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ANJOS CAÍDOS

Tracy Chevalier

Título original: "FALLING ANGELS"

Tradução BEATRIZ HORTA

BERTRAND BRASIL
2a EDIÇÃO - 2003
KITTY COLEMAN
Acordei, hoje de manhã, com um estranho em minha cama. A cabeça loura ao meu
lado não era, definitivamente, a do meu marido. Eu não sabia se ficava chocada ou
encantada.
bom, pensei, eis um jeito diferente de começar o novo século.
Depois, lembrei-me da noite anterior e me senti um tanto aflita. Fiquei pensando
onde Richard estaria naquela enorme casa e como iríamos nos reencontrar. Todo
mundo ali (inclusive o homem ao meu lado) tinha bem mais experiência no mecanismo
dessas coisas do que eu. Do que nós. Como Richard brincara ontem à noite, ele estava
tão no escuro quanto eu, embora fosse mais esperto. Bem mais esperto. Aquilo me fez
pensar.
Dei uma cotovelada no dorminhoco, primeiro de leve, depois com mais força até ele
acordar com um ronco.
- Saia-mandei. E ele saiu, sem dizer nada. Felizmente, não tentou me beijar.
Jamais saberei como agüentei aquela barba na noite passada, acho que o vinho tinto
ajudou.
Meu rosto ainda está vermelho de arranhões.
Quando Richard entrou no quarto, minutos depois, segurando suas roupas numa
maçaroca, mal consegui olhar para ele. Estava constrangida e com raiva: com raiva por
estar constrangida e sem esperar que ele também se sentisse assim. Foi mais irritante
ainda porque ele só me deu um beijo e disse - Olá, querida - e começou a se vestir.
Richard estava impregnado pelo perfume dela.
Mesmo assim, não consegui falar nada. Como eu sempre disse, sou uma liberal e me
orgulho disso. Essas palavras, naquele momento, pareciam morder.
Fiquei deitada, olhando Richard se vestir, e acabei pensando em meu irmão. Harry
sempre zombava de mim porque eu pensava demais, embora ele não admitisse ser o
único responsável por isso. Todas aquelas tardes passadas revendo comigo o que os
tutores lhe haviam ensinado de manhã (ele dizia que era para ajudá-lo a se lembrar das
lições) só podiam resultar em uma coisa: ensinar-me a refletir e a dizer o que penso.
Talvez, depois, Harry tenha se arrependido. Jamais saberei. Acabo de chorar a morte
dele e há dias em que pareço ainda estar amassando aquele telegrama nas mãos.
Harry ficaria mortificado se visse o resultado do que me ensinou. Não que alguém
precise ser inteligente para fazer isso, a maioria dessas pessoas é burra como um balde
de carvão, inclusive o meu citado barba-loura. Não havia um com quem eu conseguisse
ter uma boa conversa. Precisei recorrer ao vinho.
Sinceramente, é um alívio não fazer parte dessa gente, já basta chapinhar nessa água
rasa de vez em quando. Desconfio que Richard pensa diferente, mas, se queria essa
vida, casou-se com a moça errada. Ou talvez tenha sido eu que escolhi errado, embora
nunca tenha pensado assim, na época em que estávamos loucos um pelo outro.
Acho que Richard me obrigou a fazer isso para mostrar que ele não é tão
convencional quanto eu imaginava. Porém o efeito foi inverso. Quando nos casamos, ele
se transformou em tudo que jamais imaginara. Virou um homem comum.
Estou tão desanimada. Papai e Harry ririam de mim, mas, no fundo, eu esperava
que a mudança de século nos transformaria a todos e que a Inglaterra tiraria, por
milagre, seu casaco preto e sem graça e mostraria algo brilhante e novo. O século
XX existe há apenas onze horas e sei muito bem que o que mudou foi só um número.
Chega! Hoje, eles vão andar a cavalo, o que não é para mim. Vou fugir para a
biblioteca com a minha xícara de café. Sem dúvida, a biblioteca estará vazia.
RICHARD COLEMAN
Pensei que ficar com outra mulher traria Kitty de volta, que o ciúme abriria a porta
do quarto dela outra vez. Mas, já se passaram duas semanas, e ela não me deixou entrar.
Não gosto de pensar que sou um homem desesperado, contudo não entendo por
que minha esposa está tão difícil. Dou a ela uma vida decente e ela continua infeliz,
embora ela não consiga dizer por que ou, talvez, não o queira dizer.
Isso já basta para fazer um homem trocar de esposa, mesmo que seja apenas por
uma noite.
MAUPE COLEMAN
Quando papai viu o anjo no túmulo ao lado do nosso, gritou: - com os diabos!
Mamãe riu; mais nada.
Olhei para cima, para o anjo, olhei até meu pescoço doer. Estava ali, acima de nós,
com um pé na frente do outro e a mão direita apontando para o céu. Usava uma túnica
comprida com decote quadrado e tinha os cabelos soltos caindo sobre as asas. Olhava
para baixo, para mim, mas, por mais que eu o olhasse, ele não parecia me ver.
Papai e mamãe começaram a discutir. Papai não gostou do anjo. Não sei se mamãe
gostou, ela não disse. Acho que ela ficou mais aborrecida com o jarro que papai mandou
colocar em cima no nosso jazigo.
Eu queria me sentar na sepultura, mas não tive tal ousadia. Estava bastante frio, frio
demais para sentar no mármore e, além do mais, a rainha Vitória havia morrido e, com
isso, acho que ninguém poderia sentar, brincar ou fazer qualquer coisa agradável.
Na noite passada, quando eu já estava deitada, ouvi os sinos tocarem. De manhã, a
babá contou que a rainha havia falecido na tarde anterior. Comi o meu mingau bem
devagar para ver se tinha um gosto diferente do de ontem, agora que a rainha se fora.
Mas tinha exatamente o mesmo gosto, salgado demais. A sra. Baker sempre faz o
mingau assim.
Todas as pessoas que vimos no caminho para o cemitério estavam vestindo roupas
pretas. Usei um vestido de lã cinza e um avental branco, que eu poria de qualquer jeito,
mas a babá disse que era adequado para uma menina, quando morre alguém.
Meninas não precisam usar preto. A babá me ajudou a me vestir. Deixou-me usar o
casaco xadrez preto e branco e o chapéu combinando, mas ficou sem saber se eu
poderia usar o meu agasalho de pele de coelho para as mãos; tive de perguntar à
mamãe, e ela disse que não tinha importância. Mamãe pôs um vestido de seda azul e
um xale, e papai não gostou.
Enquanto eles discutiam por causa do anjo, enfiei o rosto no regalo. A pele é bem
macia. Ouvi então um ruído como o de uma pedra sendo empurrada, levantei a cabeça
e vi dois olhos azuis me examinando, na lápide ao lado da nossa. Levei um susto.
Depois, vi o rosto de um menino aparecer por trás da lápide. Tinha o cabelo e o rosto
enlameados. Ele piscou para mim e sumiu.
Olhei para mamãe e papai, que estavam um pouco mais longe, vendo o anjo de
outro ângulo. Não haviam percebido o menino. Andei de costas por entre os túmulos,
sem despregar os olhos deles. Quando tive certeza de que não estavam olhando, me
abaixei atrás da lápide.
O menino estava encostado nela, de cócoras.
- Por que você tem lama no cabelo? - perguntei.
- Eu estava dentro de um túmulo - disse ele.
Olhei mais de perto. Ele tinha lama em tudo: na jaqueta, nos joelhos, nos sapatos.
Tinha até respingos nos cílios.
- Posso passar a mão nessa pele? - ele perguntou.
- Isso é um regalo. Meu regalo - falei.
- Posso tocar?
- Não! - Depois, me senti mal por ter dito aquilo e estendi o regalo na direção dele.
O menino cuspiu nos dedos, limpou-os na jaqueta e passou-os no regalo.
- O que você estava fazendo dentro de um túmulo? perguntei.
- Ajudando nosso pai.
- O que ele faz?
- É coveiro, claro. Ajudo ele.
Ouvimos então um som como o de um gatinho miando. Olhamos por cima da lápide
e, na alameda, uma menina olhava fixamente para mim, assim como eu fizera com o
menino.
Estava toda de preto e era muito linda, possuía olhos castanhos e brilhantes, longas
pestanas e pele suave. O cabelo castanho era comprido e cacheado, muito mais bonito
que o meu, que cai sem graça como roupa molhada e não tem uma cor definida. Minha
avó diz que o meu cabelo é loiro-água-suja, o que pode ser verdade, mas não é muito
gentil. A minha avó sempre diz o que pensa.
A menina me fez lembrar de meu chocolate preferido, com recheio de amêndoas. Só
de olhar eu sabia que gostaria de que ela fosse minha melhor amiga. Não tenho uma
grande amiga e rezo para achar uma. Quando estou sentada na igreja de Santana,
ficando cada vez mais gelada (por que as igrejas são sempre frias?), penso se as orações
realmente fazem efeito, mas parece que Deus acaba de atender as minhas preces.
