pensaria em me condenar à morte por conta de
um criminoso!
― Que cem mil pragas lhe atinjam! Não vê que enquanto fala meu
Bulbo está sendo enforcado? ― gritou a princesa.

― Por Deus! Ela está sempre certa, aquela garota, e eu sou tão
distraído ― comentou o rei, olhando novamente para o relógio. ― Ah!
Soam os tambores! Mas que coisa estranha!

― Ah, papai, seu bobo! Escreva o adiamento e deixe-me correr


com ele ― gritou a princesa e, pegando uma folha de papel, caneta e
tinta, os colocou diante do rei.

― Droga! Onde estão meus óculos? ― exclamou o monarca. ―


Angélica! Suba ao meu quarto, olhe embaixo do meu travesseiro, não
do de sua mãe; lá você verá minhas chaves. Traga-as para mim e…
Bem, bem! Que coisas impetuosas essas garotas são!
Angélica saiu correndo para o quarto, ofegante, encontrou as
chaves e voltou antes que o rei terminasse um bolinho.

― Agora, querida ― disse ele ―, você deve voltar até a minha


mesa, onde estão meus óculos. Se você tivesse me ouvido…
Caramba! Lá vai ela novamente. Angélica! Angélica!

Quando Sua Majestade chamava em sua voz alta, ela sabia que
deveria obedecer, e voltou.

― Minha querida, quando você sair de uma sala, quantas vezes eu


já disse, feche a porta. Isso, querida. Isso é tudo.
Por fim, as chaves, a escrivaninha e os óculos foram trazidos, o rei
consertou sua caneta e assinou seu nome para um adiamento, e tão
rápido quanto o vento Angélica correu com o bilhete.

― É melhor você ficar, meu amor, e terminar os bolinhos. Não


adianta ir. Tenha certeza de que é tarde demais. Passe-me essa
geleia de framboesa, por favor ― disse o Monarca. ― Bong! Bawong!
Lá se vai a meia hora. Eu sabia.
Angélica correu, correu, correu e correu. Subiu a Fore Street,
desceu a High Street, atravessou o mercado, desceu à esquerda,
atravessou a ponte, subiu o beco sem saída, e então voltou
novamente, contornou o castelo, assim como o armarinho à direita,
em frente ao poste, e contornando a praça, e chegou… chegou no
local de execução, onde viu Bulbo deitando a cabeça no cepo!!! O
carrasco ergueu o machado, mas nesse momento a princesa veio
ofegante e gritou:
― Adiamento! Adiamento!
― Adiamento! ― gritou todo o povo.
Ela subiu as escadas do cadafalso com a agilidade de um
acendedor de lâmpadas; e atirando-se nos braços de Bulbo,
independentemente de toda a cerimônia, gritou:

― Oh, meu príncipe! Meu senhor! Meu amor! Meu Bulbo! Tua
Angélica chegou a tempo de salvar tua preciosa existência, doce
botão de rosa; para evitar que você seja beliscado em sua juventude!
Se alguma coisa lhe tivesse acontecido, Angélica também teria
morrido, e saudaria a morte que a uniu ao seu Bulbo.

― Hum! Gostos não se explicam ― disse Bulbo, parecendo tão


intrigado e incomodado que a princesa, em tom de tenra tensão,
perguntou a causa de sua inquietação. ― Vou lhe dizer o que é,
Angélica ― disse ele. ― Desde que cheguei aqui ontem, tem havido
tanta briga, e confusão, e discussões, e desordens, e decapitação de
cabeças, e taxas para pagar, que estou tentado a voltar para a
Crimeia.

― Mas comigo como tua noiva, meu Bulbo! Independentemente de


onde você esteja é Crimeia para mim, meu ousado, meu belo, meu
Bulbo!

― Bem, bem, suponho que devemos nos casar ― disse Bulbo. ―


Doutor, você veio para ler o Serviço Funeral… leia o Serviço de
Casamento, sim? O que deve ser, será. Isso vai satisfazer Angélica, e
então, em nome da paz e tranquilidade, vamos voltar para o café da
manhã.

Bulbo levara uma rosa na boca todo o tempo da cerimônia sombria.


Era uma rosa de fada, e sua mãe lhe disse que nunca deveria se
separar dela. Então ele a manteve entre os dentes, mesmo quando
deitou sua pobre cabeça no bloco, esperando vagamente que alguma
chance aparecesse a seu favor. Ao começar a falar com Angélica,
esqueceu-se da rosa e, claro, a flor caiu de sua boca. A princesa
romântica imediatamente abaixou-se e agarrou-a.
― Doce Rosa que floresceu no lábio do meu Bulbo, nunca, nunca
me separarei de ti! ― exclamou ela.
E a colocou em seu seio. E você sabe que Bulbo não poderia pedir
a ela para devolver a rosa. E eles foram tomar o café da manhã; e,
enquanto caminhavam, pareceu a Bulbo que Angélica se tornava
mais encantadora a cada momento.
Ele ficou exaltado até que se casaram; e agora, estranho dizer, era
Angélica que não se importava com ele! Ele ajoelhou-se, beijou-lhe a
mão, rezou e implorou; chorou de admiração; enquanto ela, por sua
vez, disse que realmente achava que eles poderiam esperar; parecia-
lhe que o rapaz não era mais bonito ― não, nem um pouco, muito
pelo contrário; e não inteligente, não, era muito estúpido; e não bem-
educado, como Lírio; não, pelo contrário, terrivelmente vul…
O que, eu não posso dizer, pois o rei Valoroso rugiu com uma voz
terrível:
― Poooh! Nós não vamos ter mais essa leviandade! Chame o
arcebispo e deixe que o príncipe e a princesa se casem
imediatamente!

Então, casados estavam, e tenho certeza de que, de minha parte,


confio que seriam felizes.
XII. Como Betsinda Fugiu e o que Aconteceu
com Ela

Betsinda vagou sem parar, até passar pelos portões da cidade, e


assim pela grande estrada Crimeia, exatamente o caminho por onde
Lírio também ia.

Ah!, pensou à medida que a diligência passava por ela, da qual o


maestro estava soprando uma melodia deliciosa em sua trompa,
como eu gostaria de estar naquela carruagem! Mas a carruagem e os
cavalos tilintantes logo se foram. Ela mal sabia quem estava no
transporte, embora muito provavelmente estivesse pensando nele o
tempo todo.

Então veio uma carroça vazia, voltando do mercado; e o motorista,


sendo um homem gentil e vendo uma garota tão bonita andando pela
estrada com os pés descalços, muito gentilmente deu-lhe um
assento. Disse que morava nos confins da floresta, onde seu velho
pai era lenhador, e, caso ela quisesse, a levaria longe. Todos os
caminhos eram os mesmos para a pequena Betsinda, então ela
aceitou aquele de bom grado.

O carroceiro colocou um pano em volta dos pés descalços dela,


deu a Betsinda um pouco de pão e bacon frio, e foi-lhe muito gentil.
Durante tudo isso, ela estava muito fria e melancólica. Depois de
viajar sem parar, chegou a noite, e todos os pinheiros escuros se
dobravam com a neve, lá estava, enfim, a confortável luz brilhando
nas janelas do lenhador; e assim eles entraram na cabana. Era um
homem velho e tinha vários filhos, os quais estavam acabando de
jantar, com pão e leite bem quentinho, quando o irmão mais velho
chegou com a carroça. Eles pularam e bateram palmas, pois eram
bons filhos e o homem havia trazido brinquedos da cidade. E quando
viram a bela estranha, eles correram para ela e a levaram para
próximo do fogo, esfregaram seus pobres pezinhos e lhe trouxeram
pão e leite.

― Olha, pai! ― disseram eles ao velho lenhador. ― Olhe para esta


pobre menina, e veja que pés muito frios ela tem. Eles são tão
brancos quanto o nosso leite! E olhe e veja que capa estranha ela
tem, assim como o pedaço de veludo que está pendurado em nosso
armário, e que você encontrou naquele dia em que os filhotes foram
mortos pelo rei Frigideira, na floresta! E olhe, ora, abençoe a todos
nós! Ela tem em volta do pescoço outro sapatinho como aquele que
você trouxe para casa, e tantas vezes nos mostrou… um sapatinho
de veludo azul!

― O quê? ― questionou o velho lenhador. ― O que vocês estão


falando sobre um sapato e uma capa?

E Betsinda explicou que tinha sido deixada na cidade, quando


criança, com aquele manto e sapato. E as pessoas que cuidaram dela
ficaram zangadas com ela, sem nenhuma culpa dela própria,
esperava ela. E então a mandaram embora com suas roupas velhas
― e ali, de fato, estava ela. Betsinda se lembrava de ter estado em
uma floresta ― e talvez fosse um sonho; era muito estranho e
peculiar ―, ter vivido em uma caverna com leões ali; e, antes disso,
ter morado numa casa muito, muito boa, tão boa quanto a do rei, na
cidade.

Quando o lenhador ouviu isso, ficou tão surpreso que foi muito
curioso ver o quão surpreso estava. Ele foi até o armário, tirou de
uma meia um pedaço de cinco xelins do rei Couve-Flor e jurou que
era exatamente igual à jovem.

E então pegou o sapato e o pedaço de veludo que guardara por


tanto tempo e os comparou com as coisas que Betsinda usava. No
sapatinho de Betsinda estava escrito: “Hopkins, sapateiro da família
real”. E no outro sapato: “Hopkins, sapateiro da Família Real”. No
interior do manto de Betsinda estava bordado “Prin Rosal”. No outro
pedaço do manto estava bordado “Cesa Ba. No. 246.”. Juntando:
“Princesa Rosalba. No. 246.”.

Ao ver isso, o velho e querido lenhador caiu de joelhos, dizendo:

― Ó minha princesa. Ó minha graciosa dama real. Ó minha


legítima rainha da Crimeia. Eu te saúdo, eu te reconheço, eu te
reverencio!

E, em sinal de sua fidelidade, esfregou seu nariz venerável três


vezes no chão, e colocou o pé da princesa em sua cabeça.
― Ora ― disse ela ―, meu bom lenhador, você deve ser um nobre
da corte de meu pai real!
Pois em seu humilde retiro, e sob o nome de Betsinda, Sua
Majestade, Rosalba, rainha da Crimeia, havia lido sobre os costumes
de todas as cortes e nações estrangeiras.

― De fato, eu sou, minha graciosa soberana… o pobre Lorde


Espinafre um dia… um humilde lenhador nestes quinze anos. Desde
que o tirano Frigideira (que o patife traiçoeiro seja arruinado!) me
demitiu do meu posto de Primeiro Lorde.

