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LIA FERNANDA RAMOS DE OLIVEIRA

PARÁBOLAS E FABULAÇÕES:
UMA INVESTIGAÇÃO EM ARTE

CAMPINAS

2014

i
ii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES

LIA FERNANDA RAMOS DE OLIVEIRA

PARÁBOLAS E FABULAÇÕES:
UMA INVESTIGAÇÃO EM ARTE

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação


em Artes Visuais do Instituto de Artes, da Universidade
Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Mestra
em Artes Visuais

Orientadora: Profª Drª Marta Luiza Strambi.

CAMPINAS

2014

iii
iv
v
vi
RESUMO

Esta dissertação, “Parábolas e Fabulações: uma Investigação em arte”,


estabelece uma relação entre obras de minha autoria - o que inclui desenhos,
pinturas e grafites - e as análises desta mesma produção feitas através de uma
pesquisa que contempla os referenciais teóricos aos quais ela se relaciona,
implicando ainda num diálogo circunstanciado com a história da arte. O trabalho
processa-se por meio de textos que abordam aspectos correlatos à Arte Lowbrow,
numa hibridização desse movimento. Trata-se de uma estética atual, proveniente
da arte urbana underground, que problematiza poéticas advindas do campo da
arte contemporânea, como a cultura dos remakes e a Pattern Painting, com
distintas modalidades; assim como pode absorver movimentos anteriores,
estabelecendo relações com a contracultura e a cultura popular.

Palavras-chave: desenho, pintura, grafite, poéticas visuais, Arte Lowbrow

ABSTRACT

This thesis: “Parables and fabulations: An Investigation into art” is a


relationship between my art production - which includes drawings, paintings and
graffiti - and the analysis of this works, through a survey which includes its
theoretical frameworks, implying in a dialog based on the history of art. This work
goes through texts that connects themselves to aspects correlated to the Lowbrow
Art, in an hybridization of this movement. It is a current aesthetic, from the
underground urban art, which discusses poetics coming from the field of
contemporary art, as the remake and Pattern Painting culture, with different
modes; and can also absorb previous movements, establishing relationships with
the counterculture and popular culture.

Keywords: drawing, painting, graffiti, visual poetics, Lowbrow Art

vii
viii
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 01

2. PARÁBOLAS LOWBROW .............................................................................. 07

2.1 LUDUS ......................................................................................................12

2.2 DOMINUS .................................................................................................. 59

3. PRIMEIROS CONTOS ..................................................................................... 78

3.1 FABULAÇÕES ........................................................................................... 82

3.2 ATA-ME! ................................................................................................ 106

4. CONCLUSÃO ................................................................................................ 126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 128

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 131

APÊNDICE......................................................................................................... 133

ANEXO............................................................................................................... 137

ix
x
Dedico este trabalho à minha Mãe, por
seu imenso amor, apoio e suporte, que
me possibilitou a realização de mais esta
etapa em minha carreira acadêmica.

xi
xii
AGRADECIMENTOS

À Professora Marta Luiza Strambi, por sua extrema dedicação ao


orientar e instruir-me sobre os caminhos da arte contemporânea, guiando-me
poética e academicamente.
Ao Professor Mauricius, pelo incentivo à pesquisa acadêmica no campo
das artes visuais e a todos os professores que participaram de minha formação e
defesa dessa dissertação, contribuindo para a realização deste trabalho, direta ou
indiretamente.
Ao meu namorado, pela imensa compreensão e paciência nos
momentos de minha ausência e nas madrugadas de escrita.
À minha família, por todo apoio e estímulo, lembrando-me sempre da
jornada a ser percorrida para a realização desta dissertação.

xiii
xiv
LISTA DE FIGURAS

Fig. 01. Toulouse Lautrec, Jane Avril, Jardim de, Paris, 1893,
litografia, 88,9 x 124,5 cm..................................................... p. 17.
Fig. 02. Alphonse Mucha, As artes: Dança, 1898, litografia,
60 x 38 cm............................................................................ p. 17.
Fig. 03. Gustav Klimt, Judith II (Salomé), 1909, óleo sobre tela,
178 x 46 cm ......................................................................... p. 17.
Fig. 04. Richard Hamilton, O que exatamente torna os lares de
hoje tão diferentes, tão atraentes? 1956, colagem,
26 x 25 cm ........................................................................... p. 19.
Fig. 05. Cavalgada I, 2010, lápis aquarela, caneta e colagem sobre
papel estampado, 30 x 30 cm.............................................. p. 22.
Fig. 06. Cavalgada II, 2010, nanquim, caneta e acrílica sobre papel
estampado, 30 x 30 cm....................................................... p. 23.
Fig. 07. Robert Kushner, Sail Away, 1983, acrílica sobre algodão e
tecidos mistos, 220,98 x 523,24 cm..................................... p. 25.
Fig. 08. Bolhas, 2012, acrílica e nanquim sobre papel estampado,
30 x 30 cm.......................................................................... p. 26.
Fig. 09. Cirque du Soleil, 2013........................................................... p. 27.
Fig. 10. Teatralidade, 2010, nanquim, caneta e acrílica sobre papel
estampado, 30 x 30 cm........................................................ p. 29.
Fig. 11. Leve-me, 2010, nanquim, acrílica e caneta sobre papel
estampado, 30 x 30 cm........................................................ p. 30
Fig. 12. Trapezistas, 2010, nanquim, acrílica e caneta sobre papel
estampado, 30 x 15 cm........................................................ p. 32.
Fig. 13. Sabor de infância, colagem, nanquim, acrílica e caneta
sobre papel estampado, 12 x 18 cm.................................... p. 33.
Fig. 14. Balões, 2010, colagem, nanquim, acrílica e caneta sobre
papel, 17 x 17 cm................................................................. p. 35.
Fig. 15. Vendedora de sonhos, 2012, nanquim e acrílica sobre
papel, 30 x 25 cm................................................................. p. 37.
Fig. 16. A Equilibrista, 2010, nanquim, caneta e acrílica sobre
papel, 30 x 30 cm................................................................. p. 38.

xv
Fig. 17. O Descanso da Bailarina, 2010, nanquim, caneta e acrílica
sobre papel, 30 x 30 cm....................................................... p. 40.
Fig. 18. Passeio, 2010, spray, purpurina, acrílica e caneta sobre
tela, 100 x 80 cm.................................................................. p. 41.
Fig. 19. Contato, 2011, caneta posca sobre papel, 30 X 30 cm..... p. 45.
Fig. 20. Festa do Chá, 2011, caneta posca sobre papel,
30 x 30 cm.......................................................................... p. 47.
Fig. 21. Tesouro, 2009, lápis de cor, caneta posca e esferográfica
sobre papel, 15 x 12,4 cm.................................................... p. 49.
Fig. 22. Aqui, 2011, caneta posca sobre papel reciclado colorido,
21 X 2,4 cm.......................................................................... p. 52.
Fig. 23. Éden, 2010, nanquim, acrílica e caneta sobre papel,
17 x 17 cm............................................................................ p. 54.
Fig. 24. No Jardim, 2010, nanquim, caneta e acrílica sobre papel,
22 x 22 cm............................................................................ p. 55.
Fig. 25. Cubos Mágicos, 2010, naquim, acrílica, caneta e colagem
sobre papel, 16,50 x 12,50 cm............................................. p. 56.
Fig. 26. Nas Ondas, 2010, acrílica, nanquim e caneta sobre papel,
30 x 30 cm............................................................................ p. 58.
Fig. 27 Hans Bellmer, A Boneca, 1936-65, alumínio pintado sobre
base de latão, 46,4 x 22,9 cm.............................................. p. 61.
Fig. 28 Meret Oppenheim, Objeto (Café da manhã de pele), 1936,
xícara, pires e colher revestidos de pele, 7,3 x 23,7 cm...... p. 61.
Fig. 29 Audrey Kawasaki, Sem título, 2006, óleo sobre madeira,
27,94 x 48,26 cm.................................................................. p. 62.
Fig. 30. Miss Van, Bailarinas 5, 2012, acrílica sobre tela,
140 x 170 cm........................................................................ p. 62.
Fig. 31. A imperatriz, 2011, PVA e nanquim sobre papel,
21 x 29,4 cm......................................................................... p. 67.
Fig. 32. Temporalidade, 2011, PVA e nanquim sobre papel,
21 x 29,4 cm......................................................................... p. 68.
Fig. 33. Degusta-me, 2011, PVA e nanquim sobre papel,
21 x 29,4 cm......................................................................... p. 70.

xvi
Fig. 34. Rabbit, 2012, acrílica, PVA e colagem sobre lona,
40 x 40 cm............................................................................ p. 73.
Fig. 35. Ops, 2011, acrílica sobre tela, 60 x 80 cm........................... p. 74.
Fig. 36. Toque, 2011, acrílica sobre tela, 70 x 70 cm........................ p. 75.
Fig. 37. Meret Oppenhein, Ma Gouvernante, 1936, escultura........... p. 77.
Fig. 38. Devaneando, 2009, aquarela e nanquim sobre papel,
30 x 24,8 cm........................................................................ p. 83.
Fig. 39. Tempo, 2009, nanquim sobre papel, 12 x 12 cm.................. p. 85.
Fig. 40. A luz, 2009, nanquim sobre papel, 15 x 12,4 cm.................. p. 87.
Fig. 41. O Gato Branco, 2009, nanquim sobre papel, 15 x 10 cm..... p. 90.
Fig. 42. Doce Camélia, 2009, nanquim sobre papel, 15 x 10 cm...... p. 91.
Fig. 43. Luvas, 2012, acrílica sobre papel, 30 x 30 cm..................... p. 92.
Fig. 44. O Leque, 2009, grafite, 220 x 180 cm. Casa do Hip Hop,
Diadema, SP......................................................................... p. 95.
Fig. 45. Musicalizando, 2009, 300 x 250 cm, grafite. Biblioteca
Municipal, São Carlos, SP.................................................... p. 96.
Fig. 46. Em suas asas, 2009, grafite, 150 x 150 cm, Centro Cultural
da Juventude, São Paulo..................................................... p. 97.
Fig. 47. Gustav Klimt, Judith, 1901, óleo sobre tela, 84 x 42 cm....... p. 99.
Fig. 48. Alphonse Mucha, Rêverie, 1897, litografia,
184,66 x 132,59 cm.............................................................. p. 99.
Fig. 49. Audrey Kawasaki, Lilian, (série Hint Mint), 2012, óleo e
grafite sobre madeira, 35,56 x 35,56 cm.............................. p. 99.
Fig. 50. Ronaldo Inc, Dark Jailbird, 2009, grafite, 230 x 150 cm....... p. 99.
Fig. 51. Alphonse Mucha, Gismonda, 1894, litografia,
216 x 74,2 cm....................................................................... p. 100.
Fig. 52. Katsushika Hokusai, Cinco mulheres bonitas, 1804-1818,
nanquim e cor em silk, 180,34 x 45,72 cm.......................... p. 101
Fig. 53 Bem me quer, Mal me quer, 2009, nanquim e aquarela
sobre papel, 20 x 20 cm........................................................ p. 108

xvii
Fig. 54. Egon Schiele, Nu feminino em pé com cabelo preto, 1910,
lápis aquarela sobre papel. Museu Albertina de Viena ....... p. 111
Fig. 55. Ata-me, 2009, aquarela e nanquim sobre papel,
20 x 20 cm............................................................................ p. 112
Fig. 56. Suave Pulsar, 2009, nanquim e aquarela sobre papel,
20 x 20 cm............................................................................ p. 114
Fig. 57. A Títere, 2009, nanquim e aquarela sobre papel,
20 x 20 cm............................................................................ p. 116
Fig. 58. Frida Kahlo, As Duas Fridas, 1939, óleo sobre tela,
173,5 cm x 173 cm................................................................ p. 119
Fig. 59. Tara McPherson, 2009, Brincando com fogo, The Healer,
óleo sobre painel, 61 x 76 cm............................................... p. 120
Fig. 60. Tara McPherson, 2008, O peso da água - parte III, óleo
sobre tela, 76 x 102 cm......................................................... p. 120
Fig. 61. Devaneio, 2012, acrílica sobre tela, 50 x 50 cm.................. p. 122
Fig. 62. Costura, 2010, grafite, 220 x 180 cm. Encontro de
grafiteiras, Salvador, BA....................................................... p. 124
Fig. 63. Esboço da fig. 19 “Contato”, p. 45........................................ p. 133
Fig. 64. Esboço da fig. 13 “Sabor de infância”, p. 33......................... p. 133
Fig. 65. Esboço da fig. 38 “Devaneando”, p. 83................................ p. 134
Fig. 66. Esboço da fig. 62 “Costura”, p. 124...................................... p. 134
Fig. 67. Esboço da fig. 21 “Tesouro”, p. 49........................................ p. 135
Fig. 68. Esboço da fig. 36 “Toque”, p. 75........................................... p. 135
Fig. 69. Esboço da fig. 44 “Leque”, p. 05........................................... p. 136
Fig. 70. Esboço da fig. 31 “A Imperatriz”, p. 67................................. p. 136

xviii
“A memória é um campo de ruínas
psicológicas, um amontoado de
recordações. Toda a nossa infância
está por ser reimaginada. Ao reimaginá-
la, temos a possibilidade de reencontrá-
la na própria vida dos nossos devaneios
de criança solitária.”

Gaston Bachelard

xix
INTRODUÇÃO

Esta dissertação de mestrado, “Parábolas e Fabulações: uma


investigação em arte”, estruturou-se sob certas hibridizações e “linguagens” da
arte contemporânea, manifestando-se a partir de relacionamentos conceituais e
poéticos, que foram investigados em minha produção visual de desenhos, pinturas
e grafites, inseridos nos capítulos e subcapítulos. A dissertação percorreu também
os caminhos poéticos da Arte Lowbrow e suas influências como o grafite, a
ilustração e as práticas circenses, referenciando-se na cultura dos remakes, nos
recortes de vários passados diferentes, que absorvem influências estéticas
próximas ao Surrealismo, à Art Nouveau, à Arte Pop; da pintura dos anos 80
(especificamente com as Pattern Painting, que são padronagens estampadas
usadas como fundo nas pinturas) e dos grafite dos anos 80, de Alex Vallauri e
Kaith Haring.
Por tratar-se de uma pesquisa em práticas e poéticas visuais, cujo
projeto se insere na linha de pesquisa “Poéticas Visuais e Processos de Criação”,
a justificativa deste trabalho está pautada na experiência expressiva e sua
necessária contextualização, através da inserção acadêmica de leituras
relacionadas ao objeto desta pesquisa. Portanto com alguns conceitos, absorvidos
dos territórios da arte contemporânea, desenvolvi uma reflexão crítica sobre minha
produção, mais particularmente sobre as poéticas e perspectivas da, já citada,
Arte Lowbrow, que envolve, entre outras formas de expressão, também o grafite.
A influência urbana dos grafites, a partir da estética marginal, uma
produção desinteressada que não se encaixa nos sistemas de legitimação da arte
- por fazer parte da rua, fora do ambiente asséptico das galerias e museus - a
coloca em contato direto com o público, numa relação descompromissada, porém
incisiva e persistente por sua essência criativa frente ao caos urbano.
Ao perceber-me influenciada por essa específica mistura do grafite com
a arte erudita, encontrei uma chave para poder refletir sobre a transposição dos

1
trabalhos do muro ou parede para o papel, com temáticas de um universo
underground, que se apresentam como reflexos da sociedade e do seu imaginário.
As figuras de estilo Parábola e Fábula expressam características únicas
que se distinguem das demais formas literárias, por possibilitarem ao autor
desprender-se da realidade, criando universos paralelos repletos de seres
animados e alegóricos que carregam em si significados e simbologias únicas,
trazendo consigo o poder das analogias do devaneio e da fantasia criadora, de
modo a potencializar os visionamentos poéticos propostos pelo ser onírico das
obras desse objeto de estudo.
Os conceitos da Arte Lowbrow lidam ainda com influências das das pin-
ups, do mangá e da arte figurativa, bem como absorvem outros movimentos da
história da arte, estabelecendo assim associações com a contracultura.
A fundamentação metodológica, aplicada à esta dissertação, serviu-se
também da semiótica de Charles Sanders Pierce, que estrutura-se analisando a
forma, o contexto e o significado das imagens aqui elencadas, porém esse
vocabulário encontra-se oculto, uma vez que utilizo apenas sua estrutura.
Ainda sobre a análise da forma escolhi como apoio Rudolf Arnheim, que
tem seus estudos fundados na base da teoria da Gestalt 1 , para trabalhar os
fenômenos visuais de minha produção, dos “[...] princípios científicos extraídos
principalmente de experimentos de percepção sensorial” (ARNHEIM, 2005, p. 4 da
introdução). Arnheim ressalta ainda que “[...] toda a percepção é também
pensamento, todo processo de raciocínio é também intuitivo, toda observação é
também invenção". (Ibid., p. 5 da introdução). Essa teoria pressupõe o todo e, não
se pode apenas por meio de suas partes, ter o conhecimento de si, pois ele conta
com o critério da transponibilidade,

1 Uma teoria da percepção visual e da psicologia da forma.

2
[...] onde a forma que se sobressai pode nos remeter a outras
imagens transpostas dessa abstrata memória, como por exemplo
letras ou sons podem nos evocar sensações de mar, como seu
odor, sua imagem e seu simbolismo, não exatamente relacionadas
às letras ou a esses sons. As formas visuais, ao nível da
superfície, se tornam incompletas e sem significado, pois não
podem ser separadas daquilo que elas nos dizem. (STRAMBI,
2014).

Podemos afirmar que “[...] o conceito está divorciado do que se


percebe, e o pensamento se move entre abstrações” (ARNHEIM, 2005, p. 13 da
introdução), pois por mais que se busque “[...] é impossível comunicar as coisas
visuais através da linguagem verbal”. (Ibid. p. 2 da introdução). Por exemplo, é
uma diminuição dizer que “[...] as qualidades particulares da experiência
despertadas por uma pintura de Rembrandt são apenas parcialmente redutíveis à
descrição e explanação” (ARNHEIM, loc. cit). Não somente o campo da arte é
assim, mas qualquer que seja o campo temos o objeto específico da experiência.
Assim, analiso a minha produção, em relação a sua forma, segundo o
plano do conteúdo da expressão, como mencionado acima e, trabalhado também
por Louis Hjelmslev, citado por Winfried Noth no livro “A Semiótica no Século XX”.
Podemos analisar a forma a partir do ponto de vista de sua sintaxe visual,
enquanto no plano do conteúdo podemos analisar a sua substância, como
igualmente a sua lógica e significação em relação ao todo que as imagens
compõem. Também foi importante considerar as relações contextuais dessas
imagens e seu referencial teórico, tanto da história da arte como das teorias da
arte.
Considerei ainda a sutileza poética e fenomenológica de Gaston
Bachelard, com relacionamentos que rodeiam os devaneios humanos em suas
inúmeras analogias metafóricas, diante do conhecimento empírico que envolve o
homem sensível.

3
[...] é preciso perceber que o conhecimento empírico, [...], envolve
o homem sensível por todas as expressões de sua sensibilidade.
Quando o conhecimento empírico se racionaliza, nunca se pode
garantir que valores sensíveis primitivos não interfiram nos
argumentos. De modo visível, pode-se reconhecer que a ideia
científica muito usual fica carregada de um concreto psicológico
pesado demais, que ela reúne inúmeras analogias, imagens,
metáforas, e perde aos poucos seu vetor de abstração, sua afiada
ponta abstrata. (BACHELARD, 2005, p. 19).

A proposição de Bachelard, permite uma nova interpretação do


conhecimento científico livre, instaurado na criação artística, que nos dá o direito
de sonhar, no “[...] qual a criatividade do espírito [...] associa-se à experiência,
numa dialética movida pela contínua retificação dos conceitos.” (PESSANHA,
1978, p. x). Desta forma, os assuntos discutidos nesta dissertação surgiram da
associação do processo entre práxis e poiesis, com a imagética da fantasia, da
ludicidade pueril e da maturidade, estabelecendo relações que conduzem o leitor a
um universo de lirismos característicos do meu processo criativo.
Composta por dois capítulos, que se subdividem em outros dois
subcapítulos, respectivamente - 2. Parábolas Lowbrow contendo 2.1 Ludus e 2.2
Dominus; 3. Primeiros Contos com 3.1 Fabulações e 3.2 Ata-me! - as análises
desta dissertação relacionam o fazer expressivo com o conhecimento da
pesquisa, mediante a contextualização acadêmica de uma experiência focada em
minha produção visual, construindo uma narrativa pelos caminhos poéticos
conexos à Arte Lowbrow, bem como às hibridizações contemporâneas que nos
levam de encontro à cultura dos remakes, na apropriação e recodificação de
signos remanescentes da sociedade atual.

4
O capítulo Parábolas Lowbrow aborda de forma analítica relações
poéticas que se estabelecem em seus subcapítulos Ludus e Dominus, numa
espécie de arguição nostálgica da infância, surgindo no subcapítulo Ludus como
um visionamento retórico e metafórico articulado na fantasia da atmosfera
circense, possibilitando a comunicação entre o ego infantil e adulto, poeticamente
cênico e lúdico, jogando com as possibilidade do real e do imaginário.
Predominantemente circenses as personagens, apresentadas em Ludus, trazem
os princípios jocosos e satíricos da Commédia dell’ arte e do imaginário popular,
mesclando o burlesco e mambembe do circo a algo enigmático, cativando o
espectador e povoando sua imaginação com inebriantes visionamentos, diante de
figuras femininas delicadas e misteriosas.
Características nostálgicas, provenientes da infância, contrastam com a
sensualidade adquirida na idade adulta, rompendo com alguns padrões e valores
sociais a partir de temas opostos que se completam
artisticamente na configuração plástica das obras e constroem um universo lúdico
e fantasioso repleto de memórias e alegorias. Em minhas obras a criança interior
manifesta-se pelas mãos adultas, em devaneios plurais, expressando
poeticamente as raízes lúdicas em cores e formas nostálgicas, advindas do circo e
dos parques de diversões itinerantes que povoam minha imaginação, com seu
brilho melancólico e aroma de algodão doce, maçã do amor e pipoca.
Navegando por águas menos inocentes e, finalizando o subcapítulo
Dominus, apresento uma outra forma de feminilidade, quando a figura feminina
esbanja erotismo e suavidade, diante da retórica subversiva da Arte Lowbrow, em
consonância com a potência das clássicas e burlescas pin-ups, mescladas ao
conceito fetichista das voluptuosas dominatrixes, com conceitos aclarados em
textos analíticos e poéticos, que apuram as relações jocosas de suas
personagens.
Porém, ao longo desta pesquisa duas séries de obras ainda foram
analisadas e agrupadas no terceiro capítulo 3. Primeiros Contos, são obras que

5
antecedem a minha produção artística do mestrado e que se dividiram em dois
subcapítulos intitulados Fabulações e Ata-me!
O subcapítulo Fabulações traduz num panorama lúdico aspectos
oníricos da nostalgia e da solidão, bem como aspectos burlescos e a jocosidade
circense, de modo a propiciar uma narrativa parabolar, controversa e polivalente,
características advindas das influências da arte “popular” contemporânea e do
grafite, numa construção analítica histórica, na apropriação de visionamentos
atrelados à história da arte, particularmente da Art Nouveau, que se apresenta
esmiuçada em textos poéticos analíticos.
Sentimental e alegórico, o subcapítulo Ata-me! surge como uma
narrativa articulada em visionamentos simbólicos, materializados por obras
metafóricas. Elementos mordazes, como anzóis, fechaduras e peitos dilacerados,
contrapõem-se à corações e nuvens, trazendo nas trilhas do subconsciente e das
parábolas relacionamentos singulares e sensíveis orientados pela emoção.