- Use seu lencinho, Livy querida. - A mãe da menina vinha pela alameda, segurando
a mão de uma outra menina, mais jovem. Um homem alto, de barba ruiva, vinha atrás.
A caçula não era tão bonita. Parecia com a primeira, porém não tinha o queixo tão
fino, nem o cabelo tão cacheado, nem a boca tão grande. Os olhos da caçula eram cor de
amêndoas. Ela olhava para tudo como se nada a surpreendesse. Percebeu na hora o
menino e eu.
- Lavínia! - Corrigiu a menina mais velha, agitando a cabeça para que os cachos
balançassem. - Mamy e papy, quero que me chamem de Lavínia, não de Livy - repetiu
ela.
Resolvi, então, que jamais a chamaria de Livy.
- Não seja indelicada com a sua mãe, Livy - disse o homem. - Para nós, você é Livy e
pronto! É um lindo nome. Quando crescer, vamos chamá-la de Lavínia.
Lavínia olhou para baixo e franziu a testa.
- Agora, pára com essa choradeira - continuou o homem. - Vitória foi uma boa
rainha e teve uma longa vida, mas isso não é motivo para uma menina de cinco anos
chorar tanto. Além disso, vai assustar Ivy May - ele disse, mostrando a irmã da menina.
Olhei para Lavínia outra vez. Pelo que percebi, ela não estava chorando, só
enrolando um lencinho nos dedos. Fiz sinal para ela se aproximar.
Lavínia sorriu. Quando os pais viraram de costas, ela saiu da alameda e veio para
trás da lápide.
- Também tenho cinco anos, faço seis em março-falei, quando ela ficou ao nosso
lado.
- É mesmo? Faço seis em fevereiro - contou.
- Por que chama seus pais de mamy epapy? Eu chamo os meus de mamãe e papai.
- Mamy e papy é muito mais elegante. - Lavínia explicou, enquanto olhava surpresa
para o menino, ajoelhado ao lado da lápide. - Como é seu nome, por favor?
- Maude - respondi, antes de perceber que ela estava perguntando para o menino.
- Simon.
- Você está bastante sujo.
- Pare - mandei.
Lavínia me olhou. - Parar o quê?
- De dizer isso: ele é coveiro, por isso está sujo. Lavínia deu um passo atrás.
- Aprendiz de coveiro - corrigiu Simon. - Primeiro, fui acompanhante de enterro e
nosso pai me contratou assim que aprendi a usar a pá.
- No enterro da minha avó, havia três acompanhantes - contou Lavínia. - Um deles
apanhou porque riu.
- Minha mãe contou que não há mais muitos enterros assim - falei. - Contou também
que custam muito caro e que o dinheiro deveria ser usado com os vivos.
- Nossa família sempre tem acompanhantes nos enterros. No meu, eu vou querer.
- Você está morrendo? - Simon perguntou.
- Claro que não!
- Você também tem babá? - perguntei, achando que devíamos falar em outra
coisa, antes que Lavínia ficasse brava e fosse embora.
Ela enrubesceu. - Não temos babá. Mamy pode muito bem cuidar de nós duas.
Eu não conhecia nenhuma criança sem babá.
Lavínia examinou meu regalo e perguntou: - Gostou do meu anjo? Papy deixou eu
escolher.
- Meu pai não gosta - falei, embora soubesse que não devia repetir o que papai
dissera. - Chamou de bobagem sentimental.
Lavínia franziu a testa. - Pois o papy detesta o seu jarro. Mas o que tem o meu anjo?
- Eu gosto - o menino disse.
- Eu também - menti.
- Acho lindo! Quando eu for para o céu, quero ser levada por um anjo assim
- suspirou Lavínia.
- É o anjo mais lindo do cemitério. Conheço todos, são trinta e um. Querem que eu
mostre?
- Trinta e um é número primo, divisível só por um e por si mesmo. - Papai havia me
explicado há poucos dias, embora eu não tivesse entendido nada.
Simon tirou do bolso uma lasca de carvão e começou a desenhar atrás da lápide.
Rápido, fez uma caveira e dois ossos cruzados: a caveira tinha olhos redondos, um
triângulo preto como nariz, uma fileira de dentes quadrados e uma sombra num lado
do rosto.
- Não faça isso, não pode! - Pedi, mas ele continuou.
- Eu faço! Faço muitas. Olhe para as sepulturas aqui em volta.
Olhei para o túmulo de nossa família. Bem na base da coluna onde estava o jarro,
tinha uma caveirinha e dois ossos cruzados. Papai ficaria furioso, se visse.
Percebi que todas as lápides em volta tinham a mesma caveira com os dois ossos.
Nunca havia reparado.
- Vou fazer em todos os túmulos do cemitério - ele continuou.
- Por quê? Por que uma caveira e dois ossos cruzados?
- perguntei.
- Lembra o que está embaixo da terra, não? Só ossos, seja lá o que se ponha em cima
do túmulo.
- Menino peralta - disse Lavínia.
Simon levantou-se. - Vou desenhar uma caveira para você. Nas costas do seu anjo.
- Não faça isso - pediu Lavínia.
Na mesma hora, Simon largou o carvão. Lavínia olhou em volta como se fosse
embora.
- Eu sei uma poesia - Simon disse, de repente.
- Qual? De Tennyson?
- Sei lá de quem. E assim: Em Nunhead, tinha um jovem Que despertou num caixão
de chumbo.
"Gostoso, aqui", disse ele.
"Só não tinha percebido que morri."
- Hum, que coisa horrível! - gritou Lavínia. Simon e eu rimos.
- Nosso pai diz que muita gente já foi enterrada viva. Disse até que ouviu mexerem
dentro do caixão, enquanto ele jogava terra em cima.
- E mesmo? Mamãe tem medo de ser enterrada viva contei.
- Não suporto ouvir isso - gritou Lavínia, tapando os ouvidos. - Vou voltar. - E foi
andando entre os túmulos, na direção dos pais. Eu queria ir atrás, mas Simon começou
a falar outra vez.
- Nosso avô está enterrado aí no gramado.
- Não está!
- Está!
- Então, mostre o túmulo!
Simon apontou para uma série de cruzes de madeira, do outro lado da alameda
onde estávamos. Mamãe havia me contado que aquela parte fora separada para quem
não tinha dinheiro para ter uma sepultura digna.
- Qual é a cruz dele? - perguntei.
- Não tem, a madeira não dura, acaba logo. Plantamos uma roseira, assim a gente
sabe onde ele está. Roubei a roseira de um dos jardins no pé da colina.
Vi um arbusto podado para enfrentar o inverno. Nós moramos no pé da colina e
temos muitas roseiras na frente da casa. Talvez aquela roseira fosse nossa.
- Nosso avô também trabalhou aqui - disse Simon. -
Como nosso pai e eu. Ele dizia que era o cemitério mais lindo de Londres. Só queria
ser enterrado aqui. E contava histórias de outros cemitérios que tinham pilhas de ossos
em toda parte. Ou corpos enterrados só com uma saca de terra por cima.
Hum, que fedor! - Simon abanou o nariz. - E também havia homens mexendo nos
túmulos, de noite. Aqui, pelo menos, nosso avô está muito bem, com o muro alto em
volta do cemitério e a grade com ponta de ferro.
- Preciso ir - falei. Não queria parecer assustada como Lavínia, mas não gostei de
ouvir falar em fedor de corpos.
Simon ficou indeciso: - Eu podia mostrar muita coisa para você - anunciou.
- Outro dia, talvez, quando eu vier - falei e corri para alcançar nossos pais, que
andavam lado a lado. Lavínia segurou minha mão e apertou: gostei tanto disso que dei
um beijo nela.
Fomos subindo a colina de mãos dadas e, com o canto dos olhos, vi uma espécie de
fantasma pulando de uma lápide a outra, seguindo a gente e depois correndo na frente.
Eu preferia que não tivéssemos deixado Simon.
Cutuquei Lavínia: - Menino engraçado, não?-E mostrei a sombra dele atrás de um
obelisco.
- Gostei dele, apesar de falar coisas horríveis - disse Lavínia.
- Não seria bom se pudéssemos sair correndo também? Lavínia riu para mim. -
Vamos atrás dele? - ela sugeriu. Não esperava que dissesse isso. Espiei os outros e só a
irmã de Lavínia estava nos olhando. -Vamos - falei, baixinho. Ela apertou a minha mão
e corremos para encontrá-lo.
KITTY COLEMAN
Não ouso contar para ninguém, pois serei acusada de traição, mas fiquei muito
animada ao saber que a rainha morreu. Sinto tanto tédio depois do réveillon, que
preciso me esforçar para parecer devidamente séria. A virada do século foi só uma
mudança de números, mas agora teremos uma verdadeira mudança na liderança do
país e acho que o rei Edward vai nos representar melhor do que a mãe dele.
