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A retórica é a arte de convencer pelo

discurso; é também a teoria dessa arte,


criada pelos gregos e constitutiva do nosso
• humanismo.
Depois de um longo eclipse ela voltou em
nossos dias com muita força, a ponto de
ser aplicada à imagem, ao cinema, à
música, ao inconsciente.
Cinco enfoques complementares são
desenvolvidos nesta introdução: uma
apresentação histórica do "sistema"
retórico, uma exposição metódica dos
procedimentos retóricos, uma aplicação
prática - "leitura retórica de diversos
textos", um glossário com definições dos
termos técnicos e uma filosofia da retórica.

Olivier Reboul, filósofo francês, é professor


de Filosofia da Educação na Universidade de
Estrasburgo. Escreveu, além deste, os livros:
Lan9a9e et ideolo9ie, Le lan9a9e de 1'éducation,
Qy 'est-ce qu 'apprendre?

Projeto gráfico da capa Katia Harumi Terasaka


Execução Adriana Translatti
Imagem da capa Charles Sydney Hopkinson, Oliver Wendell
Holmes, 1930 (detalhe). Harvard Law Art
Collection, Cambridge.
INTRODUÇÃO À RETÓRICA
INTRODUÇÃO
À RETÓRICA
Olivier Reboul

Tradução
IVONE CASTILHO BENEDETTI

Martins Fontes
São Paulo 2004
Esta obra foi puhficada originalmente em francês com o titulo
/NTRODUCTION À LA RHÉTORIQUE - THÉORIE ET
PRATIQUE por Presses Unil'ersitaires de France.
Copyright© Presses Universitaires de France, 1991
Copyright© 1998, Livraria Martins Fontes Editora ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

l"ledição
.:ze"M-eto de 1998
21�ição
"111º1mf de 2004

'\na Maria
Marise Simões leal
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reb<ml, Olivier, 1925-


lntrodução à retórica/ Olivier Reboul � tradução Ivone Castilho
Benedetti. - São Paulo: Martins Fontes, 2CX>4. - (Justiça e direito).

Título original: Introduction à la rhétorique


Bibliografia.
ISBN 85-336-2067-5

1. Retórica 1. Título. II. Série.

04-6899 CDD-808

Índices para catálogo sistemático:


1. Retórica 808

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Lida.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Te/. (11)3241.3677 Fax(/1)3105.6867
e-mail: info@martin.efontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br
Índice analítico

Prefácio...... ...... . . ................... .............. ....... .. ......... .. .. . ... . XI


Introdução: Natureza efunção da retórica. . . . . .. .. . ........... XIII
Arte, discurso e persuasão..................... .................... XIV
Função persuasiva: argumentação e oratória ............. XVII
A função hermenêutica ............................................. XVIII
A função heurística . . . . . . . ... . .... .. . . ... . . .. . . .. ......... ............ . XIX
A função pedagógica.................................... ............. XXI

Capítulo I Origens da retórica na Grécia ................. .


-

Nascimento da retórica ... . . . . ... ...... .................. ........... 2


Origem judiciária . . ......... ................ ....... . ............. 2
Córax ................... ................................................ 3
Origem literária: Górgias.............. ....................... 4
A retórica e os sofistas . . .... .. ... . . . . . . . . . . . . . . .. .. . .. .. . .. . .. . . . . . . 6
Protágoras: o homem medida de todas as coisas .. 7
Fundamento sofistico da retó rica ......................... 9
Isócrates ou Platão? ... .............................................. 1O
Isócrates, o humanista .. .. .. . . .. . . . .. . . . . .. .. . . .. . . .. . . . .. .. . . . 1O
Uma pausa ........................................................... 12
Texto 1 Platão, Górgias, 455 d a 456 c , trad. M.
-

Croiset ...................... .................................... ....... 13


Retórica e cozinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . 16
De que "ciência" s e trata? ...................... .............. 18

Capítulo I I Aristóteles, a retórica e a dialética..........


- 21

Uma nova definição de retórica .... . .. .. .. . .. . . ................ 22


Texto 2 Aristóteles, Retórica, livro 1, cap. 2,
-

1 355 a-b .............................................................. . 22


Uma definição mais modesta... ......................... .. 23
A argumentação de Aristóteles ........................... . 24
O que é dialética? ................................................... . . 27
A dialética é um jogo ......................................... .. 28
Tudo para ganhar ................................................ . 29
Respeitar as regras do jogo ................................. . 30
Utilidade do jogo dialético.................................. . 32
Retórica e dialética .................................................. . 34
O que elas têm em comum .................................. . 35
Dialética, parte argumentativa da retórica ......... .. 36
Moralidade da retórica....................................... .. 37
Conclusão: Aristóteles e nós .............................. .. 39

Capítulo III - O sistema retórico.................................. . 43

As quatro partes da retórica ................................ . 43


Invenção ................................................................... . 44
Os três gêneros do discurso................................. . 44
Os três tipos de argumento: etos, patos, logos .... .. 47
Provas extrínsecas e provas intrínsecas ............... . 49
Os lugares ("topoi") ............................................ . 50
Observações sobre a invenção ........................... .. 54
Disposição ("taxis ) .. .... " ..... .. .
................................ . . 54
Exórdio ("prooimion", proêmio) ....................... .. 55
Narração ("diegésis") ......................................... . 56
Confirmação ("pistis") ....................................... . 57
Digressão ("parekbasis") e peroração ("epílogos") 59
Por que a disposição? ......................................... .. 60
Elocução ("léxis ) . . ...
" . .... .
................. ........................ 61
Língua e estilo: uma arte funcional... .................. . 61
Figuras ("schemata") e o problema do desvio..... . 64
Ação ("hypocrisis ) " .
............................................. .... 67
Uma "hypocrisis" sem hipocrisia ...................... .. 67
O problema da memória .................................... . . 68
O problema do escrito e do oral .......................... . 69
Capítulo IV Do século 1 ao XX ...................................
- 71

Período latino . .. ........................................................ 71


Forma e fundo: pintura e cores verdadeiras ......... 71
Retórica e moral . ................................................. 73
Retórica e democracia ......................................... 74
Por que o declínio? ..................... .............................
. 77
Retórica e cristianismo . ....................................... 77
Verdadeiras causas do declínio: retórica, verdade
e sinceridade .......... .............................................. 79
Hoje: retóricas .......................................................... 82
Uma retórica estilhaçada . .................................... 82
Retórica da imagem ............................................. 83
Retórica da propaganda e da publicidade............. 85
Nova retórica contra nova retórica .................. ..... 87

Capítulo V Argumentação .........................................


- 91

As cinco características da argumentação................ 92


O auditório pode ser "universal"? ........................ 92
Língua natural e suas ambigüidades .. .................. 94
Premissas verossímeis: o que é verossímil? ......... 95
Uma progressão que depende do orador.............. 96
Conclusões sempre controversas . ........................ 97
O que é uma "boa " argumentação? ......................... 99
Os sofistas e a argumentação . .............................. 1 00
Não-paráfrase e fechamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . .. . . . . . . l 02
Argumentação pedagógica, judiciária, filosófica ..... 1 04
Do pedagógico ao judiciário ........................... ..... 1 04
Uma controvérsia judiciária: os expropriados e a
desvalorização . .................................................... 1 06
Argumentação filosófica: onde está o tribunal? .. 1 09

Capítulo VI - Figuras ................................... ................ 1 13

Figuras depalavras................................................... 1 15
Figuras de ritmo........ ........................................... 1 15
Figuras de som: aliteração, paronomásia, anta-
náclase ................. ................................................ 1 16
Um argumento retórico: a etimologia ......... ......... 1 18
Figuras de sentido ..................................................... 1 20
Tropos simples: metonímias, sinédoques, metá-
foras .................................................................... . 121
Tropos complexos: hipálage, enálage, oxímoro,
hipérbole, etc...................................................... . 1 23
Figuras de construção ................... ........................... . 1 26
Figuras por subtração: elipse, assíndeto, aposio-
pese ou reticência ............................................... . 1 26
Figuras de repetição: epanalepse, antítese .......... . 1 27
Figuras diversas: quiasmo, hipérbato, anacoluto,
gradação ............................................................ . 1 28
Figuras depensamento .......... .................................. . 1 29
Alegoria: figura didática? ................................... . 130
Ironia, graça e humor .......................................... . 1 32
Figuras de enunciação: apóstrofe, prosopopéia,
preterição, epanortose ......................................... . 133
Figuras de argumento: conglobação, prolepse, apo-
dioxe, cleuasmo .................................................. . 135

Capítulo VII Leitura retórica dos textos..................


- . 139

Questões preliminares .............................................. . 1 40


Orador: Quem? Quando? Contra o quê? Por quê?
Como? ................................................................ . 1 40
Auditório e acordo prévio . . .. . . . . . . ......................... . 1 42
A questão do gênero: Pascal e La Fontaine .............. . 1 43
Texto 3 Pascal, "Justiça, força" (Br. Min. N?
-

298, p. 470) ......................................................... . 1 44


Texto 4 La Fontaine, "O lobo e o cordeiro",
-

Fábulas, 1, 1 0 ...................................................... . 1 44
Situação dos dois textos ...................................... . 1 46
A argumentação dos dois textos .......................... . 1 48
Observações sobre o estilo dos dois textos ......... . 1 50
Os dois gêneros e seu impacto ideológico .......... . 152
Questões sobre o texto .............................................. . 153
O que prova o exemplo? ...................................... . 1 54
Entimema ........................................................... . 1 55
O intertextual, o intratextual e o motivo central . . . 1 57
Texto 5 Victor Hugo, "Chanson", 1 853, Les
-

châtiments, VII, 7 ............................................... . 1 58


Capítulo VIII Como identificar os argumentos? .....
- . 1 63

Os elementos do acordo prévio ................................ . 1 64


Fatos, verdades, presunções ................................ . 1 64
Os valores e o preferível ..................................... . 1 65
Os lugares do preferível ...................................... . 1 66
Figuras e sofismas concernentes ao acordo prévio 1 67
Primeiro tipo: argumentos quase lógicos ................ . 1 68
Contradições e incompatibilidade: o ridículo ..... . 1 68
Identidade e regra de justiça ............................... . 1 70
Argumentos quase matemáticos: transitividade,
dilema, etc . ......................................................... 1 70
.
.

Definição ............................................................ 172


Segundo tipo: argumentosfundados na estrutura do
real . . . . ...... . . . ..... . . . .................. ............................ . . . ...... 173
Sucessão, causalidade, argumento pragmático ... . 173
Finalidade: argumento de desperdício, de dire-
ção, de superação ................................................ . 1 74
Coexistência: argumento de autoridade, argu-
mento "ad hominem" .......................................... . 1 76
Duplas hierarquias e argumento "a fortiori" ....... . 1 78
Terceiro tipo: argumentos que fundamentam a es-
trutura do real ......................... . ................................ . 181
Exemplo, ilustração, modelo .............................. . 181
Comparação e argumento do sacrifício ............... . 1 83
Analogia e metáfora............................................ . 185
Quarto tipo: argumentos por dissociação das noções 1 89
Absurdo ou "distinguo" ...................................... . 1 89
O par aparência-realidade ................................... . 1 90
Outros pares ........................................................ . 191
Artificio e sinceridade ........................................ . 1 93

Capítulo IX - Exemplos de leitura retórica ............... . 1 95

1 96
:�:: �:��� ������'..��-����-��·.:.:..-.�.�-�-�::::::::
� l
adeia de entimemas .................................. .
1 97
1 97
Figuras fortíssimas ............................................. . 1 98
A petição de princípio ......................................... . 1 99
Texto 7 Pierre Corneille, "Marquesa", 1 658 ....
- . 200
Texto 8 - René Descartes, Le discours de la mé-
thode, segunda parte ............................................ 205
Texto 9 - Uma entrevista com Françoise Dolto,
Libération, 5 de fevereiro de 1 987 ............... ........ 209
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 1O
Parágrafo (!) ........................................................ 21 1
Parágrafo (2) ........................................................ 212
Parágrafo (3) ........................................................ 212
Parágrafos (4) e (5) ....................................... ....... 213
Observações críticas: o motivo central ........ ........ 214
Texto 1 O - Alain, "Considerações", de 2 0 de
março de 1 9 1 0 ..................................................... 214
Texto 1 1 - A educação negativa, J.-J. Rousseau,
Emílio, 2? livro............ ... . . . ................................... 217
Introdução: haverá motivo central?...................... 218
O paradoxo . . . . . . . . . . .. . . . . . .. ... . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .......... 219
A argumentação......................... .......................... 220
As metáforas da educação . .. . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . .. . . .. 222
Conclusão: o motivo central ................................ 223
Texto 1 2 - Duas histórias iídiches........................ 224

À guisa de conclusão..................................................... 227


Arte e naturalidade ................ .............................. 228
A ilusão do livro do mestre .. . ... . . . . . . . . . . .. . . . . . ... . ... . . .. 229
Da polêmica ao diálogo ....................................... 230

Notas ..... .......................... ........................................... ... . 233


Bibliografia sumária ...................................................... 239
Índice remissivo e glossário dos termos técnicos ........... 243
Prefácio

Para começar, algumas palavras sobre este livro, sobre o


que ele pretende ser e sobre o que dele se pode esperar.
É multidisciplinar, como, aliás, a própria retórica que,
desde seus primórdios, foi instrumento comum de juristas, filó­
sofos, literatos, pregadores, de todos a quantos concerne a co­
municação.
É pluralista, assim como também a retórica. Esta, a serviço
das causas e das mais diferentes teses, é algo mais que instru­
mento neutro, indiferente ao que veicula; utilizada em todas as
controvérsias, obriga cada uma das partes a levar em conside­
ração as crenças e os valores do adversário; ensina o sentido, se
não do relativo, pelo menos do plural, e postula que a verdade
resulta do encontro de dois enunciados, o proferido e o ouvido.
Este livro pode ser lido de diversas maneiras. De cabo a
rabo, sem dúvida. Mas também como obra de referência, a co­
meçar pelo índice. Ou então limitando-se a determinado capí­
tulo, tendo-se em mente que de qualquer modo ele depende um
pouco dos capítulos precedentes.
É teórico e prático ao mesmo tempo. Por um lado pretende
expor o que é retórica, extrair sua unidade profunda através
das transjigtJrações de sua história, discutir suas implicações e
distinguir seltlS limites. Por outro lado, visa a aplicar a retórica
à interpl!�tação dos textos mais diversos, oferecendo assim um
instrum� hermenêutico aos estudantes e aos futuros pesqui­
sadores.
Finalmente, tem várias pretensões: ser um manual acadê­
mico e outras coisas mais. Esforça-se, pois, por ser objetivo,
XII INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

por dar informações independentes do seu autor e de suas pre­


ferências. Mas um manual não mereceria o nome de acadêmi­
co, se seu autor não se afirmasse também como pesquisador e
pensador; portanto, como alguém que não se contenta apenas
em expor, mas que se expõe. E o leitor que julgue.
Um livro no plural, portanto.

N.B. -À primeira visld, a retórica desencoraja pelo voca­


bulário. Quantos nomes de argumentos e figuras! Será real­
mente preciso falar em lugares em vez de provas, em hipérbole
em vez de exagero, em ação em vez de dicção? Na verdade,
cada um desses termos tem um sentido um póuco diferente da­
quele que pretende traduzi-lo; é, portanto, insubstituível. As­
sim como a medicina, a psicologia e a filosofia, a retórica tem
necessidade de um vocabulário técnico.
Portanto, cumpre saber que epanortose não é doença de
pele, que hipotipose não é um supositório de bronze da antiga
medicina, e que tapinose não é uma retórica de antas... É ver­
dade que poderiam ser usados termos mais correntes, dizer
correção em vez de epanortose, quadro em vez de hipotipose,
depreciação em vez de tapinose. Mas o sentido não seria mais
o mesmo. Hipotipose é um quadro retórico, que desempenha
papel ao mesmo tempo poético e argumentativo; epanortose é
uma correção retórica, que produz efeito de sinceridade ("ou
melhor ", "para dizer tudo ".. .); a tapinose é uma depreciação
retórica.
Apesar de inegável, a dificuldade léxica pode perfeitamen­
te ser superada. E nosso índice-glossário deve possibilitar isso.
Introdução
Natureza e função da retórica

O que se espera de uma introdução à retórica é que logo de


início se defina o termo. Infelizmente, não é fácil, pois hoje em
dia o termo "retórica" assumiu sentidos bem diversos e até di­
vergentes.
Em primeiro lugar, o sentido corrente não poderia ser mais
pejorativo. Um professor de literatura, depois de brilhante alo­
cução, ouve a seguinte felicitação de um colega: "Admirei sua
retórica", frase que ninguém tomou por cumprimento, nem mes­
mo o interessado. Para o senso comum, retórica é sinônimo de
coisa empolada, artificial, enfática, declamatória, falsa.
Entretanto, no começo dos anos 60 os acadêmicos redes­
cobriram a retórica e devolveram ao vocábulo sua nobreza, ao
mesmo tempo prestigiosa e perigosa, mas nem por isso concor­
dando quanto ao seu sentido. Mencionemos aqui as duas posi­
ções extremas.
Uma delas, de Charles Perelman e L. Olbrechts-Tyteca, vê
a retórica como arte de argumentar, e busca seus exemplos mor­
mente entre os oradores religiosos, jurídicos, políticos e até
filosóficos. A outra, de Morier, G. Genette, J. Cohen e do "Gru­
po MU", considera a retórica como estudo do estilo, e mais
particularmente das figuras. Para os primeiros, a retórica visa
a convencer; para os últimos, constitui aquilo que toma literá­
rio um texto; e é dificil perceber o que as duas posições têm em
comuml""
No entanto, é esse elemento comum que bem poderia ser o
mais importante, ou seja, a articulação dos argumentos e do es­
tilo numa mesma função. Ao dizermos isso, referimo-nos à
XIV INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

retórica clássica, que começa com Aristóteles e se prolonga até


o século XIX. É a ela que recorreremos para definir a retórica.
É verdade que se pode criticar a tradição, mas ela pelo menos
tem a vantagem de nos oferecer elementos estáveis, indepen­
dentes das preferências individuais e dos modismos. Pode-se
criticar a tradição, e não deixaremos de fazê-lo quando for o
caso, mas pelo menos saberemos o que estamos criticando e o
que pretendemos suplantar.

Arte, discurso e persuasão


e
Eis, pois, a definição que propomos: retórica é a arte de
persuadir pelo discurso.
Por discurso entendemos toda produção verbal, escrita ou
oral, constituída por uma frase ou por uma seqüência de frases,
que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido.
De fato, um discursei incoerente, feito por um bêbado ou um
louco, são vários discursos tomados por um só.
Conforme nossa definição, a retórica não é aplicável a to­
dos os discursos, mas somente àqueles que visam a persuadir, o
que de qualquer modo representa um belo leque de possibilida­
des! Enumeremos as principais: pleito advocatício, alocução
política, sermão, folheto, cartaz de publicidade, panfleto, fábu­
la, petição, ensaio, tratado de filosofia, de teologia ou de ciên­
cias humanas. Acrescente-se a isso o drama e o romance, desde
que "de tese", e o poema satírico ou laudatório.
O que sobra então de não retórico? Os discursos (no senti­
do técnico definido acima) que não visam a persuadir: poema
lírico, tragédia, melodrama, comédia, romance, contos popula­
res, piadas. Acrescentemos os discursos de caráter puramente
científico ou técnico: modo de usar, em oposição a anúncio
publicitário; veredicto, em oposição a pleito advocatício; obra
científica, em oposição à vulgarização; ordem, em oposição a
slogan: É proibido fumar não é retórico, ao passo que É proibi­
do fumar, nem que seja "Gal/ia "*, é retórico.

*Cigarro mentolado, geralmente preferido pelas senhoras. (N. do T.)


INTRODUÇÃO XV

É verdade que a retórica antiga dá à palavra discurso um


sentido claramente mais restrito, mas nós mostraremos que se
pode perfeitamente ampliar o objeto da retórica sem a trair.
Questão "de ordem": este livro é retórico?

Portanto, a retórica diz respeito ao discurso persuasivo, ou


ao que um discurso tem de persuasivo. O que é pois persuadir?
É levar alguém a crer em alguma coisa. Alguns distin­
guem rigorosamente "persuadir" de "convencer", consistindo
este último não em fazer crer, mas em fazer compreender. A
nosso ver essa distinção repousa sobre uma filosofia - até
mesmo uma ideologia - excessivamente dualista, visto que
opõe no homem o ser de crença e sentimento ao ser de inteli­
gência e razão, e postula ademais que o segundo pode afirmar­
se sem o primeiro, ou mesmo contra o primeiro. Até segunda
ordem, renunciaremos a essa distinção entre convencer e per­
suadir.
Por outro lado, manteremos uma distinção pertinente, por­
quanto inerente ao próprio termo "persuadir":

1) Pedro persuadiu-me de que sua causa era justa.


2) Pedro persuadiu-me a defender sua causa.

Distinção capital para compreender a retórica, pois em ( 1 )


Pedro conseguiu levar-me a acreditar em alguma coisa, en­
quanto em (2) ele conseguiu levar-me afazer alguma coisa, não
se sabendo se acredito nela ou não. A nosso ver, a persuasão
retórica consiste em levar a crer ( 1), sem redundar necessaria­
mente no levar a fazer (2). Se, ao contrário, ela leva a fazer sem
levar a crer, não é retórica.
Pode-se dizer, por exemplo, que alguém persuadiu alguém
a fazer alguma coisa por ameaça ou promessa, e que nisso resi­
dia toda a eficácia de sua argumentação. Resposta: é verdade
;i,
que se ode falar de eficácia, mas não de argumentação. Esta
visa se'fü)re a levar a crer. Por certo, através de promessa ou
ameaça, pode-se persuadir alguém a cometer um erro, mas
esse alguém estará persuadido de que o erro não é erro?
No entanto, Pascal escreve:
XVI INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Ao advogado pago adiantadamente parecerá bem mais jus­


ta a causa que defende! (Pensées, p. 365)

Na realidade, Pascal nada tem contra os advogados em


particular; é do homem que ele não gosta, do gênero humano
corrompido pela queda, cuja propensão para acreditar "no que
sabe ser falso" mostra até que ponto ele é miserável. Entretan­
to, se nos ativermos apenas aos fatos, poderemos admitir que o
erro não é regra, e que existe um tipo de persuasão que não se
obtém nem pelo dinheiro nem pela ameaça: a que concerne à
retórica.
Esta, dizíamos, é uma arte. Este termo, tradução do grego
�chné, é ambíguo, e até duplamente ambíguo. Em primeiro lu­
gar, porque designa tanto uma habilidade espontânea quanto
uma competência adquirida através do ensino. Depois porque
designa ora uma simples técnica, ora, ao contrário, o que na cria­
ção ultrapassa a técnica e pertence somente ao "gênio" do
criador. Em qual ou em quais desses sentidos se está pensando
quando se diz que a retórica é uma arte? Em todos.
Para começar, existe uma retórica espontânea, uma apti­
dão para persuadir pela palavra que talvez não seja inata - não
entremos nessa discussão agora -, mas que tampouco é devida
a uma formação específica, e também existe uma retórica ensi­
nada com o nome, por exemplo, de "técnicas de expressão e
comunicação", que serve para formar vendedores ou políticos,
para ensinar-lhes aquilo que outros vendedores, outros políti­
cos parecem já saber naturalmente. Quais são os mais eficazes,
quais deles conseguem "se sair melhor"? Sem dúvida os últi­
mos. Mas tanto entre estes quanto entre os primeiros, encontra­
mos os mesmos procedimentos, intelectuais e afetivos, proce­
dimentos que fazem da retórica uma técnica.
Mas será que se trata de simples técnica? Não, é muito
mais. O verdadeiro orador é um artista no sentido de descobrir
argumentos ainda mais eficazes do que se esperava, figuras de
que ninguém teria idéia e que se mostram ajustadas; artista
cujos desempenhos não são programáveis e que só se fazem
sentir posteriormente. Les provinciales de Pascal (outra vez,
INTRODUÇÃO XVII

mas em retórica ele é inevitável!) constituem uma bela ilustra­


ção; exatamente onde seus amigos jansenistas esperavam uma
argumentação técnica, que não deixaria de ser pesada, Pascal
retoma as mesmas idéias na forma de panfleto irônico, eficaz
porque claro e jocoso, e que ainda tem a ver conosco. A arte de
persuadir produziu muitas obras-primas.
Mas não será ela também a arte de enganar, ou pelo menos
de manipular? Voltaremos a esse problema no Capítulo II. En­
quanto isso, para compreender melhor a retórica, interrogue­
mo-nos sobre suas funçõ.es; em outras palavras, sobre os servi­
ços que ela é capaz de prestar aos que a empregam, e talvez
também aos demais.

Função persuasiva: argumentação e oratória

A primeira função da retórica decorre de sua definição:


arte de persuadir. É, aliás, a mais evidente e a mais antiga; e o
problema maior deste livro será saber por que meios um dis­
curso é persuasivo.
Aqui nos limitaremos a uma distinção realmente funda­
mental. Esses meios são de ordem racional alguns, de ordem
afetiva outros. Ou melhor dizendo: uns mais racionais, outros
mais afetivos, pois em retórica razão e sentimentos são insepa­
ráveis.
Os meios de competência da razão são os argumentos. E
veremos que estes são de dois tipos: os que se integram no ra­
ciocínio silogístico (entimemas) e os que se fundamentam no
exemplo. Ora, como já notava Aristóteles, o exemplo é mais
afetivo que o silogismo; o primeiro dirige-se de preferência ao
grande público, enquanto o segundo visa a um auditório espe­
cializado, como um tribunal.
Os meios que dizem respeito à afetividade são, por um
lado, o etos, o caráter que o orador deve assumir para chamar a
aienção e angariar a confiança do auditório, e por outro lado o
patos, as tendências, os desejos, as emoções do auditório das
quais o orador poderá tirar partido. De modo um pouco dife­
rente, Cícero distingue docere, delectare e movere:
XVIII INTRODUÇÀO Á RETÓRICA

Docere (instruir, ensinar) é o lado argumentativo do dis­


curso.
Delectare (agradar) é seu lado agradável, humorístico, etc.
Movere (comover) é aquilo com que ele abala, impressiona
o auditório.

Em resumo, o persuasivo do discurso comporta dois as­


pectos: um a que chamaremos de "argumentativo"; e outro, de
"oratório". Dois aspectos nem sempre fáceis de distinguir.
Os gestos do orador, o tom e as inflexões de sua voz são
puramente oratórios. Todavia, o que dizer das figuras de estilo,
aquelas famosas figuras a que alguns reduzem a retórica? A
metáfora, a hipérbole, a antítese são oratórias por contribuírem
para agradar ou comover, mas são também argumentativas no
sentido de exprimirem um argumento condensando-o, toman­
do-o mais contundente. Assim é a célebre metáfora de Marx:
"A religião é o ópio do povo."
Se for introduzido um último termo, a demonstração, meio
de convencimento puramente racional, sem nada de afetivo e
que escapa portanto ao domínio da retórica, chega-se ao se­
guinte esquema:

retórico

demonstrativo argumentativo oratório

racional

A função hermenêutica

Entretanto, por mais primordial, a função persuasiva não


é única. Se a retórica é a arte de persuadir pelo discurso, é pre­
ciso ter em mente que o discurso não é e nunca foi um aconte­
cimento isolado. Ao contrário, opõe-se a outros discursos que
o precederam ou que lhe sucederão, que podem mesmo estar
implícitos, como o protesto silencioso das massas às quais se
dirige o ditador, mas que contribuem para dar sentido e alcan­
ce retórico ao discurso. A lei fundamental da retórica é que o
INTRODUÇÃO XIX

orador - aquele que fala ou escreve para convencer - nunca


está sozinho, exprime-se sempre em concordância com ou­
tros oradores ou em oposição a eles, sempre em função de
outros discursos.
Ora, para ser persuasivo, o orador deve antes compreender
os que lhe fazem face, captar a força da retórica deles, bem
como seus pontos fracos. Esse trabalho de interpretação é feito
por todos de modo mais ou menos espontâneo. Até a crianci­
nha mostra ser um excelente hermeneuta, por exemplo quando
percebe que a ameaça dos pais é aterradora demais para ser
executada, ou quando interpreta uma frase do adulto no sentido
que lhe convém 1•
Para ser bom orador, não basta saber falar; é preciso saber
também a quem se está falando, compreender o discurso do
outro, seja esse discurso manifesto ou latente, detectar suas cila­
das, sopesar a força de seus argumentos e sobretudo captar o
não-dito. Aí vai um exemplo dessa hermenêutica espontânea.
Durante o debate de televisão que antecedeu as eleições presi­
denciais de 1 98 1 , Giscard d'Estaing disse a Mitterrand: "O se­
nhor conhece a cotação do marco hoje?" Mitterrand, que prova­
velmente não sabia, adivinha que Giscard quer impor-se ao
público como um economista sério, um especialista, um mestre,
e lhe responde taco a taco: "Senhor Giscard, não sou seu aluno."
E não se falará mais de cotação do marco durante todo o debate.
Essa é a função hermenêutica da retórica, significando
"hermenêutica" a arte de interpretar textos. Na universidade
atual, essa função é fundamental, para não dizer única. Não se
ensina mais retórica como arte de produzir discursos, mas como
arte de interpretá-los. Aliás, é o que faremos aqui. Mas aí a
retórica recebe outra dimensão; não é mais uma arte que visa a
produzir, mas uma teoria que visa a compreender.

A .(unção heurística
. �··
.

Arte de persuadir pressupõe que não estamos sozinhos; só


pode ser exercida quando se interpreta o discurso de outrem.
Pois bem, será mesmo preciso persuadir? Pode-se achar que a
XX INTRODUÇÃO À RETÓRICA

persuasão não passa de um modo - o mais insidioso de todos


por certo - de tomar o poder, de dominar o outro pelo discurso.
Podemos achar isso, é certo, desde que nos abstenhamos de
persuadir alguém disso!
Na realidade, quando utilizamos a retórica não o fazemos
só para obter certo poder; é também para saber, para encontrar
alguma coisa. E essa é a terceira função da retórica, que deno­
minaremos "heurística", do verbo grego euro, eureka, que sig­
nifica encontrar. Em resumo, uma função de descoberta.
Claro que ela não é óbvia. Hoje em dia, quando falamos
em descoberta, pensamos em ciência, e a ciência não quer nem
saber de retórica. Quem sabe se por parte dos cientistas isso
não é um denegação, não é a recusa de enxergar sua própria
retórica. Mas pouco importa: o que se pergunta é o que a retóri­
ca pode ter para descobrir...
Convenhamos, porém, que vivemos num mundo que não
condiz inteiramente com o conhecimento científico, um mundo
em que a verdade raramente é evidente, e a previsão segura rara­
mente possível. No campo econômico e político, é preciso tomar
decisões sem saber com toda a certeza se elas são as melhores,
visto que o "com toda a certeza" só vem depois do feito! Nos
debates jurídicos, é preciso sobrepujar, sabendo-se que muitas
vezes não há veredicto objetivo, no sentido em que é objetiva a
medida de um galvanômetro. Na esfera da educação, fazem-se
programas, reformas, sem nunca se ter certeza de que as coisas
serão melhores que antes e de que os alunos envolvidos realmen­
te tirarão proveito delas, quer dizer, vinte anos depois ...
Esse mundo de que estamos falando é o da vida; quase
não comporta certezas científicas, dessas que possibilitam pre­
visões seguras e decisões irrepreensíveis. Mas tampouco está
entregue ao acaso, ao aleatório, ao caos. Não se pode prever
com total certeza, mas é possível prever com mais ou menos
certeza, com alguma probabilidade. Não se pode dizer: "é ver­
dadeiro" ou "é falso'', mas pode-se dizer: "é mais ou menos ve­
rossímil".
Como pois achar o verossímil? Recordemos aqui a lei fun­
damental da retórica: o orador nunca está sozinho. O advogado
INTRODUÇÃO XXI

mais hábil tem diante de si outros advogados que fazem o mes­


mo trabalho em sentido inverso. Do mesmo modo, o político
confronta outros políticos; o pedagogo, outros pedagogos. Cada
um deles - essa é a regra do jogo - defende sua causa sendo tão
persuasivo quanto possível, e contribui assim para uma decisão
que não lhe pertence, que incumbe a um terceiro: o juiz.
Num mundo sem evidência, sem demonstração, sem previ­
são certa, em nosso mundo humano, o papel da retórica, ao de­
fender esta ou aquela causa, é esclarecer aquele que deve dar a
palavra final. Contribui - onde não há decisão previamente es­
crita - para inventar uma solução. E faz isso instaurando um de­
bate contraditório, só possível graças a seus "procedimentos'',
sem os quais logo descambaria para o tumulto e a violência.
A retórica possui realmente uma função de descoberta.

A função pedagógica

Agora, poderemos ser censurados por termos ampliado


abusivamente o campo da retórica. De fato, se nos reportarmos
aos programas escolares da Idade Média e da época clássica,
verificaremos que a retórica só admite a primeira das nossas
três funções, ficando a função hermenêutica reservada à gra­
mática, e a função heurística à dialética.
Mas será legítimo impor à cultura as divisões de um pro­
grama escolar (por certo exigidas pelos imperativos da pedago­
gia), para estancá-la em disciplinas sem inter-relações, em "es­
pecialidades"? É mais ou menos como afirmar que a física não
tem nenhuma relação com a matemática, alegando que elas têm
professores diferentes.
Mostraremos no próximo capítulo que, na própria escola,
gramática, retórica e dialética não passavam de partes de um
rursmo todo que se esclerosaram quando se separaram. A arte
dô<hscurso persuasivo implica a arte de compreender e possi­
bilita a arte de inventar.
Qual é, pois, esse "mesmo todo" de que fazia parte a retó­
rica? Em termos modernos, cultura geral. E aqui tocamos na
XXII INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

última função da retórica, que pode ser chamada de "pedagó­


gica".
No fim do século XIX, a retórica foi abolida do ensino
francês, e o próprio termo foi riscado dos programas. Todavia,
como em geral acontece no ensino, em se apagando a palavra
não se suprimiu a coisa. A retórica permaneceu, só que desarti­
culada, privada de sua unidade interna e de sua coerência. Em
todo caso os professores, quase sempre sem saberem, fazem
retórica2•
Ensinar a compor segundo um plano, a encadear os argu­
mentos de modo coerente e eficaz, a cuidar do estilo, a encon­
trar as construções apropriadas e as figuras exatas, a falar dis­
tintamente e com vivacidade, não serão retórica, no sentido
mais clássico do termo? Demonstraríamos com facilidade que
os critérios segundo os quais um professor de língua, ou mes­
mo de filosofia, avalia uma redação - respeito ao assunto, ao
plano, à argumentação, ao estilo, à personalidade -, que esses
critérios são encontrados, com outros nomes, na retórica clás­
sica (cf infra, pp. 55-56).
Deve-se ver nisso uma sobrevivência lamentável? Pode-se
achar, ao contrário, que esses princípios são formadores, que
deixar de respeitá-los - errar na formulação da questão, escre­
ver de modo incorreto, monótono, extremado, confundir tese
com argumento, expor de maneira desconexa, esconder-se atrás
de clichês - é dar prova de incultura. Em outras palavras, é
apartar-se dos outros e de si mesmo. É verdade que existem
outras culturas além da escolar, mas não existe cultura sem for­
mação retórica. E aprender a arte de bem dizer é" já e também
aprender a ser.
Capítulo 1
Origens da retórica na Grécia

A melhor introdução à retórica é sua história.


Vamos, portanto, empreendê-la, mas com duas observa­
ções preliminares.
A primeira é que a retórica é anterior à sua história, e mes­
mo a qualquer história, pois é inconcebível que os homens não
tenham utilizado a linguagem para persuadir. Pode-se, aliás,
encontrar retórica entre hindus, chineses, egípcios, sem falar
dos hebreus. Apesar disso, em certo sentido, pode-se dizer que
a retórica é uma invenção grega, tanto quanto a geometria, a
tragédia, a filosofia. Em certo sentido e mesmo em dois senti­
dos. Para começar, os gregos inventaram a "técnica retórica",
como ensinamento distinto, independente dos conteúdos, que
possibilitava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois,
inventaram a teoria da retórica, não mais ensinada como uma
habilidade útil, mas como uma reflexão com vistas à compreen­
são, do mesmo modo como foram eles os primeiros a fazer teo­
ria da arte, da literatura, da religião.
Segunda observação: escrever uma história, como por
exemplo da música, da pintura ou da filosofia, é repercorrer
uma evolução, feita de transformações, perdas e criações. Ora,
paradoxalmente, entre os séculos V e IV antes da nossa era, os
gregos elaboraram A retórica, que, em seguida, "durante dois
milênios e meio, de Górgias a Napoleão III'', pode-se dizer que
n� se mexeu mais1• As diversas épocas enriqueceram alguma
p ôr�o do sistema, mas sem mudar o sistema. Ainda hoje,
quando se fala em "retórica", seja a de um filme ou a do in­
consciente, a referência é sempre feita à retórica dos gregos. A
história da retórica termina quando começa.
2 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Nascimento da retórica

Tomemos duas datas como referência: 480 a.C., batalha


de Salamina, na qual os gregos coligados triunfaram definiti­
vamente sobre a invasão persa, quando começou o grande pe­
ríodo da Grécia clássica; 399, ainda antes da nossa era: morte
de Sócrates.

Origem judiciária

A retórica não nasceu em Atenas, mas na Sicília grega por


volta de 465, após a expulsão dos tiranos. E sua origem não é
literária, mas judiciária. Os cidadãos despojados pelos tiranos
reclamaram seus bens, e à guerra civil seguiram-se inúmeros
conflitos judiciários2• Numa época em que não existiam advo­
gados, era preciso dar aos litigantes um meio de defender sua
causa. Certo Córax, discípulo do filósofo Empédocles, e o seu
próprio discípulo, Tísias, publicaram então uma "arte oratória"
(tekhné rhetoriké), coletânea de preceitos práticos que conti­
nha exemplos para uso das pessoas que recorressem à justiça.
Ademais, Córax dá a primeira definição da retórica: ela é "cria­
dora de persuasão"3•
Como Atenas mantinha estreitos laços com a Sicília, e até
processos, imediatamente adotou a retórica.
Retórica judiciária, portanto, sem alcance literário ou filo­
sófico, mas que ia ao encontro de uma enorme necessidade.
Como não existiam advogados, os litigantes recorriam a logó­
grafos, espécie de escrivães públicos, que redigiam as queixas
que eles só tinham de ler diante do tribunal. Os retores, com
seu senso agudo de publicidade, ofereceram aos litigantes e aos
logógrafos um instrumento de persuasão que afirmavam ser
invencível, capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coi­
sa. Sua retórica não argumenta a partir do verdadeiro, mas a
partir do verossímil (eikos).
Observemos que isso é inevitável. Tanto entre nós quanto
entre os gregos. De fato, se no âmbito judiciário se conhecesse
ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 3

a verdade, não haveria mais âmbito judiciário, e os tribunais se


reduziriam a câmaras de registro. Mas o problema, tanto para
nós quanto para os gregos, é que as más causas precisam dos
melhores advogados, pois, quanto pior a causa, maior o recurso
à retórica. É constrangedor. Ora, em vez de se constrangerem,
os primeiros retores se gabavam de ganhar as causas menos
defensáveis, de "transformar o argumento mais fraco no mais
forte", slogan que domina toda essa época.

Córax

Córax é considerado o inventor do argumento que leva seu


nome, o córax, e que deve ajudar os defensores das piores cau­
sas. Consiste em dizer que uma coisa é inverossímil por ser
verossímil demais. Por exemplo, se o réu for fraco, dirá que
não é verossímil ser ele o agressor. Mas, se for forte, se todas
as evidências lhe forem contrárias, sustentará que, justamente,
seria tão verossímil julgarem-no culpado que não é verossímil
que ele o seja.
Antifonte (480-411 ), o melhor representante da retórica
judiciária de Atenas, cita o seguinte exemplo de córax:

Se o ódio que eu nutria pela vítima tomar verossímeis as


suspeitas atuais, não será ainda [mais] verossímil que, prevendo
essas suspeitas antes do crime, eu me tenha abstido de cometê­
lo? (in Perelman-Tyteka, p. 608, cf. Aristóteles, Retórica, II, 24,
1402 a)

E o pleiteante a seguir insinua que os verdadeiros criminosos


aproveitaram-se da verossimilhança para cometer impunemen­
te aquele ato.
O mais maçante é que o córax pode ser voltado contra seu
autor, afirmando que ele cometeu o crime por achar que pare­
cetfà. suspeito demais para que dele suspeitassem, e que chegou
a acumular propositadamente acusações contra si mesmo, para
depois as refutar com facilidade.
-Argumento simples: todas as evidências estão contra ele.
4 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

- Córax 1 : exatamente, ele sabia que seria o primeiro sus­


peito, logo não seria verossímil que cometesse o crime.
-Córax 2: mas justamente por isso ele poderia cometê-lo,
sabendo que não suspeitariam dele.
De qualquer modo, os primeiros retores inventaram a dis­
posição do discurso judiciário, que Antifonte divide em cinco
partes; também elaboraram os lugares (topai), argumentos que
bastava decorar e chamar à baila em determinado momento da
disputa jurídica. Assim, no exórdio, o orador começa dizendo
que não é orador, elogia o talento do adversário, etc.

Origem literária: Górgias

Com Górgias surge uma nova fonte da retórica: estética e


propriamente literária. Nascido por volta de 485, Górgias viveu
cento e nove anos, sobrevivendo, pois, a Sócrates. Também si­
ciliano e discípulo de Empédocles, em 427 foi para Atenas
numa embaixada. Diz-se que ali sua eloqüência encantou os
atenienses a tal ponto que ele teve de prometer-lhes que volta­
ria. Essa história é significativa.
Isso porque, até então, os gregos identificavam "literatu­
ra" com poesia (épica, trágica, etc.). A prosa, puramente ftm­
cional, restringia-se a transcrever a linguagem oral comum.
Górgias, um dos ftmdadores do discurso epidíctico, ou seja,
elogio público, cria para esse fim uma prosa eloqüente, multi­
plicando as figuras, que a tornam "uma composição tão erudi­
ta, tão ritmada e, por assim dizer, tão bela quanto a poesia"
(Navarre, p. 86). Suas figuras são, por um lado, de palavras:
assonâncias, rimas, paronomásias, ritmo da frase; por outro,
figuras de sentido e pensamento: perífrases, metáforas, antíte­
ses. Exemplo de metáfora: "Túmulos vivos", para os abutres.
Exemplo de antítese, o final do Elogio fúnebre aos heróis ate­
nienses, cuja tradução é um pálido reflexo:

Assim, apesar de terem desaparecido, o ardor deles com


eles não morreu, porém, imortal, vive em corpos não imortais,
ainda que eles não vivam mais. (Les présocratiques, p. 1030)
ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 5

Conservou-se um magnífico exemplo dessa eloqüência


epidíctica em Elogio de Helena. Sabemos que para os gregos
Helena era o protótipo da mulher fatal. Esposa de Menelau,
deixou-se raptar por Páris, o troiano, e os gregos, para resgatá­
la, lançaram-se numa guerra que durou dez anos. Em seu dis­
curso Górgias começa louvando o nascimento de Helena, de­
pois sua beleza:

Em mais de um homem, ela despertou mais de um desejo


amoroso; só por ela, por seu corpo, conseguiu reunir incontáveis
corpos, uma multidão de guerreiros.. . (Les présocratiques,
p. 1031)

Mas então como perdoar-lhe o ter-se deixado raptar? O


orador, através de uma enumeração completa, inventaria todas
as possíveis causas desse rapto: ou ele se deveu ao decreto dos
deuses e do destino; ou ela foi arrebatada à força; ou foi per­
suadida por discursos; ou foi vencida pelo desejo. Ora, em
nenhum dos casos Helena estava livre; em todos, foi subjugada
por uma força superior à sua; portanto, não é culpada. Górgias
se detém no terceiro caso, a força do discurso, e sua defesa de
Helena na verdade é uma defesa da retórica:

O discurso é um tirano poderosíssimo; esse elemento ma­


terial de pequenez extrema e totalmente invisível alçam à pleni­
tude as obras divinas: porque a palavra pode pôr fim ao medo,
dissipar a tristeza, estimular a alegria, aumentar a piedade. (Jbid.,
p. 1033)

Observemos que sua retórica é bastante sofistica, visto que


se baseia em uma petição de princípio. De fato, as únicas cau­
sas possíveis por ele atribuídas ao ato de Helena são precisa­
mente as que a inocentam; não considera uma última possibili­
dade, a de que Helena tenha partido por livre e espontânea von­
ta�.. Todavia, esse seu princípio, de que o ato involuntário
não é culpável, é bem novo para a época.
Aliás, é no sentido mais técnico que Górgias merece a de­
nominação de sofista. Como todos os outros -Pitágoras, Pró-
6 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

dico, Trasímaco, Hípias, Crítias, etc. -, ele foi professor; dava


de cidade em cidade lições de eloqüência e de filosofia, co­
brando a cada uma delas o fabuloso salário de cem minas. Di­
gamos que por um dia de trabalho ele recebia o salário diário
de dez mil operários! O mesmo acontecerá com Protágoras. Na
realidade, esse ensino preenchia uma necessidade, pois até en­
tão os gregos só recebiam uma formação elementar, sem nada
de parecido com um ensino superior ou mesmo secundário. É
aos retores que se deve essa inovação: ensino intelectual apro­
fundado, sem finalidade religiosa ou profissional, sem outro
objetivo senão a cultura geral.
É verdade que logo Górgias foi criticado pela ênfase de
sua prosa, que carecia demais de simplicidade; o verbo gorgia­
z-o ficou como sinônimo de grandiloqüência. Mas sua idéia de
prosa "tão bela quanto a poesia" impôs-se a todos os escritores
gregos, a começar por Demóstenes, Tucídides, Platão... Gór­
gias pôs a retórica a serviço do belo.

A retórica e os sofistas

A serviço do belo quererá dizer a serviço da verdade? Essa


questão implica toda a relação entre a retórica e a sofistica.
Observemos que o ensinamento de Górgias comportava
uma vertente filosófica. Foi conservado o resumo de um de
seus discursos, intitulado Do não-ser, ou da natureza4, com
este promissor início:

Primeiramente, nada existe: em segundo lugar, mesmo que


exista alguma coisa, o homem não a pode apreender; em terceiro
lugar, mesmo que ela possa ser apreendida, não pode ser formu­
lada nem explicada aos outros. (Les présocratiques, p. 1 022)

Haverá algum elo entre esse agnosticismo e a retórica?


Em Elogio de Helena, ele diz:

Quando as pessoas não têm memória do passado, visão do


presente nem adivinhação do futuro, o discurso enganoso tem
todas as facilidades. (Ibid., p. 1033)
ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 7

Ora, se admitirmos como ele que o ser não existe, ou que não
é cognoscível nem comunicável, não estaremos reconhecen­
do ipso facto a onipotência da palavra, palavra que não está
mais submetida a nenhum critério externo e da qual nem mes­
mo se pode dizer que é falsa? Nessas alturas estamos em ple­
na sofistica.

Protágoras: o homem medida de todas as coisas

O elo entre a sofistica e a retórica só aparece plenamente


em Protágoras5• Originário da Abdera, na Trácia, Protágoras
(c. 486-410) também era um mestre itinerante, que ensinava ao
mesmo tempo eloqüência e filosofia e também ganhava quan­
tias fabulosas. No entanto, foi mais engajado que Górgias. Che­
gando a Atenas, fez a seguinte profissão de fé agnóstica:

Quanto aos deuses, não estou em condições de saber se


existem ou se não existem, nem mesmo o que são. (Jbid., p. l 000)

O que logo lhe valeu uma condenação à morte, da qual, menos


heróico que Sócrates, livrou-se fugindo.
Com isso, foi um autor enciclopédico. Foi decerto o pri­
meiro a interessar-se pelo gênero dos substantivos, pelos tem­
pos dos verbos, bem como pela psicologia das personagens de
Homero; em suma, pelo que depois será chamado de "gramáti­
ca". Passa também por fundador da erística, que depois virá a
ser dialética. Partindo do princípio de que a todo argumento
pode-se opor outro, que qualquer assunto pode ser sustentado
ou refutado, ele ensina a técnica erística, arte de vencer uma
discussão contraditória ("erística" vem de éris, controvérsia).
Essa arte, extremamente elaborada, não hesita em recorrer aos
piores sofismas. Do tipo:
}, ...
O rato (mys) é um animal nobre pois é dele que provêm os
•·"...

mistérios ... (Aristóteles, Retórica, 1401 a)


Pode-se ser branco e não branco ao mesmo tempo, porquanto
o etíope é negro (na pele) e branco nos dentes. (in Navarre, p. 65)
8 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

É pouco compreensível como oradores célebres, gregos


além de tudo, a começar por Protágoras, puderam impor-se com
tais estupidezes. De fato, se grandes pensadores, como Aristó­
teles e Platão, envidaram tantos esforços para refutar os sofis­
tas, é sinal de que estes não eram negligenciáveis nem estúpi­
dos, e que, acima de suas artimanhas publicitárias, eles ensina­
vam algo importante. Mas o quê?
É dificil saber, pois só os conhecemos através de seus ini­
migos. Recordemos as teses de Protágoras: o homem é a medi­
da de todas as coisas; em outras palavras, as coisas são como
aparecem a cada homem; não há outro critério de verdade. O
que produz o mais completo relativismo, porque, se uma coisa
parece bela a um, feia a outro, fria a um, quente a outro, grande
a um, pequena a outro, será as duas coisas ao mesmo tempo.
Não há mais nenhuma objetividade, nem mesmo lógica, pois o
princípio de contradição não vale mais. A cada um a sua verda­
de, e todas são verdades. A cada um: mas, em Protágoras, o "ca­
da um" é tanto a cidade quanto o indivíduo; é a cidade que, em
nome de seu próprio interesse, decide sobre os valores e as ver­
dades. Isso equivale a dizer que nossa língua, nossas ciências,
nossos valores estéticos e morais não passam de convenções
que mudam de uma cidade para outra, que variam segundo a
história e a geografia: "Bela justiça a que é delimitada por um
rio ... ", dirá Pascal, admitindo que assim é, e lamentando.
Relativismo pragmático, tal parece ter sido a doutrina de
Protágoras. Não existe verdade em si, mas uma verdade de cada
indivíduo, de cada cidade; e o importante é aquilo que lhe per­
mite fazer-se valer e impor-se, que é precisamente a retórica.
Observemos que semelhante doutrina pode legitimar tanto a
violência quanto a tolerância. Por isso ela nos parece ao mes­
mo tempo fascinante e ambígua; e é esse o sentimento que se
tem diante do Protágoras de Platão.
Platão parece ter detestado o grande sofista, que ele afir­
ma ser pervertedor de jovens, e a quem objeta que não é o ho­
mem a medida de todas as coisas, mas sim Deus. E, no entanto,
Platão escreveu dois pastichos, dois trechos brilhantes que ele
atribui a Protágoras. O primeiro é o mito da origem do homem,
ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 9

em Protágoras (320 c s.), meditação antropológica espantosa­


mente profunda e moderna. O segundo é a autodefesa de Protá­
goras em Teeteto (166 a). Esses dois textos nos apresentam um
Protágoras cativante e respeitável, um mestre de humanismo e
tolerância. Acreditar em quê, em quem?

Fundamento sofistico da retórica

De qualquer forma, pode-se dizer que os sofistas criaram


a retórica como arte do discurso persuasivo, objeto de um ensi­
no sistemático e global que se fundava numa visão de mundo.
Ensino global: é aos sofistas que a retórica deve os primei­
ros esboços de gramática, bem como a disposição do discurso
e um ideal de prosa ornada e erudita. Deve-se a eles a idéia de
que a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores, acor­
do final que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o
qual a discussão não seria possível. A eles se deve a insistência
no kairós, momento oportuno, ocasião que se deve agarrar na
fuga incessante das coisas, ao que se dá o nome de espírito da
oportunidade ou de réplica vivaz, e que é a alma de qualquer
retórica viva. Sim, todos os elementos de uma retórica riquíssi­
ma, que serão encontrados depois, especialmente em Aristó­
teles.
No entanto, o fundamento que dão à retórica parece-nos
bem perigoso. É de perguntar se eles não a comprometeram
para sempre, ao justificá-la como o fizeram pela incerteza e pe­
lo sucesso. Mas, afinal, por que esse laço, aparentemente inque­
brantável, entre o sofista e o retor?
Certamente porque o mundo do sofista é um mundo sem
verdade, um mundo sem realidade objetiva capaz de criar o
consenso de todos os espíritos, para dizerem que dois e dois
são quatro e que Tóquio existe ... Privado de uma realidade ob­
jetiva�,'\,./ogos , o discurso humano fica sem referente e não tem
outro critério senão o próprio sucesso: sua aptidão para con­
vencer pela aparência de lógica e pelo encanto do estilo. A úni­
ca ciência possível é, portanto, a do discurso, a retórica.
10 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Concretamente, o que muda? Muda que o discurso não


pode mais pretender ser verdadeiro, nem mesmo verossímil, só
poderá ser eficaz; em outras palavras, próprio para convencer,
que no caso equivale a vencer, a deixar o interlocutor sem ré­
plica. A finalidade dessa retórica não é encontrar o verdadeiro,
mas dominar através da palavra; ela já não está devotada ao sa­
ber, mas sim ao poder.
Os sofistas foram com certeza os primeiros pedagogos, e
o objetivo de sua educação não deixa de ser nobre: capacitar os
homens "a governar bem suas casas e suas cidades"6• Entre­
tanto, eles excluem todo saber, e levam em conta apenas o sa­
ber fazer a serviço do poder.
Com a sofistica, a retórica é rainha, mas rainha despótica
. porquanto ilegítima. Agora, o elo entre retórica e sofistica é fa­
tal: será possível salvar a primeira da segunda?

Isócrates ou Platão?

Vimos que a retórica veio atender a diversas necessidades


dos gregos: necessidade de técnica judiciária, de prosa literá­
ria, de filosofia, de ensino. Ora, Isócrates vai conseguir satisfa­
zer sozinho essas quatro exigências, ao propor uma retórica
mais plausível e mais moral que a dos sofistas.
Aliás, a partir do final do século V, esse termo passou a ser
pejorativo, e devemos agradecer Isócrates por ter libertado a re­
tórica do domínio sofistico. O problema está em saber se de fato
foi uma libertação real, e se afinal Isócrates não deixou as coi­
sas como estavam. É exatamente isso que Platão critica nele.

Jsócrates, o humanista

Ateniense da gema, Isócrates viveu noventa e nove anos


(436-338). Sua voz fraca e sua invencível timidez impediram­
no de ser orador. Por isso, virou professor de arte oratória. Aos
oitenta anos, foi-lhe movida uma espécie de processo fiscal
ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 11

bastante grave; ele escreveu sua própria defesa, confiou-a a um


discípulo e ... perdeu a causa. Nem por isso deixou de publicar
sua defesa, A troca, como modelo a ser seguido. Foi, aliás, co­
mo modelos que publicou inúmeros discursos, alguns jurídi­
cos, outros epidícticos.
Em suma, um grande professor de retórica, admirado pe­
los contemporâneos e sempre admirável. Ao contrário de seus
predecessores, recusa-se a fazer malabarismos prop_agandísti­
cos e rejeita a aprendizagem automática de lugares e outros
procedimentos. Ensina sempre recorrendo à reflexão do aluno
e fazendo seus grandes discípulos cooperarem na gênese de
seus próprios discursos, que lêem, discutem e corrigem com o
mestre1• Aliás, opondo-se aos sofistas, que se vangloriavam de
capacitar qualquer um a persuadir qualquer um, ele mostra que
o ensino não é todo-poderoso8• A seu ver, para ser orador, são
necessárias três condições. Para começar, aptidões naturais.
Depois, prática constante. Finalmente, ensino sistemático. Prá­
tica e ensino podem melhorar o orador, mas não criá-lo.
Apesar de, como Górgias, querer uma prosa literária, des­
preza a grandiloqüência e cria uma prosa que se distingue com­
pletamente da poesia: sóbria, clara, precisa, isenta de termos
raros, de neologismos, de metáforas brilhantes, de ritmos mar­
cados, mas sutilmente bela e profundamente harmoniosa. Sem
ser poética, tem um ritmo que se deve ao equilíbrio do período
e à cláusula que a fecha; é eufônica, evitando as repetições des­
graciosas de sílabas e os hiatos.
Principalmente, moraliza a retórica ao afirmar alto e bom
som9 que ela só é aceitável se estiver a serviço de uma causa
honesta e nobre, e que não pode ser censurada, tanto quanto
qualquer outra técnica, pelo mau uso que dela fazem alguns.
Aliás, para Isócrates, ensino literário e formação moral estão
ligados, para dizer o mínimo. De fato, ele ensina que a retórica
deve ter um objetivo para depois procurar todos os meios de
atin�lo sem nada deixar ao acaso. Mas, ensinando-se assim a
organizar um discurso, não se estaria também ensinando a
governar a própria vida? O ensino literário é uma escola de
estilo, de pensamento e de vida. Idéia bem grega, de que a har-
12 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

monia é o valor por excelência, que rege a existência tanto quan­


to rege o discurso. Estamos aqui na origem do humanismo,
para o qual Isócrates contribui, aliás, com um fundamento an­
tropológico.
A palavra, diz ele, é "a única vantagem que a natureza nos
deu sobre os animais, tornando-nos assim superiores em todo o
resto"10• Em outras palavras, todas as nossas técnicas, toda a
nossa ciência, tudo o que somos devemos à fala. Donde ele in­
fere uma conclusão política: os gregos, povo da palavra, for­
mam na verdade uma única nação, não pela raça, mas pela lín­
gua e pela cultura. Devem, portanto, renunciar às guerras fra­
tricidas e unir-se.
Isócrates, que se proclama anti-sofista, também não rei­
vindica o nome de retor. Ele se diz "filósofo". Mas, convencido
, de que o homem não pode conhecer as coisas assim como são,
colocando a dialética de Platão no mesmo nível de inutilidade
da erística dos sofistas, integra a filosofia na arte do discurso''.
Ela é para a alma o que a ginástica é para o corpo, formação
intelectual e moral, boa para os jovens, mas inútil para perse­
guir por toda a vida (a mesma crítica que será feita a Sócrates12
por Cálicles). Em suma, para Isócrates, "filosofia" é cultura
geral, centrada na arte oratória; numa palavra: retórica.
Nesse caso, qual é seu mérito em relação aos sofistas? Uma
contribuição tipicamente grega, o sentido da beleza. Ele escreve
em seu Elogio de Helena que a beleza é "o mais venerado, o
mais precioso, o mais divino dos bens" (54). É a beleza que
constitui a harmonia do discurso e da vida, e a educação é ética
pelo simples fato de ser estética. Se a linguagem é peculiar ao
homem, a bela linguagem é valor por excelência: e a retórica,
confundida com a filosofia, é a rainha das ciência. Mas será
possível separar o discurso do ser, a beleza da verdade?

Uma pausa

Se Isócrates enaltece a retórica, que para ele é toda a filo­


sofia, Platão, em nome da filosofia, aplica-se a uma crítica de
ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 13

fundo contra a retórica, especialmente no livro que lhe dedica,


Górgias, um dos textos mais fortes de toda a literatura.
Mas comecemos com uma pausa, dando pela última vez a
palavra ao sofista retor. Pois nesse diálogo Platão lhe dá a pala­
vra. Põe em cena seu mestre Sócrates a discutir retórica com
Górgias e mais dois de seus discípulos. Aliás, parece que o Gór­
gias histórico é menos visado em Górgias do que Isócrates.
No começo, Sócrates, fingindo ignorar o que é retórica,
pede a Górgias que a defina. Ela é - responde o outro - "o po­
der de persuadir pelo discurso" assembléias de qualquer tipo
(452 e): ela é, portanto, "criadora de persuasão" (peithous de­
miurgos). Sócrates então faz uma pergunta capital para o que
se segue: será que a retórica tem ciência daquilo de que persua­
de? E Górgias responde que ela não precisa disso (tanto quanto
quem faz propaganda de um remédio não precisa ser médico).
Mas então para que precisamos dela: nos debates públicos não
se buscará o conselho de especialistas, e não retores? A respos­
ta de Górgias merece ser citada por inteiro.

Texto 1 - Platão, Górgias, 455 d a 456 e, trad. M. Croiset

GÓRGIAS- Vou tentar, Sócrates, revelar-te claramente o


poder da retórica em toda a sua amplitude (...). Não ignoras por
certo que a origem desses arsenais, desses muros de Atenas e de
toda a organização de vossos portos se deve por um lado aos
conselhos de Temístocles e por outro aos de Péricles, mas em
nada aos dos homens do oficio.
SÓCRATES - É isso realmente o que se relata a respeito de
Temístocles, e, quanto a Péricles, eu mesmo o ouvi propor a
construção do muro interno.
GóRGIAS E, quando se trata de uma dessas eleições de que
-

falavas há pouco, podes verificar que também são os oradores que


em s.emelhante matéria dão seu parecer e que a fazem triunfar.
_,_ ,.SÓCRATES - Posso verificar isso com espanto, Górgias, e
....

por isso me pergunto há muito tempo que poder é esse da retóri­


ca. Ao ver o que se passa, ela se me aparece com uma coisa de
grandeza quase divina.
14 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

GÓRGIAS Se soubesses tudo, Sócrates, verias que ela


-

engloba em si, por assim dizer, e mantém sob seu domínio todos
os poderes. Vou dar-te uma prova impressionante disso:
Aconteceu-me várias vezes acompanhar meu irmão ou
outros médicos à casa de algum doente que recusava uma droga
ou que não queria ser operado a ferro e fogo, e sempre que as
exortações do médico resultavam vãs eu conseguia persuadir o
doente apenas com a arte da retórica. Que um orador e um médi­
co andem juntos pela cidade que quiseres: se começar uma dis­
cussão numa assembléia popular ou numa reunião qualquer para
decidir qual dos dois deverá ser eleito médico, afirmo que o
médico será anulado e que o orador será escolhido, se isso lhe
agradar.
O mesmo aconteceria com qualquer outro artesão: o orador
se faria escolher diante de qualquer outro concorrente, pois não
há assunto sobre o qual um homem que conhece retórica não
consiga falar diante da multidão de maneira mais persuasiva que
um homem do oficio, seja ele qual for. Aí está o que é retórica, e
do que ela é capaz.

