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Débora Mazloum
Paisagens Hybridas
Rio de Janeiro
2016
Débora Mazloum
Paisagens Hybridas
Rio de Janeiro
2016
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEHB
CDU 7.036”20”
_____________________________________ __________________
Assinatura Data
Débora Mazloum
Paisagens Hybridas
Banca examinadora:
_______________________________________
Profª. Dra. Maria Luiza Fatorelli (Orientadora)
Instituto de Artes - UERJ
________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Campos
Instituto de Artes - UERJ
________________________________________
Prof. Dr. Ivair Reinaldim
Universidade Federal do Rio de janeiro
Rio de Janeiro
2016
AGRADECIMENTOS
The Hybrid Landscapes project is a journey into the universe of the traveling
artists, the curiosity cabinets and its formations built on the unfolding of ideas related
to the act of seeing a landscape and its possible constructive and narrative
elaborations. It configures an attempt to understand the poetics of appropriations and
contemporary allegories that encompasses issues related to the installation space
and its forms. This project attempts) to establish dialogues with various historical
times, looking to develop the relation with territoriality and new landscapes as well as
the creation of a hybrid fictional nature, questioning the relations that surround the
real effect that institutions like museums, natural history museums and the curiosity
cabinets attests. The project searched artists that treat similar issues questioning the
historical and institutional space as the idea of what is nature versus what is natural
such as Mark Dion, Robert Smitshon and Albert Baray, Luiz Zerbini among others.
Figura 6 - The man who flew from his apartment into the space, Ilya Kabavoc,
24
2003 .........................................................................
Figura 7 - Quando a Lagoa encontra o mar de Fachinetti, detalhe, Débora
26
Mazloum, 2015 ............................................................
Figura 9 - The eyes of Gutete Emerita, Alfredo Jaar, 1996 / 2000 ........... 30
INTRODUÇÃO ............................................................................ 9
REFERÊNCIAS .......................................................................... 77
9
INTRODUÇÃO
Fonte: http://www.arty.net
As viagens que faço não são viagens "reais". Reais no sentido de que não
tem o embate físico que as viagens em geral necessitam, pois não há o
10
1
DELEUZE, Felix e Guatarri, Félix. Mil Platôs,2012,Ed. 34 p. 202.
2
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil, Kapa Editorial,2007,p.12.
11
3
BALTAR, Brígida. Catalogo da Exposição A Coleta da Neblina,2003.p,63.
12
Lembra quando conversamos uma vez se o fog existe ou não? Que ele está
sempre a sua frente ou atrás de você, nunca onde você está. (BALTHAR,
op.cit.,p.1)
Talvez seja assim com a própria paisagem. Afinal, essa perseguição do fog,
me faz adentrar na outra bifurcação que tento estabelecer e relaciona-se a poética
do viajante: a caminhar e tentar coletar coisas ao longo de seu percurso.
13
4
HATOUM, Mona. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Kofcm9teUmo, 2016. Acesso
em: 15/06/2016. Tradução nossa.
14
5
CARERI, Francesco. Walkscapes, O caminhar como prática estética, 2013,p. 112
16
Tanto nas Paisagens Hybridas como no Jardim de Aclimatação XXI o inicio foi um
tanto disperso.
Uma centelha de idéia, uma possibilidade incerta de fazer alguma coisa,
como um vislumbre que ronda a mesa de trabalho, o passeio e o sono, sem projeto.
A partir dali começa uma inquietação. E é um como um novelo de lã, você puxa um
fio e começa todo um desenrolar. E enquanto estava no processo desses trabalhos
não tinha a consciência tão clara de que usava esses procedimentos.
Perceber que os objetos, os desenhos e as coisas ao serem colocadas uma
ao lado da outra reestabelecem uma outra forma a esses fragmentos a partir de um
processo de justaposição, é um procedimento característico de um trabalho
alegórico. 6 Essas junções, que podem ser feitas ao infinito, geram a cada novo
agrupamento uma nova concepção, rearranjando-se em diversas possibilidades.
Cada universo se refaz numa progressão que tende ao infinito.
Sobre essa multiplicação das formas fragmentárias, Craig Owens, no ensaio
denominado O Impulso Alegórico, sobre um teoria do Pós - modernismo, faz uma
relação entre a alegoria e progressão matemática, onde em ambos os casos a
estruturação a partir do processo de colocação e derivação, uma após a outra,
estabelece uma continuidade sem fim ao processo de encadeamento.