Por enquanto, nada mudou. Esperava-se que fôssemos em bandos ao cemitério, em
demonstração de pesar, embora ninguém da Família Real esteja enterrado lá, nem a
rainha será. Acho que é porque lá está a Morte e isso basta.
Aquele cemitério horrível. Jamais gostei dele.
Para ser sincera, o problema não é o lugar, que até apresenta um charme lúgubre,
com seus túmulos empilhados uns sobre os outros (lápides de granito, obeliscos
egípcios, espirais góticas, colunas sobre pedestais, estátuas de senhoras chorando, anjos
e, claro, jarros), subindo a colina até o glorioso cedro do Líbano, lá no alto. Estou
inclusive querendo olhar alguns dos monumentos mais absurdos, símbolos ostensivos
da posição social de uma família. O problema está nos sentimentos que o lugar provoca
nas pessoas enlutadas. São sentimentos muito exagerados para o meu gosto. Além do
mais, é o cemitério dos Coleman, não o da minha família. Sinto falta do pequeno jardim
da igreja em Lincolnshire, onde mamãe e papai estão enterrados e onde há agora uma
lápide para Harry, embora o corpo dele esteja em algum lugar no sul da África.
O cemitério daqui é exagerado em tudo, contando agora com a colaboração do nosso
ridículo jarro. O tal jarro é tão desproporcional ao resto! Richard podia ao menos ter me
consultado antes. Isso não é comum, pois, apesar de seus defeitos, ele é um homem
sensato e devia ter percebido que o jarro era grande demais. Desconfio de que a minha
sogra ajudou na escolha. Ela sempre gostou de coisas exageradas.
Foi engraçado ver Richard fazer hoje uma tempestade por causa do anjo que
colocaram no túmulo ao lado, perto do jarro (aliás, perto demais, dá a impressão de que
vão se bater a qualquer momento). Fiquei só olhando, assim consegui me manter séria.
- Como ousam nos impor o gosto deles - Richard começou. - Quando penso que
terei de olhar essa bobagem sentimental toda vez que viermos aqui, meu estômago fica
embrulhado.
- É sentimental, mas inofensivo. Pelo menos, o mármore é italiano - considerei.
- Pouco se me dá o mármore! Não quero esse anjo ao lado de nosso túmulo!
- Será que eles não acham o mesmo do jarro?
- Nosso jarro não tem nada de errado!
- Eles também podem dizer que não há nada de errado com o anjo deles.
- O anjo fica ridículo ao lado do jarro. Primeiro, porque está perto demais.
- Exatamente. Você não deixou espaço para eles - argumentei.
- Claro que deixei. Se o túmulo tivesse outro jarro, ficaria ótimo. Talvez um jarro um
pouquinho menor.
Levantei as sobrancelhas, como faço quando Maude diz alguma bobagem. Richard
então admitiu: - Ou até um jarro do mesmo tamanho. Isso mesmo, ficaria muito bem,
um par. Mas não, o que temos é essa bobagem.
E assim continuamos. Os anjos de rosto impassível que estão aqui e ali no cemitério
me incomodam menos que os jarros, que acho uma coisa esquisita para colocar sobre
um túmulo, ainda mais sabendo que eram usados pelos romanos para guardar as cinzas
dos mortos. Um símbolo pagão numa sociedade cristã. Da mesma forma que todo o
simbolismo egípcio também existente nesse cemitério. Fiz essas observações para
Richard, mas ele ficou bufando e só conseguiu dizer: - Esse jarro confere graça e
dignidade ao jazigo dos Coleman.
Discordo! Seria melhor chamá-lo de total banalidade e de simbolismo deslocado,
mas tive o bom senso de me calar.
Ele ainda estava falando no anjo quando eis que aparecem os donos dele, de luto
fechado. Albert e Gertrude Waterhouse, que não têm parentesco com o pintor,
conforme
garantiram. (Tanto faz, mas sinto ganas de gritar quando vejo aqueles quadros
exagerados na galeria Tate. A Lady de Shalott no barco parece que acabou de fumar
ópio.) Nunca havíamos encontrado o casal no cemitério, embora eles tenham o túmulo
há muitos anos. São duas pessoas difíceis de descrever: ele tem barba ruiva e é
sorridente; ela é uma dessas mulheres baixinhas que perdeu a cintura depois que teve
filhos, então os vestidos não lhe caem direito. O cabelo dela é mais crespo do que
ondulado e fino, isto é, os prendedores escorregam.
A filha mais velha, Lavínia, parece da idade de Maude e tem lindos cabelos, de um
castanho brilhante e cacheado. E uma coisinha cheia de gostos, mimada, consta que o
pai comprou o anjo porque ela quis. Richard quase teve um ataque quando soube. Ela
estava usando um vestido preto debruado de crepe, um tanto vulgar e inadequado para
uma menina.
É claro que Maude gostou de Lavínia na hora. Quando todos nós demos uma volta
pelo cemitério, Lavínia ficou passando nos olhos um lencinho debruado de preto e
chorou no túmulo de um menino que morreu há meio século. Espero que Maude não
comece a imitá-la. Não agüento essas bobagens. Maude é muito ajuizada, mas vi como
gostou da outra menina. As duas sumiram, sabe-se lá aonde foram. Voltaram como
duas grandes amigas.
Acho pouco provável que Gertrude Waterhouse e eu possamos ser boas amigas.
Quando ela repetiu que estava muito triste com a morte da rainha, tive de dizer que
a filha dela, Lavínia, parecia estar adorando.
Gertrude Waterhouse ficou calada, depois observou: Que lindo vestido o seu! Tem
um tom diferente de azul.
Richard fungou. Tivemos uma boa briga por causa do meu vestido. Na verdade,
depois fiquei constrangida com a escolha, não vi um adulto na rua que não estivesse de
preto. Meu vestido era azul escuro, mas chamou muito mais atenção do que eu
esperava.
Resolvi responder com algo ousado: - E, não achei que o preto fosse a cor mais
adequada para usar pela rainha Vitória. As coisas estão mudando e vão ser diferentes
com o filho dela. Tenho certeza de que Edward será um ótimo rei. Já esperou bastante
para assumir o trono.
- Esperou demais, se me permite expressar a minha opinião. Pobre rapaz, passou da
hora - acrescentou o sr. Waterhouse, parecendo embaraçado e surpreso por ter dito o
que achava.
- Pelo jeito, as damas não acham que ele passou da hora - falei, não resisti.
- Oh! - fez Gertrude Waterhouse, pasma.
- Kitty, faça-me o favor! - censurou Richard, baixo. Minha esposa está sempre
dizendo o que não deve. - Ele se desculpou com Albert Waterhouse, que ria,
embaraçado.
- Não importa, tenho certeza de que ela compensa de outras formas - observou o sr.
Waterhouse.
Fez-se um silêncio em que todos nós refletimos sobre tal observação. Por um
instante, achei que o sr. Waterhouse estava se referindo ao réveillon. Mas claro que não
sabia de nada, ele não é disso. Fiz um esforço para não pensar. Desde aquela noite,
Richard não comentou nada, mas sinto que alguma coisa morreu dentro de mim e que
nada mais será igual, com ou sem um novo rei.
Então, as meninas voltaram, ofegantes, e foram um bom motivo de distração. Os
Waterhouse pediram licença e foram embora, o que deve ter sido um alívio para todos,
exceto para as meninas. Lavínia ficou chorosa e temi que Maude também fosse chorar.
Não parou mais de falar na nova amiguinha, até que finalmente prometi que tentaria
marcar um encontro das duas. Espero que ela acabe esquecendo, pois os Waterhouse
são o tipo de gente que faz com que eu me considere pior ainda do que sou.

LAVÍNIA WATERHOUSE

Hoje vivi uma aventura no cemitério, com a minha nova amiga e um menino
peralta. Já fui lá muitas vezes, mas nunca fiquei longe das vistas de mamy. Ela e papy
encontraram o casal que é dono do túmulo ao lado do nosso e ficaram conversando
coisas de adultos, enquanto Maude e eu demos uma volta com Simon, o menino que
trabalha no cemitério. Corremos pela avenida Egípcia e por todas as sepulturas em
volta do cedro do Líbano. Lá é tão maravilhoso que quase desmaiei de alegria.
Depois, Simon foi nos mostrar os anjos, como um lindo anjo-criança perto do terraço
das catacumbas. Eu nunca tinha visto aquele anjo, com uma pequena túnica, asinhas e
olhando de lado, como se estivesse zangado e acabado de bater o pé, de pirraça. Tão
lindo que quase achei que devia ter escolhido ele para o nosso túmulo. Não estava no
livro de anjos do pedreiro do cemitério. Mas tenho certeza de que mamy e papy acham
que o anjo que escolhi é o melhor.
Simon nos levou para ver outros anjos que havia por perto e queria mostrar um
túmulo que ele e o pai tinham acabado de cavar. Eu não queria ver, mas Maude quis
e eu não queria que ela pensasse que eu estava com medo. Fomos, olhamos dentro do
buraco e, embora fosse assustador, eu também tive uma vontade muito estranha de
deitar lá dentro. Claro que não fiz isso com o meu lindo vestido.