Para começar, cabe admirar a ironia de Sócrates (§ 4), que


finge não compreender e espantar-se. Observemos também
que, sem explicitar, Górgias ilustra a teoria de Isócrates, para
quem a palavra é apanágio do homem e origem de todos os seus
"poderes"; donde se pode concluir que o domínio da palavra
será também o domínio de todas as técnicas.
Górgias, porém, não utiliza o raciocínio. Argumenta atra­
vés do exemplo. Na verdade, para provar sua tese, a onipotên­
cia da retórica, ele parte de dois fatos bem conhecidos, de que
seu próprio interlocutor foi testemunha (§ 2). Esses exemplos
são muito fortes, pois bastam para pôr em xeque a pretensão
dos especialistas e refutá-la. Ainda hoje não são os especialis­
tas que promovem vendas, mas publicitários. Ainda hoje como
na Grécia, as decisões políticas não são tomadas por especia­
listas. Por quê? Porque estão em falta? Ao contrário, talvez por
existirem em excesso, por ser necessário selecionar os melho­
res, que raramente sabem se impor. É preciso, portanto, um
"retor", um não-especialista que em contrapartida disponha de
ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 15

uma visão global e da arte da palavra, ou seja, que saiba ouvir e


fazer-se ouvir.
E seria fácil continuar os exemplos de Górgias: são os pre­
sidentes das empresas que decidem, não os engenheiros; os
grandes ministros raramente são especialistas em seu setor: um
Ministro da Saúde não precisa ser médico, um Ministro da Edu­
cação não precisa ser professor, e os melhores comandantes
das guerras não são militares: pensemos em Clemenceau ou
em Churchill. Quem realmente decide não são os especialistas,
mas aqueles que, graças à cultura e à arte da eloqüência, são
capazes de fazer-se ouvir e arbitrar.
Aliás, é por isso que Protágoras, em outro diálogo, afirma
que educa os jovens não para torná-los técnicos em alguma
coisa, mas para sua educação all 'epi paideia, ou seja, para sua
cultura geral13•
Na seqüência de seu discurso, Górgias amplia o argumen­
to, mas por isso mesmo o enfraquece, pois exige demais dele.
Depois de mostrar o poder da retórica, quer transformá-lo em
onipotência. Para isso acrescenta outro exemplo, menos verifi­
cável, mas também plausível, o do orador que convence o en­
fermo. Continuamos no verossímil: para levar um paciente a
admitir que tem de sofrer para curar-se, é preciso coisa diferen­
te da ciência médica: psicologia.
Mas no fim a argumentação incha a ponto de explodir,
com o exemplo -puramente fictício - do concurso. A assem­
bléia preferirá o orador ao médico, caso o orador queira fazer­
se eleger médico! No fundo é o ponto de vista da publicidade,
que afirma, a torto e a direito, que consegue vender e "vender­
se". No entanto o eu afirmo (phémi) de Górgias não é realmen­
te autorizado pelo que precede; de fato os exemplos, por mais
numerosos e eloqüentes que sejam, não provam tudo; não que
não provem nada, mas não provam nada de universal. Desse
modo, os exemplos de Górgias provam que nem tudo podem os
especitmstas, e não que nada podem; provam que a retórica é
capaz de alguma coisa, e até muito, mas não que é onipotente.
Na verdade, seria fácil contra-argumentar mostrando que, sem
médicos ou outros especialistas, o retor não iria muito longe; a
16 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

cidade que o tivesse elegido médico não seria enganada por mui­
to tempo!
Em suma, partindo de um argumento muito forte, Górgias
o enfraquece, depois o destrói, exigindo dele o que ele não po­
de provar.

Retórica e cozinha

A seqüência do diálogo é uma refutação progressiva e to­


tal da retórica.
Para começar, é o próprio Górgias que, como Isócrates, li­
mita o pàder dela, subordinando-a à moral:

Deve-se usar a retórica com justiça, assim como todas as


armas. (Górgias, 457 b; cf. Isócrates, A troca, 25 1 a 253)

Górgias (ou Isócrates?), retor honesto, subordina a retóri­


ca a uma moral que lhe é completamente exterior; mas não es­
taria ele dessa forma mascarando as fraquezas e os perigos da
retórica? Pois, afinal, mesmo a serviço de uma boa causa, a ar­
ma continua sendo uma arma, e não é infalível que o seu poder
seja sempre totalmente controlável.
Sócrates começa fazendo Górgias confessar que a retórica
assim definida não necessita conhecer aquilo de que está falan­
do, como por exemplo a medicina. Donde a seguinte conclusão
desdenhosa:

Logo, quem leva a melhor sobre o sábio é um ignorante


que está falando a ignorantes. ( 459 b; "sábio" no sentido de com­
petente)

O debate torna-se mais agressivo com o discípulo de Gór­


gias, Polos, jovem que recorre menos a sutilezas e escrúpulos
que seu mestre. Como ele se embevece com a onipotência da
retórica, Sócrates demonstra que esse poder teria a mesma na­
tureza do poder do tirano, o que Polos admite, achando por cer­
to que lhe dirão que a retórica é perigosa, imoral, etc. Ora, Só-
ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 17

crates fa z outra pergunta completamente diferente: o s tiranos


fazem o que querem? Naturalmente fazem o que lhes agrada,
mas será realmente o que querem? Fazer o que se quer implica
saber do que se trata, conhecer o objeto da vontade e seu valor
real. Ora, o retor e o tirano não conhecem nada disso. Pois seu
único critério é o prazer, e o prazer nunca indica o verdadeiro
bem; só dá uma satisfação aparente e fugaz. Assim como a
culinária cujo objetivo único seja lisonjear nossa gula não nos
dá saúde, pelo contrário, também a retórica apenas lisonjeia,
sem preocupação com o verdadeiro bem. Aquilo que a culiná­
ria é para a medicina, ciência da saúde, a retórica é para a justi­
ça, ou seja, sua falsa cara, sua imitação.
Poder da retórica? Um poder sem freios como o do tirano,
e sem controle. Mas é poder de verdade? Polos afirma que o
tirano é o homem onipotente, pois pode fazer "tudo o que lhe
agrada": despojar, exilar, matar, etc., sem as peias de lei algu­
ma. Ora, Sócrates abstém-se de críticas morais, do tipo "não
está certo". Mostra simplesmente que "não é forte", que esse
poder que o retor e o tirano se atribuem não passa de impotên­
cia, porque não fundado em verdade, porque não pode justifi­
car o que está propondo ou se propondo. O tirano considera-se
um monstro, mas um monstro feliz; na verdade, é apenas fraco
e infeliz, mais digno de lástima que suas vítimas.

POLOS - O homem miserável e digno de piedade sem a


menor dúvida é aquele que foi morto injustamente.
SÓCRATES - Menos do que aquele que mata, Polos ... (469 b)

E a retórica, com todo o seu prestígio, sofre da mesma impo­


tência; não passa de técnica cega e rotineira que, longe de pro­
porcionar aos homens aquilo de que eles de fato precisam para
serem felizes, apenas lhes lisonjeia a vaidade e agrada-os sem
ajudá-los, prejudicando-os mesmo (463 a 465). A onipotência
da retcyrica não passa de impotência:
' "�

Os oradores e os tiranos são os mais fracos dos homens.


(466 d)
18 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Platão rejeita a confiança que os sofistas como Isócrates


atribuem à linguagem. Só lhe reconhece valor se a serviço do
pensamento, único a atingir as "idéias", a verdade inteligível:

A autêntica arte do discurso, desvinculada do verdadeiro,


não existe e não poderá jamais existir. (Fedro, 260 e)

É por isso que a retórica não é nem mesmo o que pretende ser,
uma tekhné, uma arte.
Em resumo, Platão volta contra o retor o seu próprio argu­
mento. Seu pretenso "poder" nada é. Por quê? Porque ele des­
conhece o verdadeiro, porque lhe falta a ciência, especialmente
a da justiça, única que concede o poder real e a felicidade.
Assim c{!lllo é a medicina que proporciona o verdadeiro bem­
estar, não a confeitaria.

De que "ciência " se trata?

Só que o argumento de Platão sustenta-se apenas por seu


pressuposto: de que, no domínio da justiça e da felicidade, exis­
te uma "ciência", um conhecimento tão seguro quanto a medici­
na, que, assim como esta desqualifica a culinária, autorizaria a
desqualificar a retórica. E Platão está bem convencido disso.
Para ele, essa ciência, a dialética, proporciona um conhecimen­
to das coisas éticas e políticas tão seguro quanto as ciências da
natureza, e até mais seguro (cf. República, livros VII e VIII).
Mas essa ciência existe? Quando Sócrates lança a Polos a céle­
bre fórmula: "Mais vale sofrer a injustiça do que a cometer",
querendo dizer com isso que a vítima não só é menos desonesta
como também menos infeliz, porquanto o mal não está nela,
tem razão. Mas será que podemos saber uma única vez e uma
vez por todas o que é o justo e o que é o injusto?
Hoje em dia, certamente em sentido diferente, alguns au­
tores afirmam também que existe uma ciência da política, da
ética, da educação, o que lhes permite condenar, como Platão,
tudo o que é retórico, a que dão o nome de "literário" ou mes­
mo "filosófico". Mas afinal, se tal ciência existisse, todos sa-
ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA 19

beriam disso! Há um bom tempo estaríamos livres d e ações


errôneas e erráticas, e poderíamos prever o futuro com segu­
rança e tomar decisões irrefutáveis. Ora, nesse ponto, Isócrates
continua tendo razão: não é por aí. A "ciência" que Platão opõe
à retórica ainda está para ser feita e, sem dúvida, estará sempre.
Notemos que, em Fedro, ele parece reabilitar a retórica.
Mas trata-se de uma retórica a serviço da dialética, método da
verdadeira filosofia, que "capacita a falar e a pensar" (266 b).
Uma retórica do verdadeiro, que não procura o beneplácito das
multidões, mas dos deuses (273 e). Mas essa retórica, que não
passa de expressão da filosofia, perde toda a autonomia, e mes­
mo toda a existência própria.
Concluindo, como diz muito bem Barbarin Cassin14, Pla­
tão apresenta-nos duas retóricas, quer dizer, duas a mais. A pri­
meira, a dos sofistas e de Isócrates, não é arte, mas uma falsa
adulação. A segunda é apenas uma expressão da filosofia, sem
conteúdo próprio. Hoje em dia, reencontramos esse dualismo
estéril entre uma publicidade que só procura agradar, para ven­
der, e uma pretensa "ciência humana" que não resolve os pro­
blemas humanos, abstendo-se mesmo de formulá-los. Entre­
tanto, esse conflito talvez não seja fatal. Deve ser possível uma
outra retórica.
Capítulo II
Aristóteles, a retórica e a dialética

Aristóteles (384-322) nasceu - quinze anos depois da


morte de Sócrates - em Estagira, cidadezinha litorânea entre
Salônica e o monte Atos. Entra com dezessete anos na Acade­
mia de Platão e ali fica vinte anos, abandonando-a por não po­
der suceder ao mestre; vai fundar uma escola concorrente, o
Liceu. Filósofo e sábio universal, soube conciliar em si duas
tendências pouco conciliáveis: o espírito de observação e o es­
pírito de sistema.
Antes de fundar o Liceu, foi preceptor do filho do rei Fili­
pe da Macedônia, que mais tarde se distinguiu como um dos
maiores gênios militares e políticos de todos os tempos, con­
quistando para a pequena Grécia todo o Oriente, desde o Egito
até a Índia.
Aristóteles e Alexandre, o Grande: o que o primeiro pode
ter ensinado ao segundo? Um militar tentou responder:

O poder do espírito implica uma diversidade que nunca se


encontra unicamente na prática da atividade profissional, do
mesmo modo como não nos divertimos apenas em família. A
verdadeira escola do comando está na cultura geral. Por meio
dela, o pensamento é posto em condições de exercer-se, com or­
dem, de distinguir o essencial do acessório nas coisas, de perce­
ber os prolongamentos e as interferências, em suma, de elevar­
��ª um nível em que o conjunto aparece sem o prejuízo dos
matizes. Não há ilustre capitão que nunca tenha tido gosto nem
sentimento pelo patrimônio do espírito humano. Por trás das
vitórias de Alexandre, encontramos sempre Aristóteles. (Char­
les de Gaulle, Vers l 'armée de métier, 1 934)
22 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Belo elogio da retórica. Retórica que Aristóteles vai re­


pensar de cabo a rabo, integrando-a de início num sistema filo­
sófico bem diferente daquele dos sofistas, e depois transfor­
mando-a em sistema.

Uma nova definição de retórica

Texto 2 - Aristóteles, Retórica, livro 1, cap. 2, 1355 a-b

( 1 ) A retórica é útil, porque, tendo o verdadeiro e o justo


mais força natural que os seus contrários, se os julgamentos não
são profe�os como conviria, é necessariamente por sua única
culpa que os litigantes [cuja causa é justa] são derrotados. Sua
ignorância merece, portanto, censura.
(2) Ainda mais: conquanto possuíssemos a ciência mais
exata, há certos homens que não seria fácil persuadir fazendo
nosso discurso abeberar-se apenas nessa fonte; o discurso se­
gundo a ciência pertence ao ensino, e é impossível empregá-lo
aqui, onde as provas e os discursos (logous) devem necessaria­
mente passar pelas noções comuns, como vimos em Tópicos, a
respeito das reuniões com um auditório popular.
(3) Ademais, é preciso ser capaz de persuadir dos prós e
dos contras, como no silogismo dialético. Não para pôr os prós
e os contras em prática - pois não se deve corromper pela per­
suasão! -, mas para saber claramente quais são os fatos e para,
caso alguém se valha de argumentos desonestos, estar em condi­
ções de refutá-lo (. . .)
(4) Além disso, se é vergonhoso não poder defender-se
com o próprio corpo, seria absurdo que não houvesse vergonha
em não poder defender-se com a palavra, cujo uso é mais pró­
prio ao homem que o do corpo.
(5) Objetar-se-á que a retórica pode causar sérios danos
pelo uso desonesto desse poder ambíguo da palavra? Mas o
mesmo se pode dizer de todos os bens, salvo da virtude (... )
(6) Fica claro, pois, que, assim como a dialética, a retórica
não pertence a um gênero definido de objetos, mas é tão univer­
sal quanto aquela. Claro também que é útil. Claro, por fim, que
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 23

sua função não é [somente] persuadir, mas ver o que cada caso
comporta de persuasivo. O mesmo se diga de todas as outras
artes, pois tampouco cabe à medicina dar saúde, porém fazer
tudo o que for possível para curar o doente.

Uma definição mais modesta...

Nós mesmos traduzimos esse texto capital, utilizando a


tradução de Médéric Dufour, a de Rhys Roberts, na edição in­
glesa, e evidentemente o texto grego.
Se compararmos esse trecho com o de Górgias (texto 1),
veremos nos dois casos que se trata de um elogio à retórica.
Górgias a celebra por seu poder, Aristóteles por sua utilidade.
Ambos admitem (como Isócrates) que ela pode ser usada deso­
nestamente (adikôs), o que em nada subtrai o seu valor.
Entretanto, se é que Górgias e Aristóteles estão falando da
mesma coisa, não falam da mesma maneira. O discurso do
sofista é digno quando muito de uma praça pública; sua argu­
mentação pelo exemplo dá guinadas. O de Aristóteles, ao con­
trário, é muito coeso; procede por silogismos implícitos, ou
entimemas. Em suma, passa-se de uma arenga propagandísti­
ca, do tipo "vocês vão ver o que vocês vão ver", para uma argu­
mentação rigorosa.
E essa nova argumentação dá uma idéia mais profunda e
sólida da retórica. Para começar, já não a apresenta como poder
de dominar, mas como poder de defender-se, o que logo de cara
a toma legítima. Em seguida, os argumentos contrários ao mau
uso são muito mais fortes, porque o explicam; é precisamente
por ser um bem (agathon) que a retórica pode ser pervertida,
assim como a força, a saúde, a riqueza. Com exceção da virtu­
de moral, todos os bens são relativos. Mas, enfim, nem por isso
deixan;i de ser bens, pois mais vale ser forte que fraco, sadio
que d�Dte..-. Do mesmo modo, é preferível saber utilizar a for­
ça do discurso.
Em resumo, enquanto a defesa de Górgias ou de Isócrates
consistia em fazer da retórica um instrumento neutro, que só
24 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

valia pelo uso, Aristóteles lhe confere um valor positivo, ainda


que relativo.
Ou talvez porque relativo. Voltemos, pois, à sua definição
"corrigida" da retórica. Ela não se reduz, diz ele, ao poder de
persuadir (subentendido: ninguém de coisa nenhuma); no es­
sencial, é a arte de achar os meios de persuasão que cada caso
comporta. Em outras palavras, o bom advogado não é aquele
que promete a vitória a qualquer custo, mas aquele que abre
para a sua causa todas as probabilidades de vitória.
E aqui surge uma vez mais a personagem paradigmática
do iatrós, do médico. Para Górgias, ele estava submetido ao re­
tor, pois dele dependia inteiramente, quer para convencer seu
paciente, quer mesmo para ser nomeado. Em Platão, é, ao con­
trário, o médico�ue faz papel bonito; é ele que sabe e pode
curar, enquanto o retor não passa de envenenador que não sabe
nem como nem por que envenena, uma vez que sua pretensa
arte não passa de rotina cega. Pode-se observar que o médico
de Aristóteles tem bem menos segurança do que faz; ele nada
pode fazer pelos doentes incuráveis, e mesmo aos outros não po­
de prometer a cura, mas simplesmente dar-lhes todas as oportu­
nidades de curar-se. Ainda que nossa medicina seja hoje infini­
tamente mais científica que a de Aristóteles, não pode prome­
ter mais. Aqui o médico já não está abaixo do retor, nem acima;
ambos estão frente a frente, sendo cada um detentor de uma
arte que só tem poder porque reconhece seus limites.
Em resumo, dando à retórica uma definição mais modesta
que a dos sofistas, ele a toma muito mais plausível e eficaz.
Entre o "tudo" dos sofistas e o "nada" de Platão, a retórica se
contenta com ser alguma coisa, porém de valor certo.

A argumentação de Aristóteles

Nosso texto objetiva estabelecer esse valor. Isso é feito


com quatro argumentos mais uma prolepse (§5), para final­
mente passar à definição.
Os quatro argumentos têm por finalidade provar a tese,
exposta desde o início: "A retórica é útil" (khrésimos); em ou-
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 25

tras palavras, dela se pode esperar aquilo que se espera de todas


as técnicas: um serviço; é o que vão mostrar os quatro argu­
mentos, cada um por sua vez.
O primeiro argumento parece responder a uma objeção
implícita: não é possível contentar-se com expor simplesmente
o verdadeiro e o justo, sem recorrer a artifícios oratórios? Aris­
tóteles leva em conta a objeção, dizendo: sim, o verdadeiro e o
justo são por natureza (physei) mais fortes que seus contrários.
Só que a experiência mostra - aqui, argumento pelo exemplo -
que muitos veredictos dos tribunais são iníquos. Como expli­
car isso? Pelo erro dos litigantes, que não souberam fazer valer
seus direitos, que não conseguiram sobrepujar a retórica de
seus adversários, capazes de "tomar mais forte o argumento
mais fraco", de fazer o injusto prevalecer sobre o justo. Se a
arte pode ter vantagem sobre a natureza, é preciso um suple­
mento de arte para devolver à natureza seus próprios direitos.
É isso o que o terceiro argumento desenvolve tecnicamen­
te. É preciso ser capaz de defender tão bem o contra quanto o
pró, claro que não para tomá-los equivalentes - como preten­
diam os sofistas -, mas para compreender o mecanismo da ar­
gumentação adversária e assim a refutar.
O quarto argumento amplia o debate, ligando novamente a
retórica à condição humana, como já fazia Isócrates, o grande
ausente-presente de todo o debate. Se a palavra é característica
do homem, é mais desonroso ser vencido pela palavra que pela
força física. Para interpretar a polissemia do termo grego lo­
gos, o tradutor inglês emprega rational speech.
Na verdade, esses argumentos valem não somente para o
discurso judiciário como também para todos os tipos de discur­
sos públicos. No campo do direito, da política, da vida interna­
cional, vivemos sempre uma situação polêmica, em que as ar­
mas mais eficazes são as da palavra, visto que só ela - e não a
força física - define o justo e o injusto, o útil e o nocivo, o no­
bre e olàWsprezível. A retórica, arte ou técnica da palavra, é,
portanto, indispensável. E aí está o que a legitima.
Mas o que dizer então da objeção de Platão, qual seja, que
a retórica é inteiramente estranha à verdade? Parece-nos que o
26 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

segundo argumento de Aristóteles (§ 2) responde implicitamen­


te a ele. A retórica, dizia Platão, que se autodefine como arte
onipotente, não é arte de modo algum, pois é cega no que faz e
no que quer. Por ignorar o verdadeiro, não é nem mesmo verda­
deiro poder. O que responde Aristóteles?
"Conquanto possuíssemos a ciência .." É preciso entender
.

bem o que está em jogo. Aristóteles opõe-se aos sofistas, para


os quais tudo é relativo, e também, como sempre, a Isócrates,
para quem uma ciência absoluta, à moda de Platão, não passa
de logro, visto que o homem poderá chegar apenas a opiniões
justas, ou melhor, mais ou menos justas (A troca, VI, 27 1).
Quanto a Aristóteles, admite que existe uma ciência exata, e
até "inteiramente exata" (akribestaté). Assim como Platão, ad­
mite uma ciência que, por via demonstrativa, parta do verda­
deiro para chegar ao verdadeiro. Mas parece que objeta a Pla­
tão que a ciência mais exata é impotente para convencer certos
auditórios, aos quais falta instrução. É preciso, portanto, utili­
zar noções "comuns", ou seja, acessíveis ao comum dos mor­
tais. Suponhamos que uma comissão médica queira fazer cam­
panha contra o tabagismo: vai precisar achar para difundir coi­
sa bem diferente de um curso de medicina! Tal é a interpreta­
ção corrente do texto de Aristóteles. No entanto, ela nos parece
evidente e banal demais para não ser suspeita.
Com efeito, no fim da alínea, Aristóteles refere-se à dialé­
tica dos Tópicos. Atendo-nos a essa interpretação, poderíamos
acreditar que a dialética não passa de quebra-galho, devido à
incultura dos auditórios populares, uma maneira de falar aos
ignaros, que só têm a seu favor (quando muito) o senso co­
mum. A retórica seria então a filosofia do pobre, o que no fun­
do nos remete a Platão.
Na verdade, é preciso retomar à frase obscura: "o discurso
segundo a ciência pertence ao ensino". Em outras palavras, um
discurso submetido às exigências científicas só pode ser feito
numa escola, numa instituição especial, com seus métodos,
seus mestres, programas progressivos, etc. Ora, não é a mesma
coisa quando se fala diante de um tribunal, ou em praça públi­
ca, onde não se tem nem mesmo o tempo para expor cientifica­
·
mente. Mas será por causa da incultura do auditório?
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 27
Parece que o problema está em outro lugar. O domínio da
retórica, o das questões judiciárias e políticas, não é o mesmo
da verdade científica, mas do verossímil. O próprio Aristóteles
diz isso em outro texto:

Seria tão absurdo aceitar de um matemático discursos sim­


plesmente persuasivos quanto exigir de um orador (retor) de­
monstrações invencíveis. (Ética a Nicômaco, 1, 1094 b)

A retórica não é, pois, a prova do pobre. É a arte de defen­


der-se argumentando em situações nas quais a demonstração
não é possível, o que a obriga a passar por "noções comuns",
que não são opiniões vulgares, mas aquilo que cada um pode
encontrar por seu bom senso, em domínios nos quais nada seria
menos científico do que exigir respostas científicas.
Numa palavra, Aristóteles salva a retórica, colocando-a
em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe illn papel modesto,
mas indispensável num mundo de incertezas e de conflitos. É a
arte de encontrar tudo o que um caso contém de persuasivo,
sempre que não houver outro recurso senão o debate contradi­
tório. Para entender melhor isso, passemos ao exame da rela­
ção entre a retórica e a dialética1•

O que é dialética?

Sabe-se que os gregos eram grandes esportistas, pratican­


tes de toda espécie de lutas e competições. Mas também se des­
tacavam numa disputa esportiva fora dos estádios e ginásios,
ou puramente verbal, a dialética. Dois adversários se enfren­
tam diante do público: um sustenta uma tese - por exemplo,
que o prazer é o bem supremo -, e a defende custe o que custar;
o outro ataca com todos os argumentos possíveis. O vencedor
será aquele que, prendendo o adversário em suas contradições,
conSe8uir reduzi-lo ao silêncio, para grande alegria dos espec­
tadores.
Parece que a primeira dialética foi a erística dos sofistas,
arte da controvérsia que permitia fazer triunfar o absurdo ou o
28 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

falso. Sócrates e depois Platão puseram a dialética a serviço do


verdadeiro, transformando-a no próprio método da filosofia.
Para Aristóteles, a dialética não está menos a serviço do
verdadeiro do que do falso; ela trata do provável:

Em filosofia, é preciso tratar as questões segundo a verda­


de, mas em dialética somente segundo a opinião2•

A dialética de Aristóteles é apenas a arte do diálogo orde­


nado. O que a distingue da demonstração filosófica e científica
é raciocinar a partir do provável. O que a distingue da erística
sofista é raciocinar de modo rigoroso, respeitando estritamente
as regras da lógica.

A dialética é um jogo

O silogismo demonstrativo parte de premissas evidentes,


necessárias, que provam sua conclusão explicando-a de modo
indubitável. O silogismo dialético parte de premissas simples­
mente prováveis, os endoxa, aquilo que parece verdadeiro a
todo o mundo, ou à maioria das pessoas, ou ainda aos indiví­
duos competentes. O endoxon opõe-se, pois, ao paradoxon (o
paradoxo pode ser verdadeiro, mas contradiz a opinião aceita).
São assim, hoje em dia, os conceitos de "normal" ou de "matu­
ridade": não possuem nenhum rigor científico, mas são úteis
para que as pessoas se entendam, tanto nas ciências humanas
quanto na vida social; seriam bons exemplos de endoxa.
Portanto, a dialética renuncia à verdade das coisas em be­
neficio da opinião aceita. Substitui a pergunta científica: "o
que é?" por esta outra: "o que lhe parece?"3• A verdade é que
Aristóteles toma o cuidado de distinguir o verdadeiro consenso
do consenso aparente (phainomenon endoxon ), com que se con­
tentam os sofistas.
Hoje, quem lê os Tópicos pergunta-se com freqüência o
que distingue Aristóteles dos sofistas. Desconfia-se que seu
objetivo não é ensinar a buscar a verdade, mas sim a manipular
o adversário e mesmo a enganá-lo.
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 29
Em nossa opinião, a melhor resposta para esse tipo de crí­
tica é mostrar que a dialética não é nem moral nem imoral, sim­
plesmente porque, no fundo, ela é um jogo. Num jogo, o pro­
blema é ganhar. E, neste, vencer é convencer; em outras pala­
vras, uma proposição enunciada pelo adversário é admitida
como provada, sem que se possa voltar a ela.
Como em todos os jogos, a polêmica só é conflito na apa­
rência: um prélio esportivo ou uma partida de xadrez estão tão
longe de ser um conflito real quanto um rei do xadrez está lon­
ge de um monarca histórico; assim, quem defende uma tese po­
de muito bem não acreditar nela; defende-a por jogo... Enfim,
como todo jogo, a dialética não tem outro fim além de si mes­
ma: joga-se por jogar; discute-se pelo prazer de discutir. E é
nisso que se distingue das atividades sérias: da filosofia por
um lado e da retórica por outro, ainda que lhes seja - como ve­
remos - indispensável.
Em síntese, um jogo análogo ao xadrez, em que o acaso
tem posição ínfima. Um jogo em que se deve fazer de tudo
para ganhar, mas sem trapacear, respeitando as regras... da ló­
' gica.

Tudo para ganhar

No embate dialético, é preciso antes de tudo levar em con­


sideração o adversário concreto que temos diante de nós e dis­
por os argumentos por via de conseqüência. Por exemplo, se o
adversário é iniciante, será atacado com exemplos ou analogias;
se for experiente, ser-lhe-ão opostos raciocínios dedutivos4•
Aristóteles, aliás, ensina procedimentos, "truques" próprios
a desorientar o adversário, impedi-lo de ver aonde se quer che­
gar (como no xadrez); por exemplo, encontrar formas de argu­
mentação que dissimulem a conclusão, para que o adversário
não satbtt aonde se está indo realmente; inserir na argumenta­
ção proposições inúteis para melhor esconder o jogo, etc.5; do
mesmo modo, finge-se imparcialidade, fazendo objeções a
si mesmo; às vezes não se hesita em concluir o verdadeiro a
30 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

partir de premissas falsas, em se verificando que o adversário


admite estas últimas mais facilmente que as verdadeiras!6 No
todo, as aparências são salvas. Tem-se até o direito de jogar
com as palavras (como os sofistas!), quando, por culpa do
adversário, se está "absolutamente impossibilitado de discutir
de outra maneira. . ."1•
Na verdade, pouco importa se o defensor sustenta uma
tese provável ou improvável; pouco importa se a tese é dele, de
outro, ou de ninguém. O importante é acharem que ele defen­
deu bem, que argumentou brilhantemente8; por fim, caso o
questionador tenha vencido ressaltando todos os absurdos de­
correntes da tese, o defensor deve poder "mostrar" que a culpa
não é sua, mas da própria tese; em suma, que ele defendeu o
melhor que pôde uma tese que não era sua9. Assim,

num debate dialético, o objetivo do questionador é parecer, por


todos os meios, estar fazendo uma refutação, e o objetivo do de­
fensor é parecer não estar sendo afetado pessoalmente em nada.
(VIIl, 5, l 59 a)

Respeitar as regras do jogo

Um jogo, portanto, mas que deve ser jogado respeitando­


se as regras. Sim, deve-se fazer de tudo para ganhar, mas não
por quaisquer meios. Porque a trapaça, transgressão das regras
lógicas, induz de chofre a destruição do jogo. E é exatamente
por isso que Aristóteles tanto insiste nas regras da dialética,
que a opõem à sofistica, essa trapaça. As principais são as que
seguem:
Para começar, as que - sem serem propriamente lógicas -
têm por objetivo permitir a conclusão, o fim do jogo, num tem­
po limitado.
Assim, se é verdade que, a partir de casos particulares, por
mais numerosos que sejam, nunca se pode concluir por uma
proposição universal, cumpre entretanto que o adversário, após
certa quantidade de exemplos, aceite essa passagem para o uni­
versal, a menos que ele próprio gere um contra-exemplo. Se, ao
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 31

contrário, se obstinar, não estará fazendo mais que chicanice,


pois estará bloqueando o debate de modo totalmente arbitrá­
rio10. Analogamente, é preciso evitar que as objeções acabem
virando obstrução, o que equivale a desperdiçar tempo e parali­
sar a discussão para não perder. De modo mais geral, deve-se
evitar discutir com qualquer um, porque, se o adversário ignora
as regras do debate, este só poderá abespinhar-se, já que cada
um recorrerá a qualquer meio para impor sua conclusão11•
Às regras que dizem respeito aos argumentadores, acres­
centam-se as que dizem respeito à argumentação.
Em primeiro lugar, as regras de clareza no que diz respeito
aos termos. Muitas vezes os debates são deturpados por se utili­
zarem premissas ambíguas. Vejamos, entre milhares de exem­
plos, este sofista registrado na Lógica de Port-Royal (p. 2 1 7):

Não és o que sou;


eu sou homem;
logo, não és homem.

Sofisma porque, na conclusão, "ser homem" é tomado no


sentido universal, enquanto na premissa menor ele é tomado
em sentido particular: este homem, e não todo o homem ou
qualquer homem12•
Outros sofismas dizem respeito à forma do raciocínio. Por
exemplo, a petição de princípio, que toma como aceita a tese
que se quer demonstrar, enunciando-a com outras palavras11;
em que a conclusão é extraída de premissas menos prováveis
que ela, ou de premissas excessivamente numerosas para que
se possa compreender a razão do que está sendo concluído; e
em que se chega à conclusão por meio de um raciocínio impró­
prio ao assunto, como por exemplo um raciocínio não geomé­
trico para estabelecer uma conclusão geométrica14•
Vimos que, contra certos adversários malevolentes ou li­
mitados, o verdadeiro pode ser concluído de premissas falsas.
Mas, ,mesmo nesse caso, continua proibido transgredir as re­
gras d&raciocínio; sejam as premissas certas, prováveis ou fal­
sas, o raciocínio deve ser correto.
A passagem,do falso ao verdadeiro deve ser dialética, não
erística ( 1 6 1 a).
32 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Enfim, uma regra apropriada ao 'jogo" dialético: só serão


feitas perguntas que possam ser respondidas com sim ou com
não. Por exemplo, não se deve perguntar: "O que é o bem?",
mas: "O bem se reduz ao prazer?" ( 1 5 8 a)

Utilidade do jogo dialético

A dialética é, pois, um jogo cujo objetivo consiste em pro­


var ou refutar uma tese respeitando-se as regras do raciocínio. O
papel do inquiridor "é concluir a discussão de modo que o de­
fensor sustente os mais extravagantes paradoxos, como conse­
quências necessárias de sua tese" ( 1 59 b). Ao outro, em contra­
partida, cabe defender sua tese por todos os meios. O essencial
é que cada um mostre que raciocinou bem e utilizou todos os
argumentos a seu alcance. E esse "mostrar" já não é simples
aparência; é o sofista que raciocina na aparência, exatamente
como o trapaceiro, que faz de conta que está jogando. Quanto à
dialética, é uma argumentação que vai da aparência à aparência,
mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E o que
reforça ainda mais a idéia de jogo é a afirmação de Aristóteles:
quando um dos dois adversários raciocina mal, a discussão vira
chicana, e o faltoso "impede o bom cumprimento da obra co­
mum" ( 1 6 1 a); como em todo jogo, cada parceiro persegue seu
próprio objetivo, porém ambos perseguem um objetivo comum,
que é chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, mas
ambos querem levar a bom termo "a obra comum".
Finalmente, qual é o proveito do jogo dialético? Aristóte­
les por certo responderia - e todos os gregos com ele - que esse
jogo tem fim em si mesmo. Joga-se por jogar, discute-se pela
beleza e pelo prazer de uma disputa bem travada, prazer com­
partilhado, aliás, pelo público. Entretanto, Aristóteles diz em
outro lugar que, embora esse jogo tenha fim em si mesmo,
pode-se também 'jogar com vista a uma atividade séria"15• Po­
de-se, com efeito, ignorar o valor insubstituível do jogo na edu­
cação? Pode-se ignorar o aspecto de jogo intelectual que se en­
contra tanto na matemática quanto na filosofia?
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 33

E o próprio Aristóteles, no capítulo 2 do primeiro livro dos


Tópicos, fixa os beneficios secundários oferecidos pela dialéti­
ca. Aponta três: uso pedagógico, uso filosófico e uso social
("homilético", que diz respeito diretamente à retórica).
O uso pedagógico será explorado pelo ensino durante cer­
ca de vinte e cinco séculos! "É a gymnasía: Nos embates dialé­
ticos, argumenta-se para avaliar as forças, e não para debater",
"com o propósito de exercitar-se e provar-se, e não de instruir­
se"16. Se desse jogo não se extrair verdade alguma, pelo menos
se adquirirá um treinamento intelectual, um método que permi­
ta argumentar sobre qualquer assunto.
'
O uso filosófico divide-se em dois. Em primeiro lugar, a
dialética, que desempenha um papel epistemológico por per­
mitir (e só ela o faz) estabelecer através de um exame contradi­
tório os primeiros princípios de cada ciência e os princípios
comuns a todas. Foi graças a um exame dialético que Aristóte­
les estabeleceu os primeiros princípios da tisica, da moral e até
o princípio de contradição.
A outra função é interna à filosofia. A dialética dá ao filó­
sofo uma competência que lhe é indispensável: "Numa pala­
vra, é dialético quem está apto a formular proposições e obje­
ções."11 Proposição: extrair o universal de vários casos particu­
lares; objeção: achar um caso particular que permita infirmar
uma proposição universal. . . E ainda mais, a dialética dá ao filó­
sofo "a capacidade de abarcar apenas com um olhar (. . .) as
conseqüências de uma e de outra hipótese"; assim, só lhe resta
"fazer a justa escolha entre ambas"18.
Mas o filósofo não joga. Utiliza a formação que a dialética
lhe dá para buscar a verdade. No uso lúdico da dialética, cada
um leva em conta os objetivos reais ou prováveis do adversário
que tem diante de si. No uso filosófico, têm-se em mente todas
as objeções possíveis, ainda que estas jamais tenham sido for­
mulaqas nem sejam formuláveis. O filósofo está diante de um
adverMh.o que renasce a cada instante, pois está sempre insa­
tisfeito: ele mesmo.
Resta a função homilética da dialética:
34 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Sua utilidade no contato com os outros é explicada pelo


fato de que, depois de prepararmos o inventário das opiniões da
maioria (tôn pollôn), não estaremos falando a ela a partir de
pressupostos que lhe sejam estranhos, mas a partir de pressupos­
tos que lhe são próprios, sempre que a quisermos persuadir ...

(1, 2 , 1 0 1 a)

É preciso deixar claro que esta passagem é precisamente


aquela à qual Aristóteles remete no segundo argumento de
nosso texto de Retórica. "Contatos com os outros": essa é exa­
tamente a área da retórica, e aí temos uma idéia dos serviços
que a dialética pode prestar-lhe.

Retórica e dialética

Qual é então a relação entre dialética e retórica? A esta


pergunta Aristóteles responde desde a primeira frase de seu
livro: a retórica é antístrofos da dialética" (Retórica, 1, 1354 a).
O problema é que não se conhece bem o sentido de antístrofos.
Os tradutores utilizam ora "análogo", ora "contrapartida". E -
o que não simplifica as coisas - a explicação do próprio Aristó­
teles é um tanto confusa. Nesse primeiro capítulo, ele escreve
que a retórica é o "rebento" da dialética, isto é, sua aplicação,
mais ou menos como a medicina é a aplicação da biologia. Mas
depois ele a qualifica como uma "parte" da dialética. Diz tam­
bém que ela lhe é "semelhante" (omoion ) portanto que a rela­
,

ção das duas seria de analogia. Antístrofos: é maçante um livro


começar com termo tão obscuro!
Na nossa opinião, esse termo deve ser visto como uma
provocação . . . Isto porque Aristóteles argumenta quase sem­
pre contra Platão. Como se sabe, este último desprezava a re­
tórica e exaltava a dialética, na qual via o método por exce­
lência da filosofia, único que permitia alcançar o absoluto, o
"aipotético". Aristóteles inicia, pois, o seu livro com um ges­
to de desafio a Platão. Faz a dialética descer do céu para a ter­
ra e, inversamente, reabilita a retórica, atribuindo-lhe um pa­
pel mais modesto do que lhe atribuíam os antigos retores.
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 35

Dessa forma, ela passa a ser antístrofos da dialética, ou seja,


está no mesmo plano.

O que elas têm em comum

No mesmo plano: vejamos agora como Aristóteles prova


isso. Seus argumentos podem ser resumidos em cinco19•
Primeiramente, a retórica e a dialética são capazes tanto
de provar uma tese quanto o seu contrário; o que não significa
que as duas teses sejam necessariamente equivalentes, pois
então se cairia na sofística; quer dizer que se pode argumentar
mesmo em favor de uma tese fraca.
Em segundo lugar, a retórica e a dialética são universais,
no sentido de não serem ciências, de não implicarem nenhuma
especialização e de possibilitarem a discussão de tudo o que for
controverso.
Em terceiro lugar, ainda que ambas sejam praticadas por
hábito ou mesmo por acaso, podem também ser ensinadas me­
todicamente, e são nesse caso "técnicas".
Em quarto lugar, ao contrário da sofistica, ambas são ca­
pazes de fazer a distinção entre o verdadeiro e o aparente: a
dialética, entre o verdadeiro silogismo e o sofisma; a retórica,
entre o realmente persuasivo e o logro.
Em quinto lugar, elas utilizam dois tipos idênticos de ar­
gumentação: indução e dedução, que se situam entre a demons­
tração (apodeixis) própria da ciência e a erística enganadora
dos sofistas.
Esses argumentos são tão fortes que dialética e retórica
chegam a parecer dois termos que, no fundo, designam a mes­
ma disciplina! Mas não é nada disso. A retórica é apenas uma
"aplicação", entre outras, da dialética; é uma de suas quatro
funções. Inversamente, a retórica utiliza a dialética como um
meio, entre outros, de persuadir. Mais ou menos como o médi­
co utiliza as ciências biológicas, mas também a psicologia, a
psicanálise, etc.
36 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Dialética, parte argumentativa da retórica

É certo que a retórica utiliza a dialética para convencer. E


parece mesmo que, no capítulo primeiro do livro 1, Aristóteles
limita a retórica à técnica da prova; diz, aliás, que o orador só
deve ocupar-se com problemas de fato e deixar para o juiz a
preocupação de avaliá-los. Em suma, uma retórica honesta, po­
rém inexpressiva. . . que não será exatamente a que Aristóteles
vai desenvolver em seu livro. Esta, longe de limitar-se a ser
aplicação, vai subordinar a si a dialética como um meio entre
outros de convencer.
E já no capítulo 2 o autor introduz em sua retórica elemen­
tos de persuasão que nada têm a ver com a dialética, que só
conhece provas de ordem intelectual. A retórica, diz Aristóte­
les, comporta três tipos de provas (pisteis) como meios de per­
suadir. Os dois primeiros são o etos e o patos, que estudaremos
no próximo capítulo; constituem--4 parte afetiva da persuasão.
O terceiro tipo de prova, o racioc ínio, resulta do logos, consti­
tuindo o elemento propriamente dialético da retórica2º.
O próprio Aristóteles diz que "esses dois métodos", a de­
dução e a indução, "são necessariamente idênticos nas duas
técnicas" (1 356 b). Idênticos não apenas em termos de estrutu­
ra, mas também de conteúdo. Em retórica como em dialética,
os dois tipos de raciocínio apóiam-se no verossímil, o eikos,
termo constante entre os antigos retores, que Aristóteles com­
para ao endoxon da dialética. Fique claro que, limitada ao ve­
rossímil, a argumentação continua racional. O eikos (por exem­
plo, o filho amar o pai) é o que acontece com mais freqüência,
portanto o que apresenta grande probabilidade e pode ser pre­
sumido salvo prova em contrário (cf. 1 357 a).
Nesse sentido, a retórica assim como a dialética opõe-se à
sofistica, que se compraz com o inverossímil e o "prova" por
meio de uma aparência de raciocínio. Assim, no capítulo 24 do
livro II, Aristóteles detém-se numa análise dos sofismas que
retoma de modo mais abreviado a análise feita em Tópicos. E
no capítulo 23 expõe os lugares, ou seja, os tipos de argumen­
tos verossímeis que servem de premissas ao raciocínio retóri­
co. Por exemplo:
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 37

Se não é justo encolerizar-se contra quem nos tenha feito


mal sem intenção, quem nos fez bem por obrigação não tem
direito a nenhum reconhecimento. ( 1 397 a)
Se os deuses não são oniscientes, muito mais razões há
para que os homens não o sejam. ( 1 397 b)

A partir daí, pode-se desculpar "X" por não ser grato, ou


"Y" por se ter enganado. Embora não sejam irrefutáveis, esses
argumentos são altamente verossímeis.
Numa palavra, a dialética constitui a parte argumentativa
da retórica. Cabe esclarecer, porém, que a argumentação não
tem a mesma função, portanto o mesmo sentido, em ambos os
casos. A dialética é um jogo especulativo. A retórica, por sua
vez, não é um jogo. É um instrumento de ação social, e seu
domínio é o da deliberação (buleusis); ora, esse domínio é pre­
cisamente o do verossímil. De fato, não se delibera sobre o que
é evidente - por exemplo, para saber se a neve é branca! - nem
sobre o que é impossível; delibera-se sobre fatos incertos, mas
que podem realizar-se, e realizar-se em parte através de nós.
Por exemplo, a cura de um doente, a vitória na guerra, etc. 21
Em resumo, a retórica é uma "aplicação" da dialética, no
sentido de que a utiliza como instrumento intelectual de per­
suasão. Mas instrumento que não a dispensa de modo algum
dos instrumentos afetivos.

Moralidade da retórica

Mas aí surge uma questão sobre a retórica que não existia


com referência à dialética. Como vimos, esta última em si mes­
ma é somente um jogo, cuja moralidade consiste em não trapa­
cear, em respeitar as regras internas, sem as quais o jogo não
seria mais jogo. A retórica, ao contrário, é uma disciplina séria,
pois está ligada à ação social e contribui para decisões graves,
como éohdenar ou absolver, entrar em guerra ou viver em paz,
etc. Pode-se, pois, formular a questão de sua moralidade: será
honesto o método de debater e persuadir, ou trata-se de mani­
pulação desonesta?
38 INTRODUÇÃO Â RETÓRICA

A essa pergunta, que ainda teremos oportunidade de formu­


lar, vimos o que responde Aristóteles: a retórica é uma técnica útil,
freqüentemente indispensável. Se seu uso às vezes é desonesto,
não cabe censurar a técnica, mas o técnico. No entanto, lendo a
seguir os conselhos da retórica de Aristóteles, perguntamo-nos se
ela não se reduz a uma manipulação digna de sofistas. Discutire­
mos esse assunto a partir de um exemplo concreto.
No capítulo 1 5 do livro 1, Aristóteles dá conselhos ao liti­
gante sobre o que dizer; primeiro se a lei lhe for contrária, de­
pois se a lei lhe for favorável. Numa primeira leitura, tem-se a
impressão de que ele legitima todas as "velhacarias de advoga­
dos". Para destacar bem isso, dispusemos os dois textos lado a
lado, invertendo ligeiramente a ordem dos argumentos, para que
cada um corresponda a seu contra-argumento.

"Se a lei nos é desfavorável" "Se a lei nosforfavorável"

- "é preciso recorrer à lei comum, - "é preciso explicar que ninguém
com razões mais equânimes e mais [gortanto nenhuma cidade] escolhe
justas"; o bem absoluto, mas sim seu próprio
bem";
- "dizer que a fórmula do juramento - "dizer que a fórmula em minha al­
em minha alma e consciência signi­ ma e consciência não tem por objeti­
fica não nos atermos estritamente à vo obter uma sentença contrária à
letra da lei"; lei, mas escusar o juiz de perjúrio,
caso ele tivesse ignorado o sentido
real da lei";
- "dizer que os princípios de eqüida­ - "dizer que não há diferença entre
de são permanentes e nunca mudam, não ter lei e não recorrer àquelas que
nem a lei comum, que é baseada na temos ! "
natureza";
- citar "a lei não escrita de Antígo­ - "dizer que querer ser mais sábio
na", único critério de justiça das leis que as leis é justamente o que proí­
escritas, aliás muitas vezes ambíguas, bem essas leis [não escritas] que
anacrônicas ou contraditórias entre si. costumam ser elogiadas" (75 a).

Note-se que o debate é propriamente dialético, pois opõe


dois endoxa. O primeiro é a recusa do legalismo, em nome da
"eqüidade" (epieikés), que põe a justiça acima do direito posi­
tivo e faz do juiz um árbitro, que pode corrigir a lei quando esta
"deixar de desempenhar sua função de lei" (ibid.), porque
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 39

assim ela produzirá conseqüências iníquas. O segundo é a


recusa do arbitrário, pois afinal cada um pode invocar as leis
"não escritas" de Antígona para revogar a lei que o incomoda;
é como se alguém alegasse erro médico "para passar-se por
mais hábil que os médicos" (ibid.)!
Só que a situação não é mais de dialética, mas de proces­
so, em que há bens em jogo, talvez mesmo vidas. E aconselhar
o litigante a adotar, segundo a causa, ora uma tese, ora seu con­
trário, parece um tanto amoral. Mas não se deve esquecer que a
condição do litigante, como aliás a do político, é de não estar
sozinho; ele tem diante de si outro litigante, a quem compete
fazer de tudo para desmentir sua argumentação; ambos têm por
missão preparar o julgamento: cada um faz valer tudo o que
possa servir à sua própria causa. Quem define é o juiz.
A retórica só é exercida em situações de incerteza e confli­
to, em que a verdade não é dada e talvez jamais seja alcançada
senão sob a forma de verossimilhança. Afinal de contas, o de­
bate entre Creonte e Antígona, entre a razão de Estado, que
exige a ordem para garantir a paz, e a lei divina, ética, que se
resigna com a injustiça, esse debate não se encerrou, e pode-se
acreditar que não nunca se encerrará.
A única coisa que se pode fazer, na falta de uma demons­
tração rigorosa, é confiar no debate contraditório em que cada
orador "se esforça por detectar tudo o que seu caso comporta
de persuasivo"...

Conclusão: Aristóteles e nós

Retórica e dialética são, pois, duas disciplinas diferentes,


mas que se cruzam como dois círculos em intersecção. A dialé­
tica é um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações,
comporta a retórica. Esta é a técnica do discurso persuasivo
que, ertttt outros meios de convencer, utiliza a dialética como
instrumento intelectual. Pois bem, se os dois círculos podem
cruzar-se, é porque se situam no mesmo plano, e - indo mais
longe -porque pertencem em sentido estrito ao mesmo mundo.
40 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

É certo que não desempenham o mesmo papel. "A dialéti­


ca", diz Pierre Aubenque, "refuta no real ( ... ) mas só demons­
tra na aparência"22• Na retórica, em que não se sustenta uma
tese, mas se defende uma causa, em que não se joga com idéias,
mas o que está em jogo no discurso é o destino judiciário, polí­
tico ou ético dos homens, na retórica, é preciso levar a sério o
"na aparência", como verossímil que faz as vezes de uma evi­
dência sempre inapreensível.
Em todo caso, elas pertencem ao mesmo mundo. O que
significa isso?
A retórica de Aristóteles está bem próxima da retórica de
Isócrates em termos de conteúdo. A diferença é que em Aristó­
teles a retórica é uma arte situada bem abaixo da filosofia e das
ciências exatas. Estas, "demonstrativas", atingem verdades "ne­
cessárias", que, como os teoremas, só podem ser o que são,
possibilitando compreender e prever. A retórica, por sua vez,
só atinge o verossímil, aquilo que acontece no mais das vezes,
mas que poderia acontecer de outra forma. Equivale a dizer
que ela só é possível em certo mundo.
Para Aristóteles, existem dois mundos. Primeiro, o mundo
divino, o "céu", não cognoscívéli pela fé, mas, ao contrário,
pela razão demonstrativa. Esta conhece tanto o divino invisí­
vel, Deus, quanto o divino visível, a saber, os astros, objeto da
astronomia matemática, visto que seus movimentos são neces­
sários, portanto calculáveis e previsíveis.
Abaixo, o mundo "sublunar", a Terra, onde existem acaso,
contingência, imprevisibilidade, onde nunca é possível a ciência
perfeita, mas onde existe o provável, o verossímil. Mundo, en­
fim, aberto à ação humana. Citemos mais uma vez Aubenque:

Num mundo perfeitamente transparente à ciência, isto é,


onde estivesse estabelecido que nada poderia ser diferente do
que é, não haveria lugar para a arte, nem, de maneira geral, para
a ação humana2'.

Nenhum lugar também para a retórica, que é uma arte. Mas


vivemos em um mundo que não é o da pura ciência; em um
mundo que não é um jogo, mas que nem por isso está submeti­
do ao cego acaso. Mundo onde a previsão é mais ou menos
ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA 41

provável, onde a decisão é mais ou menos justa. Mundo onde,


embora possamos "refutar no real", com uma certeza demons­
trativa, devemos nos contentar com provas mais ou menos con­
vincentes, com opções mais ou menos razoáveis.
Esse mundo já não é nosso, dirão. Não mesmo, porém vai
continuar sendo ainda enquanto não tivermos chegado à ciên­
cia total. Aí então é o homem que já não será.

Quadro comparativo

Campo para
Alvo Modalidade Aristóteles Campo para nós

Demonstração: Eu, nós Necessária Lógica, ciências Lógica, ciências


saber exatas, exatas
metafisica e naturais
Dialética: Tu Provável Universal, Ciências
j ogo, (endoxon) princípios humanas,
exercício primeiros filosofia,
teologia
Retórica: Vós Verossímil Judiciário, Os mesmos, mais
convencer (eikos) político, pregação,
um público epidíctico propaganda,
publicidade
Sofistica: Impessoal, Falsa-aparência Ilusão Idem
dominar eles
pelo logro

Notas. - Para começar, a distribuição não é mais idêntica


à de Aristóteles. A metafisica passou para segundo plano, en­
quanto as ciências da matéria tomaram-se demonstrativas, e
referem-se ao necessário (fisica, química, etc.). A natureza e o
campo da sofistica não mudaram, ainda que o sofista já não
se confesse como tal; esse é o campo em que se pode tomar a
"aparência" de razão pela razão: na verdade, todos os cam­
pos! Note-se, por fim, que a sofistica, ao fingir que se dirige a
"ti", ou a "vós", manipula na realidade o "eles" ou o "alguém";
não é exa'.lamente a "ti" que o sofista se dirige, mesmo que
finja fazer isso, mas sim à coisa em ti.
Quanto à retórica, seu campo ampliou-se muito a partir
de Aristóteles, o que provaria a fecundidade de seu sistema.
Capítulo III
O sistema retórico

Aristóteles, portanto, reabilitou a retórica ao integrá-la


numa visão sistemática do mundo, onde ela ocupa seu lugar,
sem ocupar, como entre os sofistas, o lugar todo. Mais ainda,
Aristóteles transformou a própria retórica num sistema, que
seus sucessores completarão, mas sem modificar.
Passaremos, pois, ao estudo desse sistema retórico, não
sem perguntar, no que se refere a cada um deles, qual a sua re­
lação com o homem do século XX.

As quatro partes da retórica

O sistema começa com uma classificação: a retórica é de­


composta em quatro partes, que representam as quatro fases
pelas quais passa quem compõe um discurso, ou pelas quais
acredita-se que passe. Na verdade, essas partes são principal­
mente os grandes capítulos dos tratados de retórica.
Quais são elas? Para não criar confusão, manteremos seus
nomes tradicionais, do latim.
A primeira é a invenção (heurésis, em grego), a busca que
empreende o orador de todos os argumentos e de outros meios
de persuasão relativos ao tema de seu discurso.
A segunda é a disposição (taxis), ou seja, a ordenação des­
ses argólitentos, donde resultará a organização interna do dis­
curso, seu plano.
A terceira é a elocução (lexis), que não diz respeito à pala­
vra oral, mas à redação escrita do discurso, ao estilo. É aí que
44 INTRODUÇÃO Â RETÓRICA

entram as famosas figuras de estilo, às quais alguns, nos anos


60, reduziam a retórica!
A quarta é a ação (hypocrisis), ou seja, a proferição efetiva
do discurso, com tudo o que ele pode implicar em termos de
efeitos de voz, mímicas e gestos. Na época romana, à ação será
acrescentada a memória.
Essa classificação pode parecer bem escolar: na verdade
não é bem assim que as coisas acontecem quando se prepara
um discurso. Pode-se ir de uma tentativa de ação - proferir al­
gumas frases - para buscar em seguida argumentos; escrever
antes de encontrar um plano, etc. Mas pouco importa a ordem
cronológica. As quatro partes na realidade são as quatro "tare­
fas" (erga) que devem ser cumpridas pelo orador. Se este dei­
xar de cumprir alguma delas, seu discurso será vazio, ou desor­
denado, ou mal escrito, ou inaudível.
Portanto, um advogado que prepare uma defesa, um estu­
dante que prepare uma exposição, um publicitário que prepare
uma campanha, todos deverão, se não passarem sucessivamen­
te por essas quatro fases, cumprir pelo menos as tarefas que
cada uma delas representa: compreender o assunto e reunir to­
dos os argumentos que possam servir (invenção); pô-los em
ordem (disposição); redigir o discurso o melhor possível (elo­
cução); finalmente, exercitar-se proferindo-o (ação).

Invenção

Antes de empreender um discurso, é preciso perguntar-se


sobre o que ele deve versar, portanto sobre o tipo de discurso, o
gênero que convém ao assunto. Veremos que essa questão do gê­
nero também diz respeito à interpretação do discurso.

Os três gêneros do discurso

Segundo os antigos, os gêneros oratórios são três: judiciá­


rio, deliberativo (ou político) e epidíctico. Por que exatamente
O SISTEMA RETÓRICO 45

três? Aristóteles responde: "porque há três espécies de auditó­


rio" (Retórica, 1 3 58 a); é a necessidade de adaptar-se a eles
que confere traços específicos a cada gênero: conforme as pes­
soas a quem nos dirigimos, não falaremos da mesma maneira.
O discurso judiciário tem como auditório o tribunal; o delibe­
rativo, a Assembléia (Senado); o epidíctico, espectadores,
todos os que assistem a discursos de aparato, como panegíri­
cos, orações fúnebres ou outras.
Os atos dos três discursos não são os mesmos. O judiciário
acusa (acusação) ou defende (defesa). O deliberativo aconse­
lha ou desaconselha em todas as questões referentes à cidade:
paz ou guerra, defesa, impostos, orçamento, importações, le­
gislação (cf. 1 359 b). O epidíctico censura e, na maioria das
vezes, louva ora um homem ou uma categoria de homens, co­
mo os mortos na guerra, ora uma cidade, ora seres lendários,
como Helena ... '
Aristóteles, que nunca esquece que é filósofo, mostra que
os três gêneros também se distinguem pelo tempo. O judiciário
refere-se ao passado, pois são fatos passados que cumpre
esclarecer, qualificar e julgar. O deliberativo refere-se ao futu­
ro, pois inspira decisões e projetos. Finalmente, o epidíctico
refere-se ao presente, pois o orador propõe-se à admiração dos
espectadores, ainda que extraia argumentos do passado e do
futuro.
O principal é que os valores que servem de normas a esses
discursos não são os mesmos. Enquanto o judiciário diz respei­
to ao justo e ao injusto, o deliberativo diz respeito ao útil e ao
nocivo. Útil a quem? À cidade, e a nada mais; e o interesse co­
letivo, nacional, pode ser perfeitamente injusto; assim, o ora­
dor político pouco está preocupado em saber

se não há nenhuma injustiça em reduzir povos vizinhos à escra­


vidão, mesmo que eles nada tenham feito de mal. ( 1 358 b)

Hoje, UfialllOS luvas de pelica... Mas será que encontramos


muitos políticos para propor medidas justas, porém nocivas à
nação? Quanto ao epidíctico, os valores que o inspiram são o
nobre e o vil (kalon, aiskhron), valores que nada têm a ver com
46 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

o interesse coletivo, e que não se confundem tampouco com o


"justo", pelo menos no sentido de legal.
Aristóteles quase não se detém nos estilos respectivos
dos três gêneros; esclarece, todavia, que o epidíctico é "o
mais escrito dos três" ( 1 4 1 3 b, 1 4 1 4 a). Em compensação,
mostra durante longo tempo que o tipo de argumentação dos
três não é o mesmo. O judiciário, que dispõe de leis e se diri­
ge a um auditório especializado, utiliza de preferência racio­
cínios silogísticos ( entimemas ), próprios a esclarecer a causa
dos atos. O deliberativo, dirigindo-se a um público mais mó­
vel e menos culto, prefere argumentar pelo exemplo, que,
aliás, permite conj ecturar o futuro a partir dos fatos passa­
dos: Dionísio pede uma guarda; ora, todos os futuros tiranos
conhecidos da história pediram uma guarda; logo, Dionísio
vai tomar-se tirano ( 1 3 5 7 b). Quanto ao epidíctico, recorre
sobretudo à amplificação, pois os fatos são conhecidos pelo
público, e cumpre ao orador dar-lhes valor, mostrando sua
importânci a e sua nobreza ( 1 368 a). Hoje em dia mesmo,
quando se faz o elogio de um morto, parte-se daquilo que to­
dos conhecem, para exaltar seus méritos e calar o resto.
Aliás, mesmo que o epidíctico e o deliberativo tenham igual
conteúdo, assumirão modalidades diferentes. Quando o delibe-
/
rativo aconselha:

Não nos devemos gabar daquilo que devemos à sorte,

o epidíctico descreve:

Ele não se gabou daquilo que devia à sorte. ( 1 368 a)

Pergunta: será mesmo que o gênero epidíctico faz parte da


retórica, admitindo-se que esta só diz respeito aos discursos
persuasivos?
De fato, como mostraram tão bem Perelman-Tyteka (TA,
§ § 1 1 e 12), o epidíctico é persuasivo, mas a longo prazo, ao
versar sobre problemas que não exigem decisões imediatas.
Usando o exemplo para fazer o elogio de certo herói, reforça o
O SISTEMA RETÓRICO 47

sentimento cívico e patriótico. Pronunciado, além do mais,


durante jogos entre cidades (por exemplo, Olimpíada), refor­
çou nos gregos o sentimento de pertencer a uma mesma cultura
que estava acima de todas as guerras intestinas (cf. Ó Gregos!
de Górgias, 1 4 1 4 b). Em suma, o epidíctico não dita uma esco­
lha, mas orienta escolhas futuras.
Significa dizer que ele é essencialmente pedagógico. No
vastíssimo terreno que abre, os sucessores de Aristóteles in­
cluirão a história, essa "memória dos grandes feitos do passa­
do". Mais tarde, na era cristã, o gênero epidíctico será enrique­
cido com toda a pregação religiosa.
O fato é que a teoria dos três gêneros hoje é bem mais res­
tritiva; há tantos outros tipos de discursos persuasivos além des­
ses três! Mas o mérito de Aristóteles foi mostrar que os discur­
sos podem ser classificados segundo o auditório e segundo a fi­
nalidade. Voltaremos a essa questão no capítulo VII.

Os três gêneros do discurso

Auditório Tempo Ato Valores Argumento-tipo

Judiciário Juízes Passado Acusar Justo Entimema


(fatos por Defender Injusto (dedutivo)
julgar)
Deliberativo Assembléia Futuro Aconselhar Útil Exemplo
Desaconselhar Nocivo (indutivo)
Epidíctico Espectador Presente Louvar Nobre Amplificação
Censurar Vil

Os três tipos de argumento: etos, patos, logos

Determinado o gênero do discurso, a primeira tarefa do


orador é encontrar argumentos.
Ari�teles define três tipos de argumentos, no sentido ge­
neralíssimo de instrumentos de persuadir (pisteis): etos e patos,
que são de ordem afetiva, e logos, que é racional.
48 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

O etos é o caráter que o orador deve assumir para inspirar


confiança no auditório, pois, sejam quais forem seus argumen­
tos lógicos, eles nada obtêm sem essa confiança:

Por isso é que sua eqüidade é praticamente a mais eficaz


das provas. ( 1 356 a)

Como então dispor favoravelmente o auditório? É verdade


que a resposta depende do próprio auditório, cujas expectativas
variam segundo a idade, a competência, o nível social, etc. O
orador, portanto, não terá o mesmo etos se estiver falando com
velhos camponeses ou com adolescentes citadinos. Mas, em
todo caso, ele deve preencher as condições mínimas de credibi­
lidade, mostrar-se sensato, sincero e simpático. Sensato: capaz
de dar conselhos razoáveis e pertinentes. Sincero: não dissimu­
lar o que pensa nem o que sabe. Simpático: disposto a ajudar
seu auditório (cf. II, 1 , 1 3 77 b e também 1 366 a).
Note-se que etos é um termo moral, "ético", e que é defi­
nido como o caráter moral que o orador deve parecer ter,
mesmo que não o tenha deveras. O fato de alguém parecer sin­
cero, sensato e simpático, sem o ser, é moralmente constrange­
dor; no entanto, ser tudo isso sem saber parecer não é menos
constrangedor, pois assim as melhores causas estão fadadas ao
fracasso. 'J
O patos é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos
que o orador deve suscitar no auditório com seu discurso.
Portanto, ele precisa de psicologia, e Aristóteles dedica boa
metade de seu livro II à psicologia das diversas paixões - cóle­
ra, medo, piedade, etc. - e dos diversos caracteres (dos ouvin­
tes), segundo a idade e a condição social. Aqui, o etos já não é
o caráter (moral) que o orador deve assumir, mas o caráter (psi­
cológico) dos diferentes públicos, aos quais o orador deve
adaptar-se.
No entanto, há nisso certa ambigüidade de que sofrerá a
retórica ulterior. Quintiliano (VI, 2, 1 2 s.) dedica também um
longo estudo ao etos e ao patos, termos que ele mantém em
grego, alegando (como nós) que são intraduzíveis. Define o
O SISTEMA RETÓRICO 49

etos e o patos como dois tipos de afetividade: a primeira calma,


comedida, duradoura, submetida ao controle mental; a segunda
súbita, violenta, irreprimível, portanto irresponsável. Quinti­
liano, como a retórica ulterior, distingue bem dois tipos de afe­
tividade, mas sem definir nitidamente que uma é do orador e a
outra do auditório.
Em todo caso, a retórica criou uma verdadeira psicologia,
de que tirará proveito toda a literatura, em particular o teatro.
Toda a análise dos sentimentos e das paixões deriva da retórica.
Se o etos diz respeito ao orador e o patos ao auditório, o
logos (Aristóteles não emprega esse termo, que utilizamos para
simplificar) diz respeito à argumentação propriamente dita do
discurso (cf. 1 356 a). É o aspecto dialético da retórica, que
Aristóteles retoma inteiramente dos Tópicos.
Como em Tópicos, distingue dois tipos de argumentos, o
entimema, ou silogismo baseado em premissas prováveis, que
é dedutivo, e o exemplo, que a partir dos fatos passados con­
clui pelos futuros, e que é indutivo. As premissas prováveis
dos entimemas são: ou verossimilhanças (eikota), como por
exemplo que um filho ama o pai, ou indícios seguros, como
por exemplo que uma mulher que aleita teve um filho, ou indí­
cios simples, como por exemplo que a presença de cinza indica
que houve fogo. Voltaremos a esses diversos argumentos no
capítulo VIII.