6
2. PARÁBOLAS LOWBROW

Esse capítulo Parábolas Lowbrow se desenvolveu num processo


fundamentado nas relações lúdicas e fantásticas, trabalhadas por
uma produção visual composta por vinte e seis (26) obras de minha autoria, que
apropriam-se do conceito metafórico das parábolas – narrativas visuais que
estabelecem relações de ficção com certa realidade, mesclando o espírito
alegórico do real com o do imaginário – de modo a elucidar uma trajetória oriunda
de desdobramentos plásticos, firmados em devaneios de parábolas e associações
nostálgicas.
Escolhi como título desse capítulo a palavra Parábola porque meus
trabalhos práticos sugerem pequenas histórias visuais fantásticas, povoadas por
personagens que interagem com o ambiente em que se encontram, suscitando
uma narrativa simbólica e lúdica.
A parábola 2 foi utilizada largamente no ato de contar histórias, bem
como na ilustração metafórica das artes e da literatura, por evocar essas outras
realidades: narrativas ilógicas e alegóricas.
A palavra Lowbrow 3 , segunda palavra que compõe o título desse
capítulo, de origem inglesa, surgida entre os anos 60 e 70, refere-se às
características artísticas múltiplas, que se associam às questões inerentes à
cultura underground, como o grafite, o mangá, a tatuagem e, ainda, alia-se ao
circo e dedica-se às linguagens, até então desvinculada das galerias.
Concluindo, o título deste capítulo Parábolas Lowbrow sugere um
visionamento artístico, organizado mediante relações narrativas e alegóricas dos

2
Tem sua origem etimológica no grego PARABOLÉ, uma “comparação”, união dos radicais, PARA,
“ao lado”, e BALLEIN, “lançar, atirar”.
3
Estilo artístico que baseia-se na oposição dos ideais hightbrow (sofisticado, elitizado), tomando
como ponto de partida a arte underground de subculturas ou ainda de cultura vanguardista, como o
Surrealismo e a Pop Arte. (ANDERSON; MCCORMICK; REID, et al, 2004), fonte:
http://books.google.com.br/books?id=gkMr1b7YNh4C&printsec=frontcover&source=gbs_ge_summ
ary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false

7
meus trabalhos visuais, que carregam aspectos undergrounds da Arte Lowbrow -
também chamada por alguns de Outsider Art, Urban folk, ou Surrealismo Pop -, como
as influências poéticas do grafite, do mangá, de elementos do universo da
ilustração e da chamada cultura dos remakes, que recodifica estilos ou
movimentos clássicos e maneiras pictóricas, misturando-os aos “modos” de hoje,
como por exemplo, o aproveitamento de “detritos” abandonados da cultura pop ou
do surrealismo para a criação de novas obras. Deste modo, essa cultura
proporciona hibridismos de discursos, numa abertura que recodifica e transforma
realidades já conhecidas em algo singular e peculiar, onde relaciono elementos
próprios de meu universo com essa diversidade de procedimentos citados.
Deste modo, buscando explorar os caminhos propostos por uma
narrativa fabular este capítulo divide-se em dois subcapítulos: 2.1
Ludus, composto por vinte (20) obras e 2.2 Dominus, composto por seis (06)
obras. A seguir apresento um panorama em tamanho reduzido dessas obras que
posteriormente virão ampliadas, acompanhadas de suas respectivas análises.

2.1 LUDUS

Obras inclusas nesse subcapítulo em tamanho reduzido:

Fig. 05 – Cavalgada I, 2010, Fig. 06 - Cavalgada II, 2010, Fig. 08 - Bolhas, 2012,
lápis de cor aquarela, caneta nanquim, caneta e acrílica acrílica e nanquim sobre
e colagem sobre papel, sobre papel, 30 x 30 cm. papel, 30 x 30 cm.
30 x 30 cm.

8
Fig. 10 - Teatralidade, 2010, Fig. 11- Leve-me, 2010, Fig. 12- Trapezistas,
nanquim, caneta e acrílica nanquim, acrílica e caneta 2010, caneta, acrílica
sobre papel, 30 x 30 cm. sobre papel, 30 x 30 cm. e nanquim sobre papel,
30 x 15 cm.

Fig. 13 - Sabor de infância, Fig. 14 - Balões, 2010, Fig. 15 - Vendedora de


2010, colagem, nanquim, colagem, nanquim, acrílica sonhos, 2012, nanquim
acrílica e caneta sobre e caneta sobre papel, e acrílica sobre papel,
papel, 12 x 18 cm. 17 x 17 cm. 30 x 25 cm.

Fig. 16 - A Equilibrista, 2010, Fig. 17 - O Descanso da Fig. 18 - Passeio, 2010,


nanquim, caneta e acrílica Bailarina, 2010, nanquim, spray purpurina, acrílica
sobre papel, 30 x 30 cm. caneta e acrílica sobre e caneta sobre tela,
papel, 30 x 30 cm. 100 x 80 cm.

9
Fig. 19- Contato, 2011, Fig. 20 - Festa do Chá, 2011, Fig. 21-Tesouro, 2009,
caneta posca sobre papel, caneta posca sobre papel, lápis de cor, caneta posca
30 x 30 cm. 30 x 30 cm. e esferográfica sobre
papel, 15 x 12,4 cm.

Fig. 22 - Aqui, 2011, Fig. 23- Éden, 2010, nanquim, Fig. 24 - No Jardim, 2010,
caneta posca sobre acrílica e caneta sobre nanquim, caneta e acrílica
papel, 21 x 29,4 cm. papel, 17 x 17 cm. sobre papel, 22 x 22 cm.

Fig. 25 - Cubos Mágicos, 2010, naquim, Fig. 26 - Nas Ondas, 2010,


acrílica, caneta e colagem sobre papel, acrílica, nanquim e esferográfica
16,50 x 12,5 cm. sobre papel, 30 x 30 cm.

10
2.2 DOMINUS

Obras inclusas nesse subcapítulo em tamanho reduzido:

Fig. 31 - A imperatriz, Fig. 32 - Temporalidade, Fig. 33 - Degusta-me,


2011, PVA e nanquim 2011, PVA e nanquim 2011, PVA e nanquim sobre
sobre papel, 21 x 29,4 cm. sobre papel, 21 x 29, 4 cm. papel, 21 x 29, 4 cm.

Fig. 34 - Rabbit, 2012, Fig. 35 - Ops, 2011, Fig. 36- Toque, 2011,
acrílica, PVA e colagem tinta acrílica sobre acrílica sobre tela,
sobre lona, 40 x 40 cm. tela, 60 x 80 cm. 70 x 70 cm.

11
2.1 LUDUS

Este subcapítulo, composto por vinte (20) obras, proporciona um


visionamento dicotômico que transita pelos caminhos díspares do imaginário
lúdico infantil e pelas contradições metafóricas e sensuais da libido humana
adulta, gerando um discurso metafórico, como recordações nostálgicas de caráter
poético que suscita uma abordagem fantástica, na qual a magia da atmosfera
circense possibilita a comunicação onírica entre o ego infantil e o adulto de forma
dramática, teatral e lúdica, num jogo de real X imaginário, semelhante ao processo
de desenvolvimento lúdico dos devaneios da infância. A respeito deste assunto
Gaston Bachelard diz:

Por alguns de seus traços, a infância dura a vida inteira. É ela que
vem animar amplos setores da vida adulta. Primeiro, a infância
nunca abandona as suas moradas noturnas. Muitas vezes uma
criança vem velar o nosso sono. Mas também na vida desperta,
quando o devaneio trabalha sobre a nossa história, a infância que
vive em nós traz o seu benefício. É preciso viver, por vezes é muito
bom viver com a criança que fomos. Isso nos dá uma consciência
de raiz. Toda a árvore do ser se reconforta. Os poetas nos
ajudarão a reencontrar em nós essa infância viva, essa infância
permanente, durável, imóvel. (BACHELARD, 2001, pp. 20 - 21).

Na proposta de uma ludicidade onírica, a série Ludus desponta da


conexão com a criança que já fomos no passado, com o adulto que nos tornamos
no presente. A partir de devaneios poéticos, a infância e suas relações cognitivas,
irrompem a realidade como um período que pode durar a vida toda, deixando seus
rastros imaginativos.
Trabalhando ainda questões relacionadas ao processo do
desenvolvimento lúdico infantil, o autor e psicanalista Donald Winnicot expõe em

12
seu livro “O brincar e a Realidade” (1975) que a brincadeira faz parte do cotidiano
da criança, sendo esta atividade fundamental para seu desenvolvimento físico,
motor e principalmente psicológico, com o qual o uso do lúdico correlaciona-se
intimamente para que este desenvolvimento ocorra de modo sadio, possibilitando
à criança fantasiar e sonhar, interferindo diretamente em sua realidade psíquica
pessoal e contribuindo para a constituição viva de sua personalidade individual.
Na arte criamos também através do nosso fluxo psicológico, onde muitas vezes o
processo criativo pode se assemelhar a uma brincadeira ou jogo, que transforma
as simples linhas desenhadas em esboço de papel, como os apresentados nas
páginas 133 à 136.

Presume-se aqui que a tarefa de aceitação da realidade nunca é


completada, que nenhum ser humano está livre da tensão de
relacionar a realidade interna e externa, e que o alívio dessa
tensão é proporcionado por uma área intermediária de experiência
(cf. Riviere, 1936) que não é contestada (artes, religião, etc). Essa
área intermediária está em continuidade direta com a área do
brincar da criança pequena que se "perde" no brincar.
(WINNICOT, 1975, pp. 28 - 29).

Tangenciando realidades psíquicas à realidade social relaciono os


devaneios lúdicos infantis, do brincar e fantasiar, ao procedimento de libertação
artística da mente adulta, em obras como "Cavalgada I" (fig. 05), "Cavalgada II"
(fig. 06), "Leve-me" (fig. 11), "Trapezistas" (fig. 12), "Sabor de infância" (fig. 13),
"Balões" (fig. 14), "A Equilibrista" (fig. 16), "Passeio" (fig. 18), "Contato"
(fig.19), "Festa do Chá" (fig. 20), "Tesouro" (fig. 21), "Éden" (fig. 23), "No Jardim"
(fig. 24), e "Cubos Mágicos" (fig. 25). Numa espécie de brincadeira com situações
inerentes de dois universos díspares, o adulto e o infantil, os assuntos abordados
neste subcapítulo configuram-se a partir da distorção da realidade, percebida no
decorrer da maturidade, gerando uma narrativa que traz do circo e seus

13
personagens uma existência jocosa e satírica, próximas à minha produção visual
que mantém esse elo de ligação entre a brincadeira e a “sátira”.
Deste modo, caminhando pelas trilhas do lúdico e do satírico, com a
proposta circense, uma outra vertente referencial se faz presente: a Commedia
dell’arte4.
Representando uma “linguagem” teatral improvisada e satírica, a
Commedia dell’arte se opunha aos ditames da comédia erudita da época e, com
espírito artístico, de grupos itinerantes mambembes, apresentavam-se nas ruas e
praças, dentro carroças ou palcos improvisados. Essa forma de apresentação é
referenciada até os dias atuais, a exemplo dos circos familiares apresentados nas
cidades do interior de São Paulo, como o “Stankowich” e o “Espacial”, que
serviram de inspiração nostálgica para minhas obras.
Num misto de teatralidade e fantasia, apresentado por figuras femininas
que aludem aos trejeitos e vestimentas de personagens clássicos como o
Arlequim e a Colombina, com suas roupas em retalhos e delicadeza travessa,
a Commedia dell’arte, surge nesta série Ludus como forte referencial para as
narrativas visuais aqui apresentadas.
Ao longo dos anos a Commedia dell’arte influenciou-se e moldou-se a
partir de uma série de temas, sendo eles o “[...] carnaval, com os cortejos dos
mascarados, as apresentações acrobáticas e as pantomimas” (BERTHOLD, 2000
apud VIEIRA, 2005, p. 22), o maior propulsor da ideologia lúdica deste território
dramático. Tendo início nas Saturnais5 romanas, festas surgidas como forma de
expressão, que situam-se “[...] nas fronteiras entre a arte e a vida”. (VIEIRA, op.
Cit., p. 22).

4 iniciada na Itália no século XV e desenvolvida na França, mantendo-se popular até o século XVIII
- uma forma de teatro improvisado renascentista que rompeu com diversos parâmetros de seu
tempo.
5 “As saturnais realizavam-se [...] no solstício de inverno, entre 21 e 25 de dezembro. O

homenageado era Saturno [...]. Enquanto durasse a festa os escravos não podiam ser punidos e
seus senhores lhes dispensavam um tratamento mais humano”. (PORTINARI, 1989, p. 36).

14
O carnaval não era uma forma artística de espetáculo teatral, era o
triunfo da “liberação temporária” do regime vigente. Ocupava um
importante lugar na vida do povo e era concebido como uma fuga
provisória do cotidiano medieval. Durante as celebrações
carnavalescas, que aconteciam nos últimos dias que precediam a
quaresma, mudavam-se as concepções de mundo e sua forma de
contemplação ficando o homem livre para as alegres distrações
carnavalescas. (BAKHTIN, 2002; RODRIGUES, 1999 apud
VIEIRA, 2005, pp. 22 - 23).

Assim, embriagados por esta alegria profana carnavalesca da qual a


Commedia dell”arte se apropriou, meus trabalhos aqui apresentados carregam
consigo algumas características mambembes, expressas por figuras femininas
que aludem a seus trejeitos e vestimentas. Personagens clássicos da Commedia
dell’arte, como o Arlequim e a Colombina, com suas roupas em retalhos e
delicadeza travessa, surgem num misto de teatralidade e fantasia.
É neste espirito despojado, reunido numa apresentação teatral
libidinosa, dissimulada e satírica, que potencializaram-se os espetáculos burlescos
dos cabarés franceses da Belle Époque e que também orientam as linhas
compositivas de minhas obras. Nelas, lindas dançarinas esbanjavam sensualidade
e eroticidade dançando o famoso cancan, uma dança provocativa e altamente
acrobática que despertava a imaginação frente às saias esvoaçantes, corpetes e
pernas torneadas, acompanhados de meias e ligas rendadas.
Neste ambiente sensual e exótico alguns artistas da
contemporaneidade, entre os quais me incluo, inspirados pela Belle Époque
parisiense, (final do século XIX), deixaram-se encantar e se influenciar, seja pela
representatividade peculiar de luxúria e desejo ou pelo espírito burlesco e caricato
da Commédia dell’arte, que se refletia nos cabarés e nas abordagens artísticas de
expoentes poéticos como, por exemplo, em Toulouse Lautrec, em Alphonse
Mucha e em Gustav Klimt.

15
Toulouse (fig. 01), pintor pós-impressionista, destaca-se por seus
cartazes Art Nouveau, de onde recebi mais influência, pelo emprego das formas
estilizadas e suas linhas ágeis e certeiras, numa narrativa hábil e particularmente
a frente de seu tempo, sintetizando a pintura em pinceladas essenciais. Já Mucha
(fig. 02) trabalha a forma detalhadamente em arabescos complexos e sinuosos,
criando uma atmosfera peculiar e delicada, compondo intricadas obras repletas de
elementos ornamentais, referenciados em meus trabalhos a partir de longas e
decorativas linhas que complementam os aspectos compositivos, no intento de
gerar leveza e graça.
O austríaco Klimt (fig. 03), distingue-se por um ambiente ricamente
trabalhado na poética onírica do seu imaginário, com técnicas diferenciadas e
eximiamente aplicadas, na produção de uma poética sensualmente singular. Ele
apresenta em suas obras, entre texturas e ornamentos dourados vivos, o
refinamento e elegância, de figuras geralmente femininas que se completam em
um ambiente complexo e caoticamente harmonioso. Figuras alongadas e
ricamente adornadas surgem como expoentes máximos de beleza e exotismo, em
meio às flores, espirais e corpos contorcidos ou amontoados como numa orgia
dionisíaca. Suas influências podem ser notadas em minhas obras por meio dos
tons metálicos em dourado e prata, bem como pelo detalhamento rebuscado,
conferido, muitas vezes, pela apropriação plástica do papel em relação ao
desenho por mim aplicado.

16
Fig. 01- Toulouse Lautrec, Fig. 02- Alphonse Mucha, Fig. 03- Gustav Klimt,
Jane Avril, Jardim de Paris, As artes: Dança, 1898, Judith II (Salomé),
1893, litografia, litografia colorida, 1909, óleo sobre tela,
88,9 x 124,5 cm. 60 x 38 cm. 178 x 46 cm.

Consolidando-se como um estilo representativo, o burlesco apresenta-


se em minhas obras não apenas nas abordagens sensuais, mas também nas
organizações estéticas relacionadas ao espírito circense, a exemplo de suas
acrobacias e peripécias mambembes, de luzes, paetês e brilhos, condensados em
um universo onírico e encantador, ricamente povoado por seres exóticos e
interessantes, que esbanjam elasticidade e graça perante um público ávido por
diversão.
Exalando o misticismo exótico do circo, as obras que compõem este
subcapítulo consideram as figuras míticas circenses, desmistificadas e abertas à
apreciação, compactuando com toda luminosidade dourada e pouco confortável
das arquibancadas rústicas e mal montadas, erguidas como um palacete
mambembe, o que resgata uma narrativa de forma onírica e nostálgica.
Nesse ambiente saudosista alguns elementos foram inseridos em meus
trabalhos com a intenção de causar a sensação ambígua de um universo que,
embora belo e reluzente, mostra-se frágil e solitário numa composição lúdica,
combinando várias potencialidades da nostalgia remanescente infantil, com as
hibridizações possíveis da Arte Lowbrow e da contemporaneidade.

17
As dicotomias contemporâneas, como assuntos divergentes,
completam um sentido peculiar às obras, a exemplo da sensualidade inocente das
personagens apresentadas ao longo deste subcapítulo, ou ainda, da miscigenação
de cenários e gêneros artísticos que relacionam-se na sensibilidade absurda do
fantástico e nos paradigmas do mundo real. Esses elementos integrando-se a uma
retórica híbrida, que parte da nostalgia da infância, do circo, da ilustração, do
grafite, dos joguetes adultos e apoiam-se na materialização dos conceitos
trabalhados acima.
Nestes termos, a justaposição de temas afastados por uma moralidade
controversa, engendra-se na construção de um discurso complexo e contaminado
por linguagens, que se potencializam na sustentação de uma poética ambivalente
e instigante, de modo que sua composição dá origem a mundos díspares e
impossíveis, materializados mediante os parâmetros antagônicos e absurdos
dessa Arte Lowbrow, aplicados às obras deste subcapítulo, na substituição do
absurdo lógico dos homens, pela loucura compactuada.
Podemos ainda encontrar na Arte Pop (a partir dos anos 60) e na
Pattern Painting ou Pattern & Decoration (meados dos anos 70 e 80), reflexos de
uma também sociedade contaminada pela loucura, porém diferenciada em sua
essência, como é o caso da “esquizofrenia” coletiva e consumista dos impulsos e
facilidades de seu respectivo período.
Consequência do período pós-guerra e do domínio dos meios de
comunicação de massa, bem como do desenvolvimento publicitário, um vasto
desejo de consumo e, de produção de bens materiais, se apossou da população
moderna a partir dos anos 60. As “[...] rápidas mudanças no estilo e nas
propensões do mercado pós-guerra eram cuidadosamente projetadas através da
propaganda [...]” (McCARTHY, 2002, pp. 7-8), voltando a atenção dos artistas “[...]
para o ambiente cultura popular e os meios de comunicação de massa”. (Ibid.,
p.10).
A Arte Pop apropriou-se de praticamente tudo que se encontrava à
disposição popular, sendo a forma de um anúncio “[...] uma de suas primeiras - e

18
talvez mais famosas - imagens [...] a colagem de Richard Hamilton (fig. 04) “O que
exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?” [...]”.
(MAcCARTHY, 2002, p. 6). Nela o artista se utilizou basicamente de recortes de
anúncios de revistas populares, formatando um ambiente retórico e alegórico,
perante os novos ideais da sociedade, que se montava principalmente nos
Estados Unidos e Inglaterra.

Fig. 04 - Richard Hamilton, O que exatamente torna


os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?
1956, colagem, 26 x 25 cm.

Desta forma, os meios de comunicação também proporcionaram à Arte


Pop algo que ia além do subsídio temático, pois enveredava-se para os meios de
produção artísticas, gerando obras produzidas em série, impressões rápidas como
as tipografias e, ainda, se utilizava de maquinaria industrial a fim de manter uma
narrativa híbrida e retórica de equivalência mercadológica, próxima da linha de
montagem, além de substanciar o kitsch, pela utilização de objetos vulgares,
baratos e de “mau gosto”, que se destinavam ao consumo de massa.
Através destes meios a Arte Pop valorizava questões cotidianas banais,
potencializadas em escalas agigantadas ou ainda com base na repetição serial,

19
oferecendo e disponibilizando, duas décadas depois, material e inspirações ao
Surrealismo Pop ou Arte Lowbrow. Surgindo em meados da década de 70 nos
Estados Unidos, mais precisamente em Los Angeles na Califórnia, o Surrealismo Pop
se fez cheio de contradições perante uma sociedade conformada e tomada
pelo kitsch, instaurado pela Arte Pop, que explorava referenciais usuais da
publicidade, propaganda, moda e cultura underground geral.
Esta série, apresenta também, referenciais da Pattern Painting ou na
Pattern & Decoration, que ficou conhecida como P&D no final dos anos 70 e início
dos anos 80, com o procedimento de utilização de tecidos e papéis decorados,
recortados e colados sobre o suporte da pintura. Essa arte é representada por
artistas americanos como Robert Kushner e Kim MacConell, pela canadense
Miriam Schapiro e pelo alemão Sigmar Polke, cuja obra Pattern “Arco”, data de
1965, entre outros. A P&D se opunha às manifestações da Arte Minimal e da
pintura analítica, pois possuíam forte riqueza de cores,

[...] gosto pelo ornamento, proscrito [...] e [...] uma audaciosa fusão
dos aparelhos formais figurativo e abstracto, assim como o
provocante recurso aos motivos folclóricos utilizados na
estampagem comercial de tecidos [...]. (HONNEF, 1992, p. 62).

A Pattern Painting, teve como “padrinhos”

[...] a arte islâmica do Irão, com as suas magníficas cores e a sua


complicada variedade de formas cinzeladas, os motivos eróticos e
paisagísticos da arte do Extremo Oriente, os azulejos mexicanos, a
arquitetura mourisca, a cerâmica marroquina e as primitivas
cobertas acolchoadas americanas, assim como as Combine
Paintings de Robert Rauschenberg. E, ainda, a Pop Art com sua
preferência pelo trivial, assim como pelo mundo de formas
constituído por motivos de tecidos impressos e papéis de parede
de fabrico industrial. “[...] elementos que vão “buscar tanto às

20
“prateleiras superiores” como às “inferiores” da história da cultura,
às altas, como às baixas esferas, amalgamando-os em fascinantes
criações [...]. (HONNEF, 1992, p. 68).

Nas similaridades conceituais, a exemplo do ecletismo e do pluralismo,


a P&D encaixa-se neste subcapítulo na combinação das narrativas Lowbrow, no
jogo compositivo das obras, na associação das personagens com os papéis
estampados e padronizados de fábrica (Pattern), numa configuração
contraditoriamente singular, surgindo como um jogo sinestésico que apoia-se na
diversidade cognitiva, material e técnica, desenvolvendo-se na brincadeira
burlesca e onírica, construindo um discurso parabolar diante de uma narrativa
deturpada e ambígua, na qual a organização se dá na mistura do brilho dos
holofotes, na purpurina metalizada das roupas de trapezistas e bailarinas,
aguçando a nostalgia dos sentidos.

A brincadeira é extremamente excitante. Compreenda-se que é


excitante não primariamente porque os instintos se acham
envolvidos; isso está implícito. A importância do brincar é sempre a
precariedade do interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a
experiência de controle de objetos reais. É a precariedade da
própria magia, magia que se origina na intimidade, num
relacionamento que está sendo descoberto como digno de
confiança. (WINNICOTT, 1975, p. 71).

Partindo desta magia de descobertas e experimentações acerca do real


e do imaginário, citada por Donald W. Winnicott (1975), as obras do subcapítulo
Ludus tratam de uma atmosfera burlesca, num misto de boemia típica das noites
de cabaré e o lirismo poético circense, considerando miscigenações nas quais o
brincar infantil e adulto se completam em alegorias remanescentes,

21
proporcionando uma narrativa na qual a brincadeira ultrapassa os liames do
divertir-se, simplesmente, atingindo as esferas do sonhar, imaginar e fantasiar,
devolvendo-se sob todos os privilégios da imaginação tardia.