Quando nos viramos para ir embora, apareceu um homem horrível. Tinha o rosto
bem vermelho, barbas espetadas e cheiro de bebida. Tive de gritar, embora visse logo
que era o pai de Simon, já que têm os mesmos olhos azuis como pedacinhos do céu.
Ele começou a gritar com Simon e dizer coisas horríveis, onde é que ele estava e por
que estávamos ali, usou as palavras mais feias. Papy bateria em Ivy May e em mim, se
usássemos aquelas palavras. E papy não é de nos bater. Simon e o pai eram assim.
O homem correu atrás de Simon em volta da cova até que Simon pulou dentro dela!
Bom. Eu não quis ver mais nada: Maude e eu corremos como fúrias, colina abaixo.
Maude achava que devíamos voltar e ver se Simon estava bem, mas me recusei,
disse que nossos pais iam ficar preocupados conosco. Realmente, eu não queria mais
ver aquele homem, pois ele me assustava. O menino peralta sabe se cuidar. Tenho
certeza de que passa a maior parte do tempo dentro de túmulos.
Maude, então, é a minha nova amiga e eu dela, apesar de não entender como uma
menina tão simples pode ter um lindo regalo e uma babá, duas coisas que eu não tenho.
E também uma linda mãe com uma cinturinha fina e grandes olhos negros. Agora,
não consigo olhar para a mamy sem ficar um pouco envergonhada, não é justo.
GERTRUDE WATERHOUSE
Assim que eu soube, não consegui dormir a noite inteira, preocupada com as nossas
roupas. Albert poderia usar o terno escuro de trabalho, camisas com punhos bem
negros e uma tarja no chapéu. Roupa de luto sempre foi mais fácil para os homens. E
Ivy May é muito pequena para me preocupar com o que vai vestir.
Livy e eu precisávamos de roupas adequadas ao passamento de nossa rainha
Vitória. Eu, por mim, não me incomodo muito com o que uso, mas Livy é tão detalhista
e difícil, se não consegue exatamente o que quer. Detesto cenas com ela, é como dançar
uma música sem conhecer os passos, e como ela sabe todos, acabo me
sentindo enganada e boba. E só tem cinco anos! Albert diz que sou muito paciente com
ela, mas comprou o anjo que queria para o túmulo, sabendo que temos pouco dinheiro
para essas coisas, estamos economizando para mudar de casa. Mesmo assim, não o
culpo.
É importante que o túmulo reflita de forma adequada os sentimentos da família para
com os seus entes queridos. Livy sabe bem disso e tinha razão: o túmulo precisava
mesmo de um pouco de cuidado, principalmente depois daquele jarro monstruoso que
puseram na sepultura ao lado.
Hoje, acordei bem cedo e procurei uma tira de crepe que guardei do enterro de
minha tia. Tinha escondido, pois devia queimá-la e sabia que Livy não ia gostar de ver
que estava na casa. O crepe era pouco para dois vestidos, então coloquei no dela e a
sobra prendi no meu chapéu. Quando terminei de costurar, Livy tinha acordado e
gostou tanto do efeito do crepe que nem perguntou onde arrumara.
Como dormi pouco e levantei cedo, estava cansada quando chegamos ao cemitério.
Quase chorei ao ver o vestido de seda azul que Kitty Coleman estava usando.
Feria a vista, como um pavão exibindo a cauda num enterro. Fiquei me sentindo
muito sem graça e constrangida ao lado dela, como se os dois vestidos pedissem uma
comparação e me lembrassem de que o meu corpo não era mais o que já foi.
O único consolo que tive (tão vergonhoso que pedirei perdão a Deus) foi que
Maude, a filha dela, é bem sem graça. Fico orgulhosa de ver Livy tão bonita ao lado da
pequena Maude, tão insípida.
Claro que fui gentil como devia, mas era evidente que Kitty Coleman estava
aborrecida comigo. Depois, fez insinuações sobre Livy e falou coisas desrespeitosas, não
exatamente sobre a rainha, mas senti que a nossa soberana Vitória foi, de certa forma,
menosprezada. E Kitty fez meu pobre Albert ficar tão bobo que falou uma coisa
totalmente despropositada. Não fui capaz de perguntar para ele, depois, o que havia
querido dizer com aquilo.
Não importa, nós duas não vamos mais nos encontrar. Em todos esses anos em que
temos túmulos vizinhos no cemitério, foi a primeira vez que nos vimos. Se Deus quiser,
não vai acontecer de novo, embora isso vá me preocupar. Acho que não vou mais gostar
tanto de ir ao cemitério.
ALBERT WATERHOUSE
Bendita tetéia. Não sei no que eu estava pensando quando falei aquilo. Amanhã, vou
fazer as pazes com Trudy, comprando as balas cor de violeta que ela adora.
Gostei de encontrar Richard Coleman, apesar de existir aquele jarro em cima do
túmulo deles e tal. (Já disse a Trudy: o que está feito, está feito. Agora não adianta
reclamar.) Ele tem um bom cargo no banco. Moram no pé da colina e, pelo que ele disse,
esse era o lugar ideal para nos mudarmos quando decidirmos sair de Islington.
Lá também tem um bom time de críquete, ao qual ele poderia me apresentar. Bom
camarada.
Porém, não invejo a mulher que ele tem, por mais bonita que seja. Eu não a
suportaria. Já chega a Livy.
SIMON FIELD
Depois que as meninas foram embora, entrei na cova. Não tem por que sair.
Nosso pai não vai me procurar, nem ficar na beirada gritando comigo. Quando quer,
ele sabe onde me achar e sempre diz: - Este cemitério tem muros altos, você pode subir
e pular, mas vai acabar voltando pelo portão principal, de pés juntos.
E bonito ver o céu, a sete palmos de fundura. Fica da cor da pele que aquela menina
estava usando, o regalo, como ela chamou. Tão macia. Gostaria de passar a cara como a
vi fazendo.
Deitado no chão da cova, olho o céu. Às vezes um passarinho risca, lá no alto.
Pedaços de terra dos lados soltam e caem em cima de mim. Não me importo se o
buraco desmoronar. Nas sepulturas mais fundas, usamos escoras de madeira, mas não
ligamos para covas pequenas como esta. Esta é de barro, firme e úmido, por isso é
segura.
Já aconteceu de a cova desabar porque era de areia ou porque o barro secou. Teve
um homem que morreu dentro de sepultura. Nosso pai sempre diz que, se a cova
desmoronar, é para eu colocar uma mão no rosto e levantar a outra; assim, tenho um
buraco por onde respirar e eles podem ver os meus dedos esticados e saber onde estou.
Alguém aparece e olha dentro da cova. O homem fica escuro na contraluz, não
consigo ver quem é. Não é nosso pai, pois não tem cheiro de bebida.
- Simon, o que você está fazendo aí embaixo? - o homem pergunta.
Já sei quem é. Dou um pulo, fico de pé e esfrego a terra das costas, da bunda e das
pernas.
- Estou descansando, senhor.
- Você não é pago para descansar.
- Não sou pago, senhor - respondo, sem me conter.
- O quê? Achava que você ganha muito por aprender tantas coisas aqui. Está
aprendendo um ofício.
- Mas aprender não me dá de comer, senhor.
- Chega de malcriação, Simon. Você é apenas um empregado da Empresa de
Cemitério Londres. Lá no portão, há muitos meninos que adorariam ocupar o seu lugar.
Lembre-se disso. Terminou aquela cova?
- Terminei, senhor.
- Então cubra-a com algum oleado e procure o seu pai. Ele devia estar entregando as
ferramentas. Deus sabe que o seu pai precisa de ajuda e não sei por que fico com ele
aqui.
Eu sei. É porque nosso pai conhece esse lugar melhor do que ninguém. Conhece
cada túmulo, sabe quem está enterrado lá, qual a fundura da cova e se é de areia ou de
barro. Aprendeu tudo com o nosso avô. E, quando quer, ele cava rápido. Tem braços
duros como pedras. Funciona mais quando toma uns tragos, mas não quando bebe
muito. Então, ele e Joe cavoucam, riem, enchem o balde de terra e esvaziam. Mas, se ele
bebe muito, Joe e eu temos de cavar tudo e jogar a terra do balde.
Olhei para cima e procurei em volta do buraco o galho de árvore comprido que uso
para sair das covas pequenas. Nosso pai deve ter arrancado.
- Senhor Jackson - chamo, mas ele já foi. Grito de novo, ele não volta. Nosso pai vai
achar que saí e cobri a cova, por isso também não vai voltar aqui.
Tento esburacar a terra para apoiar os pés e subir, mas não tenho pá, só as mãos, e o
barro é duro por demais. Está firme, mas pode não continuar assim, não quero que caia
em cima de mim.