Provas extrínsecas e provas intrínsecas

Na realidade, o orador dispõe de dois tipos de provas: as


atekhnai, ou seja, extra-retóricas, e as entekhnai, ou seja intra­
retóricas. Vamos denominá-las, respectivamente, extrínsecas e
intrínsecas (no século XVII, eram traduzidas por naturais e ar­
tificiais).
As iJrovas extrínsecas são as apresentadas antes da inven­
ção: testemunhas, confissões, leis, contratos, etc. Do mesmo
modo, num discurso epidíctico, tudo o que se sabe da persona­
gem cujo elogio se faz.
50 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

As provas intrínsecas são as criadas pelo orador; depen­


dem, pois, de seu método e de seu talento pessoal, são sua ma­
neira própria de impor seu relatório. Vimos isso no capítulo
anterior: o texto-lei, prova extrínseca, pode ser objeto de uma
argumentação intrínseca contraditória, conforme essa lei seja
favorável ou desfavorável ao orador (cf. supra, p. 50); do mes­
mo modo, quem não tiver testemunhas dirá que os testemunhos
são subjetivos, muitas vezes comprados, e que é melhor julgar
segundo as verossimilhanças (cf. 1 376 a). O orador transforma
assim sua desvantagem em vantagem.
Num elogio fúnebre, as provas extrínsecas são aquilo que
se sabe do defunto, que nem sempre é bonito; o argumento in­
trínseco é a amplificação, que tira partido das provas extrínse­
cas:

transformar o impetuoso em franco, o arrogante em respeitável,


o temerário em bravo, o pródigo em liberal. ( 1 367 b)

Moliere retomou esse procedimento numa cena do Misan­


tropo, descrevendo a retórica do amor, que transforma os defei­
tos da amada em "perfeições":

A magra o que tem é altura e liberdade;


A gorda tem porte cheio de majestade; ( ...)
A altiva tem a alma digna duma coroa;
A patife é perspicaz, e a tola é tão boa. (II, 5)
/
/]

Logro? Sabe-se lá: quem disse, e com que direito, que ele
era temerário e nada mais, que ela era tola e nada mais? Fala-se
de objetividade, mas essa não é tantas vezes a máscara da
malevolência? Em todo caso, é dificil conhecer alguém que,
nesse domínio das relações humanas, possa ser realmente obje­
tivo.

Os lugares ("topoi ) "

Como encontrar os argumentos? Por lugares. Esse termo é


tão corrente quanto obscuro. Na dúvida, pode-se sempre tradu-
O SISTEMA RETÓRICO 51

zir "lugar" por argumento. Mas lembremos que esse termo tem
pelo menos três sentidos, que exporemos por níveis de tecnici­
dade.
1 ) No sentido mais antigo e mais simples, o lugar é um ar­
gumento pronto que o defensor pode colocar em determinado
momento de seu discurso, muitas vezes depois de o ter apren­
dido de cor. Numa forma menos rígida, esses lugares são en­
contrados em toda a retórica antiga. Assim, no discurso judi­
ciário, os lugares da peroração que concluem a acusação:

Se deixardes impune o seu crime, haverá multidões de imi­


tadores. Muitos esperam com impaciência o vosso veredicto.
(Chaignet, p. 1 32, e Navarre, p. 305)

Como lugares de amplificação, servem para persuadir os


juízes de que a causa ultrapassa a pessoa do réu, que ela com­
promete o futuro.
Um lugar das defesas modernas é o da infância infeliz, que
permite chamar à baila circunstâncias atenuantes. No século
XVII, servia, ao contrário, à acusação, pois via-se na inf'ancia
infeliz do acusado indícios de que ele sempre fora pervertido, e
que só poderia reincidir; essa não era uma prova de que ele era
escusável, mas ao contrário irrecuperável (cf. A. Kibedi-Varga,
1 970, p. 145).
No primeiro sentido, o lugar é, pois, um argumento-tipo,
cujo alcance varia segundo as culturas. São encontrados no dis­
curso epidíctico: os melhores são os que partem... ; também se­
rão vistos no discurso publicitário.
2) Em sentido mais técnico, o lugar já não é um argumen­
to-tipo, é um tipo de argumento, um esquema que pode ganhar
os conteúdos mais diversos. Por exemplo, o lugar do mais e do
menos:

Se ps deuses não são oniscientes, muito menos os homens.


Ele àate nos vizinhos, pois bate no pai. (Retórica, II, 1 397 b)

Ou, de modo positivo, todos os lugares do tipo:


52 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Quem pode o mais pode o menos. ( 1 392 a, b)

Altamente verossímil, esse lugar do mais e do menos está


longe de ser evidente, porém; como toda verossimilhança,
pode ser contestado. Seria incontestável se aplicado a realida­
des homogêneas, como por exemplo o dinheiro: quem pode dar
mil francos pode dar cem; mas isso não despertaria interesse. É
interessante quando se aplica a dados heterogêneos, como por
exemplo aos saberes e aos poderes; mas aí deixa de ser eviden­
te. Afinal, quem sabe menos talvez saiba coisa diferente de
quem sabe mais; o mesmo para o poder: uma enfermeira pode
coisas que um médico não pode, etc. Quem pode o mais não
pode necessariamente o menos.
Classicamente, dá-se a esses lugares o nome de "luga­
res-comuns", pois se aplicam a toda espécie de argumenta­
ção; no caso atual não passa de opinião banal expressa de mo­
do estereotipado, enquanto o lugar comum clássico é um es­
quema de argumento que se aplica aos dados mais diversos.
Tecnicamente, opõe-se ao lugar próprio, tipo de argumento
particular a um gênero de discurso. Assim os lugares judi­
ciários:

Considera-se que ninguém ignora a lei.


Uma lei não pode ser retroativa.

Note-se, aliás, que o segundo depende do primeiro; de fato,


uma lei retroativa aplica-se a pessoas que não poderiam conhe­
cê-la, pois ela não existia no momento em que essas pessoas
agiraml
3) No sentido mais técnico, o dos Tópicos, o lugar não é
um argumento-tipo nem um tipo de argumento, mas uma ques­
tão típica que possibilita encontrar argumentos e contra-argu­
mentos:

os lugares ( ... ) são como etiquetas dos argumentos, sob as quais


vamos buscar o que há para dizer num ou noutro sentido. (Cí­
cero, Orador, 46)
O SISTEMA RETÓRICO 53

Vejamos um exemplo simples: um estudante que precisa


fazer uma dissertação não sabe ainda se vai adotar um plano
por perguntas ou um plano por tese-antítese-síntese; o próprio
fato de interrogar-se assim só é possível através de um lugar: a
questão dos tipos de planos!
Esse terceiro sentido da palavra lugar é muito notado num
lugar próprio do gênero judiciário, o do estado da causa (stasis,
status). Suponhamos que alguém é processado por um crime: a
acusação e a defesa vão propor-se as mesmas perguntas, que a
antiga retórica sintetiza em quatro:
1 . Estado de conjectura: ele matou realmente?
2. Estado de definição: trata-se de crime premeditado, não
premeditado, de homicídio involuntário?
3. Estado de qualidade: supondo-se que seja admitido o
crime voluntário, quais são as circunstâncias que podem acusar
ou escusar o réu: motivo patriótico, religioso?
4. Estado de recusa, que consiste em perguntar se o tribu­
nal é realmente competente, se a instrução foi suficiente, etc.2
Naturalmente, o lugar no sentido de questão também pode
ser um lugar-comum, no sentido de que, sobre qualquer espé­
cie de assunto, podemos interrogar sobre o tipo de ser, os tipos
de causas, etc. Mas, no terceiro sentido, o lugar é sempre uma
questão que permite encontrar argumentos que sirvam à tese,
inventar as premissas de uma conclusão dada.
Esta exposição, que desejamos tão clara quanto possível,
ficará incompleta se não considerarmos o que se tomou o lugar
depois de Aristóteles: termo abrangente que se aplica aos dados
mais heteróclitos. Assim, na retórica medieval, teremos topai,
espécies de trechos esperados e até obrigatórios, como o lugar
da modéstia afetada; o lugar do puer senilis, da criança ajuiza­
da como um velho; o lugar da paragem agradável, da paisagem
paradisíaca; o lugar dos impossíveis:

O fo�o queima dentro do gelo,


O soíficou negro. (Théophile de Viau)

Lugar que se encontra nos panfletos: teremos visto tudo!


54 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Existem igualmente lugares metafisicos, lugares teológi­


cos (a autoridade da Escritura e dos concílios), lugares risí-
veis... 3

Finalmente, lugar é tudo o que possibilita ou facilita a in­


venção, mas que, por isso mesmo, a nega, pois uma invenção
deixa de sê-lo à medida que se torna fácil!

Observações sobre a invenção

Na realidade, a própria noção de invenção pode parecer­


nos muito ambígua. De fato, ela se situa entre dois pólos opos­
tos. Por um lado, é o "inventário", a detecção pelo orador de
todos os argumentos ou procedimentos retóricos disponíveis.
Por outro, é a "invenção" no sentido moderno, a criação de ar­
gumentos e de instrumentos de prova; até o etos, explica Aristó­
teles, a confiança inspirada pelo orador, deve ser "obra de seu
discurso" ( 1356 a); em outras palavras, o importante não é o
caráter que ele já tem, e que o auditório conhece, mas é o cará­
ter que ele cria.
Invenção inventário, que hoje se poderia deixar a cargo de
um computador, ou invenção criação? Na realidade, talvez se­
jamos nós que criamos uma oposição onde os antigos não a
viam. Não imaginavam criação ex nihilo, e achavam que qual­
quer invenção é feita, por um lado, a partir de materiais dados
(lugares extrínsecos) e por outro de regras mais ou menos estri­
tas (lugares intrínsecos); mas achavam tá'mbém que com ela a
criatividade do orador, longe de desvanecer-se, afirma-se ainda
mais. Originalidade, sim, mas como fruto da arte, ou seja, de
uma prática e de um ensino.

Disposição ("taxis")

Para definir com outros termos, a retórica apresenta-se


como um código a serviço da criatividade. E esse duplo aspec­
to se encontra em suas outras partes, mais propriamente estéti­
cas e literárias que a invenção.
O SISTEMA RETÓRICO 55

A disposição, em si, é um lugar, ou seja, um plano-tipo ao


qual se recorre para construir o discurso. A retórica clássica
quase não fala da disposição do discurso judiciário. Em que
pode ela nos interessar? Unicamente pela(s) função(ções) de­
sempenhada(s) por cada uma de suas partes.
Os autores propuseram diversos planos-tipo, que iam de
duas a sete partes. Ficaremos com o mais clássico, em quatro
partes: exórdio, narração, confirmação e peroração.

Exórdio ("prooimion ", proêmio)

Exórdio é a parte que inicia o discurso, e sua função é es­


sencialmente fática: tornar o auditório dócil, atento e benevo­
lente.
Dócil significa em situação de aprender e compreender; por
isso, é preciso fazer uma exposição clara e breve da questão que
vai ser tratada, ou ainda da tese que se vai tentar provar.
Atento: nesse ponto os antigos multiplicavam procedi­
mentos -dizer que nunca se ouviu nem viu nada de tão espan­
toso ou de tão grave -, procedimentos infladores, pois os juízes
deviam ficar bem cansados com eles! Aliás -observa Aristóte­
les -, o exórdio é o momento do discurso que exige menos
atenção; nas partes seguintes, ao contrário, a atenção tende a
relaxar-se, sendo preciso renová-la.
Benevolente: é aí que o etos assume toda a sua impor­
tância. Um dos lugares mais correntes consistia em escusar-se
da própria inexperiência e em louvar o talento do adversário
(cf. Navarre, pp. 223 s.)
A retórica do exórdio se aplica aos outros gêneros de dis­
curso? Aristóteles afirma que o deliberativo quase não precisa
do exórdio, pois o auditório já sabe do que se trata. Quanto ao
epidícti_ço, o exórdio consiste em fazer o auditório sentir que
está pes:oalmente implicado no que se vai dizer, em incluí-lo
no fato (cf. Retórica, 1 4 1 5 b).
A retórica do exórdio consiste às vezes em suprimi-lo,
em ir direto ao que interessa. Assim, o célebre ex abrupto
56 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

de Cícero: "Até quando, Catilina, vais abusar da nossa pa­


ciência?"
Hoje em dia, completaremos essa teoria do exórdio com
duas considerações. Primeiro, a fala improvisada, sobretudo
em lugar público, quando a intervenção não é programada: é
preciso toda uma arte para fazer-se admitir, ou seja, ouvir. De­
pois, o discurso escrito: um livro deve captar a benevolência já
na primeira página; se deve, como?

Narração ("diegésis ) "

A narração é a exposição dos fatos referentes à causa, ex­


posição aparentemente objetiva, mas sempre orientada segun­
do as necessidades da acusação ou da defesa. O fato é que, se
não for objetiva, deverá parecer. E é na narração que o logos
supera o etos e o patos. Para ser eficaz, deve ter três qualida­
des: clareza, brevidade e credibilidade.
Como ser claro? Ao mesmo tempo pelos termos emprega­
dos e pela organização do texto, de preferência cronológica,
mas recorrendo às vezes aos retornos, aosjlash-backs .

Como ser breve? Eliminando tudo o que seja inútil, todos


os fatos anteriores ao caso, todas as circunstâncias que não
esclareçam nada, mostrando que no fundo tudo leva àquilo. . .
Como ser crível? Enunciando o fato com suas causas,
sobretudo se o fato não for verossímil; mostrando que os atos
se afinam com o caráter de seu autor, com tudo o que se sabe
dele: ·)

Conselhos especiais para narrações falsas: cuidar para que


tudo o que se inventa seja possível e não seja incompatível nem
com a pessoa, nem com o lugar, nem com o tempo; vincular, se
cabível, a ficção a algo de verdadeiro; evitar cautelosamente
qualquer contradição ( ... ) e não forjar nada que possa ser refuta­
do por uma testemunha. (O. Navarre, pp. 248-249)

Na verdade, basta refletir nas regras da narração falsa para


ver que são as mesmas da verdadeira; no primeiro caso, só é
preciso aplicá-las de maneira mais estrita.
O SISTEMA RETÓRICO 57

É evidente que a maneira de apresentar os fatos já é, em si,


um argumento.
O que acontece com a narração nos outros dois gêneros?
No deliberativo - diz Aristóteles - ela quase não tem razão de
ser, pois es�e discurso trata do futuro; no máximo, pode forne­
cer exemplos. No epidíctico, ao contrário, é tão importante que
há interesse em dividi-la segundo as questões: os fatos que ilus­
tram a coragem, os que ilustram a generosidade, etc.
Na Idade Média vai constituir-se uma nova retórica da
narração; desliga-se do gênero judiciário, mas insere-se na da
pregação, com os exempla, histórias geralmente fictícias que
ilustram o tema do sermão. Hoje em dia a publicidade e, princi­
palmente, a propaganda utilizam narrações breves, também a
título de exemplos.

Confirmação ("pistis )"

Em seguida vem uma parte nitidamente mais longa, a con­


firmação, ou seja, o conjunto de provas, seguido por uma refu­
tação (confutatio), que destrói os argumentos adversários.
Com a invenção, vimos os dois grandes tipos de argumen­
tos, o exemplo e o entimema. Convém precisar que a amplifi­
cação, própria do gênero epidíctico, pode também servir à con­
firmação judiciária; como dirá Cícero, ela permite ampliar o
debate, remontar da "causa" à "questão" (thésis) que lhe está
subjacente; assim, além dessa traição, propor o problema da
confiança, da pátria, etc. (cf. Do orador, 46).
Tempo forte do logos, a confirmação recorre, porém, ao
patos, despertando piedade ou indignação.
Note-se, com O. Navarre, que a confirmação nem sempre
está separada da narração. Nos oradores clássicos do século.
IV (Iseu, Isócrates, Demóstenes), acontece de o discurso intei­
ro apresentar-se como uma única narração, em que cada se­
qüência constitui uma prova. Assim, em Eginética, defesa de
um herdeiro cuja herança é contestada por uma parenta, Isó­
crates expõe os fatos passados, mostrando sucessivamente três
58 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

coisas: 1 ) o testamento é legal; 2) é justo, e Isócrates prova isso


narrando os inumeráveis serviços prestados pelo herdeiro ao
defunto; 3) ele tem bons sentimentos, pois respeita os legíti­
mos interesses da família4•
Em suma, narração e confirmação são duas tarefas que o
orador deve cumprir, mas nada o obriga a realizá-las sucessiva­
mente. Quintiliano dirá, aliás (II, 1 3 , 7), que impor um plano­
tipo ao orador é tão estúpido quanto impor uma estratégia-tipo
a um general! No fundo, pouco importa em que ordem o gene­
ral e o orador atingem seus objetivos, o importante é que os
atinjam.
Existe uma outra questão no que se refere à confirmação:
é a da ordem dos argumentos. Deve-se começar pelos mais fra­
cos e acabar pelos mais fortes? Nesse caso, há o risco de cansar
o auditório. Optar pela ordem inversa? Mas o auditório não
entenderá bem, achará que estão sendo queimados cartuchos à
toa, esquecerá a força dos primeiros argumentos. Cícero, em
Do orador (II, § 3 1 3), preconiza a ordem "homérica", que con­
siste em começar pelos argumentos fortes, continuar com os
mais fracos e terminar com outros argumentos fortes. Mas esse
plano supõe que o orador tem um número suficiente de argu­
mentos fortes para reparti-los assim.
Perelman-Tyteka (TA, p. 66 1 ) afirmam que a força de um
argumento é uma noção relativa, pois um argumento é mais ou
menos forte em função dos que o precederam. Portanto, parte­
se de um argumento cuja força não dependa da dos outros; ou
ainda de um contra-argumento que refute uma objeção que
pese sobre qualquer argumento possível, �orno por exemplo a
)
afirmação de que o orador é desonesto e venal, o que toma
suspeito tudo o que ele disser. Em nossa opinião, convém con­
testar a própria idéia da pluralidade de argumentos; cada dis­
curso só teria um único argumento capaz de conquistar a deci­
são, e os outros não passariam de maneiras diferentes de apre­
sentar ou não seriam mais que contra-argumentos que respon­
deriam às objeções possíveis. Assim, remetemos à dupla argu­
mentação de Aristóteles em Retórica, 1, 1 5 (cf. supra, p. 50).
Nos dois casos, desenvolve-se um argumento único apresen-
O SISTEMA RETÓRICO 59

tando diversos aspectos seus e refutando os argumentos con­


trários.
Se nos ativermos à ordem "homérica'', teremos o seguin­
te: 1 ) apresentação do argumento; 2) refutação dos contra-ar­
gumentos; 3) retomada do argumento com nova forma.
Essa tese do argumento único é provada a contrario: um
discurso que acumula argumentos diferentes, sem nexos entre
-
si, parecerá estar lançando mão de qualquer expediente, por­
tanto ser de má-fé.
Note-se que, em Roma, a confirmação freqüentemente
era seguida por uma altercação, breve debate com a parte ad­
versária.

Digressão (''parekbasis ") e peroração ("epílogos ")

No discurso judiciário, prevê-se um momento de "relaxa­


mento'', a digressão, trecho móvel, "destacável", como diz
Roland Barthes, que se pode colocar em qualquer momento
do discurso, mas de preferência entre a confirmação e a pero­
ração.
Narrativa ou descrição viva (ekphrásis), a digressão tem
como função distrair o auditório, mas também apiedá-lo ou
indigná-lo; pode até servir de prova indireta quando feita como
evocação histórica do passado longínquo. Hoje em dia, esse
termo tornou-se pejorativo. Os professores, em particular, es­
tigmatizam a digressão, ainda que a utilizem à vontade em suas
aulas, aliás de pleno direito5•
A peroração é o que se põe no fim do discurso. Aliás, po­
de ser bastante longa e dividir-se em várias partes. Mencione­
mos as principais.
1) Amplificação (auxese, importada do gênero epidícti­
co. Se o acusador, por exemplo, tiver mostrado a realidade do
delito; itisistirá então em sua gravidade, mostrará que é vital
para a cidade castigar o culpado de maneira exemplar, ao pas­
so que absolvê-lo seria incitar outros a imitá-lo (cf. Navarro,
pp. 307 s.).
60 INTRODUÇÃO Â RETÓRICA

2) Paixão, trecho que visa a despertar piedade ou indigna­


ção no auditório. Assim, a apóstrofe de Cícero a Verres:

Se teu pai houvera de julgar-te, grandes deuses, que pode­


ria ele fazer? (in Quintiliano, VI, 1 , 3)

3) Recapitulação (anacefaleose), que resume a argumen­


tação. Notemos que uma conclusão não deve constituir um no­
vo argumento, pois nesse caso não passaria de uma parte a
mais, e o discurso careceria de unidade.
Note-se, enfim, que a peroração é o momento por exce­
lência em que a afetividade se une à argumentação, o que cons­
titui a alma da retórica.

Por que a disposição?

O plano antigo do discurso judiciário é muito particular,


mas nos apresenta o problema da utilidade da disposição: afi­
nal, por que fazer um plano? A nosso ver, por três razões.
A disposição tem primeiramente uma função econômica:
permite nada omitir sem nada repetir; em suma, possibilita que
o orador "se ache" a cada momento do discurso.
Depois, quaisquer que sejam os argumentos que organize, a
disposição é em si mesma um argumento. Graças a ela, o orador
faz o auditório encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que esco­
lheu, conduzindo-o assim para o objetivo que propôs. Essa metá­
fora do caminho é confirmada por termos como "preâmbulo"
(sinônimo de exórdio) ou "digressão" (desvio do rumo).
Finalmente, a disposição tem funçãb heurística, por per­
mitir interrogar-se metodicamente. Pois, em suma, o que é fa­
zer um plano? É formular-se uma série de perguntas distintas,
constituindo cada uma delas uma parte ou uma subparte. Saber
fazer um plano é saber fazer-se perguntas e tratá-las uma após
outra, agindo de tal modo que cada uma delas nasça da respos­
ta precedente. É por isso que acreditamos - talvez de acordo
com os antigos - que o verdadeiro plano, o plano orgânico, só
aparece após a redação, a elocução.
O SISTEMA RETÓRICO 61

Elocução ("léxis")

A elocução, em sentido técnico, é a redação do discurso. Das


quatro partes da retórica, diz-nos Cícero6 que esta é a mais pró­
pria ao orador, aquela em que ele se exprime como tal. Tese esta
que vale para toda produção literária: faço um livro; posso ter
muitos conhecimentos e muitas idéias, um plano magnífico, mas
meu livro nada será enquanto eu não o tiver escrito; e, quem sabe
se, uma vez escrito, não exibirá outras idéias e plano bem diferen­
te do que eu tivera no início? O verdadeiro salto criador está entre
a obra escrita e aquilo que a prepara.

Língua e estilo: uma artefuncional

A elocução é, pois, o ponto em que a retórica encontra a


literatura. Todavia, antes de ser uma questão de estilo, diz res­
peito à língua como tal. Para os antigos, o primeiro problema
da elocução é o da correção lingüística. O orador deve pôr-se a
serviço, ou melhor, sentir-se responsável por aquilo que os gre­
gos chamavam de to hellenizein, os latinos de latinitas, e que
traduziríamos por "bom vernáculo". Naquelas culturas, em que
o ensino ainda estava pouco desenvolvido, as exigências da
arte oratória fixaram a língua como instrumento indispensável
para quem se quisesse fazer entender por todos. Hoje em dia
também, quem quiser persuadir o grande público não poderá
permitir-se incorreções nem preciosismos, salvo em ocasiões
muito precisas.
A retórica foi a primeira prosa literária e durante muito
tempo permaneceu como a única; por isso, precisou distinguir­
se da poesia e encontrar suas próprias normas. Por quê? Afinal,
um discurso poético pode ser perfeitamente convincente. Só
que a poesia grega utilizava uma língua arcaizante, bastante
esotéri�ª• e seus ritmos a aproximavam muito do canto. Portan­
to, era preciso recorrer à prosa, mas a uma prosa digna de riva­
lizar com a poesia. Em suma, entre o hermetismo dos poetas e
o desmazelo da prosa cotidiana, a prosa oratória devia encon­
trar suas próprias regras.
62 INTRODUÇÃO Â RETÓRICA

Estas7 diziam respeito à escolha das palavras e à constru­


ção das frases, o que produzia um discurso ao mesmo tempo
correto e bonito; mas será mesmo que essas coisas são diferen­
tes? Para os antigos, parece que correção e beleza não eram
separáveis. De qualquer modo, o fato é que a prosa oratória
deve distinguir-se ao mesmo tempo da poesia e da prosa vul­
gar. Para isso: escolher as palavras no vocabulário usual, evi­
tando tanto arcaísmos quanto neologismos; utilizar metáforas e
outras figuras, desde que sejam claras, ao contrário das dos
poetas; evitar qualquer frase métrica, como os versos dos poe­
tas, e qualquer frase arrítmica, para encontrar frases com ritmo
flexível e sempre a serviço do sentido.
Portanto, a retórica criou uma estética da prosa, uma esté­
tica puramente funcional, da qual tudo o que é inútil é excluí­
do, em que o mínimo efeito de estilo se justifica pela exigência
de persuadir, em que qualquer artificio gratuito engendra pre­
ciosismo ou vulgaridade.
O que conservar dessas considerações sobre o estilo? A
nosso ver, três pontos, que correspondem respectivamente aos
três pólos do discurso: assunto, auditório e orador.
O melhor estilo, ou seja, o mais eficaz, é aquele que se adap­
ta ao assunto. Isso significa que ele será diferente conforme o
assunto. Os latinos distinguiam três gêneros de estilo: o nobre
(grave), o simples (tenue) e o ameno (medium), que dá lugar à
anedota e ao humor. O orador eficaz adota o estilo que convém a
seu assunto: o nobre para comover (movere), sobretudo na pero­
ração; o simples para informar e explicar (docere), sobretudo na
narração e na confirmação; o ameno para agradar (delectare),
sobretudo no exórdio e na digressão. A primeira regra é, portan­
to, o da conveniência (prepon, decorum)8•
:)

Estilo Objetivo Prova Momento do discurso

nobre = grave comover = movere patos Peroração (paixão),


digressão
simples = tenue explicar = docere logos Narração, confirmação,
recapitalução
ameno = medium agradar = delectare etos Exórdio, digressão
O SISTEMA RETÓRICO 63

A segunda regra é a da clareza, em outras palavras, a


adaptação do estilo ao auditório. Pois a clareza é relativa: o
que é claro para um público culto pode parecer obscuro para
quem é menos culto e infantil para especialistas. Ser claro é
pôr-se ao alcance de seu auditório concreto. Agora, será pos­
sível falar de clareza em si? Em todo caso, pode-se falar da
obscuridade em si: a do discurso que nenhum auditório pode
realmente penetrar, visto que seus termos e sua construção
padecem de ambigüidade intrínseca. Certos oradores, em ma­
téria de política, diplomacia, publicidade, utilizam essas
ambigüidades para esquivar-se aos problemas mais embara­
çosos ou então para conjugar públicos diversos. Admitindo­
se que a honestidade permite esse tipo de manobra, ainda cum­
pre que ela seja consciente, que a obscuridade seja decorrente
de uma decisão, e não, como quase sempre acontece, da im­
potência. Quanto ao resto, fiquemos com estas palavras de
Quintiliano:

A primeira qualidade da fala é a clareza, e quanto menos


talento se tem, maior é o esforço para guindar-se e inflar-se,
assim como os nanicos que se alevantam nas pontas dos pés.
(II, 3, 8)

A terceira regra diz respeito ao próprio orador, que deve


mostrar-se em pessoa no seu discurso, ser colorido, alerta, di­
nâmico, imprevisto, engraçado ou caloroso, numa palavra:
vivaz. Essa regra da vivacidade tomamos de empréstimo a um
pastor retórico do século XVIII, G. Campbell, que a expõe com
o termo vivacity. Para ser vivaz, é preciso observar regras de
estilo bem precisas. Primeiro, a escolha das palavras, sempre
que possível concretas: deve-se preferir "fonte" a "origem",
"aqui jaz Alexandre" a "aqui jaz o corpo de Alexandre". De­
pois, o ritmo das palavras, ao qual voltaremos. Finalmente, a
brevida�, que constitui a força das máximas:

Todos querem viver muito, mas ninguém quer viver velho.


(Swift, citado, p. 337)
64 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Em suma, não só se fazer entender, mas também fazer-se "sa­


borear" (relish, p. 23 7).
Essas regras, porém, não passam de linhas gerais: evitar
ser redundante, inutilmente abstrato, etc. O sabor do discurso
não se ganha com regra alguma; quem o faz é o autor.
A vivacidade é capital para o etos, pois ela toma o discur­
so marcante, agradável, cativante; e, principalmente, confere­
lhe o indispensável cunho de autenticidade. O verdadeiro estilo
é o do discurso onde é possível encontrar o seu autor.

Figuras ("schemata ') e o problema do desvio


'

Campbell demonstra que a vivacidade depende das figu­


ras. O Evangelho, em vez de dizer os reis mais gloriosos, em­
prega uma personificação: "Salomão em toda a sua glória . . .", o
que é bem mais vivaz.
Durante muito tempo os antigos trataram as figuras como
meios de exprimir-se de modo marcante, com encanto e emo­
ção. Tentaram classificá-las, mas não chegaram a entender-se
(nem nós, aliás). Fiquemos com a classificação mais simples, a
de Cícero, que distingue as figuras de palavras, como o trocadi­
lho e a metáfora, das figuras de pensamento, como a ironia ou a
alegoria. Voltaremos a falar mais detidamente sobre as diversas
figuras.
Por enquanto, proporemos a questão de saber se é possível
definir figura sem introduzir a noção de desvio, como por
exemplo na metáfora: desvio do sentido derivado em relação
ao sentido próprio. A teoria do desvio conheceu seu momento
de glória nos anos 60, quando ele foi tão inchado que chegou a
significar toda a retórica. Os retóricos da época, sobretudo J.
Cohen, Roland Barthes e o Grupo MU, limitavam a retórica ao
estudo das figuras de estilo, que definiam�omo um desvio em
relação à norma, ao "grau zero", e portanto reduziam retórica a
desvio ...
No entanto, mesmo que se possa definir a figura como
desvio, o que ainda precisa ser provado, parece totalmente abu-
O SISTEMA RETÓRICO 65

sivo transformá-la no traço distintivo da retórica. Dirão que o


latim de Cícero constitui um desvio em relação à língua latina?
Na verdade, a retórica não se reduz a figuras, que só consti­
tuem uma parte de uma parte de uma de suas partes.
Pois bem, cumpre definir as próprias figuras como des­
vios? À primeira vista, sim. A metáfora desvia-se do sentido
próprio, substituindo o significado por um outro que lhe é se­
melhante; assim também a ironia, que substitui o significado
por um que lhe é contrário:

- esse leão, por esse homem valente = metáfora;


- esse leão, por esse homem covarde = ironia.

Aliás, os clássicos definiam figura como desvio, desde


Aristóteles, que dizia da metáfora: "é para atingir maior grande­
za que ela se afasta (exallattai) daquilo que convém" (Retórica,
III, 1404 b), até Quintiliano, que explica o prazer (delectatio)
proporcionado pelas figuras, por terem o "mérito manifesto de
afastar-se do uso corrente" (II, 13, 1 1), e precisa: "a figura seria
um erro se não fosse intencional" (IX, 3, 2).
O fato é que, mesmo limitado à figura, a noção de desvio
apresenta um problema triplo.
Em primeiro lugar, desvio em relação a quê? Que "nor­
ma" é essa, esse "grau zero" da qual a figura se desviaria: o có­
digo lingüístico, digamos, o vernáculo? Não vemos que ele
proíba figuras. A lógica? Mas não é a lógica que rege a língua:
sol é feminino em alemão, o inverso para a lua; nenhuma "lógi­
ca" nisso, seja em alemão, seja em português. O sentido primi­
tivo, etimológico? Veremos quanto essa noção é ideológica, ou
mesmo mítica; ademais, utilizar um termo em sentido arcaico
- por exemplo, húmile para o que está no chão - já é uma figu­
ra. O uso normal, ou seja, o modo como todos falam? Mas
todos falam com muitas incorreções, por um lado, e por outro
com muitas figuras, portanto com desvios. O discurso funcio­
nal dos�ientistas? Esse de fato é o ponto de vista de J. Cohen,
que compara os textos dos escritores e dos poetas com um gru­
po-controle, formado por textos de autores científicos do fim
do século XIX; mas nos custa enxergar como esses textos, tra-
66 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

balhados para adaptar-se ao assunto de que tratam, seriam mais


"normativos" ou mais "normais" que os dos escritores.
Na realidade, a noção de desvio é relativa; um discurso se
desvia de outro discurso em função de seus objetivos, de seus
públicos e de seus gêneros respectivos, sem que nenhum deles
constitua norma absoluta. Assim também: é um desvio ir a uma
recepção noturna em traje de praia, mas também é desvio ir à
praia em traje de gala.
Mas não se pode dizer simplesmente que a figura se desvia
do sentido próprio? Por certo, mas isso só vale para algumas,
não para as figuras de palavras ou para as de construção (cf. cap.
VI). E, principalmente, o sentido próprio é realmente a norma?
A teoria do desvio considera a figura como dupla operação: a) o
autor propõe um enunciado que se desvia da norma, esse leão,
b) que o receptor descodifica voltando à norma, "esse bravo".
Mas, ou se trata de uma operação com resultado nulo, e não
teria nenhum interesse além do prazer inegável de fazer buracos
para tapá-los, ou se trata de uma operação positiva, mas que
implica então que a figura diz mais do aquilo com que é traduzi­
da, seu pretenso sentido próprio.

Já não há Pireneus.

Se traduzido por: Já não há fronteiras (entre França e Espanha),


perde-se algo de essencial. A figura confere um sentido extra.
Um último problema, para nós essencial, é saber se a defi­
nição de figura como desvio permite explicar seu poder per­
suasivo. De fato, se a figura é percebida pelo auditório como
desvio, é aí que não dá certo. Ela pode ser considerada pesada
ou poética, engraçada ou não, mas não funciona. A figura efi­
caz pode ser definida como algo que se desvia da expressão
banal, mas precisamente por ser mais rica, mais expressiva,
mais eloqüente, mais adaptada, numa palavra mais justa do
que tudo que a poderia substituir. E, �e fizermos questão de
falar em desvio, é a figura, a figura bem-sucedida, que consti­
tui a norma.
O SISTEMA RETÓRICO 67

Ação ("hypocrisis")

A ação é o arremate do trabalho retórico, a proferição do


discurso. É essencial porque, sem ela, o discurso não atingiria
o público. Sua função, diria Jakobson, é acima de tudo fática.
Ao lhe perguntarem qual é a primeira qualidade do orador,
Demóstenes respondeu: a ação; e a segunda: a ação; e a tercei­
ra: a ação (Brutus, 142) ...

Uma "hypocrisis " sem hipocrisia

Ação, que em grego é hypocrisis, no início, antes de ad­


quirir sentido pejorativo, significava a interpretação do adivi­
nho, depois a interpretação do ator, a ação teatral. Assim como
o hipócrita, o autor finge sentimentos que não tem, mas sabe
disso, e seu público também. Assim também o orador: pode
exprimir o que não sente, e sabe disso; mas não pode informar
seu público, ou destruiria seu discurso. O ator que finge bem é
um artista; o orador que finge bem seria um mentiroso. . .
O fato é que o orador sincero não pode deixar de "repre­
sentar" segundo regras semelhantes às do ator. Se renunciasse
a isso, se abandonasse a hypocrisis, trairia sua mensagem. A
ação, diz Cícero, "faz o orador parecer aquilo que quer pare­
cer" (Brutus, 142).
Seja sincero ou não, precisa dela.
Quanto a isso, os oradores antigos eram vezeiros... che­
gando - diz Quintiliano (XIII, 3, 59) - a "cantar" suas defesas.
Aliás, o mesmo Quintiliano dedica todo o capítulo 3 de seu
livro IX à ação, não só ao trabalho da voz e da respiração, mas
também às mímicas do rosto, à gestualidade do corpo; tudo se
inclui: ombros, mãos, tórax, coxas ... que é preciso pôr a servi- ·
ço das diversas paixões que é preciso exprimir9•
Issó '� tem interesse histórico. O conteúdo da ação hoje é
mais simples e flexível. Mas a ação continua sendo indispensá­
vel, aliás mais que nunca, numa época em que o discurso oral,
graças aos meios de comunicação de massa, readquiriu impor-
68 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

tância capital. Certas regras antigas permanecem, como a im­


postação da voz, o domínio da respiração, a variedade do tom e
da elocução, regras sem as quais o discurso não passa.
Outras regras dizem respeito à conveniência, aqui adapta­
ção do discurso ao canal. Nos anos 30, os oradores políticos
forçavam a voz diante do microfone, embora este permitisse
justamente utilizar voz suave, calma e descontraída. Em todo
caso, a dicção sempre faz parte da retórica.

O problema da memória

Pois bem, como eram proferidos os discursos: eram lidos,


proferidos a partir de notas, de improviso? Parece que, para os
antigos, começava-se aprendendo de cor. Donde a importância
da memória (mnemé), que para certos autores latinos constituía
a quinta parte da retórica: a arte de memorizar o discurso.
Para Cícero (Brutus, 140, 2 1 5, 3 0 1 ), isso é uma aptidão
natural, não uma técnica; portanto, não pode ser parte da retóri­
ca. Para Quintiliano, ao contrário, a memória não só é um dom
como também uma técnica que se aprende (cf. XI, 2,passim); e
indica processos mnemotécnicos, como decompor o discurso
em partes, que serão memorizadas uma após outra, associando
a cada uma um sinal mental para lembrar de proferi-la no mo­
mento certo: uma âncora para o trecho sobre o navio, um dardo
para o trecho sobre o combate (29). Mas, além desses "truques",
faz três observações essenciais.
Primeiro, a memória depende antes de mais nada do esta­
do fisico: para lembrar-se é preciso ter dormido bem, estar com
boa saúde, etc.
Depois, um discurso é fácil de memorizar por sua estrutu­
ra (ordo), ou seja, por sua coerência, pelo encadeamento lógico
de suas partes, pela eurritmia de suas fr�s.
Finalmente, é "dominando" o discurso que temos mais con­
dições de ajustar-nos às objeções e de improvisar. Portanto,
em vez de se opor à criatividade, a memória é fator essencial
para ela.
O SISTEMA RETÓRICO 69

O problema do escrito e do oral

O que apresenta outro problema: a relação entre o discur­


so escrito e o oral. Ao lermos os antigos retores temos a im­
pressão de que para eles o discurso é essencialmente escrito, e
que o problema da ação é unicamente de "interpretá-lo", assim
como um pianista interpreta uma sonata, portanto de pronun­
ciá-lo com clareza e vivacidade depois de o ter redigido e me­
morizado. É verdade que as peripécias do debate político e ju­
diciário obrigariam a improvisar (aliás, os discursos publicados
dos oradores antigos foram reescritos), mas pouco importa:
eles não parecem ter pensado num estilo específico do discurso
oral, talvez porque a língua falada estivesse longe demais da
língua escrita.
Para nós, o discurso oral deve ser bem mais lento que uma
leitura, ou o auditório perderia o fio da meada. Deve ser redun­
dante, para suprir a memória. Finalmente, o mais importante, a
língua não é exatamente a mesma: exige frases mais curtas,
expressões mais concretas e familiares, ou então o discurso
parecerá artificial. Concretamente, fala-se evitando a forma sin­
tética do futuro, substituindo mesóclises e até ênclises por pró­
clises, usando "pra" em vez de "para", dizendo "acho" em vez
de "acredito". Quintiliano, que pode ser muito "moderno", acon­
selha o orador a:

cuidar principalmente de fazer que sejam ouvidos como descon­


traídos desdobramentos muito cerrados, e a dar às vezes a im­
pressão de estar refletindo, hesitando, buscando aquilo que foi
levado bem pronto. (XI, 2, 47)

Ninguém fala "como livro", mas como gente.

Mostrar que a retórica é um sistema é mostrar que ela tem


um sentioo ao mesmo tempo rico e preciso. Toda a seqüência
deste livro sustenta a tese de que é possível utilizar a retórica
sem fazer referência a esse sistema, que na verdade constitui
uma das chaves da nossa cultura.
Capítulo IV
Do século I ao XX

De que forma os séculos foram enriquecendo o sistema


retórico? Também aqui convém deixar claro que não tentamos
traçar uma história da retórica nem um panorama. Limitamo­
nos a lembrar alguns grandes problemas, que foram surgindo
em diferentes épocas, desde Cícero até nós.

Período latino

Depois de Isócrates e Aristóteles, a retórica se instala na


cultura grega helenística como disciplina essencial, tão impor­
tante quanto para nós a matemática. Os romanos também ade­
rirão, assimilando-a. Como?

Forma efundo: pintura e cores verdadeiras

Aqui nos limitaremos a mencionar as obras axiais: Do


orador, de Cícero, completada por O orador, 55 e 46 a.C., e
Instituição oratória, de Quintiliano, escrita provavelmente em
93 d.C. Essas obras constituem admiráveis tratados de retórica,
escritos por praticantes. Note-se que, ao contrário dos gregos,
os romanos tinham advogados; que não tinham o direito de ser
pagos, mas tinham um consolo: eram ressarcidos com presen­
tes. Cíeéro e Quintiliano foram ambos grandes advogados que,
em seus livros, "teorizaram" sobre sua prática.
A primeira tarefa da retórica latina foi traduzir os termos
gregos. Por exemplo, metáfora em Cícero transforma-se em
72 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

tralatio, epidíctico é demonstrativum. Tekhné rhetoriké será


chamada de ars oratoria, ou rhetorica. Significativo: a palavra
grega rhetor terá duas traduções: orator, que é o executante, o
fazedor de discursos, e rhetor, que é o professor, geralmente
grego.
Essa dualidade apresenta um problema de fundo, o do pa­
pel da técnica na eloqüência. Pois o retor ensina uma técnica,
com seus lugares, seus planos-tipo, suas figuras. Mas a verda­
deira eloqüência tem a ver com receitas? Não, responde Cícero;
se ela é autêntica, ocorre naturalmente no orador, desde que ele
seja dotado, experiente e culto, ou seja, instruído em todas as
áreas essenciais: direito, filosofia, história, ciências. As receitas
retóricas, os "truques" para se impor são ineficazes.
O estilo também nada tem de artificial; longe de ser um
ornamento aplicado ao discurso, decorre naturalmente do ftm­
do. A escolha das palavras (electio), a composição das frases,
as figuras, o ritmo - principalmente o ritmo - são expressões
naturais do que se tem para dizer, e tudo o que soa artificial deve
ser riscado:

Se houver nobreza nas próprias coisas de que se fala, das


palavras brotará uma espécie de fulgor natural. (Do orador,
III, 125)

E o homem culto que tem algo para dizer não precisa dos cur­
sos de expressão dos retores. É por isso que Cícero chama as
figuras de estilo de lumina, pois elas trazem a lume o que que­
remos dizer (cf. O orador, 85, 95, 1 34). O discurso para ele é
um organismo vivo cujas partes desempenham todas um papel;
portanto, se forem aplicados ornamentos, eles não passarão de
"pintura", enquanto o que conta é o "colorido da pele", sinal de
boa saúde1•
Então é melhor renunciar à retórica? Não, pois a ausência
de retórica, em vez de significar sinceridade, não passa de inap­
tidão, incapacidade para exprimir-se e convencer. Portanto, uma
retórica, e que seja ensinada. Mas trata-se de um ensino em pro­
fundidade, que pega o homem desde a infància e forma-o na­
quilo que os gregos chamam de Paideia, traCfuzido magnifica-
DO SÉCULO I AO XY 73

mente por Cícero como humanitas, nossa cultura geral. Só ela


permite exprimir-se de modo justo e apropriado, elevar o debate
da causa à thésis, do caso particular à questão geral subjacente.
Por exemplo, o advogado, ao pedir o castigo do réu, elevar-se-á,
tomando considerações históricas em apoio, aos problemas da
defesa social, da exemplaridade do castigo, etc.

Retórica e moral

O mesmo se aplica a Quintiliano que, no apogeu do Impé­


rio, retoma de modo mais sistemático as idéias de Cícero. Ele
também considera a retórica como arte funcional, que exclui
tudo o que seja inútil, arte que procede do mesmo espírito dos
aquedutos romanos e da disciplina legionária. O estilo deve seu
brilho à função, analogamente ao brilho das armas da legião
em ordem de batalha (cf. X, 1 , 29). A arte oratória, portanto,
em vez de criar "desvio" permite atingir a expressão mais jus­
ta, e nosso pretenso "grau zero" do discurso "normal" para
Quintiliano não passaria de inaptidão, desjeito, incultura, "gar­
rulice improvisada"2•
Inversamente, retórica é sinônimo de cultura, e a Institu­
tio oratoria, "Formação do orador", apresenta-se como um
tratado completo de educação a partir da primeira infância,
que possibilita classificar seu autor, sem muito anacronismo,
como pedagogo. Não entraremos no mérito de seus conselhos
notáveis, muitas vezes bem atuais, como o de sempre levar o
aluno a propor-se questões. Diga-se que ele abre o campo do
ensino retórico, por nele incluir a gramática, como explicação
dos textos, e a dialética, como técnica de argumentação (cf. II,
2 1 , 1 2). Porém o mais importante, como educador, é que ele se
esforça por reconciliar a retórica e a ética, que Aristóteles ha­
via separado.
Quamfo define a retórica como scientia bene dicendi, arte
de bem falar (II, 1 5 , 5; 1 6, 38), a palavra "bem" para ele tem
sentido não só estético como também moral. A quantos censu­
ram a retórica por persuadir tanto do pior quanto do melhor,
74 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Quintiliano responde que não se pode atribuir "o nome de o


mais belo dos oficios a quem aconselhe perversidades" ( 1 5,
1 7), e chega a dizer:

Onde houver causa injusta, não haverá retórica. (II, 17, 3 1)

Em suma, ela não só é uma arte, mas uma virtude. E, à acusa­


ção de que um homem mau pode às vezes utilizar uma retórica
excelente para chegar a seus fins, ele responde:

Um bandido pode bater-se com valentia, e a coragem nem


por isso deixará de ser virtude. (II, 20, 1 O)

Note-se que esses dois argumentos não combinam: de acordo


com o primeiro, a retórica a serviço de uma causa imoral não é
retórica; de acordo com o segundo, ela continua retórica e con­
tinua virtude!
Na realidade, o que reconcilia retórica e moral é a cultura,
para Quintiliano valor supremo. Concordando com Isócrates,
ele escreve que, sendo a linguagem e a razão características do
homem, a retórica que as cultiva constitui a virtude humana
por excelência. Falar bem é ser homem de bem; inversamente,
só o homem de bem, honesto e culto, fala bem. Pode-se dizer
que a Institutio oratoria propõe os fundamentos da educação
humanista.

Retórica e democracia

Na época imperial, um pouco depois de Quintiliano, um


texto célebre de Tácito, Diálogo dos oradores, levanta proble­
ma bem diferente. No fim dessa conversa, os protagonistas se
perguntam por que a eloqüência entrou em decadência depois
de Cícero. Para isso, o orador Messala dá uma primeira expli­
cação: esse declínio se deve "à preguiça dos jovens", tanto
quanto ao desleixo de sua educação; história tantas vezes repe-
tida desde então... /
DO SÉCULO I AO XX" 75

Mas dá outra explicação, menos banal. A arte oratória c!e­


senvolvera-se na sociedade em que era indispensável, qual seja,
a democracia. Quando todas as decisões eram submetidas a de­
bates públicos, o futuro orador formava-se naturalmente no fó­
rum, ouvindo as discussões e depois tomando parte delas; des­
cobria assim as técnicas dos diversos oradores e, principalmen­
te, as reações do público. "Hoje" (na época dos imperadores),
quando esses debates não são mais correntes, os jovens apren­
dem eloqüência na escola, ou seja, de modo artificial, sem ou­
tro público senão camaradas tão pueris quanto eles, sem outros
temas de debate senão assuntos irreais, absurdos.
Em suma, uma vez que a função cria o órgão, a eloqüência
desenvolveu-se na sociedade que precisava dela, a democracia,
e não sobreviveu a esta senão de maneira artificial. Mas não
devemos enxergar em Tácito um velho democrata embrulhado
em virtuosa nostalgia. Ele lembra que aquela democracia sig­
nificava menos liberdade e mais desordem e violência, e que a
paz romana, concretizada pelos imperadores, vale mil vezes
mais que o regime de anarquia que a precedeu. Raciocinando
por analogia, ele afirma que não se deve sentir saudade da de­
sordem democrática só porque ela produziu grandes oradores,
assim como não se sente saudade da guerra só porque ela pro­
duz heróis (37, 7).
Fato é que esse trecho de Tácito foi transformado em ver­
dadeiro lugar-comum, afirmando-se que a grande retórica teria
morrido com a liberdade, dando lugar apenas à retórica artifi­
cial, ornamental e vazia. Será verdade?
Em certo sentido, a história da educação romana confirma
isso. Tudo ocorre como se os romanos tivessem ganho, com a
retórica, um instrumento que não lhes servia para grande coisa.
Nas aulas de retórica, usavam-se, como exercício, "declama­
ções", discursos puramente fictícios. Eram de três tipos. Os
elogios, discursos epidícticos, tratavam de personagens históri­
cas ou lerttiárias e eram completadas por paralelos (por exem­
plo, entre Aquiles e Heitor). Os suasórios eram discursos polí­
ticos, mas fora da situação vivida:
76 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Aníbal, no dia seguinte a Canas, está pensando se marchará


sobre Roma. (in Marrou, p. 4 15)

As controvérsias, enfim, eram discursos favoráveis ou contrá­


rios a alguma coisa. Os exemplos utilizados eram fictícios, às
vezes inverossímeis, alegando-se que a dificuldade era forma­
dora por si mesma. Assim o caso do "duplo sedutor", que era
preciso defender e acusar:

A lei aqui será: a mulher seduzida escolherá entre a conde­


nação à morte do sedutor ou o casamento com ele, sem dote. Na
mesma noite, um homem violenta duas mulheres. Uma pede sua
morte, a outra escolhe casar-se com ele. (in Marrou, p. 415)

Essas khreias lembram o exercício da conferência dos advoga­


dos estagiários: a lei pune o marido se ele comete adultério no
domicílio conjugal. Ora, um marido é surpreendido em fla­
grante delito de adultério com a vizinha, no muro que divide as
duas residências. Ele é passível das penas da lei?
Em Vida cotidiana em Roma, Jerônimo Carcopino fustiga
esse ensino retórico totalmente apartado da vida: "retórica
irreal", "v irtuosidades verbàis", "formalismo incurável"
(pp. 135 s.). H.-1. Marrou é mais matizado; mostra que essa
cultura formal a longo prazo produzia resultado positivo: for­
mava advogados, administradores, embaixadores capazes de
falar com eficácia nas situações mais inéditas. Afinal, também
seria possível falar de formalismo com referência a nossas dis­
sertações e a nossos problemas de matemática.
Se o ensino da retórica perdurou durante o Império Roma­
no, se sobreviveu em Bizâncio, tanto sob o islamismo quanto
na Europa medieval, com métodos semelhantes, significa que
não era tão inútil. É verdade que a retórica perdeu os grandes
debates políticos, que só recuperará nas democracias moder­
nas, mas ganhou outros gêneros: a epístola, a descrição, o tes­
tamento, o discurso de embaixada, a consolação, o conselho ao
príncipe, etc. O "fim da retórica" não passa de lugar-comum no
mau sentido do termo, ou seja, não retórico.
DO SÉCULO I AO XY 77

Por que o declínio?

Na realidade, foi no século XIX que a retórica realmente


declinou, a ponto de quase desaparecer. Seria interessante sa­
ber por quê.

Retórica e cristianismo

Um grande problema que se apresenta no fim da Antigui­


dade é o da relação entre a retórica e a nova religião, o cristia­
nismo. Este, de fato, situa-se em ruptura total com a cultura an­
tiga, cujo "cerne" é constituído pela retórica: cultura pagã, idó­
latra e imoral, que só poderia afastar a redenção, "única coisa
necessária".
No entanto, como mostrou tão bem H.-1. Marrou, os cris­
tãos logo aceitaram a escola romana e a cultura que ela veicula­
va. Em seguida, quando todas as estruturas administrativas do
Império desmoronaram, foi a Igreja que se tomou depositária
desse cultura antiga, retórica inclusive. É verdade que grande
número de pais da Igreja rejeitam os autores pagãos, como inú­
teis e perigosos, mas admitem a língua e a retórica dos pagãos
(cf. Marrou, 460 s. ). Por quê? Por duas razões.
A primeira é que a Igreja, em seu papel missionário e em
suas polêmicas, não podia prescindir da retórica, muito menos
da língua (grega ou latina). Não podia deixar esses meios de
persuasão e de comunicação em mãos de adversários. Santo
Agostinho escreve assim, no fim do século IV:

Quem ousaria dizer que a verdade deve enfrentar a mentira


com defensores desarmados? Como? Esses oradores que se
esforçam por persuadir do falso saberiam desde o exórdio tomar
o auditório dócil e benevolente, enquanto os defensores da ver­
dade seriam incapazes disso? (Doutrina cristã, IV, 2, 3)

A segunda razão é que a própria Bíblia é profundamente


retórica. Não sobejam nela metáforas, alegorias, jogos de pala­
vras, antíteses, argumentações, tanto quanto nos textos gregos,
78 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

se não mais? São Paulo bem que afirma que não tem a sophia
logou, "arte do discurso" ( 1 Cor 1, 17), mas acrescenta a argu­
mentação de um rabino às antíteses de um orador grego.
Portanto, a Bíblia era um modelo, porém mais ainda: um
problema. Com efeito, não bastava ser lida, precisava ser com­
preendida; e, para interpretá-la, nunca era demais utilizar todos
os recursos da retórica. A hermenêutica da Idade Média é toda
alegórica: propõe que todo texto bíblico tem outro sentido além
do literal. Outro, ou melhor, vários. Tomemos como exemplo a
palavra Jerusalém (pois essa interpretação dizia respeito sobre­
tudo à palavra): 1) ela tem um sentido próprio ou histórico, de
cidade onde viveram David, Salomão, etc.; 2) tem também um
sentido alegórico, que se refere ao Cristo, e Jerusalém signifi­
ca Igreja; 3) tem um sentido tropológico, ou seja, moral, e Je­
rusalém significa a alma do cristão, tentada, castigada, curada;
4) finalmente tem um sentido anagógico, relativo à ressurrei­
ção e ao reino de Deus, e Jerusalém significa a cidade de Deus,
depois do Juízo Final.
Tomemos o texto seguinte, interessante por possibilitar
destacar os mecanismos da alegoria; é um breve comentário
sobre Êxodo, XI, 12:

À meia-noite sairei pela terra do Egito. E todo primogênito


morrerá...

Como comentar esse versículo terrível?

Pode ser interpretado historicamente porque, como se lê,


quando a Páscoa é celebrada, o anjo exterminador atravessa
(pertransit) o Egito. Alegoricamente, a Igreja passa (transit) da
descrença à fé pelo batismo. Tropologicamente, a alma deve
passar (transire) do vício à virtude pela conversão e pelo arre­
pendimento. Anagogicamente, o Cristo passou (transivit) da con­
dição mortal à imortalidade, para nos fazer passar (transire) da
miséria deste mundo à fé eterna'.

Como se vê, essa tripla alegoria é construída sobre o tema


da passagem. Hoje em dia, os pregadores são bem mais só-
DO SÉCULO I AO XX 79

brios, mas continuam utilizando a hermenêutica dos quatro sen­


tidos, que funciona como um lugar da retórica.

Verdadeiras causas do declínio:


retórica, verdade e sinceridade

Portanto, o cristianismo nada tem a ver com o declínio da


retórica. Esta, ao contrário, desenvolveu-se durante toda a Ida­
de Média, tanto na literatura profana quanto na pregação. A
partir do Renascimento, voltou aos cânones antigos, e seu ensi­
no constitui o ciclo essencial de toda a escolaridade, tanto entre
os protestantes e os jansenistas quanto entre os jesuítas4. No
entanto, é nesse período que começa o declínio da retórica. As
novas idéias vão dar-lhe o golpe mortal, rompendo o elo entre
o argumentativo e o oratório, que lhe davam força e valor.
Foi dito que essa cisão ocorreu a partir do século XVI, com
o humanista Pedro Ramus (Pierre de la Ramée, 1 5 1 5 - 1 572).
Este de fato separa resolutamente a dialética, arte da argumen­
tação racional, da retórica, reduzida "ao estudo dos meios de
expressão ornados e agradáveis" (TA, p. 669), em suma à elocu­
ção. Mas nada prova que a atitude de Ramus tenha sido dura­
doura; ao contrário, os retóricos que apareceram até o século
XIX, sobretudo na Inglaterra, continuam completos, incluindo
tanto a invenção e a disposição quanto a elocução.
Apesar disso, no século XVII ocorre uma fratura também
grave com Descartes, que vai destruir um dos pilares da retóri­
ca, a dialética, em outras palavras a própria possibilidade de
argumentação contraditória e probabilista. Em sua autobiogra­
fia intelectual, que abre o Discours de la méthode, ele escreve:

Eu apreciava muito a eloqüência e era apaixonado por poe­


sia, mas achava que uma e outra eram dons do espírito, e não
frutoJ, do estudo. Aqueles que têm raciocínio mais forte e que
digen!m melhor seus pensamentos, para tomá-los claros e inteli­
gíveis, são os que sempre conseguem persuadir melhor daquilo
que propõem, ainda que só falassem baixo bretão e nunca tives­
sem aprendido retórica.
80 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Como se vê, Descartes considera tanto o objetivo da retó­


rica ("persuadir") quanto suas quatro partes: invenção ("racio­
cínio"), disposição ("digerem", no sentido de organizam), elo­
cução ("tomar claros"), ação ("falassem"). Considera tudo da
retórica, salvo a retórica... como arte que se poderia "aprender"
por "estudo"; idéia retomada depois por Pascal:

A verdadeira eloqüência escarnece da eloqüência. (p. 321)

Mais ainda: com seu "baixo bretão" Descartes rejeita o privilé­


gio de uma língua nobre, objeto da retórica, o latim.
Principalmente no parágrafo seguinte ele repudia a dialé­
tica, por nunca oferecer mais que opiniões verossímeis e sujei­
tas a discussão, ao passo que a verdade só pode ser evidente,
portanto única e capaz de criar acordo em todos os espíritos.
Com a dúvida metódica, Descartes tomará a atitude de consi­
derar não como verdadeiro, mas como falso, tudo o que só é
verossímil, e sua filosofia se apresentará como um encadea­
mento de evidências, análogo a uma demonstração matemáti­
ca. Enfim, contra o debate de várias pessoas, que é a dialética,
ele afirma que só se pode encontrar a verdade sozinho, por um
retorno a si mesmo ( cf. infra, texto 8).
A retórica deixa portanto de ser arte e perde seu instru­
mento dialético. Basta encontrar a verdade por sua razão, "E as
palavras para expressá-la chegam facilmente" (Boileau).
Outros filósofos, os empiristas ingleses, chegam à mesma
condenação. Para eles, qualquer verdade vem da experiência
sensível, e a retórica, com seus artifícios verbais, só faz afastar
da experiência. Locke assim escreve:

Confesso que, em discursos nos quais procuramos mais


agradar e divertir que instruir e aperfeiçoar o julgamento, mal
podemos fazer passar por erros essas espécies de ornamentos
que tomamos de empréstimo às figuras. Mas, se quisermos
representar as coisas como são, é preciso reconhecer que, exce- ·

tuando a ordem e a nitidez, toda a arte da retórica, todas as apli­


cações artificiais e figuradas que nela se fazem das palavras, se­
gundo as regras que a eloqüência inventou, para outra coisa não
DO SÉCULO I AO XY 81

servem senão para insinuar falsas idéias no espírito, despertar


paixões e seduzir pelo julgamento, de tal modo que na verdade
são perfeitos logros. (in Todorof, pp. 77-78)

Se Locke admite um ensino da retórica para a elocução, é


ainda mais severo que Descartes, pois faz da retórica a arte da
mentira. Quanto ao resto, apesar de suas oposições filosóficas,
estão de acordo. Descartes situa a verdade na evidência das
idéias claras e distintas; Locke, na experiência dos sentidos.
Mas ambos vêem a retórica como um anteparo artificial entre o
espírito e a verdade. Ambos desconfiam da linguagem, que só
vale como veículo neutro de uma verdade independente dela,
de uma verdade que nada tem a ver com as controvérsias da
dialética. A retórica não pode mais ter pretensões a invenção
alguma.
É certo que ela ainda poderá servir aos debates jurídicos, à
política e à pregação. E por isso ainda haverá tratados de retóri­
ca até o século XIX.
Mas aí duas novas correntes de pensamento conduzirão ao
seu desenlace.
A primeira é o positivismo, que rejeita a retórica em nome
da verdade científica. Ela será excluída até mesmo de sua últi­
ma trincheira, a elocução, sendo substituída pela filologia e pela
história científica das literaturas. A última obra propriamente
retórica na França é de Pierre Fontanier, publicada em 1 8 1 8 e
1 827, que G. Genette reeditará em 1 968 com o título Les figu­
res du discours, estudo notável, modestamente destinado aos
alunos da penúltima série do estudo secundário.
A segunda corrente é o romantismo, que rejeita a retórica
em nome da sinceridade. "Paz com a sintaxe, guerra à retóri­
ca", exclama Victor Hugo, querendo dizer com isso que o es­
critor deve respeitar o código da língua, mas sem se sobrecar­
regar com um segundo código.
Em 1 885, a retórica desaparece do ensino francês, substi­
tuída pela."história das literaturas grega, latina e francesa".
Fim.
82 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Hoje: retóricas

Ou melhor: falsa saída de cena. Pois se a retórica perdeu o


nome nem por isso morreu. Não só sobrevive, como se viu, no
ensino literário, nos discursos jurídicos e políticos, como tam­
bém vai renovar-se com a comunicação de massa, própria do
século XX. Finalmente, a partir dos anos 60 aparece na França
e na Europa uma nova retórica, que logo conhecerá imenso su­
cesso. A palavra já não dá medo.