― Primeiro Lorde do Palito de Dente e Guardião da Caixa de


Rapé? Eu me lembro! Tu ocupaste esses postos sob nosso senhor
real. Eles estão restaurados a ti, Lorde Espinafre! Faço-te cavaleiro
da segunda classe da nossa Ordem da Abóbora (sendo a primeira
classe reservada apenas às cabeças coroadas). Levante-se, Marquês
Espinafre.
E com indescritível majestade, a rainha, que não tinha espada à
mão, acenou a colher de estanho com a qual estava tomando seu
pão e leite, sobre a cabeça calva do velho fidalgo, cujas lágrimas
formaram uma poça no chão, e cujos filhos queridos foram para a
cama naquela noite como senhores e senhoras Bartolomeo, Ubaldo,
Catarina e Ottavia do Espinafre!
O conhecimento que sua majestade demonstrou com a história e
famílias nobres de seu império foi maravilhoso.
― A Casa Brócolis deve permanecer fiel a nós ― disse ela. ― Eles
sempre foram bem-vindos em nossa corte. Os Alcachofra, como de
costume, voltaram-se para o Sol Nascente? A família Chucrute deve
estar conosco, eles sempre foram bem-vindos nos salões do Rei
Couve-Flor.
E assim continuou enumerando uma lista da nobreza da Crimeia,
tão admiravelmente Sua Majestade havia lucrado com seus estudos
durante o exílio.
O velho Marquês Espinafre disse que poderia responder por todos
eles; que todo o país gemia sob a tirania de Frigideira e desejava
retornar ao seu legítimo soberano; e, tarde como era, enviou seus
filhos, que conheciam a floresta como a palma da mão, para chamar
este nobre e aquele; e quando seu filho mais velho, que estava
esfregando o cavalo e dando-lhe o jantar, entrou na casa para buscar
sua refeição, o marquês disse-lhe para colocar as botas e uma sela
na égua e, então, cavalgar aqui e ali para tal e tal gente.
Quando o jovem ouviu quem era sua companheira na carroça,
também se ajoelhou e colocou o pé real dela sobre sua cabeça;
também orvalhou o chão com suas lágrimas; estava freneticamente
apaixonado por Rosalba, como todos que a viam agora: os jovens
Lordes Bartolomeo e Ubaldo, que se esmurravam na cabecinha por
ciúme; e assim, quando vieram de leste e oeste por convocação do
Marquês Espinafre, foram os Lordes da Crimeia que ainda
permaneceram fiéis à Casa Couve-Flor. Eram cavalheiros tão velhos
em sua maioria que Sua Majestade nunca suspeitou de sua paixão
absurda, e andou entre eles sem saber do estrago que sua beleza
estava causando, até que um velho lorde cego que se juntou a ela lhe
disse qual era a verdade; depois disso, por medo de deixar as
pessoas muito apaixonadas, Rosalba sempre usava um véu. Movia-
se discretamente do castelo de um nobre para outro; e eles se
visitaram outra vez, e tiveram reuniões, e compuseram proclamações
e contraproclamações, e distribuíram todos os melhores lugares do
reino entre si, e selecionaram quem do partido da oposição deveria
ser executado quando a rainha chegasse ao seu próprio partido. E
assim, em cerca de um ano, estavam prontos para avançar.
O partido da fidelidade era, na verdade, composto, em sua maioria,
de velhos débeis; andavam pelo país agitando suas velhas espadas e
bandeiras enquanto gritavam: “Deus salve a Rainha!”. E porque o rei
Frigideira estava ausente em uma invasão, eles faziam as coisas de
seu próprio jeito, e com certeza as pessoas ficavam muito
entusiasmadas sempre que viam a rainha; caso contrário, o vulgo
levava as coisas muito calmamente, pois diziam, pelo que se
lembravam, que eram tão tributados no tempo de Couve-Flor quanto
agora no de Frigideira.
XIII. Como a Rainha Rosalba Chegou ao
Castelo do Ousado Conde Porcão

Sua Majestade, de fato não tendo mais nada para dar, fez de todos
os seus seguidores Cavaleiros da Abóbora, marqueses, condes e
baronetes. E eles, por sua vez, fizeram uma pequena corte para ela,
além de uma coroa pequenina de papel dourado e um manto de
veludo de algodão; e discutiram a respeito dos lugares a serem
dados, da posição e precedência e dignidades; você não faz ideia de
quanto discutiram! Antes mesmo de completar um mês, a pobre
rainha estava muito cansada de suas honras, e ouso dizer que às
vezes até desejava voltar a ser uma camareira. Mas todos nós
devemos cumprir nosso dever em nossas respectivas posições, então
a rainha se resignou a cumprir o dela.

Nenhuma das tropas do usurpador saiu para se opor a esse


Exército de Fidelidade; ele se moveu tão agilmente quanto os
principais comandantes permitiam: era formado pelo dobro de oficiais
do que soldados, e por fim passou perto das propriedades de um dos
nobres mais poderosos do país, que não havia se declarado a favor
da rainha, mas por quem tinham esperanças, pois estava sempre
brigando com o rei Frigideira.
Quando se aproximaram dos portões do parque, o nobre mandou
dizer que esperaria Sua Majestade: era um guerreiro muito poderoso
de nome conde Porcão, cujo elmo precisou ser carregado por dois
fortes servos.
Ele se ajoelhou diante dela e disse:
― Madame e soberana! Cabe aos grandes nobres do reino da
Crimeia mostrarem todos os sinais de respeito a seja lá quem for o
portador da coroa. Testemunhamos nossa própria nobreza ao
reconhecer a sua. O ousado Porcão dobra o joelho para a primeira da
aristocracia de seu país.
Rosalba respondeu:

― O ousado conde de Porcão é extraordinariamente gentil.


Mas temeu o conde, mesmo quando este estava ajoelhado, pois os
olhos dele se estreitaram para ela por entre os bigodes, que se
elevavam na direção deles.
― O primeiro Conde do Império, madame ― prosseguiu ele ―
saúda a Soberana. O príncipe dirige-se à mais nobre dama! Senhora,
eu ofereço minha mão, meu coração e minha espada a seu serviço!
Minhas três esposas estão enterradas em meus túmulos ancestrais. A
terceira morreu há apenas um ano; e este coração anseia por uma
consorte! Digne-se a ser minha e, assim sendo, juro trazer à sua
mesa nupcial a cabeça do rei Frigideira, os olhos e o nariz do filho
dele, o príncipe Bulbo, a mão direita e as orelhas do soberano
usurpador da Paflagônia, país que daí em diante será um apanágio
para a sua… para a nossa coroa! Diga sim; Porcão não está
acostumado a ser negado. Na verdade, não posso sequer pensar na
possibilidade de uma recusa, pois o resultado será assustador;
terríveis os assassinatos; furiosas as devastações; horrível a tirania;
tremendas as torturas, a miséria, os impostos que o povo deste reino
suportará se a ira de Porcão for despertada! Vejo consentimento nos
lindos olhos de Vossa Majestade; seus olhares enchem minha alma
de êxtase!
― Ah, senhor! ― disse Rosalba, recolhendo a mão, assustada. ―
Vossa Senhoria é extremamente gentil; mas lamento informar que
tenho uma ligação com um jovem cavalheiro chamado… príncipe
Lírio… e nunca… nunca poderei me casar com outra pessoa senão
ele.
Como descrever a ira de Porcão ao ouvi-la? Levantando-se do
chão, trincou os dentes para que o fogo saísse de sua boca, da qual
ao mesmo tempo emitiu comentários e linguagem tão altos, violentos
e impróprios que esta caneta nunca os repetirá!
― Re-re-re-re-re… Rejeitado! Demônios e perdição! O ousado
Porcão rejeitado! Todo o mundo vai ouvir sobre minha ira; e você,
madame, você acima de tudo deve se arrepender!
E, chutando os dois servos à sua frente, correu, os bigodes
balançando ao vento.
O Conselho Privado de Sua Majestade foi assolado por um pânico
terrível quando viu Porcão sair da presença real com tamanha raiva,
fazendo de seus pobres servos bolas de futebol ― um pânico
justificado em decorrência dos eventos. Eles saíram da propriedade
de Porcão muito desanimados; e meia hora mais tarde foram
recebidos por aquele chefe ganancioso com alguns de seus
seguidores, os quais cortaram, rasgaram, atacaram, golpearam,
bateram e os esmurraram, fazendo da rainha prisioneira e levando o
Exército da Fidelidade para não faço ideia de onde.
Pobre Rainha! Porcão, seu conquistador, não quis vê-la.
― Peguem uma carroça! ― ordenou aos cavalariços. ― Coloquem
a assanhada nela e mandem-na, com meus cumprimentos, à Sua
Majestade o rei Frigideira.

Junto da adorável prisioneira, Porcão enviou uma carta cheia de


cumprimentos servis e lisonjas repugnantes ao rei Frigideira, por cuja
vida, e pela de sua família real, o hipócrita bobão fingia oferecer as
mais eloquentes orações. E Porcão rapidamente prometeu prestar
sua humilde homenagem no trono de seu augusto mestre, ao qual ele
pediu permissão para ser considerado o defensor mais leal e
constante. Um pássaro velho tão cauteloso como o rei Frigideira não
deveria ser apanhado pela oferta do Mestre Porcão, e em breve
vamos saber como o tirano tratou seu presunçoso vassalo. Não, não;
esses bandidos não confiavam um no outro.
Assim, a pobre rainha foi colocada na palha e levada no escuro por
muitos quilômetros até a corte, onde o rei Frigideira havia chegado,
tendo derrotado todos os inimigos, assassinado a maioria deles e
trazido alguns dos mais ricos com o propósito de torturá-los e
descobrir onde tinham escondido o dinheiro.
Da masmorra onde foi colocada ― um buraco escuro horrível,
cheio de morcegos, ratos, camundongos, sapos, rãs, mosquitos,
insetos, pulgas, serpentes e todo tipo de horror ―, Rosalba ouviu os
gritos e gemidos deles. Não havia luz ali, senão os carcereiros
poderiam tê-la visto e se apaixonado por ela, como aconteceu a uma
coruja que vivia no telhado da torre, e um gato que, você sabe, pode
ver no escuro; e sendo assim, uma vez colocados os olhos verdes em
Rosalba, nunca mais voltaria para a mulher do carcereiro a quem
pertencia. E os sapos no calabouço vieram e beijaram seus pés, e as
víboras enrolaram em seu pescoço e braços, mas nunca a
machucaram, tão encantadora era essa pobre princesa em meio a
seus infortúnios.
Por fim, depois de ter sido mantida, por muito tempo, nesse lugar, a
porta da masmorra foi aberta e o terrível rei Frigideira entrou.
Mas o que ele disse e fez devem ser reservados para outro
capítulo, pois agora devemos voltar ao príncipe Lírio.
XIV. O que Aconteceu com Lírio

A ideia de se casar com uma criatura tão velha como Bufanosa foi tão
assustadora para o príncipe Lírio que, em um piscar de olhos, ele
correu até o quarto, arrumou as malas, chamou dois carregadores e
foi até a carruagem.
Ainda bem que ele foi muito rápido, não se demorou com a
bagagem e pegou a carruagem cedo, pois assim que o engano sobre
o príncipe Bulbo foi descoberto, o cruel Tristonho enviou dois oficiais
para o quarto do príncipe Lírio, com ordens para que o levassem para
Newgate e o decapitassem antes do meio-dia. Mas a carruagem saiu
dos domínios da Paflagônia antes das duas da manhã; e ouso dizer
que a diligência enviada em busca do príncipe Lírio não foi muito
rápida, afinal, muitas pessoas na Paflagônia tinham consideração por
Lírio, como filho do antigo soberano; um príncipe que, com todas as
suas fraquezas, era muito melhor que seu irmão, o reinante monarca
usurpador, preguiçoso, descuidado, nervoso, tirânico. Aquele príncipe
se ocupava com os bailes, festas, bailes de máscaras, caçadas etc.
que julgava apropriado dar por ocasião do casamento de sua filha
com o príncipe Bulbo. Confiemos que ele não estava arrependido por
o filho de seu irmão ter escapado do cadafalso.
Estava muito frio e nevava. Lírio, que escolheu o nome simples de
sr. Giles, ficou muito feliz por conseguir um lugar confortável no cupê
da diligência, onde se sentou com o condutor e outro cavalheiro.
Na primeira etapa de Blombodinga, quando pararam para trocar de
cavalo, chegou à diligência uma mulher muito comum, de aparência
vulgar, com uma bolsa sob o braço, pedindo um lugar. Todos os
lugares internos estavam ocupados, e a jovem foi informada de que,
caso desejasse viajar, deveria subir no telhado. O passageiro que
estava no lado de dentro com Lírio (uma pessoa rude, na minha
opinião), colocou a cabeça para fora da janela e disse:

― O tempo está ótimo para viajar aí fora! Desejo-lhe uma boa


viagem, minha querida.

A pobre mulher tossiu muito, e Lírio sentiu pena.


― Vou ceder meu lugar ― disse. ― Assim ela não precisa viajar no
ar frio com essa tosse horrível.
O viajante mal-educado disse:

― Tenho certeza de que você a manteria aquecida, se for um


palerma o que ela quer.

Lírio puxou o nariz do outro, deu-lhe um soco nas orelhas, outro no


olho e deu àquela pessoa vulgar um aviso para nunca mais chamá-lo
de palerma.
Então saltou alegremente para o telhado da diligência e se
acomodou muito confortável sobre a palha.