A memória é um campo de ruínas psicológicas, um amontoado de


recordações. Toda a nossa infância está por ser reimaginada. Ao
reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-la na própria
vida dos nossos devaneios de criança solitária. (BACHELARD,
2001, p. 94).

Fig. 05 – Cavalgada I, 2010, lápis aquarela, caneta e colagem


sobre papel estampado, 30 x 30 cm.

22
Nestas duas obras as percepções infantis regressam criando uma narrativa lúdica
e teatral, que parte das encenações mambembes de trupes circenses itinerantes e
familiares, justapondo-se aos estilos undergrounds como a ilustração e o mangá:
transformando a figura da parábola num visionamento Lowbrow.

Fig. 06 - Cavalgada II, 2010, nanquim, caneta e acrílica


sobre papel estampado, 30 x 30 cm.

Analisando suas estruturas compositivas (figs. 05 e 06), alguns


elementos podem ser destacados como articuladores narrativos, manifestos em
situações metafóricas e alegóricas, como as fantasias de cavalo que

23
proporcionaram às obras uma potência lúdica, pautada nos parques de diversão
com seus luminosos e musicais carrosséis.
As questões da materialidade plástica entram nesse jogo na obra
“Cavalgada I”, por exemplo, me utilizei de uma técnica mista - lápis de cor,
nanquim e colagem sobre papel - por proporcionar altas vibrações pictóricas e
cromáticas, em oposição ao sóbrio, porém luminoso e metálico nanquim da obra
“Cavalga II”, que estabelecer uma conexão com a luminosidade particular do
universo circense e itinerante dos pequenos parques de diversão.
Reluzente e dourado, a obra “Cavalgada I” (fig. 05) apresenta em sua
composição um coração, que parece dissimular o sentido humano da dor, na
proposição de uma relação mecânica e artificial, desestruturada pelo sangue que
pinga da fisga provocada pelo anzol, dramatizando uma cena lúdica e onírica,
porém passional e sutilmente brutal. A jocosidade inocente da bailarina e seu
cavalo teatral, neutralizam a cena a partir da oposição de forças pungentes que se
equilibram num discurso Lowbrow, no qual os opostos se completam.
Opostamente à tal abordagem passional da obra “Cavalgada II” (fig. 06)
apresenta um discurso puramente onírico, a personagem posta-se graciosa e
teatral ao centro da obra, encantada com as estrelas que pendem da lateral
superior do papel, num jogo lúdico e inocente de pura satisfação, representada por
sua expressão faceira e jubilosa, conferindo à obra uma sensação de bem estar e
simpatia.
Trabalhando questões semelhantes, relacionadas ao onírico e aos
jogos teatrais circenses, as obras “Bolhas” (fig. 08), “Teatralidade” (fig. 10), “Leve-
me” (fig. 11) e “Trapezistas” (fig. 12), abaixo elencadas, propõem um discurso
baseado no circo e suas possibilidades mágicas e fantásticas, potencializadas na
alegoria da encenação.
Claramente lúdicas e circenses essas obras surgem num misto de
sensações inerentes à nostalgia infantil. Abordadas nas reminiscências pueris,
com devaneios que nos colocam em contato com a nossa criança interior - a “[...]
imagem poética testemunha uma alma que descobre o seu mundo, o mundo onde

24
ela gostaria de viver, onde ela é digna de viver.” (BACHELARD, 2001, p. 15) -,
expressos em elementos particulares do universo circense, com suas trapezistas e
bailarinas exóticas e mágicas.
Num ambiente encantador, esquematizado nas composições gráficas
preestabelecidas pelos suportes de papéis estampados, uma espécie de
hibridismo surge da interação entre figura/fundo das obras acima citadas. Numa
narrativa complementar os detalhes do papel completam o discurso das figuras
por mim criadas, potencializando uma narrativa retórica de personagens teatrais e
circenses, que exalam delicadeza e fantasia.
Podemos citar aqui muitos artistas que trabalharam com esse mesmo
procedimento, partindo de padronagens prontas, já preestabelecidas, sob o
conceito Pattern Decoration já citado. Sustentado pela concepção de que a arte
devia apropriar-se dos modelos pictóricos pré-fabricados, subordinando seu
significado e significante a uma recodificação visual, essa arte buscou uma
superfície “legítima”, em vez de criar uma ilusão. (HONNEF, 1992, p. 68).
Em muitas obras dos anos 80, como por exemplo nas de Sigmar Polke
e Robert Kushner (fig. 07), podemos observar os tecidos estampados como
suporte de suas pinturas.

Fig. 07 - Robert Kushner, Sail Away, 1983, acrílica sobre


algodão e tecidos mistos, 220,98 x 523,24 cm.

25
Fig. 08 - Bolhas, 2012, acrílica sobre papel estampado, 30 x 30 cm.

Referenciadas principalmente no circo e suas potencialidades, as obras


(figs. 05, 06 e 08) surgem como exponenciais poéticos da nostalgia materializada,
trabalhada plasticamente, sendo o Cirque du Soleil (fig. 09) o principal articulador
cênico de tal configuração formal. Sua ambientação teatral, estonteante, encanta
os olhos e o coração, de modo que não é possível assistir a um espetáculo sem
que os pensamentos voem e os sentidos se dispersem no show lírico que se
apresenta, num misto de realidade e fantasia, como num acontecimento
psicodélico, repleto de efeitos especiais, cativando e inspirando as mais loucas
criações.

26
Fig. 09 - Cirque du Soleil, 2013.
Fonte: http://www.agendaculturel.fr/cirque-du-soleil

A riqueza cognitiva do Cirque du Soleil (fig. 09) mescla magistralmente


elementos das mais variadas culturas, traduzindo em cores, luzes, sons e
vibrações, potências múltiplas que se expandem na cognição do espectador,
gerando momentos catárticos; o que neste subcapítulo, assim como em outros,
surgem relacionados da pluralidade cognitiva e sinestésica do circo.
Numa atmosfera cenográfica e ilusória, na qual peixes voadores, falsas
ondas e bolhas flutuantes, recheadas com peixinhos dourados que se combinam
às narrativas teatrais, em relações inebriantes, a obra “Bolhas” (fig. 08) se
configura abordando a “linguagem” oriental do mangá, assim como as demais
obras em questão (figs. 05 à 06 e 08), porém enfatizam as cores suntuosas e
sublimes, que codificam uma estamparia referenciada nas tatuagens orientais,
mediante o ornamento floral da roupa vestida pela personagem.
Proporcionando uma narrativa ficcional, alguns elementos surgem em
“Bolhas” (fig. 08) afim de reforçar sua potência imagética e simbólica, a exemplo
dos peixes voadores que se cruzam nas costas da personagem, como se a
acariciassem.
Símbolo oriental “[...] positivo, amplamente ligado à fecundidade,
felicidade sexual e ao falo [...]” (TRESIDDER, 2003, p. 265), “[...] emblema de

27
coragem, virilidade e erudição acadêmica na China e de fortaleza samurai no
Japão [...]” (TRESIDDER, 2003, p. 68), os peixes surgem na obra “Bolhas” fora da
simbologia oriental que lhes é própria, sendo aqui representados quase de
maneira “clownesca 6 ”. Acariciam o corpo da jovem em um jogo delicado e
sensual, típico dos gatos numa variação píscea, propondo-nos uma narrativa
ilusionista e jocosa, própria da Arte Lowbrow.
Estes peixes acabam ocasionando uma significação irônica, que
misturam clowns/peixes/gatos numa representação lúdica e teatral.
Surgindo como anéis ou bambolês e completando a atmosfera onírica
da obra, com a evanescência e ludicidade das brincadeiras infantis de bolinhas de
sabão, as “bolhas gráficas” mesclam a efemeridade do momento presenciado,
com a sutileza dourada dos peixes reclusos em suas formas esféricas e
herméticas, de modo a aprisioná-los em pequenos aquários flutuantes. Estão
prestes a estourar ao se chocar contra algum obstáculo, a repetição destas formas
aneladas conferem ritmo e unidade à composição da obra (fig. 08).
O mesmo se dá no trabalho a seguir, porém suas linhas circulares e
gráficas libertam a personagem (fig. 10).
Sentada em elementos Art Nouveau, dispostos graficamente no papel
estampado, com características que simulam um ambiente antigo e levemente
desgastado, a cena se configura com graça e requinte diante de um ambiente que
lembra um clássico e luxuoso teatro, no qual a personagem da obra “Teatralidade”
(fig. 10) surge imponente e alegórica sob um mar cênico, composto por ondas
prateadas e douradas que se misturam à tipologia gráfica do papel.
No mar fake de ondas metálicas, a alusão da teatralidade lírica se
completa na personagem vestida de sereia, sentada nas linhas e arabescos Art
Nouveau que pendem da parte superior do papel. O discurso teatral se configura
nos elementos gráficos preestabelecidos do papel, que conferem à obra o
ambiente dramático dos palcos da Belle Époque europeia, propondo uma narrativa

6 Que se refere ou tem algo a ver com clown, com palhaço, apalhaçado.

28
como na obra “Bolhas” (fig. 08), que se completa com as intervenções pictóricas
composicionais do suporte industrializado.

Fig. 10 - Teatralidade, 2010, nanquim e acrílica


sobre papel estampado, 30 X 30 cm.

Numa sintaxe visual, baseada em suas linhas e cores envelhecidas, a


obra “Teatralidade” (fig. 10) apresenta harmonia e dinâmica, devido ao fundo
totalmente geometrizado numa composição livre e descompromissada, que
transita confiante pelos caminhos do design e das culturas populares, como o
teatro mambembe da Commedia dell’arte ou dos cabarés parisienses.
Essa obra propõe, ainda, uma abordagem levemente passional,
entendendo-se como passional algo apaixonado, pois a personagem sereia e atriz
brinca com os peixes cênicos amarrados aos arabescos, semelhante àquele que

29
ela se encontra sentada, ao passo que o coração vermelho e pulsante pende do
outro lado do “palco”, amarrado por uma fina linha como uma isca que pode ser
interpretada num sonho de amar e deixar-se ser amada: uma proposta de amor
ideal, onde o coração apresenta-se sem anzol.
Do mesmo modo que a narrativa da obra “Teatralidade” se completa no
fundo geométrico, proporcionado pelas características do papel, a obra “Leve-me”
(fig. 11) manifesta-se através dos pássaros estampados no papel, num discurso
também teatral e circense, porém de maneira mais fantástica, no devaneio dos
sonhos infantis oníricos, de poder voar segurando apenas um balão de gás hélio.

Fig. 11 - Leve-me, 2010, nanquim, acrílica e caneta


sobre papel estampado, 30 X 30 cm.

30
Segurando uma frágil linha, presa a um coração alado, a personagem
da obra “Leve-me” (fig. 11) apresenta-se faceira e descomprometida, flutuando
graças às asas do coração que embora pequeno é impulsionado pelo céu artificial,
contendo nuvens cênicas e pássaros gráficos numa abordagem compositiva, que
acompanha praticamente todas as obras que compõem este subcapítulo, nas
quais, a relação figura/fundo acontece devido à composição gráfica do papel
estampado.
No céu cênico, repleto de pássaros estampados, pequenas chaves
aladas, douradas e prateadas pendem presas por essas frágeis linhas junto com
algumas estrelas. Embora possuam asas as chaves não voam como o coração,
ficando privadas de alcançá-lo em sua viagem aérea. Num discurso protetor, a
fechadura do coração aparece a fim de preservá-lo das dores e dissabores dos
sentimentos, a personagem prende-se a ele a fim de manter-se salva. Confortável
em sua posição divagadora e, absente dos sentimentos passionais, a personagem
coteja ser como a Colombina na Commedia dell’arte, que afasta-se tanto do
Pierrot quanto do Arlequim, até entender seus sentimentos.
Como dito anteriormente, os elementos gráficos dos papéis decorados
proporcionam todo o discurso composicional das obras neste subcapítulo. Com a
obra “Trapezistas” (fig. 12) não é diferente, trabalhando conjuntamente com o
papel estampado e as figuras por mim concebidas a estrutura pictórica dessa obra
surge delicada e complexa, mediante personagens que se enroscam
graciosamente por entre os ramos gráficos do papel, num diálogo jocoso e
prazeroso no qual a influência direta do circo se percebe a partir do próprio título
“Trapezistas”, de modo que a potência da obra se instaura mediante a elegância
das personagens que brincam de colher borboletas.
Meio arlequinas ou colombinas as personagens apresentadas na obra
“Trapezistas” (fig. 12), assim como as demais figuras femininas apresentadas nas
obras deste subcapítulo, trazem em suas vestimentas padronizadas em losangos
dourados e prateados uma referência à Commedia dell’arte, mediante o figurino
típico destes personagens, Arlequim e Colombina.

31
A roupa branca do pobre Arlequim, de tanto ser consertada com
remendos de cores diferentes, cada vez mais numerosos, acabou
desaparecendo debaixo dos remendos... que foram sendo
dispostos em combinações simétricas, em quadrados, trapézios e
losangos. (SCALA, 2003, p. 25).

Fig. 12 - Trapezistas, 2010, nanquim, acrílica e caneta sobre


papel estampado, 30 x 15 cm. Exposta na Fresh Produce,
Galeria Anno Domini, California/CA.

32
Além das vestimentas, observamos outras características intrínsecas do
Arlequim e da Colombina, como a graciosidade, a agilidade corporal e a
sensualidade infantil, estabelecendo uma conexão com a obra “Trapezistas” (fig.
12), devido a essas mesmas características analisadas. Essa configuração lúdica
da sensualidade pode instigar o imaginário do espectador, diante de suas
garbosas acrobacias e contorcionismos aéreos.

Fig. 13 - Sabor de infância, 2010, colagem, nanquim, acrílica


e caneta sobre papel estampado, 12 x 18 cm. Exposta na
Fresh Produce, Galeria Anno Domini, California/CA.

33
Brincando com esse universo da idade adulta, a partir de personagens
que potencializam uma narração com distinções infantis, as três obras a seguir
“Sabor de Infância (fig. 13), “Balões” (fig. 14) e “Vendedora de Sonhos” (fig. 15),
acomodam-se em gestos infantis expressos por corpos adultos que proporcionam
uma narrativa enunciada mediante a nostalgia dos devaneios da infância,
anteriormente tocados ao longo deste subcapítulo, relacionando-se com as
questões da lembrança, refletidas em imagens “distorcidas” pela suposta
maturidade alcançada. Sobre tais imagens

[...] há um domínio em que a distinção se torna difícil, é o domínio


das recordações da infância, o domínio das imagens amadas,
guardadas, desde a infância, na memória. Essas lembranças que
vivem pela imagem, na virtude de imagem, tornam-se, em certas
horas de nossa vida, particularmente no tempo da idade
apaziguada, a origem e a matéria de um devaneio bastante
complexo: a memória sonha, o devaneio lembra. (BACHELARD,
2001, p. 20).

Assim, apropriando-me dos conceitos de devaneios de Bachelard,


desperto a proposta de uma relação poética a partir de corpos parcialmente
exibidos, num fundo graficamente concebido pelo papel decorado que simula um
papel de parede desgastado e antigo.
Na intenção de aludir a um tempo elegíaco mostro aqui suas marcas
positivas e negativas, com a recordação cromática dos padrões circenses das
lonas, seus figurinos e cenários associados à psique adulta.

34
Fig. 14 - Balões, 2010, colagem, nanquim, acrílica e caneta sobre
papel estampado, 17 x 17 cm. Exposta na Fresch Produce,
Galeria Anno Domini, California/CA.

Semelhantes em suas características estéticas e poéticas, as obras


“Sabor de infância” (fig. 13) e “Balões” (fig. 14) exibem em suas composições uma
figura feminina, que propõem um discurso particularmente inocente e lúdico. Cada
uma dessas obras revela um elemento infantil, por exemplo, o urso de pelúcia de
“Sabor de infância” e dos balões metálicos potencializam discursos metafóricos e
nostálgicos das obras.
“Clownescas”, as personagens destas obras (figs. 13 e 14) surgem
recodificando a significação da ludicidade infantil. No palhaço, a condição sublime
e catalizadora do universo circense, dialoga com o discurso único e contraditório,

35
que intermeia o “[...] sério e o risível, o trágico e cômico, a morte e o riso,
esfacelando os limites entre aparentes oposições [...]”. (BOLOGNESI, 2003, p. 8).
Vestimentas icônicas, compostas com pequenos pássaros e pompons,
potencializam a narrativa divertida e circense proposta pelos palhaços, pelas
mangas bufantes que nos lembram gigantescas pipocas e divertem-se e
confortando-se diante da nostalgia, no intuito de saciar e satisfazer os sentimentos
adultos, carentes de diversão inocente, instigando o despertar do “circo interno”
que podemos ter dentro de nós.
Contrapondo-se à narrativa pura e onírica das obras anteriores (figs. 13
e 14) a obra “Vendedora de Sonhos” (fig. 15) mostra-se como uma composição na
qual o referencial estético do mangá e das pin-ups são facilmente identificados em
vestimentas jocosas, como o de uma Arlequina ou Colombina, que apresenta um
corpo idealizado, estimulando o imaginário erótico mediante a potencialização
sensorial das relações sinestésicas.
O título da obra (fig. 15) propõe uma narrativa retórica e subjetiva, que
se orienta diante da comercialização dos sonhos, proporcionando e montando
uma compreensão que vai além dos símbolos e ícones que nela se apresentam
pictoricamente, expandindo-se para a essência lúdica e particular do espectador,
de modo a ligar-se ao desejo material, psicológico ou erótico destes sonhos,
ampliando as cognições para o que Pierce postulava como teoria do crescimento
contínuo no universo e na mente humana. “[...] “O universo está em expansão”,
onde mais poderia ele crescer senão na cabeça dos homens?”. (SANTAELLA
apud PIERCE, 2004, p. 25).
Composta por uma figura feminina central e vestida com trajes
circenses, a obra apresenta uma personagem que segura uma rosa vermelha com
a mão direita, enroscando-se em uma linha semelhante a uma nota musical. Ela
também apresenta uma dinâmica gráfica que se aproxima da sensualidade, porém
sem deixar de valer-se da estética nostálgica circense, num discurso levemente
fetichista.

36
Fig. 15 - Vendedora de sonhos, 2012, acrílica
sobre papel estampado, 30 x 25 cm.

A abordagem sutil e delicada (fig. 15) das formas leves e sinuosas do


corpo feminino, com fitas e laços que o sustentam e, com a singularidade
particular da atmosfera lúdica presente proposta pelas cores do papel,

37
potencializam uma narrativa paradoxalmente circense, estabelecendo um discurso
oposto às obras “Sabor de Infância” (fig. 13) e “Balões (fig. 14), diante da
inocência singela dos palhaços, para potencializar a opulência “cabarética” da
Belle Époque, com suas bailarinas exóticas.

Fig. 16 - A Equilibrista, 2010, nanquim, esferográfica e acrílica


sobre papel estampado, 30 x 30 cm.

Sentadas, despreocupadas com seus guarda-chuvas, as obras “A


equilibrista” (fig.16) e “O descanso da Bailarina” (fig. 17) surgem mediante uma
composição simples e relativamente vazia no espaço composicional. Apresentam-
se poucos elementos compositivos, ficando a critério dos detalhes do papel a

38
completude sinestésica das obras, assim como em todos os trabalhos deste
subcapítulo, com exceção ao “Passeio” (fig. 18).
Num discurso cênico e representativo a obra “A Equilibrista” sugestiona
o momento em que a equilibrista/bailarina exerce seu papel ativo, atuando no
palco com toda graça e sensualidade inocente que lhe é inerente, ao passo que
na obra “O descanso da bailarina” (fig. 17) ela desfruta do breve momento de seu
intervalo. Acompanhada de seu guarda-chuva ela repousa num ambiente róseo de
paredes pruídas, que lembra um antigo quarto de hotel. Levemente sensual, essa
obra apresenta a personagem circense sentada sob um sofá voluptuoso,
segurando um guarda-chuva aberto com a ponta dos dedos, seu olhar se perde
por dentro às hastes do objeto, de modo que nos é possível divagar por seus
pensamentos oníricos, numa narrativa delicada e singela.
Na parte superior da obra (fig. 16) pendem estrelas douradas e um
pequeno coração vermelho que completam o ambiente cênico e teatral. Nele, a
equilibrista/bailarina apresenta-se estabelecendo, como nas obras anteriores, uma
relação inconsciente com o discurso do amar e do mal-amar. Equilibrar um
guarda-chuva na ponta do dedo indicador é tarefa fácil, diante da tarefa de
sustentar os desiquilíbrios do coração com suas complexidades, por esse motivo
ele apresenta-se ali, no canto direito da obra (fig. 16) amarrado e distante,
impossibilitado de exercer seus malefícios e benefícios, permitindo à equilibrista a
dissimulação de seus sentimentos.
Em seu momento de descanso, a “equilibrista/bailarina” não dissimula
suas sensações e posta-se no sofá cansada, num instante que pertence somente
à ela. Não precisa mais representar, nem expressar felicidade ou tristeza - como
no momento em que sobe ao palco, para agradar a todos com seu espetáculo:
sem aplausos e apenas o descanso, basta-lhe seu sofá, o guarda-chuva e nada
mais. Entretanto, podemos perceber, num nível simbólico, um discurso que pode ir
de encontro com a sociedade moderna, repleta de dissimulações e simulações
para o bem estar do convívio social, assim

39
[...] fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio da realidade: a
diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto
que a simulação põe em causa a diferença do “verdadeiro” e do
“falso”, do “real” e do imaginário”. (BAUDRILLARD, 1991, pp. 9 -
10).

Fig. 17 - O descanso da Bailarina, 2010, nanquim, caneta e


acrílica sobre papel estampado, 30 x 30 cm.

40
Analisadas conjuntamente, devido a alguns elementos compositivos
que se repetem, a exemplo dos guarda-chuvas e das vestimentas, as obras “A
equilibrista” (fig. 16) e “O descanso da bailarina” (fig. 17) sugerem composições
pictóricas diferentes, protagonizadas por uma mesma personagem, polivalente e
dinâmica.

Fig. 18 - Passeio, spray, purpurina, acrílica e caneta sobre tela,


100 x 80 cm. Exposta na Galeria QAZ, SP.