Agora que estou enfiado, vejo que a cova é fria. Me agacho e abraço minhas pernas
para me esquentar. De vez em quando, grito. Hoje estão cavando mais quatro covas e
colocando duas estátuas, mas ficam longe. Pode ser que um visitante me ouça ou uma
das meninas volte. Ouço vozes e grito: - Socorro, socorro! - mas ninguém aparece. As
pessoas ficam longe de covas recém-abertas. Acham que vai pular alguma coisa lá de
dentro e agarrar elas.
O céu lá em cima vai ficando cinza-escuro e escuto o sinete avisando aos visitantes
que o cemitério vai fechar. Um menino passa todo dia tocando o sino.
Grito até minha garganta doer, mas o som esconde minha voz.
O sino pára, escurece. Fico pulando para me aquecer, me agacho de novo e abraço as
pernas.
No escuro, a cova tem um cheiro mais forte de barro e coisa úmida. Tem um braço
do rio Fleet que passa por baixo do cemitério. Parece bem perto.
O céu fica sem nuvens e vejo as estrelas aparecendo e piscando até que o pedaço em
cima de mim fica cheio de luzinhas, como se alguém polvilhasse farinha e fosse enrolar
a massa.
Fico a noite inteira olhando as estrelas. Não tem mais nada para se fazer na cova.
Vejo formas nas estrelas: um cavalo, uma picareta, uma colher. Às vezes, paro de olhar
e, quando olho, elas saíram um pouco do lugar. Depois, o cavalo some no fundo do céu,
a colher também. Vejo uma estrela escorrer pelo céu. Fico pensando aonde ela vai.
Penso nelas, as meninas, aquela com o regalo e aquela bonita. Estão enfiadas na
cama, mornas como torradas. Gostaria de ser como elas.
Se não me mexo, não é tão ruim. Quando mexo, dói como se me batessem com uma
tábua. Depois, não consigo mais mexer. Meu sangue deve ter congelado.
O mais difícil é no fim da noite, quando o dia deve clarear e ainda não amanheceu.
Nosso pai diz que é nessa hora que a maior parte das pessoas morre porque não
consegue mais esperar o dia começar. Olho as estrelas. A picareta some e fico
chamando, devo ter dormido porque, quando olho outra vez, as estrelas sumiram, tem
sol, e as lágrimas congelaram na minha cara.
Vai clareando, cada vez mais, porém ninguém aparece. Estou com tanta sede que
minha boca grudou.
Então ouço o hino Santo, santo, santo que nosso pai gosta de assobiar enquanto
trabalha. É estranho, pois há anos ele não entra numa igreja. O assobio se aproxima e
tento chamar, mas dói muito fazer um som.
Ouço ele andando em volta da cova, colocando tábuas no chão e os tapetes verdes
que parecem grama para ficar bonito e limpo. Depois, ele atravessa as cordas na cova
para sustentar o caixão na hora de baixar e as duas tábuas que apoiam o caixão, uma em
cada lado do buraco. Nosso pai não olha para baixo, por isso não me vê.
Já cavou tanta cova que não precisa olhar dentro.
Tento abrir a boca, não consigo. Ouço os cavalos relinchando e o ranger de seus
cabrestos, as rodas dos coches girando na alameda e sei que tenho de sair, senão nunca
mais saio. Estico as pernas, elas doem e grito, só que não sai nada porque continuo sem
conseguir abrir a boca. Consigo ficar de pé e fazer a minha boca abrir. Grito: - Pai, pai! -
A voz parece um desses corvos piando na árvore.
Primeiro, nada. Chamo de novo, nosso pai olha na cova e me vê.
- Céus, menino! O que está fazendo aí?
- Me tira daqui, nosso pai! Tira!
Nosso pai deita na beira da cova e estica os braços. Anda, menino. Segura na minha
mão. - Não alcanço. Nosso pai olha para onde vem o barulho dos cavalos chegando e
balança a cabeça - Não dá tempo, menino. Não dá. Nosso pai levanta depressa e vai
embora. Eu grito outra vez.
Nosso pai volta com o sr. Jackson, que olha para dentro da cova e faz uma cara
horrível. Não diz nada e sai, enquanto nosso pai fica procurando ele. Aí, o sr. Jackson
volta e joga a corda que usamos para medir o quanto já cavamos. Tem um nó a cada
cinqüenta centímetros, agarro num deles, seguro, o sr. Jackson e nosso pai puxam e saio
no carpete verde que é como grama. Dou um pulo, embora esteja todo doído e fico ali,
na frente dos donos do serviço funerário com suas cartolas e dos meninos que
acompanham o enterro vestidos com casacos pretos e também dos cavalos do coche,
mexendo a cabeça e fazendo com que os penachos pretos se agitem. Atrás da carruagem
que leva o caixão, estão os enlutados, todos me olhando. Dá vontade de rir do jeito
deles, mas vejo a cara horrível do sr. Jackson e saio correndo.
Depois, nosso pai enfiou rum pela minha goela abaixo, me pôs ao lado da lareira
coberto com um lençol e me deu uns cascudos. - Não faça mais isso, menino - diz ele,
como se eu tivesse planejado passar a noite inteira numa cova. -Eu perco o emprego e
como é que nós ficamos?-Aí o sr. Jackson apareceu e me deu uma chicotada para
garantir que aprendi a lição. Não ligo, mal sinto o chicote. Nada consegue me machucar
tanto quanto o frio lá dentro daquela cova.
Dezembro de 1901

RICHARD COLEMAN
Eu disse a Kitty que fomos convidados para o réveillon pelas mesmas pessoas do
ano passado. Ela ficou calada e me olhou com aqueles olhos castanhos que me atraíram
anos atrás, mas que hoje apenas me julgam. Se não tivesse me olhado daquele jeito, eu
não teria dito o que disse.
- Já respondi que aceitamos. com prazer-falei, embora não fosse verdade.
Vamos continuar aceitando o convite deles todo ano, até Kitty voltar a ser minha
esposa.
Março de 1903

LAVINIA WATERHOUSE
Parecia milagre. Ver minha melhor amiga nos fundos - de nosso jardim! Existe
alguma coisa melhor? Esta manhã, eu estava muito aborrecida enquanto passava a
escova nos cabelos, olhando pela janela para o nosso novo jardim. Ele é muito lindo, Ivy
May e eu temos um quarto adorável com janelas abrindo para lá e, mesmo assim, senti
uma ponta de saudade da nossa velha casa. Era menor, ficava numa rua movimentada e
não era perto de um lugar tão lindo como Hampstead Heath.
Mas foi lá que nasci e a casa era cheia de lembranças da minha infância. Eu queria
levar um pedaço do papel de parede do corredor, onde todo ano papy marcava quantos
centímetros Ivy May e eu tínhamos crescido. Papy não deixou rasgar o papel porque ia
estragar a parede. Chorei quando fomos embora da casa.
Enquanto pensava nessas coisas, vi no canto dos olhos um vulto e quando olhei para
a casa que dá fundos para a nossa tinha uma menina acenando na janela!
Prestei atenção e logo reconheci: era Maude, a menina do cemitério. Eu sabia que
havíamos mudado para perto do cemitério, mas não que ela também morava lá.
Peguei meu lenço e acenei até meu braço doer. Ivy May, que jamais presta atenção
em nada se eu não lhe der um beliscão (às vezes, nem assim), levantou da cama para
ver o que estava acontecendo.
Maude falou alguma coisa, mas ela estava tão longe que não consegui ouvir.
Depois, indicou a cerca que separava nossos jardins e mostrou as duas mãos abertas.
Somos tão parecidas que entendi na hora que ela estava dizendo para nos encontrarmos
na cerca, dentro de dez minutos. Joguei um beijo para ela e entrei para me vestir o mais
rápido possível.
- Mamy! Mamyl - gritei, descendo as escadas. Mamy veio correndo da cozinha,
pensando que eu estava com algum problema ou que tivesse me machucado. Falei em
Maude, mas ela não ficou nem um pouco interessada. Não quis que eu encontrasse os
Coleman, embora não dissesse o motivo. Talvez agora ela já os tenha perdoado, mas
nunca me esqueci de Maude, apesar de fazer tanto tempo. Sabia que o destino nos
uniria.
Saí correndo de casa e fui até a cerca do jardim, que era bem alta, não dava para ver
do outro lado. Chamei Maude, ela respondeu e pôs o rosto sobre a cerca.
- Puxa, como você conseguiu chegar aí? - perguntei, alto.
- Subi na fonte onde os passarinhos bebem água - disse ela, balançando um pouco.
Depois, ficou em pé e, antes que eu percebesse, pulou a cerca e caiu no chão! A coitada
se arranhou um pouco nas roseiras da cerca. Eu a abracei e beijei-a. Em seguida, levei-a
até onde mamy estava e tive o prazer de constatar que mamy foi muito carinhosa, pois
passou iodo nos arranhões dela.
Levei Maude para mostrar as minhas bonecas no meu quarto.
- Não esqueci de você. Toda vez que íamos ao cemitério, eu procurava por você,
esperando encontrá-la.
- Eu também - ela disse.