O viajante mal-educado só saltou na estação seguinte, e, voltando


ao seu lugar, Lírio conversou com a mulher, que parecia ser muito
agradável, bem-informada e divertida. Os dois viajaram juntos até a
noite, e ela deu a Lírio várias coisas retiradas da bolsa que carregava,
e que parecia conter a mais maravilhosa coleção de artigos. Lírio
estava com sede ― da bolsa saiu uma garrafa de cerveja clara de
Bass e uma caneca de prata! E com fome ― da bolsa saiu uma ave
fria, algumas fatias de presunto, pão, sal e um delicioso pedaço de
pudim de ameixa frio, e depois um copinho de conhaque.
Enquanto viajavam, essa mulher de aparência simples e esquisita
conversava com Lírio a respeito de vários assuntos, acerca dos quais
o pobre príncipe mostrava sua ignorância, tanto quanto ela, sua
capacidade. Ele admitiu, corando muito, que era ignorante.
Ao que a senhora rebateu:

― Meu caro Lír… meu bom sr. Giles, você é jovem e tem muito
tempo pela frente. Você não tem nada a fazer além de melhorar.
Quem sabe você possa encontrar uso para o seu conhecimento
algum dia? Quando… quando pode ser que lhe desejem em casa,
como acontece a algumas pessoas.

― Meu Deus, senhora! Você me conhece?


― Conheço várias coisas engraçadas ― respondeu ela. ― Já
estive em batizados de algumas pessoas e me afastei da porta de
outras. Tenho visto algumas pessoas prejudicadas pela boa sorte, e
outras, como espero, melhoradas pelas dificuldades. Aconselho-lhe
que fique na cidade onde a carruagem passa a noite. Fique lá e
estude, e lembre-se de sua velha amiga com quem você foi gentil.
― E quem é essa tal velha amiga minha? ― perguntou Lírio.
― Quando você quiser alguma coisa, olhe nesta bolsa, que deixo
para você como presente, e seja grato à…
― A quem, madame?

― À Fada Varinha-Preta ― respondeu a senhora, voando pela


janela.

Lírio perguntou ao condutor se ele sabia onde estava a senhora.


― Que senhora? ― devolveu o homem. ― Não tinha nenhuma
senhora nesta carruagem, exceto a velha, que acabou de descer.
E Lírio pensou que estivera sonhando. Mas no colo havia a bolsa
que Varinha-Preta lhe dera; e ao chegar à cidade, pegou-a e entrou
na estalagem.
Deram-lhe um quarto muito ruim, e Lírio, quando acordou pela
manhã, imaginando-se em casa no Palácio Real, chamou:
― John, Charles, Thomas! Meu chocolate… meu roupão… meus
chinelos.
Mas ninguém veio. Não havia campainha, então Lírio foi até o topo
da escada e gritou, pedindo água.
A senhoria apareceu, com esta cara:
― Por que você está gritando e berrando aqui, jovem? ― Ela quis
saber.

― Não há água quente, não há criados; minhas botas não estão


nem limpas.

― He, he! Limpe você mesmo, ora ― retrucou a senhoria. ― Vocês


jovens estudantes são muito arrogantes. Nunca ouvi tanta insolência.

― Não ficarei aqui nem mais um minuto ― disse Lírio.


― Quanto mais cedo, melhor, jovem. Pague sua conta e saia.
Todos os meus aposentos são procurados por cavalheiros, e não por
pessoas como você.
― Você pode ficar com o Bear Inn ― disse Lírio. ― Você deveria
pintar sua imagem no letreiro.
A dona do Bear foi embora rosnando. Lírio voltou para o quarto,
onde a primeira coisa que viu foi a bolsa da fada em cima da mesa,
que pareceu dar um pulinho quando ele entrou.

― Espero que tenha café da manhã nela, pois me resta


pouquíssimo dinheiro ― disse Lírio.

Mas, ao abrir a bolsa, o que você acha que estava lá? Uma escova
preta e um pote de graxa, onde se lia:

Pobres jovens, pretas devem ser suas botas:


Use-me, arrolhe-me e coloque-me de volta.
Lírio riu e usou a graxa nas botas, devolvendo a escova e o pote à
bolsa.
Quando terminou de se vestir, a bolsa deu outro pulinho. De lá, ele
tirou:
1. Uma toalha de mesa e um guardanapo.

2. Um açucareiro cheio do melhor pão açucarado.


4, 6, 8, 10. Dois garfos, duas colheres de chá, duas facas, um par
de pinças de açúcar e uma faca de manteiga, todos marcados com a
letra L.
11, 12, 13. Uma xícara de chá, pires e uma tigela.
14. Uma jarra cheia de um delicioso creme.

15. Uma vasilha com chás preto e verde.


16. Um grande pote de chá e água fervente.
17. Uma caçarola, contendo três ovos bem cozidos.
18. Meio quilo da melhor manteiga.
19. Um pão marrom.

E se agora Lírio não tinha o suficiente para um bom café da manhã,


quem é que tinha?

Ele, depois de tomar o café da manhã, colocou todas as coisas de


volta na bolsa e saiu em busca de hospedagem. Esqueci de dizer que
aquela famosa cidade universitária se chamava Bósforo.

Lírio alugou uma modesta hospedagem em frente às escolas,


pagou a conta na estalagem e foi para o aposento com seu baú,
bolsa de viagem, sem esquecer, podemos ter certeza, a outra bolsa.
Quando abriu o baú, o qual no dia anterior havia enchido com suas
melhores roupas, Lírio descobriu que continha apenas livros. E no
primeiro deles que abriu estava escrito:
Roupas para as costas, livros para a cabeça: leia e lembre-se deles
quando forem lidos.
E na bolsa Lírio encontrou um gorro e uma bata de estudante, uma
caderneta cheia de páginas, um tinteiro, canetas e um dicionário
Johnson, que lhe foi muito útil, pois sua ortografia havia sido
tristemente negligenciada.

Então o rapaz se sentou e trabalhou muito, muito duro por um ano


inteiro, durante o qual o sr. Giles foi um bom exemplo para todos os
alunos da Universidade de Bósforo. Nunca se envolveu em tumultos
ou confusões. Todos os professores falavam bem dele, e também era
gostado pelos alunos; de modo que, quando sob avaliação, ele levou
todos os prêmios, fique sabendo.
(Prêmio de Ortografia, Prêmio de Francês, Prêmio de Redação,
Prêmio de Aritmética, Prêmio de História, Prêmio Latino, Prêmio de
Catecismo, Prêmio de Boa Conduta.)
Todos os alunos disseram:
― Urrah! Viva o Giles! Giles é a alegria dos alunos! Viva o Giles!

E para seus aposentos ele levou uma grande quantidade de


medalhas, coroas, livros e símbolos de distinção.

Um dia depois dos exames, enquanto se divertia num café com


dois amigos (já contei que, todos os sábados à noite, Lírio encontrava
na bolsa apenas o suficiente para pagar as contas, com um guinéu a
mais? Eu não contei? Bem, ele encontrava, tão certo quanto duas
vezes vinte são quarenta e cinco), Lírio por acaso deu uma olhada no
jornal Crônicas de Bósforo e leu, com bastante facilidade (pois ele
podia soletrar, ler e escrever as palavras mais longas agora), o
seguinte:
CIRCUNSTÂNCIA ROMÂNTICA. ― Uma das aventuras mais
extraordinárias de que já ouvimos falar deixou o país vizinho, Crimeia
Tártara, em estado de grande excitação.

“Lembre-se de que quando o atual reverenciado soberano da


Crimeia Tártara, Sua Majestade o rei Frigideira, tomou posse do trono
depois de ter vencido, na terrível batalha de Blunderbusco, o falecido
rei Couve-Flor, a única filha do monarca, a princesa Rosalba, não foi
encontrada no palácio real, do qual o rei Frigideira tomou posse, e,
dizia-se, havia se perdido na floresta (sendo abandonada por todos
os seus criados), onde foi devorada por aqueles leões ferozes ― os
últimos foram capturados há algum tempo e trazidos para a Torre,
depois de matar várias centenas de pessoas.

“Sua Majestade o rei Frigideira, que tem o coração mais bondoso


do mundo, lamentou o acidente ocorrido com a inofensiva
princesinha, para quem a conhecida benevolência de Sua Majestade
certamente teria proporcionado um estabelecimento adequado. Mas a
morte dela parecia certa. Durante uma caçada, na qual o intrépido
soberano da Crimeia matou dois dos filhotes de leões com sua
própria lança, os restos mutilados de uma capa e de um sapatinho
foram encontrados na floresta. E essas interessantes relíquias de
uma criaturinha inocente foram levadas para casa e mantidas por seu
descobridor, o barão Espinafre, ex-oficial da casa de Couve-Flor. O
barão caiu em desgraça por causa de suas conhecidas opiniões
legitimistas, e viveu por algum tempo na humilde condição de
lenhador, em uma floresta nos arredores do Reino da Crimeia Tártara.
“Na terça-feira da semana passada, o barão Espinafre e vários
cavalheiros, ligados à antiga dinastia, apareceram com armas,
gritando: ‘Deus salve Rosalba, a primeira rainha da Crimeia!’ e
cercando uma senhora a quem o relatório descreve como ‘linda
demais’. A história dela pode ser autêntica, mas sem dúvida é mais
romântica.
“A personagem que se autodenomina Rosalba afirma que foi
trazida da floresta, há quinze anos, por uma senhora em uma
carruagem puxada por dragões (essa parte é certamente improvável),
que foi deixada no Jardim do Palácio de Blombodinga, onde a Alteza
Real princesa Angélica, agora casada com Sua Alteza Real Bulbo,
príncipe herdeiro da Crimeia Tártara, encontrou a criança e, com
aquela elegante benevolência que sempre distinguiu a herdeira do
trono da Paflagônia, deu à pequena pária um abrigo e um lar! Sem
que soubessem de sua ascendência, e sendo sua vestimenta muito
humilde, a órfã foi educada no palácio como criada, sob o nome de
Betsinda.

“O trabalho dela não foi satisfatório, de forma que foi dispensada,


levando consigo parte de um manto e um sapato, que usava quando
foi encontrada. De acordo com o depoimento dado, ela deixou a
Blombodinga há cerca de um ano, e desde então está com a família
Espinafre. Na mesma manhã, o príncipe Lírio, sobrinho do rei da
Paflagônia, um jovem príncipe cujo caráter de talento e ordem não
era, para dizer a verdade, um dos mais elevados, também deixou
Blombodinga, e nunca mais se ouviu falar dele!”
― Que história extraordinária! ― disseram Smith e Jones, dois
jovens estudantes, amigos especiais de Lírio.
― Ah! O que é isto?
Lírio continuou a leitura:

“SEGUNDA EDIÇÃO. ― Ficamos sabendo que a tropa sob o


comando do barão Espinafre foi cercada e totalmente derrotada pelo
general, conde Porcão, e a que se denomina princesa foi enviada
prisioneira para a capital.
“NOTÍCIAS UNIVERSITÁRIAS. ― Ontem, nas escolas, o distinto
jovem estudante, sr. Giles, leu uma oração em latim e foi
condecorado pelo chanceler de Bósforo, dr. Prugnaro, com a mais
alta honraria universitária: a colher de pau.”
― Não deem atenção para essas coisas ― disse Giles, muito
perturbado. ― Venham para casa comigo, meus amigos. Galante
Smith! Intrépido Jones! Amigos de estudos, participantes de minhas
labutas acadêmicas, tenho algo a dizer que surpreenderá suas
mentes honestas.
― Vai lá, meu velho! ― exclamou o impetuoso Smith.
― Fale, meu fanfarrão! ― disse Jones, um sujeito animado.

Com um ar de dignidade indescritível, Lírio controlou sua natural,


mas não mais decente, familiaridade.