41
Sequencialmente, temos a obra “Passeio” (fig. 18) que nos mostra uma
personagem garbosa e delicada, passeando em uma enorme e interessante
bicicleta antiga, como se fosse de circo. Assim como a obra “Trapezistas” (fig. 12),
anteriormente analisada, a obra “Passeio” nos remete diretamente a um discurso
circense, referenciado na Commedia dell’arte.
Com um penteado exótico e vestimentas que aludem novamente ao
Arlequim e à Colombina, a personagem feminina, da figura 18 propõe um discurso
poético, firmado no equilíbrio, trazido pela gigantesca roda da bicicleta.
Cores suaves e delicadas percorrem toda a extensão composicional do
fundo, conferindo à obra uma aura calma e tranquila, lúdica e onírica, como de
uma tarde de outono com sua luminosidade amarela e alaranjada, que tinge o céu
em tons quentes e aconchegantes. Flores e folhas translúcidas completam a
narrativa outonal.
Diferente das demais obras apresentadas neste subcapítulo, que
manifestam seus discursos montados sobre papéis estampados, completando a
narrativa plástica das mesmas, a obra “Passeio” (fig. 18) trata-se de uma pintura
em tela, na qual os detalhes do fundo foram trabalhados em estêncil e spray,
conferindo à ela a potência gráfica dos papéis, porém de maneira não
industrializada, na técnica urbana do grafite, hibridizada à singularidade poética e
estética da Arte Lowbrow, mediante suas contaminações artísticas de estilo.
Em contrapartida à obra “Passeio” (fig. 18) há uma volta à interação
soberana com os detalhes bidimensionais do papel, que formam uma espécie de
realidade paralela e mesclam o burlesco e mambembe do circo a algo enigmático
e levemente antigo. As oito (08) obras a seguir (figs. 19 à 26) provocam o olhar e a
imaginação com o povoamento paradigmático de inebriantes leituras e
visionamentos.
Dentre as inúmeras influências sofridas e, já citadas na construção da
série e subcapítulo Ludus, o incrível País das Maravilhas, de Lewis Carroll,
apresenta-se como mais um exemplo do conceito onírico, por mim referenciado,

42
idealizando a criação deste universo paralelo, no qual habitam os mais loucos e
variados personagens.
Dúbias, as criaturas concebidas por Carroll discursam sobre os signos
cotidianos, modificados dentro do mundo fictício de Alice que se transformam
aparentemente em anomalias pelo princípio do desvio, evidenciando “[...] as
estruturas dos signos normais na semiose cotidiana”. (WINFRIED, 1998, p. 104) e
as forças desorientadoras, ou seja, consequência de "[...] surpresas diante de
acontecimentos estranhos [...]”. (Ibid. p. 106).
No conceito de fantasia, abordado neste subcapítulo, a ficção não
emerge necessariamente de algo totalmente fantasioso, posto que o imaginário
desenvolve-se com as influências externas, porém cria um espaço onde o onírico
torna-se uma verdade, podendo conceber seres inusitados e únicos, monstros,
avivados pela imaginação, território onde podem crescer e se multiplicar.
Segundo Jean Jacques Lecercle, o ‘nonsense’, ou seja, o território do
absurdo, que pode ser compreendido mais profundamente na página 137, no
artigo Parábolas Nonsenses, é um espaço fértil para os monstros, pois neste
gênero as falácias e paradoxos são aceitos, potencializando os disparates
concebidos pelo cérebro humano. (LECERCLE, 2002).
Absurdos e anacrônicos, os monstros atuais nos confundem com sua
dinâmica polivalente, num misto de sentidos que transitam do abominável ao
mágico e fantástico, de modo a sucumbir aos encantos da poesia/poética do
absurdo. Possibilitando narrativas ambíguas, que nos são apresentadas nas
disparidades ilógicas da aproximação dicotômica entre o “maravilhoso” e o
enigmático, mostra-se diante das inconstantes controversas dos monstros
Lowbrow.
Os monstros Lowbrows não se adequam aos estereótipos construídos
pela sociedade, mas caminham de encontro aos princípios estéticos da
Arte Lowbrow. Sombrios e muitas vezes graciosos, estes monstros faceiros se
mostram como uma figura híbrida e difícil de classificar. Diante de sua

43
maleabilidade disparatada da loucura, na construção de uma linguagem incerta e
complexa, dá origem a uma figura excêntrica e misteriosa.
Polimorfos, estes monstros se moldam à estética do agradável, como
uma figura polivalente, contradizendo os estereótipos grotescos e assustadores,
aplicados ao longo da história.
Quanto a estes novos monstros Omar Calabrese cita Renato
Giovannoli:

[...] a forma canônica dos novos monstros, incluindo os dos jogos


em vídeo, é elástica, gomosa e transformável. É uma espécie de
figura-pólipo, capaz de se inflar, de se dilatar, de se restringir, de
se modificar como quer: e de se dividir (como acontece em certos
jogos em vídeo) se levada a situações de crise extrema.
(GIOVANNOLI apud CALABRESE, 1987, pp. 113 - 114).

Quanto às referências aos monstros do cinema e videogames


Calabrese (1987, p. 114) aponta para “[...] a bimodalidade de comportamentos
também na sociedade em que se insere [...]”, o que significa pensar na
incorporação de comportamentos duplos, que se relacionam com o “[...]
surgimento de novas poéticas ligadas à incerteza e à não definição de formas e
valores [...]”. (CALABRESE, 1987, p. 115), nesse sentido, a exploração de um
universo mediado pela incursão ao ambiente da ficção incluem as influências do
cinema e dos videogames, possibilitando perceber, no imaginário urbano, um
diálogo com a Arte Lowbrow.
Com suas reflexões sobre os monstros, discutindo acerca da não-
definição de formas e valores, Calabrese nos possibilita divagar por trilhas
ambíguas na narrativa da Arte Lowbrow, onde os jogos são permitidos.
Numa temática ambivalente e controversa, de brincadeiras que
mesclam ingenuidade e fantasias lúdicas a algo que brinca com situações da
existência humana, Carroll trabalha o conceito de monstruosidade, partindo de

44
uma atmosfera absurda, com personagens híbridos, que podem ser apontados
como alguns dos seres “monstruosos” que povoam o imaginário fantástico de
Wonderland como Humpty Dumpty, a lagarta, e o Gato de Cheshire,

Considerando “monstro” aquilo ou aquele que não se consegue


definir com precisão, que não cabe na normalidade, que se parece
com várias coisas, mas não é exatamente nenhuma, que é
instável, que constrói incerteza, complexidade, variabilidade de
atitudes, que causa estranhamento, às vezes medo, repulsa, etc
[...]. (DALTRO, 2005, p. 1).

Fig. 19 - Contato, 2011, caneta posca


sobre papel estampado, 30 x 30 cm.

45
Apresentando-nos um universo onírico e desconhecido, a obra
“Contato” (fig. 19) apresenta as configurações fantásticas, citadas anteriormente
acerca dos monstros.
A obra, como o próprio título sugere, nos apresenta uma figura feminina
que cuidadosa e delicadamente tenta estabelecer contato com um ser diferente,
monstruoso, que não se entende ao certo o que é, encaixando-o na definição de
Daltro, que considera como monstro aquilo que não se consegue definir com
clareza e que causa sentimentos incertos e complexos.
Assim como os novos monstros, citados por Calabrese, a obra
“Contato” (fig. 19) se molda à estética do agradável, o que gera curiosidade e
interesse de conhecimento na personagem feminina, dividindo o espaço
bidimensional do papel com os monstrinhos. Ao aproximar-se e tentar tocar um
desses monstros, ela se deixa guiar pela semelhança que há na sua materialidade
com uma almofada estampada ou, ainda, a um bicho de pano inocente e ciclope.
Expondo uma narrativa Lowbrow, pautada no lúdico, esta obra
desponta perante uma atmosfera composta de bolas azuis que sustentam outros
dois pequenos seres ciclopes que conferem à ela uma espécie de oniricidade
borbulhante, típica dos sonhos ou ambientes etéreos, consagrados em bolhas de
sabão furta-cor.
Numa abordagem jocosa, as roupas da figura feminina surgem em
alusão às cartas de baralho, trabalhadas em naipes e cores condizentes a tal jogo
- vermelho, preto, branco e cinza - , de modo, que contrastam ao fundo
previamente concebido pelo papel estampado em tons de azul, trabalhando as
relações cromáticas e sintáticas da obra mediante figura e fundo.
Pintada com caneta posca, um tipo de pincel permanente, a obra não
apresenta passagens tonais sutis e se configura por meio de uma espécie de
vetorização ilustrativa - técnica muito aplicada no grafite, pela dificuldade de
integração das cores em spray, que não se misturam na palheta e são diretamente
aplicadas na parede - que lhe confere um ar Pop e saturado.

46
As obras “Festa do chá” (fig. 20) e “Aqui” (fig. 22), a seguir, também se
expressam na mesma concepção estética e sintática, numa representação que
nos remete às impressões tipográficas da Pop Arte.

Fig. 20 - Festa do Chá, 2011, caneta posca sobre


papel estampado, 30 x30 cm.

Saltitante e malemolente, a figura feminina recodifica o famoso


personagem de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, o Chapeleiro
Maluco, que brigou com o tempo e, por este motivo seu relógio parou nas seis
horas, fazendo com que em sua lógica desconexa, seja sempre a hora do chá.

47
A obra se associa a uma narrativa lírica e lúdica na personificação
feminina do chapeleiro, que se diverte ao servir seu chá.
Apropriando-se graficamente dos elementos compositivos do papel
estampado, construção de um ambiente interno, confortável e aconchegante como
uma sala de estar, torna-se possível sugerir em suas linhas retas a configuração
de uma espécie de papel de parede, conferindo à obra um equilíbrio lógico, diante
de sua narrativa ilógica.
Referenciada na obra de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas,
particularmente no capítulo “Um chá de loucos”, no qual o escritor desenvolve os
mais tresloucados diálogos de sua obra primorosamente ‘nonsense’, os
visionamentos que a obra (fig. 20) se estabelecem moldam-se mediante as
paradoxos de ordem simbólica de tal capítulo, como a manteiga, o relógio e as
xícaras, visto que a chapeleira talvez não tome seu chá desacompanhado, pois na
mesa, guloseimas e duas xícaras sugerem que a chapeleira espera por mais
alguém, marcando as horas em seu relógio quebrado. Em sua linguagem corporal
a personagem expressa alegria e maleabilidade, que nos remete ainda à figura
cômica e caricata do palhaço, ou ainda, à rítmica das bailarinas e contorcionistas
circenses.
Suas roupas lhe conferem graça e leveza e repetem elementos
cromáticos, apresentados na obra anterior “Contato” (fig. 19), de modo que
estabelece laços signicos, seja por conta destes elementos - corações, estampas,
meias e sapatilhas - seja pela configuração cromática do fundo, ou ainda pela
arguição técnica da caneta posca, concedendo à obra dinamismo e ritmo, em sua
execução prática e ilustrativa.

48
Fig. 21- Tesouro, 2009, técnica mista sobre papel, 15 x 22,4 cm.

Em “Tesouro” (fig. 21) a abordagem burlesca retorna, nas vestimentas e


adornos de cabelo, em uma temática circense que ronda toda a atmosfera da
obra, numa alusão às personagens da Commedia dell’art Pierrot e Colombina,
criando um ambiente lúdico, de modo que potências similares completam esse

49
discurso análogo, no qual o circo não dissimula sua função lúdica, dramática e
teatral, mas a potencializa diante de elementos cênicos e jocosos.
As personagens usam máscaras de palhaço e ocupam um espaço
artificial de pássaros e nuvens cenográficas (fig. 21), criando uma narrativa teatral,
sombria e dramática, na qual a materialização artística, de uma fantasia infantil, se
manifesta na magia circense apresentada, como um ambiente propício para a
conquista das mais lúdicas excentricidades e caprichos nostálgicos da infância,
completando a parábola numa narrativa.
Poses desconfortáveis e excêntricas se traduzem numa linguagem
corporal jocosa, nos remetendo a ideia de travessuras da infância ou, ainda, à
uma espécie de dança, protagonizadas na obra (fig. 21) por duas figuras
femininas, demasiadamente magras, alongadas e de olhos cerrados que se
inebriam perante o “tesouro” encontrado.
Nos rostos maquiados e mascarados das personagens percebe-se a
expressão de quem compactua de uma brincadeira, de uma traquinagem,
remetendo ao inconsciente nostálgico dos circos mambembes e familiares que
acampavam na cidade no nosso tempo de infância. A máscara surge como
vínculo vestigial do elemento cênico, com os quais os palhaços se apoiavam para
começar seu espetáculo e tornarem-se únicos e fantásticos.
Enormes narizes e carregadas maquiagens buscavam extrair de seus
rostos expressões exageradas, para que os movimentos pudessem ser vistos e
interpretados à distância, nas mal montadas arquibancadas que cheiravam a
pipoca. Contraditoriamente ao que presenciamos na nossa infância, as
personagens da obra (fig. 21) não apresentam maquiagens dissimuladoras ou que
pretendem ampliar seus gestos faciais, suas maquiagens apenas adornam os
rostos conferindo-lhes leveza e graça, numa espécie de poesia corporal
expressiva.
Na descoberta de um pássaro vermelho em meio à monocromia celeste
artificial, da qual pendem três pássaros e uma nuvem cênica na parte central da
obra (fig. 21), as personagens compactuam esse segredo encarnado que

50
protegem em suas mãos, como um tesouro delicado, assim como fazem as
crianças com seus pequenos tesouros escondidos nos quintais ou debaixo da
cama, numa inocente brincadeira infantil, apresentada e vivida por estes seres,
meio mulheres, meio crianças, que encenam uma parte passional da nostalgia
frequente e recorrente em meus trabalhos, enaltecendo a singeleza dos pequenos
na complexidade dos adultos.
Nesta obra (fig. 21) a abordagem onírica de princípios típicos de
palhaços e contorcionistas circenses ou de atores mambembes de trupes
itinerantes fazem com que questões do lirismo infantil, em seus devaneios lúdicos
e inocentes, surjam na memória passional para o preparo de uma atmosfera fértil
e produtiva em seus conceitos.
Numa composição descomprometida e suave, a obra “Aqui” (fig. 22), a
seguir, surge propondo um devaneio romântico, no qual a figura feminina, disposta
numa antiga e bela poltrona, expressa-se indiferente e tranquila em relação ao
nada que habita sua volta. É possível interpretar, ainda, sua absorção interna,
mediante os sentimentos que experimenta, seu estado é tão arrebatador que a
personagem sublima, numa espécie de transe sonhador, a existência de qualquer
coisa que a circunde.

51
Fig. 22 - Aqui, 2011, caneta posca sobre papel
reciclado colorido, 21 x 29,4 cm.

Pequenos corações flutuam sobre a cabeça da figura feminina da figura


22, possibilitando uma interpretação enamorada, estilizada e potencializada por
estes corações análogos, pictoricamente representados em cores diversas e
controversas, que vão do vermelho ao negro, como naipes de baralho. Os traços

52
rápidos, dado ao corre-corre contemporâneo e seu tão escasso tempo, conferem
ainda à imagem, certo relaxamento e despreocupação.
Em trajes lúdicos, de características quase circenses, essa figura
central (fig. 22) apresenta-se vestindo uma espécie de capacete de aviação
antigo, que lhe confere alegoricamente uma potência expressiva e retórica do
jargão popular “com a cabeça nas nuvens”, destinado aos apaixonados,
propiciando uma conotação onírica dos sentimentos humanos, numa alusão típica
dos poetas, que tem seus pensamentos expandidos ao infinito, devaneando em
terra firme.
Estabelecendo uma proposta cromática, basicamente tricolor –
vermelho, branco e preto, “Aqui” (fig. 22) trabalha uma estética pautada na
simplicidade singela, expressa em contrastes cromáticos básicos como o positivo
e negativo, a exemplo das pernas vestidas em uma calça, cuja configuração se dá
na completude dos contrastes, uma perna preta e outra branca, quebradas pelos
pequenos toques de vermelho do sapato e da polaina, conferindo ao elemento em
questão uma modesta variação tonal.
Embora sentada e estática as linhas que compõem os detalhes
secundários da calça e das luvas dessa personagem concedem à ela movimento
e leveza fluida, num misto de sensações livres que se completam numa
informação visual que reduz toda informação supérflua, deixando apenas o
essencial da forma.
Numa poética lúdica e imaginária as obras “Éden” (fig. 23), “No Jardim”
(fig. 24) e “Cubos mágicos” (fig. 25) se compõem de narrativas semelhantes.
Potencializada na complementação figurativa e interativa dos papéis estampados,
em uma mistura gráfica de linhas e arabescos Art Nouveau e as demais figuras
por mim criadas, que trazem consigo a influência estética estilizada dos mangás e
ilustração, geram composições peculires e híbridas, associadas e encaixadas no
conceito disparatado e tresloucado da Arte Lowbrow.
Se manifestando nos momentos fugazes e passageiros da vida, tais
obras (figs. 23 à 25) surgem como narrativas polivalentes e retóricas, configuradas

53
em ambientes lúdicos e potencialmente fantásticos, como no “Jardim das flores
vivas”, capítulo integrante do livro “Através do espelho e o que Alice encontrou por
lá”, de Lewis Carroll, que trabalha onírica e magistralmente o imaginário infantil.

Fig. 23- Éden, 2010, nanquim, acrílica e caneta sobre papel


estampado, 17 x 17 cm. Exposta na Fresh Produce,
Galeria Anno Domini, California, CA.

Numa narrativa lúdica, essas três obras em questão, trabalham um


jogo de simulações, associado às verdades e mentiras, realidade e ficção, no
qual as flores dispostas nos três jardins não falam, assim como os animais que
neles se apresentam também não, mas potencializam um ambiente onírico e

54
mágico que abriga componentes fantásticos, configurando personagens femininas
faceiras e inocentes que brincam com os elementos compositivos do papel
decorado, numa narrativa onírica e singular.
Os jardins cênicos são configurados por linhas e arabescos Art
Nouveau, dos quais pendem pequenos pássaros de tecido (figs. 23 e 24) ou
ainda, coloridos cubos mágicos (fig. 25), aferindo a estes ambientes uma
atmosfera peculiarmente solitária.

Fig. 24 - No Jardim, 2010, nanquim, acrílica, caneta e colagem sobre


papel estampado, 22 X 22 cm. Exposta na Fresh Produce,
Galeria Anno Domini, California, CA.

Nostálgicas e ternas, as figuras 23 e 24 desenvolvem um ambiente


tristonho e associam-se à uma esfera lúdica de características circenses, devido

55
às vestimentas e maquiagem das personagens, que aludem também à singeleza
dos teatros de rua mambembes. Os falsos animais costurados em tecido dourado
e prata, que pendem dos arabescos gráficos do papel por finas e delicadas linhas
(figs. 23 à 25), configuram a ambiguidade de um mundo que embora belo e
reluzente mostra-se frágil e solitário, num discurso dissimuladamente passional.

Fig. 25 - Cubos Mágicos, 2010, nanquim, acrílica, caneta e colagem


sobre papel estampado, 16,50 x 12,50 cm. Exposta na Fresh
Produce, Galeria Anno Domini, California, CA.

Nas frágeis linhas dos trabalhos (figs. 23, 24, 25) parecem esfiapar-se
com o peso dos objetos que sustetam, pássaros e cubos foram amarrados aos
arabescos do papel. Uma espécie de argumentação nostálgica e passional é
proposta numa situação “habilmente” controlada por lacinhos e pequenos nós -
como fazem as crianças para esconder um fio partido, em meio ao novelo de lã da
avó -, ação que na adultez não cabe, visto que momentos de vulnerabilidades se
apresentam, no entanto, ao remendar as fendas e ao cortar as pontas soltas nada
se resolve, apenas as aparências se mantêm sob o controle dissimulado das
sensações passionais.

56
Padrões gráficos lineares e arabescos florais como os da Art Nouveau
integram os papéis decorados que compõem essas obras (figs. 23 à 25). Eles
fazendo com que as obras se enunciem mediante a interação dos elementos
preconcebidos dos papéis e minhas criações, num diálogo complementar no qual
as figuras femininas, bem como os pássaros e cubos mágicos, atuem em conjunto
com os elementos do papel, de modo que cada narrativa se complete na sua
essência.
Referenciadas na ilustração e nos clássicos mangás japoneses, já
citados, as obras nos apresentam ainda, em suas flores gigantes e rebuscadas,
uma aproximação com o fantástico e com a fantasia, que só é possível a partir do
poder da arte, figurado nos grandes dentes de leão da obra “Éden” (fig. 23) ou
ainda, nas flores em espirais da obra “Cubos mágicos” (fig. 25), que surgem
soberanas e imponentes em suas estruturações composicionais.
Vibrantes e quentes as obras “Éden” e “Cubos mágicos” potencializam
uma narrativa acolhedora e tropical, mesmo diante de suas características fakes
de ambiente teatral, ao passo que a obra “No Jardim” se apresenta fria e
imparcial, povoada por diversos pássaros de pano que procuram suprir o vazio
gélido das cores claras e frias do papel. E suas padronagens destoam da poética
amarelada e acolhedora do circo, com suas bailarinas e trapezistas.
Num ambiente teatral e lírico, que finaliza o discurso poético desse
subcapítulo, a obra “Nas ondas” (fig. 26) não se alia à jardins ou campos, mas sim
ao contato fictício com o mar e seus peixes. A personagem feminina desta obra
surge descansando, entrelaçada aos detalhes lineares do papel estampado. Eles
envolvem seu corpo, que a protege de cair nas águas falsas, repletas de peixes
dourados e prateados, com estrelas que nos lembram cata-ventos.
A potência narrativa dessa obra concentra-se principalmente no
grafismo preconcebido industrialmente do papel, visto que é bastante detalhado e
cheio de elementos que estabelecem uma relação com o teatro mambembe de
circos familiares, em seus cenários precários feitos de retalhos ou artefatos
cênicos desconexos, que formam uma narrativa lúdica e lírica.

57
Fig. 26 - Nas ondas, 2010, nanquim, caneta e acrílica
sobre papel estampado, 30 x 30 cm.

Nuvens cênicas decaem por finas linhas do céu de arabescos do papel,


assim como um sol de retalhos se esconde por trás de uma montanha de
estampas gráficas em flocos de neve, configurando sinestesias opostas, porém
amenizadas no discurso onírico e teatral da obra (fig. 26). Os peixes também
apresentam-se pendurados nos ornamentos do papel e sugerem espécies de
ondas estilizadas e imaginárias que completam sua potência nas “escamas” da
areia, num diálogo cênico.

58
2.2 DOMINUS

Abordando a feminilidade de forma delicada e glamorosa, este


subcapítulo composto por seis (06) obras, abaixo apresentadas, propõe a
navegação pelas águas abissais da sensualidade e da atmosfera freak, porém
sem afastar-se do universo lúdico e lírico das formas e cores circenses. Nele, as
figuras femininas esbanjam sensualidade e suavidade em consonância à retórica
subversiva da Arte Lowbrow, bem como com a potência ambivalente das clássicas
pin-ups, mescladas ao conceito fetichista das voluptuosas dominatrizes,
manifestando-se no plano das perversões humanas, diante do desejo da
autossatisfação e dos mistérios femininos.
Derivada do grego Eros, deus do amor e da sensualidade na mitologia
grega7, a palavra erótico vem acompanhada por uma etimologia simbólica, que
denota o sentido não apenas do ato sexual, mas também de qualquer forma de
projeção da libido humana, por abranger diversos componentes do inconsciente
social coletivo.
Podendo ser canalizado de diversas formas, entre elas o fetiche, o
erotismo permeia também o mundo dos objetos, ou partes do corpo, de modo que
a simples visão destes, seja mental ou real, ascenda um tipo de desejo ou
fantasia. Do latin facere, que significa fazer o “[...] termo fetiche [...] sofreu uma
curiosa distorção semântica, pois [...] na sua origem significa exactamente o
inverso: um fabrico, um artefato, um trabalho de aparência e de signos”.
(BAUDRILLARD, 1995, p. 84), porém hoje ele exerce algum tipo de força mágica,
por estar ligado à palavra feitiço (do português), vinda da “[...] França no século
XVII”. (BAUDRILLARD, loc. Cit.), que por sua vez está vinculada ao fascínio, ao
objeto-feitiço.
O fetichismo, ato de adorar um fetiche, apresenta uma ambiguidade
essencial, um compromisso entre forças psíquicas antagônicas que só são
possíveis sob o domínio das leis do inconsciente, tais conceitos foram

7 Fonte: http://origemdapalavra.com.br/pergunta/pergunta-4493/

59
amplamente trabalhados por Sigmund Freud e também pelos surrealistas, que
partiram de uma ótica ligada à perversão ou ao desejo.
Freud, trouxe o termo perversão para a psicanálise fazendo uma
relação à sexualidade, ao desejo, sem qualquer aporte teórico que pretendesse
uma conotação pejorativa ou valorizadora. Ingressou por tais caminhos no intento
de realizar estudos acerca dos então chamados “desvios sexuais”, devido os
julgamentos morais que os cercavam, bem como os conflitos e divergências, que
apareciam como um construto dinâmico, complexo e de difícil convergência entre
as diversas orientações teóricas que compunham a psicanálise, abordando
questionamentos acerca do fetichismo, do desejo expresso e, ainda, das neuroses
humanas, que acabavam por desencadear certos atos perversos, entendendo-se
aqui por perverso as práticas que não estão relacionadas aos padrões de
normalidade de uma determinada época e/ou sociedade. (OLIVEIRA; MENESES,
20118).