- Mas nunca a encontrei. Só via aquele menino peralta, às vezes.
- Simon. Cavando sepulturas com o pai.
-Agora, podemos ir lá e pedir para ele nos mostrar todos os outros anjos. Vai ser
ótimo.
- Vai.
Ivy May quis estragar o encontro, batendo as cabeças das minhas bonecas com tanta
força que pensei que fossem quebrar. Mandei ela sair do quarto, mas Maude disse que
não se importava se Ivy May ficasse conosco, já que não tinha irmão ou irmã para
brincar. Ivy May ficou contente como um polichinelo; aliás, ela fica contente com
qualquer coisa. Mas isso não importa.
Maude tomou o café da manhã conosco e não paramos de falar.
E um verdadeiro milagre dos céus que os anjos nos tenham feito mudar para essa
casa e eu encontrar a minha melhor amiga.
MAUDE COLEMAN
Engraçado como são as coisas. Papai sempre diz que, se prestarmos atenção, não
existem coincidências. Provou isso hoje.
Eu estava olhando pela janela quando vi uma menina na janela em frente escovando
o cabelo. Nunca tinha visto a menina: na casa viviam duas solteironas que se mudaram
há algumas semanas. Então, a menina inclinou a cabeça e mexeu os ombros e logo
percebi que era Lavínia. Fiquei tão surpresa que parei e fiquei olhando.
Não a via fazia muito tempo, desde o falecimento da rainha Vitória, há dois anos.
Pedi à mamãe várias vezes para encontrar Lavínia, mas ela sempre dava uma desculpa.
Prometeu perguntar no cemitério o endereço dos Waterhouse, mas acho que nunca
perguntou. Parei de pedir porque sabia que aquele era o jeito de ela dizer não.
Não sei por que ela não queria que eu tivesse uma grande amiga, mas eu não podia
fazer nada, só andar pelo cemitério sempre que ia visitar, esperando que os Waterhouse
fossem também. Nunca foram. Desisti de ter uma grande amiga. E não encontrei outras
meninas que gostassem de passear no cemitério comigo, como Lavínia.
Agora, lá estava ela, do outro lado da rua. Acenei e, quando finalmente ela me viu,
acenou também, sem parar. Fiquei bem contente por ela gostar de me ver. Fiz sinal para
que me encontrasse no jardim e corri para contar aos meus pais a respeito da incrível
coincidência.
Mamãe e papai já estavam tomando o café da manhã e lendo jornais: papai lê o Mail,
e mamãe, o Si. Pancras Gazette. Contei quem eram os nossos novos vizinhos e papai
não se surpreendeu muito, disse que tinha avisado aos Waterhouse que a casa estava à
venda.
Mamãe olhou para ele de um jeito típico. - Não sabia que você era tão amigo deles -
observou.
- Ele me procurou no banco, faz tempo. Disse que queriam morar por aqui e se eu
sabia de alguma coisa. Quando apareceu aquela casa, avisei - papai disse.
- Então agora seremos vizinhos na vida e na morte mamãe disse, quebrando com
força, com uma colher, a casca do ovo quente que ia comer.
- Parece que ele é um ótimo batedor no críquete e seria bom para o time.
Quando ficou claro que não havia qualquer coincidência, que papai havia trazido os
Waterhouse para cá, me senti estranhamente decepcionada. Queria acreditar no destino,
mas papai havia mostrado mais uma vez que ele não existe.
GERTRUDE WATERHOUSE
Nem me passaria pela cabeça criticar a opinião de Albert. Ele entende melhor desses
assuntos e, na verdade, eu gostei de nossa nova casinha, com um andar a mais que a de
Islington e um jardim cheio de rosas, em vez de as galinhas dos vizinhos ciscando no
lixo.
Mas desanimei quando vi que não só somos vizinhos dos Coleman como a casa
deles dá fundos para a nossa. E, além disso, a casa deles tem um andar a mais do que a
nossa e um jardim fantástico. Quando não tinha ninguém por lá, subi numa cadeira e
olhei. Tem um chorão, um lago, um canteiro de rododendros e um lindo e vasto
gramado onde, tenho certeza, as meninas vão jogar croqué o verão inteiro.
Kitty Coleman estava no jardim, plantando prímulas. O vestido que ela usava era do
mesmo amarelo das flores e tinha um lindo chapéu de abas largas preso por um lenço
de chiffon. Até para fazer jardinagem ela se veste bem. Não me viu, graças a Deus,
senão eu ficaria tão mortificada que poderia cair da cadeira. Desci rápido e torci o
tornozelo.
Não confessaria a ninguém, nem a Albert, mas me irrita o fato de ela ter um jardim
tão lindo. Fica de frente para o sul e recebe muito Sol, o que facilita.
E deve ter um jardineiro para ajudá-la - no mínimo com o gramado, que parece
aparado.
Vou me dedicar às nossas rosas, mas sempre destruo as plantas sem querer;
realmente, no jardim sou uma desajeitada. Além do mais, o nosso é face norte e não
podemos ter nenhum ajudante, no momento. Espero que ela não ofereça o jardineiro
dela, eu não saberia o que dizer.
Depois que Maude pulou a cerca dos fundos, achei que devíamos ir lá, pelo menos
para explicar os arranhões dela. A frente da casa deles é tão elegante, tem um jardim
cheio de roseiras e os degraus da entrada são revestidos de pedra preta e branca. (A
porta de nossa casa abre direto na calçada. Devo me esforçar para não fazer
comparações.) Eu pensava em apenas deixar meu cartão de visitas, mas Kitty Coleman
nos recebeu com muita gentileza numa saleta de estar (que ela chama de saleta da
manhã).
Pisquei, surpresa, com as cores que usou nas paredes: amarelo-mostarda com
arremate em marrom-escuro, o que deve estar na moda. Ela disse que as cores eram
"amarelo-dourado" e "marromchocolate", o que soa bem mais bonito do que é. Prefiro o
nosso vermelho-vinho. Nada se compara a uma sala de visitas cor de vinho. Aliás, eu
não tenho saleta da manhã. Se tivesse uma assim, ensolarada, no primeiro andar, talvez
pintasse de amarelo também. Mas não creio.
Ela tem muito bom gosto: os sofás são cobertos com xales de seda bordados, há
samambaias em cachepôs, jarros com flores secas e um piano de armário. Fiquei bem
impressionada com o moderno aparelho de café, de xadrezinhos pretos e amarelos que
me deixaram tonta. Embora eu pessoalmente prefira simples rosas. Chacun à songoüt.
Ah, fiz a bobagem de dizer isso: Kitty respondeu em francês e eu não entendi uma
só palavra! Que tola sou, errei, querendo me exibir.
Saí de lá tendo, no fundo, um consolo. Um não, dois. As meninas se adoram e Livy
precisa de uma amiga sensata. Pelo menos, Maude vai influenciar muito, a menos que
também se renda a Livy como todos nós, exceto nossa querida Ivy May, que não aceita
os exageros da irmã. Ivy May sempre me surpreende. Calma do jeito que é, não permite
que Livy a domine.
O segundo consolo: Kitty Coleman tem suas tardes amigas, isto é, recebe a visita das
amigas, nas terças-feiras à tarde, no mesmo dia em que eu. Quando descobrimos, ela
sorriu e disse: -Ah, querida, que pena! - Mas não vou mudar meu dia, há tradições que
não se deve alterar. E tenho certeza de que ela também não vai mudar o dia dela.
Assim, pelo menos, conseguiremos evitar esse evento social.
Não sei dizer exatamente por que não gosto dela. Ela é muito educada e simpática,
além de bonita. Tem uma linda casa, um marido atraente e uma filha inteligente.
Contudo, eu não queria ser ela. Ela tem um quê de insatisfação que perturba tudo
que estiver em volta. Sei que não é caridoso de minha parte pensar isso, mas
duvido que ela cultive a fé cristã. Desconfio que ela pensa demais e reza de menos.
Como são as únicas pessoas que conhecemos por aqui e as meninas já estão tão
ligadas, temo que vamos ter de nos encontrar muito.
Chegamos em casa, sentamos na nossa varanda dos fundos e foi impossível não
olhar a mansão dela pela janela. A casa vai estar sempre lá para me lembrar de que eles
têm uma situação melhor. Achei isso tão perturbador que deixei minha chávena de chá
bater no pires e a porcariazinha trincou. Chorei e nem o abraço que Ivy May me deu
(em geral, ela não gosta de abraços) me consolou.
Junho de 1903

MAUDE COLEMAN
Lavínia e eu estamos loucas para ir ao cemitério.
Agora que podemos ir juntas, será bem mais divertido. Desde que os Waterhouse
mudaram para a casa no fundo do jardim, não fomos, por um motivo ou por outro: na
Páscoa, visitamos tia Sara no campo, depois Lavínia ficou doente, depois mamãe e a sra.
Waterhouse tinham de fazer uma visita ou dar um recado. Que amolação, moramos tão
perto e não conseguimos ninguém para nos levar, nem podemos ir sozinhas. Pena que a
babá foi embora para cuidar da mãe velhinha, senão iria conosco.