Neste sentido ele afirma que:
O que poderia ser uma sequencia ao acaso para uma pessoa inexperiente
aparece ao matemático como uma sequencia cheia de significado. Observe
que a progressão pode ir ao infinito. Isso equivale a situação de quase
todas as alegorias. Elas não tem nenhum limite "orgânico" inerente ou de
magnitude." (OWENS, CRAIG, op. cit , p. 6)
7
OWENS,Craig,op.cit.,2004 p. 114.
21
significado pode tanto adicionar significados, quanto chegar a inverter seu suposto
centro. Procedendo dessa maneira, podemos entender que a obra está aberta a
diversas significações, outras anotações e outros pontos de vista, que abrem o
trabalho a diversas camadas, além de estabelecer relações de entre-tempos e
releituras. Ou seja, ela "pode tomar o sentido anterior", refazendo-o ou ainda dando-
lhe múltiplos significados.
Com esta colocação, a alegoria tende a perturbar significativamente todo o
ideal moderno na medida em que desafia a fundação de uma suposta unidade da
obra. 8
A partir dessa idéia da alegoria como um certo "símbolo suplantado", cabe
retroceder um pouco e voltar na origem do que a palavra alegoria quer dizer, pois
em sua raiz semântica está embutida o seu significado. A palavra aparece pela
primeira vez sendo usada pelo grego Plutarco, e é a combinação de 2 palavras: allos
(outro) + agoreuein (falar abertamente ) 9 .
Isto denota que na etimologia da palavra alegoria é sempre considerada a
possibilidade diversa de uma fala com múltiplas vozes, portanto a capacidade de se
colocar no lugar do outro, de imaginar o outro e de ser outro. O caminho da
imaginação se faz na medida desse alargamento das fronteiras do eu.
Seguindo essa trilha, busco estabelecer uma relação dialética (e hipotética
também) a respeito de como o sujeito contemporâneo, toma o lugar / trabalho / voz
do outro e o define como seu, e esse deslocamento afeta as produções realizadas
de modo a ser constituinte e não separável dos mesmos.
Assim, a hipótese traçada por Stuart Hall, embasada na teoria de autores
como Marx, Froid, Althusser e Foucault, é de que a modernidade tardia e suas
novas teorias fundamentam um sujeito descentralizado, diametralmente oposto do
sujeito unificado moderno. Hall, em seu livro A identidade Cultural na pós-
modernidade vai falar: "a identidade torna-se uma celebração móvel." 10 Com isso,
novos sistemas de representação e significação se multiplicam com velocidade
dando espaço e lugar a essas diversas vozes. A percepção e importância de
entender a questão do individuo neste momento é de que ele vai refletir diretamente
no trabalho que o mesma realiza. Nesse sentido outra afirmação de Hall Foster
também colabora a entender essa nova concepção:
Figura 6 - The man ho flew from his apartment into the space, Ilya Kabavoc. 2003.
11
Bernardes, Maria Helena, publicado na Revista Carbono nº 5, verão de 2003 - 2004. Acesso em:
14/10/2015.O texto é baseado no relato de Nikolaiev sobre seu vizinho, O homem que se ejetou.
25
uma catapulta para atirar-se rumo ao céu. Existe uma estrutura narrativa no interior
do espaço por onde pode-se ver, o plano de voo, os cartazes, o gesso no chão.
Entendo este trabalho também como uma colagem, onde a apropriação dos
cartazes, a sensação de necessidade de fuga para o além, os esboços, ressaltam a
vontade de partida do personagem e colaboram para o "efeito de real" necessário
para a construção narrativa da instalação. Para Ilya esse conjunto de instalações
devem ser vistos como um "caleidoscópio de inúmeras pinturas" onde, com esta
afirmação ele acentua o aspecto de colagem que os mesmos carregam. No entanto,
ele se refere a este trabalho como "total instalation."
Total Instalation significa literalmente uma instalação total, onde o que o
artista tem em mente ao fazer esta afirmação é que o espectador possa entrar no
espaço em todos os sentidos. Com o corpo, com o inconsciente, com a razão. Ele
acredita que a instalação teria uma capacidade aproximada a de uma pintura do
séc. XVI., onde o espectador poderia entrar no espaço e ser absorvido por ele.
Dessa forma, a instalação teria a capacidade imersiva de colocar espectador dentro
de um lugar com diversas vistas, afirmação esta que seria o oposto da perspectiva
tradicional de um ponto de fuga. 12
Claire Bishop no livro Instalation Art, associa o trabalho de Ilya à uma "dream
scene". Ela estabelece uma relação com a proposta feita por Freud para a
interpretação dos sonhos, onde 3 aspectos são fundamentais: a sensação de uma
percepção visual(sonhos são imagens)consciente, uma composição estrutural e o
mais importante (para o meu enfoque) a elucidação do sentido pelo método da livre
associação.