Uma retórica estilhaçada

Apesar de tudo, a retórica atual é bem diferente daquela


que substitui.
Para começar, seu objetivo já não é produzir discursos, po­
rém interpretá-los, e assim se aproxima mais da gramática dos
antigos. Pode-se dizer que já não se aprende a fazer discursos?
Aprende-se, mas esse ensino, que no fundo se identifica com a
formação literária e filosófica, já não é visto como retórica -
ou não é ainda.
Em segundo lugar, o campo da moderna retórica alargou­
se muito. Longe de limitar-se aos três gêneros oratórios dos
antigos, ela vai anexando, como lhe cabe, todas as formas mo­
dernas do discurso persuasivo, a começar pela publicidade, e
mesmo dos gêneros não persuasivos, como a poesia. Não con­
tente com reivindicar todo o campo do discurso, vai bem além,
pois se apodera de todas as espécies de produções não verbais.
Elabora-se assim uma retórica do cartaz, do cinema, da músi­
ca, sem falar da retórica do inconsciente.
Finalmente, e mais importante, a retórica moderna é uma
retórica estilhaçada, fragmentada em estudos distintos. Distin­
tos não só pelo objeto, mas pela própria definição que dão à
palavra "retórica", de tal modo que cabe perguntar se esse ter­
mo ainda tem algum sentido preciso. Esse estilhaçamento, que
afeta, aliás, a arte e a filosofia, é um dos grandes sinais da nos­
sa cultura, índice de que ela está bem viva, pois é a vida que es­
tilhaça as formas rígidas. Mas também de que, como acontece
com tudo o que é vivo, há o risco de morrer.
DO SÉCULO/ AO..IT 83

Os três parágrafos que seguem contêm exemplos desse es­


tilhaçamento.

Retórica da imagem

"Vivemos no século da imagem", é o que se ouve com fre­


qüência. Clichê bem contestável, pois os outros séculos comu­
nicaram-se bem mais pela imagem que pelo texto escrito. Além
do mais, é raro que as nossas imagens possam prescindir do
texto escrito para serem legíveis.
Assim, é perfeitamente possível fazer a interpretação retó­
rica de estátuas romanas, de ícones, de portais romanos, etc.,
imagens que se vinculam ao gênero epidíctico, para glória de
um soberano ou de Deus. Mas é normal que essa retórica se in­
teresse mais pelas produções atuais, sobretudo pelas imagens
publicitárias, persuasivas por essência.
O pontapé inicial da retórica da imagem, na França, foi
dado por Roland Barthes, em seu artigo publicado em Communi­
cations no ano de 1964. Nele, Barthes analisa um cartaz feito
para as massas Panzani, mostrando que além de sua denotação
- legumes frescos e pacotes de macarrão saindo de uma sacola
- o cartaz persuade pela conotação: as cores verde, branca e
vermelha sugerem italianidade; os legumes, frescor e natureza;
a sacola, cozinha artesanal, etc. Ainda que as massas em ques­
tão sejam francesas e industrializadas! Mas Barthes faz mais
semiótica que retórica.
O que se pode dizer é que, se é imprópria para produzir
argumentação, a imagem é porém notável para amplificar o
etos e o patos.
Tomemos como exemplo o cartaz da oposição que inau­
gurou a campanha eleitoral para as eleições legislativas de
1986. Como texto, o cartaz contém o slogan: Vivement demain!,
e em l�tras menores: Avec le RPR!*. O slogan expressa a ex­
pectativ� de toda oposição: chegar ao governo. A seqüência

*Literalmente, "Vivamente amanhã" e "Com o RPR". (N. do T.)


84 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

sugere que o beneficiário dessa expectativa é o RPR, e não dos


outros partidos de oposição.
A imagem: Jacques Chirac, o líder, no centro de uma linha
de doze pessoas, das quais duas mulheres jovens, em posições
simétricas, que avançam por um prado, debaixo de um céu
imenso, onde está escrito o slogan.
O etos é sugerido pelas conotações da imagem:

"Equipe": as pessoas estão com os braços nos ombros das outras


ou estão de braços;
"respeitável": usam traje social, com gravata;
"trabalho": tiraram os paletós; o vento levanta as gravatas;
"juventude" : quase todos têm menos de quarenta anos; os mais
idosos estão no meio; sinédoque: alguns jovens para marcar
juventude.

O patos também nasce das conotações:

"ímpeto irresistível": a linha ondulante sugere uma vaga que nos


envolve; metáfora;
"saúde": todos estão incrivelmente bronzeados;
"dinamismo": a equipe avança; numa primeira versão, estava
imóvel, o que era bem menos convincente;
"patriotismo": o céu é azul, as camisas são brancas, os vestidos
das duas mulheres são vermelhos;
"otimismo": as doze pessoas (bom número, o dos apóstolos), os­
tentam um sorriso comercial, o que valeu ao cartaz o nome
de "ouistiti-sexe"*.

Esse cartaz é obra de profissionais da publicidade, como


aliás todos os dos outros partidos nessa campanha5• Note-se
que a conotação enriquece a denotação, e que em certo sentido
a contradiz. Pois a imagem dá a entender que todos os figuran­
tes da equipe irão tornar-se ministros de Chirac, ao passo que
alguns não se tornaram; o mais importante é que ele não mos­
tra os principais colaboradores de Chirac, que não eram nem
um pouco jovens. Não se trata de uma mentira, tanto quanto no

* Ouistiti é sagüi, mico. (N. do T.)


DO SÉCULO I AO XX 85

caso das massas Panzani ... Mas de uma sugestão, que por certo
se encontraria em qualquer imagem publicitária. Em todo caso,
esses dois cartazes, aliás belíssimos (beleza funcional), mos­
tram bem duas coisas:
1 ) A retórica da imagem desenvolve o oratório em detri­
mento do argumentativo.
2) A imagem não é eficaz, nem mesmo legível, sem um
mínimo de texto.
A imagem é retórica a serviço do discurso, não em seu lugar.

Retórica da propaganda e da publicidade

Pode-se considerar a propaganda (política, militar, etc.) e


a publicidade como invenções do século XX. Ainda que nossos
ancestrais não nos tenham esperado para defender seus parti­
dos e criar suas mercadorias, o que eles faziam era coisa bem
diferente, por uma boa razão.
A propaganda e a publicidade pertencem à comunicação
de massa. O que é massa? Um número indefinido, geralmente
imenso, de indivíduos cujo único elo é receber a mesma men­
sagem. Um camelô que vende um tira-manchas na feira dirige­
se a algumas pessoas e adapta-se às reações delas. O anuncian­
te de um tira-manchas na televisão dirige-se a milhões de des­
conhecidos cujo único elo é a mensagem a que estão submeti­
dos. A massa, em si, é passiva e atomizada.
Na verdade é a comunicação de massas que cria a massa.
Para que ela exista, são necessários meios de comunicação mo­
dernos, de grande difusão, como o cartaz ou o anúncio de tele­
visão. Nisso, a massa se distingue da multidão, conjunto de pes­
soas reunidas para alguma coisa, que pode reagir imediatamen­
te à mensagem que recebem. A multidão aplaude ou infama; a
massa não tem voz nem rosto. E a comunicação de massa é
sempre indireta. Utiliza algum canal, do cartaz ao filme, com­
plexo e ê�o, o que implica conseqüências para o próprio con­
teúdo do discurso.
Em primeiro lugar, geralmente é breve, pois limitada no
tempo ou no espaço, o que quase não lhe possibilita argumen-
86 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

tações sutis, mas autoriza, em compensação, a jogar com ambi­


güidades. Sua satisfação ou o dinheiro de volta: ótimo, mas em
que condições? Xlava mais branco: mas o quê e como? Em se­
gundo lugar, embora menos claro e menos preciso, o discurso é
completado pelo conteúdo não lingüístico da mensagem, pela
música, pela imagem, que no fundo desempenham o papel da
ação, parte não verbal da antiga retórica. Mas a publicidade vai
renovar a invenção também.
Primeiro ela cria seus próprios lugares, no sentido de ar­
gumentos-tipo ("somos jovens") ou de perguntas para chegar a
eles ("Como parecer jovem?"). Lembremos os lugares mais
conhecidos: juventude, sedução, saúde, prazer, status, diferen­
ça, natureza, autenticidade, relação qualidade/preço.
Depois, a publicidade privilegia o etos e, principalmente,
o patos, em relação ao logos. Em outras palavras, a mensagem
é bem mais oratória que argumentativa. O próprio patos - psi­
cologia utilizada pelos meios de comunicação de massa - é di­
ferente do da retórica antiga. Inspira-se, pelo menos atualmen­
te, na psicanálise. Dieter Flader, em seu estudo de 1976 sobre a
estratégia da publicidade, insiste no lado infantilizante dessa
retórica, voltada para a necessidade que há nos consumidores
de se sentirem seguros e amados. Es lohnt sich bestimmt ("Sim,
vale a pena!"), proclama o slogan, incitando a deixar de lado a
angústia da dúvida, a entregar-se à voz paterna onisciente e
onipotente. Lee matchfrei ("Lee é liberdade"); Lee já não é um
objeto, calças banais, porém um ser personalizado que cuida de
nós, e a liberdade que nos proporciona encontra verdadeiro
sentido no inconsciente: livra-nos da angústia de sermos adul­
tos. Significa que todas essas mensagens, ao eliminarem o
tempo e as relações causais, ao criarem uma fusão narcísica en­
tre o objeto e o ego, jogam com a necessidade de regressão afe­
tiva. Vê-se o mesmo fenômeno nos "revolucionários" de 1968;
seus slogans mais fortes:

Sob a calçada, a praia.


É proibido proibir.
Seja realista, peça o impossível.

faziam parte da recusa global de ser adultos.


DO SÉCULO I AO XX 87

Poder-se-ia retorquir a Flader que sua explicação é parcial,


pois há outras motivações além do retorno à infância; a liber­
dade de Lee talvez seja também a comodidade do corpo, a libe­
ração sexual, a saída da infância (e não a volta a ela!). Mas, no
conjunto, ele tem razão; o patos ganha do logos, e esse patos
inova em relação à tradição retórica.
Mas, se mudar seu conteúdo, a publicidade se inserirá no
sistema retórico; comporta invenção, disposição - plano da men­
sagem, estrutura do cartaz -, elocução e principalmente ação.
Numa propaganda eleitoral, por exemplo, não só a voz é essen­
cial como também todo o comportamento, a aparência do can­
didato, que é a forma moderna do etos.
Caberia mostrar aqui o que distingue a propaganda da pu­
blicidade. Limitemo-nos a observar que elas tendem a confim­
dir-se, pois os partidos políticos confiam suas campanhas cada
vez mais a publicitários. Donde a pergunta: a publicidade é real­
mente compatível com a democracia?
Pode-se responder: sim, porquanto é retórica, e a base da
retórica é a argumentação contraditória. Toda publicidade é con­
traditada por outras, e quem não achar que X lava mais branco
sempre pode comprar Y; assim também, quem não gosta do
sorriso comercial deste candidato tem a liberdade de votar em
outro. Certo, mas a publicidade limita a liberdade de escolha
por situar o debate em tal nível que na verdade não há debate,
conservando da argumentação apenas o que ela tem de mais
sumário e oferecendo como termos de escolha apenas objetos
- brancura, sorriso - que não têm grande relação com proble­
mas reais. A democracia precisa de um povo adulto, e a retóri­
ca publicitária devolve as massas à infância.

Nova retórica contra nova retórica

Nos'Mios 60, assiste-se ao nascimento de uma "nova retó­


rica". Mas que retórica? Houve várias, e a que estava mais na
moda naquela época afirmava-se puramente literária, sem rela­
ção alguma com a persuasão. Tinha-se então esquecido tão bem
88 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

o que significava a palavra "retórica" que ela virou rótulo de


coisa completamente diferente.
Esse movimento, que incluiu Jean Cohen, o grupo MU,
Gérard Genette, Roland Barthes, transforma a retórica em "co­
nhecimento dos procedimentos da linguagem característicos
da literatura" (Rhétorique générale, p. 25). E esses procedi­
mentos são reduzidos às figuras de estilo, definidas como des­
vios do "grau zero", que seria a prosa não literária. Henri Mo­
rier chegou a fazer um Dicionário de retórica e poética sem
falar de argumentos, lugares, disposições. Essa "nova retórica"
limita-se, pois, à elocução, e desta só fica com as figuras. Em
suma, uma retórica sem finalidade alguma.
Não nos cabe desprezar essas obras, tão ricas e muitas ve­
zes apaixonantes. Mas trata-se de retórica? Um representante
do grupo MU responde rejeitando qualquer argumento de au­
toridade:

Nem a Bíblia, nem o Código Civil, nem poder algum pode


nos obrigar a partir do domínio da antiga retórica. ("Rhétorique
de l 'argumentation et des figures", in Figures et conflits rhétori­
ques, p. 126)

Por certo, mas há outro poder, o do dicionário. E nosso


temor é de que, à força de infringi-lo, cheguemos à Torre de
Babel...
Em todo caso, à retórica literária opõe-se outra corrente,
de Chai"m Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, cujo livro mais
importante, Traité de l'argumentation, la nouvelle rhétorique,
foi publicado por Presses Universitaires de France em 1 95 8 e
quase não teve sucesso na época*.
Essa obra, que se insere na grande tradição retórica de Aris­
tóteles, Isócrates e Quintiliano, é realmente a teoria do discurso
persuasivo. Seus autores partiram de um problema, não lingüís­
tico nem literário, mas filosófico: como fundamentar os juízos

* Tratado de argumentação, São Paulo, Martins Fontes, 1996. (N.


do E.)
(/
DO SÉCULO I AO XX" 89

de valor? O que nos permite afirmar que isto é justo ou que


aquilo não é belo? Buscaram, pois, a lógica do valor, paralela à
da ciência, e acabaram por encontrá-la na antiga retórica, com­
pletada, como convém, pela dialética. A grande descoberta desse
tratado - a palavra "descoberta" comporta um pressuposto, mas
nós o assumimos - é que, entre a demonstração científica e a
arbitrária das crenças, há uma lógica do verossímil, a que dão o
nome de argumentação, vinculando-a à antiga retórica.
No essencial, esse livro é um estudo dos diversos tipos de
argumentos, a que voltaremos no capítulo VIII; é certo que
abre espaço para as figuras, porém um espaço menor, reduzin­
do-as a condensados de argumentos; por exemplo, a metáfora
condensa uma analogia. Em suma, uma retórica centrada na in­
venção, e não na elocução.
Portanto, também incompleta. De fato, se o tratado des­
creve maravilhosamente as estratégias da argumentação, deixa
de reconhecer os aspectos afetivos da Retórica, o delectare e o
movere, o encanto e a emoção, essenciais contudo à persuasão.
Na França, o Traité de l'argumentation foi ignorado pelos
meios literários, fechados para tudo o que não fosse estilística,
e até pelos meios filosóficos, de tal modo a idéia de um tercei­
ro caminho, entre a lógica formal e a ausência de lógica, era es­
tranha à cultura da época. Pelo menos na França, pois conti­
nuava familiar aos anglo-saxões, que, aliás, nunca tinham es­
quecido de todo a retórica.
O pensamento de Perelman só teve penetração realmente no
fim dos anos 70. E mesmo então seus esquemas argumentativos
foram utilizados bem menos para interpretar os autores que para
"desmistificá-los". Pois na época o lado retórico dos discursos
era considerado indício de manipulação ideológica:

A retórica aparece, assim, como a face significante da ideo­


logia. (R. Barthes, "La rhétorique de l 'image'', p. 49)

Essatetórica da desconfiança, preconizada por Barthes e


por tantos outros, parece-nos singularmente redutora, tanto dos
textos que interpreta quanto da própria idéia de retórica. A
nosso ver, a teoria de Perelman-Tyteca permite uma leitura re-
90 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

tórica dos textos que se fundam no diálogo, e não na descon­


fiança, como tentaremos mostrar no último capítulo.
Para chegar lá, é preciso negar-se à opção mortal entre re­
tórica da argumentação e retórica do estilo. Uma nunca está
sem a outra6•
Capítulo V
Argumentação

No fim dos anos 60, um acadêmico, professor de matemá­


tica, fundou um instituto de pesquisas sobre o ensino, onde se
elaborava aquilo que recebeu o nome de matemática nova. Um
dia, diante de seus colegas, fez a seguinte pergunta: "Será pos­
sível demonstrar que nossa reforma tornará o ensino mais efi­
caz?" Pergunta honesta, porém ingênua. Pois, afinal, a eficácia
de um ensino de matemática não se demonstra matematica­
mente! Essa é uma pergunta que não está realmente clara - o
que significa "eficaz"? -, portanto a resposta não pode ter a
evidência de uma lei científica.
O que não significa que a pergunta não tem resposta. Se a
ausência de demonstração significasse não-saber, não haveria
ciências humanas. Ora, elas existem, mas os conhecimentos que
proporcionam são de ordem diferente do das ciências "duras".
Isso para ilustrar a tese deste capítulo e de todo o livro:
entre a demonstração científica ou lógica e a ignorância pura e
simples, há todo um domínio da argumentação.
Esta constitui um método de pesquisa e prova que fica a
meia distância entre a evidência e a ignorância, entre o neces­
sário e o arbitrário. Tanto quanto a dialética - que ela continua
com outra forma -, constitui um dos pilares da retórica. Os fi­
lósofos, desde Descartes, acreditaram que esse pilar estivesse
destruído; no entanto eles mesmos precisam dele ...
A ittórica em si compõe-se de dois elementos: argumen­
tativo e oratório. E aí vai nossa segunda tese: a importância da
oratória é maior quanto mais urgente for a questão, mais restri­
to o acordo prévio, e menos acessível à argumentação lógica o
92 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

auditório. Um advogado será bem mais orador se o tribunal


comportar um júri; um político será bem mais orador diante
das massas que diante do Parlamento, e mais ainda quanto me­
nor for o tempo que tiver para tomar a palavra. É então que o
etos e o patos tendem a suplantar o logos, e é aí também que sur­
gem as figuras.
Essas são as duas teses que tentaremos defender com ar­
gumentos.

As cinco características da argumentação

Como definir a argumentação? Certamente não como um


conjunto ou uma seqüência de argumentos! Pode-se definir o
argumento como uma proposição destinada a levar à admissão
de outra. Um indício serve de argumento a um policial ou a um
advogado, etc.: "pois", "de fato", "porquanto" ... e também a
expressão: "Considerando os fatos como são..."
Como se vê, certos argumentos são demonstrativos, ou­
tros argumentativos, não se podendo definir a argumentação
senão a partir do argumento. Argumentação é uma totalidade
que só pode ser entendida em oposição a outra totalidade: a de­
monstração.
Inspirando-nos livremente em Perelman-Tyteca, diremos
que a argumentação distingue-se da demonstração por cinco
características essenciais: 1 ) dirige-se a um auditório; 2) ex­
pressa-se em língua natural ; 3) suas premissas são verossímeis;
4) sua progressão depende do orador; 5) suas conclusões são
sempre contestáveis. Veremos que todas essas características
incluem o componente oratória da retórica e justificam nossa
segunda tese.

O auditório pode ser "universal"?

Sempre se argumenta diante de alguém. Esse alguém, que


pode ser um indivíduo ou um grupo ou uma multidão, chama-
ARGUMENTAÇÃO 93

se auditório, termo que se aplica até aos leitores. Um auditório


é, por definição particular, diferente de outros auditórios. Pri­
meiro pela competência, depois pelas crenças e finalmente
pelas emoções. Em outras palavras, sempre há um ponto de
vista, com tudo o que esse termo comporta de relativo, limita­
do, parcial. Ora, como a argumentação pode modificar esse
ponto de vista sem recorrer pouco ou muito ao etos e ao patos?
Responderão que os próprios Perelman-Tyteca introdu­
zem a noção de auditório universal, que está acima de qualquer
ponto de vista, portanto talvez de qualquer retórica. Mas onde
está esse auditório e qual seria a sua utilidade para o argumen­
tador?
Será um auditório não especializado? É o que se pensava
às vezes no século XVII, com o testemunho de Moliere e Pas­
cal. Admitindo-se isso, a relação entre o orador e o auditório
nem por isso deixará de ser retórica; por certo muito mais, pois
a vulgarização é bem mais retórica que a ciência. E se o próprio
orador finge não ser especialista, como Pascal em Provincia­
les, e estar interrogando ingenuamente especialistas, na verda­
de está utilizando uma figura completamente oratória, o cleuas­
mo (ou autodepreciação).
Será um auditório não particular, sem paixões, sem pre­
conceitos, a humanidade racional , em suma? Mas invocar esse
auditório, fingindo que ele existe, poderia não passar de artifi­
cio. Em política, faz-se apelo ao homem acima dos partidos, ao
homem comum, ao homem de bom senso, ao uomo qua/un­
que... Nada de mais ideológico. Agora, será que o próprio filó­
sofo não está sendo ideólogo quando afirma dirigir-se ao ho­
mem racional que está acima de seu auditório real (os leito­
res)? "Homens, sede humanos!", exclama Rousseau. Será que
na verdade não estava interpelando os intelectuais parisien ses
de seu tempo? Dirigir-se ao "homem" por cima do ombro de
seu auditório real é utilizar uma figura completamente orató­
ria, a apóstrofe.
Em suma, o auditório universal poderia ser apenas uma
pretensão, ou mesmo um truque retórico. Mas achamos que ele
pode ter função mais nobre, a do ideal argumentativo. O orador
94 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

sabe bem que está tratando com um auditório particular, mas


faz um discurso que tenta superá-lo, dirigido a outros auditó­
rios possíveis que estão além dele, considerando implicitamen­
te todas as suas expectativas e todas as suas objeções. Então o
auditório universal não é um engodo, mas um princípio de su­
peração, e por ele se pode julgar da qualidade de uma argumen­
tação'.

Língua natural e suas ambigüidades

Na demonstração é grande o interesse de se utilizar uma


língua artificial, por exemplo a da álgebra ou da química. A ar­
gumentação desenrola-se sempre em língua natural (exemplo,
francês), o que significa utilizar com grande freqüência termos
polissêmicos e com fortes conotações, como "democracia",
que está longe de ter o mesmo sentido e o mesmo valor para
todos os oradores. Além disso, a própria sintaxe pode ser fonte
de ambigüidade. Tomemos como exemplo o adágio: O homem
é o lobo do homem, que não é apenas um provérbio popular,
mas foi lugar da filosofia do século XVII. O que quer dizer? A
que corresponde a metáfora do lobo: ser cruel, é verdade, po­
rém solitário ou em matilha? Neste último caso, os lobos,
mesmo humanos, não se comem uns aos outros, e é possível
continuar sendo lobos mesmo sendo irmãos! É significa "sem­
pre" ou "na maioria das vezes"? E o artigo o refere-se ao ho­
mem em sua essência, ao homem natural anterior à cultura ou
ao homem de hoje? Em suma, o adágio tem tantas armadilhas
quanto um slogan publicitário. O mais notável, porém, é que
não sentimos sua ambigüidade; basta ouvi-lo para que nos pa­
reça claríssimo. É que em língua natural consideramos claro
aquilo que é apenas familiar.
Outra observação: quando se fala de argumentação, é pre­
ciso perguntar se ela é escrita ou oral, pois isso muda tudo.
Uma argumentação oral deve combater dois inimigos mortais:
desatenção e esquecimento; e só pode fazer isso por meio de
procedimentos oratórios. As chamadas culturas "orais" confir-
ARGUMENTAÇÃO 95

mam isso; é certo que argumentam e ensinam, mas por repeti­


ções, aliterações, ritmos, metáforas, alegorias, enigmas, que de­
senvolvem a função poética em detrimento da função crítica,
como se observa ainda em nossos provérbios.
Em suma, a argumentação oral em geral é menos lógica e
mais oratória que a escrita. No entanto, cabe ressaltar uma ex­
pressão, que se ouve nos debates mais técnicos, e não só nas
brigas de família: "Se pelo menos pudéssemos explicar pes­
soalmente!" Ela comprova que falta alguma coisa à argumenta­
ção escrita, que a oral tem um valor insubstituível, que a orató­
ria pode ser, de certa forma, heurística.

Premissas verossímeis: o que é verossímil?

Do fato de o auditório ser sempre particular, parece decor­


rer a terceira característica, o caráter simplesmente vero-símil
das premissas, que não são evidentes em si, mas que "parecem
verdadeiras" a esse auditório. Essa constatação parece fadar­
nos ao relativismo: "A cada um sua verdade."
Mas essa "constatação" é errônea, pois repousa num jogo
etimológico de palavras. De fato, a verossimilhança não está
ligada ao auditório, e nossa terceira característica é logicamen­
te independente da primeira. O verossímil não decorre de igno­
rância, incompetência ou preconceitos do auditório, mas do
próprio objeto. Quando se trata de questões jurídicas, econô­
micas, políticas, pedagógicas, talvez também éticas e filosófi­
cas, não se lida com o verdadeiro ou o falso, mas com o mais
ou o menos verossímil. Inversamente, num mundo onde tudo
fosse cientificamente certo, já não seria possível argumentar,
nem... agir. Em suma, a argumentação não deve resignar-se ao
verossímil como se ele fosse filosofia de pobre, mas deve res­
peitá-lo como inerente a seu objeto e não ter pretensões a um
cientific�mo que não passaria de engodo, que na verdade seria
anticientífico.
O que é então o verossímil? Para encurtar: tudo aquilo em
que a confiança é presumida. Por exemplo, os juízes nem sem-
96 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

pre são independentes, os médicos nem sempre capazes, os


oradores nem sempre sinceros. Mas presume-se que o sejam; e,
se alguém afirma o contrário, cabe-lhe o ônus da prova. Sem
esse tipo de presunção, a vida seria impossível; e é a própria vida
que rejeita o ceticismo.
Cumpre deixar claro que a argumentação, mesmo se apoian­
do no verossímil, pode comportar elementos demonstrativos,
no sentido de necessários e, portanto, indubitáveis. De modo
geral, aliás, esses elementos são negativos; pode-se demonstrar
que um projeto de lei não é incompatível com a constituição,
mas não que será benéfico com certeza. E, se há uma ética na
argumentação, é de respeitar esses elementos demonstrativos
sempre que eles existirem.
Suponhamos, por exemplo, um debate histórico sobre o caso
Dreyfus: é certo que ele sempre comporta aspectos controver­
sos, mas pode-se e deve-se considerar como "demonstrado" que
o capitão Dreyfus não era culpado, que não foi ele o autor da
documentação criminosa. Duvidar disso seria demonstrar par­
cialidade racista, e não prudência e objetividade.
Premissas verossímeis: o simples fato de invocá-las equi­
vale, pois, a apelar para a confiança do auditório, para a sua
"presunção", e comporta um aspecto oratório.

Uma progressão que depende do orador

Se as premissas não são verossímeis, a progressão dos ar­


gumentos nada tem a ver com uma demonstração. A. Lalande
define assim a argumentação: "Série de argumentos, todos ten­
dentes à mesma conclusão."
Definição que nos parece inadequada, devido à palavra
"série", que lembra uma progressão linear. Se pudermos com­
parar a demonstração a uma cadeia de argumentos ("essas lon­
gas cadeias de razões" de Descartes), em que cada um é com­
provado por aqueles que o precedem, e cuja ordem é, portanto,
lógica, a argumentação será mais semelhante a um fuso de ar­
gumentos, independentes uns dos outros e convergentes para a
ARGUMENTAÇÃO 97

mesma conclusão; a palavra "aliás'', desconhecida na demons­


tração, é freqüente na argumentação:

Demonstração: A - B - C - D··· z

A ordem dos argumentos é, pois, relativamente livre, e de­


pende do orador; vimos, de fato, que a disposição dos antigos
compreendia dois planos-tipo, mas nada havia de necessário, e
podiam ser subvertidos. Por outro lado, depende do auditório,
no sentido de que o orador dispõe seus argumentos segundo as
reações, verificadas ou imaginadas, de seus ouvintes. Em suma,
a ordem não é lógica, é psicológica.
Assim, ainda que o exórdio seja muito útil, pode-se às ve­
zes começar ex abrupto, como Cícero: "Até quando, Catilina,
abusarás da nossa paciência?" Ou ainda como de Gaulle, no
discurso feito em Argel em 4 de junho de 1958: "Eu entendi."
Se essas frases tivessem sido postas no interior do discur­
so, teriam perdido grande parte de sua eficácia.

Conclusões sempre controversas

Numa argumentação, a conclusão não é, ou não é só, um


enunciado sobre o mundo; ela expressa acima de tudo o acordo
entre os interlocutores. Portanto, tem as seguintes característi­
cas. Primeiramente, deve ser mais rica que as premissas, ao
cbntrário da demonstração, em que a conclusão "sempre segue a
pior parte"2; se a argumentação ficasse aí, seria estéril, ou esta­
ria limitada a ser apenas refutação. Em segundo lugar, a conclu­
são é reivindicada pelo orador como algo que deve impor-se,
encerrar 5 debate. Mas, no que se refere ao auditório, este não é
obrigado a aceitá-la; continua ativo e responsável tanto pelo sim
quanto pelo não; é principalmente nesse sentido que a conclu­
são é controversa: ela compromete tanto quem a aceita quanto
98 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

quem a recusa. Um bom exemplo, que J.-B. Grize retirou de


uma obra pedagógica, ilustra essas três características:

É com referência à atividade da fala que o filhote de ho­


mem se situa; a palavra "infantil" é formada por duas unidades,
in e fari, que significam: "não falar". Portanto, é a partir de uma
carência, de uma ausência, que a criança é percebida3•

A conclusão que se segue ao portanto é bem mais rica que


as premissas, pois o autor passa da opinião dos romanos - opi­
nião que ele infere, e de maneira bem contestável, a partir da
etimologia - a uma verdade universal: a criança é percebida,
que o autor coloca como necessária. Mas o auditório pode não
aceitá-la, pois talvez não atribua mais valor à etimologia do
que atribuiria a um trocadilho. Seja como for, uma conclusão
não é obrigatória: é sempre contestável; mas o é em maior ou
menor grau. Também aqui é preciso renunciar ao tudo ou nada
em favor do mais ou menos verossímil .
Concluiremos que a argumentação rejeita a alternativa "ra­
cional ou emotivo". Pois as premissas são crenças, e as crenças
sempre têm um conteúdo afetivo, e só pode ocorrer o mesmo
com a conclusão, mesmo que em caminho o discurso consiga
modificar a afetividade; se o orador transformar medo em con­
fiança, tristeza em alegria, terá libertado o auditório de senti­
mentos negativos, mas não de sentimentos.

Antes de prosseguir, convém perguntar se opor assim ar­


gumentação e demonstração não tem algo de forçado.
Pierre Oléron afirma assim que a própria demonstração
científica não é tão pura e rigorosa quanto diz Perelman . No
próprio cerne das ciências exatas encontram-se controvérsias
em que ambas as partes têm o desejo de convencer, "de exercer
influência"4• Convém principalmente - cremos nós - distinguir
entre demonstração lógico-matemática, puramente formal, e
demonstração experimental, na qual intervêm também outros
critérios além da validade lógica, como por exemplo a falsifi­
cação de Karl Popper, que seria muito instrutivo comparar à ar­
gumentação5.
ARGUMENTAÇÃO 99

Quanto a esta, alguns acham que poderia ser formalizada,


ou seja, expressa em língua artificial. Mas o verdadeiro proble­
ma é outro. Uma formalização só tem vantagem se for fecunda,
se permitir descobrir pelo cálculo outros dados além daqueles
que ela transcreve.
Não nos parece que tal cálculo seja possível com a argu­
mentação; suas estruturas podem ser descritas, mas não dedu­
zidas. Por quê? Porque a argumentação é dirigida ao homem
total, ao ser que pensa, mas que também age e sente.

O que é uma "boa" argumentação?

Ora, dizer que qualquer argumentação é retórica, ou, em


outros termos, que comporta uma parte de oratória, não será
tomá-la suspeita? Não será ela ipso facto manipuladora, seja
por confusão, seja por omissão, seja por sedução? Em suma,
uma argumentação pode ser boa? Como?
Note-se que, aplicado à argumentação, o termo "boa" re­
fere-se a dois valores diferentes, ou mesmo opostos. Uma "boa"
argumentação é a mais eficaz ou a mais honesta? E as d� as
nem sempre estão juntas! Aqui nos ateremos ao problema da
honestidade.
Ora, se uma argumentação é mais ou menos desonesta,
não é porque seja mais ou menos retórica. Caso contrário Pla­
tão, cujos textos são infinitamente mais retóricos, pelo conteú­
do oratório, que os de Aristóteles, seria menos honesto que es­
te! Então, segundo quais critérios avaliar a honestidade duma
argumentação?
O primeiro que vem à mente é o da causa. Uma argumen­
t ação valeria pela causa a que serve. Mas como explicar que
uma causa excelente seja às vezes defendida por má argumen­
tação? E, principalmente, como sabemos que uma causa é boa?
O critério.supõe que o valor da causa seja conhecido antes da
argumentação encarregada de estabelecê-lo: o que equivale a
julgar antes do processo, a eleger antes da campanha eleitoral,
a saber antes de aprender. Não existe dogmatismo pior.
1 00 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Outro critério, este interno, consiste em respeitar os ele­


mentos demonstrativos, ou seja, lógicos, que a argumentação
comporta. Em outras palavras: agir de tal modo que ela não
seja sofistica.

Os sofistas e a argumentação

Inspirando-nos em Lalande6, digamos que o sofisma é um


raciocínio cuj a validade é apenas aparente e que ganha adesão
por fazer crer em sua lógica. Pode servir assim para legitimar
interesses, amor-próprio e paixões.
Portanto, é pela forma que um raciocínio é sofistico, e não
por seu conteúdo. Vejamos dois exemplos de silogismo.
O primeiro "demonstra" que o sal mata a sede:

- Beber água mata a sede;


- ora, o sal obriga a beber água;
- logo, o sal mata a sede.

O segundo "demonstra" que o barato é caro:

- Tudo o que é raro é caro;


- ora, um bom cavalo barato é raro;
- logo, um bom cavalo barato é caro.

O primeiro é um sofisma grosseiro, que reside no equívo­


co do termo médio: beber obrigar a beber, significando o
=

segundo na realidade o contrário do primeiro.


O segundo é um verdadeiro silogismo, perfeitamente váli­
do. Donde vem então o absurdo de sua conclusão? Do fato de
que as premissas são falsas, e de que o raciocínio prova isso pelo
absurdo. Prova que o que é raro nem sempre é caro; ou ainda que
um bom cavalo barato nem sempre é raro (em caso de má venda,
por exemplo). Em suma, não há sofisma no sentido estrito, mas
um erro que consiste em transformar o provável em certo.
Alguns autores argúem a oposição entre demonstração e
argumentação, afirmando que esta não pode comportar sofis-
ARGUMENTAÇÃO

mas, ainda que tenha muitas outras coisas censuráveis. Pode-se


responder, porém, que a argumentação, pelo fato de comportar
elementos demonstrativos, pode abusar deles, sendo pois sofis­
tica no sentido estrito. Vejamos os dois tipos de argumentação
descritos por Aristóteles.
O exemplo torna-se sofistico quando dele se extrai uma
conclusão que ultrapassa o que ele mostra, quando se "extrapo­
la" do particular ao universal: tal e tal políticos de esquerda
aprovam essa medida; logo, a esquerda aprova essa medida.
O entimema torna-se sofistico quando infringe as regras
do silogismo, quando conclui além daquilo que a lógica lhe
permite. Vejamos a seguinte proposição:

Dupont, por ser deputado de direita, precisou votar essa lei.

O entimema é válido se for admitida sua principal implícita:

Todos os deputados de direita votaram essa lei.

Agora, um segundo exemplo:

- Todos os deputados de direita votaram essa lei;


- ora, Durand votou essa lei;
- logo ...

Logo, nada! Não se tem o direito de concluir. Durand po­


de ter votado a lei sem ser deputado de direita.
Vejamos um terceiro entimema:

Essa medida é de esquerda porque foi tomada por um go­


verno de esquerda.

Basta enunciar a principal implícita:

Qualquer medida tomada por um governo de esquerda é de


esquerda,

para perceber que é falso, pois acontece de um governo de di­


reita tomar medidas de esquerda e vice-versa. O entimema é
válido, mas sua premissa é falsa.
102 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Em suma, um entimema é sofistico quando conclui mais


do que deve. É falso quando toma por verdadeira uma premis­
sa, geralmente implícita, que é desmentida pelos fatos.
Podemos ir mais longe: uma argumentação é sofistica, ou
pelo menos errônea, quando sua conclusão vai além dos argu­
mentos que supostamente a estabelecem. Mas, dirão alguns, isso
não acontece sempre? Nós mesmos afirmamos que uma conclu­
são argumentativa é mais rica que suas premissas. E então?

Não-paráfrase e fechamento

Sofisma da argumentação seria, portanto, ela dizer mais do


que sabe. Pois bem, existe a maneira de "dizer". Pode-se afir­
mar excluindo qualquer objeção - para começar em si mesma -,
mas também se pode propor sem impor, favorecer ao máximo a
própria afirmação, deixando-a aberta às críticas alheias. Essa
abertura constitui a honestidade da argumentação.
Mas não estará esta comprometida pela retórica? Aqui
cabe interrogar sobre o "dizer" próprio da retórica. Pelo que
dissemos acima, um discurso é retórico quando, para persuadir,
alia seu componente argumentativo a seu componente oratório,
a forma ao conteúdo. Isso acarreta duas conseqüências.
A primeira é que o discurso retórico nunca é completa­
mente parafraseável; em outras palavras, não pode ser traduzi­
do, nem mesmo em sua própria língua, por um discurso que
tenha absolutamente o mesmo sentido. Vejamos o argumento
quase lógico mencionado no TA:

Os amigos de meus amigos são meus amigos.

É simples perceber que, se substituirmos amigos por alia­


dos ou por quem me ama... o argumento desaparece integral­
mente.
A segunda é que um discurso retórico é sempre mais ou
menos fechado, sem réplica. Um bom slogan é aquele que ex­
clui qualquer resposta; é mau (ineficaz) em caso contrário. Nos
anos 30, uma grande loja anunciava:
ARGUMENTAÇÃO 103

De olhos fechados compro tudo na primavera.

Até o dia em que um outro respondeu:

Quando abro os olhos, eu vou ao Louvre*.

O que ilustra um princípio fundamental: só se pode refutar uma


retórica em seu próprio plano, por meio de outra retórica .
Não-paráfrase e fechamento: demos numerosos exemplos
disso em outros textos7• Aqui ficaremos satisfeitos com um só,
o já mencionado início da primeira Catilinária de Cícero:

Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?

Ele mostra perfeitamente o efeito persuasivo decorrente da


aliança da forma com o fundo. Lembremos que essa pergunta
oratória substitui o exórdio, e que, se aparecesse mais tarde no
discurso, produziria menos efeitos. Constitui uma apóstrofe,
que, aliás, vai durar quase até o fim da arenga; ora, se formos
parafrasear a apóstrofe: "até quando Catilina abusará..." em vez
de "até quando, Catilina, abusarás. ..", perderemos muito. Por
ser não-parafraseável, a pergunta também é fechada, pois é sem
réplica. De fato ela contém três pressupostos. Admitamos que
Catilina tenha respondido: "Vou parar já"; sua resposta teria
deixado intactas três afirmações: 1) houve paciência; 2) ele
abusou dela; 3) essa paciência era "nossa". Note-se, enfim, que
Cícero conseguiu fundir numa mesma frase duas figuras opos­
tas: a apóstrofe e a prosopopéia: finge dirigir-se a outro (Cati­
lina), e não a seu auditório, mas faz o seu auditório (o Senado)
'falar por sua voz: patientia nostra.
Mas quem não percebe que, sem essa retórica, sem esse
elemento oratório, Cícero arriscava-se a fracassar? Sua argu­
mentação/oi eficaz: seria por isso desonesta?

* Note-se que em francês há rima: Quand je les ouvre, je vais au Lou­


vre. (N. do T.)
1 04 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

A nosso ver, a característica da boa argumentação não é


suprimir o aspecto retórico - uma argumentação inexpressiva
não é obrigatoriamente mais honesta -, mas equilibrá-lo, se­
gundo dois critérios.
À não-paráfrase pode-se opor o critério da transparência:
que o ouvinte fique consciente ao máximo dos meios pelos
quais sua crença está sendo modificada; o encanto e a poesia do
discurso não serão destruídos por isso, mas serão dominados.
Ao fechamento, pode-se opor o critério da reciprocidade:
que a relação entre o orador e o auditório não seja assimétrica,
que o auditório tenha direito de resposta. Esses dois critérios
não tornam a argumentação menos retórica, porém mais ho­
nesta.
Naturalmente, esse mais é relativo. Uma mensagem publi­
citária é bem menos transparente e recíproca que uma argu­
mentação acadêmica. No limite inferior, encontramos esse fe­
nômeno próprio do nosso século, a língua estereotipada da pro­
paganda, mensagens sem nenhuma transparência nem sentido
preciso, sem nenhuma reciprocidade, pois se trata do discurso
de um poder cuja "retórica" não tem outra função além de ex­
cluir a crítica.
A linguagem estereotipada da propaganda não é a retóri­
ca; é apenas sua perversão mais caricatural. O que salva a retó­
rica é precisamente o que exclui esse tipo de linguagem: o diá­
logo.

Argumentação pedagógica, judiciária, filosófica

Diálogo: vamos vê-lo em ação em três casos peculiares:


ensino, justiça e filosofia.

Do pedagógico ao judiciário

O ensino não pode prescindir da pedagogia; e toda peda­


gogia é retórica. O professor é um orador que, como todos os
ARGUMENTAÇÃO 105

outros, deve atrair e prender a atenção, ilustrar os conceitos,


facilitar a lembrança, motivar ao esforço. Iremos mais longe:
aquilo que hoje chamamos de "transposição didática" faz parte
da retórica; ensinar uma matéria é conferir-lhe uma clareza,
uma coerência que ela não tem necessariamente como ciência,
é passar da invenção à elocução e à ação, porém muitas vezes
em detrimento do conteúdo propriamente científico. As peda­
gogias ativas, que tendem a suprimir a aula professoral, não
escapam a essa regra: o que há de mais retórico do que conhe­
cer antes aqueles que vão ser instruídos e obter sua adesão?
Note-se enfim que, mesmo quando se trata de ensinar a de­
monstrar, só se obtêm resultados através da argumentação retó­
rica. E aqui tomamos a liberdade de transcrever uma experiên­
cia pessoal do tempo do liceu:

- A professora: Durand, mostre que essas duas retas são


paralelas. - Durand: Está se vendo, professora! A professora:
-

Durand, aprenda de uma vez por todas que em matemática não


se vê nada, demonstra-se.

Esses imperativos ressaltam o aspecto assimétrico do en­


sino, mesmo quando se afirma que há diálogo ou cooperação.
Só que o verdadeiro professor nunca dissimula sua retórica; ao
contrário: ensina os procedimentos retóricos que possibilitam
ensinar, e leva assim os alunos a tornar-se mestres no assunto.
O ensino é, pois, uma relação assimétrica que trabalha por sua
abolição, para que o aluno se torne, se possível, igual ao mes­
tre. Aí está a justificativa do "poder docente".
Poder-se-ia pensar que o ensino define um modelo de re­
tórica "transparente" e "recíproca" que deveria ser encontrada
em todos os outros setores, pelo menos nas democracias. Con­
venhamos que isso é utopia. E acrescentamos: utopia das mais
perniciosas.
Tomemos como exemplo o setor judiciário. Se nos ativés­
semos ao 1nodelo pedagógico, um processo penal deveria ser
um diálogo após o qual o réu confessaria livremente seu crime
e pediria para ser castigado. Esse, aliás, era o ponto de vista de
Platão em Górgias, e foi isso o que os processos stalinistas pre-
106 INTRODUÇÃO Â RETÓRICA

tenderam realizar: processos pedagógicos cujo objetivo era


educar não só o público mas também os culpados, ou pretensos
culpados ...
Nossa democracia não tem essa preten são. Distingue niti­
damente a ética do judiciário, em que as decisões não implicam
a anuência do culpado. Não se espera que o réu aceite o vere­
dicto que o condena; ninguém lhe diz: "Não queremos coagi­
lo ..." Admite-se que a justiça pode coagir. E isso é inevitável,
pois há sempre o risco de que a anuência do condenado seja
obrigatória, portanto hipócrita. Em todo caso, nada é mais
nocivo que introduzir a relação pedagógica nos domínios não
educacionais; isso não é libertar os homens, mas sim infantili­
zá-los.
No judiciário, o diálogo "ecumênico" dá lugar ao debate
polêmico, em que o objetivo não é convencer a parte adversá­
ria, mas uma terceira parte, o tribunal. E o advogado nada tem
de professor; sua finalidade é fazer de tudo para tornar válida a
causa de seu cliente, para lhe dar todas as oportunidades de
vitória. Só que o advogado não está sozinho, mas tem diante de
si colegas capazes de desmentir sua retórica, de contraditá-la
com outra. E as duas partes preparam dessa maneira o julga­
mento do tribunal.

Uma controvérsia judiciária:


os expropriados e a desvalorização

Vejamos um exemplo de controvérsia em direito civil, que


agitou a opinião pública da Bélgica entre 1920 e 1 926, mas que
tem a ver com muitos outros países8• Trata-se da indenização
devida aos expropriados. Falaremos em linhas gerais, sem nos
perder em detalhes técnicos.
A expropriação em caso de utilidade pública é uma venda
forçada. Os proprietários são obrigados legalmente a ceder seu
imóvel ao Estado (ou às comunas), do qual se tornam então
"credores"; a única coisa que podem contestar é o montante da
indenização proposta. Se fizerem isso, a questão vai parar num
ARGUMENTAÇÃO 107

tribunal que designa peritos e depois, eventualmente, uma nova


perícia, de tal modo que o processo pode durar muito tempo.
Assim, em 1909, grande número de expropriados entrou
com uma ação na justiça que durou até 1913. Mas as indeniza­
ções foram suspensas em 19 14 por causa da guerra. Em 1919,
os expropriados voltaram à justiça devido à desvalorização;
nessa época, a moeda belga perdera a metade do valor e, em
1926, no fim do caso, seis sétimos do valor! Caberia indenizar
os expropriados segundo o valor nominal fixado em 19 13,
como se nada tivesse acontecido? Nesse caso, as diferentes câ­
maras do tribunal de Bruxelas deram respostas contraditórias.
Em resumo, os veredictos de tipo A eram favoráveis aos expro­
priados, os do tipo B contrários.
A) Só uma das câmaras julgou que seria preciso recalcular
o valor da indenização - digamos em 1926 multiplicá-la por
sete -, argüindo que a lei previa um ressarcimento "justo", ou
seja, que permitisse ao expropriado adquirir bem equivalente
ao que possuía na época da expropriação. Além do mais, julga­
va a câmara: não se pode atribuir ao expropriado a responsabi­
lidade pela duração do processo, pois ele "tinha o direito de fa­
zer tudo o que estivesse ao seu alcance" para obter a indeniza­
ção mais favorável (in Foriers, p. 3 1 1).
Até aqui, temos a impressão de que se trata de uma de­
monstração pura e simples, porquanto o veredicto só podia con­
tar com a anuência dos interessados.
B) No entanto, várias câmaras do mesmo tribunal toma­
ram a decisão contrária, mesmo diferindo em termos de argu­
mentos. Vejamos os mais notáveis.
O montante da indenização deve levar em conta unica­
mente o valor do imóvel na época da expropriação, e não as
�flutuações" que se seguiram. Não fosse assim (argumento por
absurdo), caso esse valor tivesse baixado, seria preciso reduzir
proporcionalmente a indenização. Em todo caso, "a avaliação
dependeria. de fatores arbitrários" (p. 3 14).
Outro argumento: o Estado que desvaloriza a moeda deci­
de apenas diminuir seu poder aquisitivo; não decide ipso facto
elevar os preços. Inflação não é desvalorização, é apenas uma
1 08 INTRODUÇÃO À .RETÓRICA

de suas conseqüências mais ou menos previsíveis; acontece até


de um Estado desvalorizar sem que os preços subam (argumen­
to de dissociação). Portanto, se o expropriado for indenizado
segundo o valor do imóvel doze anos depois, cria-se um prece­
dente para a especulação.
Um último argumento é mais forte, porque dirigido a um
auditório bem mais amplo e menos especializado: é a regra de
justiça. A desvalorização é uma medida adversa que atinge to­
dos os credores, e deve atingi-los com igualdade. Ora, se for
concedida uma indenização compensatória apenas aos expro­
priados, criar-se-á uma "categoria de privilegiados".

Não é concebível que o expropriado tenha mais direito [que


os outros credores] de prevalecer-se de uma desvalorização da
moeda que ocorreu posteriormente [à expropriação]. (p. 3 16)

Finalmente, um argumento que responde ao último de A: os


expropriados, dilatando o processo, são causadores do próprio
prejuízo, e devem considerar-se os únicos responsáveis por ele.
Como se vê, enquanto A favorece o expropriado, B favo­
rece o expropriador, que poderá pagar em moeda que vale sete
vezes menos. Enquanto A julga em nome da ''justa" reparação,
B julga segundo o texto da lei, em nome do risco de arbitrarie­
dade, e atém-se apenas ao sentido legal da palavra ''justo" -
assim como se fala de "justas núpcias" (p. 3 1 9). Aqui encon­
tramos o debate-tipo de Aristóteles (cf. supra, p. 50).
C) As sentenças de tipo B ganhavam em número, mas in­
dignaram a opinião pública. A Corte Suprema deu parecer fa­
vorável às sentenças de tipo A em 1 929, depois de uma defesa
veemente feita pelo procurador geral, Paul Leclerc.
Esta opõe a B dois argumentos.
Primeiro uma retorsão da regra de justiça. Se é que não se
deve criar desigualdades diante da lei, por que só os expropria­
dos deveriam pagar os custos da desvalorização? O Estado

foi evidentemente culpado por fazer recair sobre uma classe


social em particular os custos da reparação, unicamente porque
essa classe estava em situação de deixar-se pilhar (p. 320; "pi­
lhar": metáfora hiperbólica).
ARGUMENTAÇÃO 109

Segundo argumento: uma dissociação. Até então as câma­


ras tinham considerado a moeda como meio de pagamento.
Leclerc vai mostrar que a moeda também é - sobretudo - um
instrumento de medida da economia. Ora, as desvalorizações
haviam criado uma nova medida

que na verdade é sete vezes menor que a antiga. Doravante o


franco legal é outro bem diferente do franco legal estabelecido
pela legislação ab-rogada. (p. 321)

A última frase introduz uma nova retorsão: Segundo V.


Ex:', não devem ser levadas em conta as "flutuações" posterio­
res à expropriação; ora, aceitando outro franco legal, está sen­
do feito aquilo que V. Exª.' condenam. Note-se a epanalepse:
franco legal.
Esse exemplo mostra que certos raciocínios aparentemen­
te demonstrativos na realidade são argumentativos e retóricos.
Cada um repousa sobre princípios apenas verossímeis: B atém­
se à letra da lei, cuja infração abriria as portas para a arbitrarie­
dade e a desigualdade. A apóia-se na eqüidade e nega que se
deva observar apenas a lei numa situação que ela própria não
previra (a desvalorização). Finalmente, C tem ganho de causa
sobre B utilizando argumentos de B.
A própria solução decorre do debate contraditório. Mas
será ela racional? Não, por certo, porém certamente "mais ra­
zoável".

Argumentação filosófica: onde está o tribunal?

1
E a filosofia? Poderia ser comparada a uma controvérsia
·· em que cada filósofo seria advogado de sua própria causa dian­
te de um tribunal que seria... quem senão o leitor? Mas o leitor
dificilmente admitirá ser melhor juiz do que aqueles que ele lê;
julgará phra si, é verdade, mas não para os outros.
O fato é que os filósofos não formulam o problema dessa
maneira, principalmente - como vimos - a partir de Descartes.
Os maiores deles afirmam ser demonstrativos, "apodícticos",
1 10 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

dizia Kant na língua de Aristóteles; e se, às vezes, aceitam o


termo argumentação é deixando claro que ela não poderia ter
nada que fosse retórico.
A essa pretensão dos filósofos, de serem demonstrativos,
podem ser opostos três argumentos, dos quais os dois primei­
ros decorrem do lugar da unidade. O primeiro é que os filóso­
fos chegam a doutrinas muito diferentes, muitas vezes opostas,
embora a demonstração só possa redundar numa verdade úni­
ca. O segundo, ainda mais forte, é que as estruturas da demons­
tração não são as mesmas, segundo se trate de cartesianos, Kant,
Hegel, Bergson, Husserl, neopositivistas e outros. Há uma só
matemática, enquanto existem várias filosofias.
O terceiro argumento (exemplo) mostra que na verdade os
filósofos todos recorreram, em maior ou menor grau, à argu­
mentação. Descartes argumenta para provar que é preciso
demonstrar. Spinoza, que constrói toda a Ética "de more geo­
metrico" (segundo o método geométrico), acrescenta a suas
demonstrações os mais importantes "escólios", que as ilustram
de modo pedagógico e retórico: tudo acontece como se ele ti­
vesse escrito seu livro duas vezes, a primeira para Deus e a se­
gunda para nós. Hegel procede da mesma maneira na Enciclo­
pédia. E hoje em dia? Hoje em dia parece que a filosofia cin­
diu-se: de um lado uma investigação lógica rigorosa, porém es­
téril; de outro, um discurso retórico que, por falta de interro­
gar-se sobre sua própria argumentação, incide no arbitrário.
No entanto, a pretensão de ser demonstrativo comporta
certa dose de verdade, pois permite distinguir o filósofo do ad­
vogado, tanto quanto, aliás, do pedagogo.
O propósito do filósofo é encontrar, e não ensinar o que
outros encontraram, ainda que muitas vezes se encontre mais
ensinando. Assim também, sua tarefa não é defender uma cau­
sa, e sim sustentar uma tese. Onde está a diferença?
Uma causa exige um juízo hic et nunc; uma tese visa a
uma explicação de alcance universal; ela não responde à per­
gunta: "Catilina é injusto?", mas a outra bem diferente: "O que
é justo e injusto?" E mesmo que a pergunta tenha alcance práti­
co, como aqui, é de longo prazo e para todos. Se cumprisse
ARGUMENTAÇÃO 111

vincular a filosofia a um dos três gêneros, seria ao epidíctico.


De fato, numa causa é sempre preciso suplantar, impor um ve­
redicto para pôr fim ao debate. Uma tese, porém, nunca é im­
posta, e sim proposta. Mas a quem?
Consideremos um exemplo em que se vê a pior retórica (a
mais fácil) passar como por milagre a servir à filosofia, mila­
gre chamado Sócrates. Em Eutidemo de Platão, o sofista Dio­
nisodoro fala assim do ensino:

Quereis que [o aluno] passe a ser sábio e não seja mais


ignorante? ( ...) Uma vez que quereis que ele deixe de ser o que é,
desejais sua morte? (283 s.)

Ele utiliza um sofisma, a fallacia accidentis, em que se


muda um nexo acidental: não ser mais ignorante (nexo aciden­
tal), não ser mais, portanto morrer. Essa metáfora do ensino
como morte é um tanto freudiana, e Ionesco, aliás, realiza-a em
A lição, em que o professor, por ardor pedagógico, acaba ma­
tando o pobre aluno ...
Aí entra o humor de Sócrates; em vez de desmentir a me­
táfora (morrer), brinca com ela e extrai uma lição:

Se [esses sofistas] sabem aniquilar as pessoas de tal manei­


ra que as transformam de viciosas e insensatas em virtuosas e
sábias ( ... ), que matem esse menino para tomá-lo sábio, e a nós
também por acréscimo. (285 b)

O grosseiro sofisma transforma-se em metáfora, ao mesmo


tempo pedagógica e religiosa. Todo verdadeiro ensino é em
certo sentido - sentido metafórico, portanto retórico - uma
morte. E um novo nascimento.
Convém lembrar que em Eutidemo, assim como em todos
os diálogos, os interlocutores são apenas vozes interiores de
Platão, que vê a filosofia como um diálogo consigo mesmo; por
isso, quamio o filósofo propõe uma tese, o faz primeiro a si mes­
mo. E a retórica então? Como todo diálogo, o diálogo interior
também a utiliza, mas confrontando-a logo com uma outra. Por­
tanto, o que distingue o filósofo - mesmo quando fala de política
112 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

ou de direito - do político e do advogado é que ele sustenta ao


mesmo tempo o pró e o contra, é que ele é ao mesmo tempo o
advogado e seu adversário. Mas qual é o tribunal?
O auditório universal, responderia Perelman. Mas deixe­
mos claro que ele não está em lugar nenhum, senão em cada
um de nós. Em Górgias, quando Sócrates declara a Polos que o
culpado é mais digno de lástima que sua vítima, e o culpado
impune mais infeliz que o punido, Polos exclama que ninguém
admitiria tais paradoxos ! E Sócrates:

Tens por ti, Polos, todo o mundo exceto eu. E eu não peço
anuência nem testemunho de ninguém, senão de ti. (47 5 e)

Aí está o supremo tribunal. Em Polos. Em cada um.

Aí está o que tentamos demonstrar neste capítulo9• Inicial­


mente, que a argumentação existe como meio de prova distinto
da demonstração, mas sem incidir na violência e na sedução.
Depois, que ela comporta uma parte de oratória, e que os anti­
gos tinham razão em unificar seus elementos racionais e afeti­
vos num mesmo todo, a retórica.
Essa união vamos agora observar nas figuras.
Capítulo VI
Figuras

O que é figura? Um recurso de estilo que permite expres­


sar-se de modo simultaneamente livre e codificado. Livre, no
sentido de que não somos obrigados a recorrer a ela para comu­
nicar-nos; dessa forma, qualquer um poderá dizer que vai se
suicidar para pôr fim a uma paixão culposa, sem precisar re­
correr às figuras de Fedra:

Para ocultar da luz uma chama tão negra.

Codificado, porque cada figura constitui uma estrutura co­


nhecida, repetível, transmissível. Assim, no verso de Racine,
identificam-se quatro metáforas e um oxímoro (chama tão
negra).
A expressão "figuras de retórica" não é pleonasmo, pois
existem figuras não retóricas, que são poéticas, humorísticas
ou simplesmente de palavras. A figura só é de retórica quando
desempenha papel persuasivo.

A religião é o ópio do povo.

A esta metáfora, Raymond Aron responde com outra:

O marxismo é o ópio dos intelectuais .

Marx e Aron têm pelo menos alguma coisa em comum:


não fazem metáforas por gosto nem por questão de estilo, mas
para convencer. A figura de retórica é funcional.
1 14 INTRODUÇÂO Á RETÓRICA

Mas como? Quando os antigos falam das figuras, é para


evocar o prazer que elas proporcionam, que eles relacionam
com o delectare e mais raramente com o movere. A figura se­
ria, portanto, uma fruição a mais, uma licença estilística para
facilitar a aceitação do argumento. Assim é que na Retórica a
Herênio encontra-se um exemplo de epanalepse:

Não te abalaste quando uma mãe te beijou os pés, não te


abalaste? (IV, 38)

Por que esta repetição? Segundo o autor, tem duas funções: emo­
cionar o auditório e ferir a parte contrária:

Como se um dardo atingisse várias vezes o mesmo lugar


do corpo.

Se o argumento é o prego, a figura é o modo de pregá-lo. . .


Perelman-Tyteca também vêem na repetição uma figura
de "presença", uma das que fazem sentir o argumento. Para
eles, porém, ela não se reduz ao patos; não é apenas o que faci­
lita o argumento, mas constitui o próprio argumento; desse mo­
do, o primeiro Não te abalaste. . . indica um fato; o segundo,
depois de quando uma mãe, ressalta o caráter chocante desse
fato, incompatível (argumento) com os valores da humanidade.
Para o TA, toda figura de retórica é um condensado de argu­
mento: a metáfora é condensado de analogia, etc. A nosso ver,
essa teoria é intelectualista demais; esquece-se do prazer da
figura, que deriva ora da emoção, ora da comicidade, mas sem­
pre do patos.
Aqui estudaremos a função argumentativa das principais
figuras de retórica1, que classificaremos conforme suas rela­
ções com o discurso em que se encaixam.
Figuras de palavras, como o trocadilho, a rima, que dizem
respeito à matéria sonora do discurso.
Figuras de sentido, como a metáfora, que dizem respeito à
significação das palavras ou dos grupos de palavras.
Figuras de construção, como a elipse ou a antítese, que di­
zem respeito à estrutura da frase, por vezes do discurso.
FIGURAS 1 15

Figuras de pensamento, como a alegoria, a ironia, que di­


zem respeito à relação do discurso com seu sujeito (o orador)
ou com seu objeto.

Figuras de palavras

O que caracteriza as figuras de palavras? O fato de serem


intraduzíveis, de poderem ser destruídas por menos que se
mude sua matéria sonora. Por isso, parecem reservadas à poe­
sia ou, a rigor, ao humorismo. Entretanto, devem desempe­
nhar bem alguma função argumentativa, porque os filósofos
mais racionalistas recorrem a elas. Assim, basta traduzir a
expressão Sôma sêma de Platão - "corpo, um túmulo" - para
destruí-la, a não ser que se perca o poder da metáfora.
Essas figuras se dividem em dois grupos:

Figuras de ritmo

Para os antigos, o ritmo da frase tem importância capital,


pois é a música do discurso, o que torna a expressão harmonio­
sa ou tocante, sempre fácil de ser retida. O problema é que os
elementos constitutivos do ritmo, como o acento tônico e a ex­
tensão das sílabas, não são marcados em todas as línguas. Des­
se modo, por exemplo o slogan alemão de 1 968:

�s f@gt @r <!_Il, / kãmpfe_nwir w!<!ter*.


-
(..,)

tem estrutura especular: iâmbico, troqueu/troqueu, iâmbico. Os


esquerdistas franceses, por exemplo, foram obrigados a atri­
buir-lhe um ritmo arbitrário:

* É só o começo; sigamos a luta. (N. do T.)


1 16 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

No entanto, os provérbios, os slogans, certas "frases anto­


lógicas" muitas vezes têm um ritmo próprio graças ao qual fi­
cam na memória:

Qsc@s @dtam / e_a/ c�ra-�llªP-ª ssa


,_ ,
F_aça_a@r, nã9 fu ça_gu.J; rra
,_,

Vejamos algumas figuras de ritmo mais complexas. A pa­


risose é um período composto por dois membros de mesma ex­
tensão:

Beber ou guiar, convém optar. (5 + 5)

A cláusula é uma seqüência rítmica que termina um perío­


do, como esta com seis pés que termina a célebre peroração de
Danton:

Pour les vaincre, Messieurs, il nous faut de l 'audace, en­


care de l 'audace, toujours de l 'audace, �t [a France �st sa_uvée.
(in Suhamy, p. 76)
[Para vencê-los, senhores, precisamos de audácia, mais au­
dácia, sempre audácia, e a França está salva.]

Em todos os casos, o ritmo gera um sentimento de evidên­


cia próprio a satisfazer o espírito, mas também a conseguir sua
adesão ... Põe o pensamento sobre trilhos.