― Jones, Smith, meus bons amigos, o disfarce é agora inútil. Não


sou mais o humilde estudante Giles, sou descendente de uma
linhagem real.
― Atavis edite regibus, eu sei, velho ga… ― exclamou Jones. Ele
ia dizer velho galo, mas um vislumbre do olho real tornou a
impressioná-lo.
― Amigos ― continuou o Príncipe ―, eu sou aquele Lírio. Sou, na
verdade, a Paflagônia. Levante-se, Smith, e não se ajoelhe na rua.
Jones, teu sincero coração! Quando eu era um bebê, meu tio infiel
roubou de mim aquela coroa corajosa que meu pai me deixou, e me
criou, todo jovem e sem atenção aos meus direitos, como o infeliz
Hamlet, príncipe da Dinamarca; e se eu tinha algum pensamento
sobre minha injustiça, me acalmava com promessas de quase
reparação. Eu deveria desposar a filha dele, a jovem Angélica; nós
dois deveríamos reinar na Paflagônia. As palavras dele eram falsas…
falsas como o coração de Angélica! Falsas como o cabelo, a cor, os
dentes da frente de Angélica! Ela virou seus olhos enviesados para o
jovem Bulbo, o estúpido herdeiro de Crimeia Tártara, e o preferiu. Foi
então que voltei meus olhos para Betsinda… Rosalba, como é
chamada agora. E nela vi a soma rubra de toda perfeição; o rosa da
modéstia da donzela; a ninfa que meu coração afeiçoado já havia
cortejado em sonhos ― etc. etc.
(Não descrevo esse discurso, que foi muito bom, mas muito longo;
e embora Smith e Jones não soubessem nada sobre as
circunstâncias, meu caro leitor sabe, então prossigo.)
O príncipe e os amigos correram para o quarto, onde Lírio havia
trabalhado tanto em seus livros, muito animados com a informação,
assim como, sem dúvida, pela maneira admirável de contar do
narrador real.
Sobre a escrivaninha estava a bolsa, tão comprida que o príncipe
não pôde deixar de notá-la. Foi até ela, abriu-a, e o que você acha
que ele encontrou?
Uma esplêndida e longa espada de corte e estocada, com cabo de
ouro, bainha de veludo vermelho, onde estava bordado: “Rosalba
para sempre”.
Ele puxou a espada, que brilhou e iluminou toda a sala, e em
seguida gritou: “Rosalba para sempre!”. Smith e Jones o seguiram,
dessa vez com bastante respeito, no ritmo de Sua Alteza Real.
A mala se abriu com um súbito pulo, e de lá saíram três penas de
avestruz em uma coroa de ouro, envolvendo um lindo capacete de
aço brilhante, uma couraça, um par de esporas… enfim, uma
armadura completa.

Os livros nas estantes tinham sumido. Onde havia alguns grandes


dicionários, os amigos de Lírio encontraram dois pares de botas de
cano alto com o rótulo “Tenente Smith”, “… Jones, Escudeiro”, que
serviram neles perfeitamente. Além disso, havia capacetes, placas
nas costas e peito, espadas etc., exatamente como nos romances do
sr. G. P. R. James; e, naquela noite, três cavaleiros, que os porteiros
nunca reconheceram como o jovem príncipe e seus amigos, foram
vistos saindo dos portões de Bósforo.

Juntos, pegaram cavalos em um estábulo e não puxaram as rédeas


até chegarem à última cidade na fronteira anterior à Crimeia Tártara.
Ali, como os animais estavam cansados, e os cavaleiros, famintos,
eles pararam e se refrescaram em uma estalagem. Se eu fosse como
alguns escritores, poderia fazer dessa parte um capítulo, mas gosto
de me conter, sabe, e dar-lhe muito pelo seu dinheiro, então, para
resumir, eles tinham pão, queijo e cerveja lá em cima, na varanda da
estalagem. Enquanto bebiam, tambores e trombetas soavam cada
vez mais perto, o mercado estava cheio de soldados, e Sua Alteza
Real, olhando para frente, reconheceu as bandeiras da Paflagônia e o
hino nacional da Paflagônia, que as bandas tocavam.

As tropas foram imediatamente para a taverna e, enquanto subiam,


Lírio exclamou, vendo o líder:

― Quem eu vejo? Sim! Não! É, é! Uau! Não, não pode ser! Sim! É
meu amigo, meu galante e fiel veterano, capitão Racabeças! Ei!
Racabeças! Não conheces teu príncipe, teu Lírio? Bom capitão, acho
que já fomos amigos. Ah, sargento, se minha memória não me falha,
tivemos muitas lutas juntos.

― Acredito que tivemos muitas, meu Lorde ― disse o sargento.


― Diga-me, o que significa este poderoso armamento ― continuou
Sua Alteza Real da sacada ―, e para onde marcham meus
paflagônios?
Racabeças baixou a cabeça.
― Milorde ― disse ele ―, nós marchamos como aliados do grande
Frigideira, monarca da Crimeia Tártara.
― Você quer dizer o usurpador da Crimeia, galante Racabeças! O
cruel tirano da Crimeia, honesto Racabeças! ― apontou o príncipe
com bastante sarcasmo.
― Príncipe, um soldado precisa obedecer às ordens que recebe: e
as minhas são para ajudar Sua Majestade Frigideira. E também,
embora seja lamentável que eu diga isso, me apoderar de onde quer
que eu o encontre.

― Ah, Racabeças! Você deve se preparar primeiro ― exclamou


Sua Alteza Real.
― … Sobre o corpo de Lírio, outrora príncipe da Paflagônia ―
continuou Racabeças, com uma emoção indescritível. ― Meu
príncipe, desista sem delongas. Veja! Somos trinta mil homens contra
um!
― Desistir! Lírio desistir! ― gritou o príncipe.

E dando um passo à frente na sacada, o jovem real, sem se


preparar, fez um discurso tão magnífico que nenhum relato pode
fazer justiça ao que foi dito. Era tudo em verso branco (com o qual, a
partir desse momento, ele invariavelmente falava, conforme mais se
adequava à sua posição majestosa). Durou três dias e três noites,
durante os quais nem uma única pessoa que o ouviu ficou cansada
nem notou a diferença entre a luz do dia e a escuridão. Os soldados
apenas aplaudiam tremendamente. Uma vez a cada nove horas, o
príncipe parava para chupar uma laranja, que Jones pegava da bolsa.
Em termos que não tentarei transmitir, ele explicou toda a história da
situação anterior e sua determinação em não apenas não desistir da
luta, mas de assumir sua coroa legítima; e no final desse esforço
extraordinário e de fato gigante, o capitão Racabeças jogou o
capacete para o alto e gritou:
― Viva! Viva! Viva o rei Lírio!
E tais foram as consequências de o príncipe ter empregado bem
seu tempo na faculdade!

Quando a agitação cessara, pediram cerveja para o exército, e o


próprio Soberano não desprezou nem um pouco! E foi com algum
alarme que o capitão Racabeças lhe disse que sua divisão era
apenas a guarda avançada do contingente da Paflagônia,
apressando-se para ajudar o rei Frigideira; a força principal estando a
um dia de marcha na retaguarda sob o comando de Sua Alteza Real
o príncipe Bulbo.
― Bom amigo, vamos esperar aqui para derrotar o príncipe ―
disse Sua Majestade ―, e depois faremos o pai real dele estremecer.
XV. Voltamos a Rosalba

O rei Frigideira fez a Rosalba propostas muito parecidas às que ela


recebera dos vários príncipes que, como bem vimos, se apaixonaram
por ela. O rei era viúvo e se ofereceu para se casar com sua bela
cativa naquele instante, mas esta o recusou com sua habitual
maneira educada e gentil, afirmando que o príncipe Lírio era seu
amor e que qualquer outra união estava fora de questão. Tendo
chorado e suplicado em vão, o monarca de temperamento violento a
ameaçou com torturas, mas Rosalba declarou que preferia sofrer tudo
a aceitar a mão do assassino de seu pai, que por fim a deixou,
proferindo as mais terríveis blasfêmias e ordenando que se
preparasse para a morte na manhã seguinte.

O rei passou a noite inteira sendo aconselhado a respeito de como


se livrar da jovem criatura obstinada. Ter a cabeça cortada seria uma
morte muito fácil para ela; o enforcamento era tão comum nos
domínios de Sua Majestade que não lhe proporcionava mais nenhum
prazer; por fim, ele se lembrou de um par de leões ferozes que
recentemente recebera como presente, e decidiu, com esses brutos
ferozes, caçar a pobre Rosalba. Ao lado do castelo havia um
anfiteatro onde o príncipe aproveitava touradas, caça a ratos e outros
esportes ferozes. Os dois leões eram mantidos em uma jaula abaixo
dali; seus rugidos podiam ser ouvidos por toda a cidade, cujos
habitantes, lamento dizer, aglomeravam-se em grande número para
ver uma pobre jovem devorada por dois animais selvagens.
O rei tomou seu lugar no camarote real, tendo os oficiais de sua
corte por perto e o conde Porcão ao lado, para quem Sua Majestade
olhava ferozmente. Espiões reais contaram ao monarca a respeito do
comportamento de Porcão, suas propostas a Rosalba e a oferta de
lutar pela coroa. O rei Frigideira olhou como uma besta para aquele
nobre orgulhoso, sentado nos bancos da frente do teatro esperando
para ver a tragédia da qual a pobre Rosalba seria a heroína.
Finalmente, a princesa foi trazida vestindo camisola, seus lindos
cabelos caindo pelas costas, e estava tão bonita que até os guardas
e os donos dos animais selvagens choraram muito ao vê-la. Ela
caminhou com seus pobres pezinhos (por sorte a arena estava
coberta de serragem), e foi se encostar numa grande pedra no centro
do anfiteatro, em volta da qual a Corte e o povo estavam sentados em
camarotes gradeados ― temendo os grandes leões ferozes, de juba
vermelha, de garganta negra, de cauda longa, que rugiam e corriam.
E nesse momento os portões foram abertos, e com um
wurrawarrurawarar, dois grandes leões magros, famintos e rugindo
saíram da toca, onde tinham sido mantidos por três semanas com
nada além de um pouco de torrada e água, e os quais,
consequentemente, correram direto para a pedra onde a pobre
Rosalba esperava. Rezem a todos os seus santos padroeiros,
pessoas gentis, pois ela estava em uma terrível situação!
Houve um murmúrio e um zumbido por todo o anfiteatro, e o feroz
rei Frigideira até sentiu um pouco de compaixão. Mas o conde
Porcão, sentado ao lado de Sua Majestade, rugiu: “Viva! Ande logo
com isso!”, pois aquele nobre ainda estava zangado com a recusa de
Rosalba.

Mas que estranho evento! Que circunstância notável! Que


coincidência extraordinária, que estou certo de que nenhum de vocês
poderia, de jeito nenhum, ter adivinhado! Quando os leões chegaram
a Rosalba, em vez de devorá-la com seus grandes dentes, foi com
beijos que a trataram! Lambiam seus lindos pés, esfregavam os
focinhos em seu colo, ronronavam, pareciam dizer: “Querida irmã,
você não se lembra de seus irmãos da floresta?”. E ela colocou seus
lindos braços brancos em volta dos pescoços amarelos e os beijou.
O rei Frigideira ficou muito surpreso. O conde Porcão, muito
enojado.
― Pff! ― gritou o conde. ― Que besteira! Esses leões são animais
mansos vindos de circos. É uma pena decepcionar as pessoas assim.
Acredito que sejam garotinhos vestidos disfarçados. Não são leões.
― Rá! ― disse o rei. ― Você se atreve a dizer “que besteira” ao
seu Soberano, não é? Esses leões não são leões, você diz? Ah!
Meus guardas! Ah! Meu guarda-costas! Peguem o conde Porcão e
joguem-no na arena! Deem a ele uma espada e um broquel, deixem
que fique com sua armadura e de olhos abertos, e lute contra esses
leões.

O altivo Porcão pousou seu binóculo e olhou de cara feia para o rei
e seus guardas.
― Não toquem em mim, atrevidos ― alertou ele ―, ou por São
Nicolau, o Velho, vou acabar com a raça vocês! Vossa Majestade
acha que Porcão está com medo? Não, nem de cem mil leões! Siga-
me até a arena, rei Frigideira, e lute contra um de teus brutos. Tu não
ousas. Que venham os dois, então!
E, abrindo uma grade do camarote, ele pulou para dentro da arena.
WURRA WURRA WURRA WUR-AW-AW-AW!!!

Em cerca de dois minutos


o conde Porcão foi
devorado

por
aqueles leões,

ossos, botas e tudo,


e

esse foi
o fim dele.
Com isso, o rei disse:

― Bem feito para esse rufião rebelde! E agora, como aqueles leões
não vão comer aquela jovem…

― Liberte-a! Liberte-a! ― gritou a multidão.


― Não! ― bradou o rei. ― Que os guardas desçam e cortem-na
em pedacinhos. Se os leões a defenderem, que os arqueiros os
matem. Essa atrevida morrerá sofrendo!