Esse método parece colocar um possivel paralelo com o processo de
colagem, seja ele sobre papéis, sobre objetos ou sobre espaços.
12
BISHOP, Claire. Instalation Art, 2005, p. 17.
26
13
CAMPOS, Maria de Fátima, Relatos de viagem e a obra Multifacetada de Maria Graham, artigo
publicado na Revista Sitientibus,n.41,2009.
27
pegava o ônibus para chegar ao jardim botânico, imaginava como seria ver o mar da
dali.
Maria contava que Dom João VI construiu uma casa perto da entrada do
portão do Jardim, e ali recebia convidados para passar o final de semana ou realizar
almoços. Essa casa, tinha uma vista para a Lagoa, e Maria falava que: "Nosso
almoço foi servido na varanda de tal casa, da qual tínhamos uma vista encantadora
da lagoa, com as montanhas e matas, o oceano com 3 ilhotas ao largo...". Pelo
relato parece que seria possivel avistar um ponto em que a Lagoa Rodrigo de
Freitas se juntaria ao Oceano Atlântico. E a seguir: "A Lagoa.. está cercada de
montanhas e florestas exceto onde uma pequena barra arenosa permite um
desaguamento ocasional para o mar, quando a lagoa enche a tal ponto que ameaça
prejudicar as plantações das circunvizinhas." 14
Que imagem então seria essa, da Lagoa com a mata tropical ao seu redor,
que ao transbordar vai de encontro ao mar? Procurei muito por tal imagem mas não
a encontrei. Encontrei muitas pinturas do artista Nicolau Fachinetti retratando as
imediações do Jardim Botânico e da Fazenda da Lagoa. E a atmosfera onírica
persistia em mim, onde como num sonho que desaguava a floresta tropical, o rio de
outrora a mata virgem com uma lagoa enorme.
Tirei uma foto na biblioteca do Jardim Botânico (num procedimento igual ao
das Paisagens Hybridas de uma pintura de Fachinetti e fui alterá-la no computador.
Esta da qual me apropriei, era de um ponto de vista que se diz estar dentro do
jardim Botânico.
Portanto, acabei fazendo uso de novo desse elemento, que é a apropriação e
que caracteriza fortemente os meus trabalhos.
Nesse caso, se tratava também de uma certa busca pela memória do local,
onde a idéia não era de fato uma busca somente pela origem do lugar, mas uma
busca pelo sonho daquilo que um dia já foi, ainda que permeado e embaralhado por
memórias relatos e invenções.
Para Hal Foster, trabalhar com apropriação de imagens tem dois significados,
que entendo que operam também dentro dos conceitos abordados pelos meus
trabalhos. O primeiro deles é o questionamento acerca da unicidade pictórica. Ao
14
Gaspar, Claudia Braga e Barata Carlos Eduardo. De Engenho a Jardim. Memórias Históricas do
Jardim Botânico,2008, p. 187.
28
Fonte: www.marcelomoscheta.art.br
29
15
SOBRAL,Divino.Texto catálogo da exposição Arrasto, Memória submersa ou retida nas margens do
rio que correm ao interior,2015 www.marcelomoscheta.art.br/ data de acesso: 11/04/2016
16
SOBRAL, Divino. op. cit,.2016.
30
Fonte: www.alfredojaar.net.
31
E o que ele se lembra, sem voltar a ver todas as fotos que tirou, são os olhos
de Guetete Emerite. Esses olhos são como uma síntese possivel da viagem e do
massacre, pois ela viu a morte dos filhos e do marido. E, pelos olhos dela, nós
vemos o horror. Sem de fato vê-lo. Mas podemos imaginá-lo. E podemos ver a dor e
o sofrimento embutidos ali. Antes desta instalação, Alfredo havia desenvolvido
outros trabalhos com os olhos de Gutete. Mas na instalação, a fragmentação desse
olho em mais de mil slides colocados sobre uma caixa de luz, faz exatamente essa
ponte de ligação entre: quem olha, que olha os olhos de Gutete, e de Gutete que viu
aquilo do qual não se pode falar. Ocorre na instalação um processo discursivo
entremeado de olhares extremamente fortes e potentes. Também uma operação
mental difusa que se relaciona com a escolha dos olhos dessa mulher, quando Jaar
retorna da viagem e diz que não pode ver as fotos de novo, mas que se lembra dos
olhos dela. Essa escolha, parece conseguir fazer coexistir desordenadamente o
motivo da lembrança e da escolha dos olhos.