Figuras de som: a/iteração,


paronomásia, antanáclase

As figuras de som implicam fonemas, sílabas ou palavras.


a) Fonemas: aliteração, em que há repetição de uma mes­
ma letra na frase, como por exemplo na frase de De Gaulle, que
lembra o resmuninhar dos velhos mal-humorados:

La grogne, la rogne et la hargne. (r, gn [nh])


[Resmungo, rezinga, rabugem]
FIGURAS 1 17

b) Sílabas: paronomásia: Traduttore, traditore, de cuja tra­


dução não sobra grande coisa (tradutor, traidor). A rima é uma
paronomásia no final das palavras, que retoma em ritmo regu­
lar: Valéry au tri, Anémone au téléfone [Valéry na triagem,
Anémone no telefone] (slogan dos carteiros em greve, em
1975, que brinca com o nome do presidente francês e de sua
esposa).
c) Palavras: a figura baseia-se ora na homonímia, ora na
polissemia.
A partir da homonímia, cria-se o trocadilho, que aproxima
duas palavras idênticas no som, mas com sentido diferente.
Freqüentemente grosseiro, é fino quando cria uma relação
inesperada com a situação. Freud, em O chiste, conta que, num
baile, uma italiana dá um bom troco a Napoleão, quando este
lhe pergunta se todos os italianos dançavam tão mal: Non tutti,
ma buona parte O imperador podia entender: nem todos, mas
...

boa parte, e podia entender também que se tratava de um nome


próprio, o seu.
A figura que se baseia na polissemia é a antanáclase, que
se aproveita de dois sentidos ligeiramente diferentes de uma
mesma palavra; como por exemplo no slogan que aconselha o
exame de mamas:

Eu tenho peito.

Enquanto o trocadilho é sobretudo fático, deixando o ad­


versário sem palavras por desarmá-lo, a antanáclase tem alcan­
ce argumentativo, permitindo pseudotautologias:

Negócios são negócios...

Ligada à antanáclase está a derivação, que associa uma


palavra a outra de igual radical. Assim, no discurso de 30 de
maio de 1 968, de Gaulle denunciava os contestadores que im­
pediam •

os estudantes de estudar, os professores de ensinar [les enseig­


nants d 'enseigner], os trabalhadores de trabalhar.
118 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Se ele tivesse dito: les professeurs d 'enseigner, les ouvriers [ope­


rários] de travai/ler, o argumento de incompatibilidade teria
desaparecido.
Pergunta: de onde vem a força persuasiva das figuras de
palavras? Elas facilitam a atenção e a lembrança, mas não é só
isso. Lembremos o princípio lingüístico da arbitrariedade do
signo, segundo o qual as palavras não são "motivadas": não há
razão para dizer mesa, em vez de Tisch ou tavola. Esse princí­
pio também se aplica às nossas figuras de palavras: não é por­
que dois significantes são idênticos que seus significados tam­
bém o sejam; e, no entanto, tudo acontece como se fossem idên­
ticos. As figuras de palavras instauram uma harmonia aparen­
te, porém incisiva, sugerindo que, se os sons se assemelham,
provavelmente não é por acaso. A harmonia é comprovada pelo
prazer2•
Que prazer? Do achado, da "felicidade de estilo" (Alain).
Podemos ir mais longe. Segundo os psicólogos, a criança des­
conhece a arbitrariedade do signo; para ela, a palavra tem rela­
ção com a coisa. Cabe perguntar se o adulto, que se deleita
com uma figura de palavras - seja ela engraçada ou poética -
não está no fundo sentindo o prazer de retornar à infãncia.

Um argumento retórico: a etimologia

Entre as figuras de palavras, é preciso contar a etimologia,


que serve de argumento tanto para as definições quanto para as
dissociações. Recorrer à etimologia para definir o "verdadei­
ro" sentido de uma palavra na verdade é um ato de poder pelo
qual o orador impõe seu "sentido", portanto seu ponto de vista,
ao auditório.
Note-se que muitas vezes a etimologia é falsa: "religião"
seria relacionável com "relego" [percorrer de novo, revisitar]
ou com "religo" [religar]? "Educação" viria de educere (con­
duzir para fora)? Conjecturas ou fantasias. Mas, ainda que
verdadeira, a etimologia teria algum valor? É evidente que
não se deve rejeitar a história das palavras. Caberia mesmo
FIGURAS 119

criar uma história do vocabulário. Por exemplo, em latim clás­


sico, puer designa a criança, infans o bebê, aquele que não
fala (fari, falar). Mais tarde, as designações das faixas etárias
acabam com outra distribuição, e infans designa aquele que
ainda não chegou à adolescência. Mas, daí a pretender que a
infância é, "por definição'', o período em que não há fala, não
tem o menor fundamento, é propriamente errôneo. Na verda­
de, o argumento etimológico esquece-se de outra lei lingüísti­
ca, a de que a palavra só tem sentido sincronicamente, ou
seja, no sistema presente de uma língua. Desse modo, a pala­
vra "infância" só tem sentido em relação a "lactação" e a
"adolescência"; e o latim não tem autoridade alguma nesse
sentido.
O argumento etimológico às vezes cai no ridículo. Cabe
citar nesse aspecto os adversários de Freud que, no início do
século, pretendiam refutá-lo aduzindo o "sentido etimológico"
de histeria, derivado do grego hystera, útero, para afirmar que,
"por definição", histeria só poderia ser doença de mulher! É
verdade que depois disso os psicanalistas inventaram muitas
outras3•••

Etimologia como parte da história das línguas, sim. Eti­


mologia como argumento, talvez, porém do mesmo tipo da an­
tanáclase, e não do trocadilho.
Uma última observação sobre as figuras de palavras: deve­
se evitar o abuso. Lembremos J.-J. Rousseau que, em Emílio,
vocifera contra La Fontaine, dado às crianças como "moral":

sans songer que l 'apologue, en les amusant, les abuse


[sem pensar que o apólogo, distraindo, trai].

Se ele tivesse dito: en les amusant, les trompe [distraindo, en­


gana], não haveria atrativo. "Les amuse et les abuse" [distrai
e trai] seria vistoso demais, nouveau-riche demais; desviaria
a atençã9 da tese em vez de valorizá-la. Retórica, arte fun­
cional . . .
120 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Figuras de sentido

Se as figuras de palavras dizem respeito aos significantes,


as de sentido dizem respeito aos significados. Portanto, podem
ser traduzidas sem - ou sem nem tantos - estragos. Consistem
em empregar um termo (ou vários) com um sentido que não lhe
é habitual. O olho escuta... Esta estranha metáfora de Claudel
poderia levar a pensar em "desvio", transgressão da norma le­
xical segundo a qual o olho deve enxergar e não se intrometer
no serviço dos vizinhos ... Mas, restabelecendo-se o termo pró­
prio, perde-se sentido, pois o olho que "escuta" uma obra de
arte compreende-a, e compreende-a porque lhe obedece. Por­
tanto escuta é o termo exato. Isso acontece com toda verdadei­
ra figura.
Em outras palavras, a figura de sentido desempenha papel
lexical; não que acrescente palavras ao léxico, mas enriquece o
sentido das palavras.
"Já disse mil vezes." "Tenho mil coisas para dizer..." A
palavra "mil" perde o sentido quantitativo para expressar algo
como: vezes demais ... (para repetir outra vez), coisas demais
(para dizer tudo agora... ). A hipérbole cria o sentido.
Desse modo, a figura de sentido é um tropo, um signifi­
cante tomado no sentido de outro, escuta por olha com reve­
rência. Mas nem todo tropo é uma figura de sentido. Quando o
tropo é lexicalizado a tal ponto que nenhum outro termo pró­
prio poderia substituí-lo, passa a ser catacrese. Assim, asas do
avião na origem era uma metáfora, mas não é mais figura, pois
não há como dizer de outra forma.
Inversamente, por falta de referências culturais, uma figu­
ra pode ser incompreensível; torna-se então enigma, mas aí
deixa de ser retórica. Podemos dizer da figura de sentido aqui­
lo que Aristóteles dizia da metáfora: deve ser clara, nova e
agradável. Nova, porém clara e por isso mesmo agradável, como
o enigma que se tem a alegria de desvendar. A meio caminho
entre o enigma e o clichê, a figura de sentido desempenha seu
papel retórico.
FIGURAS 12 1

Tropos simples: metonímias, sinédoques, metáforas

Trataremos agora das três figuras de sentido de que deri­


vam todas as outras.
A metonímia designa uma coisa pelo nome de outra que
lhe está habitualmente associada. Seu poder argumentativo é
antes de tudo o da denominação, que ressalta o aspecto da coisa
que interessa ao orador. Assim, O trono e o altar é uma metoní­
mia valorizadora; O sabre e o aspersório é metonímia deprecia­
tiva, que reduz o exército a extermínio, e a Igreja a superstição.
Baseada no nexo habitual, a força argumentativa da meto­
nímia provém da familiaridade, e essa força desaparece quando
a metonímia vem de outra cultura. Para quem acha, por exem­
plo, que o poder ministerial se chama gabinete, pasta ou mes­
mo Esplanada, é difícil entender como o Império Otomano pô­
de usar o Divã como símbolo do poder. É verdade que a psica­
nálise já deveria nos ter acostumado com isso, mas entre os tur­
cos era o ocupante do divã quem detinha o poder...
Diz-se com freqüência que, em vista da poética metáfora,
a metonímia é prosaica e pobre. No entanto, existem "metoní­
mias vivas". Quando, em 1700, o embaixador da Espanha
declarou Já não há Pireneus, deve ter produzido um belo efeito
surpresa; se tivesse dito apenas "acabaram-se as fronteiras'',
teria perdido a conotação de cadeia inóspita, quase intranspo­
nível, que só o divino poder dos reis poderia abolir, poder ca­
paz de mover montanhas ...
O importante é que, mais que os outros tropos, a metonímia
cria símbolos, como por exemplo A foice e o martelo, A rosa e a
cruz. Nesse sentido, condensa um argumento fortíssimo.
A sinédoque distingue-se da metonímia por designar uma
· coisa por meio de outra que tem com ela uma relação de neces­
sidade, de tal modo que a primeira não existiria sem a segunda;
por exemplo cem cabeças por cem pessoas, sinédoque da parte,
ou cem 'lflortais, sinédoque da espécie. Donde sua função pró­
pria: ela é a figura que condensa um exemplo. Muito corrente
em pedagogia (triângulo por todos os triângulos; soneto por
todos os sonetos), serve também à propaganda: partido dos
122 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

trabalhadores, sinédoque da parte. Na verdade, nada prova que


o partido em questão represente todos os trabalhadores.
Isso também se observa com a antonomásia, sinédoque
que consiste em designar uma totalidade ou uma espécie pelo
nome de um indivíduo considerado seu representante: Joffre
ganhou a batalha do Mame, como se ele estivesse lá sozinho!
Sabe-se muito bem como o referido Joffre motivou a sinédo­
que: Não sei se fui eu que a ganhei, só sei que eu sou quem a te­
ria perdido! O slogan dos anos 30, Hitler é a guerra, fazia re­
cair sobre Hitler todo o peso do hitlerismo. Também aqui se
encontra a argumentação pelo exemplo.
A metáfora designa uma coisa com o nome de outra que
tenha com ela uma relação de semelhança. Voltaremos depois a
seu papel argumentativo. Aqui diremos algumas palavras sobre
sua gênese. Diz-se que a metáfora é uma comparação abrevia­
da, que substitui o é como por é: Ela é [bela como] uma rosa; O
olho [olha como se] escuta. Mas que comparação? Se esta se
referir a realidades homogêneas, sua abreviação não redundará
em metáfora: Pedro é [alto como] um gigante; João é [baixo
como] um anão. Trata-se antes de hipérboles por meio de siné­
doques. É o mesmo se eu disser: Esta água está [fria como]
uma pedra de gelo.
Suponhamos agora que se diga: Sofia é uma pedra de gelo.
Há de fato uma comparação (e pouco benevolente), mas de ou­
tro tipo, porque Sofia não é da espécie dos seres que podem
transformar-se em gelo; a semelhança em que se baseia essa
metáfora provém de termos heterogêneos, que não têm matéria
nem medida em comum; Sofia não é nem uma pedra de gelo,
nem é como uma pedra de gelo. Então, como poderemos en­
tender a metáfora? Por uma semelhança de relações entre ter­
mos heterogêneos (cf. infra, pp. 193 a 196).
Em resumo, se desenvolvermos a metáfora e lhe restituir­
mos seu como, teremos uma figura de comparação especial,
que os antigos chamavam de eikon, simile, e que, como os in­
gleses, chamaremos de símile. O símile é uma comparação en­
tre termos heterogêneos: Ela canta como um rouxinol, que se
abrevia em metáfora como O rouxinol4•
FIGURAS 123

O símile, como a metáfora que dele deriva, é fonte de poe­


sia, pois aproxima seres cuja semelhança antes não fora perce­
bida; cria, como em Claudel, o que em seguida vai parecer evi­
dente. Se for inesperado demais, dará origem à comicidade:
bonita como um avião, falada como a torre de Pisa. Sua criati­
vidade permite entender o poder argumentativo da metáfora5•

Tropas complexos: hipálage,


enálage, oxímoro, hipérbole, etc.

Desses três tropos básicos derivam outros.


A hipérbole é a figura do exagero. Baseia-se numa metá­
fora (Estou morto de cansaço), ou numa sinédoque (As massas
laboriosas, para certo número de trabalhadores).
Para entendê-la, comecemos pela admirável definição de
Pierre Fontanier:

A hipérbole aumenta ou diminui as coisas em excesso,


apresentando-as bem acima ou bem abaixo do que são...

Temos aí a estrutura da hipérbole: auxese quando amplia em


sentido positivo (esse gigante); tapinose, em sentido nega­
tivo (esse anão), sendo sempre o significado figurado bem
maior ou bem menor que o significado próprio. Por que esse
exagero?

... não com o intuito de enganar, mas de levar à própria ver­


dade, e de fixar, através do que ela diz de incrível, aquilo em que
é realmente preciso crer.

Em suma, não é uma figura da mentira, como quando se diz


que alguém está morto, se ele está bem vivo; é uma figura de
expressão, como em Estou morto, que não engana ninguém.
Porém, J"ira exprimir o quê?
O inexprimível, por certo. A nosso ver, a função semânti­
ca da hipérbole é dizer que de fato não conseguimos dizer, é
dar a entender que aquilo de que estamos falando é tão grande,
124 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

tão bonito, tão importante (ou o contrário) que a linguagem


não poderia exprimir. Donde o papel fundamental da hipérbole
na retórica religiosa, visto que só ela pode designar aquilo que
não se pode denominar.
Mas, além da expressão, ela condensa um argumento, o de
direção: se começarmos assim, onde vamos parar? A hipérbole
amplifica o argumento, colocando-se já de início nesse ponto
final, como veremos nos textos 1 1 e 1 2 .
Se, em vez de dizer Estou morto, eu disser Estou meio
cansado, estarei substituindo a hipérbole pela litote, que não é
uma hipérbole ao contrário, como a tapinose, mas o contrário
da hipérbole. Figura do etos, por mostrar o orador modesto,
prudente, comedido, a litote possibilita outras figuras, como a
insinuação, o eufemismo e sobretudo a ironia: Não, o doutor X
ainda não matou todos os seus doentes... Como muitas vezes
acontece, essa litote procede pela negação de uma hipérbole:
matou.
A hipálage é um deslocamento de atribuição. Como no
célebre verso de Virgílio, que fala dos mortos a vagarem pelos
Infernos:

Jbant obscuri sola sub nocte per umbram...


(Iam escuros por entre a sombra na noite solitária...)

Se ele tivesse falado em noite escura e almas solitárias, o efeito


de hipotipose teria sido destruído; estaria perdida a expressivi­
dade do quadro.
Daí a força argumentativa da hipálage. Por metonímia:
liberdade de preços, por liberdade dos comerciantes, como se
eles nada tivessem que ver com os preços, como se estes decor­
ressem de um determinismo natural.
A enálage é um deslocamento gramatical: do adjetivo
para o advérbio, como em Vote certo; de uma pessoa para ou­
tra e de um tempo verbal para outro, como em O que estare­
mos fazendo?, por "o que você está fazendo?" A enálage torna
as coisas mais presentes, embora também mais confusas; em
Pensar francês, de Pétain, qual era exatamente o sentido de
"francês"?
FIGURAS 1 25

O oxímoro é a mais estranha das figuras; consiste em unir


dois termos incompatíveis, fazendo de conta que não são: Essa
escura claridade que cai das estrelas (Corneille), O sol negro
(Nerval). Como é possível? M. Prandi responde6 que ele indica
um conflito entre dois enunciadores: um deles - todo o mundo
- diz que está fazendo sol, e o outro - o poeta - declara metafo­
ricamente que para ele tudo está negro. Assim, quando qualifi­
ca Antígona de santamente criminosa, Sófocles quer dizer que
ela é criminosa para o poder (Creonte), porém santa para os
deuses e para sua consciência. Perelman-Tyteca vêem no oxí­
moro uma dissociação condensada, por exemplo entre a apa­
rência - criminosa - e a realidade santamente.
-

Finalmente, dois tropos complexos, simétricos.


Um deles é a metáfora expandida, seqüência coerente de
metáforas, que aliás permite a personificação e... o humor;
como por exemplo a metáfora também citada por Prandi:

O inconsciente da minha máquina de escrever comete es­


tranhos lapsos.

Outro é a metalepse, que é para a metonímia o que a metá­


fora expandida é para a metáfora: urna seqüência coerente. As­
sim, no Eclesiastes se diz:

Quando a porta está fechada para a rua, quando cessa a voz


do moinho, quando se cala o canto do pássaro ( . . . ), quando há
temor da subida e pavores em caminho... (XII, 4, 5)

Obscura e terrível metalepse para dizer: quando se está velho.


Essa figura designa a velhice através de seus efeitos: ce­
gueira, surdez, fadiga, etc. Mas é redutora, pois só leva em
· conta os efeitos negativos; poderia até considerar os efeitos po­
sitivos da terceira idade: prudência, paciência, etc. De fato,
todas as figuras de sentido são redutoras, por focalizarem certo
aspecto e f!obretudo certo valor do objeto que apontam em de­
trimento dos outros. Donde seu papel argumentativo.
1 26 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Figuras de construção

As figuras abaixo dizem respeito à construção da frase, ou


mesmo do discurso. Algumas procedem por subtração, outras
por repetição, outras por permutação.

Figuras por subtração: elipse,


assíndeto, aposiopese ou reticência

A elipse consiste em retirar palavras necessárias à cons­


trução, mas não ao sentido. Isso acontece, por exemplo, no pro­
vérbio Longe dos olhos, longe do coração e no slogan CRS
SS *. As palavras que desaparecem são adjuntos ou copulati­
vos, como o verbo ser, o artigo, a preposição, etc., mas isso
também pode acontecer com vocáculos plenos.
Parece que a elipse é antes um meio de criar figuras do
que propriamente uma figura. Por meio de cortes na frase, ela
produz metonímia, enálage (Pense [com vistas a uma coisa]
grande), oxímoro (O sol [não impede que para mim tudo seja]
negro), metáfora (Sofia é [fria como] uma pedra de gelo).
O assíndeto é uma elipse que suprime os termos conec­
tivos, tanto cronológicos (antes, depois) quanto lógicos (po­
rém, pois, portanto). O assíndeto é ao mesmo tempo expres­
sivo, pelo efeito surpresa ( Vim, vi, venci), e pedagógico, pois
deixa por conta do auditório o trabalho de restabelecer o elo
que falta, e isso o arregimenta, torna-o cúmplice do orador, a
despeito de suas reticências. Assim o slogan criado em 1 987
pelo governo francês, após a decretação da liberação dos
preços:

Os preços estão livres. Vocês são livres. Não digam sim a


qualquer preço.

* CRS = Compagnie républicaine de sécurité, polícia para repressão


de tumultos; SS = esquadrões militares da Alemanha nazista. (N. do T.)
FIGURAS 1 27

Além do trocadilho nas últimas palavras, recorre-se ao as­


síndeto; o que se deve acrescentar entre 1 e 2, e entre 2 e 3: por­
tanto ou mas?
A aposiopese, ou reticência, interrompe a frase para passar
ao auditório a tarefa de completá-la; figura por excelência da in­
sinuação, do despudor, da calúnia, mas também do pudor, da ad­
miração, do amor, sua força argumentativa advém do fato de
retirar o argumento do debate para incitar o outro a retomá-lo por
sua conta, a preencher por sua conta os três pontos de suspensão.

Figuras de repetição: epanalepse, antítese

Chamamos de epanalepse a figura de repetição pura e


simples. Propõe duplo problema, o da correção e o da utilida­
de. Que um aluno repita uma palavra na frase ... o professor
mandará substituí-la por um sinônimo. Mas será que o profes­
sor vai corrigir O homem é o lobo do homem? É aí que entra a
utilidade da repetição; se a frase dissesse "é lobo para seu se­
melhante", estaria destruído o argumento de incompatibilidade
que sugere: o homem é aquilo que não deveria ser, pois tem o
homem como semelhante.
Evidentemente, a epanalepse também diz respeito ao pa­
tos. Quando de Gaulle exclama em sua mensagem de 1 8 de
junho de 1 940:

Pois a· França não está sozinha, não está sozinha, não está
sozinha,

está expressando sua convicção patética, que tudo parecia des­


mentir então.

Não se deve confundir epanalepse com antanáclase, que é


a repetição de uma palavra com sentidos diferentes, nem com a
perissologia, repetição de uma mesma idéia com palavras dife­
rentes. •
Dá-se o nome de antítese à oposição filosófica de teses
ou a uma oposição retórica, que sobressai graças à repetição;
AABA, AACA, etc. A antítese é a oposição no mesmo.
1 28 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

O mesmo pode ser representado por palavras idênticas:

Fulminados hoje pela força mecânica, poderemos vencer


no futuro com uma força mecânica superior. (ibid.)

O mesmo também pode ser representado pelo equilíbrio


rítmico:

Et monté sur lefaite il aspire à descendre (Comeille)


[E subido no cume ele aspira a descer.]

A identidade dos dois hexâmetros reforça a oposição.

Figuras diversas: quiasma,


hipérbato, anacoluto, gradação

O quiasmo é uma oposição baseada numa inversão, AB­


BA, e não mais na repetição:

Deve-se comer para viver, e não viver para comer.

Às vezes cômico, o quiasmo no entanto integra-se muito


bem nas visões trágicas do mundo, de São Paulo a Karl Marx:

Quem se exalta será humilhado, quem se humilha será


exaltado. (Lc, XVIII, 14)
Ao contrário da filosofia alemã, que vai do céu à terra, aqui
subimos da terra ao céu ( . . . ) Não é a consciência que determina a
vida, é a vida que determina a consciência. (Marx, A ideologia
alemã.)

Aqui o quiasmo está a serviço de um argumento de disso­


ciação. Ao par ilusório estabelecido pelo idealismo alemão,
que põe a "terra" como não essencial e a "vida"como simples
exteriorização da consciência, Marx opõe como verdadeiro o
par inverso; a forma em X do argumento confere-lhe aparência
de necessidade. No entanto, ele assenta numa alternativa sim­
plista: é a consciência que determina a vida, ou o inverso? Po-
FIGURAS 1 29

de-se dizer que, se a vida determina a consciência, esta, em tro­


ca, muda a vida. A causalidade linear é então substituída pela
retroação. Também neste caso o argumento é sedutor, porém
redutor.
Cabe mencionar mais três figuras de construção.
O anacoluto perturba a sintaxe da frase:

O maior filósofo do mundo, sobre wna prancha mais larga do


que necessário, se embaixo houver wn precipício, ainda que sua
razão o convença de sua segurança, prevalecerá sua imaginação.

O sujeito do verbo deveria ser o filósofo mas, para nossa sur­


presa, é a imaginação. Seria o anacoluto um "desvio em rela­
ção à norma"? Parece que sim, e até um erro; qualquer profes­
sor teria despachado o aluno Pascal a golpes de tinta vermelha. . .
No entanto, será possível expressar de forma diferente a derro­
ta da filosofia?
A nosso ver, o anacoluto não constitui um erro, mas é a in­
cursão do código da língua oral no código da língua escrita, o
que torna a expressão mais pessoal e a argumentação mais viva.
O hipérbato, ou inversão retórica, é um caso particular de
anacoluto:

Chorosa empós seu carro, quereis vós que me vejam? (Ra­


cine)

Finalmente, a gradação consiste em dispor as palavras na


ordem crescente de extensão ou importância:

A pobreza viril, ativa e vigilante. (La Fontaine)

Portanto, é um excelente meio de apresentar os argumentos: não


só, mas também, e sobretudo. . .

Figuras'1e pensamento

As figuras de pensamento são, em princípio, independen­


tes do som, do sentido e da ordem das palavras: só dizem respei-
130 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

to à relação entre idéias. Mas essa definição dos antigos levaria


a excluí-las do campo das figuras, e mesmo da retórica, que se
caracteriza pela íntima ligação entre língua e pensamento. A
nosso ver, essas figuras são identificadas por três critérios.
Em primeiro lugar, não se referem a palavras ou à frase,
mas ao discurso como tal; o trocadilho implica algumas pala­
vras, enquanto que a ironia engloba todo o discurso; um livro
inteiro pode ser irônico. Em segundo lugar, dizem respeito à
relação do discurso com seu referente; ou seja, pretendem ex­
pressar a verdade: enquanto a metáfora não é verdadeira nem
falsa, a alegoria poderá ser verdadeira ou falsa. Finalmente,
uma figura de pensamento pode ser lida de duas maneiras: no
sentido literal ou no sentido figurado. Uma andorinha só não
faz verão: a verdade do sentido meteorológico implica a verda­
de do sentido humano.

Alegoria: figura didática?

Esse triste provérbio - eles raramente são alegres - já é


uma alegoria. A alegoria é uma descrição ou uma narrativa que
enuncia realidades conhecidas, concretas, para comunicar me­
taforicamente uma verdade abstrata. Ela é a estrutura do provér­
bio, da fábula, do romance de tese, da parábola7•
Apesar de ser uma seqüência de metáforas - andorinha
como boa nova, verão como felicidade - nem por isso a alegoria
é uma metáfora expandida. Por quê? Exatamente porque todos
esses termos são metafóricos, enquanto na metáfora expandida
os termos figurados se encaixam num contexto de termos pró­
prios, de tal modo que a mensagem só possa ter um sentido, o
figurado. Em Ponha um tigre no seu carro, tigre é metafórico, o
resto não; assim, ninguém achará que se trata de um tigre de
verdade, exceto o cineasta Jean-Luc Godard, que, para satirizar,
filma um tigre num motor. A verdadeira alegoria, cujos termos
são todos metafóricos, apresenta duas leituras possíveis:
"Pedra que rola não cria limo" também pode ser lido em
sentido figurado: quem viaja muito não cria amigos. Note-se
FIGURAS 131

que, na Escócia, Rolling stones gather no moss tem, ao contrá­


rio, sentido positivo: quem viaj a não cria cascão, está sempre
novo.
É por isso que não podemos concordar com Goethe e com
os românticos, que opõem a alegoria - figura que teria apenas
um sentido figurado - ao símbolo, que seria aberto e polissêmi­
co: vemos que a alegoria também pode ser assim. Fato é que ela
tem má fama: é tachada de factícia, de ser criada para as neces­
sidades da causa, em resumo, de ser puramente didática.
Nesse caso, trata-se de uma curiosa didática, pois com ela
se acaba perdendo tempo. Platão, após ter enunciado a alegoria
da Caverna, precisa explicá-la; e Jesus também precisa dar a
chave de suas parábolas: estranha didática que se condena a en­
sinar duas vezes! Mas veremos, com Rousseau (texto 1 1), que
o verdadeiro problema da educação talvez não seja "ganhar"
tempo.
Na realidade, se a alegoria é didática, não é por tornar as
coisas mais claras ou mais concretas; ao contrário, é por intri­
gar. A alegoria da Caverna e a parábola do Semeador intrigam
os discípulos, que sentem que o texto quer dizer alguma coisa a
mais do que está dizendo, mas não sabem o quê; esperam a
explicação do mestre, explicação que não estariam desejando
se o mestre a tivesse dado sem preparação prévia. Existe uma
pedagogia muito antiga, a do mistério, que consiste em retardar
a solução para incitar o discípulo a buscá-la, para motivá-lo a
aprender. É nesse sentido que a alegoria é "didática".
Donde seu papel também argumentativo: ela alicia as pes­
soas, no sentido de que, se estas aceitarem o foro (a letra), se­
rão obrigadas a aceitar também o tema (espírito). Tomaremos
da Bíblia (2 Sm XII, 1 ) o exemplo do profeta Natã, que vai di-
. zer ao rei Davi:

Havia dois homens numa mesma cidade, um rico e outro


pobre. O rico possuía gado pequeno e grande em abundância. O
pobrl nada tinha a não ser uma ovelhinha ( . ) que ele amava
..

como filha. Um hóspede chega à casa do rico que, poupando-se


de tomar um dos animais de seu rebanho para servir ao viajante.
pega a ovelha do pobre para prepará-la...
132 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Essa narrativa indigna e intriga Davi, quer saber quem é esse


homem, "que merece a morte". E o profeta responde-lhe "Tu
és esse homem."
Era ele, Davi, que, inflamado de paixão por Betsabá, rap­
tara-a, engravidara-a e depois, arranjando tudo para que o ma­
rido dela morresse na guerra, desposara-a. Vemos aí a força da
alegoria. Se Natã tivesse simplesmente exposto o crime, o rei
poderia ter respondido que o amor não tem lei, ou que havia
necessidade de um herdeiro para a coroa; poderia até não ter
ouvido nada. Aqui, a causa é ouvida antes mesmo de ser expos­
ta, e, ao condenar o rico, o rei prendeu-se em seu próprio vere­
dicto. Prestando atenção à narrativa, Davi não percebeu - nem
de longe - que se tratava dele. Sem a alegoria, teria porventura
entendido?

Ironia, graça e humor

Na ironia, zomba-se dizendo o contrário do que se quer


dar a entender. Sua matéria é a antífrase, seu objetivo o sarcas­
mo; trata-se realmente de uma figura de pensamento, pois tem
dois sentidos: És afénix... pode ser tomado ao pé da letra, como
a ave, ou então segundo seu espírito, que aqui se opõe ao senti­
do próprio do termo.
A ironia pode ser amena ou cruel, sutil ou grosseira, amarga
ou engraçada... Delimitaremos o assunto com duas perguntas.
O que a torna "fina"? Provavelmente o afastamento entre
os dois sentidos, a letra e o espírito. É verdade que se pode
"marcar" a ironia: pelo tom de voz, por ponto de exclamação,
aspas, etc. Se clara demais, passa a ser fácil. A ironia pesada é
a esperada, a que sucumbe ao peso do sentido. A ironia é fina
quando seu verdadeiro sentido se deixa esperar, quando sua
vítima é a última pessoa a percebê-la; indo mais longe, pode-se
dizer que é aquela cujo sentido nunca ficará completamente
claro, que sempre deixará alguma dúvida.
Por que é engraçada? Por certo há sempre uma dose de
alegria sádica na ironia, o "prazer maligno" de ver a bola mur-
FIGURAS 133

char, de ver o esfrangalhamento das pretensões de poder, saber


e virtude exatamente porque quem faz a ironia parece levá-las
a sério. Figura do patos e do etos - põe do seu lado quem ri -, a
ironia também é figura do logos, por ressaltar um argumento
de incompatibilidade pelo ridículo.
Apreciemos a réplica de Napoleão III, quando lhe mostra­
ram violento panfleto de V. Hugo contra ele:
o

Pois bem, Senhores, aí está Napoleão, o Pequeno, por


Victor Hugo, o Grande.

O que ele quis dizer exatamente? "É ele que se toma por Napo­
leão." "Não me atinge." "Admiro-o apesar de tudo como poe­
ta"... Talvez os três.
A graça, em retórica, é a ironia que vem a calhar, a réplica
arguta, que é a mais eficaz. Quanto ao humor, não é uma espé­
cie de ironia; é o contrário da ironia. Esta denuncia a falsa serie­
dade em nome de uma seriedade superior - a da razão, do bom
senso, da moral -, o que coloca o ironista bem acima daquilo
que ele denuncia ou critica: não é o saber que faz de Sócrates
um mestre, mas sua ironia. No humor, é o próprio sujeito que
abandona sua própria seriedade, que abdica da importância. O
que em princípio exige dele certa calma, certo domínio de si -
sim, a fleuma britânica e o humor são uma coisa só -, e desse
modo se explica que o primeiro grau do humor seja a palavra
descontraída nos momentos em que todos já perderam a cabeça.
Antídoto contra todos os fanatismos, o humor tende para o irra­
cional e às vezes para o niilismo. Assim, se a ironia é uma arma,
o humor é algo que desarma. Retórica superior.

Figuras de enunciação: apóstrofe,


prosopopéia, preterição, epanortose

Cettas figuras têm parentesco com a ironia, mas sua antí­


frase diz respeito à enunciação, e não ao enunciado.
A apóstrofe consiste em dirigir-se a algo ou alguém dife­
rente do auditório real, para persuadi-lo mais facilmente. O
1 34 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

auditório fictício pode ser um ser presente, mas na maioria das


vezes está ausente: são mortos, antepassados, a pátria, os deu­
ses, qualquer coisa:

Onde estou? O que vi? Enganais-me, olhos meus?

Para o TA, esta seria uma "figura de comunhão" (p. 240),


que une o auditório ao orador. Para nós é mais uma figura de
amplificação, que permite ultrapassar o auditório real em dire­
ção a um auditório (mais) universal, ou, inversamente, em di­
reção a um indivíduo que personifique o auditório universal.
A prosopopéia consiste em atribuir o discurso a um orador
fictício: antepassados, mortos, leis, como Sócrates em Críton,
que é interpelado pelas leis de Atenas:

O que tentas (ao fugir), seria outra coisa senão destruir­


nos, a nós, as leis ... ?8

A preterição, muito próxima da aposiopese, consiste em


dizer que não se vai falar de alguma coisa, para melhor falar
dela. Eu também poderia ter dito que... Como se lê no TA, ela é
"o sacrificio imaginário de um argumento" (p. 645).
A epanortose consiste em retificar o que se acaba de dizer:
Ou melhor... Também é uma intrusão do código oral na língua
escrita; faz o discurso parecer mais sincero e, ademais, faz o au­
ditório participar do encaminhamento dado pelo orador.
A contrafisão é uma espécie de optativo que sugere o con­
trário do que diz: Tenhamfilhos então!
A epítrope ou permissão é uma figura de indignação que
finge aceitar um ato odioso de alguém para sugerir que esse
alguém seria capaz de cometê-lo:

Eis aqui sangue, vem beber ... (cf. texto 5)

Assim como a hipérbole, sublinha um argumento de di­


reção.
FIGURAS 1 35

Figuras de argumento: conglobação,


prolepse, apodioxe, cleuasmo

Existem, finalmente, figuras de pensamento dificeis de


definir sem recorrer à noção de argumento: mais que as outras,
elas demonstram a existência de laços íntimos entre estilo e ar­
gumentação.
A prolepse antecipa o argumento (real ou fictício) do ad­
versário para voltá-lo contra ele: Dizer-nos que...
A conglobação acumula argumentos para uma única con­
clusão. A expolição retoma o mesmo argumento com formas
diferentes. A pergunta retórica apresenta o argumento em for­
ma de interrogação.
O cleuasmo consiste no desgabo que o orador faz de si
mesmo, para angariar confiança e simpatia do auditório: Talvez
eu esteja sendo tolo, mas. . Figura do etos, o cleuasmo também
.

afirma a vingança do bom senso sobre os especialistas ou os


eruditos, da vivência sobre o livresco, da ingenuidade sobre a
sofisticação. Desse modo, o criado Sganarello diz a Don Juan:

De minha parte, senhor, nunca estudei como vós, graças a


Deus, e ninguém poderia se gabar de alguma vez ter-me ensina­
do algo; porém, com meu modesto senso, meu modesto juízo,
enxergo melhor que os livros . . .

A apodioxe é a recusa argumentada de argumentar, quer


em nome da superioridade do orador (Não tenho lições para
receber... ), quer em nome da inferioridade do auditório (Não
cabe a vocês dar-me lições . . . ) Trata-se de uma espécie de vio­
lência verbal. Mas será só isso?

Somos todos judeus alemães.

O célebre slogan de maio de 1 968 respondia a quem ale­


gava que oPlíder esquerdista Cohn-Bendit, sendo filho não na­
turalizado de judeus alemães, não podia dirigir um movimento
político francês. O slogan não recusava o diálogo, mas rejeita­
va o pretenso acordo prévio imposto pelos adversários para que
1 36 INTRODUÇÃO Â RETÓRICA

houvesse diálogo (ou seja, um homem, que é judeu e alemão,


só tem de calar a boca): queremos discutir, sim, mas não nesse
nível! A apodioxe, aqui, não é mais violência, mas rejeição à
violência. O mesmo acontece com o slogan americano Black is
Beautiful: reivindicamos aquilo pelo que somos desprezados.
Como se vê, existem figuras explosivas. Mas a mais ex­
plosiva provavelmente é a hipotipose (ou quadro), que consiste
em pintar o objeto de que se fala de maneira tão viva que o
auditório tem a impressão de tê-lo diante dos olhos. Sua força
de persuasão provém do fato de que ela "mostra" o argumento,
associando o patos ao logos. Dessa forma, Andrômaca respon­
de a Cefisa, que a aconselha a casar-se com Pirro, com esta
descrição do saque de Tróia:

Songe, songe, Céphise à cette nuit cruel/e


Quifut pour tout un peuple une nuit éternelle.
Figure-toi Pyrrhus, les yeux étincelants,
Entrant à la lueur de nos palais brúlants,
Sur tous mesfreres morts sefaisant un passage
Et de sang tout couvert échauffant le carnage;
Songe aux cris des vainqueur, songe aux des mourants,
Dans lajlamme étouffés, sous lefer expirant;
Peins-toi dans ces horreurs Andromaque éperdue:
Voilà comme Pyrrhus vint s 'ojfrir à la vue!

Pensa, pensa, Cefisa na noite fera!


Que para um povo inteiro foi noite eternal.
Afigura-te Pirro com olhos luzentes
A entrar no clarão dos palácios ardentes,
Sobre meus irmãos mortos abrindo passagem
E de sangue coberto incitando a carnagem;
Ouve os gritos de triunfo, ouve os ais dos que clamam
A morrer pelo ferro, abafados na chama.
A vagar nesse horror, vê Andrômaca então:
E verás qual de Pirro foi dela a visão!

Essa evocação quase alucinatória (pensa, afigura-te) é


amplificada por inúmeras aliterações: lueur - palais brúlants
[literalmente, clarão, palácios em chama], pela enálage do pre-
FIGURAS 137

sente (aqui o s gerúndios); pelas metonímias: clarão, chama,


ferro; pela gradação no horror: fera[ - eternal, gritos de triunfo
- ais dos que morrem; pela litote: abrindo passagem, para mos­
trar que os mortos queridos estavam reduzidos a detrito; tudo
isso para desembocar no Voilà [literalmente, eis - E verás],
que conclui a hipotipose: inexorável.
Depois dessa extensa enumeração, aliás incompleta, al­
guém perguntará se as figuras são de fato úteis; não seriam an­
tes nocivas, fonte de confusão e manipulação? Afinal de contas,
por que falar de figuras?
É como perguntar: por que falar? Sempre que queremos
expressar sentimentos ou idéias abstratas, recorremos às figu­
ras. E o filósofo, o jurista, o teólogo não escapam dela tanto
quanto o homem (e a mulher) comum. Falar sem figuras, sim,
seria o verdadeiro desvio, provavelmente mortal.
O problema não é livrar-se das figuras - o que equivale a
livrar-se da linguagem; o problema é conhecê-las e compreen­
der seu perigoso poder, para não ser vítima dele; para tirar pro­
veito dele.
Capítulo VII
Leitura retórica dos textos

Toda a seqüência deste livro será dedicada à interpretação


de textos. Hoje em dia, dispomos de vários métodos para esse
fim - análise do conteúdo, análise estrutural, hermenêutica,
etc. -, cada um com suas virtudes e com suas fraquezas. O que
propomos aqui nada mais é que a própria retórica, em sua fim­
ção interpretativa; aborda o texto com a seguinte pergunta: em
que ele é persuasivo? Portanto, quais são seus elementos argu­
mentativos e oratórios?
Nossa leitura é retórica também por sua atitude em rela­
ção ao texto. Certos métodos dizem-se puramente objetivos,
abordando o texto com "neutralidade". Outros são partidários
declarados da desconfiança, e se, como nós, procuram no tex­
to procedimentos retóricos, é para mostrar que são mistifica­
dores. Outros, enfim, como a hermenêutica, considerando o
texto sagrado, como fazem teólogos e juristas, explicam-no
com o único objetivo de entendê-lo, e postulam que ele tem
razão sistematicamente, de tal modo que, se o comentador en­
contrar nele erros ou contradições, terá sido porque não o en­
tendeu.
'l A leitura retórica, por sua vez, não objetiva dizer que o
texto tem razão ou deixa de tê-la. Nem por isso é neutra, pois
não hesita em fazer juízos de valor, em mostrar que tal argu­
mento é forte ou fraco, que tal conclusão é legítima ou errônea.
Critica e f>ondera, sem se abster de admirar, tendo como postu­
lado que o texto, tanto em sua força quanto em suas fraquezas,
pode ensinar alguma coisa. A leitura retórica é um diálogo.
140 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Questões preliminares

Diante de um texto, deve-se começar fazendo certo núme­


ro de perguntas, que podem ser chamadas de lugares da inter­
pretação. Algumas dessas perguntas dizem respeito ao orador;
outras, ao auditório; outras, enfim, ao discurso, no sentido téc­
nico que a retórica atribui a esses termos.

Orador: Quem? Quando?


Contra o quê? Por quê? Como?

Primeira pergunta: quem fala? Ao contrário de certas aná­


lises estruturais, a leitura retórica assume a responsabilidade
dessa pergunta, considerando úteis quaisquer informações re­
ferentes à vida do autor e à sua doutrina. Mas essas informa­
ções raramente são indispensáveis. E, assim, a leitura retórica
postula que o texto tem autonomia e é entendido por si mesmo.
E ainda que seja útil conhecer a doutrina do autor para com­
preender seu pensamento, é inútil elucidar cada uma de suas
afirmações com citações tomadas no restante de sua obra. Quan­
to mais se puder interpretar o texto em si mesmo, melhor.
Na verdade, a pergunta indispensável é: quando? É preci­
so conhecer a época do discurso, nem que seja para evitar con­
tra-sensos nos termos. Lemos, por exemplo:

( ... ) e não compreender em meus juízos nada mais que aquilo


que se apresentar a meu espírito com tal clareza e distinção que
eu não tenha ensejo de duvidar.

O que significa compreender aqui? O leitor moderno será


tentado a ver nele o sentido de entender, explicar. Ora, se sou­
bermos que o texto é de 1 637, descobriremos que o autor quer
dizer coisa bem diferente: "incluir em meus juízos". Não no
sentido de "entender", mas no sentido de "conter".
Outra pergunta: contra quem? Isso porque é raro que um
discurso persuasivo não seja ipsofacto dissuasivo, que não ata­
que, pelo menos implicitamente, uma opinião, uma doutrina,
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 141

um autor. Assim, a famosa regra do Discurso do método, cujo


final acabamos de citar e que identifica verdade com evidên­
cia, pode muito bem ser apresentada como um axioma lógico,
mas nem por isso deixará de ser dirigida contra alguém. Reco­
nhece-se Aristóteles, cuja dialética integra o campo da verossi­
milhança na filosofia, enquanto a regra da evidência leva a
rejeitar como falso tudo o que é apenas verossímil.
Contra quem, logo por quê? O discurso tende a persuadir
de algo, mas esse algo pode ser múltiplo. O texto muitas vezes
tem um objetivo imediato e outro distante, o mais importante.
O autor do Discurso do método quer persuadir seus leitores do
valor de seu método, mas principalmente do valor de sua em­
presa global, a saber, da ciência que esse método produzirá,
tornando-nos "senhores e donos da natureza". Num texto irôni­
co (cf. texto 1 O), o objetivo real é absolutamente oposto ao ob­
jetivo declarado.
Finalmente, como o autor se manifesta em seu discurso?
Esse é o problema da enunciação. Quando Jean-Jacques Rous­
seau (texto 1 1) diz Eu ousaria expor aqui... , é Jean-Jacques
Rousseau que está falando, ninguém mais. Quando Descartes
enuncia o Penso, logo sou, é o eu universal que está falando,
como em matemática. Mas quando Descartes escreve em nos­
so texto: meusjuízos, meu espírito, que eu não tenha, quem é o
eu? Por certo ele, Descartes, pois é o primeiro a dizer isso, mas
também cada um de nós, pois ele pretende servir de modelo.
Portanto, um eu intermediário entre o da audácia pessoal e o do
pensamento universal.
Cumpre mencionar dois casos notáveis. O primeiro é aque­
le em que o eu do discurso não é o de seu autor: isso se observa
na citação ou na prosopopéia. O segundo é o caso em que não
há eu algum, em que o discurso se apresenta como puro enun­
ciado, assim como os textos escritos por juristas ou geógrafos.
Mas a ausência de marcas de enunciação não significa ausên­
cia de eoonciação; os textos mais objetivos na forma às vezes
são os mais tendenciosos.
1 42 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Auditório e acordo prévio

A quem se está falando: em outras palavras, qual é o audi­


tório real do discurso? Sabe-se que, na apóstrofe, não se trata
do auditório aparente. Isso ocorre quando os candidatos de
uma eleição travam uma polêmica na televisão, e cada um fin­
ge dirigir-se àquele que está diante de si, mas, como não pode
esperar convencê-lo a lhe dar seu voto, na verdade está-se diri­
gindo ao público eleitor. Assim (cf. supra, p. 9): "Senhor Mitter­
rand, está a par da cotação do marco?" Mitterrand é o auditório
fictício; o auditório real é o telespectador, que vai ficar saben­
do que Mitterrand não está a par da cotação do marco.
A quem: essa pergunta não é feita apenas pelo intérprete,
mas por certo também pelo orador. Pois a regra de ouro da retó­
rica é levar em conta o auditório. Ora, os auditórios distin­
guem-se de diversas maneiras.
Em primeiro lugar pelo tamanho, que pode ir de um único
indivíduo (por exemplo, numa carta) a toda a humanidade. Com­
preende-se facilmente que a importância do público influencie
a natureza da mensagem.
Em segundo lugar, pelas características psicológicas de­
correntes de idade, sexo, profissão, cultura, etc.
Em terceiro lugar, pela competência. Ninguém se dirige a
um grupo de médicos como se fosse um grupo de doentes, a um
grupo de especialistas como se fosse um público leigo. A com­
petência distingue não só os conhecimentos necessários como
também o nível de argumentação e até o vocabulário.
Em quarto lugar, pela ideologia, seja ela política, religiosa
ou outra. Pois não é só o argumento que muda segundo a ideo­
logia; o vocabulário também.
Orador, auditório: é impossível que um se dirija ao outro
se não houver entre ambos um acordo prévio. De fato, não há
diálogo, nem mesmo argumentação, sem um entendimento mí­
nimo entre os interlocutores, entendimento referente tanto aos
fatos quanto aos valores. Pode-se até dizer, sem paradoxo, que
o desacordo só é possível no âmbito de um acordo comum.
Assim, as controvérsias entre católicos e protestantes, no sécu-
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 1 43

lo XVII, partiam de um postulado comum, a verdade do cris­


tianismo: cada um dos protagonistas afirmava representar o
"verdadeiro" cristianismo. O acordo inicial também dizia res­
peito aos métodos da controvérsia e aos assuntos espinhosos
que cumpria evitar, como a graça e a predestinação1 • Nas ques­
tões em que não haja nenhum acordo inicial, pode haver vio­
lência ou ignorância recíproca, não controvérsia.
Pode-se objetar que é difícil interpretar um discurso quan­
do se ignora o acordo prévio que ele pressupõe. Mas esse acor­
do é revelado pelo próprio texto: pelo não-dito, pela ausência
das provas que seriam de esperar, por suas fórmulas estereoti­
padas, alusões, expressões como: "é certo que", "todos sa­
bem", "deve-se admitir", etc. Também neste caso o texto expli­
ca o texto.
Faltam as perguntas referentes ao discurso em si: do que
trata, o que diz, como diz? Em retórica é a terceira pergunta
que mais importa. Neste capítulo limitar-nos-emos a especifi­
car seus aspectos preliminares.

A questão do gênero: Pascal e La Fontaine

Uma questão capital na leitura retórica é a do gênero, que


comanda estreitamente o conteúdo persuasivo do discurso.
O gênero agrupa obras que apresentam características fim­
damentais em comum: tragédia, poema lírico, tese, etc. Sem
dúvida é impossível fazer uma classificação exaustiva dos gê­
neros, porém o mais útil para a leitura retórica é a comparação.
Se quisermos determinar as características de um gênero, pre-
; cisamos perguntar o que o distingue do gênero mais próximo;
por exemplo o melodrama da tragédia, a novela do romance, a
aula da conferência.
Nossa tese, inspirada no livro de Angenot, Le discours
pamphlbaire, é de que o gênero enseja não só injunções de es­
tilo, extensão e vocabulário, mas também injunções ideológi­
cas. Segundo a escolha que se faça, de tratar um assunto na for­
ma de ensaio ou de panfleto, não se dirá a mesma coisa, não se
144 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

tirarão as mesmas conclusões. O gênero circunscreve o pensa­


mento.
"Vamos mostrar isso'', comparando dois textos. São da mes­
ma época: Pascal morreu em 1 662; o primeiro livro das Fábulas
foi publicado em 1 668. Falam do mesmo assunto, que se pode­
ria resumir pela expressão alemã das Faustrecht, o direito do
punho, o que é um oxímoro. Mas não dizem a mesma coisa,
precisamente porque não são do mesmo gênero; e por mais que
o gênio dos dois autores transgrida as "leis do gênero" nem por
isso este deixa de inflectir o pensamento deles; tanto é verdade
que adotar um gênero é não só "assinar um contrato com o lei­
tor"2 como também ingressar numa visão de mundo.

Texto 3 - Pascal, "Justiça, força " (Br. Min. N.º298, p. 470)

É justo que o justo seja seguido, é necessário que o mais


forte seja seguido. A justiça sem força é impotente; a força sem
justiça é tirânica. A justiça sem força é contraditada porque sem­
pre há perversos; a força sem justiça é acusada. Portanto, é pre­
ciso juntarjustiça e força; e, para isso, que seja forte aquilo que é
justo, ou que seja justo aquilo que é forte.
A justiça está sujeita a discussões, a força é facilmente
reconhecível e não se discute. Assim, não se pôde dar força à
justiça, porque a força contradisse a justiça, dizendo que esta era
injusta, e que só ela mesma era justa. E assim, não podendo
fazer que o justo fosse forte, fez-se o forte ser justo.

Texto 4 - La Fontaine, "O lobo e o cordeiro", Fábulas, /, 10

La raison duplusfort est toujours la meilleure:


Naus l 'allons montrer tout à l 'heure.

Un agneau se désaltérait
Dans /e courant d 'une onde pure.
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 1 45

Un loup survient àjeun, qui cherchait aventure,


Et que lafaim en ces lieux: attirait.
"Qui te rend si hardi de troubler mon breuvage?
Dit cet animalplein de rage:
Tu seras châtié de ta témérité.
- Sire, répond l 'agneau, que Votre Majesté
Ne se mette pas en colere;
Mais plutôt qu 'elle considere
Queje me vas désaltérant
Dans le courant
Plus de vingtpas au-dessous d 'Elle;
Et que par conséquent, en aucunefaçon,
Je ne puis troubler sa boisson.
- Tu la troubles, reprit cette bête cruel/e;
Etje sais que de moi tu médis l 'an passé.
- Comment l 'aurais-jefait sije n 'étais pas né?
Reprit l 'agneau;je tête encare ma mere.
Si ce n 'est toi, e 'est dane tonfrere.
Je n 'en aipoint. - C'est dane quelqu 'un des tiens;
Car vous ne m 'épargnez guere,
Vous, vos bergers et vos chiens.
On me l 'a dit: ilfaut queje me venge. "
Là dessus, aufond desforêts
Le loup l 'emporte et puis le mange,
Sans autreforme de proces.

A razão do mais forte é sempre a melhor razão:


É o que vamos mostrar agora.

Um cordeiro a sede matava


Numa corrente de água pura.
Chega em jejum um lobo, à busca de aventura,
Lobo que a fome a tal lugar levava.
"Estás turvando minh' água. Que atrevimento !
Disse aquele animal raivento:
Serás castigado por tal temeridade.
Resv.onde o cordeiro: - Que Vossa Majestade
P
Não se deixe destarte irar;
Pois antes cabe considerar
Que esta água que vou tomando
Desce escoando
1 46 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Por vinte passos após vós;


E que por conseguinte não posso jamais
Turvar a água que tomais.
- Mas turvas, respondeu aquela fera atroz;
E bem sei que me difamaste ano passado.
- Como, senhor, se eu nem tinha sido gerado?
Se inda mamo, disse o cordeiro a mais.
Se tu não és, é teu irmão.
Se não os tenho. - É um dos teus então;
Porque vós não me poupais,
Vós, vosso pastor e o cão.
Contaram-me: cumpre a vingança agora."
E para a mata e seus recessos
O lobo o carrega e devora,
Sem outra forma de processo.

Situação dos dois textos

O texto de Pascal é um "pensamento", que poderia ser


classificado no mesmo gênero dos "aforismas" de Nietzsche e
das "considerações" de Alain. Todavia, é preciso levar em con­
ta o projeto do autor: escrever uma "Apologia da religião cris­
tã", cujo rascunho é constituído por Pensées e tudo o que nos
ficou dessa obra!
O gênero apologético, que começa com a Apologia de Só­
crates e viceja em nossos dias com os Ce queje crois. . . [Aquilo
em que acredito . . . ], pertence na verdade ao epidíctico dos anti­
gos. Visa a persuadir de um valor fundamental, unindo uma ar­
gumentação mais ou menos rigorosa a um testemunho que en­
gaja o autor: "Deus existe, encontrei-me com ele."
A quem Pascal se dirige? Àquilo que se chamava de "hon­
nêtes gens" em seu tempo, mais precisamente aos libertinos*.

* Termo designativo dos cristãos que, no século XVI, iniciaram e de­


senvolveram correntes de independência religiosa em relação à Igreja Cató­
lica. Mais tarde esse termo, que dá idéia de liberdade, adquiriu conotação de
vida dissipada e anti-religiosa. (N. do T.)
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 1 47

Apóia-se num acordo prévio que possibilita o desacordo; esse


acordo é a filosofia de Descartes, que opõe categoricamente
as duas "substâncias": corpo e pensamento. Ora, como a justi­
ça está do lado do pensamento, que é infinitamente superior
ao corpo, Pascal pode estabelecer um argumento de dupla hie­
rarquia:

Pensamento > corpo,


portanto
Justiça > força.

Partindo desse argumento, admitido por seus leitores, Pascal


vai mostrar que estamos numa situação absurda, insustentável,
porque, mesmo não declarando e nem sequer estando cientes,
invertemos a hierarquia natural. Aqui encontramos a atitude
central de Pascal: levar o homem sem Deus a compreender e
sentir o absurdo de sua condição, de que nenhuma filosofia po­
de dar consciência.

Quando ele se gaba, eu o rebaixo; quando se rebaixa, eu o


gabo; e sempre o contradigo, até que ele entenda que é um mons­
tro incompreensível. (p. 2 1 6; o "ele" é "nós"!)

Em resumo, toda "apologia" repousa na antítese entre nos­


sa grandeza e nossa miséria, nossa grandeza de direito, como
criaturas de Deus, e nossa miséria de fato, como pecadores de­
pois da queda de Adão. Antítese filosófica que o gênio de Pas­
cal toma retórica, como demonstra o quiasmo final: justo-forte­
forte-justo.
Situemos agora a fábula. Em princípio, a fábula é uma ale­
goria que se reputa capaz de ilustrar, de mostrar, uma verdade
moral. Portanto, é essencialmente pedagógica, e, aliás, o autor
destina séti livro 1 às crianças.
No entanto, a justificativa oficial da fábula, pela moral, já
não se sustenta em La Fontaine. Em primeiro lugar, porque a
alegoria é muitíssimo mais longa do que aquilo que diz demons-
148 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

trar, a "moral"; parece que, para o autor, ela se transformou


num fim em si, na alegria de encenar; mas, justamente, essa
maravilhosa encenação é ao mesmo tempo um prazer e uma
lição. Em segundo lugar, porque a moral não é a que se espera­
va; em Fedro, modelo latino do autor, a mesma fábula termina­
va assim:

Esta fábula é escrita contra aqueles que, com falsas alega­


ções, oprimem os inocentes.

La Fontaine, ao contrário, não denuncia; apenas enuncia. E a


única "moral" que aparece na fábula é francamente imoral.
Rousseau afirmava que essas fábulas não convêm em absoluto
às crianças; como psicólogo, estava coberto de razão; como
pedagogo, completamente errado; pois, se às crianças fosse
ensinado apenas o que é "para crianças'', não se iria muito
longe . . .
E m todo caso, L a Fontaine utiliza o gênero "fábula" trans­
gredindo-o; para ele, a pedagogia não passa de pretexto. Ape­
sar disso, ensina tanto quanto Pascal, mas de outro modo.

A argumentação dos dois textos

A argumentação de Pascal é ao mesmo tempo clara e den­


sa. Opondo as duas formas de seguir, por razão e por necessi­
dade (no sentido de inevitável), mostra que ambas são insufi­
cientes, e que só existem unidas. Sozinhas, a justiça é impoten­
te e a força é odiosa, porque ilegítima. A humànidade, portan­
to, só pode sobreviver associando-as. A questão é saber qual
das duas sobrepujará a outra, o que exprime o primeiro quias­
mo: subordinar o forte ao justo ou o justo ao forte?
Ora, o homem de fato escolheu o segundo termo, e Pascal
explica por quê. Acontece que um elemento veio romper o
equilíbrio. Diante da força, ajustiça padece de carência; não de
uma, mas de duas: ela não só é impotente, como também está
sujeita a discussões, ou seja, é fraca mesmo em sua própria
ordem, o pensamento. Enquanto isso, a força é o que é, plena-
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 1 49

mente. Pode-se objetar que a força também é enfraquecida pe­


los conflitos com outras forças. Mas basta que ela seja reco­
nhecível, que se saiba onde está, ao passo que isso não aconte­
ce com a justiça. Portanto, a força pôde explorar essa dupla ca­
rência e apropriar-se da justiça, dizendo "que só ela mesma era
justa". Conseqüência: a humanidade, sempre e em todo lugar
[sujeito indeterminado no texto], só pôde tomar o segundo ca­
minho, em que o justo é posto a serviço do forte, substituindo
assim a justiça por sua falsificação.
O que Pascal mostra não é que a força reina sobre o direi­
to, pois esse reinado nada mais teria de humano, e sim que a
força reina porque está disfarçada de direito.

Em La Fontaine, a argumentação se dá em dois níveis.


Primeiro, no nível do narrador: Jilmos mostrar. . . Na ver­
dade ele não mostra nada, pois não se pode extrair de um exem­
plo apenas, e o mais fictício, uma lei universal: é sempre... É de
duvidar que La Fontaine tenha achado seriamente que estava
mostrando alguma coisa, e sobretudo que tenha acreditado pes­
soalmente que a razão do mais forte é sempre a melhor. A
nosso ver sua argumentação é puramente irônica; em outras
palavras, o que ele mostra é tão enorme que o que se impõe é a
tese contrária.
No segundo nível, a argumentação dos dois interlocutores.
A do lobo é o próprio discurso da má-fé. A do cordeiro, que
começa com uma preparação psicológica (que Vossa Majes­
tade... ) é uma demonstração (em sentido estrito) um tanto pe­
dante, mas evidente: é fisicamente impossível turvar a água do
lobo. Este limita-se a responder: Mas turvas, o que é uma apo­
dioxe, uma recusa pura e simples do argumento contrário.
No entanto - e talvez aí apareça a verdadeira lição da fá­
bula -, a coisa não é tão simples. O lobo, afinal, se acha obriga­
do a argumentar. O fato de ter a força e de ter fome não lhe
basta; e s�a superioridade é da ordem do necessário, e o lobo se
querjusto, nem que seja com maus argumentos; Bem sei que...
Se não és... é então... Porque... : cada frase é justificada, o que
prova que o lobo não só precisa comer como também ter razão.
1 50 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

O que torna a fábula singularmente complexa é que o lobo aca­


ba trazendo à tona um argumento totalmente convincente: Por­
que vós não me poupais... E é verdade; se agarrado pelos pas­
tores, o lobo seria morto. Por isso, segundo as regras da justiça,
ele tem direito de matar o cordeiro. Para Louis Marin3, o lobo
pertence ao mundo da natureza, e o cordeiro ao mundo da cul­
tura; e entre os dois não é possível arbitragem alguma: só vale a
lei do mais forte.
Em suma, o lobo dá a verdadeira justificativa. Mas La
Fontaine decerto percebeu que, se ficasse nisso, a fábula se tor­
naria trágica, e deixaria de ser fábula. Por isso, logo completa o
argumento com Já me contaram, que, em vez de reforçar, des­
trói o argumento, pois o que era uma evidência natural, que não
exigia comprovação - a luta mortal entre lobos e homens -
acaba sendo uma simples opinião, um dizem ("dizem que dois
e dois são quatro"!). Argumento fraco e pouco coerente do ho­
mem enfurecido.
Fato é que o lobo faz uma defesa, apresenta sua decisão -
cumpre [a vingança] - como resultado de uma argumentação
que a toma legítima. Note-se que ela se apóia num endoxon da
época, ou seja, que a vingança pode ser um dever, algo que
cumpre realizar. E o sem outra forma de processo, subenten­
dendo que houve processo, acentua ainda mais essa ironia.
Em suma, antítese trágica mas clara em Pascal, ironia pra­
zenteira mas túrbida em La Fontaine: tão túrbida quanto a pró­
pria vida. Talvez caiba mais falar de humor.

Observações sobre o estilo dos dois textos

A elocução, portanto o estilo, acentua de modo impressio­


nante a diferença entre os dois gêneros. A fábula é em versos, o
pensamento é em prosa. Mas, também neste caso, o gênio
transgride o gênero, e os dois autores reduzem a oposição. Pois
ambos se aproximam do estilo oral. Com suas frases curtas e
seus assíndetos, Pascal opõe-se aos períodos de Bossuet. E La
Fontaine, com seus versos irregulares, seu andamento vivaz,
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 151

opõe-se ao estilo épico e ao trágico, mas também à secura da


fábula antiga. Note-se ainda a extrema economia de meios em
Pascal; seu quiasma, por exemplo, nada tem de ornamentação;
é o próprio movimento do pensamento. É bem uma figura de
conteúdo, independente em princípio do autor e da situação, no
sentido de que, se quisermos dizer a mesma coisa, não podere­
mos dizer de outro modo; o quiasma tem a mesma necessidade
de uma fórmula matemática como a x b b x a.
=

O humor do fabulista é, ao contrário, figura da enuncia­


ção. Não há humor sem humorista, e o "tom" do fabulista su­
gere que a fábula não seja lida no primeiro grau. O fato é que,
apesar da diferença de estilo, os dois textos dizem mais ou
menos a mesma coisa. Mas só "mais ou menos". Observemos
as diferenças.
A primeira delas, menor na aparência, diz respeito ao tem­
po dos verbos. La Fontaine procede por uma seqüência de ená­
lages: matava a sede... chega... O presente, insólito, é aspec­
tual; marca o acontecimento, a surpresa. Assim também a de­
sordem dos marcadores de narrativa: responde, respondeu, e o
presente narrativo do fim: carrega-o. Essas figuras contribuem
para a vivacidade da narrativa.
Pascal, por sua vez, começa no presente e passa brusca­
mente para o perfeito: Assim, não se pôde dar. .. , também próxi­
mo do estilo oral. Mas, neste caso, já não estamos na ficção; o
tempo tem valor cronológico absoluto, o que distingue a apolo­
gia tanto da fábula quanto da exposição filosófica intemporal:
Penso, logo . Pois Pascal descreve um acontecimento, algo que
..

surgiu no tempo, depois da queda de Adão. Seu primeiro pará­


grafo era filosófico: análise lógica. O segundo é histórico, por­
que teológico.
A segunda diferença diz respeito à personificação. É a
essência da fábula; curiosamente, Pascal se aproxima disso,
pois sua metonímia aforça... dizendo que equivale a personifi­
car a força, o que torna trágico o debate. A força que fala aqui é
o discurso dos fortes, que não tem outro peso senão o da força
deles. A força que fala na fábula é o lobo.
1 52 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

O que dizer desse lobo e de outros animais? Serão alego­


rias? Antes vale dizer: símbolos, porque passíveis de várias in­
terpretações. O lobo é o "marginal" que, arriscando-se a sentir
medo e passar fome, preferiu a liberdade à coleira do cão. O
lobo também é o poderoso, aquele que o cordeiro chama - não
sem razão - de Majestade. . . La Fontaine, que de ordinário exi­
be uma deferência total pelos monarcas, não os está aqui des­
mascarando em sua verdade? Afinal, o lobo e o cordeiro sim­
bolizam certa relação entre os homens, ou mesmo certa relação
no homem, pois não somos nós ora cordeiros, ora lobos? O ani­
mal da fábula exprime nossa natureza em seu determinismo
inexorável : homens conduzidos pelo aquém de si mesmos, sem
remissão.
O mesmo pessimismo visto em Pascal, tirando o trágico.