Os surrealistas se informaram sobre as implicações psíquicas do


fetiche nas obras de Freud e do psicólogo oitocentista Alfred Binet.
Para Binet, "todas as pessoas são mais ou menos fetichistas no
amor”; ele considerava o fetiche como a corporificação de um
desejo ou uma obsessão mental. [...] Conforme o sistema freudiano,
o fetichista sofre de uma perversão ou um desvio da orientação
sexual. O ingresso prematuro e traumático na sexualidade
(despertado, segundo Freud, pelo choque do descobrimento da
inexistência do pênis materno) leva o fetichista a fixar-se num
substituto material para uma pessoa secretamente desejada.
(BRADLEY, 1999, p. 45).

Deste modo, tais conceitos foram amplamente aplicados pelos


surrealistas, trabalhados por artistas como Hans Bellmer (fig. 27), com suas
bonecas multifacetadas e objetuais, num misto de escultura/marionete, que dão

8 https://artigos.psicologado.com/abordagens/psicanalise/perversao-a-luz-da-psicanalise.

60
origem ao que chamaria o artista de “um objeto provocante” e, ainda, Meret
Oppenheim (fig. 28) com sua icônica obra “[...] Café da manhã de pele [...] uma
peça bela e tátil [...]”. (DALI in BRADLEY, 1999, p. 44), que nos aproxima da
fantasia erótica sobre o prazer sexual oral, “[...] baseados em fantasmas e
representações suscetíveis de ser provocados pela realização de atos
inconscientes”. (Ibid. p. 43).

Fig. 27 – Hans Bellmer, Fig. 28- Meret Oppenheim, Objeto (Café da


A Boneca, 1936-65, alumínio manhã de pele), 1936, xícara, pires e colher
pintado sobre base de latão, revestidos de pele, 7,3 x 23,7 cm.
46,4 x 22,9 cm.

Tais conceitos hoje, relacionados ao fetichismo e ao desejo, perderam


um pouco do caráter perverso que possuíam anteriormente, significando
atualmente, como senso comum, “[...] apenas uma fantasia sexual capaz de
estimular o desejo, construindo noções de pseudoerotismo e sexualidades
dissimuladas”. (BOTTI, 2003, p. 109). Neste subcapítulo essa narrativa sobre
fantasias sexuais será abordada sob um visionamento que perpassa a história da
arte, referenciando-se na abordagem erótica dos surrealistas, que enveredaram
pelos campos da psicologia.
Numa relação dicotômica, as obras deste subcapítulo estão vinculadas
os conceitos da sensualidade e do erotismo, dispostos em elementos
compositivos de caráter alegórico, como as máscaras, meias, luvas e fantasias, na

61
construção de uma narrativa lúdica e fetichista, num jogo de potências ambíguas,
porém convergentes em sua poética Lowbrow.
Os mangás japoneses e as ilustrações são referências que se fazem
presentes em minhas obras desde muito cedo, elas trazem consigo a essência
dos sensuais e libidinosos licenciosos hentais9, que traduzem em suas páginas
histórias lascivas, de grande carga erótica e altamente fetichistas, assim como os
trabalhos das artistas Audrey Kawasaki (fig. 29) e Miss Van (fig. 30), que
apresentam, cada qual com sua particularidade, as características acima
descritas. Audrey, de maneira mais sorrateira e delicada e, Van, mais agressiva e
direta, trabalham a estilização das formas humanas, diante os conceitos orientais,
ocidentalizados do mangá, aludindo à potência sensual feminina, perante os
hibridismos Lowbrow.

Fig. 29 – Audrey Kawasaki, Sem título, óleo Fig. 30 – Miss Van, Bailarinas 5, 2006,
sobre madeira, 27,94 x 48,26 cm. acrílica sobre tela, 140 x 170 cm.

Fonte: http://www.audrey-kawasaki.com/ fonte: http://www.missvan.com/


galleries.php?g=1&r=3&p_id=16&page=5 exhibitions/bailarinas/

Essas obras, trabalham sob o conceito das fantasias sexuais e da


erotização das formas, encaixando-se no jogo de inocência X malícia, proposto
pela Arte Lowbrow com seus desvios e contradições, através do erotismo e
fetichismo que exalam, assim como as demais obras deste subcapítulo.

9 Termo “[...] aplicado aos mangás estritamente “para adultos”. (MOLINÉ, 2004, p. 45).

62
Hoje “o erotismo e seu corolário, o fetichismo, florescem na arte e
mesmo nos museus”10, assimilados e representados no universo
cultural. Atualmente, algumas noções de fetichismo não são
necessariamente consideradas patológicas como eram no início do
século, ou mesmo (em alguns casos) transgressoras: tanto os
conceitos, como os padrões sociais de sexualidade em si
transformaram-se no decorrer dos anos. [...] O que pode tornar-se
um fetiche nos dias de hoje comporta uma noção culturalmente
moldada e particularmente transmitida pelos meios de
comunicação, moda, indústria cultural e pornografia, que vendem
conceitos de beleza e erotismo e, muitas vezes, são capazes de
produzir gostos e práticas em determinados contextos. (BOTTI,
2003, pp. 108 - 109).

Os aspectos da sensualidade e da eroticidade, aqui reunidos, propõe


um visionamento peculiarmente feminino, que busca fugir da visão falocêntrica,
que atribui apenas ao sexo masculino as relações fetichistas, visto que “[...] o
corpo feminino é aquele que geralmente hospeda o fetiche para o gênero
masculino, porém, o contrário não acontece com a mesma frequência ou
intensidade”. (BOTTI, 2003, p. 108).
Assim, emanando feminilidade, libido e segurança, encontrando em
suas próprias perversões o caminho para a liberdade sexual pulsante, as
mulheres em Dominus representadas buscam nada mais que sua
autossatisfação.
Numa estética que vai do universo lírico, circense à atmosfera freak e
sadomasoquista, os estilos se completam através de discursos díspares, que
aplicam com igual potência, piercings, espartilhos, máscaras e fantasias, na
estruturação do âmago dos fetiches sexuais, bem como a ludicidade poética e
suave do circo, numa narrativa singular e contraditoriamente Lowbrow.
Os padrões visuais, já estigmatizados às questões do fetiche e da
sensualidade, são aqui sublimados à abordagem controversa, pautada na sutileza

10 NÉRET, Gilles. Arte Erótica. Köln: Taschen, 1994, p. 9.

63
e delicadeza das formas leves e sinuosas, que combinam fitas no lugar de
correntes, linhas e laços no lugar de pesadas e complexas amarras de bondage,
jogando com a libido feminina e estruturando a retórica de um prazer também
onírico e exibicionista.
Na proposta de contrastes ideológicos, afastando-se dos conceitos
preestabelecidos e estereotipados, referentes ao universo fetichista do sadismo 11,
ou ainda, nas apresentações de freak show12, a combinação de características
estéticas díspares surgem com a composição de cores suaves, como nas obras “A
Imperatriz” (fig. 31) e “Rabbit” (fig. 34), atenuando o caráter pesado que
geralmente lhes é atribuído, numa burla com o sistema de codificações clichês,
resignificando a atmosfera sem alterar sua significação.
Todos os elementos das obras se moldam perante essas condições,
criando significados que não se encontram, apenas na disposição dos elementos
compositivos, completando-se na imaginação e percepção humana.
Hibridizando narrativas e esbanjando sensualidade indutiva, em sua
inocência subversiva, as clássicas e nostálgicas garotas de calendário, ou seja, as
famosas pin-ups das décadas de 1940 à 1960, aparecem na Art Lowbrow e,
potencializam-se nesse subcapítulo surgindo como coeficientes retóricos de
feminilidade.
Recodificadas contemporaneamente pela arte Lowbrow, num
fenômeno que poderia ser chamado por Simon Reynolds como “retromania” e,
peculiar à cultura dos remakes, as pin-ups atuais em seus referenciais
undergrounds, como em tatuagens e HQs ou nas produções massivas de cunho
popular da Pop Arte reforçam uma característica que parece tornar-se
remanescente na sociedade atual, a reciclagem formal de alguns elementos do

11 “[...] Inclinação a infligir dor ao objeto sexual. Esse [...] conceito oscila, na linguagem corriqueira,
desde uma atitude meramente ativa ou mesmo violenta para com o objeto sexual até uma
satisfação condicionada pela sujeição e maus-tratos a ele infligidos. Num sentido estrito, somente
este último caso extremo merece o nome de perversão”. (FREUD, 2006, pp. 94 - 95).
12 Shows “bizarros” que “[...] reúnem pessoas com “habilidades” inusitadas, com intuito de

impressionar e surpreender”. (LIRIO, 2007, p. 148). Geralmente ligadas ao submundo undergroud


das tatuagens e piercings, com apresentações performáticas de suspensão corporal e perfuração,
com características ritualísticas ou não.

64
passado, de modo que toda “[...] década geralmente tem um irmão gêmeo retrô:
os anos setenta olhou para os anos cinquenta; os oitenta teve várias versões
diferentes dos anos sessenta [...].” (REYNOLDS, 2011, p. 408, tradução nossa).
De modo que a simbologia sensual, estilizada e idealizada do corpo feminino,
retrata uma narrativa polivalente que, desde o final do século XX até à
contemporaneidade demonstram em sua essência a mais pura fantasia sexual do
desejo, insinuados em um corpo idealizado e pudico, conjugado à cenas banais do
cotidiano, em algo sensorialmente erótico e retoricamente instigante, porém sem
afastar-se dos padrões morais, esperados da figura feminina da década de 1940 à
1960.

[...] as imagens das pin-ups são caracterizadas por um duplo


movimento que oscila entre o intelectual/contemplativo e o
físico/ativo, que as leva a negociar um espaço entre o retrato e a
pornografia. Esse duplo movimento é responsável não somente
pela definição das qualidades formais das pin-ups, mas, também,
pela sua possibilidade de convivência com a exposição pública.
(BUSZEK, 2006 apud SANTOS, 2007, p. 185).

Neste duplo movimento despontam então as dominatrixes ou


dominatrizes13, figuras femininas dominadoras que cercam-se nas ambivalências
dos fetiches, potencializando uma narrativa undergroud de cunho erótico que
permeava os conceitos do sadomasoquismo, apresentados segundo os
estereótipos freak.

Nos anos 1960, os artistas da arte “pop” tinham à sua disposição


diversas versões de pin-ups, então em circulação, inclusive as

13
Mulher que exerce papel de dominadora nas práticas fetichistas de sadomasoquismo.

65
playmates, popularizadas pela revista Playboy desde 1953. Esta
revista tinha, como orientação filosófica, a construção de um
espaço privilegiado para o divertimento solitário masculino,
apresentando imagens a partir de uma perspectiva misógina de
sexualidade fácil. Em contraste, imagens de mulheres
sexualmente dominantes e agressivas eram veiculadas através de
publicações “underground” especializadas em pin-ups, entre elas,
as revistas Focus, Fantastique e Bizarre. Esta última, lançada em
1946, era destinada a leitores de ambos os sexos, interessados no
imaginário dos fetiches sadomasoquistas. (SANTOS, 2007, p.
187).

Apresentando temas controversos e caminhando por trilhas ambíguas,


este subcapítulo propõe mesclar em suas narrativas fantasias lúdicas a algo
poeticamente libidinoso e erótico, jogando com situações da existência humana,
ora inocente ora culpado, ora adulto ora infantil, de maneira que uma narrativa
controversa e licenciosa se instaure no campo do sensível, instigando
visionamentos poeticamente pulsantes.
As obras “A imperatriz” (fig. 31), “Temporalidade” (fig. 32) e “Degusta-
me” (fig. 33) organizam-se de modo a construir uma narrativa singular e retórica,
mediante o vértice do fetiche e da ludicidade onírica dos sonhos e das projeções
da libido humana. Surgindo como uma mistura de estilos e sinestesias que se
conduzem, por meio de brilho, cores, texturas e sabores, a um discurso híbrido e
polivalente, claramente onírico e jocoso, transitando faceiramente pela estética
mambembe do circo em união ao mangá, às pin-ups e ao fetichismo transfigurado
e recodificado.
Ainda, podemos ver nessas obras cores sublimes, luminosidade,
delicadeza e soberania feminina. Impregnadas de sensualidade e erotismo, a
dualidade sinestésica e dicotômica de seus elementos, ora delicados ora
mordazes, constrói um circo dos prazeres, na ludicidade onírica da ambientação
que nos é apresentada, lançando-nos à nostalgia da infância com suas fantasias
inocentes.

66
As personagens apresentam-se hibridizadas na concepção de seres
dúbios e ambivalentes, meio bailarinas, meio dominatrizes, na configuração de um
discurso similar ao das pin-ups, em sua sensualidade dissimulada. Potencialmente
sensuais e sexuais, ao contrário do que muitos pensam, as dominatrizes não
mantêm relações sexuais com seus subjugados, sendo apenas uma força
agressivamente sensual dentre os fetiches da libido.

Fig. 31 - A imperatriz, 2011, PVA e nanquim


sobre papel, 21 x 29,4 cm.

67
Nestas obras (figs. 31 e 32) uma abordagem que desmistifica este
estigma é proposta, gerando um discurso delicado e contraditoriamente bizarro, ao
passo que apresenta em fitas um corset montado com pequenos piercings
subcutâneos, presos ao abdome da personagem da obra “A imperatriz” (fig. 31),
que singela, jocosa e provocativamente senta-se na bela cadeira dourada,
referenciada no fantástico e rico mobiliário medieval.

Fig. 32 - Temporalidade, 2011, PVA e nanquim


sobre papel, 21 x 29,4 cm.

68
A estética freak, sadomasoquista, é comumente estereotipada por
objetos como o couro, vinil, látex, correntes, espartilhos e máscaras, quase
sempre representados em cores escuras e pulsantes, como o preto e o vermelho.
A figura do espartilho sempre esteve ligada à intimidade feminina, dos
séculos XVI ao XIX, ele servia para afinar a cintura e marcar o corpo com fitas e
arames, que instauravam uma silhueta forçada de postura ereta e elegante, a
partir do século XX o espartilho adquiriu uma significação mais próxima da esfera
erótica.
Segundo Valerie Steele “O espartilho, assim como o sapato, foi um dos
primeiros itens do vestuário a ser tratado como um fetiche, e continua sendo uma
das mais importantes peças de moda fetichista.” (STEELE, 1997, p. 65).
Na obra “Temporalidade” (fig. 32) o espartilho, em consonância à
simbologia da máscara e do relógio, cria uma narrativa peculiar a respeito do
desejo, seja ele escondido pela máscara, nos ponteiros do relógio que marcam e
acentuam a passagem do tempo ou, ainda, no potencial erótico feminino que
apresenta em suas formas a sensualidade evidenciada pelo
espartilho, num discurso ambivalente, no qual a cultura do imaginário
coletivo completa o significado das simbologias subjetivas de tais elementos
fetichistas.
Há muito tempo as máscaras trabalham e propiciam a oscilação
emocional cênica, num processo cognitivo orientado nos paradigmas entre
verdade e ilusão, seriedade e hilaridade, ocultando identidades e revelando
personagens particulares, que se materializam mediante o uso delas.
A esfera polivalente dos fetiches sadomasoquistas se apropriou deste
elemento cênico num jogo erótico que propicia uma interpretação pautada no
desvio, colocando o corpo como um objeto de prazer a partir do apagamento da
identidade. Na obra “Temporalidade” (fig. 32) um jogo adulto é proposto com o
ocultamento da imagem, induzindo o prazer pelo desconhecido oculto pela
máscara, na aventura fantasiosa que permite a liberação do medo da libertinagem
erótica, dos sinais do próprio tempo.

69
Diante de elementos parafílicos fetichistas algumas simbologias foram,
ainda, abordadas neste subcapítulo de maneira mais profunda, como em
“Degusta-me” (fig. 33), devido sua carga subjetiva de significados hibridizados à
sintaxe formal que as compõem.

Fig. 33 - Degusta-me, 2011, PVA e nanquim


sobre papel, 21 x 29.4 cm.

70
A língua e boca da obra “Degusta-me” (fig. 33), apropriadas da
anatomia para uma representação narrativa lúdica, confere à obra uma
subversividade Lowbrow e fetichista.
Ligando-as ao caráter sexual e erótico, a língua e a boca, com suas
sensações sinestésicas de tato e paladar, manifestam-se também no universo
parafílico14 dos fetiches, bases potenciais que se projetam da libido humana.
Situações erógenas, faz ainda alusões à obra “Degusta-me” (fig. 33)
que, como o próprio título apresenta, trata o paladar como um duplo sentido,
evidenciando a eroticidade distorcida na sensação e convite.

A psicanálise foi a escola que estudou mais profundamente a


psicopatologia da parafilias - perversões segundo sua linguagem.
Em 1905, Freud classificava as "aberrações sexuais" de acordo
com os desvios do objeto sexual e os desvios de ordem sexual.
Mais tarde, a sexualidade infantil foi apresentada como
caracterizada por uma grande quantidade de pulsões parciais,
como ver, cheirar, mostrar, bater, morder, etc - oriundas de várias
zonas erógenas, como a boca, o ânus, a pele em geral e os
órgãos genitais. Por um longo período, as pulsões parciais foram
subordinadas à preferência genital. Mas se a mesma falhar, as
pulsões parciais competem com o impulso genital, tomando o seu
lugar. (COLOMBINO, 1999, p. 12, tradução nossa).

Partindo de uma pulsão sexual parcial, que se concentra na boca e na


língua, texturas diferentes nos são apresentadas nesse desenho “Degusta-me”
(fig. 33) afim de proporcionar uma narrativa pautada nas funções táteis de tais
zonas erógenas, o tato sente aquilo que os olhos captam e procuram assegurar-se
da sensação, ao entrar em contato com o material que lhe é apresentado.

14 Termo adotado para definir distúrbios psico-sexuais, sem conotações morais ou pejorativas,
relacionado com pulsões sexuais que se deslocam para partes do corpo: para objetos de uso
cotidiano, animais, entre outras fontes de desejo e prazer.

71
Nesse desenho essa sensação tátil é deslocada para o visual, de modo
que a textura se expõe em variações cromáticas, culminando na alteração
perceptiva das superfícies apresentadas pela boca e língua.
A variação tátil se dá no sofá/boca, que buscou simular em sua
composição pictórica as características táteis e visuais da representação do látex
na língua, apresentando pictoricamente a maciez aconchegante de uma grande
almofada de retalhos, onde o tecido de algodão aconchega e envolve delicada e
suavemente o corpo, que se posta sentado sobre sua língua. Uma proposta dúbia
de sentidos táteis se faz potencializada sob uma analogia subjetiva e erótica
acerca do sexo oral, através da transfiguração órgão x almofada/sofá em contato
com a pele e com a genitália feminina da personagem.
Enveredando ainda mais pela estética freak e fetichista, proposta pelas
obras “A Imperatriz” (fig. 31), “Temporalidade” (fig. 32) e “Degusta-me” (fig. 33)
também estão presentes no espartilho e na máscara, que instigam a imaginação e
compartilham tanto do universo fetichista, quanto do universo onírico circense. Na
“A Imperatriz”, ambos elementos surgem dissimulados, fitas e piercings fazem as
vezes de um espartilho e, uma longa franja veda os olhos da personagem numa
espécie de máscara, porém nas obras “Temporalidade” e “Degusta-me” tais
elementos se apresentam em suas formas tradicionais, aludindo ao mistério que
paira no mundo burlesco e libidinoso das fantasias eróticas.

72
Fig. 34- Lia Fenix, Rabbit, 2012, acrílica, PVA e colagem
sobre lona, 40 x 40 cm.

Em tons de vermelho e rosa, o figurino da personagem (fig.


34) desenvolve-se a partir de uma narrativa fetichista sob o erotismo da fantasia.
Apoiando-me em Steele, quando ela expõe que “[...] estamos livres da prova da
realidade e podemos buscar prazer abertamente [...]”. (STEELE, 1997, p. 171),
numa abordagem onde a roupa proporciona “[...] parte de um drama erótico
elaborado [...]”. (STEELE, op. Cit., p. 171), a obra “Rabbit” apresenta
uma personagem fantasiada de coelho, dominadora, que desenvolve uma
narrativa fetichista, sob o viés sensual da fantasia.
Numa composição material, distinta das demais obras apresentadas ao
longo deste subcapítulo, a obra “Rabbit” é composta materialmente por
guardanapos de papel, folhas de ouro, tinta acrílica e caneta posca, de modo que
o vigor luxuoso das folhas de ouro potencializam o magnetismo da figura feminina

73
fantasiada e idealizada, como uma pin-up, construindo no imaginário do
espectador uma leitura burlesca das famosas e desejadas coelhinhas da “Playboy”
- revistas lançadas em 1953 - cujo símbolo é um coelho. Talvez pelo motivo do
coelho ser um dos poucos animais que se acasalam por prazer e, não apenas
para se reproduzir, é que tais coelhinhas foram escolhidas como símbolo de uma
revista erótica.

Fig. 35 - Ops, 2011, acrílica sobre tela, 60 x 80 cm.

74
Em outras três obras, inclusas neste subcapítulo, em “Rabbit” (fig. 34),
“Ops” (fig. 35) e em “Toque” (fig. 36) a narrativa sensual apresenta-se no elemento
podólotra 15 das meias e, ainda, na autossatisfação feminina, sugerindo uma
mulher que busca seu próprio prazer ao mesmo tempo em que provoca a
imaginação, por meio de olhares indiscretos.
Nas obras (figs. de 34 à 36) as meias conferem às pernas uma
representatividade jocosa e inocente, visto que tais vestimentas são coloridas e
listradas, aludindo à nostalgia do maravilhoso e fantástico, presentes no universo
da femme-enfant tão “cortejada” pelos surrealistas.

Fig. 36 - Toque, 2011, acrílica sobre tela, 70 x 70 cm.

15 Sujeito parafílico, parcialista, que volta sua pulsão sexual para os pés do parceiro.

75
Em “Ops” (fig. 35) e “Toque” (fig. 36) o contraste cromático que se
aplica em relação às figuras e o fundo surge como uma narrativa complementar
que se articula nas simulações inconscientes de um diálogo pictórico figurativo,
em oposição à abstração em preto e branco, gerando um equilíbrio dicotômico e
sinestésico, que faz com que as personagens se sobressaiam em relação a este
fundo, na conjugação potencial dessas divergências cromáticas.
Alvos de fetiche os pés e pernas rondam a imaginação parcialista,
numa representatividade que desloca a devoção erótica a estes membros,
fazendo com que as meias que velam tais pés ou pernas, por consequência, se
tornem objetos de desejo, por sua narrativa subjetiva que mostra as formas sem
revelar o conteúdo, de maneira que o simples vislumbre do torneamento físico
destas partes cause alterações na libido.
Deste modo, tanto as meias de “Ops” (fig. 35) e “Toque” (fig. 36), assim
como os sapatos e a bota da obra “Rabbit” (fig. 34) nos mostram uma narrativa
fetichista e lúdica, trabalhada poeticamente nas fantasias sexuais ligadas ao
parcialismo fetichista e na polivalência de forças díspares que surgem diante da
configuração ambivalente destas obras, postando-se vigorosamente subversivas
perante o embate entre inocência x malicia.

Cada parte do corpo possui [...] um significado erótico. No


parcialismo existe uma percepção exagerada, obsessiva e as
vezes extravagante de cada uma destas partes. Os seios
sinalizam a vagina como as nádegas e as pernas, dependendo
das qualidades físicas inatas que são atraentes para todo mundo,
incluindo os parcialistas, porém para eles são supervalorizadas, ao
ponto que as demais partes do corpo não possuem significado
erótico. (COLOMBINO, 1999, p. 23).

Os pés, os sapatos e suas provocações visuais renderam abordagens


canônicas como os readymades surrealistas de Meret Oppenhein (fig. 37), Ma

76
gouvernante simula um frango assado, sendo formado por dois sapatos de salto
alto16 brancos e amarrados, o que nos leva a questionar a posição da mulher na
sociedade da década de 1930 e suas relações com a própria sexualidade e
erotismo.

Fig. 37 – Meret Oppenhein, Ma Gouvernante,


1936, sapatos, cordas e metal, 14 x 33 x 21 cm.