17
STRAUSS, Davi Levi. A sea of Griefs is not a proscenium: on the Rwanda projects from Alfredo
Jaar. Data de acesso: 15 de maio de 2016. Tradução nossa. http://www.alfredojaar.net
18
Ibidem, Strauss, Davi Levi. Apud Jaar, Alfredo.
32
19
OWENS, Craig. op.cit.,p.7.
20
KRAUSS, Rosalind. Os papéis de Picasso, Ed. Iluminuras,2006,p.45
33
Com isso ativa esse novo aspecto aberto do signo , sem a fixidez " que o
semiólogo chamaria de uma condição icônica" 21 . Com esta abertura, voltamos
aquela condição alegórica de um certo "simbolo suplantado", com a obra aberta a
reconfigurações. No caso das colagens de Picasso, essa reconfiguração é clara na
medida que ele vai juntar fragmentos de jornal numa colagem.
21
Krauss, Rosalind.op.cit.,p.46.
34
22
MACEDO Lamb, Silvana Barbosa, op. cit.,p. 30
35
23
BUCHLOCH, Benjamin. op.cit., pag. 8
37
24
PIERPAOLO, Francesca. Trouve, Tatiana. Entrevista realizada em 2010. Disponível em:
http://www.artinamericamagazine.com/news- features/magazine/tatiana-trouv. data de acesso:
15/05/2016
38
composto de inumeráveis mundos, embora não possa afirmar que ele seja
totalmente "infinito", porque cada um deles é em si finito." 25
Cada pedaço é um todo, e o consequente reconhecimento de que ao mesmo
tempo o todo encerra sobre si mesmo somente a possibilidade de representação de
uma parte, pelo avesso deixa entrever que apenas sendo parte deste infímo é que é
gerado um processo sem fim de fabricação de outros fragmentos e assim por diante.
No caso do trabalho Jardim de Aclimatação XXI, cada um dos objetos
colocados na mesa encerra em si mesmo um pequeno mundo, uma pequena ordem,
como um microcosmo. A relação dos agrupamentos realizados e justapostos sobre a
mesa de fato tende ao que no Jardim Botânico chamam de "Unidades de
Conservação". Assim, existe uma certa ordem sobre o universo aparentemente
desorganizado. É como se as espécies dialogassem com seu entorno, e para tanto
foi criado uma base em cima da mesa, de vidro ou de outro material de modo que
ressaltasse essa configuração.
25
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milenio,1990,p.85.
39
"A princípio eles parecem orbitar pelo espaço cristalino como inúmeras
facetas radiantes de uma jóia ausente..."
"A princípio eles circulam no espaço cristalino com a brancura como seu
meio, tanto um lugar real quanto a abstração de um sistema..."
"A princípio eles parecem circular pelo ar cristalino como tantas facetas leves,
as luzes saídas de um invisivel lustre rotatório..."
"A princípio eles orbitam pelo sistema da colagem, cada fragmento em
constante jogo semântico...
"A princípio eles parecem girar pelo espaço límpido com muitas facetas
cintilantes pela água..."
"A princípio eles parecem se agitar no espaço vazio, aterrisar com leveza na
superfície abstrata, folhas amareladas sopradas pelo vento, algumas de cabeça para
baixo, outras na posição certa. .."
40
Esta foi a forma com que Rosalind Krauss iniciou vários parágrafos no
capítulo sobre as colagens de Picasso e a que me refiro nesta dissertação, chama-
se a Circulação do Signo. 26
O que me pareceu interessante nessas analogias iniciais feita por ela é a
forma de remeter ao elemento circular uma certa propriedade do vidro ou melhor de
um cristal multifacetado em suas diversas variações. E a instalação Jardim de
Aclimatação XXI é feito de diversos tipos de vidros diferentes, como no detalhe da
foto da página acima. Assim como para Calvino:
26
KRAUSS, Rosalind. op.cit, 2006. p.43 - 79.
41
30
FARGE, Arlete, apud Pelbart, Peter. op.cit., 2010, Ed. Perspectiva p.104
44
global. Contudo, entendo ser a questão poética do tempo, assim como as suspeitas
com relação ao discurso dominante da história e portanto algo como uma libertação
da idéia de verdade que busco enfatizar em meus trabalhos ao relacioná-los as
questões hibridas. Canclini vai colocar que:
Para Canclini, o hibrido seria mais uma categoria a ser colocada no âmbito
possivel dos procedimentos alegóricos, por tratar a história por meio de seus
fragmentos, por estabelecer colagens diversas e se apropriar de modelos
indiscriminadamente. E dessa forma tende-se a deslocar da suposta narrativa de um
lugar, visto que perde suas características específicas que se relacionam no âmbito
do local, e se transformam no não lugar, ou no lugar da heterotipia, conforme
veremos no último capítulo.
