A SINFONIA PASTORAL
Por ANDRE GIDE
Traduzido por Dorothy Bussy
PRIMEIRO CADERNO
10 de Fevereiro de 189
—
A neve vem caindo continuamente nos
últimos três dias e todas as estradas estão
bloqueadas. Tem sido impossível para mim ir
para R—, onde tenho o hábito de realizar um
culto duas vezes por mês nos últimos quinze
anos. Esta manhã, não mais do que trinta do
meu rebanho estavam reunidos na capela de
La Brevine.
Vou aproveitar o lazer que esse
confinamento forçado me proporciona para
pensar no passado e definir como vim para
assumir o comando da Gertrudes.
Proponho-me a escrever aqui todo o seu-
relato de sua formação e desenvolvimento,
pois parece ter chamado da noite sua doce e
piedosa alma para nenhum outro fim senão a
adoração e o amor. Bendito seja o Senhor por
me ter confiado esta tarefa!
Há dois anos e seis meses, eu tinha
acabado de voltar de La Chaux-de-Fonds
quando uma garotinha que era uma estranha
para mim veio com muita pressa para me
levar a um lugar a cerca de cinco quilômetros
de distância, onde ela disse que uma velha
estava morrendo. Meu cavalo ainda estava
nos eixos, então fiz a criança entrar na
carruagem e partir imediatamente, depois de
primeiro me fornecer uma lanterna, pois
pensei que provavelmente não deveria ser
capaz de voltar antes de escurecer.
Supunha conhecer perfeitamente todo o
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interior da vizinhança da minha freguesia;
mas quando passamos pela fazenda La
Saudraie, a criança me fez tomar uma estrada
que eu nunca tinha me aventurado antes.
Cerca de dois quilômetros mais adiante, no
entanto, reconheci do lado esquerdo um
pequeno lago misterioso onde às vezes andava
de skate quando jovem. Eu não via isso há fif-
anos adolescentes, pois nenhum dos meus
deveres pastorais me leva assim; Eu não
poderia ter dito onde ela estava e ela havia
caído tão completamente de minha mente que,
quando areconheci no encantodourado do céu
noturno rosado, senti como se a tivesse visto
antes apenas em um sonho.
A estrada corria ao lado do córrego que cai
do lago, cortava a extremidade extreme da
floresta e, em seguida, contornava um turfão.
Eu certamente nunca tinha estado lá antes.
O sol estava se pondo e por muito tempo
estávamos dirigindo na sombra quando meu
jovem guia apontou uma cabana na encosta
que teria parecido desabitada, mas por um
pequeno fio de fumaça que subia da chaminé,
parecendo azul na sombra e brilhando quando
chegava ao ouro do céu. Amarrei o cavalo a
uma macieira ali perto e segui a criança até o
quarto escuro onde a velha acabara de morrer.
A gravidade da paisagem, a silenênciae a
solenidade da hora me impressionaram
 ANDRE GIDE

no coração. Uma mulher ainda na juventude princípio que ela era surda; o servo não pensa,
estava ajoelhada ao lado da cama. A criança, mas que a velha era surda e nunca proferiu
que eu havia tomado para ser neta da falecida, uma palavra a ela, nem a ninguém; ela não
mas que era apenas sua criada, acendeu um abria a boca há muito tempo, exceto para
mergulho de sebo esfumaçado e depois ficou comer e beber."
imóvelao pé da cama. Durante nossa longa "Quantos anos ela tem?"
viagem, tentei fazê-la falar, mas não consegui "Cerca de quinze, suponho. Mas quanto a
extrair duas palavras dela. isso, eu não sei mais sobre isso do que você. .
A mulher ajoelhada levantou-se. Ela não Não me ocorreu imediatamente tomar
era uma parente como eu supunha conta da pobre e desamparada criatura; mas
inicialmente, mas apenas uma vizinha, uma depois de eu ter orado – ou, para ser mais
amiga, que a criadatinha trazido para lá exato, enquanto eu ainda estava orando de
quando viu a força de sua amante falhando, e joelhos entre a mulher e a pequena serva, que
que agora se ofereceu para vigiar pelo também estavam ajoelhadas – de repente veio
cadáver. A idosa, segundo ela, faleceu sem sobre mim que Deus havia estabelecido uma
dor. Acertamos juntos os preparativos para o espécie de obrigação em meu caminho e que
sepultamento e o velório. Como muitas vezes eu não poderia me esquivar dela sem arbítrio
antes neste país fora do mundo, coube a mim de vaca. Quando me levantei, decidi levar a
resolver tudo. Fiquei um pouco menina embora naquela mesma noite, embora
desconfortável, admito, ao sair de casa, apesar eu não tivesse me perguntado o que deveria
da pobreza de sua aparência, a cargo fazer com ela depois, nem em quem eu
exclusivo desse vizinho e da pequena criada. deveria colocá-la. Fiquei mais alguns
Mas parecia muito improvável que houvesse instantes olhando para o rosto adormecido da
algum tesouro escondido em um canto dessa velha, com a boca empinada, parecendo uma
miserável morada. e o que mais eu poderia bolsa de avarenta com cordas bem puxadas
fazer? Perguntei, no entanto, se a idosa havia para não deixar escapar nada. Então,
deixado herdeiros. voltando-me para a menina cega, contei ao
Diante disso, a mulher pegou a vela e a vizinho minha intenção.
ergueu de modo a iluminar o canto da lareira, "Sim, é melhor que ela não esteja lá
e eu pude ver agachadona lareira, e amanhã quando vierem tirar o corpo", disse
aparentemente dormindo, uma criatura de ela. E foi só.
aparência indescritível, cujo rosto estava Muitas coisas seriam facilmente
quase inteiramente escondido por uma compreendidas, mas para as objeções
espessa massa de cabelos. imaginárias os homens às vezes têm prazer
"A menina cega lá, ela é uma sobrinha, diz em inventar. Da nossa infância para cima,
a criada. Isso é tudo o que resta da família, ao quantas vezes fomos impedidos de fazer uma
que parece. Ela deve ser enviada para a casa coisa ou outra que gostaríamos de ter feito,
pobre; Não vejo o que mais pode ser feito simplesmente ouvindo as pessoas
com ela."
Fiquei chocado ao ouvir o futuro da coitada
ser descartado dessa forma em sua presência e
com medo de que palavras tão ásperas
pudessem lhe dar dor.
"Não a acorde", eu disse baixinho, como
uma dica para a mulher de que ela deveria,
pelo menos, abaixar a voz.
"Ah, acho que ela não está dormindo. Mas
ela é uma; ela não pode falar nem ficar empé
nada, me disseram. Estou na sala desde esta
manhã e ela quase não mexeu. Pensei a
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sobre nós repetimos: "Ele não será capaz..."!
A menina cega deixou-se levar como um
bloco sem vida. As penasde seu rosto eram
regulares, bastante finas, mas totalmente sem
expressão. Tirei um cobertor do colchão onde
ela deve ter dormido normalmente, em um
canto embaixo de uma escada que levava do
quarto ao loft.
A vizinha foi obrigada e me ajudou a
enrolá-la cuidadosamente, pois a noite estava
muito clara e fria; depois de ter acendido a
lâmpada da carruagem, voltei para casa,
levando a menina comigo. Sentou-se
amontoada contra mim – um pedaço de carne
sem alma, sem nenhum sinal de vida além da
comunicaçãode um calor obscuro. Durante
todo o caminho para casa eu pensava: "Ela
está dormindo? E como pode ser esse sono
negro? . . . E de que forma suas horas de
vigília diferem de seu sono? Mas esse corpo
escurecido é certamente arrendado; uma alma
immuradaespera ali um raio de Tua graça, ó
Senhor, para tocá-la. Permitis, talvez, que o
meu amor dissipasse esta terrível
escuridão? . . ."
Tenho demasiada consideração pela
verdade para passar em silêncio a
desagradável recepçãoque tive de encontrar
no meu regresso a casa. Minha esposa é um
jardim de virtudes; e nos momentos de
dificuldade que às vezes passamos, nunca por
um instante tive motivos para duvidar das
coisas de que seu coração é feito; mas não
adianta pegar sua caridade natural de
surpresa. Ela é uma pessoa ordeira, cuidadosa
para não ir seryond nem para ficar aquém de
seu dever. Até a sua caridade é medida, como
se o amor não fosse um tesouro inesgotável.
Este é o único ponto em que divergimos...
Seus primeiros pensamentos quando me
viu trazer a menina para casa naquela noite
romperam com ela nesta exclamação:
"Com que tipo de trabalho você se
preparou agora?"
Como sempre acontece quando temos que
chegar a um entendimento, comecei dizendo
às crianças – que estavam de pé, de boca
aberta e cheias de curiosidades e surpresas–
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para saírem da sala. Ah, como essa recepção
foi diferente do que eu poderia ter desejado!
Só a minha querida pequena Carlota começou
a dançar e bater palmas quando percebeu que
algo novo, algo vivo, estava saindo da
carruagem. Mas os outros, que foram bem
treinados pela mãe, logo amorteceram o
prazer da criança e a fizeram cair no ritmo.
Houve um momento de grande confusão. E
como nem minha esposa nem os filhosainda
sabiam que tinham a ver com uma pessoa
cega, eles não conseguiam entender o cuidado
extremo com que eu guiava seus passos. Eu
mesmo fiquei desconcertado com os gemidos
estranhos que a pobre criatura aflita começou
a proferir assim que soltei sua mão, que eu
havia segurado na minha durante toda a
viagem. Não havia nada de homemnos sons
que ela fazia, eram mais como os gemidos de
um cachorrinho. Arrancada pela primeira vez
como fora da estreita rodada de sensações
queformara seu universo, seus joelhos agora
lhe falharam; mas quando empurrei uma
cadeira para a frente, ela afundou-se no chão
num monte, como se fossecapaz de se sentar;
Levei-a então até a lareira e ela recuperou um
pouco a calma assim que conseguiu agachar-
se na mesma posição em que a tinha visto
pela primeira vez ao lado do fogo da velha,
encostada ao pedaço da chaminé. Na
carruagem também, ela escorregou do assento
e passou toda a viagem amontoada aos meus
pés. Minha esposa, no entanto, cujosimpulsos
são sempre os melhores, veio em meu auxílio,
é o reflexo dela que está constantemente em
desacordo com seu coração e muitas vezes
leva a melhor.
"O que você quer fazer com isso?",
perguntou ela quando a menina se acomodou.

Eu tremia na alma com esse uso da palavra
aquilo, e tinha alguma dificuldade em conter-
um movimento de indignação. Como eu ainda
estava sob o feitiço de minha longa e pacífica
meditação, no entanto, eu me controllei.
Voltando-me para toda a comitiva, que estava
de pé em círculo novamente, coloquei a mão
na cabeça da menina cega e disse o mais
solenemente que pude:
"Trouxe de volta as ovelhas perdidas."
Mas Amélia não admitirá que possa haver
algo irracional ou super-razoável no ensino
do Evangelho. Vi que ela ia se opor, e foi
então que fiz um sinal para Jacques e Sarah,
que, como estão acostumados com nossas
pequenas diferenças conjugais e não têm
muita curiosidade natural (não o suficiente,
muitas vezes acho), levaram as duas crianças
mais novas para fora da sala.
Então, como minha esposa ainda
permanecia em silêncio e um pouco irritada,
pensei, na presença do apresentador: "Você
não precisa se importar de falar antes dela",
eu disse. "A pobre criança não entende."
Diante disso, Amélia começou a protestar
que não tinha absolutamente nada a dizer –
que é seu prelúdio habitual para as mais
longas explicações– e não havia nada a fazer
a não ser submeter-se, como de costume, a
todos os meus caprichos mais impraticáveis,
por mais contrários ao costume e ao bom
senso que fossem. Já disse que não tinha
decidido minimamente o que ia fazer com a
criança. Não me ocorrera, ou apenas de
maneira, que houvesse qualquer possibilidade
de levá-lapara nossa casa permanentemente, e
quase posso dizer que foi a própria Amélia
quem primeiro me sugeriu isso perguntando
se eu não achava que já havia "o suficiente de
nós na casa". Em seguida, ela declarou que eu
sempre me apressava sem pensar em quem
não conseguia me acompanhar, que por sua
vez considerava cinco filhosbastante
suficientes, e que desde o nascimento de
Cláudio (que naquele mesmo momento-
montou um uivo de seu berço, como se ele
tivesse ouvido seu nome) ela tinha o máximo
que podia suportar e que não aguentava
qualquer outra.
No início de seu desabafo, algumas das
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palavras de Cristo subiram do meu coração
aos meus lábios; No entanto, mantive-os de
volta, pois nunca me parece que seja possível
alegar a autenticidadedo Livro Sagrado como
desculpa para a minha conduta. Mas quando
ela falou de seu cansaço, fiquei confuso, pois
devo admitir que mais de uma vezme pediu
para deixar minha esposa sofrer as
consequências de meu zelo impulsivo e-
atencioso. Entretanto, porém, as suas
recriminações tinham-me esclarecido quanto
ao meu dever; Implorei a Amélia, omais
branda possível, que considerasse se ela não
teria feito o mesmo em meu lugar e se poderia
ter abandonado uma criatura que tinha sido
tão obviamente deixada sem ninguémpara
ajudá-la; Acrescentei que não tinha ilusões
quanto ao cansaço extra que a carga desse
novo preso acrescentaria aos cuidados da casa
e que nãoconseguia mais ajudá-la com eles.
Assim a pacificei o melhor que pude,
implorando-lhe ao mesmo tempo que não
visitasse sua raiva contra a inocentemoça, que
nada fizera para servi-la. Então eu apontei que
Sara já tinha idade suficiente para ajudá-la e
que Jacques não estava mais precisando de
seus cuidados. Em suma, Deus pôs na minha
boca as palavras certas para a ajudar a aceitar-
o que tenho a certeza que teria empreendido
por vontade própria se as circunstânciaslhe
tivessem dado tempo para reflectir e se eu não
tivesse evitado a sua decisão sem a consultar.
Pensei que a causa estava quase ganha, e
minha querida Amélia já estava pregando-
Gertrudes com a mais gentil tentação, mas sua
irritação de repente voltou a brilhar mais do
que nunca quando, ao pegar a lâmpada para
olhar a criança
 A SINFONIA PASTORAL