Os dois gêneros e seu impacto ideológico

Nossos dois autores, escolhendo um a apologia e o outro a


fábula, não poderiam chegar a conclusões idênticas. Pois a esco­
lha de um gênero não é apenas a escolha de um estilo e de uma
argumentação. É necessariamente uma escolha ideológica, que
acarreta certa visão do mundo e do homem. Pascal não poderia
ter expresso seu pensamento em forma de fábula. Por quê?
A fábula pretende exprimir certa natureza do homem pela
interpretação dos animais e das árvores, que falam uma lingua­
gem familiar, pitoresca, muitas vezes cômica: uma encenação
e um diálogo. É a rejeição absoluta tanto da grandeza épica
quanto da profundidade filosófica; o que ela põe em cena é o
homem, mas o homem subjugado pela ação das forças animais
que tem em si. E, mesmo quando a fábula põe homens em
cena, eles são tão pouco livres para mudar, são tão mecânicos
quanto os animais. Assim, em "O homem e a cobra":

Ouvindo isso, o animal perverso


(Estou falando da serpente,
e não do homem: fácil seria enganar-se)...
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 153

A moral da fábula expressa, pois, o necessário de Pascal:


todo bajulador. .. segundo fores poderoso ou miserável. . . Às
vezes ela valida de modo preocupante esse primado do neces­
sário. Assim, em "O lobo pastor":

O que é falso de algum modo sempre aparece.


Quem for lobo aja como tal:
Pois isso é o mais certo, afinal.

Apesar disso, pudemos demonstrar que a fábula, por ofe­


recer interpretações muito diversificadas, é também o antídoto
do maniqueísmo: o lobo não está completamente errado . . .
A apologia, com suas antíteses e seus quiasmos, é o gêne­
ro da grandeza, mas também da negação. Para ela, o homem é
coisa diferente do que é, ou melhor, daquilo que acha que é. O
proj eto do apologista, seja ele Sócrates ou Pascal, é antes de
tudo perturbar, para levar o homem a superar seu ponto de
vista, a olhar para outro lugar, para um além de si mesmo.
Mas, quando a apologia contradiz ou protesta, a fábula
lança um olhar resignado e brincalhão. Por isso é menos ironia
- que denuncia o mundo em nome de uma verdade superior -
que humor, pois limita-se a descrever o mundo em seu absurdo.
Não diz o que está certo, nem o que está errado, diz o que é. Só
conhece este mundo, e adverte-nos de suas ciladas enquanto
nos diverte. A ética da fábula é reacionária, pois ensina a resig­
nação. Mas com que felicidade!

Questões sobre o texto

Uma questão inicial importante é, evidentemente, a da


disposição, do plano do texto; voltaremos a ela em nossos co­
mentários. Aqui observaremos que os textos muitas vezes são
apenas excertos, não havendo portanto propósito em buscar a
todo custie uma introdução e uma conclusão, que poderiam
perfeitamente estar em outro lugar.
Outra questão inicial: estamos diante de que tipo de argu­
mentação? Segundo Aristóteles, há dois tipos, duas estruturas
1 54 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

argumentativas, e apenas duas: o exemplo, que vai do particu­


lar ao geral, do fato à regra, sendo portanto uma indução, e o
entimema, que vai do geral ao particular, sendo portanto uma
dedução.
Cabe lembrar que o texto 1 , de Górgias, pretende provar
por dois exemplos o poder da retórica, enquanto no texto 2
Aristóteles prova a utilidade da retórica por meio de entimemas.

O que prova o exemplo?

Em retórica, o exemplo (paradeigma) tem sentido bem


mais amplo que o do nosso banal "exemplo". É uma indução
dialética, que vai do fato ao fato, passando pela regra subenten­
dida. Aristóteles mesmo dá o seguinte exemplo de ... exemplo:
quer-se provar que Dionísio (político de Siracusa) aspira a tor­
nar-se tirano. Parte-se de um fato verificado: Dionísio pede
uma guarda pessoal. Ora, sabe-se que todos os tiranos conheci­
dos da história começaram a carreira pedindo uma guarda.
Portanto, pode-se inferir que Dionísio também se tomará tira­
no. Portanto, prova-se esse fato (futuro) com uma regra que
pôde ser estabelecida a partir de fatos passados: "Todo aspiran­
te à tirania pede uma guarda pessoal" (Retórica, 1, 2, 1357 b).
O problema então é saber se a própria regra é comprovada
pelos fatos invocados com esse objetivo. Admitindo-se que
todos os políticos conhecidos, que pediram uma guarda, toma­
ram-se tiranos, poder-se-ia dizer que isso sempre acontecerá,
notadamente com Dionísio? Observe-se que o elo entre guarda
e tirania talvez fosse um elo de causalidade na cidade grega; já
não o é hoje, pois mesmo nas democracias acha-se natural que
os estadistas tenham uma guarda pessoal. Então, o que o exem­
plo pode provar?
Em primeiro lugar, o exemplo é realmente demonstrativo
quando se pode mostrar que os casos são em número limitado,
e que a regra se aplica a todos. Mas na argumentação o conjun­
to dos casos na maioria das vezes é ilimitado; portanto, a indu­
ção não é possível; não se pode passar de maneira lógica de
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 155

todos os tiranos conhecidos para o tirano em geral, principal­


mente porque a palavra "tirano" não é unívoca: Dionísio não era
tirano como era Hitler!
O exemplo não permite provar que uma proposição é uni­
versal; só pode provar que uma proposição não é universal, que
não pode começar com sempre nem com nunca. Mas, para essa
prova negativa, basta um único exemplo; basta mostrar que um
remédio não curou uma vez para demonstrar que ele nem sem­
pre cura. A função lógica do exemplo é negativa, serve para
infirmar.
Mas na argumentação serve também para confirmar, fun­
ção positiva que não tem na demonstração: a de tomar plausí­
vel um enunciado, como vimos com Aristóteles (cf. Tópicos,
VIII, 2, 1 57 a, 1 58 a e 1 60 b). Assim, em justiça, se houver um
acúmulo de acusações contra um réu, compete a este produzir
um contra-exemplo (como um álibi), caso contrário será consi­
derado culpado e até condenado.

Entimema

Passemos agora à vertente dedutiva da argumentação, ao


silogismo. Pode-se considerar o silogismo como uma velharia
escolar, mas isso não impede que ele estej a sendo feito o tempo
todo, como o alter da prosa. Quando o lobo diz:

Estás turvando minh'água. Que atrevimento !

esse minha condensa um polissilogismo: turvar o que é meu é


1 atrevimento (sacrilégio). Ora, essa água é minha; tu a estás tur­
vando; logo . . .
O silogismo utilizado pela argumentação cotidiana cha­
ma-se entimema; emprega-se esse termo para distingui-lo do
silogis1110 demonstrativo. As premissas do entimema não são
proposições evidentes, mas nem por isso são arbitrárias; elas
são endoxa, proposições geralmente admitidas, portanto veros­
símeis. Recordemos o texto 2, de Aristóteles:
156 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Além disso, se é vergonhoso não poder defender-se com o


próprio corpo, seria absurdo que não houvesse vergonha em não
poder defender-se com a palavra, cujo uso é mais próprio ao ho­
mem que o do corpo.

Também neste caso trata-se de um polissilogismo implíci­


to, que, como vemos, se apóia em dois endoxa: o uso da pala­
vra é mais próprio ao homem que o do corpo; é vergonhoso
não poder defender-se fisicamente. Este último aspecto podia
ser considerado evidente no tempo de Aristóteles; já não é evi­
dente para nós, que não achamos desonroso chamar a polícia
quando somos atacados fisicamente ...
Entimema, silogismo do verossímil, mas também silogis­
mo abreviado, cujas premissas enunciadas - como no caso do
texto de Aristóteles - são apenas as necessárias. Assim, em vez
do silogismo completo:

Maior: todo homem é mortal;


Menor: Sócrates é homem;
Conclusão: Sócrates é mortal,

limitamo-nos a dizer: "Por ser homem, Sócrates é mortal." O


próprio Aristóteles diz: quando uma premissa é evidente para
todos, é supérfluo enunciá-la (Retórica, 1, 2, 57 a). No entanto,
se omitida, será simplesmente por ser supérflua?
Assim, o slogan francês lançado pelo governo antes da
derrota de 1940, venceremos porque somos os mais fortes, é
um silogismo abreviado, cuja premissa maior (os mais fortes
sempre vencem) é omitida. Mas, na realidade, se ela tivesse
sido enunciada, o slogan não teria sido enfraquecido? De fato,
os franceses poderiam ter-se perguntado se os mais fortes real­
mente sempre ganham, notando então que um princípio desses
tem desagradável semelhança com os princípios do inimigo
hitlerista.
Tecnicamente, há outras teorias lógicas diferentes da aris­
totélica, a começar pelas estóicas. Mas, para a leitura retórica
dos textos, basta perguntar se o discurso - ou alguma de suas
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 157

partes - é de natureza indutiva ou dedutiva, se o s se, pois ou


portanto ... que contém anunciam exemplos ou entimemas. Fi­
nalmente se examina se a argumentação não é sofistica, ou
seja, se ela não pede aos argumentos mais do que eles podem
provar.

O intertextual, o intratextual e o motivo central

Sem chegarmos a afirmar, como Kibédi-Varga, que todo


discurso responde a uma pergunta4, admitiremos que ele sem­
pre replica - explicitamente ou não - a outros discursos, seja
apoiando-se neles, seja refutando-os, seja completando-os. A
alusão é a figura da intertextualidade; isso acontece quando di­
zemos que todos fazem silogismos sem saber, "como o alter da
prosa".
Não entraremos aqui nas complexas discussões sobre a
intertextualidade. Simplesmente distinguiremos o intertextual
do intratextual. Este último é a presença explícita de outro dis­
curso no discurso. Presença que se manifesta de duas maneiras.
Primeiro pela citação, que pode servir para apoiar o ora­
dor, constituindo então um verdadeiro argumento de autorida­
de, ou então pode servir de destaque, de prova contra o adver­
sário: "Vejam o que ele ousa dizer!" Finalmente, pode servir de
documento de análise, como ocorre em nossos textos.
Depois pela fórmula, cuja autoridade, ao contrário, vem
do anonimato. Mais vale um "toma " que dois "te darei " é um
adágio; não é o pensamento de alguém; é a verdade de todos,
expressa pela "sabedoria do povo". A fórmula pode ser adágio,
provérbio, máxima, slogan; este último, por sua vez, pode ser
publicitário, político ou ideológico, como Inimigo hereditário,
Faça o amor e não a guerra, Black is Beautiful. Em todos os
casos, a fórmula é uma frase curta, incisiva, fácil de guardar,
cuja ÍUJl.ção é resumir um pensamento complexo, dando-lhe
mais força justamente por ser resumido. Cerne do discurso, a
fórmula contém o fecho daquilo que é retórico; Morrer por
Danzig.. : o slogan dos pacifistas de direita em 1 939 não admi-
.
1 58 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

tia réplica; era inútil argumentar com um "não se deve", ou


"convém evitar", pois ninguém teria ousado sustentar o contrá­
rio! Em suma, a fórmula é um argumento condensado que se
torna peremptório graças à forma, à concisão e à felicidade
estilística. Tudo o que se pode fazer é opor-lhe outra fórmula:

Porvir radioso - Porvir tenebroso.

Finalmente, diante de um texto, sempre há interesse em


perguntar se ele não tem um motivo central. Entendemos por
motivo central um procedimento retórico, figura ou argumen­
to, que serve de princípio organizador para o texto, que permite
dizer: é ironia, é alegoria, é argumento de autoridade, etc. As­
sim, o motivo central de nosso texto 1 (Górgias) é a hipérbole,
uma hipérbole irônica, pois Górgias atribui aos retores poderes
tão espantosos que custa acreditar. O do texto 3 (Pascal) é o
quiasma. É certo que não se pode distinguir um motivo central
em todos os textos, mas é útil procurar um, porque, encontran­
do-o, encontramos logo a unidade viva do discurso. Aí vai um
exemplo.

Texto 5 - Victor Hugo, "Chanson ", 1853, Les cbâtiments,


VII, 7

§ 1 Sa grandeur éblouit l 'histoire.


Quinze ans, ilfut
Le dieu que traínait la victoire
Sur un affút;
L 'Europe sous sa !oi guerriere
Se débattit. -
Toi, son singe, marche derriere,
Petit, petit.

§ 2 Napoléon dans la bataille,


Grave et serein,
Guidait à travers la mitraille
L 'aigle d 'airain.
LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS 159

II entra sur !e pont d 'A rco/e,


II en sortit. -
Voici de l 'or, viens pille et vole,
Petit, petit.

§ 3 Berlin, Vienne étaient ses maitresses;


II les forçait,
Leste, et prenant les forteresses
Par /e corset.
II triompha de cent bastilles
Qu 'il investit.-
Voici pour toi, voici desfilies,
Petit, petit.

§ 4 IIpassait les monts et /es plaines,


Tenant en main,
La palme, lafoudre et les rênes
Du genre humain.
II était ivre de sa gloire
Qui retentit. -
Voici du sang, accours, viens boire,
Petit, petit.

§ 5 Quand il tomba, lâchant /e monde,


L 'immense mer
Ouvrit à sa chute pro/onde
Son gouffre amer;
II y plongea, sinistre archange,
Et s 'engloutit. -
Toi, tu te noieras dans lafange,
Petit, petit.

§1 Sua grandeza ofuscou a história.


Quinze anos foi
Deus levado pela vitória
Sobre um armão;
p
Sob sua lei guerreira a Europa
Se debateu. -
Tu, seu símio, marchas atrás,
Ó pequenino.
160 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

§ 2 E Napoleão na batalha,
Grave e sereno,
Guiava através da metralha
A águia de bronze.
Ele entrou na ponte de Árcole,
Dela saiu. -
Eis aqui ouro, pilha e rouba,
Ó pequenino.

§ 3 Berlim, Viena, suas amantes;


Ele as forçava,
Lesto, tomando fortalezas
Pela cintura.
Ele triunfou de cem bastilhas
Que atacou. -
Eis aqui as moças, são tuas,
Ó pequenino.

§ 4 Transpunha montes e planícies,


Tendo na mão
As palmas, o raio e as rédeas
Da espécie humana.
Inebriava-se de sua glória
Que retumbou. -
Eis aqui sangue, vem beber,
Ó pequenino.

§ 5 Quando caiu, largando o mundo,


O mar imenso
Abriu-lhe na queda profunda
Seu pego amargo;
Lá mergulhou, sinistro arcanjo,
Nele engolfou-se. -
Tu, tu te afogarás na lama,
Ó pequenino.

Les châtiments [Os castigos] denunciam Napoleão III


como um abominável tirano que subiu ao trono por meio de um
crime, o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1 85 1 .
LEJTURA RETÓRJCA DOS TEXTOS 161

Qual é o gênero desse poema? Curiosamente, parecem ser


dois. O título indica "Chanson" [Canção], e, pela forma, real­
mente é uma canção: ritmo leve, com alternância de versos de
oito e quatro pés, redundâncias, sintaxe solta, sentido às vezes
subordinado à rima - versos 6 dos §§ 1 e 3 -, descuidos até de­
sejáveis no estilo "canção". Finalmente, o mais importante é o
refrão, só que, onde se esperava alguma espécie de "dondin­
dondão'', tem-se Petit, petit, amplificado pela necessidade de
ser dito quase duas vezes mais devagar que o verso anterior.
Pois a canção está a serviço de outro gênero.
É a diatribe, modo epidíctico mas negativo. Victor Hugo
recorre, portanto, à forma ligeira e sem rodeios da canção para
dar maior destaque à violência de suas imprecações. Como ex­
plicar essa curiosa dualidade de gêneros?
Pelo motivo central, justamente, a antítese. O poema co­
meça com Sua grandeza [Sa grandeur] e acaba com pequenino
[petit] . A antítese entre tio e sobrinho retorna a cada estrofe,
mas com forma um pouco diferente, verdadeira expolição:
§ 1 , deus e seu símio; § 2, guia e ladrão; § 3 , conquistador e ve­
nal; § 4, homem glorioso e covarde cruel; § 5, queda grandiosa
e fim ignóbil.
A antítese não é maniqueísta, pois o próprio Napoleão é
culpado, e deve ser castigado. Mas, mesmo em sua queda, çon­
tinua grande, como indica o oxímoro sinistro arcanjo.
Tu é a apóstrofe que surge a cada refrão - na verdade o
poema é dirigido ao grande público -, e a apóstrofe se especifi­
ca em epítropes: pilha e rouba, vem beber, que fingem permitir
que o tirano pratique atos ignóbeis para sugerir que ele é capaz
desses atos: tu, ao passo que Ele ...
As outras figuras, numerosas, amplificam mais a antíte­
se. As metonímias possibilitam a criação de símbolos: Águia
de bronze, raio e rédeas, além da mais nova, armão, símbolo
do exército em guerra, a que se opõem as metonímias do re­
frão: ou'fO - sangue. As sinédoques - da espécie humana (§
4), o mundo (§ 5) - possibilitam a hipérbole e sobretudo a per­
sonificação: a história que ele ofusca (§ l); a vitória, que o le­
vava (§ 1).
1 62 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Personificação também pelas metáforas: O deus - largan­


do o mundo - cem bastilhas - engolfou-se, e principalmente pe­
las metáforas expandidas: Amantes -forçava - cintura, o mar
imenso abriu, etc.
Personificação: nota-se que o tio sempre está ligado, mes­
mo quando se trata de abstrações, a poderes personificados, ou
mesmo divinizados, enquanto ao sobrinho só tocam matéria e
coisas inertes: sangue, ouro, lama . . . introduzidas por Eis aqui.
Assim, as cidades transformam-se em mulheres, que Napoleão
conquista, enquanto as mulheres do símio são apenas moças,
mercadoria venal.
Em resumo, tudo está a serviço da antítese, até a oposição
entre o estilo épico das estâncias e o estilo seco, entrecortado,
do refrão. A antítese, como dizíamos, é o oposto no mesmo:
aqui o mesmo é representado pela estrutura idêntica das estro­
fes, das quais o tio ocupa sempre três quartos, e pela repetição
de petit .
É possível encontrar argumentos nessa canção? Sim, exem­
plos e um argumento maciço de incompatibilidade; o poema
ridiculariza a pretensão do déspota a ser um segundo Napoleão,
quando não passa de seu símio. Mas o argumento não é marca­
do, pois, como quer a lei do gênero, a canção é paratáctica, ou
seja, sem nexos lógicos expressos; por exemplo, o assíndeto do
§ 2: entrou... saiu.
Pergunta: Napoleão III foi realmente esse tirano abj eto e
sanguinário? Seria bom matizar. Principalmente porque, em
matéria de tirania, houve tanta gente mais competente depois
dele que chegamos a pensar que o poeta talvez tenha desperdi­
çado talento. Mas, em retórica, o que importa é o talento.
Capítulo VIII
Como identificar os argumentos?

Como identificar os argumentos que contribuem para tor­


nar persuasivo um discurso? Para responder, utilizaremos a
classificação do Traité de l 'argumentation [Tratado da argu­
mentação (TA)] de Perelman-Tyteca.
A bem da verdade, já encontramos uma classificação dos
argumentos, a de Aristóteles, que os divide em: indutivos (exem­
plo) e dedutivos ( entimema); será preciso criar mais uma?
Sim, porque Aristóteles não trata da forma da argumenta­
ção, da relação entre as premissas. O TA, ao contrário, estuda o
conteúdo das próprias premissas, define tipos de argumentos
(lugares) que permitem propor uma premissa, mais precisamen­
te uma premissa maior, à qual se pode depois subsumir o caso
em questão. Por exemplo, a frase de Leibniz:

Tendo cuidado dos pássaros, Deus não negligenciará as


criaturas racionais que lhe são infinitamente mais caras
... (in TA,
p . 456)

é um entimema que se baseia numa premissa maior implícita: o


�ue Deus concede às criaturas insignificantes também concede
as criaturas nobres; premissa maior validada por um argumen­
to afortiori;
O TA distingue então quatro tipos de argumentos :

- os quase lógicos, do tipo "um tostão é um tostão";
- os que se fundam na estrutura do real, como o argumento a

fortiori
- os que fundam a estrutura do real, como a analogia;
1 64 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

- os que dissociam uma noção, como o distingua entre a aparên­


cia e a realidade.

Por isso, utilizaremos essa riquíssima análise, mas indo


além do simples resumo. Tentaremos contribuir com exemplos
de nossa lavra e, eventualmente, com críticas.

Os elementos do acordo prévio

Vimos que não há argumentação possível sem algum acor­


do prévio entre o orador e seu auditório. Quais são os elemen­
tos, as "premissas comuns" (TA, § 1 5), implícitas ou explícitas,
que constituem esse acordo?

Fatos, verdades, presunções

O acordo repousa primeiramente sobre fatos, e fatos já são


argumentos. Por exemplo, um jornalista que quer mostrar o ca­
ráter "antidemocrático" de nosso ensino cita uma estatística:
25% dos jovens franceses concluem o curso secundário, contra
75% de americanos (Vial, Le Monde, 4 de janeiro de 1 985).
No entanto, a noção de fato está longe de ser clara. O que
é fato? A única resposta possível é: uma verificação que todos
podem fazer, que se impõe ao auditório universal, que parece
ser o caso de nosso "fato estatístico".
Contudo, como todo argumento, o fato pode ser contestado.
Como? Primeiramente recorrendo a pessoas competentes: espe­
cialistas mostraram que o fato em questão é apenas aparente,
assim como se provou que não é o Sol que gira em tomo da Ter­
ra. Depois, mostrando que o fato em questão é incompatível com
outros fatos, comprovados. Finalmente, contestando o valor ar­
gumentativo do fato, sua "interpretação"; em nosso exemplo,
diremos que o nível do diploma do término do curso secundário
nos Estados Unidos nada tem que ver com o de nosso baccalau­
réat, que ele não permite entrar na universidade, etc.
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 1 65

As verdades são ainda menos diretas; são nexos necessá­


rios, como e = 112 GT2, ou então são prováveis, como uma lei
tendencial.
As presunções têm função capital, pois constituem o que
chamamos de "verossímil", ou seja, o que todos admitem até
prova em contrário. Por exemplo, não está provado que todos
os juízes são honestos e competentes, mas admite-se isso; e, se
alguém desmente em tal ou tal caso, cabe-lhe o ônus da prova.
O verossímil é a confiança presumida.
Em todo caso, a presunção varia segundo os auditórios e
as ideologias. Assim, para um conservador, o costume não pre­
cisa ser justificado, e sim a mudança. Para um liberal, o que
não compete justificar é a liberdade, mas sim a coerção. Para
um socialista, a igualdade é de direito, cumprindo justificar a
desigualdade. O orador, portanto, precisa conhecer as presun­
ções de seu auditório.

Os valores e o preferível

Os valores estão simultaneamente na base e no termo da


argumentação. Mais ainda que os fatos, variam segundo o
auditório. É certo que há valores universais, mas estes são for­
mais; toda sociedade admite o justo e o belo, mas com conteú­
dos bem diferentes. De qualquer modo, essa pretensão ao uni­
versal é, em si mesma, um argumento; quem grita: "Franceses
primeiro!" dirá que "isso é justo".
Será então preciso renunciar aos juízos de valor para atingir
a objetividade? Nos domínios da argumentação - jurídico, polí­
tico, estético, ético, etc. - é impossível, pois neles todas as ques­
tões (inocente ou culpado; útil ou nocivo; belo ou feio; bem ou
mal) são formuladas em termos de valor. Digamos que, assim
como os fatos, os valores são presumidos; todos admitem sem
provas, h9je em dia, que o desemprego é uma calamidade, e a
quem sustentasse um juízo de valor contrário competiria provar.
Perelman-Tyteca distinguem dois tipos de valores. Os va­
lores abstratos, como a justiça ou a verdade, que se fundam na
1 66 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

razão; assim: "Devemos preferir a verdade aos amigos" (Aris­


tóteles). E os valores concretos, como França, Igreja, que exi­
gem virtudes como obediência, fidelidade: prefiro minha mãe
à justiça, dizia Camus. Um mesmo argumento pode combinar
esses dois tipos: "Todos os homens são iguais porque são fi­
lhos de Deus."
Na verdade, quem diz valores diz hierarquia de valores.
Assim, prefere-se o justo ao útil, acredita-se ser melhor sacrifi­
car o cão que seu dono (Malebranche).

Os lugares do preferível

Como justificar as escolhas? Recorrendo a valores ainda


mais abstratos, que o TA denomina lugares do preferível. Esses
lugares expressam um consenso generalíssimo sobre o meio de
estabelecer o valor de uma coisa. Podem ser divididos em três
espécies.
1) Lugares da quantidade: é preferível aquilo que propor­
ciona mais bens, o bem maior, o mais durável, ou ainda o que
propicia o "mal menor". Por essa óptica, o normal - no sentido
do mais freqüente - determina a norma, o obrigatório; assim,
expressões como "É isso o que todos fazem", "isso o que todos
pensam'', são dadas como argumentos, e, assim como Sócrates
em Górgias, é preciso uma contra-argumentação para dissociar
a norma do normal.
2) Os lugares da qualidade têm sentido contrário. À per­
gunta "De que vale o que não é eterno?", responde-se "Estime­
se tudo aquilo que não será visto duas vezes." Desse modo, o
único passa a ser o preferível; enquanto se despreza o banal, o
intercambiável, " a sociedade de consumo", valoriza-se o raro,
o precário, o insubstituível. A norma já não é o normal, é o ori­
ginal, até mesmo o marginal, o anômalo.
3) Os lugares da unidade de algum modo sintetizam os dois
anteriores: o que é um, ou efeito de um único, é por isso mes­
mo superior. Na hierarquia do ser, Platão coloca bem embaixo
o "múltiplo" (ta polia), com que a "multidão" (oi polloi) se
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 1 67

preocupa; quanto mais o sábio se eleva, mais se aproxima do


uno, do ser verdadeiro, do valor absoluto. Descartes (cf. texto
8) afirma que as obras perfeitas são aquelas em que "uma úni­
ca pessoa trabalhou". Excelente exemplo do lugar da unidade é
o famoso título de Bossuet Variações das Igrejas protestantes,
que por si só é uma refutação do protestantismo: se ele fosse
verdadeiro seria único. Na verdade, o argumento também vale­
ria contra o cristianismo ...
A nosso ver, os outros lugares identificados pelo TA se
integram nos acima descritos, ou deles derivam: o lugar da or­
dem pertence ao da unidade; o lugar do existente, ao da quanti­
dade (o que existe é superior à "quimera"); o lugar da essência,
ao da qualidade: superioridade do essencial em relação ao aci­
dental, ao fortuito; fala-se assim, por exemplo, de um "belo ca­
so" para se referir a uma doença interessante.

Figuras e sofismas concernentes ao acordo prévio

Segundo o TA, certas figuras contribuem para reforçar o


acordo prévio: figuras de escolha, como a definição oratória;
figuras de presença, como a epanalepse e principalmente a hi­
potipose, que faz do espetáculo um argumento e do argumento
um espetáculo; figuras de comunhão, como a alusão, a pergun­
ta retórica, etc.
Cabe mencionar, finalmente, dois sofismas referentes ao
acordo prévio. O primeiro é a ignoratio e/enchi, ignorância do
contra-argumento oposto, ou ainda do verdadeiro assunto de de­
bate. Esse sofisma pode ser voluntário e tático, ou então passio­
hal: "Discute-se acaloradamente, e muitas vezes um não entende
o outro" (Port-Royal, p. 243). Essa ignorância é um erro de argu­
mentação, pois contribui para impossibilitar o debate.
O segundo sofisma, ainda mais corrente, é a petição de
princípio. tSegundo o TA, não se trata de um argumento, mas de
um "erro de argumentação" (p. 1 53), que consiste em argu­
mentar como se o auditório admitisse a tese que se está tentan­
do levá-lo a admitir, quando, justamente, ele não a admite ! Mas,
1 68 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

assim definida, a petição de princípio se reduz a um erro psico­


lógico. O dicionário La/ande dá uma definição mais objetiva
disso, que se refere na realidade à argumentação: "Tomar por
admitida, sob forma um tanto diferente, a própria tese que se
quer demonstrar." Segundo a Lógica de Port-Royal, Aristóte­
les, ao querer provar que a Terra é o centro do mundo, teria co­
metido uma petição de princípio. Diz ele:

A natureza das coisas pesadas é tender para o centro do


mundo. Ora, a experiência nos mostra que as coisas pesadas ten­
dem para o centro da Terra. Portanto, o centro da Terra é o cen­
tro do mundo.

A premissa maior desse silogismo na verdade não passa de uma


petição de princípio. Pois como Aristóteles sabe que as coisas
pesadas tendem para o centro do mundo? Ele simplesmente
acredita nisso, e acredita porque acha que a Terra é o centro do
mundo, o que seria preciso provar!

Primeiro tipo: argumentos quase lógicos

O TA começa com um grupo de argumentos que denomi­


na quase lógicos. Essa expressão pode surpreender, pois afinal
um argumento é lógico ou não é! Mas sabemos que a argumen­
tação rejeita a lei do tudo ou nada. Na realidade, cada um dos
argumentos quase lógicos é aparentado com um princípio lógi­
co, como a identidade ou a transitividade; e, assim como eles,
são a priori, no sentido de que não fazem apelo à experiência.
Mas, ao contrário dos princípios lógicos da demonstração, po­
dem ser todos refutados demonstrando-se que não são "pura­
mente lógicos" (cf. § 45 s. ) .

Contradições e incompatibilidade: o ridículo

A contradição pura, do tipo "é branco e não branco", é


raríssima na argumentação, que não pode recorrer à prova por
absurdo. O que se encontra, em compensação, são incompati-
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 1 69

bilidades, que variam segundo os meios e as culturas. Assim,


ser comunista e funcionário público aparece como incompatí­
vel em certas democracias ocidentais, mas não em outras. Em
todo caso, a argumentação refutará essa tese mostrando que ela
é incompatível com alguma outra.
Pode-se rejeitar esse argumento de duas maneiras: lógica,
dissociando os conceitos por distingua; empírica, buscando uma
conciliação pela ação. Exemplo de resolução lógica: um profes­
sor ensina às crianças que é preciso obedecer aos pais, e que não
se deve mentir. Mas o que fazer quando o pai manda mentir?
Pode-se mostrar que só há incompatibilidade quando a regra su­
bentende "sempre" com obedecer e "nunca" com mentir. Ou
ainda, que a obediência a uma ordem injusta não é obediência.
A incompatibilidade está vinculada à retorsão, que consis­
te em retomar o argumento do adversário mostrando que na
verdade este é aplicável contra ele mesmo. Aos adversários
que, em 1 789, negam que os deputados devam assumir o nome
de "representantes do povo'', Mirabeau retorque assim:

adoto, defendo e proclamo [essa qualificação] pela mesma razão


que leva a combatê-la! Sim, é porque o nome de povo não é sufi­
cientemente respeitado na França, porque está deslustrado,
coberto pela ferrugem do preconceito ( ) que devemos nos
...

impor a tarefa de não só alçá-lo como também de enobrecê-lo.


( 16 de junho de 1 789)

O caso mais célebre é a autofagia, argumento que consiste


em mostrar que o enunciado do adversário se destrói por si
mesmo:

Aos positivistas que afirmam que toda proposição verda­


deira é analítica ou de natureza experimental, perguntaremos se
o que eles acabam de dizer é uma proposição analítica ou expe­
rimental. (TA, p. 275)

O ridículo está para a argumentação assim como o absur­


do está para a demonstração: é preciso ressaltar uma incompa­
tibilidade, e a ironia é a figura que condensa esse argumento
pelo riso:
1 70 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

No momento em que, num teatro de província, o público


se preparava para cantar A Marselhesa, um policial sobe no pal­
co para anunciar que é proibido tudo o que não consta do car­
taz: "E você, interrompe um dos espectadores, está no cartaz?"
(TA, p. 274)

Observe-se que, quando a incompatibilidade é nociva -


por exemplo com a negação das câmaras de gás -, ela já não é
ridícula, porém odiosa. O ridículo é o odioso desenvenenado,
que não provoca escândalo, porém riso.

Identidade e regra dejustiça

Outros argumentos fazem apelo ao princípio de identida­


de, A é A, mas sem se reduzirem a ele. Expressões como Mu­
lher é mulher, Negócios são negócios são pseudotautologias,
pois o atributo não tem exatamente o mesmo sentido do sujei­
to: mulher ser feminino - é mulher - ser frágil, enganador,
-

etc. ! Mas é dificil refutar a aparência de identidade.


Na identidade baseiam-se a regra de justiça: tratar da mes­
ma maneira os seres da mesma categoria; o precedente: a ad­
missão de um ato autoriza a cometer atos semelhantes; a reci­
procidade: Olho por olho.
Argumentos "quase" lógicos apenas, pois a expressão
"mesma categoria" é problemática. Por exemplo, num exame:
"X recuperou-se com 9,5; por que não Y, que teve 9,7?" Admi­
tir isso é estabelecer a média em 9,5, e excluir qualquer delibe­
ração. Outro exemplo: "O que é honroso aprender também é
honroso ensinar" (Quintiliano, citado p. 298); mas aprender e
ensinar são realmente recíprocos?

Argumentos quase matemáticos:


transitividade, dilema, etc.

Outros argumentos quase lógicos apóiam-se em fórmulas


matemáticas. Assim é a transitividade: Os amigos de meus ami-
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 171

gos são meus amigos, que se pode até desenvolver algebrica­


mente:

+x+ = + Os amigos de meus amigos são meus amigos.


+ x- = - Os amigos de meus inimigos são meus inimigos.
- x+ = - Os inimigos de meus amigos são meus inimigos.
- x- = + Os inimigos de meus inimigos são meus amigos.

Este último argumento foi empregado por Churchill em 1 94 1 :


quando a Alemanha invadiu a URSS, ele proclamou que esta
era sua aliada. No entanto, a relação não é realmente lógica:
pode-se detestar o amigo do amigo por uma questão de ciúme.
Digamos que o argumento incita a presumir confiança. Já que
você é amigo de meu amigo, vou tratá-lo como tal.
Outro argumento é a divisão: divide-se um todo - a tese
por provar - em partes, e, depois de mostrar que cada uma de­
las tem a propriedade em questão, conclui-se que o todo tem
essa mesma propriedade. Esse argumento só é rigoroso quando
o todo e as partes são homogêneos; assim, o lugar Quem pode o
mais pode o pouco só vale se o poder é de natureza idêntica: o
médico pode tanto quanto a enfermeira no campo dela?
Na divisão repousa o dilema, raciocínio que prova que os
dois termos de uma alternativa levam à mesma conseqüência,
sendo esta a tese. Ainda é preciso que a alternativa seja real­
mente uma alternativa! "É branco ou não branco" é uma alter­
nativa lógica; "É branco ou preto" não é, a menos que se tenha
provado que as cores intermediárias estão excluídas. Vejamos
o seguinte dilema:

Por que vos fazer uma repreensão? Se fordes honestos, não


a merecereis; se fordes desonestos, ela não vos perturbará! (Re­
tórica a Herênio, IV, 52)

Esse dilema só seria rigoroso se os dois termos honesto, de­


-

sonesto -tfossem os únicos, e não se pudesse ser um e outro ao


mesmo tempo; um pouco de um, um pouco de outro ...
O argumento ad ignorantiam mostra que todos os casos
possíveis devem ser excluídos, salvo um, que é justamente a
1 72 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

tese por provar, cuja admissão se pede por falta de coisa me­
lhor; mostra-se que todos os candidatos a um posto são inacei­
táveis, salvo um (o próprio), ao qual se concederá então o be­
neficio da dúvida. Esse argumento é muito útil em casos de
urgência; aparece com freqüência na "moral provisional" de
Descartes.

Definição

O TA dedica à definição um longo estudo que aqui inter­


pretaremos livremente (cf. TA, § 50).
Definição é um caso de identificação, pois com ela se pre­
tende estabelecer uma identidade entre o que é definido e o que
define, de tal modo que se tenha o direito de substituir um pelo
outro no discurso, sem mudar o sentido, de dizer tanto homem
quanto animal racional. Na realidade, essa identidade só é per­
feita nas línguas artificiais - como a álgebra - ou ainda para os
termos técnicos: peças de máquinas, por exemplo. Na argu­
mentação, consideraremos quatro tipos de definição.
1 ) Normativa, que na verdade é uma denominação, pois im­
põe como convenção o uso de uma palavra, como por exemplo o
termofalsificar na epistemologia de Popper. Não é nem verdadei­
ra nem falsa; basta ater-se a ela em toda a argumentação.
2) Descritiva (ou "real"), que pretende enunciar o uso -
sentido corrente - do termo definido. Falsificar já não tem
o sentido de Karl Popper, mas o do dicionário: "Alterar volun­
tariamente com intuito de fraudar." A definição descritiva pode
então ser verdadeira ou falsa; falsa se não descrever realmente
o uso.
3) Condensada, definição descritiva que se restringe às
características essenciais: "Entendo por universidade a institui­
ção que associa pesquisa fundamental a ensino superior." Omi­
te grande número de coisas, como a formação dos adultos.
4) Oratória (cf. p. 233), definição imperfeita, pois o que
define e o que é definido não são realmente permutáveis: "Guer­
ra é toda a nação num esforço de vitória."
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 1 73

Na realidade, toda definição é wn argumento, pois impõe


determinado sentido, geralmente em detrimento dos outros. Tor­
na-se perigosa e abusiva quando, sendo apenas normativa, pre­
tende-se descritiva; quando, sendo condensada ou oratória,
pretende-se completa. Assim, no texto 6, veremos que Millner
passa sem aviso prévio de: "Entendo por escola" para "a escola
é isto" e depois: "Só é isto." Em sendo wn argumento, a própria
definição deveria ser argumentada.

Segundo tipo: argumentos fundados


na estrutura do real

Os argumentos do segundo tipo já não se apóiam na lógica,


porém na experiência, nos elos reconhecidos entre as coisas.
Aqui, argwnentar já não é implicar, é explicar: "O adversário
diz isso porque tem interesse em dizê-lo" (argumento ad homi­
nem) . Inversamente, estima-se que, quanto mais fatos wna tese
explicar, mais provável será ela.

Sucessão, causalidade, argumento pragmático

Pode-se argumentar constatando wna sucessão constante


nos fatos, e deles inferindo um nexo causal; se um exército
sempre tem excelentes informações sobre o inimigo, infere-se
que seu serviço de inteligência é excelente, e que sempre será
assim. Mas não se trata de uma demonstração científica.
Em primeiro lugar, o argumento é apenas provável, e o so­
fisma está sempre à espreita: post hoc, ergo propter hoc, "se­
qüência, portanto conseqüência". O mais importante é que o
argwnento na verdade quer estabelecer wnjuízo de valor, mos­
trar o valor do efeito a partir do valor da causa, ou o inverso.
Assim, ém nosso texto 7, Corneille, a partir do valor da poesia,
conclui pelo valor do autor.
O argumento pragmático deriva disso: é "o argumento que
permite apreciar um ato ou um acontecimento em função de
1 74 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis" (TA, p. 358).


Por exemplo, que outra boa razão se teria para adotar uma lei, a
não ser o conjunto de benefícios que dela se pode esperar (A.
Smith)?
O argumento pragmático goza de tal verossimilhança que
de imediato presume confiança. Em outras palavras, a quem o
contestar incumbirá justificar. Se digo: é preciso ser sincero,
mesmo que disso muitas vezes resultem conseqüências desfa­
voráveis, cabe a mim defender essa tese, ética, contra o argu­
mento pragmático. Sobre ele o utilitarismo funda seus valores,
pois afirma que é bom o que é útil à maioria; sobre ele o prag­
matismo funda a verdade: verdade é a crença que nos presta
serviço.
Suas fraquezas? Em primeiro lugar, geralmente ele opta
pelas conseqüências; o banqueiro falará da rentabilidade de um
investimento, e não de sua segurança. Importante: esse argu­
mento elimina os valores superiores: só porque triunfa, uma
causa é boa? Finalmente, como Sócrates objetava a Górgias
(texto 1 ): o que é realmente útil ou realmente nocivo? O argu­
mento pragmático só é válido quando já se sabe isso, ou então
quando não se tem outro meio de conhecer esse realmente.

Finalidade: argumento de desperdício,


de direção, de superação

A finalidade, rejeitada pela ciência, desempenha papel ca­


pital nas ações humanas, e dela é possível extrair vários argu­
mentos, todos fundados na idéia de que o valor de uma coisa
depende do fim cujo meio é ela, argumentos que não expri­
mem o porquê, mas o para quê.
Diz Polieuto de sua mulher, inda pagã:

Tem virtudes de mais para não ser cristã!

afirmando assim que, se não se tornasse cristã, suas virtudes de


nada serviriam, seriam meios maravilhosos para um fim ine-
C 'OMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 1 75

xistente. É o argumento do desperdício: declara-se que é preci­


so continuar a guerra porque, caso contrário, todos os mortos
teriam tombado em vão; que é preciso continuar a emprestar
aos países superendividados, caso contrário a bancarrota deles
anularia qualquer possibilidade de quitação; ou ainda que todos
têm o dever de empregar seus "talentos" inatos; que é preciso
votar para não deixar de expressar sua opinião, etc.
O argumento de direção consiste em rejeitar uma coisa -
mesmo admitindo que em si é inofensiva ou boa - porque ela
serviria de meio para um fim que não se deseja. Quando se argu­
menta que o salário dos escrivães é baixo demais, o contra-ar­
gumento é que todas as categorias de funcionários iriam exigir
aumento. É o argumento da reação em cadeia, da perda do con­
trole: se você ceder desta vez aos terroristas... Em que esse argu­
mento se distingue do argumento do precedente? O precedente
fundamenta um direito, enquanto a direção prevê um fato.
No argumento da superação, ao contrário, a finalidade
desempenha papel motor. Ele parte da insatisfação inerente ao
valor: nunca ninguém é bom demais, justo demais, desinteres­
sado demais. O ideal inacessível mostra em cada conquista um
trampolim para uma conquista superior, num progresso sem
fim. O obstáculo transforma-se então num meio de passar para
um estágio superior, como a doença que imuniza, o fracasso
que educa. "Perfeito é o oposto de aperfeiçoar", dizia P. Valéry;
aqui, opta-se pelo aperfeiçoamento ao infinito, pelo melhor
contra o bom.
A hipérbole, convém lembrar, é a figura que condensa
esses dois argumentos. É o que acontece na seguinte piada:
diante de todos os jornalistas, o Presidente atravessa o Sena an­
dando sobre as águas. Um grande jornal de oposição traz como
manchete no dia seguinte: "O Presidente não sabe nadar!" Su­
b@tendido: ele poderia fazer qualquer coisa, nunca estaria
bom. A anedota dramatiza o "qualquer coisa". A epítrope tam­
bém é um argumento de direção levado ao extremo: Eis aqui
sangue, vem beber. ..
Duas observações sobre a finalidade. A primeira é que
acontece criá-la para atender às necessidades da causa, como
176 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

quando se invoca um "perf il do posto" que foi traçado em fun­


ção do candidato que se quer nomear, ou se inventam "obj eti­
vos da guerra" bem depois que a guerra começou. A segunda é
que um contra-argumento eficaz consiste em mostrar que o
valor invocado não passa de meio: ele só estuda para ganhar
mais, só está apaixonado para ganhar o dote . . . O para destrói o
valor. É o argumento pragmático ao inverso.

Coexistência: argumento de autoridade,


argumento "ad hominem "

Pode-se extrair o argumento de uma relação de coexistên ­


cia entre as coisas. O TA dá a esse termo um sentido muito for­
te: relação do atributo com a essência, ou ainda dos atos com a
pessoa.
O argumento da essência consiste em explicar um fato ou
em prevê-lo a partir da essência cuja manifestação é ele. Quem
bebeu beberá; em outras palavras, sua essência é ser - ou ter-se
tomado - ébrio. A essência explica o que um grande número
de casos tem em comum: "Todos esses monumentos são do
século XIX, logo... "A essência pode ser estética (o gótico),
política (a democracia ocidental), etc. Em ciências humanas, o
"tipo ideal" é uma essência explicativa e heurística: "o operário
fiandeiro dos vales de Vosges". É certo que esse operário
nunca existe em "estado puro", mas o "estado puro", a essên­
cia, permite identificar e classificar muitos indivíduos, deter­
minando-se seus desvios em relação a esse estado. Finalmente,
a essência tem alcance ético; é a partir dela que se argumenta
para fazer a distinção entre uso e abuso, entre suficiente e
demas iado. A prosopopéia é a figura correspondente: são as
leis "em si", "em pessoa", portanto em sua essência, que falam
a Sócrates .
O argumento de pessoa é uma aplicação do argumento aci­
ma. Baseia-s e no nexo entre a pessoa e seus atos, nexo que per­
mite presumir os atos dizendo que se "conhece a pessoa", julgá­
los dizendo que "são típicos dela'', que "ela não vai mudar".
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 177

Essa estabilidade da pessoa fundamenta sua responsabili­


dade: É ele que. . . ; falta s aber se o ele é exatamente o mesmo
ele de cinqüenta anos atrás, como nos processos por crime de
guerra ... Mas o importante é que a identidade, conquanto fun­
damente a responsabilidade, também apresenta o risco de des­
truí-la, pois ser responsável é ser livre, logo poder ser diferen­
te; se a identidade não pode ser mudada, toma-se fatalidade:
sou assim, portanto uma desculpa. Em todo caso, no argumen­
to de pessoa baseiam-se dois argumentos muito conhecidos.
O argumento de autoridade (§ 70) justifica uma afirmação
baseando-se no valor de s eu autor: A ristoteles dixit, Aristóteles
disse. Argumento muito desacreditado no mundo moderno,
injustamente porém. Primeiro, ele nada tem que ver com dog­
matismo: todo argumento pode ser dogmático, conforme seja
usado; o de autoridade é uma "técnica" como outra qualquer.
Depois, essa técnica - quer sejamos tradicionais, quer inovado­
res - muitas vezes é indispensável.
Em que se baseia a autoridade? Na vida comum, baseia-se
na moralidade: "Se foi ele que disse, pode-se acreditar." Em po­
lítica, baseia-se no passado sério do candidato, ou até mesmo
glorioso: foi assim que em 1940 confiou-se em Pétain, mas
também, depois, em de Gaulle. . . Em religião, baseia-se na re­
velação. Bossuet diz de Jesus:

Não busquemos as razões dasverdades que ele nos ensina:


toda a razão é que ele falou. (ln TA, p. 415) .

A ciência parece excluir o argumento de autoridade. No


entanto, ele está sempre presente: Lei de Joule; como mostra a
experiência de X; isso porque o pesquisador não pode desco­
brir nem ver ificar tudo, precisa confiar em alguém. E em filo-
<' sofia? Como diz Nietzsche; já não se pode afirmar depois de
Freud. . . ; Heidegger ensinou que... Na verdade o mais raciona­
lista dos f ilósofos não pode encontrar tudo sozinho, partin do
do zero eomo Descartes ... Finitude do pesquisador, do pensa­
dor. Ignorá-la seria o pior dogmatismo.
Pode-se contraditar o argumento de autoridade com técn i­
cas de ruptura. Através de fatos por exemplo, mas estes tam-
178 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

bém são estabelecidos por uma autoridade; assim, em estatísti­


ca, quem tem a palavra é o IBGE. Através de outra autoridade:
pode-se opor Marx a Lênin, a Bíblia à Bíblia. Então, já não é a
autoridade que decide, é a razão que escolhe; mas escolhe ou­
tra autoridade.
O argumento ad hominem é o argumento de autoridade
invertido. Consiste em refutar uma proposição recorrendo a
uma personalidade odiosa: "Era o que dizia Hitler! " Ou então
ressaltando as fraquezas de quem o enuncia: Se ele afirma isso
é porque tem interesse. . . como podem acreditar, se ele escreve
no Le Figaro (ou no L'Humanité)?
Argumento vil, que no fundo implica certa violência, obs­
tando a qualquer raciocínio. Já se disse que a moralidade de
Euclides não prova nada a favor nem contra sua geometria! No
entanto, na falta de outras informações, a argumentação deve
utilizá-lo: se alguém me recomendar um candidato, posso per­
guntar-me se essa pessoa está sendo movida por algum interes­
se ou por alguma paixão.
A apodioxe exprime o argumento ad hominem: não é a você
que compete nos ensinar!
Os nexos simbólicos são outra estrutura do real, funda­
mentada na pertinência, mas de ordem puramente social e cul­
tural, pois os símbolos mudam segundo o meio. O símbolo -
cruz, crescente, cores do time ou do partido, heróis históricos
ou lendários, etc. - exprime de modo afetivo, para não dizer sa­
grado, os laços entre indivíduos e comunidade.
Muito comuns na argumentação, os nexos simbólicos es­
tão ligados sobretudo ao patos: honre seu distintivo, respeite
sua bandeira, filhos de Joana D' Are, herdeiros de Danton, etc.
Todo orador deve levar em conta os símbolos de seu auditório
se não quiser falar no vazio.

Duplas hierarquias e argumento "a fortiori "

Das estruturas do real extrai-se um argumento muito com­


plexo, porém muito eficaz, a dupla hierarquia, que consiste em
estabelecer uma escala de valores entre termos, vinculando
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 1 79

cada um deles aos de uma escala de valores já admitida. Por


exemplo, se quisermos saber a importância que um jornal atri­
bui às diversas notícias, compararemos o corpo respectivo dos
títulos dedicados a cada uma delas. Aristóteles prova assim o
"preferível", utilizando a coexistência sujeito-atributo:

O que pertence ao melhor ser é o preferível; por exemplo, o


que pertence a um deus é preferível ao que pertence a um
homem; o que pertence à alma é preferível ao que pertence ao
corpo. (Tópicos, III, 1 1 6 b)

A dupla hirarquia pode ser assim esquematizada:

ARGUMENTO: pertence aos deuses > aos homens; à alma > ao


corpo:
LOGO: eudemonismo (bem-aventurança)> felicidade; alegria>
prazer.

Mesmo esquema para o discurso de Antígona a Creonte:

Não acreditei que teus editos pudessem suplantar as leis


não escritas e imutáveis dos deuses, pois não passas de um
mortal.

ARGUMENTO: dos deuses> tu, mortal:


LOGO: suas leis não escritas> teus editos.

A primeira hierarquia serve, portanto, para valorizar um


termo da segunda: as leis não escritas em relação a teus editos.
Na dupla hierarquia baseia-se o argumento a fortiori, ou
"com maior razão", como na frase de Leibniz:

Tendo cuidado dos pássaros, Deus não negligenciará as


criaturas racionais que lhe são infinitamente mais caras. (in TA,
..

p. 4 5'5)

ARGUMENTO: criaturas racionais (mais caras)> pássaros:


LOGO: cuidados futuros> cuidados passados.
180 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Naturalmente, a argumentação só funciona se o auditório


estiver de acordo com a primeira hierarquia, que serve de argu­
mento; se ele puser os deuses acima dos homens, a alma acima
do corpo, o homem acima dos pássaros. Isso se observa neste
argumento de Cícero, extraído de Pro Milone:

Se temos o direito de matar o ladrão, com mais razão o as­


sassino,

argumento que inverteríamos hoje em dia: se não temos o di­


reito de matar o assassino, menos ainda o ladrão; por exemplo,
na legítima defesa.
Portanto, pode-se refutar uma dupla hierarquia de duas
maneiras.
Primeiramente contestando o nexo entre as duas hierar­
quias. Assim, à frase de Hermíone:

Se o amava inconstante, quanto mais fiel!,

pode-se opor o argumento de que os graus do amor não são di­


retamente proporcionais ao grau de valor do ser amado, que
talvez seja porque Pirro a tortura que ela é louca por ele.
Depois, contestando a hierarquia de valores supostamente
admitidas. Assim, em O misantropo, a "pudica" Arsínoe re­
preende a leviandade de Celimena e afirma:

E só tem amantes aquela que os quer ter.

E Celimena, taco a taco:

Tenha-os então, Senhora!

Hierarquia de Arsínoe:

ARGUMENTO: nenhum amante> muitos amantes:


LOGO: mulher pudica> mulher leviana.
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 181

Hierarquia de Celimena:

ARGUMENTO: muitos amantes> nenhum amante:


LOGO: mulher leviana> mulher pudica.

Como se vê, elas se opõem não só pela hierarquia mas


também pela interpretação dos fatos. Para uma, se a outra tem
amantes é por ser leviana ou fácil. Para a outra, é por ser bonita,
enquanto sua adversária não os tem porque não é. A graça está
na presteza da réplica, que inverte os valores inesperadamente.

Terceiro tipo: argumentos que


fundamentam a estrutura do real

Os argumentos do terceiro tipo também são empíricos,


mas não se apóiam na estrutura do real: criam-na; ou pelo me­
nos a completam, fazendo que entre as coisas apareçam nexos
antes não vistos, não suspeitados.

Exemplo, ilustração, modelo

No TA o exemplo tem papel bem mais restrito que em


Aristóteles; é o argumento que vai do fato à regra. Assim, nos
Estados Unidos alega-se que certo jomaleirozinho ficou bilio­
nário, para dizer que qualquer um pode ser bilionário (cf. § 78 s.).
O exemplo reforça a regra por: 1) ser diferente dos que o suge­
riram; 2) ser independente dos outros exemplos. Assim, Des­
cartes (texto 8) parte de cinco exemplos completamente dife­
rentes para chegar à sua regra.
Como invalidar um exemplo? Com um outro, que o con­
tradiga; a catedral, obra de uma multidão de homens, porém
esplêndida, invalida a regra de que as obras perfeitas são as de
um só homem. Mas pode-se responder de duas maneiras. Pri­
meiro, restringindo o campo da regra: ela vale para as casas,
não para as igrejas! Depois, prevendo a exceção que se julga
182 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

infirmá-la; assim, o milagre não desmente em nada o determi­


nismo da natureza, caso contrário deixaria de ser milagre.
Mas a "extrapolação" a partir do exemplo é sempre con­
testável; pode infirmar uma regra universal, e não prová-la.
A ilustração é um exemplo que pode ser fictício e cuj a
função não é provar a regra, mas dar-lhe "presença na cons­
ciência" e reforçar assim a adesão (§ 79).
A ilustração pode ir de uma simples palavra essa raposa
-

- até uma obra, como 1984 de Orwell. Note-se que nem sem­
pre é fácil distinguir a ilustração da analogia. Vejamos o texto
de Epíteto (in TA, p. 486):

São as dificulades que revelam os homens. Por isso, quan­


do surgir uma dificuldade, lembra-te de que Deus, como um
mestre de ginásio, te pôs às voltas com um parceiro jovem e
rude.

Poder-se-ia dizer que as dificuldades têm com Deus a mesma


relação que o jovem parceiro tem com o mestre de ginásio: re­
lação de provação. Todavia, a ilustração e o "ilustrado" apre­
sentam-se como duas aplicações particulares de uma mesma
regra: a provação é pedagógica; portanto, são do mesmo gêne­
ro, ao passo que a analogia implica termos heterogêneos.
O modelo é mais que exemplo; é um exemplo dado como
algo digno de imitação. O jornaleirozinho não é apresentado
como modelo; ninguém pede que se faça como ele, mas diz-se
a todos que cada um pode fazer o que ele fez. Em compensação
São Paulo, ao dizer "Sede meus imitadores como eu sou do
Cristo", está-se apresentando como modelo.
O modelo é um argumento? Sim, pois serve como norma;
é ele que determina do "afastamento'', o "desvio". Pode-se re­
futar recusando-o (por exemplo, preferir Sócrates a Paulo),
mas também mostrando que o adversário não está extraindo
dele o verdadeiro sentido:

O pai: Na tua idade Napoleão era o primeiro da classe.


O filho: Na tua ele era imperador.
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 183

O antimodelo indica, muitas vezes de modo fortemente


emotivo, o que não se deve imitar: o mau músico, o hilota bêba­
do, que era exibido diante dos jovens espartanos para levá-los a
repugnar o alcoolismo. Fundamenta o argumento a contrario:
"Vej am o que X fez; os resultados foram catastróficos."
N.B. - Ao estudarmos "O lobo e o cordeiro", tentamos
mostrar que as personagens da fábula não são modelos nem
antimodelos, mas simplesmente exemplos.

Comparação e argumento do sacrificio

Quando classificamos a comparação entre os argumentos


do terceiro tipo, afastamo-nos do TA, que a coloca entre os ar­
gumentos quase lógicos por alegar que a medida é um ato ma­
temático. Nós, porém, alegamos que o que se mede é sempre
empírico, e ligamos a comparação ao ato de fundar as estrutu­
ras do real.
De fato, como se diz em outro trecho da TA (§ 57), ela ins­
taura a relação entre dois termos - maior, mais forte, mais bo­
nito, etc. -, estrutura que a realidade não impõe, e que às vezes
é preciso inventar. É por isso, aliás, que certas comparações
parecem "deslocadas". Num livro, comparamos a psicologia
de Alain à de Théodule Ribot; uma discípula do primeiro achou
a comparação ridícula, ainda que ela fosse favorável a Alain! O
que a chocou foi o próprio fato de comparar.
Por que a comparação é argumento? Por permitir justificar
um dos termos a partir do outro ou dos outros. Justifica-se o
montante de um salário, uma nota de exame, uma pena, por meio
da comparação com outras da mesma categoria.
Na realidade, o argumento só é rigoroso se comparar rea­
lidades do mesmo gênero, que podem, portanto, ser submeti­
das ao mesmo estalão: este candidato obteve dois pontos a
mais qu�a média, este salário é 30% inferior ao estabelecido
por lei. Inversamente, quando se comparam realidades hetero­
gêneas, tende-se - muitas vezes erroneamente - a torná-las ho­
mogêneas; quando V. Hugo mostra (texto 5) que Napoleão III
184 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

é "pequeno" em relação ao tio, submete-o ao mesmo estalão: a


glória militar.
Às vezes, a ordem da comparação muda o valor dos termos:
"O tio é maior que o sobrinho" e "O sobrinho é menor que o tio"
talvez tenham o mesmo sentido, mas não o mesmo alcance argu­
mentativo. Às vezes, põe-se um termo no superlativo para situá­
lo acima de qualquer comparação possível: X lava mais branco.
A hipérbole é a figura que condensa esse gênero de argumento.
É fonte de grandiosidade, mas também de comicidade:

Um fanático de ciências ocultas apoquenta Bernard Shaw:


- Ontem à noite a sessão durou três horas; nós estávamos
todos cansados, mas finalmente a mesa se mexeu.
- Não é de espantar - diz Bernard Shaw-, é sempre o mais
inteligente que cede ... (L. Olbrecht-Tyteca, p. 217)

Aplicação de um adágio comparativo a uma situação to­


talmente heterogênea, e que equivale a dizer: vocês são ainda
mais estúpidos que a mesa. . .
O argumento do sacrificio é um tipo de comparação; con­
siste em estabelecer o valor de uma coisa - ou de uma causa -
pelos sacrificios que são ou serão feitos por ela:

Só acredito nas histórias cujas testemunhas dariam o pes­


coço. (Pascal, p. 593, in TA, p. 335)

Note-se que o sacrificio muitas vezes é ambíguo; os sofri­


mentos dos alemães no fim da guerra foram qualificados de
sacrificios pelos hitleristas, de castigo pelos aliados. . . em todo
caso, o sacrificio serve para provar as qualidades morais de
uma pessoa ou de um ato: provo minha sinceridade mostrando
que tenho muito o que perder por causa dela! Mas esse argu­
mento não tem cabimento na área econômica ou técnica. Da
interferência entre esses dois campos surge a comicidade:

Empregador: O senhor está pedindo um salário alto demais


para quem não tem experiência.
Candidato: Justamente, o trabalho é tão mais dificil quando
a gente não sabe como fazer ...
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 185

Analogia e metáfora

Raciocinar por analogia é construir uma estrutura do real


que permita encontrar e provar uma verdade graças a uma se­
melhança de relações. Em matemática, prova-se assim o valor
de um termo por uma igualdade de relações: a/b c/x; logo x
= =

bela. Se 2/3 10/x, x 15. Os quatro termos são diferentes,


= =

mas suas relações são idênticas.


Na argumentação, as relações são simplesmente seme­
lhantes. Vejamos esta analogia satírica:

Hierarquia é como prateleira: quanto mais em cima, menos


utilidade.

Ela exibe duas relações. A primeira, o tema, é o que se


quer provar, que a hierarquia não serve para quase nada em seu
ápice. O segundo, o foro, é o que serve para provar: quanto
mais uma prateleira é alta, menos é acessível. O foro é em geral
retirado do domínio sensível e concreto, apresentando uma re­
lação que já se conhece por verificação. O tema é em geral abs­
trato, e deve ser provado.
Vejamos esta comparação de Aristóteles, na verdade uma
analogia:

Assim como os olhos do morcego pela luz do dia, também


a inteligência de nossa alma pelas coisas mais naturalmente evi­
dentes. (Metafisica, A, 993 b)

TEMA FORO

A: Inteligência de nossa alma C: Os olhos do morcego


B: As coisas mais evidentes D: A luz do dia

Observa-se que o tema, referente a realidades espirituais,


é heterogêneo em relação ao foro, mas a relação - por provar -
entre A ePB é semelhante à relação conhecida entre C e D: rela­
ção de ofuscamento. Semelhante, não idêntica, pois uma é fisi­
ca, outra espiritual.
186 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

O TA (p. 505) registra analogias de "três termos", como:

O homem em relação à divindade é tão pueril quanto a


criança em relação ao homem. (Epíteto)

TEMA FORO

A: O homem C: A criança
B: A divindade D: O homem

Na realidade, há quatro termos, pois em A homem signifi­


ca ser humano, em D significa homem adulto.
A analogia é sempre um pouco redutora, no sentido de
anular tudo o que a relação exclui. Isso acontece até mesmo
com as duas analogias acima, apesar de belas e profundas: a in­
teligência não é só "ofuscada" pela verdade, assim como o
homem não é só "criança" diante de Deus; poderiam ser en­
contradas outras relações.
É desse modo que se pode refutar a analogia. Contesta-se
que a semelhança de relações seja uma prova: comparação não
é razão. No entanto, é mais eficaz trabalhar com o foro: "Se o
bispo é seu pastor, vocês não passam de ovelhas." F inalmente,
pode-se opor ao foro um outro foro. V imos como Cícero refuta
a idéia de que a figura retórica sej a ornamento: replica que ela
não é um "cosmético", mas uma "cor" proveniente do saudável
afluxo de sangue.
O que nos parece capital nessa teoria da analogia é a dis­
tinção entre ela, o exemplo e a comparação, af irmando que a
analogia sempre lida com realidades heterogêneas ou, na lín­
gua de Greimas , com "isotopias" diferentes. A prateleira não é
do mesmo gênero da hierarquia, nem o morcego é do mesmo
gênero da inteligência! Por isso, a an alogia não é uma compa­
ração, que dá ensejo à contagem e à medida.
Contudo, parece que o TA não dá conta do raciocínio por
analogia dos juristas , que lida com realidades homogêneas:
leis, delitos ... Em todo caso, afirmar que a analogia é uma se­
melhança entre relações heterogên eas já tem uma grande van­
tagem: explicar a estrutura e a função argumentativa da metá­
fora.
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 187

De fato, segundo o TA (§ 87) , a metáfora é uma analogia


condensada que expressa certos elementos do tema ou do foro,
omitindo os outros . Aliás, para o próprio Aristóteles a metáfora
deriva da analogia ( cf. Poética, 1457 b, e Retórica, 1406 b) . To­
memos o exemplo de Aristóteles:

Avelhice é a noite davida.