E essa configuração, essa vontade de mistura tempos diversos se deu em
parte pelo aprofundamento da pesquisa do universo dos artistas viajantes. Foi a
partir dali que descobri a enorme gama de possibilidades e interesses que os
gabinetes de curiosidades carregavam. Ao participar de uma residência artística no
Jardim Botânico do Rio de Janeiro, iniciei um outro processo de pesquisa histórica
na biblioteca do jardim acerca de sua criação. Na pesquisa percebi o quão próximos
eram todos esses espaços. A inauguração do Jardim Botânico era próxima a
chegada da corte no Brasil e consequentemente se ligava a renovação da cidade do
Rio de Janeiro. Me chamou especialmente atenção o mapa do jardim, e sua
alteração ao longo do tempo onde neste era visível o próprio percurso da história da
formação de diversos jardins. Era como se a história do Jardim do rio, também
estivesse relacionada a história e a construção de todos os jardins, já que suas
mudanças foram marcadas por períodos importantes da construção dos mesmos.*
Assim quando Dom João resolve por amor as plantas, instituir um Jardim de
46
dimensão da nossa vida que é tanto essencial quanto imaginária. Tão essencial
quanto os sonhos.” 34.
Esta relação um tanto mágica que acredito dizer respeito em meus trabalhos,
é a tentativa de construção do espaço heterotópico. Pois como para Foucault, a
sobreposição de tempos vai de encontro ao espaço quase ficcional, do jardim, da
biblioteca.
Nas palavras dele:
...a idéia de tudo acumular, a ideia de, em certo sentido, parar o tempo, ou
antes deixá-lo depositar-se ao infinito em certo espaço privilegiado, a ideia
de constituir um arquivo geral de uma cultura, a vontade de encerrar todos
os tempos em um só lugar, todas as épocas, todas as formas e todos os
gostos, a idéia de constituir um espaço de todos os tempos, como se este
próprio espaço pudesse estar definitivamente fora do tempo ,essa é uma
idéia totalmente moderna: o museu e a biblioteca são heterotopias próprias
as nossas culturas. (FOUCALT, op.cit. 2013, p,25.)
34
BAUDRILLAR, Jean, apud. Cliford, James,op.cit,2011,Ed. Humus, p. 153.
35
Moro, Fernanda de Camargo, O gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli, 2008, p. 20
48
36
OSÓRIO, Luis Camilo, catálogo da exposição Amor, 2014 p. 9.
49
Na mesa de Luis Zerbini tal qual a mesa do Jardim de Aclimatação XXI foi
organizada com a tentativa de criar e estabelecer alguns grupos, como funcionam
como a organização dos Jardins Botânicos, as já citadas no 1º capítulo "Unidades
de Conservação". Cada agrupamento tinha ali uma tentativa de aproximação não
exatamente por temas mas por universos que se assemelhavam. Terras impróprias
para um lado, plantas de ferro com ferrugens em outro e assim por diante. Com essa
mínima configuração foi possível estabelecer alturas diferentes para cada grupo e
assim aproximar a configuração de um jardim na mesa.
A mesa pode ser equiparada também à um grande espaço liso, que como
para Deleuze e Guatarri é um espaço que possibilita crescimentos diversos com a
liberdade de se percorrer o trajeto e escolher suas pausas. O deserto, espaço livre
por excelência do nômade é o espaço no qual o viajante pode também se perder.
50
Assim como o trajeto que o espectador deve fazer em volta da mesa, escolhendo
pontos de interesse para olhar o trabalho. 37
37
Deleuze, Gilles e Guatarri, Felix, Mil Platôs,2012,p.197.
51
Alberto Baraya artista colombiano que no ano de 2002 inicia um trabalho que
se relaciona a pesquisa dos artistas viajantes. Baraya sai em viagens pelo mundo,
assim como os botânicos do séc. XIX, mas ao invés de coletar espécies nativas,
sementes locais ou plantas exóticas, busca por plantas artificiais em sua maioria
made in china para compor um Herbário "contemporâneo". Uma catalogação das
plantas de plástico existentes em lugares distintos.
52
38
BARAYA, Alberto. 2013. Visualisado no site: Artsy.net. acessado em: 12/06/2016.
39
MARQUEZ, Renata, Geografias Portáteis, 2009. p. 139. tese de doutorado.
53
40
FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas,2000. p. 181.
54
41
FOUCAULT,Michel. Ibidem,p.180
42
SMITHSON, Robert,apud,Marquez, Renata, op.cit, p.93.