Ontem, pedi para mamãe nos acompanhar.
- Estou muito ocupada - ela disse. Não me parecia ocupada, estava lendo um livro:
não falei nada. Agora que a babá saiu, ela cuida de mim, mas acabo ficando com Jenny e
com a sra. Baker.
Perguntei se Jenny podia levar Lavínia e eu. -Jenny tem muita coisa para fazer, não
pode.
- Ah, mãe, por favor, só um pouquinho.
- Não fale desse jeito manhoso. Aprendeu com Lavínia, mas não fica bem em você.
- Desculpe. Quem sabe Jenny tem um recado seu para dar lá no Village. Aí, podia
levar a gente.
-Você não tem lição de casa para fazer?
- Já fiz.
Mamãe suspirou. -Ainda bem que você vai para a escola, no outono. Seu tutor não
consegue acompanhar seus estudos.
Tentei ser útil. - Quem sabe você tem livros para devolver na biblioteca?
- Tenho! Ah! Está bem, chame Jenny aqui. Assim ela pode ver se ja chegou o tecido
que encomendei no Village.
Lavínia e eu corremos colina acima, puxando Jenny. Ela reclamou o tempo todo e
ficou sem fôlego, só que, se não tivesse usado a respiração para reclamar, estaria muito
bem. A nossa pressa não adiantou muito: Ivy May não quis correr e Jenny mandou
Lavínia voltar e pegá-la. Às vezes é uma provação ter Ivy May conosco, mas a sra.
Waterhouse insistiu. Chegamos ao cemitério e Jenny deixou que fizéssemos tudo que
queríamos, desde que Ivy May fosse junto. Saímos correndo para achar Simon.
Foi tão bom estar no cemitério sem ninguém nos olhando. Sempre que vou com
mamãe, papai ou a avó, tenho de ficar bem quieta e solene, embora tenha vontade de
fazer o que Lavínia e eu fizemos: correr e olhar tudo. Enquanto procurávamos Simon,
fizemos muitas brincadeiras: pulamos de um túmulo a outro sem tocar no chão (é fácil,
já que as sepulturas são bem juntas); cada uma foi de um lado da alameda e ganhava
ponto quem enxergasse primeiro um obelisco; uma mulher debruçada sobre um jarro;
um animal. Brincamos também de esconder em volta do círculo do Líbano; Lavínia
gritou quando corri atrás dela e alguns adultos disseram para falarmos baixo e sermos
educadas. Depois disso, tentamos ficar caladas, mas era tão divertido brincar que foi
difícil.
Finalmente, encontramos Simon bem no alto do cemitério, perto do portão norte.
Não o tínhamos visto, pois o pai dele estava ao lado de uma sepultura nova,
puxando um balde de terra com uma roldana e uma corda armados sobre a cova. Ele
despejava a terra do balde no que parecia ser uma grande caixa de madeira com rodas,
bem alta e cheia de terra.
Fomos nos aproximando sem fazer barulho e nos escondemos atrás de uma lápide
para o pai de Simon não nos ver, pois ele é sujo, tem a cara vermelha e cheiro de uísque,
dava para sentir lá de onde estávamos. Lavínia diz que ele parece um personagem de
Dickens. Acho que todos os coveiros parecem.
Ouvimos Simon cantando dentro da sepultura uma música que Jenny às vezes canta
com as pessoas em Heath, num feriado bancário de segunda-feira: Se você quer se
divertir Ouça o que vou dizer: Hampstead, a alegre Hampstead, É o melhor lugar para
uma farra.
Embora o pai de Simon não estivesse nem olhando para nós, sabia que estávamos lá,
pois perguntou: - Mocinhas, o que estão querendo?
Simon parou de cantar. O pai dele disse: - Saiam daí, as três.
Lavínia e eu nos olhamos e, antes que pudéssemos resolver, Ivy May saiu de trás da
lápide e tivemos de sair também.
- Por favor, senhor, queremos falar com Simon. Achei estranho eu chamar o pai de
Simon de senhor.
Ele também achou estranho e olhou como se não acreditasse que estávamos ali.
Depois, de repente, gritou para o buraco: - Menino, tem visita para você!
A cabeça de Simon surgiu na cova e ele ficou nos olhando.
- Bom, menino peralta, não vai dizer nada? - Lavínia perguntou.
- Nosso pai, pode ficar no meu lugar um pouco? - perguntou Simon.
-Aí na cova não cabe Joe e eu - o pai de Simon respondeu. Simon não falou nada e o
pai deu um muxoxo: - Ah, está bem, pode ir com as suas garotas.
Simon saiu da cova e o pai entrou, sorrindo antes de sumir lá embaixo. Simon puxou
o balde e despejou a terra na caixa de madeira. Estava todo enlameado.
- O que é isso? - perguntei, apontando para a caixa.
- Uma caixa de Lamb - Simon respondeu. - Você põe nela a terra que cavou e
quando o caixão baixa na sepultura você puxa e ela abre o lado, veja, tem uma
dobradiça, e a terra cai bem na sepultura. Assim, não faz sujeira em volta da sepultura.
Logo ali tem mais duas que já estão cheias. - Ele mostrou as outras caixas,
encostadas no muro divisório. No fim do enterro, você deixa um pouquinho de terra na
caixa para os parentes do morto jogarem no caixão.
- Podemos olhar dentro da cova?
Simon deixou, fomos até a beira do buraco. Era mais fundo do que eu pensava.
O pai de Simon estava lá embaixo com outro homem. Só dava para ver o cocuruto das
cabeças.
O cabelo do pai de Simon era como palha de aço. O outro homem era
completamente careca. Eles estavam nivelando com pás os lados da cova. Quase não
podiam se mexer.
O careca nos olhou lá em cima. Tinha um rosto comprido, e o nariz parecia uma
salsicha. Acho que ele e o pai de Simon cavavam em dupla e Simon ajudava.
Simon puxou mais um balde cheio de torrões de barro. Vi uma minhoca se mexendo
por cima da terra.
- Além de minhoca, você acha mais alguma coisa na terra? - perguntei.
Simon despejou a terra na caixa de Lamb e desceu o balde na cova. - Acho pedaços
de porcelana, canetas-tinteiro, pedaço de parafuso. Antes de ser um cemitério, esse
lugar era uma escola. E, antes, era o jardim de um casarão.
O pai de Simon olhou para cima. - Preciso de mais tábuas para escorar, menino.
Simon foi passando as tábuas que estavam empilhadas. Percebi que a madeira era
colocada a espaços regulares em volta da cova.
- Qual a profundidade dessa cova? - perguntei.
- Por enquanto, três metros e meio, mas vamos cavar cinco metros, não é, nosso pai?
Olhei para baixo. - Tudo isso?
- Tem muita gente para enterrar. O caixão tem quarenta e cinco centímetros de
altura, mais dois centímetros entre cada caixão, dá espaço para seis pessoas.
Uma família.
Fiz a conta de cabeça, era como um problema que meu tutor me desse. - Sete caixões.
- Você tem de deixar um espaço por cima.
- Claro, são sete palmos de profundidade.
- Não, isso é só uma expressão que usam. Deixamos cinco centímetros sobre o
primeiro caixão.
- Do que vocês estão falando? - Lavínia perguntou. O pai de Simon começou a
martelar uma tábua.
- Eles não correm perigo lá embaixo? - perguntei. Simon fez que não: - A madeira
escora. E a cova é de barro, então não costuma desmoronar, é firme. E preciso tomar
cuidado com areia, que é mais fácil de cavar, mas não segura. Cavar na areia é muito
perigoso.
- Ah, pára de falar essas coisas aborrecidas! Queremos que nos mostre uns anjos.
- Lavínia pediu.
- Deixa ele, Lavínia. Não vê que está trabalhando? falei. Adoro a Lavínia (afinal de
contas, é a minha melhor amiga), mas nunca temos os mesmos interesses. Por exemplo:
ela jamais quer olhar no telescópio que papai colocou no jardim ou ver a Enciclopédia
Britânica da biblioteca. Eu queria fazer mais perguntas para Simon a respeito de
sepulturas e de cavar: Lavínia não deixou.
- Depois, quando eu terminar isso - disse Simon.
- A Jenny disse que só temos meia hora - avisei.
- Quem é jenny?
- Nossa criada.
- Onde ela está agora?
- Lá no Village. Deixamos ela no portão.
- Ela encontrou um homem - contou Ivy May. Simon olhou para ela. - Quem é essa?
- Ivy May, minha irmãzinha - Lavínia disse. - Mas ela está enganada. Você viu
algum homem, Maude?
Neguei com a cabeça, mas não tinha certeza.
- Ele tinha um carrinho de mão e ela foi atrás dele no cemitério - insistiu Ivy May.
- Era um homem ruivo? - Simon perguntou. Ivy May concordou com a cabeça.
- Ah, sei quem é. Vai dar umas nela.