mais de perto, descobriu que ela estava em descalços; Ela arremessou os braços em volta
um estado de sujeira indescritível. do meu pescoço e me abraçou ferozmente.
"Ora, ela é imunda!", gritou. "Vá e escove- "Eu não disse boa noite para você adereço-
se rapidamente. Não, aqui não. Vá e agite ", murmurou.
suas roupas do lado de fora. Oh querida! Oh Depois, apontando com o dedo indicador
querida! As crianças serão cobertas com eles. para a menina cega, que agora dormia
Não há nada no mundo que eu odeie tanto tranquilamente e que tinha curiosidadede ver
quanto vermes." de novo antes de dormir:
Não se pode negar que a pobre criança "Por que eu não a beijei também?",-
engatinhava com eles; e eu não pude evitar questionou.
um sentimento de nojo enquanto pensava o "Você vai beijá-la amanhã. Devemos
quão perto eu a tinha mantido de mim durante deixá-la estar agora. Ela está dormindo", disse
nossa longa viagem.
enquanto ia com ela até a porta.
Quando voltei, alguns minutos depois,
Então me sentei novamente e trabalhei até
tendo me limpo da melhor forma possível,
de manhã, lendo ou preparando meu próximo
descobri que minha esposa havia afundado
em uma poltrona e com a cabeça nas mãos sermão.
estava dandoum jeito de soluçar. "Certamente", lembro-me de pensar,
"Eu não quis colocar sua fortaleza à prova "Charlotte parece muito mais carinhosa do
dessas", disse com ternura. "De qualquer que as crianças mais velhas, mas quando elas
forma, é tarde esta noite e muito escuro para tinham a idade dela, acredito que todas elas
fazer qualquer coisa. Vou sentar e manter o me cercaram também. Meu grandalhão
fogo aceso e a criança pode dormir ao lado. Jacques, hoje tão distante e reservado...
Amanhã vamos cortar o cabelo dela e lavá-la Pensa-se que eles têm um coração terno,
corretamente. Você não precisa atendê-la até quando na verdade eles estão apenas
que tenha superado sua rejeição." E eu persuadindo e choramingando."
implorei para que ela não dissesse nadadisso
para as crianças.
27 de fevereiro
Era hora de jantar. Minha mãe, para quem
nossa velha Rosalie lançou muitosolhares A neve voltou a cair forte ontem à noite.
carrancudos enquanto esperava por nós, As crianças ficam encantadas porque dizem
devorou avidamente o prato de sopa que lhe que em breve seremos obrigados a sair pelas
entreguei. A refeição foi silenciosa. Eu janelas. É um facto que esta manhã a porta da
gostaria de ter relatado minha aventura, de frente está bloqueada e a única saída é pela
conversar com as crianças e tocar seus casa de banho. Ontem certifiquei-me de que a
corações, fazendo-as entender e sentir a aldeia estava suficientemente preparada, pois
estranheza de tal condição de privação total. permaneceremos, sem dúvida, isolados do
Eu gostaria de ter despertado sua piedade, sua resto do mundo durante algum tempo. Este
simpatia pelo hóspede que Deus nos enviara; não é o primeiro inverno em que estamos
mas eu tinha medo de revivera irritação de nevados, mas não me lembro de ter visto uma
Amélia. Parecia que a palavra tinha sido queda tão espessa. Aproveito para continuar
passada para não tomar conhecimento do que com o conto que comecei ontem.
tinha acontecido e esquecer tudo sobre isso, Eu disse que, quando trouxe pela primeira
embora certamente nenhum de nós possa vez para casa essa criança aflita, eu não tinha
estar pensando em outracoisa. pensado claramente que lugar ela ocuparia em
Fiquei extremamente emocionado quando, nossa casa. Eu sabia os limites do meu
mais de uma hora depois de todos terem ido
para a cama e Amelie ter me deixado, vi
minha pequena Charlotte roubar suavemente
pela porta entreaberta em sua camisola e pés
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poderes de resistência da esposa; Eu sabia o
tamanho da nossa casa e a pequenez da nossa
renda. Eu tinha agido, como de costume, da
maneira que me era natural, tanto quanto por
princípio, e sem por um momento calcular a
despesa em que meu impulso poderia me
levar – um procedimento que sempre achei
contrário ao ensinamento dos Evangelhos.
Mas uma coisa é confiar os cuidados a Deus e
outra bem diferente é transferi-los para outras
pessoas. Logo vi que tinha colocado um fardo
pesado nos ombros de Amelie – tão pesado
que, no início, me senti atingido de vergonha.
Eu a ajudei da melhor forma possível a
cortar o cabelo da menina, e vi que ela fazia
isso mesmo com nojo. Mas quando se tratava
de lavá-la e limpá-la, eu estava obcecadoa
deixá-la para minha esposa, e percebi que
escapava forçosamente das tarefas mais
pesadas e desagradáveis.
De resto, Amélia deixou de fazer a menor
objeção. Ela parecia ter pensado nas coisas
durante a noite e resignou-se aos seus novos
deveres; ela até parecia ter algum prazer neles
e eu a vi sorrir quando ela terminou de lavar e
vestir Gertrudes. Depois que sua cabeça foi
raspada e eu a esfregei com pomada, um boné
branco foi colocado nela; algumas das roupas
velhas de Sara e alguns lençóis limpos
tomaram o lugar dos trapos miseráveis que
Amélia jogou no fogo. O nome de Gertrudes
foi escolhido por Carlota e imediatamente
adotado por todos nós, na nossa ignorância do
seu verdadeiro nome, que a própria menina
órfã desconhecia, e que eu não sabia como
descobrir. Ela deve ter sido um pouco mais
nova do que Sarah, cujas roupas do ano
passado lhe serviam.
Devo confessar aqui a profunda e
avassaladora decepção que senti nosprimeiros
dias. Eu certamente tinha construído todo um
romance para mim sobre o assuntoda
educação de Gertrudes, e a realidadeera uma
cruel desilusão. A indiferença, a apatia de seu
semblante, ou melhor, sua total falta de
expressão congelaram minhas boas intenções
em sua própria fonte. Sentou-se o dia todo ao
lado do fogo, parecendona defensiva, e assim
que ouviu nossas vozes, ainda mais quando
nos aproximamos dela, suas feições pareciam
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endurecer, de inexpressivas tornaram-se
hostis, se alguém tentasse atrair sua atenção,
ela começava a gemer e grunhir como um
animal. Esse mal-estar só a deixava na hora
das refeições. Eu mesmo a ajudei e ela se
jogou em sua comida com uma espécie de
avidez bestial que era muito difícilde
testemunhar. E como o amor responde ao
amor, assim um sentimento de aversão se
insinuou sobre mim diante dessa obstinada
retenção de sua alma. Sim, verdadeiramente,
confesso que no final dos primeiros dez dias
comecei a me desesperar, e meu interesse por
ela foi tão diminuído que quase mearrependi
do meu primeiro impulso e desejei nunca tê-la
trazido para casa comigo. E o que era que
Amélia, não sendo um pouco triunfante sobre
os sentimentosque eu realmente não
conseguia esconder dela, parecia ainda mais
pródiga de cuidado e bondade agora que ela
viu que Gertrudes estava se tornando um
fardo para mim, e queeu senti sua presença
entre nós como uma mortificação.
Foi assim que as coisas ficaram quando-
recebi a visita do meu amigo Dr. Martins, da
Vai Travers, durante uma de suas rodadas.
Ficou muito impressionadocom o que lhe
contei sobre a condição de Gertrudes e ficou a
princípio muito satisfeitopor ela ser tão
atrasada, poissua única enfermidade era a
cegueira; mas expliquei que, além disso, ela
tinha que sofrer da surdez da velha que era
sua única guardiã, e que nunca falou com ela,
de modo que a pobre criança fora totalmente
negligenciada. Ele me convenceu de que,
naquele caso, eu estava errado ao me
desesperar, mas que eu não estava usandoo
método adequado.
"Vocês estão tentando construir", disse ele,
"estejam
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à frente certificando-se de seus alicerces. uma espécie de sorriso. Posso bem acreditar
Você deve refletir que toda a sua mente está que lágrimas de amor e gratitude brotaram em
em um estado de caos e que até mesmo suas seus olhos e que ele caiu de joelhos e deu
primeiras linhagens ainda não estão formadas. graças a Deus. Laura tinha finalmente
A primeira coisa a ser feita é fazê-la conectar entendido o que o médico queria. Ela foi
uma ou duas sensações de toque e paladar e salva! Daquele dia em diante ela estava toda
anexar um som a elas – uma palavra – para atenção; Seu progresso foi rápido; Ela logo
servir como uma espécie de rótulo. Isso você pôde aprender sozinha e acabou se tornando a
deve repetir várias vezes incansavelmente e chefe de uma instituiçãopara cegos – a menos
depois tentar fazer com que ela diga isso que fosse outra pessoa – pois houve outros
depois de você. casos recentemente que as resenhas ejornais
"Acima de tudo, não vá muito rápido; levá- ficaram cheios; todos ficaram espantados –
la em horários regulares e nunca por muito um tanto tolamente, na minha opinião– que
tempo de cada vez. ... tais criaturas fossem felizes. Pois é fato que
"De resto, este método", acrescentou, todos esses prisioneiros emparedados estavam
depois de o ter descrito minuciosamente, "não felizes e, assim que puderam expressar
tem nada de particularmente mágico. Eu não qualquercoisa, foi a felicidade de que falaram.
inventei e outras pessoas aplicaram. Você não Os jornalistas, claro, entraram em êxtase e
se lembra na aula de filosofia na escola, apontaram a "moral" para as pessoas que
nossos professores nos contaram de um caso "desfrutam" de todos os seus cinco sentidos e,
análogo a propósito de Condillac e sua estátua no entanto, têm a audácia de se comunicar. "
animada – amenos que", ele se corrigiu, "Eu li Aqui surgiu uma discussão entre Martins e
mais tarde em uma revisão psicológica... Não eu, pois eu me opus ao seu pessimismo e não
faz mal; Fiquei muito impressionado com isso podia permitir o que ele parecia inferir – que
e até me lembro do nome da pobre menina, nossos sentidos servem a longo prazo apenas
que ainda estava mais aflita que Gertrudes, para nos tornar miseráveis.
pois era surdo-muda e cega. Ela foi "Não foi isso que eu quis dizer",testou; "Eu
descoberta em algum lugar da Inglaterra em queria apenas dizer, primeiro, que o espírito
meados do século passado por um médico que do homem imagina beleza, conforto e
se dedicou a educá-la. Seu nome era Laura harmonia mais fácil e alegremente do que a
Bridgman. O médico mantinha um diário, desordem e o pecado que todos oslugares
como você deveria fazer, do progresso da mancham, mancham, degradam e mancham
criança – ou melhor, em primeiro lugar, de este mundo; e ainda, que esse estado de coisas
seus esforços para instruí-la. Durante dias e nos é revelado por nossos cinco sentidos, que
semanas ele continuou, primeiro fazendo-a também nos ajudam a contribuir para ele. De
sentir alternadamente dois pequenos objetos, modo que me sinto inclinado a colocar as
um alfinete e uma caneta, e depois colocando palavras 'si sua mala nescient ' depois de '
os dedos nas duas palavras alfinete e caneta Fortunatos nimium' de Virgílio, em vez de ' si
impressos em um livro em Braille para cegos. sua bona norint' como nos ensinam. Como os
Durante semanas e semanas não houve homens seriam felizes se nada soubessem do
resultado. Seu corpo parecia bastante vago. mal!"
Mas não perdeu a coragem. "Eu me senti Então ele me contou uma das histórias de
como uma pessoa", diz ele, "debruçado sobre Dickens
a borda de um poço escuro profundo e
desesperadamente pendurando uma corda na
esperança de que uma mão a segurasse". Pois
ele não duvidou por um momento que alguém
estava lá no fundo do poço e que no final a
corda seria pega. E um dia, finalmente, viu o
rosto impassível de Laura iluminar-se com
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– que ele acha que estava diretamente
relacionada aocaso de Laura Bridgman, ele
prometeu enviá-la para mim e, quatro dias
depois, recebi O Grilo no Hearth, que li com
o maior prazer. É um conto bastante longo,
mas às vezes muito comovente, de uma
menina cega, mantida por seu pai, um pobre
fabricante de brinquedos, em um mundo
ilusório de força, riqueza e felicidade.
Dickens exercetoda a sua arte ao representar
esse enganocomo um ato de piedade, mas,
graças a Deus, não terei que fazer uso de tal
falsidade com Gertrudes.
No dia seguinte à visita do Martins
comecei a colocar seu método em prática com
toda a aplicação que eu era capaz. Lamento
agora não ter tomado notas, como ele
aconselhou, dos primeiros passos de
Gertrudes ao longo do caminho de twilit onde
eu mesmo era, a princípio, apenas um guia
tateando. Durante as primeiras semanas foi
necessária mais paciência do que se pode
acreditar, não só pela quantidade de tempo
que uma educação deste tipo exige, mas
também pelas reprovaçõesque me trouxe. É
doloroso para mim ter que dizer que essas
reprovações vieram de Amélia; mas, aliás, se
menciono isso aqui é porque não deixou em
mim o menor traço de anismoou amargura –
declaro isso com muita solenidade, caso essas
linhas venham aos seus olhos mais tarde. (O
ensinamento de Cristo sobre o perdão das
injúrias não se segueimediatamente após a
parábola da ovelha perdida?) Mais do que
isso, no exato momento em que mais sofri
com suas reprovações, não pude sentir raiva
dela por desaprovar o tempo que dediquei a
Gertrudes. O que mais me chamou a atenção-
foi que ela não acreditava que meus esforços
seriam bem-sucedidos. Sim, foi a falta de fé
dela que me entristeceu – sem, no entanto, me
desencorajar. Quantas vezes a ouvi repetir:
"Se ao menos algum bem viesse de tudo! E
ela permaneceu teimosamente convencida de
que meu trabalho era trabalho perdido; de
modo que elaachou errado da minhaparte
votar o tempo para a educação de Gertrudes,
que ela sempre declarou que teria sido melhor
empregada de outra forma. E sempre que eu
estava ocupado com Gertrudes, ela conseguia
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perceber que eu era procurado naquele
momento por alguém ou outra coisa, e que eu
estava dando a ela um tempo que deveria ter
sido dado a outros. Na verdade, acho que ela
sentiu uma espécie de ciúme materno, pois ela
mais de uma vez me disse: "Você nunca se
importou tanto com nenhum de seus próprios
filhos" – o que era verdade; pois, embora
goste muito dos meus filhos, nunca pensei
que fosse meu negócio tomar muito cuidado
com eles.
Tem sido muitas vezes minha experiência
que a parábola das ovelhas perdidas é uma
das mais difíceis de aceitação para certas
pessoas, que ainda acreditam ser
profundamente cristãs de coração. Que cada
ovelha do rebanho seja, por sua vez, mais
preciosa aos olhos do pastor do que o resto do
rebanho como um todo está além e acima de
seu poder de concepção. E as palavras: "Se
um homem tem cem ovelhas e uma delas se
extraviou, não deixa as noventa e nove e vai
para os montes e procura o que se extraviou?"
– palavras todas regadas de caridade – tais
pessoas, se ousassem falar francamente,
declarariam ser abominavelmente injustas.
Os primeiros sorrisos de Gertrudes me
consolaram por tudo e me retribuíram cem
vezes pelas minhas dores. Pois "e se assim o
encontrar, em verdade vos digo que se alegra
mais com aquela ovelha do que com as
noventa e nove que não se desviaram". Sim,
na verdade, o sorriso que me amanheceu um
mornnaquele rosto de mármore dela, quando
ela parecia subitamente tocada para entendere
interessar-se pelo que eu vinha tentando por
tantos dias ensiná-la, inundou meu coração
com uma alegria mais seráfica do que jamais
me foi dada por qualquer filho meu.
 A SINFONIA PASTORAL
5º Março
Anotei essa data como se fosse um
aniversário. Não era tanto um sorriso, mas
uma transfiguração. Suas feições brilhavam
na vida – uma iluminação repentina, como o
brilho carmesim que precede o amanhecer
nos altos Alpes, emocionando o pico nevado
em que se acende e chamando-o para fora da
escuridão – tal inundação que parecia, de cor
mística; e pensei também na piscina de
Betesda no momento em que o anjo desce
para agitar a água adormecida. Uma espécie
de êxtase arrebatou-me ao ver a expressão
angélica que veio sobre o rosto de Gertrude
tão repentinamente, pois estava claro para
mim que aquele visitante celestial não era
tanto inteligência quanto amor. E num
transporte de gratidão beijei sua testa e senti
que estava dando graças a Deus.
O progresso que ela fez depois disso foi
tão rápido quanto os primeiros passos foram
lentos. Só com um esforço é que posso agora
recordar o nosso modo de proceder; pareceu-
me, às vezes, que Gertrudes avançava aos
trancos e barrancos, como que desafiando
todo método. Lembro-me que, no início, me
debrucei mais sobre as qualidades dos
objetosdo que sobre sua variedade – quente,
frio, doce, amargo, áspero, macio, leve – e
depois sobre ações: pegar, abaixar, remover,
aproximar, amarrar, atravessar, montar,
dispersar, etc. E logo abandonei toda tentativa
de método e comecei a conversar com ela
sem me preocupar muito se sua mente sempre
era capaz de me seguir; mas fui devagar,
convidando e provocando suas perguntas
enquanto ela parecia inclinada. Certamente
sua mente estava em ação durante as horas
que a deixei para simesma, pois cada vez que
eu voltava para ela depois de uma ausência,
era para descobrir com nova surpresa que o
muro de escuridão que nos separava havia
ficado menos espesso. Afinal, disse a mim
mesmo, é para que o calor do ar e a
insistência da primavera triunfem
gradualmente sobre o inverno. Quantas vezes
me perguntei sobre o derretimentoda neve!
Seu manto branco parece se desgastar por
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baixo, enquanto para toda a aparência
permanece inalterado. Todo inverno Amelie
cai na armadilha: "A neve está mais espessa
do que nunca", declara. E, de fato, ainda
parece que sim, quando de uma só vez vem
uma pausa e, de repente, em remendos aqui e
ali, a vida mais uma vez aparece.
Temendo que Gertrudes se tornasse
picante se continuasse sentada ao lado do
fogo como uma velha, comecei a fazê-la sair.
Mas ela se recusou a fazer isso, a menos que
segurasse meu braço. Percebi por sua surpresa
e medo quando ela saiu de casa pela primeira
vez, e antes que ela pudesse me dizer isso em
palavras, que ela nunca havia se aventurado
fora de portas. Na cabana onde a encontrara
ninguém se importara mais com ela do que
dar-lhe comida e impedi-la de morrer – pois
não posso dizer que alguém a ajudou a viver.
Seu pequeno universo de escuridão era
limitado pelas paredes do quarto único que
ela nunca saiu; Ela mal se aventurava nos dias
de verão até o umbral, quando a porta estava
aberta para o grande universo de luz. Disse-
me mais tarde que, quando ouvia o canto dos
pássaros, supunha que era simplesmente o
efeito da luz, como o calor suave que sentia
nas bochechas e nas mãos, e que, sem pensar-
precisamente nisso, parecia-lhe bastante
naturalque o ar quente começasse a cantar,
assim que a água começa a ferver no fogo. A
verdade é que ela não se deu ao trabalho de
pensar; ela não se interessou por nada e viveu
em um estado de dormência congelada até o
dia em que eu assumi o comando dela. -
Lembro-me de seu inesgotável deleite quando
lhe disse que as vozinhas vinham de seres
vivos, cuja única funçãoaparentemente era
expressar a alegria que jaz espalhada por toda
a natureza. (Foi a partir desse dia que ela
começou a dizer: "Sou tão alegre quanto um
pássaro.") E, no entanto, a ideia