55
Essa mesma natureza possesiva parece ter sido como um mote inicial para
Marcel Broodthaters, tanto na premissa e vontade inicial de sua prática artística,
quanto do seu desejo-devir de um homem frustrado que não tem posses suficiente
para poder acumular. Douglas Crimp, percebe esse impulso de colecionador e
sua virada criativa (como ele mesmo, Marcel afirma), pela ausência da possibilidade
de organizar uma coleção para si: "...Já que não teria condições de formar minha
própria coleção, por absoluta falta de recursos, tinha que encontrar outra maneira de
lidar com a má-fé que me permitia fraquejar diante de tantas emoções fortes..." 45
Marcel, iniciou sua atividade como artista plástico com mais ou menos 40
anos e tinha sido poeta até então, função esta que possivelmente ele continuou a
exercer, ao se relacionar com os estatutos de nomeação das coisas.
43
CLIFORD, James.op.cit, 2011,p.76
44
CLIFORD,James,op. sit.,p.150.
45
DOUGLAS, Crimp, Sobre as Ruínas do Museu, Martins Fontes,2015 p.178
56
46
BROOTHAERS,Marcel apud CRIMP, Douglas, op.sit.,p.185
47
Ibidem,p.184.
57
durante 4 anos, tem vários departamentos por onde Broothares pode articular a
representação dos vários papéis e agentes que o museu pode assumir. 48
Essas várias sessões que Marcel organiza são correlatas aos
desdobramentos que de certa maneira ocorrem na passagem não direta do gabinete
de curiosidades para o museu.
Para Foucault, a grande articulação se dá na forma como se nomeiam as
coisas e portanto "a exposição das coisas em quadro" a partir da linguagem 49. Para
Crimp, paradoxalmente é um erro colocar de forma direta a passagem de que o
museu tal qual conhecemos hoje em dia é um desdobramento do gabinete de
curiosidades. Ele afirma que:
Crimp coloca que de uma certa maneira isso deve ao fator político da
expansão dos territórios feitas pelos regimes imperialistas, consumado pelo "poder
que se constitui através de seus sistemas de conhecimento." 50
Tal afirmação das questões relativas ao processo de poder que as coleções
e os museus estabelecem, faz retroceder para a própria pergunta sobre a
veracidade de tal ordenação, onde o que faz Broodthares é colocar esse certo olhar
de desconfiança acerca de "como é estranho o modo pelo qual o mundo ordena seu
51
conhecimento"
48
BISHOP,Claire,op.cit.p.33
.
49
FOUCAULT, Michel,op. cit. p,180,
50
CRIMP,Douglas. op. cit. p. 200.
51
Ibidem, p.200.
58
52
LAMB,Macedo, apud. Pepin, Jules, op.cit. p.30
53
RANCIERE, Jacues, O efeito da realidade e a política da ficção,2009. Revista Novos
estudos, Cebrap, p.75-90.
54
FOUCAULT, Michel. op. sit, p.81.
59
55
DEAN, Tacita. A medida das coisas,2013,p.81. Catálogo da exposição.
56
Ibidem, Dean, Tacita, 2013,p, 81. Catálogo da exposição.
60
Ainda pensando sobre esse lugar que atesta o real, Jonathan Crary no seu
livro Suspenções da Percepção aborda a respeito de um certo "efeito de realidade".
Ele constata que para a conservação dessa percepção de (realidade), a obra de
Manet na "Estufa" pode ser bastante elucidativa, pois nela algumas das questões
mais importante da vida moderna são colocadas: a primeira seria o entendimento da
integridade da visão, a segunda seria como que "obsessão com a unidade da
percepção." 57.
Para ele, assim como para Barthe (ainda que se reportando a fotografia) esse
"efeito de realidade, depende a veracidade do discurso histórico." 58
57
CRARY, Jonathan. Suspenção da Percepção,2013,p.114.
58
Ibidem.p.155.
61
59
MARQUEZ,Renata, op. cit.p,139.
62
60
MARTINS, Carlos,Burgui Sergio, Kovensky. A Paisagem Brasileira no Instituto Moreira Sales. 2001,
Catálogo, p.:15.
63
61
RAMOS, Paula. O estranho Assimilado. Processos cartográficos na poética de Walmor Correa.
2006 . Disponível em: www.walmorcorrea.com.br, Acessado em: 5 de Setembro de 2014.