Fonte: http://realitybitesartblog.blogspot.com.br/2011/01/bite-48-meret-oppenheim-ma-
gouvernante.html

Diante de tais considerações, meus trabalhos apresentam o fetiche e o


erotismo de forma dissimulada, quase cênica, brincando com questões do
imaginário humano e sua libido, numa espécie de construção lúdica da
sexualidade, enquanto potência dos sentidos explorados ao longo da idade adulta,
projetando reminiscências da infância que se mostram nas vestimentas circenses
e lingeries delicadas com bolinhas e laços, sugerindo um universo anacrônico e
requintado, onde a figura feminina polivalente configura o poder erótico da
sensualidade.

16“[...] até o século XVII, o salto alto era comum a sapatos masculinos e femininos. Em muitas

culturas, mulheres e homens usavam sapatos de plataforma com diferentes funções: aumento da
estatura, marcas de classe e de gênero literário, higiene dos pés ou apelo sensual e erótico.
Porém, as plataformas acabaram dando lugar aos saltos altos, graças aos sapateiros europeus do
séc. XVII. O certo é que os saltos altos foram sendo associados à feminilidade, incorporados ao
universo da moda e tornaram-se uma das preferências dos fetichistas, só perdendo para o
espartilho. (GENS, 2008, p. 6-7).

77
3. PRIMEIROS CONTOS

Nomeado de Primeiros Contos, esse capítulo apresenta outras obras


de minha produção realizadas anteriormente ao mestrado. Composto por quinze
(15) obras, abaixo relacionadas, encontra-se dividido em dois (02) subcapítulos:
3.1 Fabulações, contendo nove (9) obras e 3.2 - Ata-me!, com seis (6) obras. A
seguir apresento essas obras citadas, acompanhadas de suas respectivas
análises.

3.1 FABULAÇÕES: obras inclusas nesse subcapítulo em tamanho reduzido:

Fig. 38- Devaneando, Fig. 39- Tempo, 2009, Fig. 40- A luz, 2009,
2009, aquarela e nanquim nanquim sobre papel, nanquim sobre papel,
sobre papel, 30 x 24,8 cm. 12 x 12 cm. 15 x 12,4 cm.

Fig. 41- O Gato Branco, Fig. 42- Doce Camélia, Fig. 43- Luvas, 2012, acrílica
2009, nanquim sobre 2009, nanquim sobre sobre papel, 30 x 30 cm.
papel, 15 x 10 cm. papel, 15 x 10 cm.

78
Fig. 44 - O Leque, 2009, Fig. 45- Musicalizando, Fig. 46- Em suas asas, 2009,
grafite, 220 x 180 cm. 2009, 300 x 250 cm, grafite. 150 x 150 cm, grafite.
Casa do Hip Hop, Biblioteca Municipal de São Centro Cultural da Juventude, SP.
Diadema, SP. Carlos, SP.

3.2 ATA-ME!

Obras inclusas nesse subcapítulo em tamanho reduzido:

Fig. 53- Bem me quer, Mal Fig. 55- Ata-me!, 2009, Fig. 56- Suave Pulsar,
me quer, 2009, nanquim e aquarela e nanquim sobre 2009, nanquim e aquarela
aquarela sobre papel, papel, 20 x 20 cm. sobre papel, 20 x 20 cm.
20 x 20 cm.

Fig. 57- A Títere, 2009, Fig. 61 - Devaneio, 2012, Fig. 62- Costura, 2010, grafite,
nanquim e aquarela sobre acrílica sobre tela, 220 x 180 cm. Encontro de
papel, 20 x 20 cm. 50 x 50 cm. grafiteiras, Salvador, BA.

79
Os subcapítulos “Fabulações” e “Ata-me!”, de 2009, recebem técnicas
diversas como a aquarela, o nanquim, a tinta acrílica, canetas e a colagem, além
de inserir a modalidade grafite que utiliza spray, stencil, além de pincéis e tintas
como o latex. Tais operações plásticas mesclaram diversos materiais e se
influenciaram por um processo que aconteceu na arte nos anos 80, chamado por
Klaus Honnef de ‘ambiente multimediático’ (1992, p. 28), na qual a prática artística
se combina às várias disciplinas e fontes de inspiração. Nenhum estilo ou modo
de arte se mostra dominante na arte hoje, pois ela existe num estado de
pluralismo, onde os campos não são mais puros e fechados em si mesmos,
havendo muitas contaminações, hibridações, a exemplo das obras acima que
combinam alguns estilos como a ilustração, o circo, o mangá e o grafite, atuando
sob o princípio pós-vanguardista da Arte Lowbrow.

O mundo do negócio e do consumo, dos mass media e da arte


trivial já não são considerados pólos opostos, mas sim
aproveitados conscientemente como uma fonte de inspiração bem-
vinda e com a mesma seriedade que merece sua tradição artística.
Na arte de Pós-Vanguarda, as fronteiras entre as esferas, até
então rigorosamente separadas, tornam-se fluidas, de modo que
as obras mais características contêm elementos tanto da arte
elevada como imagens triviais da cultura de massas. (HONNEF,
1992, pp. 27- 28).

Essa mistura de elementos utilizados traz em seu discurso uma poética


singular que tornar-se-á recorrente em toda minha produção artística, seja em
questões formais, como nas linhas, cores e texturas ou ainda, nas temáticas, a
exemplo do teatral performático, característico das apresentações burlescas,
introduzidas por volta do século XV com o estilo teatral jocoso da Commedia
dell’arte, apresentado nas obras como "O gato branco" (fig. 41) em Fabulações, e

80
ainda nas demais obras que compõem o capítulo Ata-me! (figs. 52, 55 à 57, 61 e
62) com híbridos aspectos do circo e do ballet.
Há ainda como característica poética, um jogo de parábolas
imaginárias, do lúdico, do nostálgico e do circense, como fragmentos arbitrários da
imaginação, numa espécie de fábula marcada pelas reminiscências da
infância, que propiciam interlocuções formais e simbólicas,
posicionadas nas ambivalências da Arte Lowbrow.
Essa produção, influenciada por operações plásticas oníricas,
semelhantes às do Surrealismo, nos são apresentadas por Renato Fusco em "A
linha do onírico", através de uma construção que converge seus conceitos a uma
narrativa na qual o sonho se apresenta como uma espécie de denominador
comum a este movimento, propondo discursos intrigantes ao hibridizar os ideais
clássicos aos contemporâneos, numa riqueza de motivações heterogêneas.

[...] em relação à linha de arte formal, totalmente empenhada em


experiências linguístico-figurativas e em fazer da arte uma questão
de conhecimento, a linha do onírico assume uma posição
radicalmente nova e diversa: não tende para a expressão nem
para a configuração, mas para a "revelação". (FUSCO, 1988, p.
175).

Essa revelação, apontada por Fusco, baseia-se na “revelação” do


sonho, ou seja, do imaginário inconsciente, representando a subjetividade a partir
de associações irreais, um conteúdo subjetivo poderá estar se valendo de uma
forma figurativa e objetiva, rompendo as relações temporais de passado, presente
e futuro, estabelecendo assim uma dimensão que se encontra além da
consciência, como uma espécie de "exploração psíquica". Como exemplo, no

81
surrealismo podemos encontrar dois objetos muito diferentes entre si, mas podem
estar associados absurdamente quanto ao seu tipo e tema.
Deste modo essas obras (figs. 38 à 46), ampliadas a seguir, propõem
uma abordagem temática que caminha pelo nostálgico (figs. 38 e 39), pelo
burlesco (figs. 42 e 43) e pelos aspectos oníricos (figs. 38 e 46), na construção de
uma narrativa hibridizada pela contaminação destas “linguagens”.

3.1 FABULAÇÕES

Nesse subcapítulo agrupei nove obras, “Devaneando” (fig. 38), “Tempo”


(fig. 39), “A Luz” (fig. 40), “O Gato branco” (fig. 41), “Doce Camélia” (fig. 42),
“Luvas” (fig. 43), “O leque” (fig. 44), “Musicalizando” (fig. 45) e “Em suas Asas” (fig.
46), que dão lugar às características oníricas e lúdicas.
Essas obras abordam a nostalgia e a solidão, bem como o burlesco e o
gracejo circense, de modo a propiciar uma narrativa parabolar, controversa e
polivalente, advindas da influência da arte contemporânea que absorve também a
arte urbana e o grafite.
Embalada por certas características surrealistas, o ambiente onírico da
obra “[...] se volta para o sonho, a memória, o imaginário. (FUSCO, 1988, p. 175)”
e sugere a quebra da lógica feita a partir do sonho em uma imagem, que escapa
ao controle racional exercido pela consciência, com divagações líricas que se
esbarram no próprio título “Devaneando” (fig. 38).
Sob uma perspectiva artística, a palavra “devaneio”, aflora como um
jogo intertextual com a expressão “Nas nuvens”, colorida pela luminosidade do
horizonte que se abre num céu primaveril e contraria as leis da física ao
apresentar uma personagem feminina, confortavelmente sentada em uma nuvem,
em meio à imensidão celeste.
Conduzindo uma narrativa nostálgica, o traje de banho antigo da
personagem potencializa o discurso levemente burlesco, referenciando as

82
clássicas pin-ups 17 , no qual a mulher não se apresenta como um objeto, mas
como fonte e sujeito do desejo, diante de um erotismo cênico, aliado à uma
espécie de desvio, que culmina numa obra onírica, num misto de provocação
inocente e impossível.

Fig. 38- Devaneando, 2009, aquarela e nanquim


sobre papel, 30 x 24,8 cm.

17 Garotas sedutoras que fazem referência a uma tipologia feminina popular da publicidade,
associada à sexualidade do período pós-guerra americano dos anos 1940, sendo populares até os
dias atuais. (SANTOS, 2007).

83
Num misto de sensações, a obra (fig. 38) sugestiona ainda a solidão
que participa dos devaneios da personagem, sentada em meio às nuvens. Ela
admira o céu e encanta-se com a beleza luminosa do sol, que embora emita
energia, luz e calor, tingindo as nuvens com variadas colorações e nuances em
azuis, amarelos e lilases, se apresenta monocromática, ou seja, em preto e
branco, fria e sozinha. O céu estabelece uma ligação com este ser feminino que o
sustenta e o admira, tanto em sua monocromia quanto em sua solidão.
Ambos, ela e o sol, partilham da solitude do infinito celeste, cada qual
com sua beleza isolada e compassiva, numa poética silenciosa e serena, na qual
o fato de estarem só não lhes incomodam, mas potencializa suas relações na
afirmação auto contemplativa do silêncio pensativo, que apaga suas cores
refletindo-se para o ambiente em que ocupam, de modo que só resta a eles a
monocromia e a reclusão interna de um turbilhão de pensamentos, os devaneios.
Em oposição a esse silêncio reflexivo da personagem, um céu furta-cor
se abre em cores melancólicas e, ainda “[..] que se tinja de melancolia, é uma
melancolia repousante, uma melancolia ligante [...]”. (BACHELARD, 2001, p. 60),
que nutri o devaneio da personagem com a sua essência doce e repousante. “O
repouso do sonhador é capaz de pôr em repouso as águas, as nuvens, a brisa
fina”. (op. Cit, p. 60), contrariando as expectativas solitárias da reclusão, como se
o interior da personagem refletisse e acalmasse o céu de nuvens, num misto de
lirismo revelador.
Na obra “Tempo” (fig. 39), da página seguinte, referencio poeticamente
a música e o ponto de candomblé “Oração ao tempo” de Caetano Veloso, de
1979, trazendo em sua essência alegórica a representação dinâmica da
temporalidade.

[...] o tempo não é dividido em si mesmo entre antes e depois; ele


é uno, pois a origem está presente em todas as coisas e em
qualquer direção, ela é imediata. E é apenas por intermédio de um

84
artifício de pensamento que se lhe pode atribuir um tempo
particular dentro do tempo indivisível.
[...] Esse imediatismo na captura do tempo é exclusivo do artista,
pois apenas uma ação criadora pode trazer a origem até o
presente, e é devido esta captura do mundo em um único
momento que o artista é verdadeiramente filósofo, é devido a ela
que ele conhece. (CAUQUELIN, 2005, pp. 48 - 49).

Deste modo, frente à investigação poética de captura filosófica do


tempo continuarei apresentando semelhante processo analítico acerca dos
trabalhos a seguir.

Fig. 39- Tempo, 2009, nanquim sobre papel, 12 x 12 cm.


Exposta na Small is Beautiful, Edge Art Galery, Londres, UK.

85
“Tempo” (fig. 39), nos apresenta uma figura feminina central que
caminha junto aos ventos do tempo, deixando-se guiar por ele, ouvindo seus tic-
tacs e, compactuando de sua plenitude eterna, indivisível, apenas transcorrida e
vivida.
A obra “Tempo” ainda flui numa composição de linhas e aguadas de um
mesmo material, o nanquim, apresentando a versatilidade espontânea e líquida da
rapidez e fluidez deste expressa, ainda, uma ligação híbrida com as relações
temporais, que dentre tantos elementos naturais mostra-se como o material
essencial, que se metamorfoseia num mobilismo incessante e fluído,
assemelhando-se ao processo da energia vital humana (BACHELARD, 1997), não
sendo possível controlar suas vontades ou peso, assim como o vento que se
propaga e movimenta objetos inanimados à sua própria vontade, como numa
brincadeira.
O tempo, a água e o vento relacionam-se nesta obra (fig. 39) através da
contaminação entre os materiais de fatura e representação plástica, num elo de
visionamentos díspares que se completam em um discurso único.
A partir destas relações fluidas e líquidas busquei, como já citado,
informações sobre o tempo na música “Oração ao tempo”, que trata-se de uma
referência religiosa de Caetano Veloso, sobre o orixá Kitembo18, que rege o tempo
e relaciona-se com o vento e com a natureza, resistindo a tudo e assistindo a tudo,
como essência de vida.

18 Para os povos bantus, é o próprio tempo. É a árvore primordial. [...] É a essência da vida
produtiva. [...]. O ciclo vital, que não muda com o transcorrer da eternidade. (Fonte:
http://euricon.wordpress.com/2010/08/26/kitembo/).

86
Fig. 40- A Luz, nanquim sobre papel, 15 x 12,4 cm.
Exposta na Small is Beautiful, Edge Art Galery, Londres, UK.

Iluminada por velas (fig. 40) e contida numa lamparina, a figura feminina
apoia-se nas paredes transparentes de vidro de um objeto semelhante a uma casa
ou a uma gaiola vítrea, num discurso dialético com a intimidade particular do ser,
sua reclusão e as paredes que o confinam. Aprisionada, a personagem busca a
liberdade, impedida pelas paredes transparentes do vidro e que, paradoxalmente

87
exibem diante dela a chave para sua liberdade, pendurada logo acima de sua
cabeça, na alça da lamparina. Diante de tal situação, é possível aproximar o
diálogo proposto pela obra com o conceito fenomenológico de Bachelard, acerca
da casa e suas relações psicológicas de abrigo e proteção:

[...] todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da


noção de casa. Veremos a imaginação construir "paredes" com
sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção ou,
inversamente, tremer atrás de um grossos muros, duvidar das
mais sólidas muralhas. Em suma, na mais interminável dialética, o
ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em
sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos
sonhos. (BACHELARD, 1993, p. 25).

A partir de tais relações simbólicas, a obra discursa ainda com um


ambiente claustrofóbico e agoniante, que contrasta com o rosto calmo e tranquilo
da figura feminina, propiciando um visionamento que pode ser associado aos
sentimentos humanos não externados ou, ainda, mal resolvidos, como o
trancamento de si mesmo a fim de proteger-se dos sustos e infortúnios da vida e,
assim, ignorar a beleza da liberdade posta bem diante de si, com todos seus
riscos, sabores e paixões.
Nesta visão enternecida é possível instituir relação com a questão
acerca do amor, sendo este compreendido pela implícita e perturbadora presença
do ser amado em toda sua plenitude de luz, essa compreendida como energia,
não só de libido, nem apenas psíquica, mas sexual e transformadora.
O amor encontra-se relacionado ainda à poesia e à liberdade,
instaurando assim, um embate dicotômico, a personagem não brilha e precisa de
outras fontes luminosas, por seu enclausuramento psíquico, materializado no

88
confinamento da lamparina de seus medos, tão frágeis que não foram capazes de
criar paredes mais fortes que vidro, não permitindo a ela viver sua liberdade.
A solidão contida e a sensação de abandono também se fazem
presentes de um modo quase torturante, nos lembrando a tristeza dos pássaros
engaiolados, privados de sua liberdade apenas pelo capricho humano de
apreciação de seu canto ou, ainda, de sua beleza. Nessa obra (fig. 40) fica a
critério da interpretação do espectador o motivo para o engaiolamento da
personagem. As cores quentes e envolventes apenas dissimulam a frieza do
gesto.
Ao apresentar-se nua a protagonista da obra (fig. 40) salienta sua
vulnerabilidade, porém ainda externa sua sensualidade, ao trajar apenas meias
decoradas com um singelo coração na borda, como pista de que algo ainda pulsa
e mantem-se esperançoso, assim como a chave alegórica que facilitaria e
resolveria os impasses poéticos de “A luz”.

89
Fig. 41- O Gato Branco, 2009, nanquim sobre papel,
15 x 10 cm. Exposta na Small is Beautiful,
Edge Art Galery, Londres, UK.

Contrastando levemente com a temática das obras anteriores, “O Gato


Branco” (fig. 41) e “Doce Camélia” (fig. 42) surgem delicadas e serenamente
instauradas em suas refinadas e burlescas atmosferas, de personagens
extravagantes e clássicas que estabelecem uma relação com as questões
estéticas dos anos 20, como por exemplo as roupas e a ambientação - o fundo
das obras foi trabalhado com régua e nanquim prateado, a fim de lembrar um
papel de parede mais antigo.

90
Ao produzir “O Gato Branco” (fig. 41) recebi forte influência de Alice e o
Gato de Cheshire – ao ler o clássico conto infantil “Alice no País das Maravilhas”
de Lewis Carroll. Durante o processo de criação, na concepção artística da obra,
a figura feminina transita entre a delicadeza e a inocência infantil, mediante o
glamour exuberante da estética burlesca.
Num gesto meigo e delicado, o gato branco aninha-se nos braços da
personagem, que estampa em sua expressão facial e corporal o trejeito carinhoso
das crianças, que têm por seus animais de estimação muito amor, potencializando
uma narrativa que se distancia da visão adulta, apresentando uma perspectiva
inocente e infantil.

Fig. 42- Doce Camélia, 2009, nanquim sobre papel,


15 x 10 cm. Exposta na Small is Beautiful,
Edge Art Galery, Londres, UK.

91
Por sua vez, a obra “Doce Camélia” (fig. 42) percorre uma narrativa
potencializada e caricata, de elementos singulares do estilo burlesco, como as
luvas e o estilo Coco da personagem emoldurada numa espécie de camafeu
Nouveau, configuram simbolicamente um ambiente característico da Belle Èpoque
a partir da composição típica dos cabarés, exaustivamente apresentados e
abordados no decorrer da história da arte por diversos artistas, a exemplo de
Toulouse Lautrec e suas exuberantes dançarinas ou, ainda, Gustav Klimt em suas
pinturas ricamente ornamentadas de uma sensualidade latente, porém
dissimulada por poses delicadas e quase inocentes.

Fig. 43 - Luvas, 2012, acrílica sobre papel, 30 x 30 cm.

92
Arabescos Art Nouveau e filetes gráficos contornam a obra “Luvas”, em
um misto de narrativas complementares, sob influências composicionais e
referenciais que dão origem a um ambiente requintado, ornado num lindo papel de
parede que se mistura à obra e a sua concepção plástica, que, assim como as
obras da série e subcapítulo 2.1 Ludus, trabalham em consonância com os
conceitos padronizados e decorativos da Pattern Painting ou P&D. (HONNEF,
1992, p. 68).
Criando uma atmosfera burlesca e lúdica, os arabescos florais, próprios
do papel estampado, que serviram de base para a composição da obra conferiu-
lhes leveza, graça e movimento, características típicas da Art Nouveau, com suas
ornamentações de inspiração vegetal. Transitando também na Pattern Painting,
nessa proposta sob a apropriação formal, preestabelecida pelos padrões gráficos
do papel, trabalham uma pintura executada numa superfície previamente
concebida.
Nas luvas, título também da obra, a reminiscência de um elemento que
surge em boa parte de minha produção visual, configura-se por seu caráter
simbólico e formal.
Um artefato muito usados desde o século XIV até os dias atuais, as
luvas, assim como as meias, carregam boa carga de um ideário fetichista, que
deposita o prazer e o desejo, nas delicadas terminações corporais dos pés e
mãos, contornando e delineando-as, aguçando os sentidos fetichistas, abordados
anteriormente no subcapítulo 2.2 Dominus.
“Os talismãs parafílicos são objetos cuja significação sexual secreta é
exclusiva do fetichista sendo incompreensível para os demais”. (COLOMBINO,
1999, p. 20), estando, nesse caso, associados às luvas que emolduram as mãos
da personagem da obra em questão (fig. 43).
A relação aderente do tecido com o corpo projeta-se neste referencial
fetichista de modo a criar uma associação sinestésica, que potencializa
simbolicamente a narrativa das luvas em um corpo “oculto”, no qual a erotização
sugestiona-se no revelar fluido das formas e dos gestos das mãos, envolvidas por

93
esta fina camada têxtil que não permite tocar a pele, delineando-a sem realmente
mostrá-la, dificultando os caminhos da conquista carnal. Em “Luvas” (fig. 43) as
características quirófilas 19 não são as mais importantes, porém as mãos se
destacam em detrimento das cores aplicadas às luvas e nos gestos tímidos por
elas potencializados, fazendo com que estas se destaquem na narrativa passiva
da obra.
Apresentando uma natureza fluida e livre, a sintaxe formal da linha se
instaura em “Luvas” em dois planos que estrutura a forma, contornando,
delimitando e delineando-a de maneira singela braços, mãos, rosto e vestimentas,
conferindo-lhes o torneamento e a graça expressos pela personagem em sua
sinestesia despreocupada e singela, assim como no ritmo divertido dos arabescos
gráficos do papel, que atribuem à obra movimento e completude compositiva em
sua organicidade, flexível e linear.
As cores e tons, aplicados na roupa da jovem, familiarizam-se com a
atmosfera das noites boêmias de cabarés, coristas ricamente ornadas, pedrarias,
delicadas fitas, rendas e paetês transitam pelo ambiente lúdico das fantasias
purpurizadas e precárias dos circos familiares itinerantes do interior de São Paulo,
criando uma narrativa burlesca integrada ao universo impregnado de brilho, luxo e
pompa.
Ainda, da ordem do sentimento surge o coração retratado no peito da
personagem, um desenho estilizado de tatuagem com uma peculiar fechadura,
sugerindo uma narrativa que se pauta nas contradições do amor. Sendo, um dos
símbolos mais recorrentes da representação sentimental no ocidente, associado à
amizade e ao amor. Esse coração lacrado propõe uma narrativa simbólica ao se
fechar no peito, guardando com ele todos os segredos sentimentais da
personagem, representando-se como um cadeado de diário adolescente que, com
medo da dor de abrir-se sentimentalmente para o mundo, interdita em sua própria
forma análoga o acesso às suas sensações, dissimulando suas emoções num
rosto singelo e delicado.

19 Impulso fetichista que concentra nas mãos a fonte e o objeto de desejo.

94
Embora a chave se apresente sutilmente pendurada, em uma das
hastes da folhagem gráfica, meio “Art Nouveau”, à direita, a personagem hesita
em pegá-la, lançando mão do ímpeto humano do poder de escolha, instigando o
ato da libertação sentimental, por meio da abertura “cardíaca” que aprisiona e
alimenta todos os seus medos.

Fig. 44- O Leque, 2009, grafite, 150 x 150 cm.


Casa do Hip Hop, Diadema, SP.

Datados de 2009, esses grafites (figs. 44 a 46) partem da sensualidade


e do erotismo, surgindo como uma narrativa também potencialmente burlesca,

95
apoiada em elementos como o leque e as luvas da personagem da figura 44 “O
leque”, e, ainda, no ambiente dos cabarés, configurado em “Sobre suas asas” (fig.
46) a partir do papel de parede e do pássaro dourado decorativo que estrutura tal
ambiente, equilibrando e acomodando uma personagem nua e despreocupada,
mesclando os conceitos oníricos e líricos da arte urbana Lowbrow.