de que essas canções proclamam o esplendor
de um espetáculo que ela não podia
contemplar tinha sidodescartada ao torná-la
melancólica.
"O mundo é realmente tão bonito quanto os
pássaros dizem?", ela perguntava. "Por que as
pessoas não nos contam com tanta
frequência? Por que você nunca me diz isso?
É por medo de me entristecer porque não
consigo ver? Isso seria errado. Escuto com
tanta atenção os pássaros; Acho que entendo
tudo o que dizem."
"As pessoas que podem ver não as ouvem
tão bem quanto você, minha Gertrudes", eu
disse, na esperança de confortá-la.
"Por que outros animais não cantam?",
continuou. Às vezes, suas perguntas me
surpreendiame me deixavam perplexa por um
momento, pois ela me forçava a refletir sobre
coisas que até então eu dava como certas. Foi
assim que me ocorreu pela primeira vez que
quanto mais próximo um animal vive do chão
e quanto mais pesado é o seu peso, mais
opaco ele é. Tentei fazê-la entender isso; e eu
falei do esquilo e seus gambols.
Ela me perguntou se os pássaros eram os
únicos animais que voavam.
"Há borboletas também", disse-lhe.
"E eles cantam?"
"Eles têm outra maneira de dizer sua
alegria. Está pintado nas asas...". E descrevi
as cores do arco-íris da borboleta.
28 de fevereiro
Agora deixe-me voltar um pouco para trás,
pois simterday eu me deixei levar.
Para ensinar Gertrudes, eu mesmo tive que
aprender o alfabeto Braille; mas ela logo foi
capaz de ler muito mais rápido do que eu;
Tive alguma dificuldade em cifrara escrita e,
além disso, achei mais fácil seguir com os
olhos do que com os dedos. Aliás, não fui o
único a dar-lhe aulas. E no início fiquei feliz
por ser ajudado a este respeito, pois tenho
muito a fazer na paróquia, estando as casas
tão espalhadas que as minhas visitas aos
pobres e aos doentes por vezes me obrigam a
ir longe. Jacques tinha conseguido quebrar o
braço enquanto patinava durante as férias de
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Natal, que ele estava passando conosco; pois,
durante o período letivo, vai para Lausanne,
onde recebeu sua educação inicial, e onde-
estuda na escola teológica. A fratura não era
grave e Martins, a quem eu imediatamente a
enviei, foi facilmente capaz de colocá-la sem
a ajuda de um cirurgião; mas considerou-se
aconselhável que Jacques se mantivesse
dentro de casa por algum tempo. De repente,
começou a interest em Gertrudes, a quem até
então não prestava atenção, e ocupou-se em
ajudar-me a ensiná-la a ler. Sua assistência
durou apenas o tempo de sua convalescença-
cerca de três semanas -, mas duranteessas
semanas o progresso de Gertrudes foi muito
marcante. Ela agora foi demitida com zelo ex-
tradouro. Sua inteligência jovem, mas ontem
tão bendita e torpe, seus primeiros passos mal
dados, e mal conseguia andar, parecia agora
já se preparando para correr. Fiquei admirado
com a facilidade com que ela conseguiu
formular seus pensamentos e com a rapidez
com que aprendeu a se expressar – não-
infantilmente, mas ao mesmo tempo
corretamente, transmitindo suas ideias com a
ajuda de imagens, tiradas da maneira mais
deliciosa e inesperada dos objetos que
acabamos de ensiná-la a reconhecer, ou de
outros que descrevemos a ela, quando não
podíamos realmente colocá-los ao seu
alcance; pois ela sempre usava coisas que
podia tocar ou sentir para explicar o que
estava além de seu alcance, seguindo o
método dos topógrafos medindo distâncias.
Mas acho desnecessário observar aqui
todos os primeiros passos de sua educação,
sem dúvida os mesmos na educação infantil
de todos os cegos. Suponho também que, em
cada caso, o professor deve ter sido
mergulhado
 A SINFONIA PASTORAL

em uma perplexidade semelhante pela instrumentos de madeira, os metais e os

questão das cores. (E esse assunto me levou à violinos permanecem distintos tanto no baixo
reflexão de que não há em nenhum lugar quanto nas partes agudas. Quantas vezes fui
qualquer menção a cores nos Evangelhos.) obrigado a permanecer perplexo e em
Não sei como outras pessoas se puseram a silêncio, como fiz então, procurandoalguma
fazê-lo; de minha parte, comecei nomeando- comparação a que pudesse apelar.
lhe as cores do prisma na ordem em que "Bem", disse eu por fim, "imagine o
ocorrem no arco-íris; mas então uma branco como algo absolutamente puro, algo
confusão foi imediatamente criada em sua em que a cor não existe mais, mas apenas a
mente entre cor e brilho; e percebi que sua luz; e preto, ao contrário, algumacoisa tão
imaginação era incapaz de fazer qualquer cheia de cor que se tornou escura...
distinçãoentre a qualidade da tonalidade e o Recordo este fragmento de diálogo apenas
que os pintores, acredito, chamam de seu como um exemplo das dificuldades com que
"valor". Ela teve a maior dificuldade em me deparei demasiadas vezes. Gertrudes tinha
entenderque cada cor, por sua vez, poderia ser esse ponto positivo, que ela nunca fingiu
mais ou menos escura e que elas poderiam ser entender, como as pessoas tantas vezes fazem,
misturadas umas com as outras em uma enchendo assim suas mentes com afirmações
extensão ilimitada. Isso a intrigou muito, e ela imprecisas ou falsas, que no final viciam todo
voltou ao assunto várias vezes. o seu raciocínio. Enquanto ela não conseguia
Nessa época me foi dada a oportunidade de formar uma ideia clara de qualquer noção,
levá-la a um show em Neuchatel. O papel isso eramotivo de ansiedade e desconforto
desempenhado por cada um nasinfonia para ela.
sugeriu-me a ideia de recorrer a essa questão Quanto ao que acabei de relatar, a
das cores. Observei Gertrudes as diferentes dificuldade foi aumentada pelo fato de que a
ressonâncias dos metais, das cordas e dos noção de luz e a de calor começaram por estar
instrumentos de madeira, e que cada um deles intimamente associadas uma à outra em sua
era capaz, à sua maneira, de produzir toda a mente, e eu tive a maior dificuldade depois
série de sons, do mais baixo ao mais alto, com em desconectá-las.
intensidade variável. Pedi-lhe que imaginasse Assim, através desses experimentos com
as cores da natureza da mesma maneira – os ela, foi constantemente trazido para mim o
vermelhos e laranjas análogos aos sons das quanto o mundo visual difere do mundo do
trompas e trombones; os amarelos e verdes som, e que qualquer comparação entre os dois
como os dos violinos, violoncelos e deve ser necessariamentemanca.
contrabaixos; os violetas e azuis sugeridos Estive tão cheio das minhas comparações
pelos clarinetes e oboés. Uma espécie de que ainda não disse o imenso prazer que o
arrebatamento interior tomou agora o lugar de concerto de Neuchâtel deu à Alemanha. Na
todas as suas dúvidas e laços incertos. verdade, era a Sinfonia Pastoral que estava
"Como deve ser lindo!", continuou sendo tocada. Digo actualiado porque, como
repetindo. facilmente se compreenderá,
Então, de repente, ela acrescentou: "Mas o
branco? Não consigo entender agora como
pode ser o branco."
E logo vi como era insegura a minha
comparação.
"Branco", tentei explicar, "é o limite
extremo de agudos onde todos os tons são
misturados em um, assim como o preto é o
limite grave ou escuro".
Mas isso não me satisfez mais do que ela;
e ela apontou imediatamente que os
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não há trabalho que eu mais desejasse que ela
ouvisse. Durante muito tempo depois de
termos saído da sala de concertos, Gertrudes
permaneceu em silêncio, como que perdida
em êxtase.
"O que você vê é realmente tão bonito
quanto isso?", perguntou por fim.
"Tão lindo quanto o quê, querido filho?"
"Como aquela 'cena na margem de um
córrego'?"
Não respondi de imediato, pois estava
reprovandoque aquelas harmonias inefáveis
pintavam o mundo como ele poderia ter sido,
como seria sem o mal e sem o pecado, em vez
do mundo como ele realmente era. E eu nunca
tinha me aventurado a falar com Gertrudes do
mal, do pecado e da morte.
"Quem tem olhos", disse por fim, "não
conhece a sua felicidade".
"Mas eu que não tenho", gritou ela, "sei a
felicidade de ouvir".
Ela me pressionou enquanto caminhava e
se pendurou no meu braço como as crianças
pequenas fazem.
"Pastor, você sente o quanto eu estou feliz?
Não, não, não digo isso para agradar você.
Olhe para mim. Você não consegue ver no
rosto das pessoas se elas estão falando a
verdade? Conheço por suas vozes. Você é
membro do dia em que você me respondeu
que você não estava chorando quando minha
tia" (que éo que ela chamava de minha
esposa) "tinha te censuradopor não ter
ajudado ela? E eu gritei: 'Pastor, isso não é
verdade!' Oh, eu senti imediatamente pela sua
voz que você não estava me dizendo a
verdade; não havia necessidade de eu sentir
suas bochechas para saber que você estava
chorando." E ela repetiu bem alto: "Não, não
havia necessidade de eu sentir suas
bochechas" – o que me fez ficar vermelha,
pois ainda estávamos na cidade e os
transeuntes se viraram para olhar para nós.
Ela prosseguiu, no entanto:
"Você não deve tentar me enganar, sabe.
Em primeiro lugar, porque seria muito mau
tentar enganar uma pessoa cega... e depois
porque não aguentaria", acrescentou, rindo.
"Diga-me, pastor, você não é infeliz, é?"
Coloquei a mão dela nos meus lábios,
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como que para fazê-la sentir, sem ter que
confessar, que parte da minha felicidade
vinha dela, e respondi como eu o fiz.
"Não, Gertrudes, não estou infeliz. Como
devo ser infeliz?"
"E mesmo assim você chora às vezes?"
"Já chorei algumas vezes."
"Não desde aquela época?"
"Não, não chorei mais desde então."
"E você não se sentiu inclinado a chorar?"
"Não, Gertrudes."
"E diga-me: desde então você se sentiu
inclinado a não falar a verdade para mim?"
"Não, querida criança."
"Você pode prometer nunca tentar me
enganar?"
"Eu prometo."
"Bem, diga-me rapidamente, então – eu
sou bonita?"
Essa pergunta repentina me surpreendeu,
ainda mais porque eu havia evitado até então
tomar qualquer nota da beleza inegável de
Gertrudes; e maissobre eu considerei
perfeitamente desnecessário que ela mesma
fosse informada disso.
"O que isso pode importar para você?" Eu
disse.
"Estou ansiosa", continuou ela, "gostaria
de saber se não faço – como vou colocar? –
muita discórdia na sinfonia. A quem mais
devo perguntar, pastor?"
"Não cabe a um pastor preocupar-se com a
beleza do rosto das pessoas", disse eu,
defendendo-me da melhor forma possível.
"Por que não?"
"Porque a beleza de suas almas lhe basta."
"Você preferiu que eu me achasse feia", foi
a resposta dela com um encantador; de modo
que, desistindo da luta, exclamei:
"Gertrudes, você sabe muito bem que é
bonita."
Ela ficou em silêncio e seu rosto assumiu
um
 A SINFONIA PASTORAL
expressão de grande gravidade, que não a Amélia tinha dito isso na frente de Gertrudes;
deixou até chegarmos em casa. pois, embora eu tivesse tomado minha esposa
de um lado, ela havia levantado tanto a voz
No nosso regresso, Améliaenvelheceu que Gertrudes a ouviu. Senti-me não tanto
imediatamente para me fazer sentir que triste quanto indignado, e alguns meses-
desaprovava a forma como eu tinha passado o depois, quando Amélia nos deixou, fui até
meu dia. Ela poderia ter me dito isso antes; Gertrudes e, levando sua mãozinha frágil na
mas ela deixara Gertrudes e eu começarmos minha, levantei-a até meu rosto. "Veja", eu
sem uma palavra, de acordo com seu hábito disse, "desta vez não estou chorando".
de deixar as pessoas fazerem as coisas e de "Não", respondeu ela, tentando sorrir,
reservar a si mesma o direito de culpá-las
"desta vez é a minha vez". E quando ela olhou
depois. Aliás, ela não me censurou; mas seu
para mim, de repente vi que seu rosto estava
próprio silêncio acusava; pois certamente
inundado de lágrimas.
teria sido natural ter indagado o que havíamos
ouvido, já que ela sabia que eu estava levando
Gertrudes para o concert. O prazer da criança 8 de Março
não teria sido aumentado se ela tivesse
sentido que o menor interesse havia sido O único prazer que posso dar a Amelie é
tomado por ela? Mas Amélia não se calou abster-se de fazer as coisas de que ela não-
inteiramente – ela apenas parecia colocar uma gosta. Esses sinais muito negativos de amor
espécie de afetoem evitar qualquer coisa que são os únicos que ela me permite. O degree a
não fosse a mais em diferentes tópicos; e não que ela já estreitou a minha vida é uma coisa
foi até véspera, quando os pequenos foram que ela não consegue perceber. Oh, gostaria
para a cama, e depois de eu lhe ter perguntado que para o céu ela exigisse algo difícil de
emprivado e com alguma severidade se ela mim! Que bom que eu assumiria uma tarefa
estava irritada comigo por ter levado precipitada, perigosa para ela! Mas ela parece
Gertrudes ao concert, que obtive a seguinte ter uma reposiçãopor tudo o que não é usual,
resposta: de modo que, para ela, o progresso na vida
"Você faz coisas por ela que nunca teria consiste apenas em adicionar dias
feito por nenhum de seus próprios filhos." semelhantes a dias semelhantes. Ela não
Assim, era sempre a mesma mágoa, e a deseja – nem aceitará – nenhuma virtude
mesma recusa em entender que a festa é nova, nem mesmo uma dobradas antigas.
preparada para a criança que sevolta para nós, Quando não é com desaprovação, é com
não para aqueles que ficaram em casa, como desconfiança que ela vê todo esforço da alma
nos mostra a parábola. Também me para encontrar no cristianismo algo diferente
entristeceu ver que ela não levava em conta a da domesticação de nossos instintos.
enfermidade de Gertrudes – a pobre Devo confessar que me esqueci
Gertrudes, que não podia esperar outro tipo completamente, naquela tarde em Neuchatel,
de prazer. E se eu providencialmente de ir pagar a conta da nossa haberdasher e
estivesse livre naquela tarde – eu, que sou em trazer-lhe de volta uns carretéis de fio que ela
regra muito requisitada – a reprovação de queria. Mas eu estava mais irritado consigo-
Amélia era ainda mais injusta, porque ela mesmo por isso do que ela poderia ter sido;
sabia perfeitamente que as outras crianças
estavam ocupadas ou ocupadas de uma forma
ou de outra, e que ela mesma não se
importava com a música, de modo que,
mesmo que tivesse todo o tempo do mundo,
Nunca entraria na cabeça dela para ir a um
concerto, nem mesmo se fosse dado à nossa
porta.
O que me angustiou ainda mais foi que
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bem consciente de que "aquele que é fiel
naquilo que é menor também é fiel em
muito", e temendo também as conclusões que
poderia tirar do meu esquecimento. Eu até
deveria ter ficado contente se ela tivesse me
repreendidocom isso, pois eu certamente
servia derepreensões. Mas, como muitas
vezes acontece, a queixa imaginária superou a
acusação definitiva. Ah, como seria bela a
vida e quão suportável seria a nossa misériase
nos contentássemos com males reais sem
abrir as portas para os phantoms e monstros
de nossa imaginação! Mas estou me
desviando aqui para observânciasque fariam
melhor como o objetode um sermão (Lucas
xii, 29: "Nem sejais de mente duvidosa"). É a
história do desenvolvimentointelectual e
moral de Gertrudes que me propus traçar aqui
e devo agora voltar a ela.
Eu esperava seguir seu curso passo a passo
neste livro e comecei a contar a história em
detalhes. Não só me falta, no entanto, tempo
para anotar todas as suas fases com muita-
nozelzelade, como acho extremamente difícil,
no momento atual, lembrar sua sequência
exata. Levado pelo meu conto, comecei por
expor comentários de Gertrudes e conversas
com ela muito mais recentes, uma pessoa que
lesse estas páginas ficaria sem dúvida
espantada ao ouvi-la expressar-se tão justa e
raciocinar tão criteriosamente em tão pouco
tempo. O fato é que seu progresso foi
incrivelmenterápido; Muitas vezes me
perguntava a prontidão com que sua mente se
fixava no alimento intelectual que eu lhe
oferecia e, de fato, em tudo o que ele podia
agarrar, absorvendo tudo por um processo
constante de assimilação e amadurecimento.
A maneira como ela evitava meus
pensamentos e os ultrapassava era uma
surpresa contínua para mim e, muitas vezes,
de uma aula para outra, eu deixava de
reconhecer meu aluno.
Ao final de pouquíssimos meses, não havia
nenhuma aparência de sua inteligência ter
ficado adormecida por tanto tempo. Mesmo
nessa fase inicial, ela mostrou mais senso e
discernimento do que a generalidade das
jovens, distraídas como estão pelo mundo
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exterior e impedidas de dar sua melhor
atenção por uma infinidade de preocupações
futil. Além disso, ela era muito mais velha, eu
acho, do que imaginávamos. De fato, parecia
que ela estava determinada a lucrar com sua
cegueira, de modo que eu realmente me
perguntei se essa enfermidade não era, em
muitos aspectos, uma vantagem. Apesar de
mim compará-la com Carlota, tão facilmente
distraída pelas mais profundas ninharias, de
modo que muitas vezes, ao ouvir a criança
dizer sobre suas lições, como às vezes fazia,
me peguei pensando: "Querido, quanto
melhor ela ouviria se não pudesse ver!"
Escusado será dizer que Gertrudes era uma
leitora muito ansiosa, mas como eu desejava,
na medida do possível, manter-me em
contacto com o desenvolvimentoda sua
mente, preferia que ela não lesse demasiado –
ou, pelo menos, não muito sem mim – e
especialmente não a Bíblia – o que pode
parecer muito estranho para um protestante.
Vou me explicar; mas antes de tocar numa
questão tão importante, quero relatar uma
pequena circunstância que está ligada à
música e que deve ser colocada, tanto quanto
me lembro, logo após o concerto em
Neuchatel.
Sim, o concerto, penso eu, aconteceu três
semanas antes das férias de verão, que
trouxeram Jacques para casa. Entretanto,
sentei-me muitas vezes com Gertrudes no
pequeno harmónio da nossa capela, que é
geralmente tocado por Mlle de la M., com
quem Gertrudes está actualmente hospedada.
Louise de la M. ainda não tinha começado a
dar aulas de música para Gertrudes. Apesar
do meu amor pela música, eu não sei muito
sobre isso, e eu me senti muito pouco capaz
de ensiná-la qualquer coisa quando me sentei
ao lado dela no teclado.
"Não", ela havia dito após as primeiras
apalpadas, "é melhor você me deixar. Eu
preferia tentar sozinho."
E deixei-a ainda mais de
 A SINFONIA PASTORAL