64
Fonte: www.walmorcorrea.com.br.
foi misturada, que sofreu um cruzamento pela combinação com outra, onde ambas
provém de raízes diferentes, e dessa mistura podemos talvez dizer assim, ocorre a
formação de uma nova espécie. Em Latim, a palavra Hybris, significa “falta de
limites, falta de limites impostos pelos deuses, desmedida, essa falha maior que
coloca em perigo o equilíbrio do cosmos e mais tarde da ordem política da polis." 62
Pode-se entender então que híbrido seja, nesse sentido, uma mistura
transgressora, por trazer a perturbação de uma ordem que diz ser pura, correta, por
tentar transfigurar esse desejo de ordenação e de catalogação do mundo. Uma
percepção de algo antinatural, e que o natural seria somente aquela natureza que já
está aí e que não passou pela transformação da mão do homem, aquela natureza
cujos artistas viajantes desenharam sobre os conceitos de similitude, como o efeito
de real.
O questionamento acerca da natureza e o que é ser natural e o que é ser
híbrido, perpassa o projeto sobre essas duas variantes: o híbrido material e o híbrido
de tempo. Em meu trabalho o lugar do híbrido é ressaltar a máxima ficção possivel
dentro deste universo cientificista, com toda a estranheza que ele pode causar.
Assim, o efeito de realidade tende a não existir, a similitude tampouco ocorre, e
muito menos uma descrição daquilo que vemos, já que não existe um parâmetro real
daquele objeto ou paisagem.
No trabalho Jardim de Aclimatação XXI, haviam duas plantas hibridas,
desenvolvidas de maneira bastante parecidas a partir de um molde de uma planta
de plástico. Desse molde obtive o negativo e o positivo foi feito com algum outro
material sintético. Uma delas, é comumente chamada de "flor de pedra" e foi
realizada com cimento e grafite.
62
Gagnebien, Jean Marie, Lembrar Esquecer Escrever,2006, p. 19
66
O outro objeto que aparece na foto acima foi realizado a partir de um molde
de folha de amendoeira de plástico, fazendo um processo semelhante. No entanto
nesse caso o positivo foi finalizado com resina.
Portanto, na mesa que é também um jardim, mas um jardim de plantas falsas,
um gabinete de curiosidades contemporâneo relaciono esses objetos de modo a
colocar sobre eles um lugar de tensionamento entre o natural e o não natural a partir
dos objetos híbridos misturados aos objetos artificiais. Para o dicionário natural é:
“em que não há trabalho ou intervenção do homem”. Anne Cauquelin, no seu livro A
Invensão da Paisagem, vai demonstrar o quão importante é entender de que forma é
possivel se distanciar das representações da natureza a ponto levar ao
desdobramento de que a paisagem e natureza não são a mesma coisa. Ela
considera essa relação como: " ligada a esse sonho sempre renascente da origem
do mundo - ela teria sido "pura", de uma pureza na qual nos mantêm os édens e a
qual retornamos, não obstante nosso saber." 63 Desse modo, os objetos híbridos em
meu trabalho, que já são uma cópia da cópia tendem a enfatizar que não há pureza
alguma na representação nem da natureza e muito menos da paisagem, tampouco
no espaço do jardim, e nem nos museus. A idéia de um jardim passa pelo
questionamento da possibilidade do homem dominar a natureza. Esse domínio,
essa construção, é também tensionada na medida da criação de um gabinete com
diversas espécies artificiais. O pensamento que em qualquer jardim nada cresce
"naturalmente" é a premissa para a construção dos trabalhos. Colocado desta
maneira, todo jardim é falso. Para Robert Smithson, o problema do jardim se dá na
tentativa de sempre se buscar um jardim paradisíaco, como que um éden perdido,
um certo lugar do paraíso na terra. Ele argumenta que: "O problema abissal dos
jardins envolve de alguma maneira uma queda de algum lugar ou de algo. A certeza
do jardim absoluto nunca será recuperada." 64
Com isso, perfazendo as circularidades dos caminhos dessa dissertação,
penso em outro trabalho de Alberto Baraya que dialoga com esse universo onírico
de construção de uma natureza totalmente artificial e portanto ficcional. Green
House foi apresentado pela primeira vez na Miami - Basel Art Fair em 2007.
63
ANNE,Cauquelin, A invensão da paisagem,2007, p.31
64
SMTHSON, Robert. Escritos de artistas anos 60/70, 2006,p. 188
68
Neste ele coloca dentro de uma estufa plantas artificias criando uma espécie
ficcional de microcosmo. Ficcional porque assim como as lâminas botânicas, essas
plantas, ainda que fossem naturais, tampouco sobreviveriam em sua habitat natural
em conjunto.