A analogia está subjacente:

TEMA FORO

A:Avelhice C: A noite
B:Avida D: O dia

Em suma, a velhice está para a vida como a noite está para o


dia. Mas um dos quatro termos foi omitido na metáfora. Na me­
táfora in abstentia dois termos foram omitidos: A noite da vida
(para a velhice) .
Como mostramos no capítulo V I, a metáfora condensa um
símile (A velhice é como a noite da vida), que pode ser explica­
do como analogia: a velhice é para a vida o que a noite épara o
dia. A nosso ver, só haverá metáfora se a analogia lidar com
dois termos heterogêneos, como idades e horas . Mostramos que
uma metáfora não pode derivar de uma comparação simples,
nem mesmo de uma dupla hierarquia; esta só daria metonímias,
como Onipotente para Deus, bem-aventurados para os eleitos .
Por que a metáfora é argumento? Por condensar uma ana­
logia. Mas nesse caso ela não é menos convincente do que seria
a própria analogia? De modo mais geral, essa teoria da metáfo­
ra não será redutora, como acha Paul Ricoeur, por esvaziar
tudo o que a metáfora comporta de poesia, de invenção? A es­
sas duas perguntas pode-se responder que a metáfora não é me­
nos convincente, porém mais que a analogia, precisamente pela
mistura que opera entre foro e tema, tomando perceptível a
união dos termos heterogêneos .
Por exemplo, quem quiser tranqüilizar um idoso angustia­
do pela morte pode dizer: Morrer é dormir, condensando nessa
metáfora a seguinte analogia:
1 88 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

TEMA FORO RELAÇÃO

A: Morrer C: Dormir Resultado natural:


B: Viver D: Estar acordado repouso após o cansaço

Mas a metáfora é mais convincente por ser redutora, por tra­


duzir semelhança em identidade; ao dizer é em vez de "é
como dormir'', ela anula as diferenças: que a morte é o "últi­
mo" sono.
Conseqüência: só se refuta realmente uma metáfora com
outra. Assim, para refutar a nossa, a de Hamlet:

To die, to sleep! To sleep, perchance to dream. . .

Esse sono poderia ser povoado por sonhos, por pesadelos!


Do mesmo modo, Jean Château replica aos partidários da
"escola aberta para a vida": "Escola não é prisão, é cidadela";
em resumo, corrigindo o foro':

TEMA FORO! FORO II

A: Escola C: Prisão Cidadela


B: Alunos D: Prisioneiros Protegidos

A relação não é mais de cativeiro, porém de proteção.


A metáfora argumenta estabelecendo contato entre dois
campos heterogêneos: o segundo, o foro, introduz no primeiro
uma estrutura que não aparecia à primeira vista. Mas é reduto­
ra por ressaltar um elemento comum em detrimento dos outros,
por ressaltar uma semelhança mascarando diferenças.
Finalmente, ao aproximar dois campos heterogêneos, a
metáfora muitas vezes cria um verdadeiro fluxo entre os dois,
invocando outras metáforas em número indefinido. Assim,
basta fazer uma aproximação com encaminhamento para que
surjam: progresso, progressão, providência, método (caminho
pelo qual se atinge um objetivo), objetivo, erro, desvio, dedu­
ção, conduzir meus pensamentos (Descartes), etc.2 •
Como se vê, a metáfora é, por excelência, a figura que fun­
damenta as estruturas do real.
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 189

Quarto tipo: argumentos por


dissociação das noções

Absurdo ou "distingua "

Os argumentos do quarto tipo (cf. TA, § 89 s.) consistem


em dissociar noções em pares hierarquizados, como aparên­
cia/realidade, meio/fim, letra/espírito, etc. Distinguem-se assim
de todos os outros argumentos, que associam as noções.
É verdade que todos esses outros argumentos podem ser
recusados por uma "técnica de ruptura", mas esta se limita a
manter separado aquilo que o adversário pretendia unir: "Não é
uma identidade", "essa analogia não é válida", etc. Neste caso
trata-se de uma ruptura não concreta, pois é o discurso que a
cria; onde se via uma realidade, surgem duas, a aparente e a ver­
dadeira. É o que faz a máxima de Severo, em Polieuto (IV, 6):

A seita dos cristãos não é o que se pensa.

Em seguida, a dissociação modifica profundamente as rea­


lidades que separa. Existem os cristãos da representação popu­
lar - agitadores fanáticos, degoladores de crianças - e existem
cristãos como os que Severo estudou "de dentro"... Note-se,
aliás, que os dois termos do par não são equivalentes, como se­
riam o bem e o mal, porém hierarquizados, como cristãos vis­
tos de fora e cristãos verdadeiros.
Finalmente, a dissociação tem como objetivo essencial di­
rimir incompatibilidades, e é exatamente isso que a torna con­
vincente e durável. É preciso escolher entre o absurdo e o dis­
tingua. Assim, Pascal diz sobre o pecado original:

Certamente nada nos atinge mais rudemente do que essa


doutrina; e no entanto sem esse mistério, o mais incompreensível
de todos, somos incompreensíveis para nós mesmos. (p. 552)

A .prova desse dogma, segundo Pascal, é que só ele pode


dirimir as contradições inerentes ao homem, distinguindo o ho­
mem bom por criação do homem pecador: o primeiro explica
nossa grandeza; o segundo, nossa miséria.
190 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

O quarto tipo constitui o argumento filosófico por exce­


lência, pelo menos desde Platão.

O par aparência-realidade

Partiremos do par por excelência, a dissociação entre apa­


rência e realidade. A aparência apresenta incompatibilidades.
Por que, por exemplo, uma vara reta parece quebrada quando
sua extremidade é mergulhada na água? Certos empiristas res­
pondiam: corrige-se a visão com o tato. Mas o tato também tem
suas ilusões; por que então acreditar nele mais que na visão?
Tudo o que se pode dizer é que a aparência tátil é incompatível
com a visual. Para dirimir essa incompatibilidade, é preciso
transpor as aparências e remontar à lei científica que a explica:
seno de I n X seno der.
=

É também por um distingua entre aparência e realidade


que Kant resolve a grande contradição da cultura moderna,
entre a necessidade exigida pela ciência e a liberdade exigida
pela moral: se todos os meus atos se explicam cientificamente
por suas causas, não tenho nenhuma responsabilidade sobre
eles, o que arruína a moral. A dissociação de Kant entre causa­
lidade fenomênica (no tempo) e liberdade numênica permite­
lhe distinguir no homem o determinismo científico e a respon­
sabilidade moral como dois pontos de vista, por exemplo o do
psicólogo, que explica, e o do juiz, que absolve ou condena.
Resumindo, em tudo o que parecia uno o argumento de dis­
sociação introduz uma dualidade e cria um par hierarquizado:

Termo 1 : Ser aparente, imediato, conhecido diretamente.


Termo 2: Ser real, critério de valor e de verdade do termo 1.

Apesar de não se limitar à filosofia, esse distingua consti­


tui seu método por excelência. Até mesmo o materialista oporá
o mundo real, a matéria científica, às aparências; até mesmo o
empirista oporá a experiência real ao sonho e à ilusão.
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 19 1

Outros pares

Muitos outros pares são constituídos pela analogia com o


par aparência/realidade, que permite identificar em cada um o
termo 1 e o termo 2. Vej amos os pares mais freqüentes em nos­
sa cultura: meio/fim, conseqüência/princípio, ato/pessoa, aci­
dente/essência, ocasião/causa, relativo/absoluto, subjetivo/ob­
jetivo, múltiplo/uno, normal/normativo, individual/universal,
particular/geral, teoria/prática, linguagem/pensamento, letra/es­
pírito ... (cf. TA, p. 562).
Em cada um deles, o termo 2 - fim, princípio, pessoa, etc. -
é dado como superior ao termo 1. Todavia, essas hierarquias nada
têm de invariáveis, mesmo em nossa cultura. O romantismo pre­
feriu o subjetivo ao objetivo, o indivíduo ao universal. O pensa­
mento moderno inverte igualmente certas hierarquias; para o
pensamento antigo e clássico, o par é movimento/imobilidade;
Baudelaire exprime assim o ideal grego em "Beauté" [Beleza]:

Odeio o movimento que desloca as linhas,


E eu não choro jamais, não rio jamais.

Mas no pensamento moderno, depois de Hegel, Nietzsche e


Bergson, o termo 1 passa a ser imóvel, e o termo 2 é a mudan­
ça, considerada ontologicamente superior a ele.
Um par pode ser expresso com elipse, por apenas um de
seus termos. Assim, só se menciona o termo 2, mas com um
artigo: A solução, ou com um adjetivo: A história autêntica, ou
com um advérbio: universalmente verdadeiro, ou com maiús­
cula: o Ser, ou com um hífen pretensamente etimológico: ek­
sistência. Pode-se também omitir o termo 2 marcando o termo
1 com aspas: "objetividade ", "direito '', para mostrar que se tra­
ta de pretensão.
Um par também pode ser expresso por figuras. Vejamos a
seguinte frase de Schiller, que une a epanalepse à pseudotauto­
logia e ao paradoxo:

Qual é a religião que professo? Nenhuma, de todas as que


citas . -E porque nenhuma?-Por religião. (TA, p. 588)
192 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Às religiões positivas (escritas, tradicionais), ele opõe a


Religião (natural, interior), a única verdadeira.
Certas figuras, como o oxímoro, são compreendidas por
uma dissociação, que converte uma das duas palavras em ter­
mo 1 e a outra em termo 2: douta ignorância (211 ), alegria
amarga ( 112), pensar o impensável (211 ) , dizer o inefável ( 112),
perderpara ganhar (112), sol negro (112).
Num debate, o distingua dirime a incompatibilidade atra­
vés de uma dissociação semântica. Assim, em economia,franc
courant/franc constant [franco corrente/franco constante]. Em
psicologia, subsconsciente/inconsciente.
Para refutar um par, às vezes basta invertê-lo.

Deve-se comer para viver, e não viver para comer.

Esse quiasmo inverte o par fim/meio. Mais sutilmente, pode­


se mudar a expressão dos termos; assim, real/ideal passa a
ser ''utopia/real"; letra/espírito passa a ser "interpretação/texto";
fato/essência passa a ser "abstrato/concreto". Em resumo,
invertem-se os termos depois de se ter mudado sua denomi­
nação.
Note-se que a ausência de dissociação pode ser fonte de
comicidade:

A mulher voltou para casa de luto e de táxi.

Ou, ao contrário, pode haver dissociação abusiva:

Só as palavras contam / o resto é parolice. (Ionesco)

Ou então a inversão inopinada de uma hierarquia:

I can 't be there in spirit, so I am coming in person.

Normalmente "em espírito" é um quebra-galho para o "em


pessoa"!
COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? 1 93

Artificio e sinceridade

Uma atitude que é possível tornar odiosa ou ridícula é a


perversão da relação meio/fim: ser generoso para que os ou­
tros digam, estar apaixonado para fazer carreira; surge então
um novo par pela inversão do primeiro, o par artificio/sinceri­
dade.
Esse par acabou servindo de argumento contra a própria
retórica (cf. TA, § 96), que é reduzida a um conjunto de "artifí­
cios", ou seja, de meios totalmente estranhos ao fim em vista, e
que valeriam também para um fim contrário. Somos persuadi­
dos por argumentos "fortes", "plausíveis", etc., mas, como o
seu único objetivo é persuadir, dizemos que o orador utilizaria
também argumentos falsos, insinceros, desde que se mostras­
sem mais eficazes. E nesse caso qualquer retórica, qualquer ar­
gumentação passa a ser suspeita de não passar de artificio.
Então, ocorre uma dissociação no seio do próprio discurso:

Termo 1: discurso artificial, estratagemas retóricos.


Termo 2: discurso sincero, ausência de retórica.

Na verdade, essa dissociação, em si, é profundamente retó­


rica. A sinceridade, que consiste em só se dizer o que se pensa
de verdade, é um valor ético. Mas, desde que alguém queira ex­
pressar-se com sinceridade, desde que queira persuadir os ou­
tros daquilo em que acredita, estará - querendo ou não, e talvez
principalmente sem querer - no domínio da retórica.
De que maneira esta pode superar a suspeita de artifício?
Por meio de melhores artifícios! Primeiro, encontrando o tom
'justo", ou seja, apropriado ao assunto em questão e adaptado ao
que se pensa, a "conveniência" dos antigos retores. Depois, por
meio de certas figuras, como a hesitação, a epanortose ("ou me­
lhor"), o anacoluto, a epanalepse (ai, ai, ai!), que conferem "tom"
de sinceridade ao discurso. A retórica é uma arte que, como toda
arte, atinge a perfeição quando se faz esquecer.
Está certo que arte não é prova de sinceridade, mas basta
que não seja tampouco prova de mentira.
1 94 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Para terminar, lembraremos os dois princípios que nossas


análises trouxeram à tona. O primeiro é que não há argumento
infalível, pois todo argumento pode ser contraditado por outro
argumento. O segundo é que a argumentação não é inerente­
mente falaciosa; se todo argumento pode tornar-se sofistico
por erro de prova, é porque ele também pode deixar de se tor­
nar sofistico, falando-se então, de pleno direito, em obj etivida­
de da argumentação.
Em outras palavras, não se espera de um argumento ape­
nas que ele seja eficaz, isto é, que seja capaz de persuadir seu
auditório; espera-se que ele seja justo, isto é, capaz de persua­
dir qualquer auditório, de dirigir-se ao auditório universal.
Em que condições isso é possível? Quando o argumento
se expõe deliberadamente à discussão, à contra-argumentação.
E aqui encontramos o grande princípio: o que salva a retórica é
que o orador não está sozinho, que a verdade é encontrada e
afirmada na prova do debate. Tanto com os outros quanto con­
sigo mesmo.
Capítulo IX
Exemplos de leitura retórica

Tentaremos pôr em prática os dados até agora desenvolvi­


dos, aplicar a ferramenta retórica a textos tão diversos quanto
possível.
Por que - dirão - falar em textos, visto que em todo o livro
mostramos que a retórica se aplica ao discurso? Para nós, não é
igual. O discurso é um conjunto coerente de frases, que têm
uma unidade de sentido e que falam de um mesmo obj eto. Ora,
a unidade do discurso é criada por seu autor: é ele que decide
do que se falará, quando começará e quando acabará seu dis­
curso, é ele que decide fazer um tratado, um drama, uma carta
ou uma simples máxima. É nesse sentido que se fala de Discur­
so do método, de Discurso sobre o estilo, etc. A unidade do
texto é, ao contrário, obra de seu comentador; é ele que o desta­
ca no interior do discurso; e, para nós, todo texto é um excerto.
Mas em todos os casos escolhemos textos cuja unidade temáti­
ca e cuja coerência interna permitem tratá-los como discursos
autônomos.
Lembremos as regras principais da leitura retórica. Pri­
meiro, ela consiste em fazer perguntas ao texto, dando-lhe to­
das as oportunidades de responder. Em segundo lugar, essas
perguntas, ou lugares de leitura, referem-se o máximo possível
ao conjunto do texto: qual é sua época, seu gênero, seu auditó­
rio real, seu motivo central, sua disposição, etc.? Se possível,
evita-se· o comentário linear, que logo vira paráfrase. Em ter­
ceiro lugar, a leitura retórica busca o vínculo íntimo entre o
argumentativo e o oratório. Em quarto lugar, ela pretende ser
um diálogo com o texto.
196 INTRODUÇÃO Â RETÓRICA

Texto 6-J.-C. Milner, Da escola,pp. 9e 10

§I Há escola em certas sociedades, e particularmente


na nossa. Aí está uma proposição indubitável; no entan­
to, cabe estabelecer o que ela significa. Dizer que a es­
cola existe é, na verdade, dizer apenas isto: numa socie-
5 dade existem saberes, e estes últimos são transmitidos
por um corpo especializado num lugar especializado.
Falar de escola é falar de quatro coisas: (1) de saberes;
(2) de saberes transmissíveis; (3) dos especialistas en­
carregados de transmitir saberes; (4) de uma instituição
1O reconhecida, cuja função é pôr em contato, de maneira
ordenada, os especialistas que transmitem e os indiví­
duos a quem se transmite. Cada uma dessas quatro coi­
sas é necessária, de tal modo que negar uma delas é
negar a existência da escola ( . . . )
§II Quatro coisas lhe são necessárias; e também lhe são
suficientes: dizer que há escola é dizertudo o que foi dito,
porém nada mais. Assim, não é dizer que todos os saberes
são transmissíveis; não é nem mesmo dizer que todos os
saberes transmissíveis são ou devem ser transmitidos
20 pela escola; não é dizer que os especialistas encarregados
de transmitir sabem tudo o que há para saber em geral,
nem tudo o que há para saber do saber que transmitem.
Decerto sempre poderão ser acrescentadas outras deter­
minações às quatro determinações essenciais. Por exem-
25 pio, pode-se desejar que a escola dê felicidade, que con­
tribua para a boa saúde fisica e moral, que possibilite um
uso racional do telefone ou da televisão, etc. Nenhum
reparo quanto a isso, contanto que ninguém se esqueça de
que esses são fins secundários e suplementares, vanta-
30 gens adicionais: querer transformá-los em fins principais
e em beneficios maiores é na realidade renunciar às deter­
minações essenciais. Logo, é querer o fim da escola.
§III ( ... ) Trata-se, pois, sempre e primordialmente de
designar e definir os saberes que se querem transmitidos;
35 secundariamente, de ordenar as formas institucionais e
especializadas da transmissão. ( ...) A segunda decisão é
na verdade a da pedagogia concebida não como fim, mas
como puro meio de transmissão: muitas vezes tem pouco
que ver com a pedagogia usual e vulgarizada.
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 197

Motivo central

Essas linhas constituem o início do livro e introduzem a


parte intitulada "Axiomática". Quem é o auditório? O grande
público culto, preocupado com todas as "reformas" do ensino,
sobretudo com a última em termos cronológicos, a de Savary
( 1984), que parece dar ênfase à pedagogia, em detrimento dos
saberes. O adversário, que o livro inteiro trata de desancar, é o
clã dos pedagogos, acusados de fomentar um verdadeiro com­
plô contra o ensino.
No entanto, esse livro não se presume panfleto, mas en­
saio, pretendendo-se rigorosíssimo. Seu método é o do lingüista
(que Milner é), definindo inicialmente uma necessidade formal,
e procurando depois os conteúdos apropriados a preenchê-la:
Que saberes? Que pedagogia? Do mesmo modo, o lingüista es­
tabelece a combinatória de todos os fonemas possíveis, para de­
pois os buscar empiricamente nas diferentes línguas.
Esse texto revela algum motivo central? Sim: o uso (ou
abuso) da argumentação quase lógica, mais precisamente da
definição. Observemos a palavra capital, o apenas da linha 4:
declara que a escola é isto - as quatro características - e que só
é isso. Resvala-se, sem qualquer aviso, de uma def inição nor­
mativa para uma definição descritiva.

Uma cadeia de entimemas

Como a argumentação se apresenta? Como uma cadeia de


entimemas, que parte de um fato admitido por todos, há esco­
la, e de uma pergunta sobre o sentido dessa proposição. A dis­
posição, muito rigorosa, é a seguinte:

I: Características necessárias da escola:

1 a 3: exórdio, colocação do problema;


4 a 1 O: enumeração das quatro características que definem a
escola;
1 O s.: conseqüência de sua negação: falam contra a escola.
198 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

II: As seguintes características são suficientes para definir


a escola:

1 3 a 20: explicação e esclarecimentos;


20 a 25: concessão aparente;
25 a 29: refutação pelas conseqüências: ofim da escola.

III: Das características formais a seu conteúdo:

30 a 33: explicação;
33: nota sobre a primeira decisão (aqui omitida);
33 a 36: nota sobre a segunda: a pedagogia é apenas meio.

Quais são os principais entimemas? Em 1, afirma-se que a


escola tem necessariamente essas quatro características, de tal
modo que quem negar uma delas estará negando a escola e,
concretamente, contribuindo para destruí-la. O parágrafo II ter­
mina com um logo: como se chega a essa conclusão? Em três
tempos: 1 ) afirma-se que as quatro condições são suficientes;
2) que tudo o que se pode acrescentar a elas não passa de fins
secundários; 3) que transformá-los em fins principais é abolir
os verdadeiros fins da escola. A premissa principal subentendi­
da utiliza o lugar da essência: tudo o que se acrescenta à essên­
cia compromete sua integridade.
No parágrafo III, a premissa maior do entimema seria:
tudo o que só é formal deve ser completado. Observe-se que
esse texto exclui exemplos. O Por exemplo da linha 22 só faz
introduzir uma ilustração pedagógica (com a devida vênia!).

Figuras fortíssimas

O estilo está a serviço desse rigor. No entanto, o texto é


amplificado secretamente por figuras fortíssimas. Antes de
mais nada, uma metáfora que retoma o tempo todo e comanda
de fato todo o livro. Com freqüência se disse que as metáforas
ocultas são as mais perigosas. Aqui é exatamente isso o que
acontece. Trata-se da transmissão (l. 5 e passim); essa metáfo-
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 1 99

ra, comum aos partidários da escola clássica e a seus detrato­


res, não poderia ser mais redutora; ela modifica o sentido do
ensino e do saber. De fato, equipara a escola a um sistema de
transmissão, como o sistema de correios e telégrafos, com seus
órgãos, agências, obj etos (cartas, encomendas); os saberes não
passam de mensagens, informações inertes, excluindo-se todo
o campo das habilidades e, o que é mais grave, da compreen­
são; os alunos são reduzidos a receptores passivos; os professo­
res, a agentes telegráficos. O papel da escola será de dar saber
ou de ensinar a aprender?
Outra figura é a ironia, que aflora na linha 22, com as con­
cessões, cuja ordem mostra que elas são aparentes; se ele tivesse
ido de televisão a darfelicidade, a gradação teria sido normal;
aqui, a gradação ao inverso produz efeito caricato, salientando
o ridículo dos "pedagogos", ironia reforçada pela metáfora das
vantagens adicionais com tudo o que ela sugere: se junto com
o sabão em pó vem um brinquedo, acontece-nos comprar o
sabão por causa do brinquedo! O par fins secundários/fins pri­
mários está assim invertido.
A litote da linha 35 (pouco que ver) introduz o par deci-
sivo:

Termo 1: pedagogia usual e vulgarizada, falsa e pretensiosa;


Termo 2: pedagogia... puro meio de transmissão, útil e séria.

A petição de princípio

Milner começa com uma definição normativa de escola; é


seu direito propô-la, assim como é direito do leitor recusá-la.
Mas depois essa definição vai funcionar em todo o texto como
definição descritiva; em outras palavras, o autor exige do leitor
que este a admita como verdadeira e única. Ora, se descermos
do "axiomático" ao empírico, se estudarmos na realidade essa
instituição que é a escola (cf. 1. 9), veremos que ela está longe
de reduzir-se às quatro características de Milner; a escola in­
glesa, por exemplo, visa primordialmente à boa saúde fisica e
200 INTRODUÇÃO Â RETÓRICA

moral, etc. O autor nos impõe sua def inição pessoal, fazendo
de tudo para que não tenhamos consciência dessa imposição. É
o exemplo típico da petição de princípio.
Mas não será isso - como afirma o TA um "erro retóri­
-

co", uma inépcia da argumentação, pois age-se como se o audi­


tório admitisse o que na verdade não admite (como por exem­
plo a transmissão do saber)? Não é certo. É verdade que o livro
de Milner foi rejeitado com violência pelo clã dos "pedago­
gos", tão maniqueístas quanto ele, mas congraçou um auditó­
rio granjeado antecipadamente, fornecendo-lhe argumentos, e
convenceu certo número de indecisos.
Pode-se lamentar que as análises ricas e muitas vezes ge­
nerosas desse livro tenham sido postas a serviço de uma tese
redutora a ponto de ser caricatural, a "transmissão"...

Texto 7-Pierre Corneille, "Marquesa", 1658

Marquise, si mon visage


A quelques traits un peu vieux,
Souvenez-vous qu 'à mon âge
Vous ne vaudrez guere mieux.

2 Le temps aux plus belles choses


Se plaft à faire un affront,
Et saura faner vos roses
Comme il a ridé monfront.

3 Le même cours des planetes


Regle nosjours e nos nuits:
On m 'a vu ce que vous êtes;
Vous serez ce que}e suis.

4 Cependantj 'ai que/ques charmes


Qui sont assez éclatants
Pour n 'avoir pas trop d'alarmes
De ces ravages du temps.
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 201

5 Vous en avez qu 'on adore;


Mais ceux que vous méprisez
Pourraient bien durer encare
Quand ceux-là seront usés.

6 Ils pourront sauver la gloire


Des yeux qui me semblent doux,
Et dans mil/e ansfaire croire
Ce qu 'il me plaira de vous.

7 Chez cette race nouvelle


Ouj 'aurai que/que crédit,
Vous ne passerez pour belle
Qu 'autant queje l 'aurai dit.

8 Pensez-y, belle Marquise:


Quoiqu 'un grisonfasse effroi,
II vaut bien qu 'on !e courtise,
Quand il estfait comme moi.

Marquesa, se meu semblante


Tem traços envelhecidos,
Pensai que na minha idade
Não sereis muito melhor.

2 O tempo as mais belas coisas


Tem prazer em afrontar,
E murchará vossas rosas
Como enrugou minha fronte.

3 Igual curso dos planetas


Rege-nos dias e noites:
Já fui o que sois agora;
Sereis o que agora sou.

4 Mas conto com alguns encantos


Refulgentes o bastante
Pr'a não ter tantos cuidados
Com estes estragos do tempo.
202 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

5 Vós os tendes, adoráveis;


Mas os que mais desprezais
Poderiam durar ainda
Depois que esses se estragassem.

6 Poderão salvar a glória


Duns olhos que eu veja afáveis,
E em mil anos fazer crer
O que de vós me aprouver.

7 E junto a essa nova raça


Que me dará certo crédito,
Vós só passareis por bela
Tanto quanto eu descrever.

8 Pensai bem, bela Marquesa:


Embora um velho amedronte,
Sempre convém cortejá-lo,
Quando ele é assim como eu.

Todo esse poema é uma apóstrofe a Marquesa, atriz que


usava esse nome e que ofendera Comeille chamando-o de
"coroa" (ele tinha então cinqüenta e dois anos ... ) . Apóstrofe,
pois o auditório real não é Marquesa, porém o público leitor. A
enunciação é fortemente marcada: de um lado, Marquesa, vós,
vossas ... e, de outro, eu, minha, mim . . .
O objetivo de Comeille certamente não é obter o s favores
da jovem, mas provar a todos que tem valor, que sempre con­
vém cortejá-lo. . . (estrofe 8); não se trata de amor, mas de "hon­
ra". E ele prova seu valor com argumentos de comparação em
que talvez encontremos o motivo central do texto.
Embora nada tenha de lírico, essa poesia contribui muito
para o patos; estrofes curtas, rimas ricas, ritmo ímpar - versos
de sete pés -, tudo confere ao texto uma força, uma compostu­
ra, uma vivacidade que permitem dizer: "Belo troco! "
Convém lembrar que a poesia geralmente é paratáctica
(cf. Texto 5). Nesta, os termos conectivos muitas vezes são
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 203

omitidos. Por exemplo, a estrofe 2 poderia ter começado com


um "de fato"; a 5 com "é verdade que"; a 8 com "portanto",
etc. O assíndeto às vezes enseja ambigüidades; por exemplo,
deve-se entender as mais belas coisas ... como mesmo as mais
belas coisas, ou principalmente as mais belas coisas? No se­
gundo caso, ter-se-ia um argumento afortiori.
O fato é que a estrutura argumentativa é clara e forte. A
disposição apresenta-se da seguinte forma. Nas três primeiras
estrofes, Corneille explica a Marquesa que ela não vale mais
que ele. Nas cinco últimas, deixa claro que ele vale mais, pois
ela só chegará à posteridade graças a ele. A argumentação é
uma seqüência de entimemas.
A primeira parte é constituída por dois entimemas bastan­
te redundantes, cuja premissa maior é uma regra geral: O
tempo... Igual curso . , e cuja seqüência mostra que ela se apli­
. .

ca tanto a Marquesa quanto a ele, segundo a regra de justiça.


As figuras só fazem amplificar esse argumento de reciprocida­
de: O tempo. . . tem prazer, personificação por metáfora; mur­
char vossas rosas, metáfora expandida; enrugar minha fronte,
metalepse (ou "metonímia expandida"); o que sois. . . o que sou,
antítese. Em suma, uma argumentação quase lógica, do tipo:
não há por quê!
Os entimemas das cinco últimas estrofes baseiam-se em
outros argumentos, geralmente do segundo tipo. Observemos
os termos de comparação: bastante. . . p 'ra (estrofe 4), ainda...
depois que (estrofe 5), tanto quanto (estrofe 7), e a hipérbole
em mil anos (estrofe 6): tudo evoca o lugar da quantidade, mais
precisamente da duração; o duradouro tem mais valor que o
precário, portanto o talento mais que a beleza. Donde uma dis­
sociação que comanda toda essa segunda parte do texto:

Termo 1 : vossos encantos, precários.


Termo 2: meus encantos, duradouros.

Par que fundamenta a dupla hierarquia da estrofe 5:


Duradouro> precário; logo:
Meus encantos duradouros > vossos encantos precários.
As estrofes 6 e 7 vão esclarecer por que o duradouro é
uma superioridade: eles poderão salvar (vossa) glória; por um
204 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

lado, alegando um fato: é graças à minha poesia que vossa be­


leza sobreviverá. Sabe-se que para os homens do século XVII
uma causa deve ter pelo menos tanto valor quanto seu efeito,
caso contrário se admitiria que esse valor "não procede de na­
da"; sabe-se que esse lugar serve para que Descartes prove a
existência de Deus (cf. a quarta Meditação). Esse lugar nada
mais tem de convincente para nós, que dissociamos o valor e o
ser, e que acreditamos no progresso, portanto no aparecimento
de um valor "complementar". Comeille, porém, utiliza isso para
estabelecer uma nova dupla hierarquia:

O que pode salvar um valor> esse valor;


logo o valor de meus encantos> o valor de vossos encantos.

A última estrofe, com aliterações notáveis grison, effroi


-

- conclui a argumentação com uma segunda dissociação:

Termo 1 : velho amedrontador.


Termo 2: velho genial.

seguida de um argumento pragmático: sempre convém ... Ob­


serve-se que a conclusão ultrapassa as premissas, pois Comeille
passa de alguns encantos (estrofe 4) a eu (estrofe 8), o que supõe
uma nova dupla hierarquia, implícita, que vai dos predicados
aos sujeitos: meus encantos> vossos encantos; logo, eu> vós. E
a glória de seu eu culmina com o que me aprouver (estrofe 6),
que no século XVII era atributo maior da realeza*.
Portanto, motivo central: dupla hierarquia.
Finalmente, o que Marquesa poderia ter respondido? Por
um lado, com um argumento que contestasse o lugar do dura­
douro: que me importa se vou envelhecer, se agora... (são as
palavras que lhe atribui, sem rodeios, Georges Brassens). Por
outro lado, contestando o fato, ou seja, o gênio de Comeille.
Ou fazendo as duas coisas:

* "Car tel est notre bon plaisir" [pois assim nos apraz], fórmula pre­
sente nos editos, que marcava a vontade do rei. (N. do T.)
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 205

Souffre donc queje m 'amuse;


Car /e temps, pour ton malheur,
Pourrait bienflétrir ta muse,
Avant defaner mesjleurs. . .

Sei que t e dói meu prazer


O tempo, p'ra teu desgosto,
Pode tua musa esvaecer
Antes de murchar meu rosto...

Texto 8 - René Descartes, Le discours de la méthode, se­


gunda parte

Um dos meus primeiros [pensamentos] foi perceber­


me a considerar que freqüentemente não há tanta perfeição
nas obras compostas por várias peças e feitas pelas mãos
de diversos mestres quanto naquelas em que uma só pessoa
5 trabalhou.
Assim, vê-se que as construções iniciadas e termina­
das por um só arquiteto costumam ser mais belas e mais
bem ordenadas do que aquelas que várias pessoas cuida­
ram de reorganizar, servindo-se de velhas muralhas que
1O tinham sido construídas para outros fins.
Assim também certas cidades velhas, que, não pas­
sando de vilarejos em seus primórdios, tomaram-se gran­
des cidades com o transcorrer do tempo, são de ordinário
tão mal compassadas, apesar das praças regulares que um
15 engenheiro porventura trace nas planícies segundo sua fan­
tasia, que, mesmo considerando seus edifícios um por um,
e freqüentemente encontrando neles tanta arte, ou mais,
quanto nos das outras, ao se ver, porém, como estão orga­
nizados, aqui um grande, acolá um pequeno, e como tor-
20 nam curvas e desiguais as ruas, tem-se a impressão de que
foram assim dispostos mais por obra da sorte do que pela
vontade de alguns homens em uso da razão.
(. . . ) Assim, imaginava eu que os povos que, tendo
sido outrora semi-selvagens e tendo-se aos poucos civiliza-
25 do, só criando suas leis à medida que a incomodidade dos
crimes e das disputas a tal os obrigava, não poderiam ser
206 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

tão bem policiados quanto os povos que, desde os primór­


dios de seu agrupamento, tenham observado as constitui­
ções de algum prudente legislador (...)
30 E assim pensava eu que as ciências dos livros, pelo
menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e não têm
quaisquer demonstrações, tendo sido compostas e engros­
sadas aos poucos com as opiniões de várias e diversas pes­
soas, não estão de modo algum tão próximas da verdade
35 quanto os simples raciocínios que pode fazer naturalmente
um homem de bom senso no tocante às coisas que se apre­
sentem.
E assim também pensava eu que, por termos todos .
nós sido crianças antes de sermos homens, e por termos
40 carecido durante tanto tempo ser governados por nossos
apetites e por nossos preceptores, freqüentemente contrá­
rios uns aos outros e, uns e outros, talvez nem sempre bons
conselheiros, é quase impossível que nossos juízos sejam
tão puros ou tão sólidos quanto teriam sido se tivéssemos
45 feito uso pleno de nossa razão desde o momento de nosso
nascimento, e se nunca tivéssemos sido conduzidos senão
por ela.

Em várias ocasiões encontramos Descartes como inimigo


da retórica e destruidor da dialética. Ora, aqui, estamos diante
de um texto tipicamente dialético, que procede por razões ape­
nas prováveis, rej eitadas pelo autor (1. 3 1 ). Em vez de usar
demonstrações (1. 32), ele argumenta! Será inconsciente? Cer­
tamente não: Descartes é cuidadoso demais com seu método
para ignorar o que está fazendo. E é com plena consciência que
emprega certas palavras-chave da dialética: freqüentemente (1.
2, 1 7, 41 ), tradução do épi to poly de Aristóteles, assim como
de ordinário, da linha 1 3 . Melhor ainda, ele "modula" o texto,
atribuindo-lhe o grau de verossimilhança que pode ter: foi per­
ceber-me a considerar (1. 1 ) ; o vê-se (1. 6 e 1 8) indica que se
trata de um exemplo, e não de uma evidência de tipo matemáti­
co, assim também imaginava (1. 23), no sentido de "representa­
va". Pensava eu que (1. 29) e quase impossível (1. 43) introdu-
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 207

zem uma verossimilhança, mas não um absurdo: isso poderia


existir.
Por que argumentação dialética num autor que não a acei­
ta? Na realidade, Descartes a utiliza para mostrar a necessidade
de mudar de filosofia, antes de expor sua própria filosofia. Di­
gamos que usa a argumentação para abolir a argumentação. ,
Que argumentação? Pode-se discernir nesse texto algum
motivo central? Note-se que, de maneira totalmente dialética, o
autor apresenta uma tese que depois ampara com cinco argu­
mentos.
Tese: obra perfeita é aquela em que uma só pessoa traba­
lhou (l. 5); ilustra de modo notável o lugar da unidade, muito
apreciado no século XVII. Note-se que, quando ele diz que
esse pensamento foi um dos primeiros, não está indicando
apenas anterioridade cronológica, mas lógica; sem esse pensa­
mento, sem o lugar de unidade, Descartes não teria construído
sua obra.
Os argumentos, que começam todos com assim, como em
Aristóteles, expõem fatos notórios: 1 ) construção; 2) cidade; 3)
constituição; 4) ciência; 5) educação. Estamos diante da argu­
mentação pelo exemplo.
Mas tratar-se-á de exemplos em sentido estrito, de ilustra­
ções, de modelos ou de analogias? O caráter basicamente hete­
rogêneo dos cinco argumentos faz tender para a analogia. Isto
porque, por um lado, temos realidades materiais - construção,
cidade - e, por outro, realidades espirituais - constituição, ciên­
cia, educação; os dois primeiros poderiam lançar luz sobre os
três últimos. No entanto, pode-se responder, como o TA (p. 484 ),
que os cinco exemplos não passam de aplicação de uma única
regra, suficiente para tomá-los homogêneos: materiais ou espi­
rituais, essas realidades são todas obras; os cinco exemplos
designam obras humanas.
Cumpre esclarecer que a ordem desses exemplos não é
aleatória nem reversível. Os dois primeiros, para o público do
século XVII, apaixonado pela ordem e pela unidade, têm alto
grau de verossimilhança; aliás, naquela época, construíam-se
cidades bem compassadas, em forma de estrela ou em xadrez,
208 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

como Lunéville, La Valette de Malte, etc. O terceiro exemplo,


em que Descartes se refere à constituição de Esparta ou ao De­
cálogo, obras superiores porque oriundas de um único autor,
também é aceitável para os contemporâneos. Mas os dois últi­
mos são completamente paradoxais; seria inadmissível que a
ciência fosse obra de uma única pessoa, nem no século XVII e
muito menos no XX! Ora, é aí precisamente que Descartes
quer produzir aceitação. Trata-se então de exemplos ou de ilus­
trações?
Na realidade Descartes quer provar duas coisas: a regra e
o fato de ela se aplicar também e sobretudo à obra científica e
filosófica. Essas aplicações (11. 22 a 44) não são óbvias; por
isso, Descartes não se contenta em invocar a regra, mas mostra
com uma argumentação a contrario que ela também se aplica a
isto: quem se remete aos livros escolásticos ou à educação es­
colástica está fadado à diversidade de opiniões, portanto à in­
certeza irremediável. Quem recebe opiniões de fora está fada­
do ao preconceito; mesmo quando é verdadeiro o que pensa,
está em erro, pois não sabe por que aquilo é verdadeiro!
Esse é o drama de quem aprende pelos livros (11. 22 s. ), e
mais geralmente de quem pensa em função da educação que
recebeu; esta, por melhor que seja, só pode ser incoerente e dar
origem a preconceitos. Por termos todos começado como
crianças, a razão sempre chega tarde demais a um terreno já
ocupado; só pode retificar mais ou menos um espírito já for­
mado, ou seja, deformado. Esse desenvolvimento terá como
conseqüência a dúvida "hiperbólica", em que Descartes se
obriga a rejeitar como falso tudo o que aprendeu. Rousseau e
seus discípulos se inspirarão nela para reclamar uma reforma
radical da própria educação (cf. texto 1 1 ).
A nosso ver, pode-se assim reconstituir a argumentação:
uma tese; três ilustrações (construção, cidade, constituição);
duas aplicações (ciência, pensamento), que é preciso provar, e
ele prova a contrario.
Cabe notar que as ilustrações não são aleatórias. Sabe-se
que para falar de seu pensamento Descartes utiliza metáforas,
partindo da luz (claro, escuro, evidência, etc.) ou do caminho,
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 209

que aparecem nesta frase: eu era como um homem que anda so­
zinho nas trevas (segunda parte). Aqui aparece outra metáfora,
a da construção, que comanda todo o texto: se a ciência - e de
modo mais geral o pensamento - é uma construção, a ela pode
ser aplicada a norma da arquitetura.
Essa norma é o lugar da unidade, que aparece de forma
notável como motivo central de nosso texto. Contra a escolásti­
ca, Descartes reivindica uma ciência única que só pode ser
obra de apenas uma pessoa. Ele.

Texto 9 - Uma entrevista com Françoise Dolto, Libéra­


tion, 5 defevereiro de 1987

A psicanalista Françoise Dolto, especialista em crian­


ças, reage apaixonadamente ao movimento de protesto dos
professores primários. "Incompreensível", afirma. Sentada
junto à sua janela, tendo a seus pés o majestoso pátio da
escola de surdos-mudos de Paris, ela se diz "espantada
com todo esse escarcéu".
(1) LIBÉRATION. - Como a senhora explica a rejeição do
projeto ministerial por parte dos professores primários?
FRANÇOISE DOLTO. - Não entendo; é o espírito de
maio de 68 pervertido. Em 68, tudo bem, mas agora é rejei­
ção, nem mesmo da autoridade em si, mas da simples defi­
nição de atribuições dentro da equipe. Não entendo. Existe
a necessidade de que alguém represente a escola para os de
fora, que alguém assuma os abacaxis de fora. Por que os
professores, que se entendem bem em equipe hoje, não
continuariam assim, mesmo que um deles fosse nomeado
professor-diretor? Afinal, este último não tem o poder de
dar nota aos colegas. Não é um superior, apenas um res­
ponsável.
(2) LIBÉRATION. Como a psicanalista, que a senhora é,
-

define o comportamento dos professores neste caso?


F.D. É um caso de puerilidade. São funcionários que
-

gostariam de ser como os profissionais liberais, sem autori­


dade acima de si. É uma coisa ideal, mas não prática. Eles
dizem "eu, eu, eu. . . ". Idiota. Têm medo do quê? O que eles
2 10 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

têm para temer? O diretor está lá como representante da


escola, e isso não diminui em nada a autoridade do profes­
sor em classe. O sujeito que falou disso na televisão, já não
lembro quem é, o ministro acho, falou bem. Na realidade,
os professores gostariam de ser pagos por alguém que não
tivesse nenhuma autoridade sobre eles, que só se encarnas­
se no inspetor, presente uma vez por ano.
(3) LIBÉRATION - Qual é a participação da criança em
tudo isso?
F.D. A criança sempre precisa de uma situação trian­
-

gular mínima. Em casa tem papai e mamãe que brigam; um


dos dois ganha, e a situação está clara. É bom que a criança
possa recorrer à escola. E o professor também, que nem
sempre está seguro de si. Cabe ao diretor aparar as arestas,
arranjar as coisas. Não há por que sempre opor à criança as
decisões da equipe: é uma fragmentação... É como se em
casa dela tudo fosse decidido com as tias e os tios.
(4) LIBÉRATION Esse diretor da escola deve ganhar mais?
-

F.D.
- Claro. Esse cara merece mais. Precisa visitar a
escola, receber as autoridades, trabalhar até mais tarde, co­
nhecer os pais, todos os pais.
( 5) LIBÉRATION - O projeto tem conotação política?
F.D. - Ter cabeça não é coisa de direita nem de esquer­
da. Com a autogestão, todos viram parasitas. É justo que
haj a ordem na escola, não vejo o que a política tem que ver
com isso, acho isso idiota. É até antidemocrático opor-se a
esse projeto. É deixar o caminho livre para a fuzarca.

Entrevista concedida a Nicolas Beau.

Introdução

Em 1987, a opinião pública francesa foi agitada por uma


decisão do Ministro da Educação, de criar um corpo de "mes­
tres diretores" nas escolas primárias , decisão que pôs os sindi­
catos e toda a esquerda em pé de guerra.
A autora, ou melhor, a entrevistada, é uma psicanalista de
crianças, muito conhecida na época. Diz-se de esquerda, mas
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 21 1

aqui está combatendo a esquerda. Sua grande preocupação,


principalmente em ( 1) e (5), é justificar-se, eliminar essa con­
tradição, pelo menos aparente.
O gêner o, portanto, é entrevista, o que implica um estilo
familiar e uma argumentação oral, mais ou menos impr ovisada.
O que mais impressiona é a mistur a de ter mos técnicos
(definição de atribuições) e vulgares (abacaxi). Todavia, o gê­
nero impõe a substituição de palavras eruditas por expressões
comuns. É assim que, em (2), vemos eles dizem eu, eu, eu, em
vez de "são narcisistas"; em (3) temos em casa ela tem papai e
mamãe, para designar o "triângulo edipiano".
Finalmente, como é normal numa entrevista, ela não tem
domín io sobre a disposição; quem organiza as perguntas é Ni­
colas Beau . Aqui seguimos a argumentação passo a passo, pro­
curando o motivo central desse texto.

Parágrafo (1)

O argumento de partida é uma incompatibilidade: Não en­


tendo, incompreensão reforçada pelas palavras do nariz-de­
cera: incompreensível, todo esse escarcéu... É bom entender
que não há nada para entender : modo de dizer que a revolta dos
professores é absurda.
Essa incompatibilidade vai ser dirimida por uma disso­
ciação:

Termo l : O espírito de maio de 68 pervertido;


Termo 2: em 68, tudo bem.

Esse par é explicitado por ela: o que os professores estão


rej eitando não é a autoridade, como em maio de 68, mas a divi­
são do trabalho, a definição de atribuições. E através de um
argumento do segundo tipo ela prova que essa definição de
atribuições é necessária.
Finalmente, uma prolepse: Afinal. . ., que antecipa um con­
tra-argumento do adversário e o destrói por um distingua: su­
perior/responsável.
2 12 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Parágrafo (2)

Pedem-lhe para definir, como psicanalista, o comporta­


mento dos professores, e na verdade ela começa por qualificá­
los: pueris. Termo que introduz uma nova incompatibilidade,
pois uma das características constantes do infantilismo é perse­
guir fins incompatíveis, aqui qverer ser ao mesmo tempo fun­
cionário e profissional liberal.
Surge então uma nova dissociação, inversa à de ( 1 ):

Termo 1 : é uma coisa ideal;


Termo 2: mas não prática.

A incompatibilidade é sancionada pelo ridículo: Idiota.


Que s erá repetido no fim: os professores gostariam . . .
O que eles têm para temer? É mais uma prolepse; para
acabar com esse medo, ela dá uma definição normativa do di­
retor: representante. Mais adiante, ele será árbitro.
Note-se enfim a preterição: já não me lembro quem é.. .,
embora logo esclareça que é o ministro! Na verdade, sua preo­
cupação é evitar o argumento de autoridade: se ela se alia ao
ministro, não é pelo fato de ele ser ministro, mas sim por ser
um sujeito quefalou bem.

Parágrafo (3)

A pergunta que abre o parágrafo (3) é retórica, pois su­


gere que ess a revolta lesa o interesse da criança, e que por­
tanto é inadmissível. Dolto só tem que aproveitar a deixa.
Armando-se de seu triân gulo edipiano, que ela erige em lei
universal ela sempre precisa. . . -, Dolto passa, por analogia,
-

da família à escola, amparando seu argumento numa dupla


hierarquia:

ARGUMENTO: criança < mãe < pai; logo


TESE: aluno < professor < diretor.
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 213

Aqui também uma prolepse, introduzida por Não há por


que . . . ; com dois argumentos ela refuta quem diga que a ação
da equipe pedagógica bas ta: 1 ) an alogia com a famíl ia; 2) lu­
gar da unidade, marcado pela palavra fragmentação, que na
última análise acaba adquirindo fe ições familiares: com as
tias e os tios.

Parágrafos (4) e (5)

Um dos pontos litigiosos do decreto era conceder uma re­


compensa aos novos diretores . Dolto justifica essa recompensa
com quatro exemplos, para mostrar que esse cara merece mais
(outra vez o estilo negligente).
T rata-se de argumento pragmático? Seria, se ela tivesse
dito que é preciso pagar mais o diretor para que ele trabalhe
mais ; no entanto ela disse: porque ele trabalha mais ; logo, é um
argumento de sacrifício, que por sua vez se funda numa dupla
hierarquia: a hierarquia admitida das tarefas ampara a outra,
dos salários, por provar.
Em (5) a pergunta de Beau induz uma prolepse: pode-se
desconfiar que o projeto seja de direita? Mais uma vez ela res­
ponde com uma dissociação:

Termo 1 : autoridade contestável no plano político;


Termo 2: autoridade incontestável no plano pedagógico.

Uma figura reforça o argumento: ter cabeça; é uma metoní­


mia (cabeça por pensamento) ou uma metáfora (cabeça por
chefe)?
Viram parasitas é uma metáfora que resume um argumen­
to pragmático: a autogestão tem conseqüências nocivas. É a
fuzarca, metáfora enobrecida pelo general de Gaulle em 1968,
que nem por isso deixa de ser uma hipérbole e um argumento
de direção: a ficarem assim as coisas, é nisso que vamos aca­
bar. Como se vê, essa esquerdista s e entrega de corpo e alma ao
lugar da ordem.
214 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

Observações críticas: o motivo central

No mérito Dolto tinha razão? Não queremos nem pode­


mos pronunciar-nos sobre isso. Mas não podemos deixar de
examinar as falhas de sua argumentação.
Em primeiro lugar, ela parece ignorar a situação concreta
dos professores primários, sobretudo a autoridade dos inspeto­
res e o temor que inspiram, motivado ou não, pouco importa.
Em segundo lugar, o argumento de direção que termina o
texto é probatório? Uma vez que, até aquele dia, se vivera sem
"mestres-diretores", a fuzarca poderia estar reinando há muito
tempo. Ora, ninguém tinha notado. . . NB: - Nosso argumento é
uma instância, refutação de uma tese por suas conseqüências.
Em terceiro lugar, o motivo central de todo esse texto é
sem contestação o argumento de autoridade. Está claro: Dolto
é convocada como especialista da infância; no § 2, ela é inter­
pelada como psicanalista capaz de definir o comportamento
dos professores. E logo de início, quando afirma Não entendo,
está querendo dizer que nada há para compreender, que tudo é
pueril, idiota. O que se critica na psicanalista não é o fato de ter
usado sua autoridade, mas de ter abusado dela, pois dita nor­
mas em seara alheia: organização escolar e política. Com o
mesmo tipo de argumentação ela teria conseguido provar que a
liderança mundial cabia aos Estados Unidos e a ninguém mais!
É verdade que ela não é a única psicanalista que abusa de sua
autoridade.

Texto 1 0 - Alain, "Considerações ", de 20 de março de 1910

Aprovo cabalmente essa subscrição nacional para socorrer


os acionistas das minas de Courrieres, que passaram por transe
tão cruel.
Está claro que moralmente, se não de pleno direito, eles
deveriam, com base nos lucros que auferiram e auferirão, repa­
rar tudo o que de reparável houver na catástrofe, ou seja, respon­
sabilizar-se desde já pelas viúvas e pelos órfãos. Isso a rigor é
moral; seria até de direito se olhássemos de perto, pois no caso
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 215

não há força maior, porém ação humana, imprevidência, preci­


pitação, negligência do homem.
Só que o rigor do direito e da moral neste caso talvez seja
cruel demais. Pensemos nessas jovens magníficas oferecidas
com um dote magnífico; vai ser preciso reduzir o dote? E o últi­
mo modelo "quarenta cavalos'', será preciso renunciar a ele? E
aquela mansão tão confortável, que alugaram, como querem que
se livrem dela? Todas essas despesas são interdependentes, e
não se sabe bem por onde começar. Quanto à viagem às termas,
é necessária. Saúde antes de tudo, não é mesmo?
Palavra de honra que lastimo esses pobres ricos. Eles tam­
bém têm suas necessidades, e as necessidades do hábito não são
menos imperiosas que as outras. Tenho pena daquela linda loira,
tão corretamente sentada em seu cupê elétrico; e aquele rapaz,
de sobretudo acinturado, vai passar como o seu tempo se não
jogar bacará? As mulheres estão de olho nele, e eu temo por sua
virtude.
Mas subscrevo, sim, com todo o coração. Vamos lá, senho­
res e senhoras, tenham a bondade. Principalmente os que forem
de poucas posses, acostumados que estão a privar-se. Vamos,
sejam humanos. Caridade, por favor, para os acionistas de Cour­
rieres.

A catástrofe ocorrida na mina de Courrieres (Pas-de-Ca­


lais), que causou a morte de mil e duzentos mineiros, foi acom­
panhada por greves reprimidas pelo exército. Alain trata dela
em um de seus artigos diários para um jornal de esquerda, La
dépêche de Rouen. Trata-se de um "tópico", que chega a cons­
tituir um gênero: texto breve, ao mesmo tempo pessoal e con­
ceitual, em etilo acessível e familiar, habitualmente irônico ou
alegórico.
É fácil descobrir o motivo central desse texto. Pode-se
realmente acreditar que Alain lastime os ricos, que ele estej a
fazendo a subscrição e m seu favor e pedindo aos pobres que
façam o mesmo? Com certeza esse texto é irônico; diz o con­
trário do que quer dizer, para exprimir-se melhor: de modo
mais percuciente e convincente. No entanto, é preciso detectar
216 INTRODUÇÃO Â RETÓRICA

a ironia por certas marcas. Aqui, a mais notória é o oxímoro,


lastimo esses pobres ricos (4). Mas desde o terceiro parágrafo
será possível tomar ao pé da letra essas expressões falsamente
apiedadas, na realidade impiedosas, como a saúde dos acio­
nistas, quando se conhece a catástrofe que desabou sobre seus
operários?
Em suma, entende-se que, quando Alain diz subscrevo, não
fez nada disso; que, quando diz lastimo, está denunciando.
Para os leitores de 1 906 a ironia era ainda mais visível e
devia até parecer imensa. Pois, afinal, a subscrição realmente
ocorreu, mas não para os acionistas, e sim para os mineiros,
evidentemente! Ora, ocorre aqui um desses deslocamentos em
que Freud vê um dos grandes fatores da comicidade: Alain age
como se a subscrição para os pobres fosse para os ricos, os
patrões. Mas no fundo não será isso o que ele pensa?
O que ele pensa se vê no segundo parágrafo, que se apre­
senta como uma prolepse e uma concessão: Está claro que. Só ..

que . em suma, poder-se-ia acreditar, mas não é isso o que


..

acontece. Mas, como estamos em plena ironia, é preciso tomar


a concessão aparente por argumento real de Alain: os patrões
devem reembolsar seus operários; não é só a moral que o exige,
mas o direito, pois os danos são decorrentes da negligência
deles. A catástrofe poderia ser evitada se não tivessem sacrifi­
cado homens ao lucro. Em resumo, um argumento de causali­
dade: o causador do acidente - mesmo que por omissão - é res­
ponsável por ele. Na época isso era bem menos claro que hoje.
A lei dos acidentes de trabalho estipulava que, para serem res­
sarcidos, os operários deviam provar a responsabilidade do pa­
trão, o que era especialmente dificil, em se tratando de um de­
sastre numa mina.
Portanto, para Alain, quem tira proveito de uma subscri­
ção nacional "pelas vítimas" são os acionistas, e até duas ve­
zes, pois ficarão dispensados de pagar o que devem, ao mesmo
tempo que obrigam os operários a lhes serem gratos.
A seqüência é apenas um argumento irônico, que se deve
ler ao inverso! A força da ironia é que, por emprestar uma espé­
cie de aparência a esses argumentos, no começo deixamo-nos
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 217

levar. Antanáclase em rigor, que passa do sentido de exigência


estrita para o de crueldade. Lugares-comuns: o aluguel que é
preciso honrar, a viagem às termas, a saúde antes de tudo (3),
as mulheres que estão de olho no boa-vida (4): esses argumen­
tos são decerto escandalosos, mas isso só se nota depois de
algum tempo de reflexão. O que Alain dá a entender é que es­
ses argumentos são as verdadeiras razões, as únicas razões que
os ricos poderiam alegar para deixar de pagar, razões tão ridí­
culas (ou odiosas) que eles as guardam in petto.
De se notarem as metonímias. Para indicar o luxo escan­
daloso, ele fala de jovens magníficas mas oferecidas! , de
- -

quarenta cavalos, de viagens às termas. A juventude dourada é


a linda loira, o rapaz com sobretudo acinturado, etc. A metoní­
mia desempenha papel argumentativo duplo: de exemplo e de
símbolo. Com alguns traços Alain estabeleceu a riqueza.
Cabe lembrar que a ironia quase sempre condensa um ar­
gumento de incompatibilidade, que ressalta através do ridículo.
Na verdade, apesar das aparências, esse texto não é de ataque
aos ricos, no sentido de que Alain não exige - como faziam
então os socialistas - que eles sejam despojados de suas rique­
zas. Esse texto é contrário à caridade, que despoja os pobres de
sua única riqueza, a dignidade. É esse escândalo que o artigo
denuncia: pede-se ao povo, aos de poucas posses, que faça doa­
ções às vítimas, o que dispensa os responsáveis de ressarcir as
vítimas e as priva de seus direitos: dupla vantagem para os ri­
cos. Donde a hipérbole final, que leva ao extremo o argumento
de direção: a continuar assim, logo estarão exigindo caridade
para os acionistas...

Texto 11 - A educação negativa, J.-J. Rousseau, Emílio,


2.º livro

Atrever-me a aqui expor a maior, a mais importante, a


mais útil regra de toda educação? Não seria isso ganhar
tempo, porém perdê-lo. Leitores vulgares, perdoai-me os
paradoxos: é preciso criá-los quando se reflete; e, seja lá o
218 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

5 que de mim disserdes, prefiro ser homem de paradoxos a


ser homem de preconceitos. O mais perigoso dos interva­
los da vida humana é o que vai do nascimento aos doze
anos de idade. É o período em que germinam os erros e os
vícios, sem que tenhamos ainda instrumento algum para
1 O destruí-los; e, quando chega o instrumento, as raízes já são
tão profundas que já não é tempo de arrancá-las. Se as
crianças saltassem de uma vez do peito para a idade da ra­
zão, a educação que lhes dão poderia ser conveniente; mas,
segundo o progresso natural, elas precisam de outra, total-
1 5 mente contrária. Seria preciso que nada fizessem de sua
alma enquanto não contassem com todas as faculdades;
pois é impossível que ela perceba o facho que lhe apresen­
tais enquanto está cega, e que siga, na imensa planície das
idéias, uma trilha que a razão traça tão levemente mesmo
20 para os melhores olhos.
A primeira educação deve ser, pois, puramente negativa.

Introdução: haverá motivo central?

Pode-se encontrar nesse texto algum motivo central? Em


todo caso, aparece uma figura essencial logo de início, a após­
trofe1 : Leitores vulgares. . . Note-se que esse tenno nada tem de
depreciativo; na época vulgar podia significar, como aqui, "lei­
go". Rousseau não se dirige nem aos educadores nem aos filóso­
fos, mas a todos, ao auditório universal. A apóstrofe é subjacente
a todo o texto: o que de mim disserdes (4), que lhe apresentais
( 1 6). E com uma apóstrofe se conclui o parágrafo seguinte:

Começando por nada fazerdes, tereis feito um prodígio de


educação.

Conclusão que mostra que o obj etivo do texto é ser prático (fa­
zerdes, feito), coisa normal num discurso sobre a educação.
A apóstrofe é ao mesmo tempo expressiva e persuasiva,
pois é como se o autor estivesse presente a nos interpelar. Mas
nem por isso é indispensável, pois em qualquer lugar o vós
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 219

poderia ser substituído por formas verbais impessoais sem que


nada mudasse.
A nosso ver, o motivo central está em outro lugar, e bem
escondido . . .

O paradoxo

Aqui: nosso texto situa-se no livro segundo, que estuda a


educação entre dois e doze anos, mostrando que, em ess ên cia,
ela deveria ser uma não-educação. A página anterior trata pre­
cisamente do problema das punições, que para o autor são pre­
maturas . Mas é contra a "prematuração" em geral que Rous­
seau se insurge em nosso texto, que, aliás, surge do contexto de
maneira bastante inesperada.
A argumentação é ao mesmo tempo rica e tensa. Por quê?
Provavelmente porque o autor parte, como ele mesmo diz, de
um paradoxo. Paradoxo enorme para os leitores do século
XV III, habituados a ver a educação como lavagem cerebral,
adestramento, dis ciplina sádica, imagem que quase todos os
seus colegas passavam. Enorme para nós também: e por uma
razão lógica. Rousseau enuncia uma regra, e toda regra, até
prova em contrário, é portadora de valor, valor que a toma jus­
tamente maior, importante, útil... Ora, perder tempo é expres ­
são nitidamente pejorativa, exatamente o contrário do valor;
inconcebível, portanto, que seja obj eto de uma regra; seria
como dizer que a gran de regra da horticultura é deixar que os
legumes apodreçam! E a educação não é ainda mais séria que a
horticultura? Em suma, o paradoxo é tão grande que a primeira
edição corrigiu o texto substituindo perder fperdre] por des­
pender fprendre]. Mas na segunda edição Rousseau voltou com
seu perder, e o impôs .
O que é paradoxo? Uma opinião que contraria a opinião
comum; isso não sign ifica contrariar a razão: mas, afinal, Rous­
seau não estaria se arriscando a perder o auditório, ao partir em
todo caso de um acordo prévio excessivamente restrito? Mas
220 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

os leitores, imbuídos das Luzes, por certo achavam que qual­


quer coisa vale mais que um preconceito, e a argumentação de
Rousseau aposta nisso.

A argumentação

Todo o parágrafo consiste em transformar em verdade


demonstrada o paradoxo com que começa: a educação... pura­
mente negativa, cujo conteúdo prático o parágrafo seguinte
exporá: o "como" depois do "porquê". Curiosamente, Rous­
seau - homem da experiência, da natureza, do herborismo -
parece muito preocupado com a demonstração matemática; ex­
põe por entimemas, argumentos quase lógicos, mas não tem
certeza de que seu rigor na realidade não seja dogmatismo. Se
não, vejamos.
De início, justifica seu paradoxo com um entimema:

Premissa maior: não se pode refletir sem paradoxos;


premissa menor (subentendida): ora, eu reflito;
conclusão: sou homem de paradoxos.

A comparação que se segue apóia-se numa dupla hierarquia:


como a reflexão é superior à irreflexão, o paradoxo é superior
ao preconceito.
A argumentação é rigorosa, mas contestável em dois pon­
tos. Em primeiro lugar, arrisca-se ao sofisma: premissa menor,
faço paradoxos; conclusão, reflito. Rousseau evita isso, mas o
leitor não fica com essa impressão? Em todo caso - e esse é o
segundo aspecto -, sua argumentação repousa numa alterativa
nada comprovada. Entre o preconceito e o paradoxo não haverá
meio-termo? Será que não podemos abandonar um sem incidir
no outro?
A justificativa do paradoxo é apenas uma prolepse. Mas
toda a argumentação seguinte - para provar que o paradoxo
não é paradoxo - tem pretensões ao mesmo rigor. Configura
um entimema:
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 221

Premissa maior: é antinatural dar às crianças uma educa­


ção que não lhes convenha;
premissa menor: a educação positiva não lhes convém (an­
tes dos doze anos);
conclusão: precisam de outra totalmente contrária.