bom grado que a capela não me parecia um "Bem, Gertrudes! Você está pronto para ir
lugar adequado para ficar fechada sozinha para casa? Como está o órgão?"
com ela, tanto por respeito à santidade do "Muito bem", respondeu ela no tom mais
lugar quanto por medo de fofocas • – embora, natural; "Eu realmente fiz alguns progressos
via de regra, eu me esforce para desmenti-la; hoje."
no entanto, é um tapeteque diz respeito não só Uma grande tristeza encheu meu coração,
a mim, mas a ela. Então, quando uma rodada mas nenhum de nós fez qualquer alusão ao
de visitas me chamava nessa direção, eu a episódio que acabei de descrever.
levava para a igreja e a deixava lá, muitas Fiquei impaciente por me ver sozinha com
vezes por longas horas juntos, e depois ia Jacques. Minha esposa, Gertrudes, e os filhos
buscá-la no meu retorno. Dessa forma, ela costumavam ir para a cama bem cedo depois
passava seu tempo pacientemente caçando do jantar, enquanto nós dois sentávamos até
harmonias, e eu a encontraria novamente na tarde durante os estudos. Eu estava esperando
véspera, refletindo sobre alguma concórdia de por esse momento. Mas antes de falar com
sons que a mergulhara em um longo êxtase. ele, senti meu coração explodir com uma
Num dos primeiros dias de agosto, há mistura tão grandede sentimentos que eu não
pouco mais de seis meses, aconteceu que eu podia – ou não ousava – começar sobre o
tinha ido visitar uma pobre viúva necessitada assunto que estava me atormentando. E foi ele
de consolo e não a tinha encontrado. Voltei, quem quebrou abruptamente o silêncio ao
pois, imediatamente para buscar Gertrudes na anunciar sua intenção de passar o resto das
igreja, onde a deixara; ela não estava me férias conosco. Agora, alguns dias antes, ele
esperandode volta tão cedo, e eu fiquei havia nos falado sobre uma turnê que queria
extremamente surpreso ao encontrar Jacques fazer nos altos Alpes – um plano que minha
com ela. Nenhum deles me ouviu entrar, pois esposa e eu aprovamos de coração; Eu sabia
o pequeno barulho que eu fazia estava coberto que seu amigo T., que seria seu companheiro
pelo som do órgão. Não é da minha natureza de viagem, contava com ele; era, portanto,
interpretar a espiã, mas tudo o que toca bastante óbvio para mim que essa mudança
Gertrudes me toca; então, pisando o mais repentina de plano não estava desconectada
suavemente que pude, roubei os poucos da cena em que eu acabara de aparecer. A
degraus que levavam à galeria – um princípio, fiquei comovido com a indignação,
excelentepost de observação. Devo dizer que mas tive medo de ceder a ela para não acabar
durante todo o tempo em que estive lá não com aconfiança do meu filho; Eu também
ouvi uma palavra de nenhum deles que eles tinha medo de pronunciar palavras que eu
pudessem não ter dito antes de mim. Mas ele deveria depoisde me arrepender, então,
sentou-se muito perto dela, e várias vezes eu fazendo um grande esforço sobre mim
o vi pegar sua mão para guiar seus dedos mesmo, eu disse o mais naturalmente que
sobre as chaves. Não era em si estranho que pude:
ela aceitasse instruçõese orientações dele "Pensei que T. estava contando com você."
quando antes as havia recusado de mim, "Oh", ele respondeu, "não absolutamente, e
preferindo, segundo ela, praticar sozinha? além disso ele não terá dificuldade em
Fiquei mais espantado, mais dolorido, do que encontrar outra pessoa para ir com ele. Eu
gostava de ter e estava a ponto de intervir posso descansar aqui tão bem quanto no
quando vi Jacques de repente tirar o relógio. Ober-
"Devo deixá-lo agora", disse ele; "Meu pai
vai voltar daqui a pouco."
Vi-o erguer a mão sem resistência aos
lábios; depois foi embora. Alguns instantes
depois desci sem barulho as escadas e abri a
porta da igreja para que ela me ouvisse e
pensasse que eu tinha acabado de chegar.
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E eu realmente acho que posso gastar meu
tempo melhor do que montanhismo."
"Na verdade", eu disse, "você encontrou
algo para ocupá-lo em casa".
Ele notou alguma ironia no tom da minha
voz e olhou para mim, mas não sendoainda
capaz de adivinhar o motivo disso, continuou
despreocupado:
"Você sabe que eu sempre gostei mais de
ler do que de escalar."
"Sim, meu querido menino", disse eu,
devolvendo o olhar com um como
procurando; "Mas as aulas de harmônio não
são ainda mais atraentes do que a leitura?"
Sem dúvida, sentiu-se corar, pois colocou a
mão na testa, como que para sombrear os
olhos do lampião; mas recuperou-se quase
imediatamente e prosseguiu com uma voz que
eu poderia desejar menos firme:
"Não me culpe muito, pai. Eu não quis
esconder nada de você e você só conseguiu
por muito pouco a confissão que eu estava me
preparando para fazer você".
Falava deliberadamente, como se estivesse
lendo as palavras de um livro, terminando
suas frases com a mesma calma, parecia,
como se fosse um assunto no qual ele não
tinha nenhuma preocupação. A isso."
extraordináriaautopossessão que ele mostrou
levou minha exasperação a um clímax.
Sentindo que eu estava prestes a interrompê-
lo, ele levantou a mão, a ponto de dizer:
"Não, você pode falar depois; deixe-me
terminar primeiro." Mas eu peguei o braço
dele e o sacudi.
"Oh", exclamei impetuosamente, "prefiro
nunca mais vê-lo do que perturbar a pureza da
alma de Gertrudes. Não quero vossas
confissões! Abusar da enfermidade, da
inocência, da franqueza – que abominável
covardia! Eu nunca deveria ter pensado que
você era capaz disso. E falar disso com tanta
despreocupação a sangue frio! . . . Entenda-
me: sou eu que tenho a cargo de Gertrudes e
não vou sofrer você para falar com ela, para
tocá-la, para vê-la por mais um dia".
"Mas, pai", continuou ele com a calma de
sempre, me levando quase ao meu lado, "pode
ter certeza de que respeito Gertrudes o
máximo que puder. Você está cometendo um
erro estranho se acha que há algumacoisa
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ANDRE GIDE
repreensível – não digo em minha conduta,
mas em minhas intenções e em meu coração
secreto. Eu amo Gertrudes e a respeito, digo a
vocês, tanto quanto a amo. A ideia de
perturbá-la, de abusar dela nanocência, é tão
abominável para mim quanto para você."
Então ele protestou que o que ele queria
era ser a ajuda dela, sua amiga, sua banda
hus, que ele tinha pensado que não deveria
falar comigo sobre isso até que ele tivesse
decidido se casar com ela, que a própria
Gertrudes não sabia de sua intenção e que ele
queria falar comigo sobre isso primeiro.
"Esta é a confissão que eu tive que fazer a
você", finalizou; "e não tenhomais o que
confessar, acreditem."
Essas palavras me encheram de estupor.
Enquanto ouvia, sentia minhas têmporas
latejando. Eu tinha sido preparado com nada
além de repreensões, e quanto menos motivos
ele me dava para indignação, mais eu me
sentia perdido, de modo que no final de seu
discurso eu não tinha mais nada a dizer.
"Vamos para a cama", disse por fim,
depois de alguns momentos de silêncio.
Levantei-me e coloquei a mão no ombro dele.
"Amanhã vou contar o que penso sobre tudo
"Diga-me, pelo menos, que você ainda não
está com raiva de mim."
"Devo ter a noite para pensar nisso."
Quando voltei a ver Jacques na manhã
seguinte, parecia que o olhava pela primeira
vez. De repente, percebi que meu filho não
era mais uma criança, mas um jovem;
enquanto eu pensasse nele quando criança, o
amor que eu acidentalmente havia
descobertopoderia parecer monstruoso. Passei
a noite inteira me convencendo de que, pelo
contrário, era perfeitamente normal e normal.
Por que é que a minha insatisfaçãosó se
tornou ainda mais intensa? Só mais tarde é
que isso se tornou claro para mim. Entretanto,
tive de falar com Jacques e dizer-lhe a minha
decisão. Agora, um instinto tão seguro quanto
a voz da ciênciame alertou que esse
casamento deve ser evitado a todo custo.
Levei Jacques até o fundo do jardim.
"Você falou alguma coisa para Gertrudes?"
Comecei perguntando a ele.
[88]
 A SINFONIA PASTORAL
"Não", ele respondeu; "Talvez ela sinta que Achei que ele ficou extremamente pálido –
eu a amo, mas eu ainda não lhe disse isso." tão pálido que a cor deixou até os lábios. Mas
"Então você deve me prometer não falar eu me convenci de que tal submissãopronta
disso ainda um tempo." não gerava um amor muito grande, e me senti
"Estou determinado a obedecer-te, Pai; mas inexpressivamente aliviado. Fiquei
posso eu não saber suas razões?" emocionado com a obediência dele.
Hesitei em dá-las, sentindo dúvidasse "Essa é a criança que eu amo", disse
aquelas que me vieram à mente foram as mais gentilmente. E puxando-o para mim, coloquei
sábias a apresentar. Para dizer a verdade, a meus lábios em sua testa. Houve um leve
consciência e não ofilho ditaram a minha recuo da parte dele, mas eu me recusei a me
conduta. sentir magoado com isso.
"Gertrudes é muito jovem", disse por fim.
"É preciso refletir que ela ainda não foi
10 de Março
confirmada. Você sabe que ela não erafeliz
como outras crianças e não começou a se Nossa casa é tão pequena que somos
desenvolver até muito tarde. Ela é tão obrigados a viver mais ou menos uns em cima
confiante que, sem dúvida, seria facilmente dos outros, o que às vezes é muito
tocada pelas primeiras palavras de amor que importantepara o meu trabalho, embora eu
ouviu; é por isso que é importantenão as mantenha um pequeno espaço para mim no
dizer. Apropriar-sedo que é indefeso é andar de cima, onde posso receber minhas
covardia; Eu sei que você não é um covarde. visitas em particular – e especialmente
Seus sentimentos, você diz, não são de forma inconveniente quando quero falar com um dos
alguma repreensíveis; Eu digo que eles estão familiares em particular, sem um ar de
errados porque são prematuros. É nosso dever solenidade como seria o caso se a entrevista
ser prudente para Gertrudes até que ela seja ocorresse neste meu pequeno salão, que os
capaz de ser prudentepara si mesma. É uma children chamam de meu "santuário" e no
questão de con ciência." qual são proibidos de entrar. Naquelamanhã,
Jacques tem um excelente ponto: que as porém, Jacques tinha ido a Neuchâtel comprar
simples palavras que muitas vezes usei para um par de botas para o seu montanhismo e,
ele quando criança, "apelo à sua consciência", como estava muito bem, as crianças tinham
sempre foram suficientes para verificá-lo. saído depois do almoço com Gertrudes, a
Enquanto isso, enquanto eu olhava para ele, quem levaram
pensei que, se Gertrudes fosse capaz de ver,
ela não poderia deixar de admirar a figura alta
e esbelta, tão reta e ao mesmo tempo tão
mentirosa, a testa lisa, o olhar franco, o rosto,
tão infantil ainda, embora agora, por assim
dizer, ofuscado por uma gravidade repentina.
Ele estava descalço, e seus cabelos claros, que
eram bastante longos naquela época, se
enrolavam um pouco nas têmporas e
escondiam suas orelhas.
"Há outra coisa que lhe quero perguntar",
continuei, levantando-me do banco onde
estávamos sentados. "Você tinha atendência
de ir embora depois de amanhã; Peço-vos que
não adiem a vossa partida. Você deveria ficar
afastado um mês inteiro, pelo menos; Peço-
vos que não diminuam a vossa ausência num
único dia. Isso está combinado?"
"Muito bem, Pai, obedecerei."
[89]