É assaz conhecido que as plantas tem ódio entre si... diz que a Oliveira e Videira odeiam a
couve. O pepino foge da Oliveira...(Marquez, Renata. op. sit,p155)
65
FOUCAULT, Michel, apud Aragon Luis.op.sit. p.28
71
66
CRARY, Jonathan,apud Barthes,Roland. op.cit. p,155.
67
MARQUEZ,Renata. op.cit,p.124
72
assim como vários artistas pensados aqui, trabalham com a memória dialética do
lugar, fazem alusão a ela mas reconfigurando-a.
No projeto intitulado On Tropical Nature, desenvolvido em 1991, Miwon Uon
vai constatar que existem várias concepções diferentes de site que operam
concomitantemente no trabalho. 68 O Primeiro site era o local onde Mark se instalou,
um acampamento na floresta tropical próximo a Caracas na Venezuela. Ali, durante
3 semanas consecutivas ele coletou espécies que encontrava e ao final de cada
semana mandava essas espécies para uma das salas da exposição em Caracas, o
2º site. O que constituía então o 3º site era a exposição coletiva na qual essas
coletas eram reagrupadas, e por fim o 4º site, o menos literal, no qual o projeto tenta
"se fazer parte do discurso que diz respeito a representação cultural da natureza e a
crise ambiental global." 69 Com isso, a relação da perda da referência direta na
construção do trabalho relacionada ao lugar, faz com que a arte contemporânea
possa permitir diversos deslocamentos tanto por parte do artista, como por parte do
trabalho em si. Diferente da questão levantada pelos artistas da década de 70 na
criação dos trabalhos da Land Art e sua necessidade de saída da galeria, onde o
local no qual o trabalho se instalava era determinante para a estrutura conceitual do
mesmo chegando as já conhecidas polêmicas em torno do Titled Arc de Richard
Serra, que não podia ser removida do local para onde foi pensada por exemplo.
Hoje, ocorre um desprendimento em relação ao lugar, uma desterritorialização se
buscarmos as premissas no conceito estabelecido por Deleuze e Guatarri no livro
Mil Platôs. Com isso, ao realizar instalações, residências e diversos tipos de
deslocamentos, artistas que trabalham com a memória do lugar, ou com site-
specific ainda que se refiram ou façam alusão a um espaço geográfico ou histórico
específico, não mais o fazem como sendo uma estrutura unilateral de diálogo. O que
ocorre é uma inversão da orientação de lugar, onde a questão do trabalho ( seu
aspecto discursivo, conceitual e temático) é que passa a ser o vetor do próprio
trabalho, sua intertextualidade e possibilidade de variações contínuas. O que se
configura hoje é algo como uma inversão do vetor. Um desapego com relação a
localidade e uma aproximação com o próprio assunto do trabalho, quer este esteja
aonde esteja. Esta inversão, totalmente calcada por uma arte cada vez mais
68
KWON,Miwo, Um lugar após o outro, Revista Arte Ensaios, nº 17, p. 171.
69
Ibidem, p. 172.
73
nômade e cada vez mais globalizada constituída de sujeitos dispersos enfatiza seus
temas sócios-políticos, culturais e pessoais em detrimento de questões puramente
regionais/locais ainda que consiga muitas vezes abarcá-la. Entendo que esse seja
exatamente um dos pontos nevrálgicos que o site-oriented intrinsecamente aborda.
E sobre essa mudança acerca do nome, antes site especific para agora site
oriented, Miwon coloca que a diferença ocorre por que atualmente a arte acontece
"com localidades múltiplas e operando num campo discursivo diferentemente da
moderna especificidade". 70
Nesse contexto, percebo que ocorreu uma semelhança na residência do
Jardim Botânico com os artistas que trabalham com site-oriented ao articular no
trabalho Jardim de Aclimatação XXI um deslocamento para um lugar aberto,
composto de intertextualidades. 71Sobre essa virada conceitual em relação ao site
Uon coloca:
70
KWON,Miwo, op.sit,p184
71
KWON,Miwo,O lugar errado, Revista Urbania,p,148.
74
72
MOSQUERA,Gerardo, Caminando con El Diablo,2009,p,162.
76
Com tantas dissonâncias em minha vida, de fato aprendi a preferir estar fora
do lugar e não absolutamente certo. (SAID, 2004, p,90)
77
REFERÊNCIAS
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n. 30, 1996.
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Letras, 1990.
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FERREIRA, Gloria e Cotrim, Cecilia. Escrito dos artistas anos 60/70. Rio de
Janeiro: Zahar, 2006
GAGNEBIEN, Jean Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34,
2014.
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OWENS, Craig. O impulso Alegórico: sobre uma teoria do pós modernismo. A/E, n.
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