A expressão conveniente (l. 1 3), reforçada por impossí­


vel (l. 1 7), indica uma argumentação quase lógica fundada no
lugar da essência. É a partir do progresso natural da criança
que o autor prova a incompatibilidade entre a educação dada
e aquilo que existe na realidade. Progresso natural: hoje di­
ríamos crescimento espontâneo, com seus "estágios", já pres­
sentidos por Rousseau. Nota-se também que ele com isso res­
ponde ao desafio de Descartes em Discours de la méthode
(texto 8). Rousseau também admite que o homem nasce mui­
to antes de sua razão, e que a infància é, portanto, um interva­
lo perigoso, durante o qual se instalam os erros e os vícios,
porque o homem ainda não possui o instrumento para des­
truí-los (11. 8 a 1 1 ), ou seja, a razão. Mas, enquanto Descartes
se resigna a ver na educação a causa irremediável de todos os
nossos preconceitos, Rousseau afirma que se pode mudar a
educação, educar segundo o progresso natural, evitando os
erros e os vícios. Para isso, é preciso renunciar a educar cedo
demais, não contrariar a natureza, "deixar que a infància ama­
dureça na criança".
Contudo, se voltarmos ao entimema, veremos que a con­
clusão excede as premissas. Pode-se afirmar sem mais nem
menos que, não convindo às crianças a educação positiva, elas
precisam de outra totalmente contrária? A conclusão só seria
tal se ficasse provado que não há outra, que não há educação
intermediária entre a coação e a espontaneidade total, interme­
diária que talvez seja simplesmente a pedagogia.
Aí está, a nosso ver, o dogmatismo de Rousseau: ele nos
impõe escolhas absurdas porque fundadas em alternativas que
não são alternativas. Donde o maniqueísmo - preconceito ou pa­
radoxo, educação positiva ou negativa - que será visto o tempo
todo no discurso pedagógico, como mostramos em nosso Lan­
gage de l 'éducation.
222 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

As metáforas da educação

Outra característica importante do discurso pedagógico: a


abundância de figuras, sobretudo metáforas, que dão testemu­
nho do caráter fortemente polêmico da argumentação.
Nosso parágrafo se inicia com uma pergunta retórica: Atre­
ver-me a aqui. . ., cujo objetivo por certo é preparar o paradoxo,
antecipando todo o seu efeito; o peito (1. 1 2) é uma metonímia
que sugere a absoluta dependência da criança, dependência que
a educação não elimina, mas ao contrário mantém sine die.
As numerosas metáforas são clássicas em toda a linguagem
educacional2. Metáfora da luz: facho (1. 1 7), cega (1. 1 8), olhos
(1. 20). Metáfora do caminho: saltassem (1. 1 2),progresso (1. 1 4),
seguir. .. uma trilha (1. 1 9), que se combina com a anterior na per­
sonalização: que a razão traça tão levemente, para introduzir um
argumento afortiori: para os melhores olhos (1. 20).
Note-se que a palavra alma (1. 1 6) não é metáfora, pois al­
ma para Rousseau é tão real e tão cognoscível quanto o próprio
corpo. Em compensação, verifica-se a abundância e a força das
metáforas "hortícolas" (D. Hameline), bastante expandidas: ger­
minam - instrumento para destruí-los; raízes - arrancar.
Essas metáforas são analogias condensadas: assim como
os maus germes, sem instrumentos para arrancar. . . também os
saberes inculcados antes da razão. Mas Rousseau multiplica os
curtos-circuitos entre o tema e o foro, fundindo as metáforas:

Foro: germinam instrumento raízesprofandas

Terna: \ rros, vícios / \ destruir l não é tempo j


Na verdade, este último não é tempo pertence tanto ao
foro quanto ao tema; nele culmina a metáfora, que também é
aquilo que Rousseau quer provar. Mas será que Rousseau vê
isso realmente como metáfora? Para ele, o parentesco entre o
foro - natureza vegetal - e o tema - criança e sua educação - é
tão obcecante que temos aí mais uma relação lógica de identi­
dade do que propriamente analogia.
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 223

Conclusão: o motivo central

Pode-se até pensar que esse é um texto contrário à pedago­


gia, como tantos que vicejaram nos anos 70 ... Certo, mas é
também um dos textos que fundaram a pedagogia, pelo menos
se a entendermos não como simples técnica de ensino, mas
como consideração da criança em sua própria educação, consi­
deração que é ao mesmo tempo conhecimento da criança e res­
peito por ela. Qual é o pedagogo que não sabe da necessidade
de saber observar a criança, esperar o momento propício, etc.?
Pois bem, mas ele não poderia dizer tudo isso dispensando o
enorme paradoxo?
Acreditamos que não se deva tomá-lo ao pé da letra. Para
nós, esse texto tem como motivo central a hipérbole, que é não
só um modo exagerado de exprimir o pensamento como tam­
bém a forma extrema do argumento de direção, que refuta uma
tese dizendo: a admiti-la, aonde chegaremos?
Figura de exagero, em primeiro lugar. O que Rousseau
quer dizer com sua educação negativa? Ele explicará isso de­
pois, a monsenhor Christophe de Beaumont:

A que tende a aperfeiçoar os órgãos, instrumentos de nos­


sos conhecimentos, e que prepara a razão pelo exercício dos
sentidos.

A educação negativa, portanto, nada tem de vazia: ela prepara os


instrumentos do pensamento e da ação, deixando a criança às
voltas com o meio onde esses instrumentos se exercitarão de iní­
cio, mas um meio cuidadosamente administrado pelo preceptor.
Hoje diríamos: nada ensinar à criança que ela não possa com­
preender, que ela não esteja madura para aprender.
Mas por que dizer isso de forma hiperbólica? Para argu­
mentar. Rousseau denuncia um perigo: se a criança for instruí­
da antes de precisar desses saberes e de ser capaz de entendê­
los, só lhe estarão inculcando preconceitos, mesmo que se trate
de verdadeiros saberes e de autênticos valores; ela se acostu­
mará a pensar e a querer através de outras pessoas, portanto te­
rá sido doutrinada. Mais precisamente: querendo forçar a crian-
224 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

ça a sair da infància, corre-se o risco de mantê-la na infància


pelo resto da vida:

éramos feitos para ser homens; as leis e a sociedade mergu­


lharam-nos de novo na infância (Emílio, p. 1 00, Gamier­
Flammarion).

Rousseau provavelmente admitiria que seus conselhos são


utópicos, e que numa sociedade como a nossa não se pode evi­
tar o início precoce da educação positiva, muito antes dos doze
anos em todo caso! Mas ele mostra aonde se chega quando se
escorrega no "resvaladouro", ensinando-se uma criancinha de­
pressa demais, cedo demais. Um grito de alarme; que ainda es­
tamos ouvindo.

Texto 12 - Duas histórias iídiches

Dois irmãos vão todos os anos mendigar em casa de Roths­


child, que lhes dá vinte francos. Um deles morre, e o que conti­
nua vivendo só recebe dez francos. Quando se queixa, Roths­
child lhe diz que seu irmão não está mais vivo. - "Mas, senhor
barão, quem é o herdeiro, o senhor ou eu?"

Um mendigo vai todos os anos à casa de um rico, que lhe dá


seis marcos. De certa vez só recebe três. Quando se queixa, o rico
se desculpa, dizendo que seus negócios vão mal, e que acaba de
casar a filha. - "Ah, responde o mendigo, às minhas custas!"'

Essas duas histórias têm a estrutura de todas as piadas:


1) cenário; 2) núcleo, que cria a tensão; 3) desfecho, cômico
porque inesperado. São muito semelhantes entre si; nas duas, o
núcleo é criado pela decepção do mendigo, e nas duas a comi­
cidade vem do argumento dele, totalmente inesperado.
Note-se que, na segunda, Rothschild é substituído por um
rico. Por quê? Porque, no imaginário popular, Rothschild não
EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA 225

poderia estar menos rico; sua fortuna é inesgotável, e falar de


Rothschild em necessidade seria um oxímoro intolerável (figu­
ra que, no entanto, a história se encarregaria de concretizar, já
que vários Rothschild morreram de inanição em campos de
concentração ...) .
Comicidade do argumento, portanto "comicidade da retó­
rica" - como diz Lucie Olbrechts-Tyteea em Le comique du dis­
cours , mas que, curiosamente, se volta contra o próprio ora­
-

dor; cada um dos mendigos pretende ressaltar uma incompatibi­


lidade, mas quem sai ridicularizado não é o rico, e sim ele.
No entanto, a comicidade não provém, como diria Berg­
son, de um mecanismo qualquer sobreposto à vida, de uma ló­
gica cega e descompassada. A coisa é bem mais sutil. A comi­
cidade provém antes de mais nada da ausência flagrante de
acordo prévio entre os ricos e os mendigos, portanto do confli­
to entre duas lógicas.
A lógica dos dois ricos é moderna, racional e individualis­
ta; segundo ela, a caridade é um ato pessoal, nunca exigível de
direito. Na primeira piada, Rothschild raciocina por dupla hie­
rarquia: como o mendigo está sozinho, só tem direito à metade.
Na segunda, o rico acha que, como seus recursos diminuíram,
tem direito a dar menos.
A essa lógica baseada no devido, os dois mendigos
(Schnorrer) opõem a lógica do donativo, típica das sociedades
tradicionais, que fazem da caridade um dever religioso que
confere ao mendigo uma espécie de direito, não escrito, porém
bem real. Algo disso subsiste em nosso hábito de dar "caixinha
de Natal": quem der ao carteiro a metade do que deu no ano
anterior poderá vê-lo indignado. Donde a lógica dos direitos
adquiridos, que nos dois casos se baseia na regra de justiça:
não há motivo para que Rothschild fique com a metade, ou
para que o pobre arque com as despesas das núpcias. Em suma,
a reivindicação dos mendigos nada tem de ridículo; em certo
sentido é até convincente. Por que então fazem rir (talvez pro­
positadamente)?
A nosso ver, a comicidade está ligada a duas figuras, mui­
to freqüentes nas piadas: por um lado, o jogo de palavras (her-
226 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

deiro e às minhas custas); por outro, a hipérbole: eles falam


como se Rothschild realmente estivesse reivindicando uma .
herança, ou como se os três marcos tivessem financiado as
núpcias! No entanto, o jogo de palavras, que nada tem de troca­
dilho, é uma sutil antanáclase, que repousa num ligeiro desvio
de sentido. E a hipérbole é apenas um exagero. Bastaria que os
dois mendigos dissessem "eu precisava tanto desse dinheiro",
para que a resposta deixasse de ser cômica e passasse a ser co­
movente.
Quem é o herdeiro ... : se ele tivesse dito "beneficiário", não
seria engraçado; mas, falando assim, introduz uma igualdade
totalmente incôngrua entre o barão e ele, como se o direito à
mendicidade equivalesse ao patrimônio de um Rothschild (hi­
pérbole). Às minhas custas... : o segundo mendigo pode achar
que contribuiu muito para o financiamento das bodas, pois é
por isso que seu óbolo foi reduzido; e o iídiche se vale admira­
velmente da ambigüidade da expressão (cf. alemão Auf meine
Kosten), que significa "a expensas" e "à custa"; o humor está
no deslocamento quase imperceptível de um sentido para o ou­
tro: do mendigo privado de seus três marcos para o mendigo
que financia as bodas com seus três marcos.
Cabe lembrar também a função argumentativa da hipérbo­
le, que ressalta um argumento de direção: a continuar assim, o
rico acabará por apropriar-se até da minúscula herança que nos
resta, ou vai casar a filha com nossos três marcos!
Mas a ambigüidade mais profunda está no papel dos men­
digos. Se fazem rir de si mesmos, será mesmo sem intenção?
Se involuntário, será dificill entender a inteligência das répli­
cas; se proposital, será mesmo deles que estamos rindo?
Em suma, por um quase nada essas piadas perderiam toda
a graça. É daí que provém, pensamos, a qualidade de sua comi­
cidade.
À guisa de conclusão

No início deste livro, perguntamos se ele mesmo não era


retórico. Precisamos confessar que é, pois visa a persuadir, sus­
tenta teses sobre a retórica. Que teses?
1 ) Definimos a retórica, a partir da tradição, como arte de
persuadir pelo discurso, o que equivale a dizer que é uma arte
funcional, cujos elementos - plano, argumentos, figuras, etc.
- têm valor pelo serviço que prestam. Arte para a qual não se
separa beleza de verdade, que postula que um discurso feio
não pode ser verdadeiro, ou pelo menos tão verdadeiro quanto
se não fosse feio. Arte para a qual a beleza inútil, sem função
persuasiva, não passa de ornamento, de "pintura", como dizia
Cícero.
2) Afirmamos que retória é a união íntima entre estilo e
argumentação, e que, desse modo, um dfscurso é retórico à
medida que é fechado e não parafraseável. Significa dizer que
um discurso retórico não tem estruturas profundas; sendo inse­
paráveis sua forma e seu conteúdo, deixaríamos de entendê-lo
se procurássemos por trás da forma um sentido para o qual ela
não passasse de vestidura. O sentido está na superficie, e a
superficie faz sentido. Voltemos à fábula de La Fontaine; se a
interpretássemos reduzindo a narrativa poética a seu esboço
em prosa, que por sua vez seria reduzido à "moral", teríamos
entendido tudo, menos ... La Fontaine. Essa recusa de separar
fundo e forma orientou nossas "leituras retóricas".
3) Não hesitamos em fazer um elogio da retórica, o que,
evidentemente, é uma tese. Pois, mesmo que não entendamos
a retórica no sentido vulgar, mesmo que a tomemos por aqui-
228 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

lo que ela mesma pretende ser, nem por isso ela estará imune
a críticas. Argumentaremos uma última vez a partir dessas
críticas.

Arte e naturalidade

Certos termos que quase sempre são associados à palavra


"retórica" (clichê, chavão, estereótipo, verbalismo, academi­
cismo, etc.) sugerem que a "arte" na verdade seria um conjunto
de artificios que impedem a expressão natural, índice de falta
de sinceridade. Sim, o orador é culpado de não dizer simples­
mente o que pensa, sobretudo quando pretende convencer os
outros das coisas que pensa.
"O que ele pensa": mas pode-se fazer caso de um pensa­
mento que preexista já pronto à sua expressão? Acreditamos
que uma idéia não expressa não passa de sentimento confuso
que não pode enfrentar sozinho a prova do diálogo e da refuta­
ção'. Concretamente, a sinceridade não preserva ninguém da
inaptidão, da incoerência, do chavão, da obscuridade; e nin­
guém favorece seu pensamento quando o expressa de viés! É
preciso toda uma arte para exprimir-se; e ninguém convence as
massas porque é sincero em política, nem é pregador ou mis­
sionário porque é crente sincero. É preciso aprender; e, se al­
guns têm mais dom que outros, significa apenas que são mais
dotados para aprender.
A arte é necessária à expressão, arte sem a qual ninguém
seria crível ou, mais simplesmente, compreendido. Mas que arte
não se confunda com artificio. Digamos que, em parecendo arti­
ficial, o discurso é ineficaz. O artifício é a ruína da arte, é a figu­
ra que não dá certo, é o estratagema que dissuade precisamente
por ser percebido como tal. É próprio da arte, ao contrário, pas­
sar despercebida. E isso é dissimulação? Às vezes. Mas às vezes
também revelação de um pensamento justo e sincero que não se
afirmaria sem essa arte, sem a retórica.
Finalmente, a desconfiança em relação à retórica poderia
perfeitamente ser desconfiança em relação à linguagem, que só
A GUISA DE CONCLUSÃO 229

traduziria o pensamento traindo-o. Não será essa no fundo a


atitude dos grandes contendores da retórica, como Platão e
Descartes? A esses temíveis pensadores oporemos seu próprio
exemplo, que mostra que o pensamento, em vez de preexistir à
linguagem, nasce de um trabalho na linguagem, e que aprender
a expressar-se também é aprender a pensar.

A ilusão do livro do mestre

Aqui surge outra objeção: a retórica não está a serviço da


verdade. A prova é que a invenção retórica, em vez de ser busca
sincera da verdade, não passa de inventário de argumentos e de
sentimentos capazes de levar sua causa ao triunfo. Assim, a
"arte oratória" só está a serviço do incerto, às vezes do falso,
sempre da aparência. Por acaso essa mesma arte não proclama
que está em busca do verossímil, e não do verdadeiro?
Essa crítica repousa, a nosso ver, numa idéia falaciosa da
verdade, que chamaremos de ilusão do livro do mestre. Racio­
cina-se como se todos os problemas da vida - judiciários, polí­
ticos, econômicos, pedagógicos, éticos - tivessem uma solução
escrita em algum lugar, na terra ou no céu, em nossa consciên­
cia ou em nosso coração, numa espécie de livro do mestre que
basta abrir para encontrar a resposta certa. Infelizmente, não é
isso o que acontece; na maioria das vezes, a verdade só é "esta­
belecida" ulteriormente, depois de muitas dúvidas, debates, tra­
balhos; principalmente quando se trata das verdades que mais
nos importam, que mais paixões despertam, que mais esperan­
ças suscitam. Evidentemente, sabemos que a causa de Sócrates
era justa, tanto quanto a de Joana d' Are ou do capitão Dreyfus.
Sabemos, mas os contemporâneos não tinham como saber; e,
em cada caso desses, a causa só se mostrou justa graças a seus
defensores e à sua retórica. E mesmo quando uma causa se
mostra finalmente injusta, não teria ela o direito também de ser
defendida? Negá-lo equivaleria a dizer que o debate judiciário
é inútil, que deve ser substituído pelo leqto e dificil trabalho da
prova pela ilusão infantil do livro do mestre.
230 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

À ilusão infantil opomos a razão adulta. Mas como a ca­


racterizar?

Dapolêmica ao diálogo

"Razão adulta", dizíamos? Mas na realidade a prática da


retórica se mostra bem pouco racional. Não será ela antes uma
polêmica incessante entre advogados, políticos, publicitários,
até entre pregadores, polêmica em que cada adversário tem
como único obj etivo vencer o outro a qualquer custo, mesmo à
custa da verdade? Sempre à custa da verdade, pois o ganhador
não é quem tem razão, mas quem detém a força da palavra. Os
debates retóricos serão tão diferentes dos duelos judiciários e
dos ordálios medievais?
Francis Jacques opõe à retórica a verdadeira "dialógica"2•
Enquanto a primeira, segundo ele, visa a dominar o orador
contrário manipulando-o por meios parcialmente irracionais, a
segunda é uma busca comum da verdade que repousa na idênti­
ca liberdade de cada um e utiliza autêntica argumentação. Mas,
a aceitar-se essa dicotomia, a questão continua aberta: como
saber quando se está na "retórica" ou na "dialógica"? Concre­
tamente, as duas apresentam-se de maneira idêntica, pois o re­
tor mais astuto não vai confessar que é assim e que seu único
objetivo é manipular por meios irracionais! Dirá que está dia­
logando livre e racionalmente. Quanto ao dialético, até o mais
honesto, será obrigado também a utilizar meios artificiais, além
dos racionais, para convencer. Se nossa mente e nosso coração
constituíssem uma placa sensível sobre a qual a verdade viesse
expressar-se espontaneamente, sem deformações, perdas ou
denegações, não haveria necessidade de retórica, de pedagogia,
de diálogo.
A retórica é insubstituível; não fosse, há muito tempo teria
sido substituída. Por certo enseja abusos; por certo às vezes
permite o triunfo da habilidade sobre o justo direito; mas às ve­
zes não significa sempre, e não se pode condenar o uso pelo
abuso. Em que é ela insubstituível?
Á GUISA DE CONCLUSÃO 23 1

Para terminar, voltemos aos Tópicos de Aristóteles, livro


árduo e desconcertante, capaz de mostrar porém que nos domí­
nios não pertencentes à ciência pura só se chega à verdade
coletivamente, num debate em que cada um representa - no
sentido próprio da palavra "representar" - sua parte o melhor
possível, até que a verdade, ou seja, o mais verossímil, se im­
ponha a todos. O diálogo é então realmente heurístico: encon­
tra alguma coisa.
Com que condição? Com a condição de que os oradores
sejam iguais, que tenham todos, estritamente, os mesmos direi­
tos. Caso contrário, se um dos oradores se arrogar um direito
exorbitante, se já não se puder contestar seus argumentos, en­
tão o diálogo já não será possível, o conhecimento se petrifica­
rá em ideologia, e a retórica, em vez de afirmar, se degradará
em chavões.
Como se vê, estamos submetendo a retórica a um crité­
rio exterior: a liberdade. É esta que faz do diálogo um verda­
deiro diálogo, em que cada um pode criticar os argumentos
do outro contanto que produza os seus. Critério exterior, pois
ele exige apenas que os oradores sejam independentes, que
nenhum deles tenha de lisonjear o outro ou de se lhe subme­
ter. Mas critério ético também, no sentido de caber a cada
um de nós criar esse clima de liberdade, conceder a palavra a
todas as objeções e bem mais: fazer-se pessoalmente todas
as objeções.
Criar as condições para o livre diálogo, a começar de si
mesmo, essa pode ser a verdade da retórica. Depende menos
das coisas que dos homens, menos dos outros que de nós.
Notas

Introdução

1 . A respeito dessa retórica da criança, veja-se o artigo de Ma­


rie-José Rémigy, "La rhétorique chez l'enfant", in Rhétorique et pé­
dagogie. O autor narra a seguinte história real. Uma criança de três
anos é obrigada a ir passear, enquanto a irmã mais velha pode ficar
brincando em casa. Daí surge uma discussão que a mãe conclui da se­
guinte maneira: "Seja como for, menininhos como você não discu­
tem." E ele: "Eu também quero ser menina." A criança lida admira­
velmente com a ambigüidade da linguagem e dos sentimentos da mãe:
onde ela opõe pequeno a grande, ele opõe menino a menina.
2. Na Rhétorique et enseignement, Figures II, Gérard Genette
mostra bem essa permanência da retórica, mas, a nosso ver, introduz
separações abusivas: o ensino da Antiguidade teria uma retórica da
invenção; o clássico, da elocução; o nosso, da disposição. Mas serão
elas realmente separáveis?

Capítulo 1

1 . Roland Barthes, 1 970, p. 17 4.


2. "Retórica", portanto, na origem é um adjetivo, que significava
oratória. Com Aristóteles, a tekhne rhétorike tomar-se-á simplesmente
rhétorike, assim como hoje se diz lingüística. Para maiores informa­
ções, ver Chaignet, Roland Barthes e sobretudo O.- Navarre. Textos em
Les présocratiques, org. J.-P. Dumont, Pléiade, Gallimard, 1988.
3. Ibid.
4. Cf. Barbara Cassin, Si Parménide, Presses Universitaires de
.
Lille, 1 980, pp. �29 s., estudo magistral sobre esse discurso.
234 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

5. Sobre os sofistas, ver Gilbert Romeyer-dherbey, Les sophis­


tes, "Que sais-je?", PUF, 1 985; Jacqueline de Romilly, Les grands
sophistes dans I Athenes de Péricles, Fallois, 1988, e Les présocra­
tiques.
6. Platão, Mênon, 9 1 e. Cf Protágoras, 3 1 8 d.
7. Cf. Panatenaico, 200.
8. Cf. Contra os sofistas, 14, A troca, 1 86, 194.
9. Cf. A troca, 36, 76, 77, 99, 25 1 -253; Carta aos filhos de Jason,
8 e 9.
1 O. Panegírico, 48; cf A troca, 253 s.
1 1 . Cf. A troca, 260, 26 1 , 27 1 , 47, 1 76, e Panegírico, 6 e 1 86.
12. Cf. A troca, 1 82 s., Panatenaico, 28 e Górgias de Platão,
484 c.
13. Platão, Protágoras, 3 12 b.
1 4. Bonnes et mauvaises rhétoriques: de Platon à Perelman, in
Figures et conflits rhétoriques, Universidade de Bruxelas, 1 990.

Capítulo II

1 . Quem quiser saltar as páginas que seguem, mais técnicas e


destinadas sobretudo a filósofos, poderá retomar este assunto mais
adiante, no parágrafo sobre "a moralidade da retórica".
2. Tópicos, 1, 105 b; os Tópicos são a exposição da dialética;
Jacques Brunschwig faz uma síntese magistral do assunto na introdu­
ção da edição Budé ( 1 967); ver também Pierre Aubenque, Le proble­
me de l ' être chez Aristote, PUF, 1 966, pp. 282 s., e Claude Bruaire, La
dialectique, "Que sais-je?", PUF, 1985.
3. Cf. J. Brunschwig, ibid., p. XI.
4. VIII, 155 b, 1 64 a.
5. 156 a, 156 b, 157 a.
6. 156 b, 1 62 a.
7. 1, 1 8, 1 08 a
8. VIII, 159 a.
9. 159 a, 1 60 a e b.
10. 157 b e 1 60 b.
1 1 . 158 a, 1 6 1 a, 1 64 b.
1 2. 158 b, 157 b.
13. 1 62 b.
1 4. 1 62 a e b.
15. Ética a Nicômaco, X, 6, 1 1 76 b.
NOTAS 235

16. Tópicos, VIII, 159 a, 161 a; cf. 1, 101 a.


17. 1 64 b.
1 8 . 2. 1 63 b. Sobre a relação entre dialética e filosofia, ler L.
Couloubaritsis, "Dialectique, rhétorique et critique chez Aristote", in
De la métaphysique à la rhétorique, 1986.
1 9. 1. Cf. Retórica, 1, 1355 a e b; 58 a; 59 b. E Tópicos, 1, 1 04 b;
105 a; e VIII, 1 6 1 a.
20. Cf. Retórica, 1, 2, 56 a.
2 1 . Cf. Retórica, 1, 2, 1 356 b- 1 357 a e 1 358 b. Tópicos, 1, 1 0,
1 04 a e 1 05 a s.
22. Leprobleme de l 'être chez Aristote, PUF, 1966, p. 286.
23. Laprudence chezAristote, PUF, 1963, p. 68.

Capítulo III

1 . Sobre o epidíctico, cf. também Retórica a Herênio, III, 1 O s.


2. Cf. D. Navarre, p. 260 a 27 1 ; e Retórica a Herênio, 1, 1 8- 1 9.
3. Cf. E. R. Curtius, 1, cap. 5, bem como o brilhante apanhado de
R. Barthes, in L 'ancienne rhétorique, pp. 208 a 2 1 1 .
4. lsócrates, Eginética, in Obras, t. 1 ; cf. O. Navarre, pp. 272 s.
5. Cf. Do orador, II, 3 1 2, e Quintiliano IV, 2, 1 9; 3, 14; IX, 1 ,
28; X, 1 , 34.
6. O orador, 6 1 . Note-se que, nesse sentido, a elocução diz res­
peito ao aspecto escrito do discurso, uma vez que o oral é a ação.
7. Cf. Aristóteles, Retórica, 1 404 a s.; Cícero, Do orador, III,
1 82 s.; Quintiliano, VIII, 3, 6; X, 1 , 29.
8. Cf. Cícero, O orador, 69, 1 00, 1 23 ; Do orador, 1, 144; II, 37.
9. Sobre a ação, cf. Aristóteles, Retórica, III, 1403 b; Cícero, Do
orador, III, 2 19; Quintiliano, XI, 3,passim.

Capítulo IV

1 . Cf. Do orador, III, 96, 1 99; O orador, 78- 79; Quintiliano, II,
5, 12; XII, 1, 33.
2. II, 4, 16. Cf. Todorof, p. 9 e 60, e D. Auverlot, "Cicéron ou le
rêve d'une rhétorique idéale", in Rhétorique(s), pp. 62 a 8 1 .
3. ln H . De Lubac, Exégese médiévale, Aubier, 1, 1 , p. 1 56.
4. Sobre essa história, devem ser lidas as obras de E. R. Curtius,
Marc Fumaroli, A. Kibedi-Varga, bem como a introdução a B . Gra-
236 INTRODUÇÃO À RETÓRICA

cian, Art et figures de l'esprit, de B. Pelegrin. Ver também E. Dur­


kheim, L 'évolution pédagogique en France, PUF, e D. Poirion, "Allé­
gorie", in Encyclopaedia Universalis, 1.
5. Pode-se ver esse cartaz em J. Benoit e J. Lech, La politique à
l 'affiche, Ed. De maio de 1966. Ver também o capítulo sobre a ima­
gem em A. Kibédi-Varga, Discours, récit, image, Bruxelas, P. Mar­
daga, 1 989.
6. Quanto a essa discussão, ver Gérard Genette, "La rhétorique
restreinte", Communications n? 16, Seuil, 1910, e Ch. Perelman,
L 'empire rhétorique, Vrin, 1 977.

Capítulo V

1 . Sobre o auditório universal, cf. TA, § 7, e o artigo de Barbara


Cassin em Figures et conjlits. É difícil saber se em Perelman o audi­
tório universal é uma ilusão ou um ideal.
2. Pejorem semper sequitur conclusio partem: se uma premissa
é negativa, a conclusão também; se uma premissa é particular (algu­
mas), a conclusão também.
3. D. Bouvet, "La parole de l'enfant sourd", in Grize, "Rai­
sonner en parlant" in De la métaphysique à la rhétorique, 1986.
4. P. Oléron, L 'argumentation, p. 37.
5. Cf. Renée Bouveresse, Karl Popper ou le rationalisme criti­
que, Vrin, 198 1 .
6 . Vocabulário de filosofia. Sobre os sofismas, ver principal­
mente Lógica de Port-Royal, caps. XIX e XX; e Schopenhauer, A ar­
te de ter sempre razão, tão excitante quanto irritante!
7. O. Reboul, La rhétorique, pp. 73 a 85. A paráfrase integral
será porventura possível? Lembremos a célebre anedota: Um jesuíta
envia a Roma o seguinte pedido escrito: "Pode-se fumar enquanto se
está orando?" Resposta: "Claro que não, é um sacrilégio." Um colega
manda outra pergunta: "Pode-se orar enquanto se está fumando?"
Resposta: "Claro que sim; pode-se orar em todas as circunstâncias."
Na realidade, as duas perguntas não têm exatamente o mesmo senti­
do, e é aí que entra a retórica.
8. Foi relatada com pormenores por Paul Foriers, "Le raisonne­
ment pratique. Le raisonnable et ses limites", in Revue internationale
de Philosophie, n?' 1 27-1 28, 1 979, distribuída por Vrin. Essa revista é
uma homenagem a Chalm Perelman.
NOTAS 237

9. Para teorias diferentes sobre a argumentação, cf. S. E. Toul­


min, The Uses ofArgument, Cambridge University Press, 1958; J.-B.
Grize, De la logique à l 'argumentation, Genebra, Droz, 1982; Michel
Meyer, De la problématologie, Bruxelas, Mardaga, 1986, que conti­
nua Perelman, radicalizando-o.

Capítulo VI

1 . Para um inventário mais completo das figuras, cf. P. Fontai­


nier, Lesfigures du discours, e H. Suhamy, Lesfigures de style.
2. Cf. C. Kerbrat-Orecchioni, La connotation, p. 4 1 . Extraímos
vários exemplos desse truculento e suculento trabalho.
3. Esse episódio é relatado por Gilbert Dispaux, La logique et
le quotidien, Minuit, 1 984, p. 86. Sobre esses problemas, cf. Jean
Paulhan, La preuve par l'étymologie.
4. Essa teoria da metáfora inspira-se diretamente em Aristóteles,
Retórica, III, 1405 a e b. Cf. também os belos comentários de Nanine
Charbonnel em La tâche aveugle, Presses de l'Université de Stras­
bourg, 199 1 .
5. Naturalmente são possíveis outras interpretações dessas figu­
ras. Ver J.-F. Garcia, "La métaphore, encore... ", em Rhétorique(s), PUS.
6. Sémantique du contresens, Minuit, 1 987, p. 1 8. Note-se que,
de acordo com sua origem grega, hipálage e análage são palavras do
gênero feminino. Quanto ao oxímoro, neutro em grego, a língua fran­
cesa deu-lhe o beneficio da dúvida... e deixou-o no feminino também,
diferentemente do português, em que oxímoro é palavra do gênero
masculino.
7. Em seu belo livro Les paraboles de Jésus, Xavier Mappus,
1 962, Joachim Jeremias afirma que essas parábolas não são alegorias.
Mas ele entende "alegoria" num sentido moral que esse termo não
tem necessariamente em todas as línguas.
8. Sobre essas duas figuras, cf. Quintiliano, VI, I, 63; IX, 2, 28 e
3, 24.

Capítulo VII

1 . Cf. Bernard Dompnier, Le venin de l 'hérésie. Images du pro­


testantisme et combat catholique au XVIIº siecle, Le Centurion, 1985.
2. Verbete "Genre", Dictionnaire des littératures, Larousse, 1985.
238 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

3. La parole mangée, Klincksieck, 1986. Essa fábula, na verda­


de muito em voga, foi alvo de interpretações fascinantes, que acabam
dando toda a razão ao lobo!
4. Discours, rédit, image, Mardaga, 1 989. Esse livro, que con­
tém um utilíssimo esclarecimento sobre os gêneros (pp. 1 1 9 s.), põe
em prática uma interpretação retórica dos textos.

Capítulo VIII

1 . La culture générale, Vrin, 1 964, p. 60.


2. Cf. Lakoff e Johnson, Les métaphores dans la vie quotidien­
ne, e Nanine Charbonnel, La tâche aveugle (inúmeros exemplos).

Capítulo IX

1 . Tecnicamente, trata-se de uma apóstrofe? Não, se leitores


constituir o verdadeiro público de Rousseau. Sim, se ele estiver se di­
rigindo ao grande público através de seus leitores.
2. Sobre as metáforas em educação, ver nosso Langage de l 'édu­
cation; Daniel Hameline, L 'éducation, ses images et son propos; Na­
nine Charbonnel, La tâche aveugle.
3. Muriel Klein-Zolty, em Contes et récits humoristiques chez
les juifs, L'Harmattan, 1 99 1 , dá várias versões dessas duas histórias,
todas de origem alsaciana.

Conclusão

1 . Sobre esse assunto, ler (e degustar) Jean Paulhan, Les jleurs


de Tarbe, bem como Yvon Belaval, Digressions sur la rhétorique.
2. Dialogiques, PUF, 1979, pp. 22 1 -222.
Bibliografia sum ária

A indicação A significa que a obra pertence mais à ver­


tente argumentativa da retórica, L à vertente literária.

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Todorof, T., Théories du symbole, Seuil, 1 977, L.
Índice rem issivo e glossário
dos term os técnicos

Ação (hypocrisis, actio). Quarta parte da retórica, que trata da profe­


rição, das mímicas e dos gestos, XII, 44, 67, 80, 87, 105.
Acordo prévio. 9 1 , 142-143, 164 s., 2 1 9, 225.
Agudeza. Capacidade de penetração, por graça ou sugestão, que dá rele­
vo ao discurso. Esse termo, que é um dos mais importantes da retóri­
ca barroca, corresponde ao espanhol agudeza, ao italiano concetto,
ao inglês conceit, ao francêspointe, ao latim acumen ou acutus.
Alegoria. Descrição ou narrativa de que se pode tirar, por analogia,
um ensinamento abstrato, geralmente religioso, psicológico ou
moral; exemplos são o provérbio, a fábula e a parábola, 77-78, 95,
1 1 5, 1 30-1 32, 147, 1 52, 158.
Aliteração. Figura criada pela repetição de um som, 95, 1 16, 1 36.
Alusão. Figura que consiste em lembrar uma pessoa ou uma frase
conhecida sem elucidar seu nome: "Das duas palavras, prefere a
menor" (Paul Valéry), 1 57.
Amplificação (auxesis, amplificatio). Todo recurso retórico que res­
salta a importância do que se diz, 46, 50-5 1 , 57, 59, 1 24, 1 34.
Anacoluto. Figura que realiza uma ruptura na sintaxe: "O nariz de
Cleópatra, se fosse mais curto, toda a face da terra teria mudado�'
(Pascal), 128- 1 29, 1 93 .
Antanáclase. Subst. Fem. Figura d e palavra que consiste em tomar
um mesmo termo em dois sentidos um pouco diferentes: "O cora­
ção tem razões que a própria razão desconhece", 1 1 7, 1 27, 226.
Antifrase. Subst. Fem. Figura que consiste em dizer o contrário do
que se quer dizer; serve à ironia, ao cleuasmo: "Pode ser que eu
seja um idiota, mas . . . ", 132-133.
Antítese. Subst. Fem. Figura que ressalta uma contradição colocan­
do-a no interior de uma repetição: "A França perdeu uma batalha,
mas a França não perdeu a guerra" (de Gaulle), XVIII, 4, 1 27,
147, 1 6 1 , 203.
244 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Antonomásia. Subst. Fem. Sinédoque que designa uma espécie pelo


nome de um indivíduo: "César" por ditadores; ou um indivíduo
pelo nome de uma espécie: "O Corso", por Napoleão, 1 22.
Apodioxe. Argumento que consiste em rejeitar qualquer argumento :
"Não cabe a você dar-me lições", 1 35, 149, 1 78.
Aposiopese (ou reticência). Subst. Fem. Espécie de insinuação pelo
silêncio, que se tem o cuidado de anunciar para dar mais importân­
cia ao fato que se cala: "E não digo o que sei", 126- 127, 1 34.
Apóstrofe. Subst. Fem. Figura pela qual o orador finge dirigir-se a
outro auditório, e não ao seu: auditório que poderá ser uma pessoa
ausente, um morto, um príncipe, etc., 93, 1 03, 133, 142, 1 6 1 ,
202, 2 1 8.
Argumentação. XV, XVII-XXIII, 1 5, 23-25, 29, 3 1 -32, 35-37, 39,
46, 49-50, 52, 58, 60, 73, 78-79, 83, 87, 89-90, 1 22, 1 29, 1 35,
142, 146, 148- 1 50, 1 52- 155, 1 57, 1 63- 1 69, 1 72, 1 78, 1 85, 193-
194, 1 97, 200, 203-204, 207-208, 2 1 1 , 2 14, 2 1 9-222, 227, 230 e
cap. V, passim.
Argumento. Proposição destinada a levar à admissão de outras, como
na canção folclórica francesa "Não sou tão plebéia, pois o filho
do rei me ama", XVIII-XIX, XXII, 3-4, 7, 1 5 - 1 6, 1 8, 22-26, 34,
38, 47, 50-52, 57-60, 88, 92, 97, 1 02, 107, 1 1 0, 1 1 4, 1 1 8- 1 1 9,
1 24, 1 27- 1 29, 1 34-1 36, 139, 142, 147, 149- 1 50, 1 57- 158, 163-
164, 166-1 84, 1 87, 1 90, 1 93- 194, 203-204, 2 1 1-2 14, 2 1 6-2 1 7,
222-226.
Argumentos (os principais), cap. VIII, passim:
a contrario, 59, 1 83, 208;
afortiori, 1 63, 1 78- 1 79;
ad hominem, 1 73, 1 76, 178;
ad ignorantiam, 1 7 1 ;
da essência, 1 76 s., 1 98, 22 1 ;
de autoridade, 88, 1 57-158, 1 76- 177;
de causalidade, 1 73, 190, 2 1 6;
de desperdício, 1 74;
de direção, 1 24, 1 34, 1 74-1 75, 2 1 3-2 14, 2 1 7, 223, 226;
de dissociação, ou distingua, 1 08- 1 09, 1 24, 128, 1 89, 190- 1 92.
1 93, 203-204, 2 1 1 -2 1 2 ;
d e divisão, 1 7 1 , 2 1 0;
de dupla hierarquia, 147, 178- 1 80, 1 87, 202-204, 2 12-2 1 3, 220,
225;
de incompatibilidade, 1 1 8, 1 27, 133, 162, 168, 1 89-1 90, 2 1 1-2 1 2,
2 1 7, 22 1 , 225;
ÍNDICE REMISSIVO E GLOSSÁRIO DOS TERMOS TÉCNICOS 245

de pessoa, 1 76;
de reciprocidade, 1 70;
de sacrifício, 1 83 - 1 84, 2 1 3 ;
de superação, 94, 1 74- 1 75;
de transitividade, 1 68;
do precedente, 1 70, 1 75;
pela essência, 198;
pela estrutura do real, 163, 1 73, 1 78, 1 8 1 , 1 85;
pelas conseqüências, consulte pragmático;
pelo exemplo, consulte Exemplo;
pelo ridículo, 168- 1 70, 1 99, 2 12, 2 1 7, 225;
por analogia, 75, 1 85-186, 207, 2 1 2-2 13, 222;
por autofagia, 1 69;
por comparação, 1 22, 1 83-187, 202, 220;
por dilema, 1 70- 1 7 1 ;
por identificação, 1 70, 1 72;
por ilustração, 1 8 1 - 1 82, 198;
por modelo, 78, 1 4 1 , 148, 1 8 1 - 1 82, 205;
por regra de justiça, 108, 1 50, 1 70, 203, 225;
por retorsão, 1 08- 1 10, 169;
por símbolo, 1 2 1 , 1 3 1 , 1 78, 2 1 7;
pragmático, 204, 2 1 3 ;
quase lógico, 1 02, 163, 1 68, 220.
Arte (tekhné, ars). XIII-XIV, XVI, XVIII, 1 -2, 7, 9-14, 1 8, 24-28, 40,
73-75, 78-86, 205-208.
Assíndeto. Figura por supressão dos termos de ligação: Veni, vidi,
vici [Vim, vi, venci] (César), 1 26- 1 27, 1 50, 162.
Auditório. O destinatário do discurso, que pode ser uma multidão,
um grupo, um indivíduo, XVII, 45-46, 48-49, 54-55, 58, 60, 62-
68, 92-98, 1 1 2, 1 1 4, 1 1 8, 1 27, 133-136, 140, 142, 1 64- 165, 1 78,
1 80, 194.
Auditório universal. Em Perelman-Tyteca, opõe-se ao auditório es­
pecializado, designa qualquer ser racional, trata-se mais de um
ideal que da realidade, 93-94, 1 12, 1 64, 1 94.

Catacrese (catachresis, abutio). Subst. Fem. Tropo que se toma ne­


cessário quando não há nome próprio para designar alguma coisa:
asas do avião (catacrese por metáfora), 1 20.
Chreia. Exercício de invenção nas aulas de retórica: definir um ter­
mo, comentar uma sentença, etc. (Nota: o eh é pronunciado como
K), 76.
246 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Ciência e retórica. XX 9, 1 5, 1 7- 1 9, 89, 93.


,

Cláusula. Membro ritmado de frase, que termina um período: "e a


França está salva" (Danton), 1 1 , 1 1 6.
Cleuasmo. Figura pela qual o orador finge depreciar-se para se fazer
mais apreciar: "Eu, que nada sei ...", 93, 1 35.
Confirmação. Parte argumentativa do discurso judiciário, acompa­
nhada em geral por uma refutação (confutatio), 55, 57.
Conglobação. Figura que consiste em acumular os argumentos em
favor de uma mesma tese, 135. �

Contrafisão. Figura que denuncia uma coisa fingindo desejá-la: "Te-


'

nham filhos, então!", 1 34.


Controvérsia. Em Roma, exercício de proferir discursos judiciários,
76, 8 1 , 1 06.
Convencer e persuadir. XIII, XV, XIX.
Conveniência (Prepon, decorum). Adaptação do estilo ao assunto e
ao objetivo do discurso, 62, 68, 193.
Córax. Subst. Masc. Argumento que mostra que uma coisa é tão ve­
rossímil que passa a ser inverossímil: "Meu cliente é alvo de acu­
sações de mais para ser culpado", 3-4.

Definição. 1 1 9, 1 23, 1 30, 1 67- 1 68, 1 72- 1 73, 197, 1 99-200, 209-2 1 0,
2 1 2.
Definição retórica ou oratória. Fórmula que tem a aparência de
definição, mas não é, já que seus termos não são reversíveis: "Co­
munismo é sovietes mais eletricidade" (Lênin), 1 67.
Deliberativo. Gênero dos discursos políticos, 44-46, 55, 57.
Demonstração (apodeixis). XVIII, 27, 80, 88, 9 1 -92, 94, 96-98, 1 00,
106, 1 1 0, 1 12.
Derivação. Figura que emprega na mesma frase palavras com mesma
origem: "A França para os franceses", 1 1 7.
Desvio. 60, 64-65, 73, 88, 1 20, 1 28, 137.
Dialética. Em Aristóteles, arte da controvérsia, em si puramente lúdi­
ca, mas que serve tanto à filosofia quanto à retórica, cuja parte
argumentativa ela continua sendo, XXI, 7, 1 2, 1 8- 1 9, 22, 26-37,
40, 73, 79-8 1 , 89, 9 1 , 1 4 1 , 1 54, 206-207.
Digressão (parekbasis). Parte facultativa do discurso judiciário que
consiste em sair do assunto, mas para maior esclarecimento do
auditório, 59.
Discurso (logos, oratio). Qualquer produção lingüística, oral ou escri­
ta, que fale de certo assunto e apresente sentido e unidade: Dis­
curso do método, XV, 63-69, 140-143, 149 s., 1 95, 2 1 8, 221 -222.
ÍNDICE REMISSIVO E GLOSSÁRIO DOS TERMOS TÉCNICOS 247

Disposição (taxis, dispositio ). Segunda parte da retórica, que trata da


construção, do plano do discurso, 4, 43-44,
. 54-55, 60, 79-80, 87,
97, 1 53, 1 97, 203, 2 1 1 .
Docere, delectare, movere. Informar, encantar, comover, XVII-XVIII,
62, 89, 1 1 4.

Elipse. 1 14, 126, 1 9 1 .


Elocução (lexis). Terceira parte da retórica, que trata da língua e do
estilo, 43-44, 60-6 1 , 68, 79-8 1 , 87-89, 1 05, 1 50.
Enálage. Subst. Fem. Figura de sentido que consiste em substituir
uma forma gramatical por outra, inabitual: "Pensar grande", 1 23-
1 24, 1 26, 1 36, 1 5 1 .
Endoxon. 28, 36, 1 50.
Entimema. Subst. Masc. Silogismo rigoroso, mas que se baseia em
premissas apenas prováveis (endoxa), que podem ficar implícitas:
"Ele é falível, pois é homem", XVII, 23, 46, 49, 57, 1 0 1 - 1 02, 1 54-
1 57, 163, 197- 1 98, 203, 220-22 1 .
Epanalepse. Subst. Fem. Figura de repetição. Sobre suas variantes,
ver Suhamy, pp. 58 a 63 . 1 09, 1 14, 1 27, 1 9 1 , 193 .
Epanortose (correctio). Subst. Fem. Figura que consiste e m corrigir
o que se acaba de dizer: "Ou melhor. . . ", XII, 133- 134, 193 .
Epidíctico (demonstrativum). Caracteriza um dos três gêneros do dis­
curso, o elogio ou a crítica pública; por exemplo, a oração fúne­
bre, 4-5, l l , 44, 46-47, 5 1 , 55, 57, 59, 72, 75, 83, 1 1 1 , 146.
Epítrope (permissio). Subst. Fem. Figura em que se finge permitir a
alguém a realização de algo chocante, para sugerir que essa pes­
soa seria capaz disso: "Não fique constrangido por isso!", 1 34,
1 6 1 , 175.
Erística. Arte da controvérsia ensinada pelos sofistas, que para Aris­
tóteles é sinônimo de sofistica em sentido pejorativo, 7, 27-28,
3 1 , 35, 48.
Estado (stasis, status) da causa. 53.
Etimologia. 98.
Etos (ethos). Caráter que o orador deve parecer ter, mostrando-se
"sensato, sincero e simpático". Igualmente, caráter do auditório
(jovens, ruralistas, etc.), ao qual o orador deve adaptar-se, XVII,
36, 47, 54, 56, 64, 83-84, 86-87, 92, 1 24, 1 33, 135.
Etimologia. 1 ) Sentido primitivo e pretensamente autêntico (etymon)
de uma palavra; 2) argumento que utiliza esse sentido para impor
sua definição, 65, 98, 1 1 8- 1 19.
248 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Exemplo (paradeigma, exemplum), XVII, 14- 1 6, 23, 25, 27, 29-32,


36-38, 46-47, 49, 5 1 -52, 57-59, 64-65, 94, 96, 98, 1 0 1 , 1 05, 1 1 4-
1 1 7, 1 1 9, 196- 1 98, 200, 203, 207, 2 1 7.
Exórdio (pooimion). Início do discurso, que visa a tornar o auditório
dócil, atento e benevolente, 4, 55-56, 62, 97, 103.
Expolição. 1 35, 1 6 1 .
Extrínseco e intrínseco (ateklnos e entechnos). 49-50, 54.

Fático. Adj . Segundo Jakobson, designa a função do discurso onde se


fala para poder falar, para criar o contato ou permitir que ele dure:
"Alô, alô... , 67.
"

Figura (schema,jigura ou lumen ). Modo de expressar-se que se afas­


ta do uso comum para obter mais força e adequação, XVIII, 4, 64,
66 e cap. VI, passim, 1 84, 1 86.
Filosofia e retórica. XI-XII, XIV, XXII, 1 , 6-7, 10, 12, 19, 26, 28-29,
32-34, 40, 94-95, 1 04, 1 08, 1 1 0-1 1 1 .
Foro e tema. 1 3 1 , 1 85- 1 88, 222.
Fórmula. 1 5 1 , 1 57- 1 58.

Gêneros. A retórica antiga distinguia três gêneros de discurso em


prosa: judiciário, deliberativo e epidíctico, que subsistem como
modos bem gerais; assim, o panfleto e a pregação pertencem ao
modo epidíctico, 44-47, 55, 57, 62, 66, 76, 82, 143, 1 50, 1 52, 1 6 1 ,
195, 2 1 8, 222.
Gradação. Figura que representa uma seqüência de termos em ordem
crescente, seja por extensão dos significantes, seja pela importân­
cia dos significados: "Vai, corre, voa, vinga-nos" (Corneille), 1 28-
129, 137, 199.
Gramática (grammatiké, litteratura). Disciplina que consiste em en­
sinar a língua literária (grega ou latina), pela leitura explicada dos
textos. Primeiro ciclo do ensino secundário, XXI, 7, 73, 82.

Hermenêutica. Arte de interpretar os textos, XVIII-XIX, 78-79, 1 39.


Hipálage. Subst. Fem. Figura que consiste em deslocar uma atri­
buição: "Abriu grandes braços pasmados" (Eça de Queirós),
123-124.
Hipérbato. Figura de inversão: "Do que a terra mais garrida / teus ri­
sonhos, lindos campos têm mais flores . . . ," 128.
Hipérbole. Subst. Fem. Figura que exagera para exprimir melhor: "Es­
tou morto!", XII, XVIII, 120, 122, 134, 158, 1 6 1 , 1 75, 1 84, 203,
2 1 3, 2 1 7, 223, 226.
ÍNDICE REMISSIVO E GLOSSÁRIO DOS TERMOS TÉCNICOS 249

Hipotipose (descriptio, evidentia). Subst. Fem. Figura que consiste


em descrever um espetáculo ou um acontecimento de modo tão
vivo que o auditório acreditar tê-lo diante do olhos:

"Não enxergarei nem o ouro da tarde a cair,


Nem as velas ao longe descendo para Harfleur" (V. Hugo).

Note-se que "velas" não constitui uma sinédoque, pois ao longe o


que se vê são velas, e não barcos! V. Hugo descreve aquilo que
veria, XII, 1 24, 136- 1 37.
Humor. 62, 1 24, 132-133, 1 50-153 s., 226.

Imagem. 83 s.
Instância (entasis, instantia). Contra-argumento, 2 1 4.
lntertextualidade. 157.
Invenção (euresis, inventio). Primeira parte da retórica, que trata da
procura dos argumentos, tanto do etos quanto do patos, XVII, 43-
44, 49, 54-57, 79-80, 87, 89, 105, 229.
Ironia. Figura que consiste em dizer o contrário do que se quer dizer,
não para enganar, mas para ridicularizar, 64-65, 1 1 5, 1 24, 1 30,
132-133, 1 50, 1 52 , 1 58, 169, 199, 2 1 6-2 1 7 .

Judiciário. Gênero que caracteriza os discursos proferidos diante de


um tribunal para defender ou acusar, 44-46, 5 1 -53, 55, 57, 59-60,
69, 1 04-1 06, 2 1 5 e cap. III, passim.

Litote. Subst. Fem. Figura que consiste em substituir um significado


por outro menos forte: "Estou meio cansado", em vez de "muito
cansado'', 1 24, 137, 198.
Lugar (topos, locus). 1 ) Argumento-tipo: "Quem pode o mais pode o
menos". 2) Tipo de argumento: por analogia, de autoridade, etc.
3) Pergunta-tipo para encontrar argumentos, XII, 1 1 , 1 3 , 1 7 , 27,
30, 32, 35-36, 40, 43 , 50-53, 54-55, 62, 64, 74, 79, 82, 84, 86, 88,
94, 96, 106, 1 1 0, 1 1 2.
da ordem, 2 1 3 .
Lugar comum. 53, 75-76, 2 1 7.
Lugares de quantidade, qualidade e unidade. 1 1 0, 163, 166- 167,
195.

Memória (mneme, memoria). Conjunto de procedimentos mnemo­


técnicos que permitem saber o discurso de cor, 44, 47, 68.
250 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Metáfora (metaphora, tralatio). Figura que consiste em designar uma


coisa pelo nome de outra que se lhe assemelha: "O Eterno é meu
rochedo", para meu "apoio seguro'', XVIII, 4, 1 1, 60, 62, 64-65,
7 1 , 77, 84, 89, 94, 1 08, 1 1 1 , 1 1 3- 1 1 5, 1 20- 1 23, 1 26, 1 30, 1 62,
1 85 - 1 86, 1 88, 1 98- 1 99, 203, 208-209, 2 1 3 , 222.
Metalepse. Figura que consiste em substituir o nome de uma coisa ou
de uma pessoa por uma seqüência de metonímias: "Esse que cho­
ramos", pelo defunto, 1 25, 203.
Metonímia (metonymia, denominatio). Figura que consiste em de­
signar um objeto pelo nome de outro que tem com ele um vínculo
habitual. Exemplo é a frase de Churchill em 1 940, em que ele diz
que nada tinha para oferecer, além de "sangue, suor e lágrimas",
1 2 1 - 1 24, 1 26, 1 36, 1 5 1 , 1 6 1 , 1 87, 203, 2 1 3, 2 16, 222.
Moral e retórica. 1 0, 12, 16, 23, 29, 33, 37, 48-50, 52, 54-55, 60-62,
65, 68, 73, 78, 1 19, 133, 1 96, 200, 2 14-2 1 6, 227 s.
Motivo central. Procedimento retórico essencial a um texto, que per­
mite qualificá-lo como irônico, hiperbólico, quase lógico, etc.,
1 57 - 1 58, 1 6 1 , 1 95, 1 97, 202, 204-205, 209, 2 1 1 , 2 1 4-2 1 5, 2 1 8-
2 1 9, 223.

Narração (diegesis, narratio). Exposição dos fatos, que constitui a


segunda parte do discurso judiciário, depois do exórdio. A narra­
ção era o primeiro exercício de retórica, 55-56, 57-58, 62.

Orador. O autor do discurso, escrito ou oral, XVI-XVII, 43-48, 50,


52, 54, 57-58, 60, 63, 66-69, 7 1 -74, 78, 84, 92-93, 96, 140, 1 42,
1 56, 225.
Oratória. Para nós, é aquilo que, numa mensagem retórica, tem cará­
ter afetivo, e não argumentativo, XVII, 7 1 , 73, 75, 86, 9 1 -93, 95,
99, 1 03, 1 12, 1 67, 1 72- 1 73.
Oxímoro (ou paradoxismo). Figura que consiste em associar dois
termos incompatíveis: "Sol negro", 1 1 3, 1 23, 1 25- 1 26, 1 44, 1 6 1 ,
1 92, 2 1 6, 225.

Paradoxo (paradoxon, inopitatum). Opinião que contraria a opinião


comum. Exemplo: texto 1 1 , pp. 2 1 7 ss. 28, 32.
Parisose. Subst. Fem. Equilíbrio rítmico entre dois membros de uma
frase: "Beber ou guiar, convém optar", 1 1 6.
Paronomásia. Figura de palavras provocada pela repetição de uma
sílaba ou de várias: Traduttore, traditore, 4, 1 1 6- 1 1 7 .
ÍNDICE REMISSIVO E GLOSSÁRIO DOS TERMOS TÉCNICOS 251

Patos (pathos, passio). Ação do orador sobre as paixões, os desejos e


as emoções do auditório, para facilitar a persuasão. Daí vem a pa­
lavra "patético", XVII, 47-49, 56-57, 83-84, 86-87, 92-93, 1 14,
1 27, 1 33, 1 36, 1 78, 202.
Pedagogia, pedagógico. XXI, 3 3 , 47, 1 03- 1 05, 1 2 1 , 1 3 1 , 1 48, 1 96-
1 99, 220, 222-223, 230.
Pergunta retórica. Pergunta cuja resposta o orador conhece, mas que
faz com intuito expressivo ou persuasivo: "Sabem quanto.. .?'',
XX, 1 1 7- 1 1 8, 1 35, 1 37, 1 97, 2 1 2-2 1 3, 222.
Perissologia. Repetição da mesma idéia com termos diferentes, 12 7.
Peroração (epilogas, peroratio). O fim do discurso, que o resume e
acentua seu patos, por apelo à cólera ou à piedade, 5 1 , 55, 59, 62.
Personificação. 1 5 1 , 1 6 1 - 1 62, 203.
Persuadir. XIV-XX.
Petição de princípio. Sofisma que consiste em tomar por admitida a
tese que é preciso provar e que é enunciada de uma forma um
pouco diferente, para obter aceitação. Exemplo das pp. 1 67 - 1 68.
5, 3 1 , 1 99-200.
Poesia e prosa. 4, 6, 1 1 , 6 1 -62, 79, 82, 1 50, 1 55, 1 57.
Presunção. Aquilo que se admite até prova em contrário: "Presume­
se a inocência do réu até prova em contrário", 96, 200.
Preterição. Figura que consiste em dizer que não se falará de uma
coisa, para chamar mais a atenção sobre ela: "E nada direi de sua
inesgotável generosidade . . .", 1 33 - 1 34, 2 1 2 .
Prolepse (prolepsis, occupatio). Subst. Fem. Figura que consiste em
antecipar o argumento do adversário: "Objetar-se-á que... " , 24,
1 35, 2 1 1 -2 1 3 , 2 1 6, 220.
Prosopopéia. Figura que consiste em falar por um orador fictício; é o
que ocorre quando Sócrates se deixa interpelar pelas leis de
Atenas (Críton), 1 03, 1 3 3 - 1 34, 1 4 1 , 1 76.
Publicidade e propaganda. XIV, 2, 1 5, 19, 57, 63, 82, 84-87.

Quiasmo. Antítese em que os termos são postos em espelho: "Deve­


se comerpara viver, e não viver para comer". 1 2 8 , 1 47, 1 5 1 , 1 53 .

Recapitulação (anakephaleosis). Parte da peroração que resume a


argumentação do discurso para chegar a concluí-lo, 60.
Retórica. Arte de persuadir pelo discurso. O ensino dessa arte. A teoria
dessa arte (definição controversa), XI-XXII, 227-23 1 e passim.
Retorsão. 1 69.
Ritmo. 4, 1 1 , 6 1 -63, 72, 1 1 5- 1 1 7.
252 INTRODUÇÃO Á RETÓRICA

Silogismo. 22-23, 28, 35. Cf. entimema.


Símbolo. 1 2 1 , 1 3 1 .
Símile (eíkon, símile ou símílítudo). Subst. Masc. Comparação entre
termos heterogêneos; "Ela canta como um rouxinol", que serve de
base para a metáfora: "Ela é um rouxinol", 1 22, 1 87.
Sinceridade. 72, 79, 8 1 , 1 84, 1 93 , 228.
Sinédoque (synekdokhé, íntellectío ) . Figura que consiste em designar
uma coisa por outra que tenha com ela uma relação de necessida­
de; por exemplo, o gênero pela espécie, o todo pela parte, ou vice­
versa. Como quando se diz "mortais" (gênero) ou "cabeças" (par­
te) para referir-se a seres humanos, 84, 1 2 1 - 1 23, 1 6 1 .
Slogan. 83-84, 86, 94, 1 02, 1 1 5- 1 1 7, 1 22, 1 26, 1 35-1 36, 1 56- 1 57.
Sofisma. Raciocínio aparente e ilusório, por não respeitar as regras
da lógica: "Hitler era favorável à eutanásia; você também; logo,
você é hitlerista'', 7, 3 1 , 35-36, 1 00- 1 02, 1 1 1 , 1 67- 1 73 , 220.
Suasório. Em Roma, exercício do discurso deliberativo, 75.
Subjeção. Espécie de pergunta retórica.

Tapinose. Hipérbole depreciativa: "Esse aborto da natureza", XII,


1 2 3 - 1 24.
Tautologia aparente. Argumento que consiste em repetir uma pala­
vra com dois sentidos um pouco diferentes, como se isso não
ocorresse: "Mulher é mulher", 1 70, 1 9 1 .
Tese (thesis, questio). Questão de interesse generalíssimo discutida
pela dialética e pela retórica: "O tiranicídio é lícito?" No sentido
moderno: afirmação teórica que deve ser provada, 24, 27, 29-33,
35, 3 8, 40, 53, 55, 59, 6 1 , 69, 77, 9 1 -92, 1 1 0-1 1 1 , 1 67 - 1 68, 1 70-
1 74, 200, 202, 206, 208, 2 1 2, 2 14, 223.
Tropo (tropas). Técnica de denominação que consiste em tomar uma
palavra com o sentido de outra, por metáfora, metonímia ou siné­
doque. Pode ser catacrese: "O nó do caule, onde se inserem as
folhas", ou figura de sentido: "O nó da questão", 1 80 s.

Valores. 8, 45, 1 65- 1 66, 1 74, 1 78- 1 8 1 , 223.


Verdade e retórica. XI-XII, XIV-XVI, XX, XXII, 3, 5-6, 8 - 1 0, 1 2 ,
1 4, 2 1 -22, 25�32, 35, 39-40, 7 1 -73, 75-78, 84-87, 1 63- 1 69, 1 72-
1 77, 1 82, 1 85.
Verossimilhança (eikos, verisimíle). Termo-chave da retórica. De­
signa o que acontece na maioria das vezes, ou o que a maioria das
pessoas pensa, e que é proposto para admissão até prova em con-
ÍNDICE REMISSIVO E GLOSSÁRIO DOS TERMOS TÉCNICOS 253

trário. É a "confiança presumida", 3, 39, 49-50, 52, 95, 1 4 1 , 1 74,


206-207.
Vivacidade. 63-64, 69.

N.B. Muitos nomes de figuras tinham na origem um sentido


-

bem mais amplo do que o atualmente atribuído. Em Aristóteles, me­


taphora significa desvio de sentido e compreende o conjunto de tro­
pos (Poética, 1457 b). A auxesis dos retóricos gregos significava am­
plificação, alma da retórica, mas depois passou a designar apenas hi­
pérbole valorizadora, auxese. A parrhesia, que significava antes dis­
curso direto e não figurado (o Evangelho a opõe à parábola), transfor­
mou-se na parrésia, figura da franqueza brutal.
Esse encolhimento semântico sem dúvida é um declínio indese­
jável, e a tarefa da nova retórica seria trilhar de novo o caminho ascen­
dente, indo das figuras fossilizadas ao espírito que as engendrou.

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