― A-a-ah! ― gritou a multidão. ― Que vergonha! Que vergonha!


― Quem ousa gritar vergonha? ― berrou o furioso soberano (os
tiranos mal podem conter suas emoções). ― Joguem entre os leões
qualquer canalha que diga uma palavra!
Garanto que houve um silêncio mortal então, que foi quebrado por
um pang arang pang pangkarangpang, e um cavaleiro e um arauto
cavalgaram na outra extremidade do circo: o cavaleiro de armadura
completa, com a viseira erguida, e carregando uma carta na ponta da
lança.
― Rá! ― exclamou o rei. ― É Elefante e Castelo, perseguidor de
meu irmão da Paflagônia; e o cavaleiro, se minha memória não falha,
é o galante capitão Racabeças! Quais são as notícias da Paflagônia,
galante Racabeças? Elefante e Castelo, tua trombeta deve ter te
deixado com sede. O que meu fiel arauto gosta de beber?

― Anunciando primeiro o salvo-conduto de Vossa Senhoria ―


disse o capitão ―, antes de bebermos qualquer coisa, permita-nos
entregar a mensagem de nosso rei.
― Minha Senhoria, rá! ― disse o rei, franzindo muito a testa. ―
Esse título soa estranho aos ouvidos ungidos de um rei coroado.
Transmitam imediatamente a mensagem, cavaleiro e arauto!
Da maneira mais elegante sob a sacada do rei, Racabeças virou-se
para o arauto e pediu-lhe que começasse.
Elefante e Castelo, deixando cair a trombeta por cima do ombro,
tirou uma grande folha de papel do chapéu e começou a ler:
― Ó, sim! Ó, sim! Ó, sim! Saibam todos os homens, por esta, que
eu, Lírio, rei da Paflagônia, grão-duque da Capadócia, príncipe
soberano da Ave e das Ilhas Salsicha, tendo assumido nosso legítimo
trono e título, há muito tempo falsamente governado por nosso tio
usurpador, autodenominando-se rei da Paflagônia…
― Rá! ― rosnou Frigideira.

― Por meio desta, convoco o falso traidor, Frigideira, que chama a


si mesmo de rei da Crimeia Tártara…

Os xingamentos do rei eram terríveis.


― Continue, Elefante e Castelo! ― disse o intrépido Racabeças.

― … Que liberte da covarde prisão sua senhora suserana e


legítima soberana, Rosalba, rainha da Crimeia, e que a restaure ao
trono real: na falta disso, eu, Lírio, proclamo o dito Frigideira
sorrateiro, traidor, trapaceiro, usurpador e covarde. Eu o desafio a me
enfrentar, com punhos ou pistolas, com machado de guerra ou
espada, com bacamarte ou cajado, sozinho ou à frente de seu
exército, a pé ou a cavalo; e provará minhas palavras em seu corpo
feio e perverso!
― Deus salve o rei! ― disse o capitão Racabeças, fazendo uma
semivolta, duas semilunas e três caracóis.
― Isso é tudo? ― questionou Frigideira, com a terrível calma da
fúria concentrada.
― Essa, senhor, é toda a mensagem do meu mestre real. Aqui está
a letra de Sua Majestade em assinatura, e aqui está sua luva, e se
algum cavalheiro da Crimeia escolher criticar as expressões de Sua
Majestade, eu, Cortafo Racabeças, capitão da guarda, estou muito a
serviço dele. ― Ele agitou a lança e olhou para os reunidos ao redor.
― E o que diz meu bom irmão da Paflagônia, sogro do meu querido
filho, a respeito dessa bobagem? ― O rei quis saber.
― O tio do rei foi injustamente privado da coroa que usava ― disse
Racabeças gravemente. ― Ele e seu braço-direito, Tristonho, estão
agora na prisão esperando a sentença de meu mestre real. Depois da
batalha de Bombardaro…

― De quê? ― perguntou o surpreso Frigideira.


― De Bombardaro, onde meu suserano, sua majestade atual, teria
realizado feitos, mas que todo o exército de seu tio veio para o nosso
lado, com exceção do príncipe Bulbo.

― Ah! Meu menino, meu menino, meu Bulbo não era um traidor! ―
gritou Frigideira.
― O príncipe Bulbo, longe de vir até nós, fugiu, senhor; mas eu o
peguei. O príncipe é prisioneiro do nosso exército, e as mais terríveis
torturas o aguardam se um fio de cabelo da princesa Rosalba for
arrancado.

― Sério? ― exclamou o furioso Frigideira, que agora estava


perfeitamente lívido de raiva. ― Vão mesmo? Que pena. Tenho vinte
filhos tão adoráveis quanto Bulbo. Nenhum é tão apto para reinar
quanto Bulbo. Chicoteie, bata, açoite, faça passar fome, puna,
castigue, torture Bulbo, quebre todos os ossos dele, asse-o ou esfole-
o vivo, arranque todos os seus lindos dentes, um por um! Mas, por
mais caro que Bulbo seja para mim… alegria de meus olhos, tesouro
de minha alma!… Ha, ha, ha, ha! A vingança é ainda mais cara. Rá!
Torturadores, carrascos, executores: acendam as fogueiras e
aqueçam as pinças! Peguem muito chumbo fervente! Tragam
Rosalba!
XVI. Como Racabeças Voltou ao Rei Lírio

O capitão Racabeças partiu quando o rei Frigideira proferiu a cruel


ordem, tendo cumprido seu dever de entregar a mensagem que seu
mestre real lhe havia confiado. Claro que sentia muito por Rosalba,
mas o que poderia fazer?

Então retornou ao acampamento do rei Lírio e encontrou o jovem


monarca perturbado, fumando charutos na tenda real. A agitação de
Sua Majestade não foi aplacada pelas notícias trazidas pelo seu
embaixador.
― Aquele rufião real brutal e implacável! ― exclamou Lírio. ―
Como bem diz a poesia da Inglaterra: “O homem que põe a mão em
uma mulher, exceto no caminho da bondade, é um vilão”. Ah,
Racabeças!

― É isso mesmo, Vossa Majestade.


― E você a viu ser jogada no óleo? E o óleo calmante… o óleo
emoliente… recusa-se a ferver, bom Racabeças, e estragar a mais
bela dama que os olhos já viram?

― Meu bom suserano, não tive coragem de olhar e ver uma bela
dama fervendo. Levei sua mensagem real a Frigideira e lhe dei as
costas. Eu disse a ele que você responsabilizaria o príncipe Bulbo.
Ele apenas disse que tinha vinte filhos tão bons quanto Bulbo, e
imediatamente ordenou que os implacáveis carrascos prosseguissem.
― Ó pai cruel… ó filho infeliz! ― choramingou o rei. ― Vão e
tragam o príncipe Bulbo aqui.

Bulbo foi trazido acorrentado, parecendo muito desconfortável.


Embora prisioneiro, estava razoavelmente feliz, talvez porque sua
mente estivesse em paz, e toda a luta havia terminado, e ele estava
jogando bola de gude com os guardas quando o rei o chamou.
― Ah, meu pobre Bulbo ― disse Sua Majestade, com olhares de
infinita compaixão ―, ouvistes a notícia? ― Lírio queria ser gentil ao
contar ao príncipe. ― Teu pai brutal condenou Rosalba-ba-ba-ba à
morte, p-p-p-príncipe Bulbo!

― O quê, matou Betsinda?! Boo-hoo-hoo ― gritou Bulbo. ―


Betsinda! Linda Betsinda! Querida Betsinda! Ela era a menininha mais
querida do mundo. Eu a amo mais vinte mil vezes até do que
Angélica. ― E assim continuou expressando sua dor de uma maneira
tão sincera que o rei ficou bastante tocado e disse, apertando a mão
de Bulbo, que desejava tê-lo conhecido antes.

Bulbo, um tanto inconscientemente, e querendo o melhor, ofereceu-


se para sentar-se com Sua Majestade, fumar um charuto com ele e
consolá-lo. O gentil monarca forneceu a Bulbo um charuto; ele disse
que não fumara um desde que tinha se tornado prisioneiro.
E agora pense em quais devem ter sido os sentimentos do mais
misericordioso dos monarcas quando informou a seu prisioneiro que,
em consequência do comportamento cruel e vil do rei Frigideira para
com Rosalba, o príncipe Bulbo deve ser executado instantaneamente!
O nobre Lírio não conseguiu conter as lágrimas, nem os soldados,
nem os oficiais, nem o próprio Bulbo quando o assunto foi explicado;
e ele, levado a entender que a promessa de Sua Majestade, é claro,
estava acima de tudo, e devia submeter-se. Assim, o pobre Bulbo foi
levado para fora, Racabeças tentando consolá-lo, dizendo que, se ele
tivesse vencido a batalha de Bombardaro, poderia ter enforcado o
príncipe Lírio.
― Sim! Mas isso não me conforta agora! ― disse o pobre Bulbo; de
fato não confortava, coitado!
Disseram que o assunto seria resolvido na manhã seguinte às oito
horas e ele foi levado de volta à masmorra, onde toda a atenção lhe
foi dada. A mulher do carcereiro mandou-lhe chá, e a filha implorou-
lhe que escrevesse o seu nome no álbum dela, onde muitos
cavalheiros o tinham escrito em ocasiões semelhantes.
― Pro diabo com seu álbum! ― disse Bulbo.

O agente funerário veio e mediu-o para o caixão mais bonito que o


dinheiro poderia comprar, mas nem isso consolou Bulbo. O cozinheiro
trouxe pratos que ele gostava, mas Bulbo não quis tocá-los: sentou-
se e começou a escrever um adeus a Angélica, pois o relógio não
parava e os ponteiros se aproximavam da manhã seguinte. O
barbeiro veio à noite e se ofereceu para barbeá-lo para o dia
seguinte. O príncipe Bulbo o chutou para longe e continuou
escrevendo algumas palavras para a princesa Angélica, pois o relógio
não parava e os ponteiros se aproximavam cada vez mais perto da
manhã seguinte. Ele subiu em uma caixa de chapéus, em cima de
uma cadeira, em cima da cama, em cima da mesa e olhou para fora
para ver se poderia escapar, pois o relógio estava sempre correndo e
os ponteiros se aproximando mais, mais e mais.

Mas olhar pela janela era uma coisa, pular era outra: e o relógio da
cidade bateu sete horas. Então Bulbo foi dormir um pouco, mas o
carcereiro veio e o acordou.
― Levante-se, Sua Alteza Real, por favor, faltam dez para oito!

E desse modo o pobre Bulbo levantou-se: tinha ido para a cama


vestido (o preguiçoso), e sacudiu-se, dizendo que não se importava
em se vestir, nem em tomar o café da manhã, obrigado; e viu os
soldados que vieram buscá-lo.
― Me conduzam! ― disse ele.

Os soldados abriram o caminho, profundamente afetados; e eles


entraram no pátio, e na praça, e lá estava o rei Lírio vindo se
despedir, e Sua Majestade muito gentilmente apertou a mão dele, e:
― Sigam em frente…

Quando ouviram:
Haw… wurraw… wurraw… aworr!
Ouviu-se um rugido de feras selvagens. E quem entrou cavalgando
na cidade, assustando os meninos, e até o sacristão e o policial,
senão Rosalba!
O fato é que, quando o capitão Racabeças entrou no pátio do
castelo Snapdragon e estava conversando com o rei Frigideira, os
leões fugiram pelo portão aberto, engoliram os seis guardas em um
instante e foram embora com Rosalba montada nas costas de um
deles. As feras então a carregaram por aí até chegarem à cidade
onde o exército do príncipe Lírio acampava.
Quando o rei soube da chegada da rainha, você pode pensar como
esse saiu correndo para entregar a rainha ao leão! Os leões estavam
gordos como porcos agora, tendo comido Porcão e todos aqueles
guardas, e eram tão mansos que qualquer um poderia acariciá-los.
Enquanto Lírio se ajoelhava (muito graciosamente) e ajudava a
princesa, Bulbo, por sua vez, correu e beijou o leão. Ele lançou seus
braços ao redor do rei da floresta; o abraçou, e riu e chorou de
alegria.
― Ah, sua querida velha fera, ah, como estou feliz em ver você, e a
querida, querida Bets… isto é, Rosalba.