Fig. 45- Musicalizando, 2009, grafite, 300 x 250 cm.


Biblioteca Municipal, São Carlos, SP.

96
Acentuando algumas características burlescas dos famosos cabarés da
Belle Èpoque, como a decoração Art Nouveau, com seus papéis de parede
floridos e rebuscados ou, ainda, suas estruturas trabalhadas em ferro que se
retorcem e moldam-se em delicados ornamentos naturais, vegetais ou animais, as
obras acima (figs. 44 a 46) propõem hibridismos potencialmente sensuais e
eróticos.

Fig. 46- Sobre suas asas, 2009, grafite, 220 X 180 cm.
Centro Cultural da Juventude, SP.

Na mistura da poética as obras configuram-se mediante contaminações


artísticas não somente da Art Nouveau, mas também do mangá, da ilustração e do
grafite, num discurso que se forma pela completude estética, permitido pelos

97
conceitos da Arte Lowbrow sob a contaminação de gêneros que proporcionam a
formação de uma narrativa única, fundamentada no corpo feminino exposto à
celebração da sensualidade.
As já citadas formas Art Nouveau revelam-se também na obra “Sobre
suas asas” (fig. 46) e dissimulam-se em “O leque” (fig. 44), combinando essas
influências, aprimoradas na graciosidade ornamental da Art Nouveau, apropriado
e aplicado, ainda, na obra “Musicalizando” (fig. 45), assim como em algumas
obras já expostas nessa dissertação.
Não apenas por incorporar características do Lowbrow, mas por
configurar um ambiente burlesco e peculiar, semelhante aos cabarés da Belle
Èpoque parisiense, as obras acima (fig. 44 a 46) abordam o que diversos artistas
já retrataram ao longo da história da arte, o universo dos cabarés, com suas
melindrosas.
Gustav Klimt (fig. 47) é um exemplo que esbanja sensualidade com
suas mulheres, representadas em meio à teatralidade sedutora das enigmáticas
coristas Art Nouveau, numa proposta próxima à minha, porém anterior, traduzida
em dourados, texturas e estruturas composicionais complexas, mediante corpos
estilizados. Alphonse Mucha (fig. 48) com suas “deusas” oníricas de cabelos e
vestidos esvoaçantes, que se misturam às flores e arabescos é um outro exemplo,
que serve ainda de inspiração para diversos artistas visuais da atualidade, a partir
de elementos curvilíneos e florais, que conferem às obras delicadeza e harmonia,
na apropriação de tais elementos estruturais.
Na atualidade, dentro dessa mesma característica Nouveau, podemos
observar as obras da americana Audrey Kawasaki (fig. 49) com a série Hint Mint
de 2012 e o grafite de 2011 do artista brasileiro Ronaldo Inc. (fig. 50), que
mesclam tais estruturas artísticas com o mangá japonês e a ilustração,
construindo uma poética híbrida, característica da Arte Lowbrow e
contemporânea.
Sendo citado como um forte referencial estrutural de minhas obras, a
Art Nouveau preocupava-se em abranger e reunir um público tão amplo quanto

98
fosse possível e ganhou as ruas por meio de cartazes, como afirma Bernard
Chapigneulle (1976), alcançando todo o povo, através da publicidade mural
ilustrada que começava a se lançar numa relação de aproximação com o
espectador, através de meios massivos de comunicação, familiarizando-o com a
Arte Lowbrow em suas manifestações urbanas por meio do grafite, técnica
artística por mim aplicada nas obras deste subcapítulo (figs. 44 à 46), numa
espécie de apropriação midiática popular, que possibilita a “invasão” sorrateira do
contexto social atual.

Fig. 47- Gustav Klimt, Judith, Fig. 48- Alphonse Mucha, Rêverie,
1901, óleo sobre tela, 84 x 42 cm. 1897, litografia, 184,66 x 132,59 cm.

Fig. 49- Audrey Kawasaki, Fig. 50- Ronaldo Inc., Louvrex, 2011,
Lilian (série Hint Mint), 2012, grafite, 130 x 250 cm.
óleo e grafite sobre madeira, Fonte: http://www.flickr.com/photos/
35,56 x 35,56 cm. ronaldoinc/6054450186/lightbox/

Fonte: http://www.audrey-kawasaki.
com/galleries.php?g=1&p_id=632&page=1

99
Sobre os cartazes do Art Nouveau Chapigneulle afirma:

[...] O cartaz não tinha ainda as regras concebidas para provocar o


choque publicitário. Também os pintores mais em voga não
desdenhavam de se lhe consagrarem, aliando-se ao comércio.
(CHAMPIGNEULLE, 1973, pp. 259 - 260).

Fig. 51- Alphonse Mucha, Gismonda, 1894,


litografia colorida, 216 x 74,2 cm.

Deste modo, sofrendo fortes influências da Art Nouveau, com suas


linhas fluidas e ornamentais, a indústria gráfica do século XIX, lançou e
popularizou artistas como Toulouse Lautrec e Alphonse Mucha, este último,
devido ao cartaz que produziu sob encomenda para a reconhecida e famosa peça
Gismonda (fig. 51), impulsiona sua carreira no âmbito da publicidade mural
ilustrada, tornando-se um dos principais affiches parisienses. (CHAMPIGNEULLE,
1973).

100
Outro processo de inserção gráfica e artística são os clássicos e, tão
disseminados mangás japoneses, oriundos de manifestações cômicas e algumas
vezes eróticas do século XVIII como os ukiyo-e20, que fizeram com que o pintor
Katsushika Hokusai (fig. 52) utilizasse pela primeira vez este termo, mangá 21 ,
trazendo em suas páginas relatos lúdicos e complexos que articulam-se em
narrativas fantásticas e populares, povoando as bancas de todo o mundo,
propiciando inúmeras possibilidades referenciais.

Fig. 52 - Katsushika Hokusai, Cinco mulheres bonitas, 1804-1818,


rolo de suspensão, nanquim e cor em silk, 180,34 x 45,72 cm.

Fonte: https://www.1000museums.com/enlarge/203084/

20 “Gravuras feitas a partir de pranchas de madeira, geralmente de temática cômica e algumas


vezes eróticas [...] seus criadores preferiam a crítica social e a sátira à perfeição estética”.
(MOLINÉ, 2004, p.18).
21
A primeira pessoa a utilizar a palavra mangá foi o artista Katsushika Hokusai, que unia os
caracteres man (involuntário) e ga (desenho, imagem) “[...] que se impôs como sinônimo de tudo
que é relacionado à caricatura, ou ao humor gráfico, [...]” semelhante à “[...] palavra inglesa
cartoon. Mesmo tendo de esperar até a segunda década do século 20, para que o termo mangá
fosse consolidado, Hokusai não poderia imaginar que a palavra por ele inventada abriria caminho,
a partir da referida década, a uma das mais prósperas e gigantescas indústrias do país [...]”.
(MOLINÉ, 2004, pp.18 - 19).

101
“Antes do termo mangá ser adotado, existiam outros nomes para
designar a arte narrativa em imagens sequenciais [...], como por exemplo, [...]
Giga (desenhos divertidos), cuja origem é chojugiga - desenhos engraçados de
pássaros e animais [...]”. (LUYTEN, 2000, p. 43).
Os mangás se apresentam neste subcapítulo, assim como em 2.1
Ludus e em 2.2 Dominus, como uma grande influência e referência por sua
característica ilustrativa e estilizada, aparecendo em meus trabalhos como
influência dos primeiros traços que deixaram vestígios, como a estilização da
figura humana, os ambientes fantásticos, cabelos rebuscados, roupas
extravagantes e narrativa lúdica, numa representação metafórica e simbólica,
típica das HQs22.

A aparência física dos heróis foi sofrendo mutações ao longo dos


tempos. No moderno mangá, os heróis e as heroínas pouco
lembram o povo nipônico. A ocidentalização do Japão após a
segunda guerra mundial mudou a preferência estética na
idealização dos personagens. São agora desproporcionalmente
altos e esguios, com olhos arredondados, características estas não
encontradas nas histórias cômicas que conservam os traços dos
personagens dentro do padrões estéticos japoneses. (LUYTEN,
2000, p. 71).

Sugerindo configurações formais caricatas e estilizadas, os


personagens de mangá são identificados pela singularidade estética que lhes é
particular, como por exemplo, se apresentam com grandes olhos e silhueta
alongada. Nos grafites acima, por mim concebidos, “O leque” (fig. 44),
“Musicalizando” (fig. 45) e “Sobre suas asas” (fig. 46) esta influência referencial
pode ser observada a partir da proposta interativa, que introduz no ambiente

22
História em Quadrinhos.

102
urbano figuras alongadas de olhos cerrados, contendo no contorno da face,
principalmente nos dois últimos grafites, traços estilizados e “resumidos”, próprios
do mangá. Ainda, podemos ressaltar os corpos em repouso do grafite “Sobre suas
asas” ocupando um ambiente construído, cuidadosamente, para abrigá-los em
meio ao caos organizado das cidades reais, junto à uma ornamentação de
elementos curvilíneos que se assemelham à estética Art Nouveau, apropriada em
parte pela Arte Lowbrow.
Praticamente, todos trabalhos apresentados nestes subcapítulos,
“Fabulações” e “Ata-me!”, carregam as características técnicas e estéticas da
ilustração, entendida como obras que, estando, deste modo, automaticamente
conectadas ao desenho figurativo, ligam-se ao referencial, indo de desenhos
detalhados de estudos anatômicos aos estilizados, como os mangás.

O toque essencialmente luminoso do ilustrador e a maestria de


seu trabalho constituem seu principal fascínio. Em livros ou
revistas, a ficção e a fantasia são o território preferido de sua
imaginação. (DONDIS, 2000, pp. 203 - 204).

A ilustração possibilita uma visão descritiva, deslocada para os


princípios artísticos da imaginação, que permitem ao artista dar vazão às suas
subjetividades, aliando o virtuosismo do desenho, que pode ser observado a partir
dos esboços elencados nas páginas 133 à 136, às mais variadas práticas da arte,
construindo produções visuais num processo criativo, visto que a ilustração trata
de uma linguagem não verbal, que procura expandir visualmente uma
determinada informação.
Assim, a arte da ilustração se beneficiou e ganhou forças com o
desenvolvimento artístico e estético da indústria gráfica. A estilização possibilitou a
artistas como Toulouse- Lautrec realizar algo mais simples e direto, numa

103
expressão onde “a fidelidade ao motivo ou a narração de uma história animada já
não importavam mais, desde que a ilustração ou a gravura tivessem efeito
agradável”. (GOMBRICH, 2011, p. 554). Fruto da subtração ou da adição de
elementos formais, na proposta de um visionamento sintético da forma,

[...] o termo relacionado “abstração” tende a ser usado em dois


sentidos correlatos mas distintos: para referir-se, no caso de certas
obra de arte, à propriedade de serem abstratas ou “não
figurativas”; e para referir-se ao processo pelo qual certos
aspectos dos temas ou motivos são enfatizados nas obras de arte
em detrimento de outros. (HARRISON, 1998, p. 185).

Deste modo, a estilização se encaixaria na proposta de uma


composição mediante um referencial, muitas vezes apresentando apenas seus
elementos básicos ou ainda de estruturação formal, relacionando e
personalizando esteticamente este referencial, ou seja, eliminando alguns
detalhes, mas salientando outros, apenas aquilo que nos é de interesse, sendo a
“abstração” considerada “[...] a expressão pictórica que caracteriza o século XX,
como menciona Donis A. Dondis (2000, p. 98).
Desde a antiguidade, a estilização esteve presente nas expressões
plásticas humanas mediante a busca da originalidade e às quebras de
paradigmas, em incansáveis experimentações estéticas e poéticas que
culminaram na arte contemporânea, sendo “[...] aquilo que está presente numa
obra de arte precisamente quando um artista faz a distinção perfeitamente
prescindível entre matéria e maneira, tema e forma”. (SONTAG, 1987, p. 9).

104
A "estilização" numa obra de arte, distinta de estilo, reflete uma
ambivalência (afeição desmentida pelo desprezo, obsessão
desmentida pela ironia) em relação ao tema. Esta ambivalência é
resolvida mantendo através da camada retórica da estilização uma
distância especial do tema. (SONTAG, 1987, p. 9).

Mostrando-se como um das características da arte do século XX, a


estilização atua em um ambiente sensível, onde a ironia se faz presente em
detrimento “[...] à desordem social e às atrocidades em massa do nosso tempo
[...]” (SONTAG, 1987, p. 41), terreno fértil para o Grafite, em sua concepção
imagética geralmente estilizada, com manifestações liberais e contestadoras que
propõem um diálogo direto ou subjetivo com o espectador.
Segundo Celso Gitahy, o grafite veio para democratizar a arte. Assim
como ele, outros estilos artísticos se pronunciaram ao longo da história da arte na
mesma intenção, como podemos constatar com a Art Nouveau com seus
inúmeros cartazes e, ainda, a exemplo da Pop Arte com produções massificadas,
trabalhadas em série, abordando temas cotidianos da América em meados dos
anos cinquenta e sessenta.
Já, nos anos 80 foi revelado ao mundo o artista Jean-Michel Basquiat,
um dos maiores nomes da expressão urbana, que não entrou na arte erudita
graças a uma formação artística tradicional, ao contrário de Keith Haring,
contemporâneo do artista, “[...] a quem, durante algum tempo, o mundo da arte
nova-iorquina se rendeu [...]”. (HONNEF, 1992, p. 157). Ambos artistas
conquistaram e abriram um espaço para o grafite na arte mundial, dando início ao
processo de reconhecimento desta expressão artística, essencialmente urbana e
marginal, pelos meios da arte, até o momento dita erudita.
Diante dessa democratização artística o grafite deu um passo além,
tomando as ruas com sua necessidade irrefutável de liberdade de expressão.
Numa linguagem, que se pronuncia sob características que manifestam uma

105
beleza sensual e nua (fig. 46), podemos também notar, que tanto as
características estéticas quanto as conceituais atuam juntas, a fim de proporem
sentidos fendidos, quando sublinha GITAHY (1999) sobre as características da
linguagem do grafite.
Numa abordagem poética os grafites de minha autoria, apresentados
neste subcapítulo (figs. 44 a 46), orientam-se sob influências diversas que criam
uma atmosfera de memórias. Compõem um imaginário que, embora inconsciente,
estrutura-se numa atmosfera fértil e produtiva de conceitos artísticos, a serem
continuamente explorados sob visionamentos, elucidando-os no decurso da
dissertação.

3.2 ATA-ME!

Amarrar, prender, juntar, unir, fechar, existem vários sinônimos para


esta mesma palavra “atar”, neste subcapítulo intitulado “Ata-me!” a amplitude
desta palavra vai desde do ato de amarrar a ação poética de curar e fechar
cicatrizes a textos mais oníricos de todo processo, que se direciona
sinestesicamente a algo intenso e pulsante, atordoando e aprisionando as
emoções diante de dissimulações visuais, que se materializam em semblantes
compassivos de olhos cerrados.
Numa proposta artística diferenciada, de caráter pessoal, os trabalhos
da produção dessa dissertação trazem a presença subjetiva dos anos 90, como
uma de suas fontes de referência, com artistas que mostraram-se protagonistas
de suas próprias obras, empregando o conteúdo de suas vidas na criação das
mesmas, através de suas histórias pessoais. A narrativa dessas obras cerca-se
deste individualismo artístico pessoal.

106
O sinal dos anos 90 é a falta de direcção. Alguns podem escolher ver
neste facto os padrões subjacentes para a era do pós-vanguardismo. O
vanguardismo está a esgotar o vapor? Mas estes sentimentos de
desorientação, resignação ou liberdade dependem muito do ponto de
vista pessoal de cada um. Em meados dos anos 90, o design artístico já
não se está a deslocar em sincronismo com os outros designs. Os
desenvolvimentos colectivos ou atingiram uma pausa ou moveram-se
lentamente para um ponto invisível. A arte - ou talvez apenas a escultura,
ou mesmo só a pintura - não está a regenerar-se a partir das rupturas
revolucionárias e das grandes linhas de evolução do passado e, pelo
contrário, está a beber na fonte de cada trabalho individual.
(SCHNECKENBURGER, 1999, pg. 575).

Intensas e emotivas, as obras aqui apresentadas - “Bem me quer, Mal


me quer” (fig. 53), “Ata-me!” (fig. 55), “Suave Pulsar” (fig. 56), “A Títere” (fig. 57),
“Devaneio” (fig. 61) e “Costura” (fig. 62) - trabalham diante da perspectiva
simbólica de elementos mordazes como anzóis, fechaduras, peitos dilacerados e
líricos, como corações e nuvens nubladas, que sugestionam uma atmosfera
onírica e repleta de alegorias, rondando as trilhas do subconsciente.
Em número de seis, as obras inclusas neste subcapítulo (figs. 53 a 56 e
60 a 61) mostram uma narrativa onírica, que se move em direção a uma
abordagem peculiarmente perturbada, na qual as aparências enganam e os
sentidos confundem-se, criando uma atmosfera que se completa por meio de suas
características plásticas.
Trabalhadas a partir da técnica aguada, da aquarela e do nanquim,
algumas destas obras (figs. 53, 55 a 57) constroem uma estética fluída e livre,
com manchas soltas, porém pensadas para a formação de uma poética que
mistura linhas e “massas liquefeitas”.
Permeadas pela nostalgia da infância, pelo magnetismo circense e
pelas realidades controversas do mundo real subvertido, tais obras (figs. 53, 55 à
57, 61 e 62) apresentam grande parte dos assuntos que se segmentam ao longo
das narrativas e visionamentos.

107
No plano de expressão da obra, a palheta usada configura tons
acinzentados e vermelhos que formam um jogo delicado de sensações,
dissimuladas e por vezes explícitas, gerando uma narrativa complexa e
conturbada, diante de sensações diametralmente opostas e afastadas, porém
próximas, sendo tais relações analisadas abaixo de cada obra.

Fig. 53- Bem me quer, Mal me quer, 2009, nanquim e aquarela sobre papel,
20 x 20 cm. Exposta na Small is Beautiful, Edge Art Galery, Londres, UK.

108
Nua, porém confortável, a figura feminina da obra “Bem me quer, mal
me quer” (fig. 53) manifesta-se sugerindo uma narrativa onírica diante do corpo
suspenso em uma lira circense, fixada apenas por uma singela fita de cetim por
entre nuvens carregadas, em um céu nublado e orgânico.
Uma parábola se articula diante das flores despetaladas neste espaço
celestial, no qual o semblante plácido e despreocupado da personagem apenas
dissimula suas reais sensações, ficando a cargo do ambiente de nuvens que a
circunda, a exposição enternecida dos sentimentos humanos, numa transferência
de valores, na qual as cores frias do céu potencializam sua solidão.
O isolamento onírico da personagem exprime uma narrativa paradoxal,
poeticamente possível, mas improvável do ponto de vista da realidade. Tudo na
obra configura-se de modo que as antíteses estabeleçam uma relação de poesia
romântica, como um apelo aos sentidos literários. O espectador é convidado a
sentir o frio físico e desprotegido da solidão, tão imenso quanto o céu.
Magra, alongada e nua, a personagem não estabelece um
posicionamento sensual explícito, pois a lira e o gesto infantil, as meias sete
oitavos e o chapéu de corista inocentam-na, numa espécie de retórica, atitude
similar ao ideário de André Breton em relação à mulher como uma femme-enfant23
BRADLEY (1999, p. 48) e reúne em si a ingenuidade admirável da juventude, num
misto de mulher e criança, hibridizando potências divergentes que a convergem à
sensualidade erótica do fetiche.
Em “Bem me quer, mal me quer” a técnica da aquarela configura
massas nebulosas que se expandem por toda obra num espetáculo orgânico, no
qual a tinta se esparrama pelo papel, formando fluidas nuvens neste céu cinza.
A técnica de desenhar com cores aguadas ou diluídas em água - a
aquarela - já era conhecida desde a antiguidade, particularmente pelos egípcios e
outros povos. Segundo Edson Motta (1976, p. 95), ela destaca-se, ainda, por sua
suavidade e delicadeza. A aquarela é uma técnica artística difícil de datar, adotada

23Mulher-criança, ninfeta. Uma espécie de musa inspiradora, presente no ideário surrealista.


(BRADLEY, 1999, p. 48).

109
também entre os chineses das velhas dinastias, estando ligada à história do papel,
“[...] cerca de dois séculos antes da era cristã, [...] com suas raízes intimamente
relacionadas ao grafismo oriental. (MOTTA, 1976, p. 95)24
Amplamente utilizada em estudos cromáticos por navegadores,
topógrafos e naturalistas, por sua praticidade, a aquarela foi ganhando espaço,
alcançando seu apogeu com os ingleses com a fundação da Society of Water-
Colour Painters, em 1831, porém os artistas “[...] pré-impressionistas,
impressionistas e pós impressionistas, também utilizaram-se da aquarela como
forma de expressão, assim como [...] Henri Matisse, Rouault, Raoul
Dufy, Picasso, Kandinsky, Miró, Arp, Klee e outros [...]”. (MOTTA, 1976, p. 97).
Ainda, navegando pelas águas translúcidas das aquarelas e aguadas,
Egon Schiele (fig. 54), pintor austríaco, que ligava-se ao movimento
expressionista, fascina por seu trabalho primorosamente fluido, em técnica
liquefeita que combina linhas e massas, aliando a versatilidade das aguadas em
aquarela e guache diluído, às linhas, assim como nas obras deste subcapítulo
(figs. 53, 55 a 57), que possuem uma proposta formal similar, no trato de aguadas
em nanquim ou aquarela, que combinam em seu discurso singelas e finas linhas,
a exemplo da obra acima “Bem me quer, Mal me quer” (fig. 53).
Protegido de Gustav Klint, Schiele (fig. 54) mostrou-se um ávido e
apaixonado pelas formas femininas25, em particular pelas magras e andrógenas,
suas modelos eram meninas da classe proletária e prostitutas, que conferiam à
sua obra uma grande potência sensual e erótica26.

24 “[...] a antiga pintura chinesa, executada sobre seda, tábuas ou papel, tanto quanto a antiga
pintura persa, quase exclusivamente conhecida através das iluminuras de seus incunábulos, eram
feitas com aglutinantes que tinham como diluente a água e os colorantes eram aplicados, em
parte, por transparência e, em parte, por opacidade. Os chineses da antiguidade produziram a
aquarela em seu sentido mais puro; data provavelmente, da mesma ocasião a descoberta dos
pincéis de pêlo de coelho, introduzidos na arte da escrita”. (MOTTA, 1976, p. 95).
25 As ideias estereotipadas de beleza feminina não interessavam a Schiele. Ele sabia que os

estímulos do olhar estão interligados com os mecanismos de nojo e fascínio. O corpo contém o
poder do sexo e da morte dentro de si. (SELSDON; ZWINGERBERGER, 2011, p. 7, tradução
nossa).
26 SELSDON, E; ZWINGERBERGER, J. Egon Schiele. New York: Parkstone Press International,

2011, p. 18.

110
Fig. 54- Egon Schiele, Nu feminino em pé com cabelo preto, 1910,
lápis aquarela sobre papel. Museu Albertina de Viena.

Fonte: http://arttattler.com/archiveegonschiele.html

Nesta temática sensual como as de Schiele, essa pintura assimétrica


(fig. 54) expande-se e, como líquido produz aquarelas, desenhos e esboços que
caracterizam o olhar ingênuo, sujo, triste e melancólico, todavia com linhas nítidas.
A execução agressiva faz deste um trabalho singular, com manchas orgânicas e
fluidas, que vão de encontro ao princípio da liberdade, expresso num corpo que se
expande em cores solúveis e aguadas, estabelecendo um elo relacional com a
obra anterior (fig. 53).
Numa poética sensual, porém menos sexualmente explícita que a de
Schiele, as obras que se apresentam neste subcapítulo não se encaixam
completamente nos princípios poéticos do referido artista. Sua potência erótica e a
despreocupação com os padrões de beleza articulam-se por toda sua produção

111
artística de forma voraz e veemente, elas possuem formas femininas magras e
agradáveis.
Na proposta de representar a sutil e a impotência humana diante dos
sabores e dissabores da vida, referencio aqui Egon Schiele na representação de
sua fatura, por meio de desenhos em aguadas e aquarelas que se combinam e
estruturam às finas e delicadas linhas.