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ao mesmo tempo em que ela se encarrega cabeça, "Se eu tivesse que avisá-lo", ela disse,
deles. (É um prazer para mim notar que "de tudo o que você não pode ver por si
Charlotte é particularmente atenta a ela.) No mesmo, eu deveria ter meu trabalho cortado
chá, então, uma refeição que sempre tomamos para mim!"
na sala comum, eu naturalmente fiquei O que ela quis dizer com essa insinuação?
sozinho com Amelie. Era exatamente isso que Eu não sabia nem me importava em saber, e
eu queria, pois estava com saudade de falar continuei, sem atendê-lo:
com ela. Acontece comigo tão raramente ter "Bem, mas eu quero ouvir o que você
um tete-a-tete com ela, que me sentia quase pensa sobre isso."
tímido, e a importância do que eu tinha a Ela suspirou. Depois: "Sabe, minha
dizer me agitava tanto quanto se fosse uma querida, que eu nunca aprovei a permanência
questão, não dos assuntos de Jacques, mas dessa criança com a gente".
dos meus. Senti também, antes de começar a Achei difícil não me irritar com ela
falar, como duas pessoas que se amam e relembrando assim o passado.
vivem praticamentea mesma vida ainda "A permanência da Gertrudes conosco não
podem permanecer (ou se tornar) um enigma é o que estamos discutindo", eu disse, mas
para o outro como se vivessem atrás de muros Amélia continuou:
de pedra. As palavras, neste caso – as ditas ou "Sempre achei que não adiantaria."
as ouvidas – têm o som patético de bater em Com forte desejo de conciliação, peguei
vão contra a resistência daquela barreira sua frase:
divisória, que, se não for vigiada, se tornará "Então você acha que não adiantaria se
cada vez mais impenetrável. isso levasse a um casamento desses? Isso é
"Jacques estava falando comigo ontem à exatamente o que eu queria ouvir você dizer.
noite e novamente esta manhã", comecei Fico feliz por sermos da mesma opinião." Em
enquanto ela derramava o chá; e minha voz seguida, acrescentei que Jacques havia se
estava tão vacilante quanto a de Jacques tinha submetido silenciosamente às razões que eu
sido firme no dia anterior. "Ele me disse que lhe dera, de modo que não havia necessidade
amava Germtrude." de que ela ficasse ansiosa; que havia sido
— Era muito certo da parte dele te dizer — combinado que ele sairia no dia seguinte para
disse ela sem olhar para mim e continuando- sua viagem e ficaria afastado um mês inteiro.
sua tarefa de dona de casa, como se eu tivesse "Como não tenho mais desejo do que você
dito a coisa mais natural do mundo —ou de que ele encontre Gertrudes aqui quando ele
melhor, como se eu não tivesse dito nada que voltar", acabei, "acho que a melhor coisa seria
ela já não sabia. entregá-la aos cuidados de Mademoiselle de
"Ele me disse que queria se casar com ela; la M. e eu poderia continuar a vê-la lá; pois
ele está decidido a—" não há como negar que tenho obrigações
"Era de se esperar", murmurouela com um muito sériaspara com ela. Acabei de ir soar a
leve encolher deombros. nossa amiga e ela está pronta para nos
"Então você desconfiou?" Perguntei com obrigar. Assim vos livrareis de uma presença
algum vexame. que vos é dolorosa. Louise de la M. cuidará
"Eu vejo isso acontecendo há muito tempo. de Gertrudes; Ela
Mas esse é o tipo de coisa que os homens
nunca percebem."
Não adiantaria protestar, e além disso
talvez houvesse alguma verdade em sua
tréplica, então "Nesse caso", eu simme opus,
"você pode ter me avisado".
Ela me deu o pequeno sorriso torto com
que às vezes acompanha e exibe suas
reticências, e então, com um aceno lateral de
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 A SINFONIA PASTORAL

parecia encantada com o arranjo, já estava pouco. Perdoe-me".

ansiosa para dar aulas de harmonia." Nisso, ouvi-a vir atrás de mim; então senti-
Amélia parecia determinada a permanecer a deitar os dedos suavemente sobre minha
em silêncio, de modo que continuei: cabeça, enquanto dizia com ternura e com
"Como não vamos querer que Jacques veja uma voz trêmula de lágrimas:
Gertrudes lá, acho que seria bom avisar "Meu pobre querido!"
Mademoiselle de la M. sobre o estado das Em seguida, ela deixou o quarto
coisas, não é?" rapidamente.
Eu esperava, ao fazer essa pergunta, tirar As palavras de Amélia, que eu então
algo dela; mas ela manteve os lábios bem achava tão misteriosas, tornaram-se claras
fechados, como se tivesse jurado não falar. E para mim logo depois; Escrevi-as como me
continuei – não que eu tivesse mais nada a atingiram no momento; e naquele dia só
acrescentar, mas porque eu não podia suportar entendi que era hora de Gertrudes ir embora.
seu silêncio:
"Aliás, talvez Jacques tenha superado seu
12 de Março
amor quando voltar. Na idade dele mal se
sabe o que se quer." Eu havia imposto a mim mesmo o dever de
"E mesmo depois nem sempre se sabe", dedicar um pouco de tempo diariamente a
disse ela por fim, um tanto estranha. Gertrudes – algumas horas ou alguns minutos,
Seu modo de falar enigmático e levemente de acordo com as ocupações em mãos. No dia
oracular me irritou, pois sou franco demais seguinte a essa conversa com Amélia, tive
por natureza para suportar facilmente a algum tempo livre e, como o tempo estava
criação de mistérios. Voltando-me para ela, convidando, levei Gertrudes comigo através
implorei-lhe que explicasse o que ela queria da floresta até aquela dobra no Jura, onde no
dizer com aquilo. tempo claro se pode ver, através de uma
"Nada, minha querida", respondeu com cortina de galhos e através de um imenso-
tristeza. "Eu só estava pensando que há um trecho de terra a seus pés, a maravilha dos
mêsvocê estava querendo ser avisado das Alpes nevados emergindo de um fino véu de
coisas que você não percebia." névoa. O sol já estava declinando à esquerda
"Bem?" quando chegamos ao nosso assento habitual.
"Bem, eu estava pensando que nãoé fácil Um prado de grama grossa e bem cortada
avisar as pessoas." inclinava-se para baixo aos nossos pés; mais
Já disse que odeio mistérios e me oponho, longe, algumas vacas pastavam; cada um
por princípio, a insinuações e duplos sentidos. deles entre esses rebanhos de montanha usa
"Quando você quiser que eu te entenda, um sino no pescoço.
talvez você se explique mais claramente", "Eles delineiam a paisagem", disse
respondi, talvez de forma bastante brutal, e Gertrudes enquanto ouvia seus tilintar.
me arrependi assim que o disse; pois vi seus Ela me pediu, como faz toda vez que
lábios tremerem um pouco. Ela virou a vamos passear, para descrever o lugar onde
cabeça para o lado, depois se levantou e deu havíamos parado.
alguns passos hesitantes, quase trêmulospelo "Mas você já sabe disso", eu disse a ela; "à
quarto. margem da floresta, onde se avistam os
"Mas, Amélia", eu gritei, "por que você Alpes."
continua sendo infeliz agora que está tudo
bem de novo?"
Senti que meus olhos a envergonhavam, e
foi de costas voltadas e cotovelos sobre a
mesa, apoiando a cabeça nas mãos, que passei
a dizer:
"Falei com você de forma indelicada há
I9I]

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 ANDRE GIDE

"Pode-se vê-los claramente hoje?" oração surgiu do fundo do meu coração:

"Sim, em todo o seu esplendor." "Agradeço-te, Senhor, por revelares aos
"Você me disse que eles eram um pouco humildes o que escondeste dos sábios".
diferentestodos os dias." "Se você soubesse", exclamou ela em tom-
"Com o que devo compará-los esta tarde? de deleite, "se você soubesse com que
Para um dia sedento de verão. Antes da noite, facilidade eu imagino tudo! Você gostaria que
eles terão derretido no ar." eu descrevessea paisagem para você? . . .
"Gostaria que você me dissesse se há lírios Estejaacima de nós, e ao nosso redor estão os
nos grandes prados diante de nós." grandes abetos, com seu cheiro de resina e
"Não, Gertrudes, os lírios não crescem troncos rudes, estendendo seus longos ramos
nessas alturas, ou apenas algumas raras horizontais escuros e gemendoenquanto o
espetas." vento tenta dobrá-los. Aos nossos pés, como
"Nem os lírios chamavam os lírios do um livro aberto sobre a mesa inclinada da
campo?" montanha, jaz o amplo prado verde,
"Não há lírios nos campos." fotografado com cores movediças – azul na
"Nem mesmo nos campos ao redor do sombra, dourado ao sol e falando em palavras
Neuchatel?" claras de flores – gencianas, pulsatillas,
"Não há lírios do campo." ranúnculos e os belos lírios de Solomon, as
"Então por que nosso Senhor disse: 'Con- vacas vêm soletra-las com seus sinos, e os
sider os lírios do campo'?" anjos vêm e os leem – pois você diz que os
"Havia alguns em sua época, sem dúvida, olhos dos homens estão fechados. Sejabaixo o
para que ele o dissesse; mas eles se livro Eu vejo um grande rio fumegante e
despedaçaramdiante dos homens e de seus enevoado de leite, escondendo abismos de
arados". mistério – um imenso rio, cuja única margem
"Lembro-me que muitas vezes me disseste são os belos e deslumbrantes Alpes muito,
que o que este mundo mais precisa é de muito longe ao longe... É para lá que Jacques
confiançae amor. Você não acha que com um vai. Diga-me, ele está realmente começando
pouco mais de confiança os homens os amorrer?"
veriam novamente? Quando ouço a Sua "Ele deve começar amanhã. Ele te disse
palavra, garanto-vos que os vejo. Vou isso?"
descrevê-los para você, será? São como sinos "Ele não me disse isso, mas eu adivinhei.
de chama – grandes sinos de azul, cheios do Será que ele vai ficar muito tempo fora?"
perfume do amor e balançando na brisa da "Um mês... Gertrudes, quero lhe perguntar
noite. Por que você diz que não há nenhum uma coisa. Por que você não me disse que ele
diante de nós? Eu os sinto! Vejo o prado costumava encontrá-lo na igreja?"
cheio deles." "Ele veio duas vezes. Oh, eu não quero
"Eles não são mais bonitos do que você os esconder nada de você; mas eu tinha medo de
vê, minha Gertrudes." te deixar infeliz".
"Diga que eles não são menos bonitos." "Me deixaria infeliz se você não me
"Eles são tão bonitos quanto você os vê." contasse."
"E, no entanto, digo-vos que nem Salomão, A mão dela buscou a minha.
em toda a sua glória, foi arranjado como um "Ele ficou triste ao sair."
destes", disse ela, citando as palavras de "Diga-me, Gertrudes, ele disse que te
Cristo; e quando ouvi sua voz melodiosa, amava?"
senti que estava ouvindo-os pela primeira vez. "Ele não disse, mas eu posso sentir isso
" Tn toda a sua glória ", ela repetiu sem ser informado. Ele não me ama tanto
pensativamente, e ficou em silêncio por um quanto você".
tempo. Continuei: "E você, Gertrudes, te deixa infeliz que ele
"Eu te disse, Gertrudes, que quem tem vá embora?"
olhos é que não consegue enxergar." E uma "Acho melhor ele ir. Não consegui
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responder." exterior. Foi ontem que consegui pela