― O quê? É você? Pobre Bulbo! ― observou a rainha. ― Ah, como


estou feliz em vê-lo. ― Ela deu-lhe a mão para beijar.

O rei Lírio deu-lhe um tapinha muito gentil nas costas e disse:


― Bulbo, meu rapaz, estou muito feliz. Por sua causa, Sua
Majestade chegou.
― Eu também ― disse Bulbo ―, e você sabe porquê.

O capitão Racabeças apareceu.


― Senhor, são oito e meia. Vamos prosseguir com a execução?
― Execução! Pelo quê? ― perguntou Bulbo.

― Um oficial só segue suas ordens ― respondeu o capitão


Racabeças, mostrando seu mandado.

Sua Majestade o rei Lírio disse sorrindo:


― O príncipe Bulbo recebeu indulto. ― E muito graciosamente o
convidou para o café da manhã.
XVII. Como uma Tremenda Batalha Ocorreu e
Quem a Ganhou

Assim que o rei Frigideira ouviu o que já sabemos, que sua vítima, a
adorável Rosalba, havia escapado, a fúria dele não teve limites, e
lançou o lorde chanceler, o lorde camarista e todos os oficiais da
coroa que pudesse encontrar no caldeirão de óleo fervente preparado
para a princesa. Então, ordenou que viesse todo o seu exército,
cavalos, infantaria e artilharia e partiu à frente de uma multidão
incontável com, acho, vinte mil tambores, trompetistas e flautistas.
Você pode ter certeza de que a guarda avançada do rei Lírio o
manteve informado a respeito dos movimentos do inimigo e, portanto,
não ficou desconcertado. Era educado demais para alarmar a
princesa, sua adorável convidada, com quaisquer rumores
desnecessários acerca de batalhas iminentes; pelo contrário, fazia de
tudo para diverti-la, deu-lhe um café da manhã, jantar e almoço muito
elegantes e preparou um baile naquela noite, quando bailou com ela
em todas as danças.

O pobre Bulbo voltou a ser querido e autorizado a ficar livre agora.


Recebeu roupas novas, foi chamado de “meu bom primo” por Sua
Majestade e foi tratado com a maior distinção por todos. Mas era fácil
notar que ele estava muito melancólico. O fato é que ver Betsinda,
que estava perfeitamente linda em um elegante vestido novo, deixou
o pobre Bulbo agitado outra vez. E este nunca pensou em Angélica,
agora princesa Bulbo, que deixara em casa e que, como sabemos,
não se importava muito com ele.
O rei, dançando a vigésima quinta polca com Rosalba, com
admiração observou o anel que ela usava. Rosalba contou como o
conseguira de Bufanosa, que sem dúvida o pegara quando Angélica
o jogou fora.

― Sim ― disse a Fada Varinha-Preta, que viera ver os jovens e


que provavelmente tinha certos planos. ― Eu dei aquele anel à
rainha, mãe de Lírio; que não era, salvo sua presença, uma mulher
muito sábia. O objeto é encantado, e quem o usa fica lindo aos olhos
do mundo. Dei de presente ao pobre príncipe Bulbo, quando foi
batizado, uma rosa que o fez parecer bonito enquanto a tinha; mas
ele a deu para Angélica, que instantaneamente ficou linda de novo,
enquanto Bulbo voltava ao seu estado natural de mundanidade.

― Rosalba não precisa de anel, tenho certeza ― exclamou Lírio,


com uma reverência. ― Aos meus olhos, ela é bonita o suficiente
sem nenhuma ajuda encantada.

― Ah, senhor! ― disse Rosalba.


― Tire o anel e tente ― disse o rei, e tirou o anel do dedo dela. Aos
olhos dele, ela parecia tão bonita quanto antes!
Estava pensando em jogar fora o anel, pois era tão perigoso e
deixava todo mundo louco por Rosalba; mas sendo um príncipe de
grande humor, e bom humor também, olhou para um pobre jovem que
por acaso parecia muito triste e disse:
― Bulbo, meu pobre rapaz! Venha experimentar este anel. A
princesa Rosalba o dá de presente a você.
As propriedades mágicas do anel eram extraordinariamente fortes,
pois assim que Bulbo o colocou, eis que parecia um jovem príncipe
bem-apessoado e agradável ― com uma bela pele, cabelos louros,
bastante robusto e com pernas tortas, mas envoltas em um par de
botas marroquinas amarelas tão bonitas que ninguém as notou. E
Bulbo ficou animado quase imediatamente depois que se olhou no
espelho, falou com Suas Majestades da maneira mais animada e
agradável, dançou diante da rainha com uma das mais belas damas
de honra, e depois de olhar para Sua Majestade, não pôde deixar de
dizer:

― Que estranho! Ela é muito bonita, mas não tão extraordinária.


― Ah, não, de jeito nenhum! ― concordou a dama de honra.
― Mas o que me importa, caro senhor ― retrucou a rainha, que os
ouviu ―, se você acha se eu sou bonita o suficiente?
O olhar do rei em resposta a esse discurso afetuoso foi tal que
nenhum pintor conseguiu reproduzi-lo.
A Fada Varinha-Preta disse:

― Que vocês sejam abençoados, meus queridos filhos! Agora


estão unidos e felizes e veem o que eu disse desde o início, que um
pequeno infortúnio fez bem a vocês dois. Você, Lírio, se tivesse sido
criado na prosperidade, dificilmente teria aprendido a ler ou escrever;
teria sido ocioso e extravagante, e não poderia ter sido um bom rei
como agora será. Você, Rosalba, ficaria tão lisonjeada que sua
cabecinha poderia ter virado como a de Angélica, que se achava boa
demais para Lírio.
― Como se alguém pudesse ser bom o suficiente para ele ― gritou
Rosalba.
― Ah, você, você, querida! ― exclamou Lírio.

E ela era. Ele estava estendendo os braços para abraçá-la diante


de todo o grupo quando um mensageiro entrou correndo e disse:

― Meu Senhor, o inimigo!


― Peguem as armas! ― disse Lírio.
― Ai, meu Deus! ― disse Rosalba e desmaiou, claro.

Ele roubou um beijo dos lábios dela e correu para o campo de


batalha!
A Fada havia dado ao rei Lírio uma armadura, que não apenas era
toda bordada com joias e cegante para os olhos, mas à prova d’água,
à prova de armas e à prova de espadas; de modo que, no meio das
batalhas mais difíceis, Sua Majestade cavalgava tão calmamente
quanto se tivesse sido um granadeiro britânico em Alma. Se eu
estivesse empenhado em lutar por meu país, gostaria de uma
armadura como a do príncipe Lírio; mas, você sabe, ele era um
príncipe de um conto de fadas, e eles sempre têm essas coisas
maravilhosas.

Além da armadura dada pela fada, o príncipe tinha um cavalo


mágico, que galopava a qualquer velocidade que o cavaleiro
quisesse; e uma espada mágica, que se alongaria e atravessaria todo
um regimento de inimigos de uma só vez. Com tal arma em posse,
pergunto-me se ele pensou em ordenar a seu exército que saísse;
mas vieram todos eles, em magníficos uniformes novos, Racabeças e
os dois amigos de faculdade do príncipe, cada um comandando uma
divisão, e Sua Majestade empinando-se à frente de todos eles.

Ah! Se eu tivesse a pena de um tal Sir Archibald Alison, meus caros


amigos, não os entreteria agora com o relato de um tremendo fuzuê?
Não devem ter sido dados golpes incríveis? Feridas terríveis? Flechas
escurecendo o céu? Balas de canhão atravessando os batalhões?
Infantaria avançando na cavalaria? Infantaria se lançando na
cavalaria? Cornetas retumbando; batida de tambores; cavalos
relinchando; pífanos soando; soldados rugindo, xingando, rindo;
oficiais gritando: “Avante, homens!”, “Por aqui, rapazes!”, “Mostrem a
eles, rapazes!”, “Lutem pelo rei Lírio, e pela causa certa!”, “Rei
Frigideira para sempre!”. Eu não descreveria tudo isso na melhor
linguagem possível? Mas esta humilde pena não possui a habilidade
necessária para a descrição de combates. Para resumir, a derrubada
do exército do rei Frigideira foi tão completa que, se fossem russos,
você não poderia desejar que fossem mais esmagados e frustrados.
Quanto ao monarca usurpador, tendo realizado atos muito piores
do que se poderia esperar de um rufião e usurpador real que tinha um
propósito tão ruim e que foi tão cruel com as mulheres quanto o rei
Frigideira, quando seu exército fugiu, foi junto, chutando seu primeiro
general, o príncipe Soca-Caras, da sela e galopando no cavalo dele
para fugir, tendo de fato passado sobre vinte e cinco ou vinte e seis
de seus homens sob os cascos. Racabeças, ao encontrar Soca-
Caras caído, rapidamente se livrou dele. Enquanto isso, o rei
Frigideira galopava com toda a velocidade que seu cavalo conseguia.
Por mais rápido que tenha galopado, prometo a você que alguém
galopou mais rápido; e esse indivíduo, como você sem dúvida sabe,
foi o real Lírio, que não parava de berrar:
― Fique, traidor! Vire-se, canalha, e defenda-se! Fique de pé,
tirano, covarde, rufião, maldito, até que eu arranque sua cabeça feia
de seus ombros usurpadores!
E, com a espada mágica, que se alongava à vontade, Sua
Majestade continuou cutucando e espetando Frigideira nas costas,
até que aquele monarca malvado rugiu de angústia.

Quando estava quase subjugado, Frigideira virou-se e deu ao


príncipe Lírio um golpe prodigioso sobre o baluarte com seu machado
de batalha, uma arma enorme que havia abatido não sei quantos
regimentos no decorrer da tarde. Mas, vejam! Embora o golpe tenha
atingido bem o elmo de Sua Majestade, não causou mais dano do
que se Frigideira o tivesse atingido com um pedaço de manteiga: o
machado de batalha se desfez na mão de Frigideira, e Lírio riu com
muito desprezo pelos esforços impotentes daquele usurpador atroz.

Com o insucesso de seu golpe, o monarca da Crimeia ficou irritado.


― Se você monta um cavalo mágico e usa uma armadura mágica,
para que serve eu atacá-lo? ― disse ele a Lírio. ― Melhor eu me
entregar como prisioneiro de uma vez por todas. Suponho que Vossa
Majestade não será tão mesquinho a ponto de golpear um pobre
sujeito que não pode devolver o golpe?
A verdade do comentário de Frigideira atingiu o magnânimo Lírio.

― Você se entrega como prisioneiro, Frigideira?


― Claro que sim.
― Você reconhece Rosalba como sua legítima rainha e entrega a
coroa e todos os seus tesouros à sua legítima senhora?
― Se devo fazer isso, então devo fazer isso ― disse Frigideira, que
naturalmente estava muito mal-humorado.
A essa altura, os ajudantes de campo do rei Lírio chegaram, aos
quais Sua Majestade ordenou que atassem o prisioneiro. Ele foi
amarrado com as mãos para trás e com as pernas sob o cavalo, de
rosto virado para a cauda, e dessa forma foi levado de volta aos
aposentos do rei Lírio e jogado na mesma masmorra onde o jovem
Bulbo tinha sido confinado.
Frigideira (que, em sua angústia, era uma pessoa muito diferente
do orgulhoso portador da coroa da Crimeia), com afeto e sinceridade,
pediu para ver o filho ― seu querido filho mais velho, seu querido
Bulbo. Aquele jovem de bom coração nunca censurou seu arrogante
pai pela conduta indelicada do dia anterior, quando ele teria deixado
Bulbo ser fuzilado sem qualquer piedade, e assim foi ver o pai e falou
com ele através da grade da porta, que era até onde tinha permissão
para ir; e trouxe-lhe alguns sanduíches da grande ceia que Sua
Majestade estava oferecendo no andar de cima, em homenagem à
incrível vitória que acabara de ser alcançada.
― Não posso ficar muito tempo com você, senhor ― disse Bulbo,
que estava com seu melhor traje de baile. ― Devo dançar a próxima
quadrilha com Sua Majestade a rainha Rosalba, e ouço violinos
tocando neste exato momento.
E, sendo assim, Bulbo voltou ao salão de baile, e o miserável
Frigideira comeu sua ceia solitária em silêncio e lágrimas.