Fig. 55- Ata-me!, 2009, nanquim e aquarela sobre papel, 20 x 20 cm.


Exposta na Small is Beautiful, Edge Art Galery, Londres, UK.

112
Numa proposta similar à da obra “Bem me quer, Mal me quer” (fig. 53),
as obras “Ata-me!” (fig. 55) e “Suave Pulsar” (fig. 56) apresentam também um
discurso sentimental, no entanto, o direcionamento visual das mesmas mostra-se
distinto da primeira, visto que a obra anterior (fig. 53) refere-se a uma linguagem
onírica sob a perspectiva lúdica da inocência infantil, ao passo que tais obras (figs.
55 e 56) sugerem a dor latente da mutilação e da dúvida adulta.
Solitárias, as personagens femininas nestas obras não jogam
inocentemente com suas certezas e incertezas, estas já foram postas à prova,
restando apenas uma saída, livrar-se da causa de seus males, arrebatando o
símbolo máximo dos sentidos humanos, o coração.
Órgão central, biologicamente fundamental para a vida, o coração é um
músculo cardíaco com a função de bombear sangue oxigenado para todo corpo,
porém sua simbologia codifica milhares de significados sociais e culturais, onde
parti-lo é sofrer e vê-lo conquistado é perder o controle da racionalidade diante
das sensações do amor e da paixão.
Diante de tal contradição, o coração se fecha no peito com medo da dor
de abrir-se sentimentalmente para o mundo, interditando-se em sua própria forma
análoga e delicada, embora sua chave apresenta-se escondida ou explícita em
algum lugar.

113
Fig. 56- Suave Pulsar, 2009, nanquim e aquarela sobre papel,
20 x 20 cm. Exposta na Small is Beautiful,
Edge Art Galery, Londres, UK.

Numa abordagem afetiva o coração apresentado nestas obras (figs. 55


e 56) surge como um elemento de desvio psicológico, assim como na obra “A luz”
(fig. 40), apresentada no subcapítulo anterior. “Ata-me!” e “Suave Pulsar” retomam
o conceito do amor em liberdade poética, oferecendo uma via de transmutação da
carne para o espírito.
Em “Ata-me!”, especificamente, a narrativa metafórica da personagem
que costura o próprio peito, após retirar seu coração e depositá-lo em uma caixa,
a fim de protegê-lo, reflete sobre o amor sublime, potencializado na remoção
cardíaca. Ao se livrar do órgão, a personagem torna possível a liberdade, na

114
organização ilógica por meio do inconsciente que justifica todo e qualquer
disparate.
Seja guardado em uma caixa de vidro ou fortemente amarrado por
correntes as obras discorrem sobre o estranhamento poético da visceralidade
carnal versus a potencialidade metafórica da vida pulsante cardíaca, que se dá no
momento em que as personagens não deixam de viver sem seus corações ao
proteger-se dos mesmos, arrancando-lhes do peito e guardando-os numa caixa,
ou ainda, abandonando-os, amarrando-os e trancando-os em meio a tantas
chaves, contrariando a biologia e a normalidade, aliando-se a uma operação
plástica com forte caráter simbólico.
Gaston Bachelard considera que

Se aproveitarmos as imagens para fazer psicologia,


reconheceremos que cada grande lembrança - a lembrança pura
bergsoniana - está engastada em seu cofrezinho. A lembrança
pura, imagem que é unicamente nossa, não queremos comunicá-
la. [...] só confiamos detalhes pitorescos. Mas seu ser
propriamente dito nos pertence e jamais desejaremos dizer tudo
sobre ele. Isso não tem a menor semelhança com um recalque. O
recalque é um dinamismo inábil. É por isso que seus sintomas são
tão evidentes. Mas cada segredo tem seu cofrezinho; esse
segredo absoluto, bem trancado, escapa a qualquer dinamismo. A
vida íntima reconhece aqui uma síntese entre a Memória e a
Vontade. Aqui está a Vontade de Ferro, não contra o exterior,
contra os outros, mas além de qualquer psicologia do contra. Em
torno de certas lembranças do nosso ser, temos a segurança de
um cofre absoluto. (BACHELARD, 1993, p. 97).

Em termos gerais o visionamento proposto por estas obras ronda as


trilhas do subconsciente, com narrativas absurdas, reforçadas diante da presença

115
de signos recorrentes como chaves, fechaduras e corações, na alusão romântica
da significância sigilosa e protetora de personagens cardiopatas, que resguardam
seus sentimentos sob tais símbolos.

Fig. 57- A Títere, 2009, nanquim sobre papel, 20 x 20 cm. Exposta


na Small is Beautiful, Edge Art Galery, Londres, UK.

Partindo para outro tipo de discurso, que se instaura na brincadeira, a


obra “A Títere” (fig. 57) retoma as características do lúdico em sua potência
subversiva, personagem e brinquedo interagem de modo que não há eu ou você,
ambas as figuras que ocupam o espaço da folha de papel são iguais, sendo a
títere refém de sua marionete e vice versa.

116
Na sociedade atual, há a preocupação diária de como se portar, se
expressar, se articular, numa representação infinita que muitas vezes não
condizem aos reais sentimentos ou atitudes do ser, como se fossemos títeres de
nós mesmos. De um ponto de vista psicológico, buscando uma significação de
vida, esta obra focaliza a necessidade humana de se libertar do estigma de
“marionete”, saindo de si mesma e mirando aquilo que está ao redor, tornando-se
pessoa, não apenas sua própria marionete.
Na possível busca de evitar a dor, na ânsia pelo prazer, em “A Títere” a
marionete faz as vezes da retórica eufemística, na qual a personagem títere deixa
que a marionete viva seus infortúnios, no intento de proteger-se da sociedade, de
forma a se moldar conforme a situação, sem se expor realmente, tratando-se de
um jogo psicológico, no qual vence o melhor titereiro.
No intento de potencializar essa narrativa simbólica e ambivalente,
perante certa atmosfera sombria, alguns elementos gráficos e simbólicos foram
marcados nas obras acima (figs. 55 e 56), criando uma poética soturna, que
hibridiza o lúdico nostálgico ao melancólico visceral. Olhos cerrados, flores em
jogos de amor e peitos flagelados com corações lacrados, na figuração da
ambiguidade de um orbe, que embora belo mostra-se frágil e solitário.
Nos ímpetos emocionais, as ruínas mesclam-se à onipotência do ato de
amar, explorado diante da desilusão representada em figuras submersas, na
constatação exaustiva da falta do sentido de existir, equilibrando-se sob uma
situação de vazio proeminente, que forja na própria carne suas transcendências e
angústias, legitimando a dor reinventada e gracejada com luvas e tutus em laços,
que se fazem e se desfazem, de modo a construir uma frágil tessitura que
apresenta no desencanto seu real encantamento.
Trabalhando elementos simbólicos, referentes ao amor e à paixão, a
exemplo dos corações e peitos remendados ou dilacerados, tais obras (figs. 55 e
56) manifestam-se a partir da dor e do prazer de viver esses sentimentos,
externando-os de modo peculiarmente emocional, trazendo a tona o desconforto
da desilusão ou do adeus. Intensas e latentes, lidando num nível icônico, com

117
laços que se fazem e desfazem continuamente, esses trabalhos refletem também
sobre uma frágil tessitura das relações humanas, amorosas ou não, que podem
ser desconstruídas, numa abordagem metafórica, com um simples fio partido ou
linha puxada.
Agregando valores vivenciais de uma fase específica, o alter ego
representado e apresentado nas obras que compõem este subcapítulo, constitui
uma espécie de elo cognitivo emocional, materializado nas linhas, cores e texturas
que as tecem, associação deturpada de amor e dor, numa narrativa da Arte
Lowbrow.
Com seus disparates e analogias cognitivas a Arte Lowbrow e mesmo o
Surrealismo são referenciais desses meus trabalhos e anseios poéticos, cada qual
dentro de sua particularidade, como o lirismo onírico e a estilização das formas
pautadas no mangá, na ilustração e na cultura underground da Arte Lowbrow,
como por exemplo no grafite “Costura” (fig. 62) completando, desta forma, um
discurso deturpado e autobiográfico.
Aqui cito Frida Kahlo, artista referencial potente e pulsante, com sua
produção autobiográfica. Suas obras retratam o âmago e essência, de modo que
pode ser considerada a artista da dor e do amor. “Pensavam que eu fosse uma
surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria
realidade”. (KAHLO apud KETTENMANN, 1999, p. 48, tradução nossa).
Frida Kahlo forjou na própria carne dilacerada seu estilo de ser, sua
transcendência e fonte permanente de angústia, reforçando sua feição criativa,
sendo impossível não reconhecer em sua obra a legitimação de uma dor
reinventada pictoricamente e, confirmada através de seu próprio discurso: “Minha
pintura carrega em si a mensagem da dor”27.
Em sua obra “As duas Fridas” (fig. 58) a artista nos propõe um embate
conceitual à luz de uma relação corpórea e afetiva, que se posta num encontro
inaugural entre o Eu e sua completude no duplo, numa relação naturalmente
conflituosa e ambivalente. Esta relação é dotada de potências díspares, porém

27 Expessa por Frida Kahlo em: http://antroposmoderno.com/textos/FridaKalo.shtml

118
congruentes, figurando uma mulher cheia de conflitos, com a mesma essência e
sentimentos, porém pensando e agindo diferentemente, completando-se num ser
“único”, unidas pelo coração.

Fig. 58 - Frida Kahlo, As Duas Fridas28, 1939,


óleo sobre tela, 173,5 x 173 cm.

Do mesmo modo que Frida trabalha a semelhante emoção latente dos


surrealistas, a artista americana Tara McPherson (figs. 59 e 60), integrante da Arte
Lowbrow, também apresenta em suas obras uma narrativa que segue tal poética,

28 Pouco depois do divórcio entre Frida Kahlo e Diego Rivera, a artista realizou este autoretrato
constituído por duas personalidades. Aqui meditou sobre a crise matrimonial e a separação. Uma
das partes de sua personalidade, adorada e amada por Diego Rivera, é a Frida mexicana com
trajes de Tehuana, que segura, na mão esquerda um retrato de Rivera. A outra Frida está vestida
com um vestido de forma bem europeia. Os corações de ambos estão mantidos nus, juntos por
uma única artéria, porém a parte europeia de Frida Kahlo sangra pelo desprezo. (KETTENMANN,
1999, p. 53, tradução nossa).

119
visto que a artista procura trazer em seus trabalhos as relações humanas e suas
complexidades.
Em uma entrevista concedida ao site "The Filipino Star", Tara
McPherson diz que desenhar corações vazados em seus personagens tem nela
um sentido catártico, pois em nossas vidas, com seus altos e baixos, vivemos um
processo de amor e perda que se repete constantemente "[...] Amor e ódio são
duas das mais fortes emoções primitivas que temos [...]". (McPHERSON, 2010, p.
1, tradução nossa).

Fig. 59 - Tara McPherson, 2009, Fig. 60 - Tara McPherson, 2008,


Brincando com fogo - The Healer, O peso da água - parte III,
óleo sobre painel, 61 x 76 cm. óleo sobre tela, 76 x 102 cm.

Fonte:http://www.taramcpherson.com/

Nota-se ainda em Tara, influências dos mangás e da ilustração, sua


obra brinca com a falta do órgão vital, o coração, porém contrária à representação
de Frida (fig. 58), que se aproxima mais da forma real. Tara expõe uma imagem

120
estilizada, na qual o coração se desloca do peito, uma fatia completa deslocada do
corpo feminino em questão (figs. 59 e 60), como um grande e importante pedaço
de bolo, uma representação lúdica acerca dos sentimentos humanos.
Tais aspectos apresentados nas obras de Tara MacPherson e de Frida
Kahlo são semelhantes às minhas obras pois articulam-se da combinação de
elementos simbólicos, a exemplo das formas pictóricas de peitos dilacerados,
costurados e vazios, que auto-aprisionam os sentidos, transcendendo onírica e
jocosamente à fonte permanente de angústia, no reforço da legitimação da dor
resignificada.
Neste embate de relação corpórea e afetiva a possibilidade de prazer e
sofrimento monta uma situação naturalmente conflituosa e ambivalente, causando
certo estranhamento, frente à serenidade facial das mulheres que compõem este
subcapítulo, em um ambiente onírico, ao passo que este também apresenta a
crueza ferina de ganchos, anzóis e cadeados dissimulados pelo valor decorativo e
composicional dos mesmos.
Deste modo, essas obras surgem como composições pictóricas,
sugerindo segredos escondidos por trás de corações lacrados, pautados em
semblantes calmos e tranquilos, que protegem-se pela dissimulação dos embates
contraditórios da desilusão e da dor diante do amor, explícitos em sua significação
por meio da forma.

121
Fig. 61 - Devaneio, 2012, acrílica sobre tela, 50 x 50 cm.

Massas e cores conferem à obra (fig. 61) elementos pictóricos cheios


com texturas, enquanto o corpo completa a composição em detrimento do espaço
ocupado, de forma a contrastar com os tons claros e aguados do fundo,
reforçando a sensação etérea, proporcionada pelo conjunto composicional.
Deitada e descomprometida, em uma confortável poltrona vermelha, a
personagem de Devaneio se configura abrindo a caixa torácica com a mão direita,
exibindo uma enorme fenda no peito da qual brota o vazio, que pode ser
preenchido pela enormidade de corações que flutuam ao lado direito da tela.
Num fundo liquefeito de cores aguadas os corações surgem em linhas,
frágeis, delicados, transparentes e vazios, instaurando uma narrativa poética e
subjetiva: corações vazios exibem-se para um peito também vazio ou apenas
corações limpos para um corpo que se desfaz de suas próprias mágoas.

122
Articulada, num jogo sinestésico entre cheios e vazios, Devaneio (fig.
61) firma-se num discurso pautado na sintaxe visual, no qual o lirismo poético é
desencadeado das interpretações de seu visionamento. A força subjetiva da obra
firma-se em suas características objetivas, de modo que a proposta embasada no
contraste remeta-nos às questões vivenciais.
As linhas delimitam e marcam os corações flutuantes, proporcionando
uma atmosfera etérea de “Devaneio”. Sinuosas e desconexas, se analisadas
separadamente de seu contexto, conferem aos corações apenas o essencial da
forma.
Postada, na lateral inferior esquerda da tela, a figura feminina em sua
bela poltrona se materializa “cheia”, preenchida de cores e texturas,
proporcionando equilíbrio, uma espécie de zona de conforto que estabiliza o
visionamento diante do vazio pictórico, preenchido opostamente pelas
contraditórias figuras dos corações delineados.
O contraste da poltrona vermelha, onde a personagem se apoia
confortavelmente em relação aos corações vazios, propõe uma abordagem de
contrastes duplos; o aspecto formal das linhas em relação as massas liquefeitas
que compõem o fundo da obra e o aspecto simbólico, do peito “vazio”, em
oposição a um ambiente “cheio” de corações vazios, fantasmas devido às suas
transparências, além do flutuar desses corações que não se encaixam, fugindo da
figura feminina ali deitada. Símbolo de descanso e conforto, a poltrona conforta e
aconchega a personagem feminina, diante do flutuar de inúmeros corações
etéreos desenhados, sustentando em seu semblante fisionômico a calma e
complacência, numa situação de vazio cardíaco visceral de um ser que, embora
vivo, carece de essência viva e pulsante.
Na busca de um diálogo entre cor, figura e fundo e elementos
complementares, a exemplo dos corações, uma relação sentimental se aplica à
composição cromática da obra, entre vermelhos apaixonados que se misturam a
azuis passivos, gerando roxos mórbidos e inebriantes, o desconforto do peito

123
exposto e vazio se materializa nestes diálogos impulsivos do subconsciente
exposto na obra, conectando-se com Frida e suas auto-representações viscerais.

Enquanto o tom está associado a questões de sobrevivência,


sendo portanto essencial para o organismo humano, a cor tem
maiores afinidades com as emoções. [...] A cor está, de fato,
impregnada de informação, e é uma das mais penetrantes
experiências visuais que temos todos em comum. Constitui,
portanto, uma fonte de valor inestimável para os comunicadores
visuais. (DONDIS, 2000, p. 64).

Numa abordagem enternecida, que se pauta no coração, podemos


observar dores e dissabores em “Costura” (fig. 62) e em “Ata-me!” (fig. 55),
articulados numa proposta auto-reconstrutiva de uma personagem que brinca ou
se desfaz de um coração já cansado de submeter-se aos caprichos do amor.

Fig. 62- Costura, 2010, grafite, 220 x 180 cm.


Encontro de grafiteiras. Salvador, BA.

124
Executada na técnica de grafite, sob poética underground da
Arte Lowbrow, por meio de discursos híbridos e sentimentais, a obra “Costura”
(fig. 62) é referenciada no mangá, a exemplo das estilizações composicionais
típicas do estilo e do pintor japonês Katsushika Hokusai29 , precursor desta técnica
de ilustração japonesa, que como citado no início do subcapítulo "Ata-me!", “[...] se
impôs definitivamente como sinônimo de tudo o que é relacionado à caricatura ou
ao humor gráfico [...]”. (MOLINÉ, 2004, p. 18).
Essa figura (fig. 62) apresenta-se indiferente e passiva, segurando um
coração que sangra fisgado por um anzol, ao passo que seu peito encontra-se
marcado por uma grande e recente sutura, propondo uma narrativa ambígua em
relação às sensações apresentadas. Vazia, a personagem de “Costura” constitui-
se de cores neutras - preto e branco - uma relação dicotômica e sensorial, em
oposição ao vermelho lascivo e intenso do fundo de seu corpo pálido e quase
mórbido, propondo um embate entre vida e morte, amor e dor, onde sentir os
solavancos intensos da paixão é viver e deixar de senti-los, é pouco a pouco
sucumbir aos dissabores da vida arrebatadora em sua monotonia monocromática.
Tais acontecimentos sensíveis surgem nessa obra conferindo-lhe cores e texturas,
de modo que o aspectos monocromáticos completem a composição, construindo
uma narrativa contraditória que se confirma nos estímulos visuais, articulados nas
forças compositivas, originando significados nela aplicados.

Em todos os estímulos visuais e em todos os níveis da inteligência


visual, o significado pode encontrar-se não apenas nos dados
representacionais, na informação ambiental e nos símbolos,
inclusive a linguagem, mas também nas forças compositivas que
existem ou coexistem com a expressão factual e visual. Qualquer
acontecimento visual é uma forma com conteúdo, mas o conteúdo
é extremamente influenciado pela importância das partes
constitutivas, como a cor, o tom, a textura, a dimensão, a
proporção e suas relações compositivas com o significado.
(DONDIS, 2000, p. 22).

29 Séc. XVIII.

125
Assim, em um fundo que nos lembra uma aura Art Nouveau, essa figura
dissimula seus sentimentos, o coração pendurado entre seus delicados dedos
pende por uma fina linha, que culmina em um grande e devastador anzol, fazendo
com que o órgão desenhado em sua forma estilizada e caricata sangre,
estabelecendo uma metáfora da dor e da desilusão, porém contraditoriamente a
esta cena lúgubre, numa representação simbólica de esperança e, voando aquém,
surge o coração alado. Libertador, esse coração alado, vermelho vivo com suas
asas e coroado por uma flor de lis dourada, sugere pureza e inocência e sobrevoa
a personagem cardiacamente à esperança de renovar-se, reestabelecer-se
perante os infortúnios e desventuras do coração fisgado e “descartado”.

4. CONCLUSÃO

Numa investigação que compreendeu minha produção visual em


desenho, pintura e grafite e, sua estética como objeto de estudo, esta dissertação
de mestrado "Parábolas e Fabulações: uma investigação em arte",
abordou questões referentes a certas hibridizações e “linguagens” da arte
contemporânea, a partir de associações poéticas e conceituais que se
relacionaram a essa produção.
Com a Arte Lowbrow - que tudo absorve, como a ilustração, as práticas
circenses e a cultura dos remakes - minha produção tomou corpo, se
influenciando também, consideravelmente, por movimentos como o Surrealismo, a
Art Nouveau, a Commedia dell’arte, a Arte Pop e da pintura dos anos 80, como os
grafites e a Pattern Painting, com suas padronagens estampadas. Essas
comparações, que até então não havia feito ao longo da graduação, salientaram
aspectos arraigados de minhas obras, que passavam despercebidos para mim

126
como artista e, atualmente como pesquisadora pude explorar e com eles me
encantar. Essas influências dizem respeito aos procedimentos e operações
plásticas semelhantes, utilizadas tanto nas obras desses movimentos como nas
minhas.
Essa dissertação de mestrado inseriu-se na linha de Poéticas e
Processos de Criação e buscou em minha experiência expressiva a possibilidade
de uma reflexão crítica sobre a experimentação envolvida na produção artística,
através de conceitos que foram associados aos territórios da arte contemporânea,
mais particularmente sobre as poéticas e perspectivas da já citada Arte Lowbrow,
que envolve, entre outras modalidades, também o grafite.
Concluindo, os argumentos, que foram dispostos ao longo dos
capítulos, contribuíram para a ampliação de meu repertório, tanto nas questões da
produção prática, quanto no que diz respeito à interpretação sobre a poética das
obras. Os estudos que foram apreendidos para a realização dessa dissertação
apresentaram-me um campo vasto aberto às distintas possibilidades, às
metodologias e ao campo artístico, relevantes para a criação e entendimento
dessa minha produção visual diante da história e das teorias da arte.
A arte contemporânea, especificamente a Arte Lowbrow, me trouxe
esclarecimentos técnicos e teóricos bastantes pertinentes aos que vivo hoje, com
misturas de materiais, de técnicas e de hibridizações referenciais, como por
exemplo a cultura dos remakes e o Surrealismo Pop, textos que me foram
apresentados e analiticamente aqui relacionados.

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Janeiro: Editora Konemann, 2001.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 1996.
MORIYAMA, Victor e LOPEZ, Felipe. Estética marginal. São Paulo: Zupi Design
e Editora, 2009.
SPINELLI, João J. Alex Vallauri: graffiti: fundamentos estéticos do pioneiro
do grafite no Brasil. São Paulo: Editora Bei, 2011.

Sites
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<http://books.google.com.br/books?id=sUD7V_YYmtsC&printsec=frontcover&hl=pt
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11/11/2013.

CRUZ, Dayse M.; COSTA, M. Tereza. Grafite e pichação- que comunicação é


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2008. Disponível em:
<http://www.periodicos.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1351>. Acesso em:
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SALGADO, Renata. Sobre o fetichismo. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana,


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<http://www.escolaletrafreudiana.com.br/UserFiles/110/File/carteis2009/10_fetiche.
pdf >. Acesso em: 11/11/ 2013.

132
APÊNDICE

Seguem abaixo seguem imagens de alguns esboços de minha produção:

Fig. 63 – Esboço da fig. 19 “Contato”, p. 45.

Fig. 64 - Esboço da fig. 13


“Sabor de infância”, p. 33.

133
Fig. 65 - Esboço da fig. 38
“Devaneando”, p. 83.

Fig. 66 - Esboço da fig. 62 “Costura”, p. 124.

134
Fig. 67 - Esboço da fig. 21 “Tesouro”, p. 49.

Fig. 68 - Esboço da fig. 36 “Toque”, p. 75.

135
Fig. 69 - Esboço da fig. 44
”Leque”, p. 95.

Fig. 70 - Esboço da fig. 31


“A Imperatriz”, p. 67.

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ANEXO

Artigo publicado:
OLIVEIRA, Lia Fernanda Ramos de. Parábolas Nonsenses in Anais do
Encontro Arte_Pesquisa: Inter-Relações. São Paulo: UNESP/Instituto de
Artes, 2012, pp. 573 - 585.

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