"Mas me diga, isso te deixa infelizque ele primeira vez reencontrar alguns momentos de
vá?" lazer.
"Sabe, pastor, que é você que eu amo... Ontem à noite li tudo o que tinha escrito
Ah, por que você tira a mão? Eu não deveria aqui...
falar isso se você não fosse casado. Mas Agora que me atrevo a chamar pelo nome
ninguém se casa com uma menina cega. o sentimento que há tanto tempo não era
Então, por que não deveríamos nos amar? reconhecido em meu coração, parece quase
Diga-me, pastor, você acha que tem alguma- incompreensível que eu o tenha confundido
coisa errada nisso?" até hoje – incompreensívelque aquelas
"Nunca é no amor que o errado mente." palavras de Amélia que eu reúnotenham
"Sinto que não há nada além de bom no parecido misteriosas – que mesmo depois das
meu coração. Não quero fazer o Jacques ingênuas declamaçõesde Gertrudes, eu ainda
sofrer. Não quero fazer ninguém sofrer. ... Só poderia duvidar que a amava. O fato é que eu
quero dar felicidade". não permitiria, então, que qualquer amor fora
"Jacques estava pensando em pedir você do casamento pudesse ser permitido, nem ao
em casamento." mesmo tempo permitiria que pudesse haver
"Você vai me deixar falar com ele antes qualquer coisa proibida no sentimentoque me
que ele vá? Gostaria de lhe dizerque tem de atraiu tão apaixonadamente para a Alemanha.
deixar de me amar. Pastor, você entende, não A inocência de seus votos, sua franqueza
entende, que eu não posso casar com muito franca, me tranquilizou. Eu disse a mim
ninguém? Você vai me deixar falar com ele, mesmaque ela era apenas uma criança. O
não vai?" amor real não passaria sem confusão e
"Esta noite." blushes. No que me diz respeito, convenci a
"Não, amanhã; pouco antes de ele sair... mim mesmo de que aamava como se ama
O sol se punha em majestoso dor. O ar da uma criança aflita. Eu cuidava dela como se
noite estava quente. Havíamos nos levantado cuidasse de uma pessoa doente – e assim eu
e, conversando enquanto fomos, voltamos fazia uma obrigaçãomoral, um dever, do que
para o caminho sombrio de volta para casa. era realmente uma inclinação passional. Sim,
verdadeiramente, na mesma noite em que ela
falou comigo da maneira que descrevi, tão
feliz estava eu, tão leve de coração, que
SEGUNDO CADERNO entendi mal meus sentimentos reais e, mesmo
transcrevendo nossa fala, ainda os entendi
25 Abril mal. Pois eu deveria ter considerado o amor
Fui obrigado a deixar este livro de lado por repreensível, e minha convicção era de que
algum tempo. tudo o que era repreensíveldeveria pesar sobre
A neve derreteu finalmente e, assim que as a alma, portanto, como não sentia peso em
estradas estavam transitáveis, havia muitas minha alma, não pensava em amor.
coisas a serem feitas que eu tinha sido Essas conversas não só foram
obrigado a adiar por todo o tempo enquanto estabelecidas exatamente como ocorreram,
nossa aldeia estava isolada do mundo mas também foram
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 ANDR GIDE
escrito enquanto eu estava no mesmo estado em casa orei por ela com toda sinceridade de
de espírito de quando eles ocorreram; para coração.
dizer a verdade, foi só quando os reli ontem à Quanto à abstenção de Jacques, deveu-se a
noite que entendi... outro motivo, como uma conversa que tive
com ele um pouco mais tarde deixou claro.
Assim que Jacques se foi (eu tinha
permitido que Gertrudes falasse com ele antes
de ele partir, e quando ele voltou para os
últimos dias de suas férias, ele decidiu evitá-la
completamente ou falar com ela apenas na
minha presença), nossa vida voltou ao seu
curso pacífico habitual. Gertrudes, como
havia sido combinado, foi ficar na casa de
Mlle Louise, onde eu a visitavatodos os dias.
Mas, novamente com medo do amor, fiz
questão de não falar com ela de nada que
pudesse nos agitar. Falei-lhe apenas como
pastora e, na maior parte das vezes, na
presença de Luísa, ocupando-me sobretudo da
sua instruçãoreligiosa e da preparação para a
Santa Comunhão, que acaba de participar
nesta Páscoa.
Também eu me comuniquei no dia de
Páscoa.
Isso foi há quinze dias. Para minha
surpresa, Jacques, que passava uma semana
de férias conosco, não nos acompanhouà
Mesa do Senhor. E lamento muito ter que
dizer que Amelie também se absteve – pela
primeira vez desde o nosso casamento.
Parecia que os dois tinham chegado a um
entendimentoe resolvido com a abstenção
desta solene celebração para lançar uma
sombra sobre a minha alegria. Mais uma vez,
felicito-mepor Gertrudes não poder ver e por
me ter deixado a suportar sozinho o peso
desta sombra. Conheço Amélia muito bem
para não estar ciente de toda a culpa que ela
desejava indiretamente transmitir por seu
conduto. Ela nunca me desaprova
abertamente, mas faz questão de mostrar seu
descontentamento deixando-me em uma
espécie de isolação.
Fiquei profundamente angustiado que uma
queixa desse tipo – como essa, quero dizer, ao
me abster de contemplar – tenha afetado tanto
a alma de Amélia a ponto de afastá-la de seus
interessesmais elevados. E quando cheguei
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3 de maio
A instrução religiosa de Gertrudes levou-
me a reler os Evangelhos com um novo olhar.
Parece-me cada vez mais que muitas das
noções que constituem a nossa fé nãose
originam das próprias palavras de Cristo, mas
dos comentários de São Paulo.
Este foi, aliás, o tema da discussão que
acabo de ter com Jacques. Por disposição, ele
é um pouco duro e rígido, e sua mente não é
suficientemente nutrida por seu coração; ele
está se tornando tradicionalista e dogmático.
Ele me censura por escolher fora da doutrina
cristã "o que me agrada". Mas eu não escolho
entre as palavras de Cristo. Eu simplesmente,
entre Cristo e São Paulo, escolho Cristo. Ele,
ao contrário, por medo de encontrá-los em
oposição, recusa-se a dissociá-los, recusa-se a
sentir qualquer diferença de inspiração entre
eles e faz objeções quando digo que em um
caso é um homem que ouço, enquanto no
outro é Deus. Quanto mais ele argumenta,
mais convencido eu sou, ele não sente que a
menor palavra de Cristo tem um sotaque
divino que é único.
Procuro os Evangelhos, procuro em vão
ordens, ameaças, proibições... Todos eles vêm
de São Paulo. E é precisamente porque não se
encontram nas palavras de Cristo que Jacques
se perturba. Almas como a dele se acham
perdidas assim que sãoprivadas de seus
adereços, de seus corrimãos, de suas cercas.
E, além disso, não podem tolerarque os outros
gozem de uma liberdade a que renunciaram, e
querem obter por compulsão
 A SINFONIA PASTORAL
o que seria prontamente concedido pelo amor.
"Mas, Pai", disse ele, "eu também desejo a
felicidade da alma".
"Não, meu amigo, você deseja sua submis-
são."
"É na submissão que reside a felicidade."
Deixo-lhe a última palavra porque não-
gosto de discutir, mas sei que a felicidade está
ameaçada quando se procura obtê-la pelo que
deveria ser, pelo contrário, o efeito da
felicidade – e se é verdade que a alma
amorosa se alegra em uma submissão
voluntária, nada está mais longe da felicidade-
do que a submissãosem amor.
De resto, Jacques raciocina bem, e se eu
não estivesse angustiado por ver tanta dureza
doutrinária em uma mente tão jovem, sem
dúvida admiraria a qualidade de seus
argumentos e sua lógica inflexível. Muitas
vezes me parece que sou mais jovem do que
ele – mais jovem hoje do que era hoje– e
repito para mim mesmo as palavras:
"Se não vos tornardes como criancinhas,
não entrareis no reino dos céus."
Traio Cristo, menosprezo, profano os
Evangelhos quando vejo neles sobretudo um
método para alcançar a vida de bem-
aventurança? O estado de alegria, que a nossa
dúvida e a dureza do nosso coração impedem,
é uma obrigação imposta a cada cristão. Todo
ser vivo é mais ou menos capaz de alegria.
Toda criaçãoviva deve tender à alegria. Só o
sorriso de Gertrudes me ensina mais neste
aspectodo que todas as minhas lições lhe
ensinam.
E estas palavras de Cristo destacaram-se
diante dos meus olhos em letras de luz: "Se
fosses cegos, não teríeis pecado". O pecado é
aquilo que escurece a alma – que antecipasua
alegria. A perfeita felicidadede Gertrudes, que
resplandece de todo o seu ser, vem do fato de
que ela não conhece o pecado. Não há nada
nela além de luz e amor.
Coloquei em suas mãos vigilantes os
quatro Evangelhos, os Salmos, a Apocalypse
e as três Epístolas de São João, para que ela
possa ler: "Deus é luz, e nele não há escuridão
alguma", como no Evangelho ela já ouviu o
Salvador dizer: "Eu sou a luz do mundo". Não
lhe darei as Epístolas de São Paulo, pois se,
sendo cega, ela não conhece o pecado, de que
adianta perturbá-la deixando-a ler: "o pecado
pelo mandamento pode tornar-se pecaminoso
demais" (Romanos vii, 13) e toda a dialética
que se segue, por mais admirável que seja.
8 de maio
O Dr. Martins veio ontem de Chaux-de-
Fonds. Ele examinou os olhos de Gertrudes
por um longo tempo com o oftalmoscópio.
Ele me disse que havia falado sobre Gertrudes
ao Dr. Roux, o especialista de Lausanne, e
que deveria relatar suas observações a ele.
Ambos têm a ideia de que Gertrudes pode ser
operada com sucesso. Mas concordamos em
não dizer nada sobre isso a ela, enquanto as
coisas não forem mais certas. Martins é para
vir e me dizer o que eles pensam depois de
consultar. De que adiantaria aumentar as
esperanças de Gertrudes se há algum risco de
extinção imediata? E, além disso, ela não está
feliz como está? . . .
10 maio
Na Páscoa, Jacques e Gertrudes voltaram a
se ver na minha presença – pelo menos,
Jacques viu Gertrudes e falou com ela, mas
apenas sobre ninharias. Ele parecia menos
agitado do que eu temia; e eu me convenço
novamente de que, se seu amor tivesse sido
realmente muito ardente, ele não teria
superado isso tão facilmente, mesmo que
Gertrudes tivesse dito a ele no ano passado,
antes de ir embora, que era desesperador.
Notei que ele não diz mais "tu" para
Gertrudes, mas a chama de "você", o que
certamente é preferível

[95]

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capaz; no entanto, não lhe tinha pedido que o
fizesse e congratulo-me por ter sido uma ideia
sua. Há, sem dúvida, muita coisa boa nele.
Desconfio, no entanto, que essa submissão-
de Jacques não foi alcançada semluta. O
lamentável é que o constrangimento que ele
foi obrigado a impor aos seus sentimentos
agora lhe parece bom em si mesmo; gostaria
de vê-la impostaa todos; Senti isso na
discussãoque tive com ele e que volteimais
atrás. Não é La Rochefoucauld quem diz que a
mente é muitas vezes o dupe do coração? Não
preciso dizer que, conhecendo Jacques como
eu, não me venci a apontá-lo para ele lá e
depois, pois o considero uma daquelas
pessoas que só se tornam mais obstinadas pelo
argumento, mas na mesma noite encontrei o
que me deu uma resposta – e do próprio São
Paulo (só podia vencê-locom suas próprias
armas) – e deixei um bilhetinho em seu
quarto, no qual escrevi o texto: "Não julgue
aquele que come o que come, porque Deus o
recebeu" (Romanos xiv, 3).
Eu poderia muito bem ter copiado o que
segue: "Eu sei, e sou persuadido pelo Senhor
Jesus, que não há nada de impuro desi
mesmo: mas para aquele que estima qualquer
coisa como impura, para ele é impura". Mas
não me atrevi, pois temia que Jacques pudesse
vir a me esclarecerde alguma interpretação
equivocada em relação a Gertrudes – uma
suspeita que não deve atravessar sua nação
imagináriapor um segundo. Evidentemente
que se trata aqui de uma questão de
alimentação; mas em quantos sábiosdas
Escrituras não somos chamados a dar às
palavras um duplo e triplo significado? ("Se o
teu olho...". e a multiplicação dos pães, o
milagre de Caná, etc.) Não se trata de uma
questão de corte lógico; o sentido deste texto é
amplo e profundo: a restrição não deve ser
ditada pela lei, mas pelo amor, e São Paulo
exclama logo em seguida: "Mas, se teu irmão
se entristecer com a tua carne, agora não
andas caridosamente". É onde o amor falha
que está a fenda em nossa armadura. É aí que
o Malignonos ataca. Senhor, tira do meu
coração tudo o que não pertence ao amor...
Pois errei ao provocar Jacques: na manhã
seguinte encontrei em minha mesa a mesma
nota em que escrevera o texto; Jacques tinha
simplesmente escrito no verso outro texto do
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mesmo
ANDRE capítulo:
GIDE "Não destrua com a tua carne
por quem Cristo morreu" (Romanos xiv, 15).
Releio todo o capítulo. É o ponto de partida
para uma discussão interminável. E Gertrudes
deve ser atormentada com essas
perplexidades? O brilho de seu céu deve ser
escurecido com essas nuvens? Não estou mais
perto de Cristo, não a mantenho mais perto
d'Ele, quando a ensino, quando a deixo crer,
que o único pecado é aquele que fere a
felicidade dos outros ou põe em perigo a
nossa?
Infelizmente! Há algumas almas para as
quais a felicidade não é agradável; não
podem, não sabem aproveitar-se. ... Penso na
minha pobre Amélia. Eu nunca deixo de
implorá-la, de insistir com ela, eu gostaria de-
poder forçá-la a ser feliz. Sim, eu gostaria de
poder elevar todos a Deus. Mas ela não fará
nada disso; ela se enrola como certas flores
que nunca se abrem ao sol. Tudo o que ela vê
lhe causa desconforto e angústia.
"O que é bom, minha querida?", elame
desviou outro dia, "não podemos ser todos
cegos".
Ah, como a ironia dela me entristece! E
que coragem preciso para não me perturbar
com isso! E, no entanto, parece-me que ela
deve compreender que esta alusão à
enfermidade de Germtrudeé particularmente
dolorosa para mim. Ela faz-me sentir, de
facto, que o que admiro sobretudo em
Gertrudes é a sua brandura indefinida; Nunca
ouvi o exdela expressar o menor
ressentimento contra ninguém. É verdade que
não permito que ela ouça nada que possa
magoá-la.
E assim como a alma que é feliz difunde a
felicidade ao seu redor pela radiação do amor,
assim tudo no capuzvizinho de Amélia se
torna sombrio e morosa. Amiel diria que sua
alma emite raios negros. Quando, depois de
um dia de labuta – visitas aos doentes, aos
pobres, aos aflitos – entro ao cair da noite,
cansado e com o coração ansioso por
descanso, afeto, calor, é encontrar, na maioria
das vezes, preocupações, recriminações e
brigas, que temo mil vezes mais do que o frio,
o vento, e a chuva fora de portas. Sei bem
que a nossa velha Rosalie invariavelmente
quer o seu próprio caminho, mas nem sempre
está no errado, nem Amelie sempre no certo
[96]
quando tenta fazê-la ceder.ASei que Gaspard
SINFONIA e Louise de la M. estendeu sua hospitalidade a
PASTORAL
Carlota são terrivelmente indisciplinados; mas três meninas cegas, confiadas aos seus
Amelie não obteria melhores resultados se os cuidados por Martins. Gertrude está
repreendesse menos alto e menos ensinando-os a ler e a trabalhar em várias
constantemente? Tantas chatices, tantas pequenas tarefas sobre as quais eles já
reprimendas e expostulações, perdem a ponta começaram a ser bastante inteligentes.
como pedrinhas à beira-mar, são muito menos Quão tranquilo, quão reconfortante eu acho
perturbadoras para as crianças do que para sua atmosfera calorosa e amigável cada vez
mim. Sei que Cláudio está com dentição (pelo que entrono Grange, e o quanto sinto falta
menos é o que sua mãe declara toda vez que dele se sou obrigado a deixar passar dois ou
ele monta um uivo), mas isso não o encoraja a três dias sem ir lá. Mlle de la M., não é
uivar para que ela ou Sarah corram e o necessário dizer, tem meios suficientes para
peguem e fiquem para sempre acariciando-o? acolher e prover a Germtrudee as três
Estou convencido de que ele não uivaria pequenas pensionistas sem se expor de forma
tantas vezes se fosse deixado a uivar uma ou alguma, três criadas ajudam-na com a maior
duas vezes quando eu não estivesse lá. Mas devoção e salvam-lhe todo o cansaço. Pode-se
sei que é a hora que mais o mimam. imaginar que a fortuna e o lazer sejammelhor
Sarah é como sua mãe, e por isso eu guardados? Louise de la M. sempre se
deveria ter desejado mandá-la para a escola. interessounos pobres, é uma mulher
Ela não é, infelizmente, o que sua mãe era em profundamentereligiosa e parece não
sua idade, quando ficamos noivos pela pertencer a esta terra ou viver
primeira vez, mas o que os cuidados materiais
da vida a fizeram – eu diria o cultivo dos
cuidados da vida, pois Amélia certamente os
cultiva. Acho realmente muito difícil
reconhecer nela hoje o anjo daqueles
primeiros tempos que sorria encorajado em
cada impulso elevado do meu coração, que eu
sonhava que seria o partícipe de todas as
minhas esperanças e medos, e que eu olhava
como meu guia e líder ao longo do caminho
para o céu – ou o amor me cegou naqueles
dias? ... Não vejo que Sarah tenha interesses
que não sejam vulgares; como sua mãe, ela se
deixa levar inteiramente por assuntos
domésticos irrisórios; As próprias feições de
seu rosto, unilluminated como são por
qualquer chama interior, parecem maçantes e
quase duras. Não tem gosto pela poesia nem
pela leitura em geral; Nunca ouço nenhuma
conversaentre ela e sua mãe em que tenha
alguma inclinação para participar, e sinto meu
isolamento ainda mais doloroso quando estou
com eles do que quando me retiro para
estudar, como está se tornando meu costume
fazer cada vez mais.
E também caí no hábito neste outono,
encorajado pela escassez dos dias, de tomar
chá no Mlle de la M. sempre que minhas
rondas permitirem – ou seja, sempre que
puder voltar cedo o suficiente. Ainda não
mencionei que, desde novembro passado,
[97]