Tudo agora era alegria no círculo do rei Lírio. Danças, festas,


diversão, conversas e brincadeiras de todos os tipos aconteceram. As
pessoas das aldeias pelas quais eles passavam receberam ordens de
iluminar suas casas à noite e, durante o dia, espalhar flores nas
estradas. Foram solicitados, e prometo que eles não gostariam de
recusar, a servir as tropas com muita comida e vinho; além disso, o
exército foi enriquecido pela imensa quantidade de pilhagem, que foi
encontrada no acampamento do rei Frigideira e tirada de seus
soldados, que (depois de terem desistido de tudo) puderam
confraternizar com os conquistadores. As forças unidas marcharam
de volta para a capital do rei Lírio, sua bandeira real e também a da
rainha Rosalba sendo levadas na frente das tropas.
Racabeças se tornou duque e marechal de campo. Smith e Jones
foram promovidos a condes; a Ordem Tártara da Abóbora e a
Condecoração Paflagoniana do Pepino foram distribuídas ao exército
por Suas Majestades. A rainha Rosalba usava a Faixa Paflagoniana
do Pepino em seu traje de montaria, enquanto o rei Lírio nunca
aparecia sem o grande Cordão da Abóbora.

E como o povo aplaudia enquanto os dois cavalgavam lado a lado!


Foram declarados o casal mais bonito já visto: isso era o natural, mas
eles realmente eram muito bonitos e, se fossem de outra forma, ainda
assim teriam parecido, tão felizes estavam!
Suas Majestades nunca se separavam durante todo o dia, sempre
tomavam café, jantavam e ceavam juntos, e cavalgavam lado a lado,
trocando cumprimentos elegantes e entregando-se à mais deliciosa
conversa. À noite, as damas de honra da rainha (que voltaram a ela
no dia seguinte à derrota do rei Frigideira) vinham e a conduziam aos
aposentos que lhe eram preparados; enquanto o rei Lírio, cercado por
seus cavalheiros, retirava-se para seus próprios aposentos reais.

Ficou combinado que deveriam se casar assim que chegassem à


capital, e ordens foram despachadas ao arcebispo de Blombodinga,
para que se preparasse para realizar a atraente cerimônia. O duque
Racabeças levou a mensagem e deu instruções para que o castelo
fosse esplendidamente reformado e pintado. O duque ainda prendeu
Tristonho, o ex-primeiro-ministro, e obrigou-o a restituir aquela
considerável soma de dinheiro que o velho patife havia escondido do
tesouro do falecido rei. Além disso, também colocou Valoroso na
prisão (que, a propósito, foi destronado por um período considerável
no passado), e, quando o ex-monarca protestou fracamente,
Racabeças disse:
― Um soldado, senhor, sabe apenas o seu dever; minhas ordens
são para prendê-lo junto ao ex-rei Frigideira, que foi trazido até aqui
como prisioneiro.
Assim, esses dois ex-personagens reais foram enviados por um
ano para a Casa de Correção e, depois, obrigados a se tornar
monges da mais severa Ordem dos Flagelantes, estado em que, pelo
jejum, pelas vigílias, pela flagelação (que administraram um ao outro,
humilde mas resolutamente), sem dúvida mostraram um
arrependimento por sua malvadeza, usurpações e crimes privados e
públicos.
Quanto a Tristonho, o malandro foi mandado para as galés e nunca
mais teve oportunidade de roubar.
XVIII. Como Todos Eles Voltaram Para a
Capital

A Fada Varinha-Preta, por cujos meios aqueles jovens rei e rainha


certamente haviam recuperado suas respectivas coroas, com
frequência aparecia para visitinhas ― enquanto eles cavalgavam em
seu caminho triunfal em direção à capital de Lírio ―, transformava
sua varinha em um pônei e viajava ao lado de suas Majestades,
dando-lhes os melhores conselhos. Não tenho certeza se o rei Lírio
achou a Fada e seus conselhos um tanto chatos, imaginando que foi
seu próprio mérito que o colocou no trono e derrotou Frigideira; e, em
suma, temo que o rapaz tenha se envaidecido. Ela o encorajou a lidar
com seus súditos com justiça, a recolher impostos com moderação, a
nunca quebrar sua promessa uma vez que a tivesse feito ― e em
todos os aspectos a ser um bom rei.
― Um bom rei, minha querida Fada! ― disse Rosalba. ― Claro que
ele será. Quebrar sua promessa! Você imagina que meu Lírio faria
algo tão impróprio, tão diferente dele? Não! Nunca! ― E ela olhou
com carinho para Lírio, a quem achava um padrão de perfeição.

― Por que a Fada Varinha-Preta está sempre me aconselhando,


me dizendo como administrar meu governo e me avisando para
manter minha palavra? Ela supõe que eu não sou um homem de bom
senso e honra? ― Lírio quis saber, irritado. ― Acho que ela quer
assumir sua posição.

― Shhh, querido Lírio ― reprimiu Rosalba. ― Você sabe que


Varinha-Preta tem sido muito gentil conosco, e não devemos ofendê-
la.
Mas a Fada não estava ouvindo as observações rabugentas de
Lírio ― havia recuado e agora trotava em seu pônei ao lado de
mestre Bulbo, que montava um burro, e em geral se tornara amado
no exército por sua alegria, bondade e gentileza para com todos. Ele
estava ansioso para ver sua querida Angélica. Achava que nunca
existira um ser mais encantador. Varinha-Preta não lhe disse que era
a posse da rosa mágica que tornava Angélica tão adorável aos olhos
dele. Em vez disso, levou a ele os melhores relatos de sua esposa,
cujos infortúnios e humilhações realmente a fizeram melhorar muito;
e, veja bem, a fada podia voar em sua varinha cem quilômetros em
um minuto, e estar de volta rapidinho, e assim levar mensagens
educadas de Bulbo para Angélica, e de Angélica para Bulbo, e
confortar aquele jovem em sua jornada.

Quando a comitiva real chegou à última etapa antes de alcançar


Blombodinga, a princesa Angélica estava na carruagem, esperando,
com sua dama de honra ao lado! Ela correu para os braços do
marido, mal parando para fazer uma reverência passageira ao rei e à
rainha. Não tinha olhos para outro a não ser Bulbo, que lhe parecia
perfeitamente adorável por causa do anel mágico que usava;
enquanto ela mesma, usando a rosa mágica em seu gorro, parecia
inteiramente bela para o extasiado Bulbo.
Um esplêndido almoço foi servido à comitiva real, da qual
participaram o arcebispo, o chanceler, o duque Racabeças, a
Condessa Bufanosa e todos os nossos amigos, a Fada Varinha-Preta
sentada à esquerda do rei Lírio, com Bulbo e Angélica ao lado dela.
Podia-se ouvir os sinos tocando na capital e as armas que os
cidadãos disparavam em homenagem a suas majestades.
― O que pode ter feito aquela velha e horrorosa Bufanosa se vestir
de maneira tão absurda? Você pediu a ela que fosse sua dama de
honra, minha querida? ― perguntou Lírio a Rosalba. ― Que figura
engraçada Bufaninha é!
Bufaninha estava sentada diante de suas Majestades, entre o
arcebispo e o lorde chanceler, e certamente era uma figura
engraçada, pois usava um vestido curto de seda branca, com rendas,
uma coroa de rosas brancas na peruca, um esplêndido véu de renda
e seu velho pescoço amarelo estava coberto de diamantes. Ela olhou
para o rei com tamanha cobiça que Sua Majestade caiu na
gargalhada.
― Onze horas! ― anunciou Lírio, enquanto o grande sino da
Catedral de Blombodinga badalava naquela hora. ― Senhoras e
senhores, devemos começar. Arcebispo, você deve estar na igreja, eu
acho, antes do meio-dia?
― Devemos estar na igreja antes do meio-dia ― suspirou Bufanosa
com voz lânguida, escondendo o rosto velho atrás do leque.
― E então serei o homem mais feliz em meus domínios ― disse
Lírio, com uma elegante reverência para a ruborizada Rosalba.

― Ah, meu Lírio! Ah, minha querida Majestade! ― exclamou


Bufanosa. ― E pode ser que este momento feliz finalmente tenha
chegado…
― Claro que chegou.

― … e que eu esteja prestes a me tornar a noiva extasiada do meu


adorado Lírio! ― prosseguiu Bufanosa. ― Alguém me empreste um
frasco de perfume. Certamente vou desmaiar de alegria.

― Você, minha noiva?! ― rugiu Lírio.


― Você, se casar com meu príncipe?! ― exclamou a pobre
Rosalba.
― Pff! Absurdo! Esta mulher enlouqueceu! ― retrucou o rei.
E todos os cortesãos exibiam por seus semblantes e expressões
marcas de surpresa, zombaria, incredulidade ou admiração.
― Gostaria de saber quem mais vai se casar, se não eu? ― gritou
Bufanosa. ― Gostaria de saber se o rei Lírio é um cavalheiro e se
existe justiça na Paflagônia? Senhor chanceler! Meu senhor
arcebispo! Vossas Senhorias vão ficar parados vendo uma criatura
pobre, carinhosa, confiante e terna ser deixada de lado? O príncipe
Lírio não prometeu se casar com sua Barbara? Não é a assinatura de
Lírio? Este papel não declara que ele é meu, e somente meu? ― E
em seguida entregou à Sua Graça o arcebispo o documento que o
príncipe assinou naquela noite, quando ela usava o anel mágico e
Lírio tinha bebido tanto champanhe.
E o velho arcebispo, tirando os óculos, leu:
― “Venho por meio desta informar que eu, Lírio, filho único de
Sávio, rei da Paflagônia, prometo me casar com a encantadora e
virtuosa Bárbara Griselda, Condessa Bufanosa, e viúva do falecido
Jenkins Bufanoso, escudeiro.” Hum ― comentou o arcebispo ―, este
documento é certamente um… um documento.
― Pff! ― disse o lorde chanceler. ― A assinatura não está na
caligrafia de Sua Majestade.
De fato, desde seus estudos em Bósforo, Lírio havia melhorado
imensamente na caligrafia.
― É sua caligrafia, Lírio? ― A Fada Varinha-Preta quis saber, com
uma terrível severidade no semblante.
― S-s-s-sim ― disse o pobre Lírio ―, eu tinha esquecido
completamente o papel; ela não pode querer usá-lo contra mim. Sua
velha maldita, o que você vai querer para me deixar ir? Alguém ajude
a rainha…

A rainha desmaiou.
― Corte a cabeça dela ― exclamou o impetuoso.
― Sufoque a velha bruxa! ― sugeriu Racabeças.

― Jogue-a no rio! ― disseram o ardente Smith e o fiel Jones.


Mas Bufanosa jogou os braços em volta do pescoço do arcebispo e
gritou “Justiça, justiça, meu lorde chanceler!” tão alto, que seus gritos
penetrantes fizeram todos pararem.

Quanto a Rosalba, foi levada desmaiada pelas damas, e você pode


imaginar o olhar de agonia que Lírio lançou para aquele adorável ser,
quando sua esperança, sua alegria, sua amada, seu tudo em tudo, foi
assim levada, e em seu lugar a velha e horrível Bufanosa correu para
o lado dele e mais uma vez gritou:
― Justiça, justiça!
― Você não aceita aquela quantia que Tristonho escondeu? ―
sugeriu Lírio. ― Duzentos e dezoito mil milhões, ou por aí. É uma
quantia considerável.

― Terei a quantia e você também! ― retrucou Bufanosa.


― Vamos colocar as joias da coroa na barganha ― disse Lírio.
― Vou usá-las ao lado do meu Lírio! ― devolveu Bufanosa.

― Será que metade, três quartos, cinco sextos, dezenove


vigésimos do meu reino servem, condessa? ― perguntou o trêmulo
monarca.
― O que toda a Europa seria para mim sem você, meu Lírio? ―
gritou Bufaninha, beijando a mão dele.

― Não vou, não posso, não vou… antes disso renunciarei à coroa
― gritou Lírio, arrancando a mão; mas Bufaninha agarrou-se a ela.

― Tenho competência, meu amor ― disse a condessa ―, e com


você e um chalé, sua Bárbara será feliz.