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por tudo menos pelo amor; Embora seu cabelo
já esteja prateado sob sua touca de renda, nada
pode ser mais infantil do que sua risada, nada
mais harmonioso do que seus movimentos,
nada mais musical do que sua voz. Gertrudes
apanhou os seus homens, a sua maneira de
falar, quase a tonação, não só da sua voz, mas
da sua mente, de todo o seu ser – uma
semelhança sobre a qual eu provoquei os dois,
mas que nenhum deles admitirá. Como é
doce, quando encontro tempo, ficar na
companhia deles, vê-los sentados um ao lado
do outro, Gertrudes ou encostando a cabeça
no ombro da amiga ou apertando uma de suas
mãos na dela, enquanto eu as leio algumas
linhas de Lamartine ou Hugo; como é doce
contemplar as belezas de tamanha poesia
refletidas no espelho de suas almas límpidas!
Até os pequenos alunos são tocados por ela.
Estas crianças, nesta atmosfera de paz e amor,
desenvolvem-se de forma surpreendente e
fazem notável progress. Sorri no início
quando Mlle Louise falou em ensiná-los a
dançar – tanto para sua saúde quanto para sua
diversão – mas agora admiro a graça rítmica a
que elesse submeteram, embora eles mesmos,
infelizmente, não consigam apreciá-la. E, no
entanto, Louise de la M. me convenceu de
que, embora eles não possam ver, eles
percebem fisicamente a harmonia de seus
movimentos. Gertrude participa de suas
danças com a mais encantadora graça e
doçura, e além disso parece tomar as mais
agudassúplicas neles. Ou, às vezes, é Louise
de la M. quem dirige os movimentosdas
meninas, e então Gertrudes se senta ao piano.
Seu progresso na música tem sido
surpreendente; ela toca órgão na capela agora
todos os domingos e prelúdio de pequenas
improvisaçõespara o canto dos hinos. Todos
os domingos ela vem almoçar conosco; Meus
filhos ficam encantados em vê-la, apesar de
seus gostos estarem cada vez mais
divergentes. Amementira não é muito irritável
e passamos pela refeição sem problemas.
Depois do almoço, toda a família volta com
Gertrudes para o Grange e toma chá lá. É um
deleite para meus filhos, e Louise gosta de
mimá-lose carregá-los com delicadezas.
Amelie, que está longe de ser insensível a
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ANDRE GIDE
atenções desse tipo, finalmentese curva e
parece dez anos mais jovem. Acho que ela
acharia difícil agora passar sem essa parada na
rodada cansativa de sua vida diária.
18 maio
Agora que o bom tempo voltou, pude sair
novamente com Gertrudes – algo que não
fazia há muito tempo (pois houve novas
quedas de neve muito recentemente e as
estradas estavam em péssimo estado até
poucos dias atrás), e faz muito tempo que
também não me vejo sozinho com ela.
Caminhamos rápido; O ar afiado colousuas
bochechas e continuou soprando seus cabelos
claros sobre seu rosto. Ao passarmos ao lado-
de uma turfeira, peguei uma ou duas
corredeiras que estavam em flor e escorreguei
seus talos sob sua boina, depois os entreguei
em seus cabelos para mantê-los no lugar.
Mal havíamos nos falado ainda, no espanto
de nos encontrarmossozinhos juntos, quando
Gertrudes virou seu rosto sem visão para mim
e perguntou abruptamente:
"Você acha que Jacques ainda me ama?"
"Ele decidiu desistir de você", respondi
imediatamente.
"Mas você acha que ele sabe que você me
ama?", continuou ela.
Desde a conversa que contei acima, mais
de seis meses se passaram sem (estranho
dizer) a menor palavra de amor ter passado
entre nós. Nunca estivemos sozinhos, como já
disse, e foi melhor assim... A perguntade
Gertrudes fez meu coração bater tão rápido
que fui
 A SINFONIA PASTORAL
obrigado a diminuir um pouco nosso ritmo.
"Minha querida Gertrudes, todo mundo
sabe que eu te amo", chorei. Mas ela não era
para ser adiada.
"Não, não; você não respondeu à minha
pergunta".
E depois de um minuto de silêncio
prosseguiu, de cabeça baixa:
"Tia Amélia sabe disso; e eu sei que isso a
deixa triste."
"Ela ficaria triste de qualquer maneira",
testei coma voz instável. "É da natureza dela
estar triste."
"Ah, você sempre tenta me tranquilizar",
respondeu ela com certa impaciência. "Mas
não quero ficar tranquilo. Há muitas coisas,
tenho certeza, você não me fala por medo de
me incomodar ou me entristecer; um monte de
coisas que eu não sei, de modo que, às vezes
—"
Sua voz caiu cada vez mais baixo; ela
parou como se fosse por falta de ar. E quando,
retomando suas últimas palavras, perguntei:
"De modo que, às vezes—?"
"De modo que, às vezes", continuou ela
com tristeza, "acho que toda a felicidade que
devo a você é fundada na ignorância".
"Mas, Gertrudes—"
"Não, deixe-me dizer o seguinte: eu não
quero uma felicidade desse tipo. Você tem
que entenderque eu não sou feliz. Prefiro
saber. Há muitas coisas – tristes comcerteza –
que eu não consigo ver, mas você não tem o
direito de guardá-las de mim. Recuperei muito
durante estes meses de Inverno; Tenho medo,
você sabe, de que o mundo inteiro não seja tão
belo quanto você me fez crer, pastor – e, na
verdade, que esteja muito longe disso."
"É verdade que o homem muitas vezes a
desfigurou", argumentei timidamente, pois a
pressa de seus pensamentos me assustou e
tentei virá-la de lado, embora sem ousar
esperar que eu tivesse sucesso. Ela parecia
estar esperando por essas palavras, pois as
aproveitou imediatamente como se fossem o
elo perdido na corrente.
"Exatamente!", gritou; "Quero ter certeza
de não aumentar o mal."
Durante muito tempo caminhamos muito
rápido e em silêncio. Tudo o que eu poderia
(991
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ter dito foi verificado de antemão pelo que eu
sentia que ela estava pensando; Eu temia
provocar alguma frase que pudesse colocar
nossos dois destinos tremendo na balança. E
quando pensei no que Martins havia dito
sobre a possibilidade de ela recuperar a visão,
uma ansiedade terrível tomou conta do meu
coração.
"Eu queria te perguntar", continuou ela por
fim, "mas não sei como dizer isso...
Certamente ela precisava de toda a sua
coragem para falar, assim como eu precisava
de toda a minha para ouvir. Mas como eu
poderia ter previsto a questãoque a
atormentava?
"Os filhos de uma mulher cega nascem
necessariamente cegos?"
Não sei qual de nós essa convergência-
pesou mais, mas era necessário que a gente
continuasse.
"Não, Gertrudes", eu disse, "exceto em
casos muito especiais. Na verdade, não há
razão para que o sejam."
Ela parecia extremamente tranquilizada.
Gostaria, por minha vez, de lhe perguntar por
que razão queria saber isto; Não tive coragem
e continuei desajeitada:
"Mas, Gertrudes, para ter filhos, é preciso
ser casado."
"Não me diga isso, pastor. Eu sei que não é
verdade."
"Eu te disse o que era apropriado eu te
dizer", protestei. "Mas é verdade, as leis da
natureza permitem o que é proibido pelas leis
do homem e de Deus."
"Você sempre me disse que as leis de Deus
eram as leis do amor."
"Mas esse amor não é o mesmo que
também atende pelo nome de caridade."
"É por caridade que você me ama?"
"Não, minha Gertrudes, você sabe que não
é."
 ANDRE GIDE
"Então você admite que nosso amor está braços pressionados em meu coração. Ela não
fora das leis de Deus?" fez nenhuma tentativa de resistir e, ao erguer
"O que você quer dizer?" o rosto para o meu, nossos lábios se
"Oh, você sabe o suficiente, e eu não encontraram...
deveria ser o único a dizer isso."
Procurei em vão alguma forma de evasion, 21 maio
o bater do meu coração fez com que todos os
Ó Senhor, é por nós que vestiste a noite
meus argumentos voassem em confusão.
com tanta profundidade e tanta beleza? É para
"Gertrudes", exclamei descontroladamente,
mim? O ar está quente e a lua brilha na minha
"– você acha que seu amor está errado?"
janela aberta enquanto me sento ouvindo o
Ela me corrigiu:
vasto silêncio dos céus. Oh, de toda a criação
"Nosso amor. ... Digo a mim mesmo que
nasce uma adoração misturada que carrega
deveria pensar assim."
meu coração, perdido em um êxtase que não
"E então—?"
conhece palavras. Não posso, não posso orar
Ouvi o que soou como uma nota de súplica
com calma. Se há alguma limitação ao amor,
em minha voz, enquanto sem esperar para
ela é estabelecida pelo homem e não por Ti,
respirar ela prosseguia:
meu Deus. Por mais culpado que meu amor
"Mas que eu não posso deixar de te amar."
possa aparecer aos olhos dos homens, oh,
Tudo isso aconteceu ontem. Hesitei, a
dizei-me que em Ti é sagrado.
princípio, em anotá-lo. ... Não faço ideia de
Tento elevar-me acima da ideia de pecado;
como a nossa caminhada chegou ao fim.
mas o pecado me parece intolerável, e eu não
Corremos como se estivéssemos sendo
desistirei de Cristo. Não, não vou admitir que
perseguidos, enquanto eu segurava seu braço
pece em amar Gertrudes. Eu sóconseguiria
firmemente pressionado contra mim. Minha
arrancar esse amor do meu coração se eu
alma estava tão ausente do meu corpo que
arrancasse meu coração com ele, e para quê?
senti como se a menor pedrano caminho
Se eu já não a amasse, seria meu dever amá-la
pudesse nos mandar ambos rolando para o
por piedade; deixar de amá-la seria traí-la; ela
chão.
precisa do meu amor...
Senhor, eu não sei... Não sei nada agora, a
19 maio
não serTu. Sede Tu o meu guia. Às vezes
Martins voltou nesta manhã. A de Ger trude sinto que a escuridão está se fechando ao meu
é um caso deoperação. Roux tem certeza disso redor e que sou eu que fui privado da visão
e deseja tê-la sob seus cuidados por um que deve ser restituída a ela.
tempo. Não posso recusar e, no entanto, Gertrudes entrou ontem na casa de repouso
tamanha é a minha covardia, que pedi para deLausanne e não deve sair por três semanas.
poder refletir. Pedi para ter tempo de prepará- Espero seu retorno com extrema apreensão.
la com delicadeza... Meu coração deveria Martins é para trazê-la de volta. Ela me fez
pular de alegria, mas parece inexplicávele prometer que não tentaria vê-la antes disso.
pesado, pesado por uma doentia misdoação.
Ao pensar em ter que dizer a Gertrudes que 22 maio
sua visão pode ser restaurada para ela, meu
Uma carta de Martins: a operação foi bem-
coração me falha completamente.
sucedida. Graças a Deus!
19 de maio. Noite
Vi Gertrudes e não contei a ela. No Grange
desta noite não havia ninguém na sala de
desenho; Subi as escadas para o quarto dela.
Estávamos sozinhos.
Eu a segurei por muito tempo em meus
[ IOO]

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 A SINFONIA PASTORAL
24 maio
A ideia de que aquela que me amava sem-
me ver agora deve me ver me causa um
desconforto intolerável. Será que ela vai me
conhecer? Pela primeira vez na vida consulto
o espelho. Se eu sentir que seus olhos são
menos docesdo que seu coração e menos
amorosos, o que será de mim? Ó Senhor,
algumasvezes penso que preciso do seu amor
para te amar!
8 de junho
Uma quantidade incomum de trabalhome
permitiu atravessar esses últimos dias com
uma paciência tolerável. Toda ocupação que
me tira de mim é misericordiosa; mas durante
todo o dia e através de tudo o que acontece a
imagem dela está comigo.
Ela volta amanhã. Amelie, que durante
estas últimas semanas mostrou apenas o
melhor lado de si mesma e parece se esforçar
para distrair meus pensamentos, está
preparando uma pequena festa com as
criançaspara saudar seu retorno.
9 de junho
Gaspard e Charlotte colheram as flores que
podiam encontrar nos bosques e campos. A
velha Rosalie fabricou um bolomonumental,
que Sarah está classificando com enfeites de
papel dourado. Estamos esperando ela hoje de
manhã para almoçar.
Estou escrevendo para preencher o tempo
de espera. São onze horas. A todo momento
levanto a cabeça e olho para a estrada por
onde virá a carruagem de Martins. Resisto à
tentação de ir ao seu encontro; é melhor –
especialmente por causa de Amélia – que eu
não a acolha além dos outros. Meu coração
pula... Ah, aqui estão eles!
9 de junho. Noite
Oh, em que escuridão abominável estou
mergulhado!
Piedade, Senhor, piedade! Renuncio a amá-
la, mas não a deixas morrer!
Como meus medos estavam certos! O que
[ IOI ]
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ela fez? O que ela queria fazer? Amelie e
Sarah me dizem que foram com ela até a porta
do Grange, onde Mlle de la M. a esperava.
Então ela deve ter saído de novo... O que
aconteceu?
Tento colocar meus pensamentos em algum
tipo de ordem. Os relatos que dão são
compreensíveisou contraditórios. Minha
mente está completamente confusa... O
jardineiro de Mlle de la M. acaba de trazê-la
de volta ao inconsciente de Grange; ele diz
que a viu caminhando à beira do rio, depois
atravessou a ponte do jardim, depois se
inclinou e desapareceu; mas, como a princípio
não se deu conta de que ela havia caído, não
correu em seu socorro como deveria;
encontrou-a na pequena comporta, onde fora
levada pelo riacho. Quando a vi, logo depois,
ela não tinha recuperadoa consciência, ou pelo
menos a tinha perdido de novo, pois veio para
um descanso, graças às medidas rápidas que
foram tomadas. Martins, que, graças a Deus,
ainda não tinha saído, não consegue entender
o tipo de estupor e lassidão em que agora está
afundada. Ele a questionou em vão; ela parece
ou não ouvir ou então está determinada a não
falar. Sua respiração é muito trabalhosa e
Martins tem medo de pneumonia; Ele ordenou
sinapismos e cupping e prometeu voltar
amanhã. O erro foi deixá-la muito tempo com
suas roupas molhadas enquanto tentavam
trazê-la; A água do rio é gelada. Mlle de la
M., que é a única pessoa que conseguiu obter
dela algumas palavras, declara que queria
escolher alguns dos esquecimentos que
crescem em abundância deste lado do rio, e
que, ainda não estando habituada a medir
distâncias, ou então confundindo o tapete
flutuante de flores com terra sólida, ela de
repente perdeu o pé... Se eu pudesse

acreditar! Se eu pudesse apenas me
convencer de que não passava de um acidente,
que carga terrível seria retirada do meu
coração! Durante toda a refeição, embora
fosse tão gay, o sorriso estranho que nunca
saiu de seu rosto me deixou desconfortável;
um sorriso forçado, que eu nunca tinha visto
ela usar antes, mas que eu tentei ao máximo
acreditar que era o sorriso de sua visão recém-
nascida; um sorriso que parecia escorrer de
seus olhos para seu rosto como lágrimas, e
serlateral que a alegria vulgar dos outros me
parecia ofensiva. Ela não se juntou à alegria;
Senti como se ela tivesse reveladoum segredo
que certamente teriame enganado se
estivéssemos sozinhos. Ela mal falava; Mas
ninguém ficou surpreso com isso, porque
muitas vezes ela fica em silêncio quando está
com os outros, e ainda mais quando a alegria
deles fica barulhenta.
Senhor, eu te suplico, deixa-me falar com
ela. Preciso saber ou como posso continuar
vivendo? . . . E, no entanto, se ela realmente
desejava acabar com sua vida, é só porque
sabia? Sabia de uma coisa? Querido, que coisa
horrível você pode ter aprendido? O que eu
escondi de você que foi tão mortal? O que
você pode tão de repente ter visto?
Passei duas horas ao lado de sua cama,
meus olhos nunca saíram de sua cabeça, suas
bochechas pálidas, suasdelicadas pálpebras,
fechadas sobre alguma tristeza indescritível,
seus cabelos ainda molhados e como algas
marinhas enquanto se espalham ao redor dela
no travesseiro – ouvindo suarespiraçãodifícil e
irregular.
10 de junho
Mlle Louise mandou me buscar hoje de
manhã, quando eu estava começando a ir para
o Grange. Depois de uma noite bastante
tranquila, Gertrudes finalmente emergiu de
seu torpor. Ela sorriu quando entrei no quarto
e fez um gesto para que eu viesse sentar ao
lado da cama. Não me atrevi a questioná-la, e
sem dúvida ela estava temendo minhas
perguntas, pois ela disse imediatamente, como
que para evitar qualquer coisa emocional:
[ 102]
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ANDRE GIDE
"Como você chama aquelas florzinhas
azuis que eu queria colher à beira do rio?
Flores da cor do céu. Você vai ser mais
esperto do que eu e me escolher um monte
deles? Eu gostaria que eles aqui ficassemao
lado da minha cama..."
A alegria de sua voz era terrível para mim;
e, sem dúvida, ela estava ciente disso, pois
acrescentou mais gravemente:
"Não posso falar com você esta manhã;
Estou muito cansada. Vá e escolha essas
flores para mim, vai? Você pode voltar mais
tarde."
E quando uma hora depois lhe trouxe o
bando de esqueça-me-não, Mlle Louise disse-
me que Gertrudes estava descansando e não
podia me ver antes da noite.
Vi-a de novo esta noite. Ela estava deitada
– quase sentada na cama – apoiada em uma
pilha de travesseiros. Seus cabelos agora
estavam presos, com os esquecimentos que eu
a havia trazido torcidos nas tranças acima de
sua testa.
Ela estava obviamente muito febril e
respirava com muita dificuldade. Ela guardou
a mão que lhe dei na mão ardente; Fiquei de
pé ao lado dela.
"Devo confessar-te alguma coisa, pastor;
porque hoje à noite tenho medo de morrer",
disse. "O que eu falei hoje de manhã foi
mentira. Não era para colher flores... Você vai
me perdoar se eu disser que queria me matar?"
Caí de joelhos ao lado da cama, ainda
mantendo sua mão frágil na minha; mas ela a
desprendeu e começou a acariciar minha testa,
enquanto eu enterrava meu rosto nos lençóis
para esconder minhas lágrimas e abafar meus
soluços.
"Você acha que foi muito errado?",
continuou ela com ternura; depois, como nada
respondi:
"Minha amiga, minha amiga", disse ela,
"você deve ver que eu ocupo muito espaço em
seu coração e em sua vida. Quando eu vim
De volta a você, foi isso queA me impressionou
SINFONIA PASTORALem voz muito alta, quase gritando as últimas
de uma vez – ou, pelo menos, que o lugar que palavras, de modo que fiquei desconfortável
eu tomei pertencia a outro e que isso a deixou com a ideia de que elas poderiam ser ouvidas
infeliz. Meu crime é que não senti antes; ou do lado de fora da sala, depois fechou os olhos
melhor, – pois de fato eu sabia disso o tempo e repetiu com um chilique, como se fosse só
todo – que eu permiti que você me amasse para si:
apesar disso. Mas quando seu rosto de repente "O pecado reviveu – e eu morri."
me apareceu, quando vi tamanha infelicidade Eu tremia e meu coração congelava em
em seu pobre rosto, não pude suportar a ideia uma espécie de terror. Tentei desviar seus
de que aquela infelizpiedade era meu pensamentos.
trabalho... Não, não, não se culpe por nada; "Quem leu esses textos?" Perguntei.
mas deixe-me ir, e devolva-lhe a alegria." "Jacques", disse ela, abrindo os olhos e me
A mão parou de acariciar minha testa; olhando fixamente. "Você sabia que ele se
Agarrei-a e cobri-a de beijos e lágrimas. Mas converteu?"
ela o afastou impacientemente e começou a Era mais do que eu podia suportar; Eu ia
lançar no meio de alguma emoção fresca. implorar para ela parar, mas ela já tinha
"Não era isso que eu queria te dizer; não, continuado:
não é que eu queira dizer", ela continuou "Meu amigo, vou te entristecer muito; mas
repetindo, e eu vi o suor em sua testa úmida. não deve haver falsocapuz entre nós agora.
Então ela fechou os olhos e os manteve Quando vi Jacques, de repente percebi que
fechados por um tempo, como se para não era você que eu amava, mas ele. Ele tinha
concentrar seus pensamentos ou para a sua cara – quero dizer, a cara que eu
recuperar seu antigo estado de cegueira; e imaginava que você tinha... Ah! Por que você
numa voz que a princípio era arrastada e me fez recusá-lo? Eu poderia ter me casado
triste, mas que logo, ao reabrir os olhos, se com ele...".
tornava mais alta, crescia enfimaté à "Mas, Gertrudes, você ainda pode", gritei
veemência: com desespero no coração.
"Quando você me devolveu a visão", "Ele está entrando no sacerdócio", disse ela
começou ela, "meus olhos se abriram em um impetuosamente. Depois, abalada pelos
mundo mais belo do que eu jamais sonhei que soluços: "Ah, quero confessar para ele", ela
poderia ser; Sim, verdadeiramente, eu nunca gemia em uma espécie de êxtase. "Você vê
tinha imaginado a luz do dia tão brilhante, o ar por si mesmo que não me resta nada além de
tão brilhante, o céu tão vasto. Mas também morrer. Estou com sede. Por favor, ligue para
nunca imaginei os rostos dos homens tão alguém. Não consigo respirar. Deixe-me.
cheios de cuidados; e quando entrei na sua Quero ficar sozinho. Ah! Esperava que falar
casa, sabe o que foi que me impressionou convosco me tivesse trazido mais reconfiança.
primeiro? . . . Ah, não tem jeito, devo te dizer: É preciso dizer adeus. Temos de nos despedir.
o que eu vi antes de tudo foi culpa nossa, Não aguento mais estar com você".
pecado. Não, não proteste. Lembrai-vos das Eu a deixei. Chamei Mlle de la M. para
palavras de Cristo: 'Se fostes cegos, não teríeis tomar meu lugar ao lado dela; sua agitação-
pecado'. Mas agora eu vejo... Levante-se, extrema me fez temer o pior, mas não pude
pastor. Sente-se ali, ao meu lado. Lisdez para deixar de ver que minha presença lhe fazia
mim sem interromper. Durante o tempo que mal. Eu implorei para que eu pudesse ser
passei na casa de repouso li – ou melhor, li enviado se houvesse uma mudança para pior.
para mim alguns versículos da Bíblia que eu
não conhecia – alguns que vocês nunca
11 de junho
tinham me lido. Lembro-me de um texto de
São Paulo que um dia repeti a mim mesmo: Infelizmente! Nunca mais a veria viva. Ela
'Porque uma vez estive vivo sem a lei; mas morreu nesta manhã após uma noite de
quando o mandamento veio, o pecado reviveu, exaustão. Jacques, que a pedido de Gertrudes
e eu morri'. " foi telegrafado por Mlle de la M., chegou
Ela falou em estado de extrema excitaçãoe poucas horas depois do fim. Ele me censurou
[ 103
1

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cruelmente por não ter chamado um padre
enquanto ainda havia tempo. Mas como eu
poderia ter feito isso quando eu ainda não
sabia que, durante sua estadia em Lausanne, e
porele insistente, Gertrudes havia abjurado a
fé protestante? Ele me contou no mesmo
fôlego de sua própria conversão e de
Gertrudes. E assim ambos me deixaram ao
mesmo tempo; parecia que, sepaavaliado por
mim durante sua vida, eles tinham planejado
escapar de mim aqui e estar unidos um ao
outro em Deus. Mas digo a mim mesmo que a
conversão de Jacques é mais uma questão de
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cabeça do
ANDRE que de coração.
GIDE
"Pai", disse ele, "não me cabe fazer
acusações contra ti; mas foi o exemplo do seu
erro que me guiou."
Depois que Jacques partiu novamente, eu
me ajoelhei ao lado de Amélia e pedi que ela
orasse por mim, pois eu estava precisando de
ajuda. Ela simplesmente repetiu: "Pai nosso...
mas depois de cada frase ela deixava longas
pausas, que preenchíamos com nossa súplica.
Eu teria chorado, mas senti meu coração
mais árido do que o deserto.
[ 104]
 A VIDA E AS OBRAS
DE ANDRE GIDE
Por MARC BEIGBEDER
AS OBRAS DE ANDRÉ GIDE, MAIS DO QUE A
MAIORIA DAS PRODUÇÕES LITERÁRIAS, SÃO
INSEPARÁVEIS DA VIDA DO HOMEM. GIDE
ENTENDEU ISSO E FALOU MUITO SOBRE SI
MESMO PARA OS OUTROS, ATÉ SUA MORTE.
HISTÓRIAS SOBRE ELE ABUNDAM, MUITAS
VEZES CONTRADITÓRIAS NO QUE PARECEM
REVELAR DO HOMEM. MAS A VIDA DE GIDE,
COMO SUAS OBRAS, ABRAÇOU AS-
BIGUIDADES. A QUESTÃO É: QUE IDADE-
FINAL DO HOMEM EMERGE DE TUDO ISSO?
Em uma vida ao mesmo tempo aberta e
discreta, Gide foi motivado por nada mais do
que seu próprio gênio literário. Andre Gide
decidiu na infância tornar-se escritor, e
seguiu inequivocamente o rumo que
escolheu.
No mundo moderno, a vocação do
escritor tem muitas vezes um triplo objetivo:
primeiro, escapar de um conjunto de
circunstâncias; segundo, fazê-lo de forma
indireta e subalterna; e, finalmente, sair da
situação particular para se aproximardo
universal. O conjunto particular de
circunstâncias de Gide foi moldado quase
que inutilmentepelo histórico familiar e sua
educação Prot estant. O protestantismo do
final do século XIX incutiu uma dedicação
pessoal, uma necessidade de compromisso e
um escrutínio constante de si mesmo e de
seus sentimentos. Em Gide, essa influência
levou àqueles exames de consciência nos
quais ele se entregou até o fim de seus dias.
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O pai de Gide morreu quando o menino
era muito jovem, e sua vida em casa foi
amplamente influenciada pelas mulheres da
família. Permitiram-lhe grande liberdade e
ele fez praticamente tudo o que quisesse.
Seu senso de individualidade, na verdade de
fantasia, foi encorajado por tais
circunstâncias. Assim como sua paixão pela
natureza e sua sensação de prazer, de
encantamentoinocente, quase de embriaguez,
em desvendaras belezas do campo. "Eu
gostava muito do país ao redor de Uzs, do
vale do Fontaine d'Ure e, acima de tudo, do
garrigue", lembrou. No início, Marie, a
empregada da família, ia com ele em longas
caminhadas. Como toda verdadeira mulher
suíça, ela amava flores e elas as levavam
para casa pelo braço. A aridez e a nudez da
guarnição tornavam a colheita de flores
mais difícil, mas aumentavam o prazer de
Gide nela.
Enquanto a família viajava, o jovem Gide
exploravaa natureza em novos cenários,
ainda compartilhando suas descobertas com
mulheres aprovadoras. Em Si le Grain ne
Meurt (If It Die . . . , 1924) temos as
impressões de Gide de vereucaliptos em flor
durante uma visita à Côte d'Azur com sua
mãe e Anna Shackleton, uma amiga da
família: "O primeiro que vi me enviou para
transportes; Eu estava sozinho, mas saí
correndo imediatamente para anunciar o
evento para minha mãe e Anna e não fiquei
satisfeito até que eu