A essa altura, Lírio estava meio tomado pela raiva.


― Eu não vou me casar com ela ― disse ele. ― Ah, Fada, Fada,
me dê conselhos?
E, enquanto falava, ele olhou para o rosto sério da Fada Varinha-
Preta.
― “Por que a Fada Varinha-Preta está sempre me aconselhando e
me avisando para manter minha palavra? Ela supõe que eu não sou
um homem de honra?” ― disse a Fada, citando as próprias palavras
arrogantes de Lírio.
O rapaz estremeceu sob o brilho dos olhos dela; sentiu que não lhe
havia escapatória.
― Bem, arcebispo ― disse Lírio com uma terrível voz que fez Sua
Graça levar um susto ―, já que esta Fada me levou ao auge da
felicidade apenas para me lançar nas profundezas do desespero, já
que vou perder Rosalba, deixe-me pelo menos manter minha honra.
Levante-se, condessa, e vamos nos casar. Posso manter minha
palavra, mas morrerei logo em seguida.
― Ah, querido Lírio ― exclamou Bufanosa, pondo-se de pé ―, eu
sabia, eu sabia que podia confiar em você; eu sabia que meu príncipe
era a alma da honra. Subam em suas carruagens, senhoras e
senhores, e vamos imediatamente à igreja. E quanto a morrer, caro
Lírio, não, não. Você esquecerá aquela insignificante camareira que
finge ser rainha, você viverá para ser consolado por sua Bárbara! Ela
deseja ser uma rainha, e não uma rainha viúva, meu gracioso senhor!
E pendurada no braço do pobre Lírio, olhando de soslaio e sorrindo
da maneira mais repugnante, aquela velha miserável caminhou em
seus sapatos de cetim branco e entrou na mesma carruagem que
havia sido preparada para levar Lírio e Rosalba à igreja. Os canhões
rugiram de novo, os sinos repicaram em triplo, as pessoas jogaram
flores no caminho da noiva e do noivo reais, e Bufaninha olhou pela
janela dourada da carruagem, fez uma reverência e sorriu para eles.
Pff! A horrível e miserável velha!
XIX. E Agora Vamos à Última Cena da
Pantomima

Os muitos altos e baixos de sua vida deram à princesa Rosalba uma


força de vontade prodigiosa, e aquela jovem de princípios elevados
logo se recuperou de seu desmaio, do qual a Fada Varinha-Preta, por
uma essência preciosa que sempre carregava no bolso, a despertou.
Em vez de arrancar os cabelos, chorar, lamentar-se e desmaiar de
novo, como muitas jovens teriam feito, Rosalba lembrou que devia um
exemplo de firmeza aos seus súditos; e, embora amasse Lírio mais
do que a própria vida, estava determinada, como ela mesma disse à
Fada, a não interferir entre ele e a justiça, ou fazer com que ele
quebrasse sua palavra real.
― Não posso me casar com ele, mas sempre o amarei ― disse à
Fada. ― Assistirei ao casamento dele com a condessa, assinarei o
livro e desejarei felicidades de todo o coração. Verei, quando chegar
em casa, se não posso dar à nova rainha alguns belos presentes. Os
diamantes da coroa são extraordinariamente bons, e eu nunca terei
nenhum uso para eles. Vou viver e morrer solteira como a rainha
Elizabeth e, claro, quando deixar este mundo deixarei minha coroa
para Lírio. Vamos vê-los casados, minha querida Fada, deixe-me
dizer-lhe um último adeus; e então, por favor, retornarei aos meus
próprios domínios.

E então a Fada beijou Rosalba com uma ternura peculiar, e


imediatamente trocou sua varinha por uma carruagem muito
confortável, com um cocheiro firme e dois lacaios respeitáveis atrás, e
a Fada e Rosalba entraram na carruagem na qual Angélica e Bulbo
entraram depois deles. Quanto ao honesto Bulbo, chorava da
maneira mais patética, bastante dominado pelo infortúnio de Rosalba.
Ela se comoveu com a simpatia do homem honesto, prometeu
devolver-lhe as propriedades confiscadas pelo duque Frigideira, seu
pai, e o nomeou, sentado ali na carruagem, príncipe, alteza e primeiro
grande do Império da Crimeia Tártara. A carruagem seguiu em frente
e, sendo uma carruagem mágica, logo alcançou a procissão nupcial.
Antes da cerimônia na igreja, era costume na Paflagônia, assim
como em outros países, que os noivos assinassem o Contrato de
Casamento, que seria testemunhado pelo chanceler, pelo ministro,
pelo prefeito e pelos principais oficiais de estado. Como o palácio real
estava sendo pintado e mobiliado de novo, não estava pronto para a
recepção do rei e sua noiva, que inicialmente se propuseram a residir
no palácio do príncipe, aquele que Valoroso ocupava quando
Angélica nasceu, e antes de usurpar o trono.

Assim os noivos chegaram ao palácio: os dignitários desceram de


suas carruagens e se afastaram: a pobre Rosalba desceu de sua
carruagem, amparada por Bulbo, e contra as grades ficou em um
estado de quase desmaiada para dar uma última olhada em seu
querido Lírio. Quanto à Varinha-Preta, ela, de acordo com seu
costume, havia voado para fora da janela da carruagem
inescrutavelmente e agora estava parada diante da porta do palácio.
Lírio subiu os degraus com sua horrível noiva pendurada no braço,
parecendo tão pálido como se estivesse indo para a execução. Ele
apenas franziu a testa para a Fada ― ainda estava zangado com ela,
e pensou que tinha ido lá para insultar sua tragédia.

― Saia do caminho, por favor ― disse Bufanosa com altivez. ― Eu


me pergunto por que você está sempre metendo o nariz nos assuntos
dos outros?
― Você está determinada a deixar esse pobre jovem infeliz? ―
devolveu a Fada.

― Me casar com ele, sim! O que isso tem a ver com você? Por
favor, senhora, não diga “você” para uma rainha ― gritou Bufanosa.

― Você não aceita o dinheiro que ele lhe ofereceu?


― Não.
― Você não vai deixá-lo sair da barganha, embora saiba que o
enganou quando o fez assinar o papel?
― Insolência! Oficiais, removam esta mulher! ― gritou Bufanosa.

E os oficiais correram à frente, mas com um aceno de sua varinha


a Fada os fez paralisar como se fossem estátuas.

― Você não aceitará nada em troca da liberdade dele, sra.


Bufanosa? ― indagou a Fada, com terrível severidade. ― É a última
vez que ofereço.

― Não! ― gritou Bufanosa, batendo o pé. ― Terei meu marido,


meu marido, meu marido!

― Você terá seu marido! ― gritou a Fada; e avançando um passo,


pousou a mão sobre o nariz da aldrava.
Ao tocá-lo, o nariz de bronze pareceu se alongar, a boca aberta se
abriu ainda mais e soltou um rugido que fez todos se assustarem. Os
olhos rolaram de forma descontrolada; os braços e as pernas se
desenrolavam, se contorciam e pareciam se alongar a cada torção; a
aldrava cresceu até se tornar uma figura de libré amarela, com um
metro e oitenta de altura; os parafusos que o prendiam à porta se
soltaram, e Jenkins Bufanoso pisou mais uma vez na soleira da qual
havia sido arrancado havia mais de vinte anos!

― O Mestre não está em casa ― disse Jenkins em sua velha voz;


e a sra. Jenkins, dando um terrível grito, caiu em um ataque, mas
ninguém lhe deu atenção.
Pois todos gritavam:

― Aeee! Hip, hip, hurra! Viva o rei e a rainha!


― Já viram algo assim?
― Não, nunca, nunca, nunca!

― Fada Varinha-Preta para sempre!


Os sinos soavam duplos repiques, as armas rugindo e batendo
prodigiosamente. Bulbo abraçava todos; o lorde chanceler estava
levantando sua peruca e gritando como um louco; Racabeças
abraçara o arcebispo pela cintura e juntos dançavam de alegria; e
quanto a Lírio, deixo você imaginar o que ele estava fazendo, e se
beijou Rosalba uma, duas, vinte mil vezes, tenho certeza de que não
acho que ele estava errado.

Então Bufanoso abriu a porta do corredor com uma reverência


baixa, como costumava fazer, e todos entraram e assinaram o livro.
Então foram para a igreja e se casaram, e a Fada Varinha-Preta
partiu em sua bengala, e na Paflagônia nunca mais se ouviu falar
dela.
E aqui termina a pantomima.

The End
Extra: William Makepeace Thackeray
William Makepeace Thackeray nasceu em Calcutá, na Índia, em julho
de 1811. Considerado inglês por ter nascido na colônia britânica, foi
romancista, caricaturista, desenhista ocasional e ilustrador.
Quando tinha apenas cinco anos, Thackeray perdeu o pai e foi
mandado para a Inglaterra para estudar. Seu pai morreu quando ele
tinha apenas cinco anos, e Thackeray foi enviado para a Inglaterra
para estudar. Frequentou a Charterhouse School – instituição
conhecida por sua disciplina rigorosa – e os abusos sofridos na
instituição deixariam marcas que respingariam em algumas de suas
futuras obras. William também frequentou a Trinity College, em
Cambridge, a qual deixou depois de dois anos, sem completar os
estudos.
William Makepeace Thackeray recebeu uma herança de seu pai e
passou os anos seguintes viajando pela Europa, mas perdeu sua
fortuna em jogos de azar e investimentos fracassados. Casou-se
enquanto vivia em Paris até voltar para Londres, onde investiu em
sua carreira como jornalista e escritor. Trabalhou para periódicos
como freelancer, escrevendo críticas literárias, artigos e textos
ficcionais sob diversos pseudônimos.
Thackeray começou sua trajetória literária quando ainda era
estudante. Começou com textos curtos como poemas, tendo alguns
publicados na Punch, periódico da época. Além da escrita, Thackeray
desenvolveu suas habilidades artísticas pintando e escrevendo desde
cedo. Em um período em que as publicações ilustradas estavam em
alta com períodos literários e revistas especializadas, Thackeray uniu
seu talento como ilustrador e autor e foi o único grande escritor a
ilustrar suas próprias obras durante o período vitoriano, mas levou um
tempo até que pudesse viver do trabalho como autor.

Enquanto sua carreira se consolidava e Thackeray ganhava


renome por suas primeiras obras publicadas, o autor lidou com a
angústia de sua esposa, cuja depressão crescia. Ele viria a dedicar
anos em busca de uma cura, dividindo o tempo entre Londres, lugar
onde publicava seus textos e recebia demandas de trabalho, e Paris,
onde ficava sua família.

Quando conseguiu se estabelecer como um escritor de


considerável sucesso por seus livros de viagem e suas publicações
na Punch, levou sua família para morar na Inglaterra. Por conta da
condição de sua esposa, William Makepeace Thackeray criou suas
filhas com a ajuda de sua mãe.
Seu trabalho mais notório veio com a publicação de Vanity Fair, um
romance do período Napoleônico na Inglaterra. A partir de então,
Thackeray chegou a ser comparado a Charles Dickens, outro
renomado autor da época, por conta de obras como Pendennis, um
romance com alguns elementos autobiográficos.
Durante o Natal de 1855, Thackeray publicou The Rose and the
Ring (A Rosa e o Anel), um conto de fadas com fortes críticas à
monarquia e àqueles no topo da hierarquia social da época.
Entretanto, embora Thackeray tenha escrito críticas sociais como as
de The Rose and the Ring, sua vida pessoal e mentalidade não eram
exemplares nem naquela época, nem agora. Thackeray, conforme
alguns especialistas, recusou-se a ser simpático à causa
abolicionista, mesmo tendo passado um tempo considerável nos
Estados Unidos, pensando mais na economia (burguesa) do que no
bem-estar humano. Sua visão do país da época é representada em
obras como The Virginians. Assim como Lovecraft e outros autores
que hoje em dia são criticados por suas palavras, Thackeray foi
admirado como escritor, mas não como pessoa.
William Makepeace Thackeray morreu na véspera do Natal de 1863
por conta da ruptura de um vaso sanguíneo no cérebro. The Rose
and the Ring é um resgate literário raro, trazido com exclusividade
pela Sociedade das Relíquias Literárias.

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