- O quê? Alguém vai bater em Jenny? Então temos que ir buscar ela! - gritei - Não,
não é bater - Simon disse. - E ... - Olhou para Lavínia e para mim, e parou. - Não tem
importância. Não é nada.
O pai de Simon riu dentro da cova. - Olha aí, menino!
Veja com quem está falando, tem de tomar cuidado com o que fala quando você se
mistura com meninas!
- Psiu, nosso pai!
- Melhor irmos - falei, insegura sobre como estaria Jenny. - Tenho certeza de que já
passou meia hora. Simon, qual é o caminho mais rápido para o portão principal?
Simon apontou para a estátua de um cavalo. - Pegue a alameda da estátua do cavalo
e siga.
- Por lá, não! - Lavínia gritou. -Vai dar direto nos dissidentes!
- E daí? Não vão morder você, estão mortos - Simon lembrou.
A ala dos dissidentes é onde são enterrados todos que não pertencem à Igreja
Anglicana, principalmente católicos, batistas, metodistas e outros. Soube que os suicidas
são enterrados lá no fundo, mas não contei para Lavínia. Só andei por lá duas vezes. Era
parecido com o resto do cemitério, mas senti uma coisa diferente, como se estivesse
num outro país. - Venha, Lavínia. - Chamei, não querendo que Simon achasse que
estávamos julgando os dissidentes. - Não tem importância. Sua mãe por acaso não era
católica antes de casar com seu pai?
- Eu tinha achado um rosário embaixo de uma almofada na casa de Lavínia, e
Elizabeth, a criada que às vezes trabalha na casa deles, havia me contado umas coisas.
Lavínia enrubesceu: - Não! Mas e se ela fosse católica?
- Não tem importância, eu já disse.
- Já sei! - Simon interrompeu a conversa. - Se quiserem, passem por trás do anjo
adormecido. Já viram ele? Está na alameda principal, não na dos dissidentes.
Fizemos sinal que não vimos.
- Vou mostrar, é perto. - E Simon gritou para dentro da cova: -Volto já, nosso pai.
O pai de Simon resmungou.
- Vamos, rápido. - Simon correu pela alameda e fomos atrás. Dessa vez, até Ivy May
correu.
Nunca tínhamos visto o anjo que ele mostrou. Todos os outros do cemitério estão
andando ou voando, apontando para algum lugar ou pelo menos de pé e com a cabeça
inclinada. Mas esse estava deitado de lado, as asas fechadas, dormindo profundamente.
Eu não sabia que os anjos precisavam dormir como os seres humanos.
Lavínia adorou, claro. Eu preferia falar mais sobre cavar sepulturas, mas, quando
me virei para perguntar algo a Simon sobre a caixa de Lamb, ele tinha voltado para a
cova. Não se despediu.
Finalmente, consegui tirar Lavínia de perto do anjo, mas, quando chegamos ao
portão principal, Jenny não estava. Eu ainda não havia entendido o que Simon dissera a
respeito dela e do homem, e estava meio preocupada. Lavínia não se incomodou.
- Vamos à sala do pedreiro ver os anjos. Só um minuto - ela pediu.
Nunca havia estado lá. Era um pátio cheio de todo tipo de pedra, em grandes blocos
ou em lápides, bustos, pedestais, havia até obeliscos encostados num canto. Havia
também muita poeira e o chão era arenoso. Em toda parte ouvíamos o tinque, tinque,
finque dos homens esculpindo pedra.
Lavínia entrou na frente. - Por favor, podemos olhar o livro de anjos? - ela pediu ao
homem que estava do outro lado do balcão. Achei que era muito ousada.
O homem não estranhou. Pegou na prateleira atrás dele um livro grande,
empoeirado, e o colocou sobre o balcão.
- Foi aqui que escolhemos nosso anjo - Lavínia explicou. - Adoro olhar este livro. Há
centenas de anjos, não são lindos? - Ela foi virando as páginas. Havia desenhos de anjos
de todo jeito: de pé, ajoelhado, olhando para cima, olhando para baixo, de olhos
fechados, segurando coroas, tocando trombetas, com dobras na túnica. Havia anjos
bebês e anjos gêmeos, querubins e bustos de anjinho com asas.
- São... lindos - falei. Não sei exatamente o porquê, mas não gosto muito de anjos de
cemitério. São muito suaves e comportados, têm os olhos vazios e, mesmo quando fico
na frente deles, nunca me vêem. O que adianta um mensageiro de Deus que nem
percebe você?
Papai detesta anjos, diz que são sentimentais. Mamãe acha que são insípidos.
Tive de procurar a palavra no dicionário, significa uma coisa sem graça ou vazia.
Acho que ela tem razão. Os olhos dos anjos são assim mesmo. Mamãe diz que eles
chamam mais atenção do que merecem. Quando um túmulo do cemitério tem um anjo,
todos olham para ele, em vez dos outros monumentos em volta, mas, na verdade, não
há o que ver.
- Por que você gosta tanto de anjos? - perguntei a Lavínia.
Ela riu. - Quem não gosta? São os mensageiros do Senhor e trazem amor. Sempre
que vejo suas expressões suaves, fico tranqüila e calma.
Isso, acho eu, é exemplo do que papai chama de pensamento sentimental.
- Onde está Deus, exatamente? - perguntei, pensando em anjos voando entre nós e
Ele.
Lavínia pareceu espantada e parou de virar as páginas. Ora, lá em cima, claro. - E
apontou para o céu, lá fora. Você não tem aula de catecismo?
- Lá em cima há estrelas e planetas. Eu sei, vi no telescópio de papai - falei.
- Tome cuidado, Maude Coleman, ou você vai cometer uma blasfêmia - avisou
Lavínia.
- Mas...
- Não! Não quero ouvir! - gritou Lavínia, tapando os ouvidos.
Ivy May riu. Desisti.
- Vamos procurar Jenny.
Dessa vez, Jenny estava nos esperando no portão principal, vermelha e ofegante
como se tivesse acabado de subir a colina de novo, mas, sem qualquer machucado,
fiquei contente de constatar.
- Onde estiveram, meninas? Fiquei preocupada! íamos começando a descer a
colina quando perguntei se ela havia verificado o tecido para mamãe.
- O livro! - ela deu um gritinho agudo e entrou correndo no cemitério para pegar o
livro. Nem quero imaginar onde ela o deixou.
JENNY WHITBY
Não gostei nada de ficar andando com as mininas. A madame sabe muito bem que
vivo cheia de serviço. Pego às seis da manhã, largo às nove da noite e até mais tarde,
quando vem gente para jantar. Eu só tenho um dia de folga por ano, além do Natal e do
26 de dezembro. Ela ainda quer que eu busque livros na biblioteca e panos na loja, o que
pode muito bem fazer por si. Livros que não tenho tempo de ler e, mesmo se tivesse,
não me interessam.
Mas era um lindo dia de sol e concordo que foi muito bom sair, embora não goste de
subir a colina para o Village. Fomos ao cemitério e eu ia deixar as mininas lá, passar nos
dois lugares e depois voltar para pegá-las. Então, eu o vi empurrando um carrinho de
mão pelo pátio, mancando um pouco. Ele olhou para mim, sorriu e eu pensei, espera aí.
Falei para as mininas que elas podiam fazer o que gostavam, mas só durante meia
hora. Elas queriam encontrar um menino para brincar. Pedi a elas que tomassem
cuidado e não deixassem ele se fazer de engraçado. E também que ficassem de olho na
menor, Ivy May. Ela tem mania de ficar para trás, aposto que ela gosta. Fiz elas
andarem de mãos dadas. Assim, as mininas foram para um lado, e eu, para outro.
Novembro de 1903

KITTY COLEMAN
Esta noite fomos com os Waterhouse ver uma fogueira em Heath. As meninas
queriam ir e Richard e Albert estão se dando bem (embora Richard diga, entre nós, que
Albert Waterhouse é um paspalho). Gertrude Waterhouse e eu tivemos de sorrir e nos
suportar do melhor jeito possível. Fizemos um círculo em volta de uma enorme
fogueira armada na colina do Parlamento, controlando nossas salsichas e batatas
assando no fogo e encantadas por estarmos na mesma colina onde Guy Fawkes ficou
assistindo ao parlamento queimar. Olhei as pessoas que ficavam mais perto ou mais
longe do calor das chamas, tentando achar um lugar melhor. Apesar de nossos rostos
estarem quentes, as costas estavam frias, como as batatas: queimadas por fora, cruas por
dentro.
Agüento bem mais o calor do que Richard ou Maude, aliás, agüento mais que a
maioria das pessoas. Fui me aproximando da fogueira até meu rosto ficar ardendo.
Olhei em volta e as pessoas estavam bem atrás: fiquei sozinha ao lado da fogueira.
Richard nem olhou o fogo, ficou observando o céu claro. E bem do jeito dele, não
gosta do calor, mas da fria distância do Universo. Quando estávamos namorando, ele
me levava, acompanhados de meu irmão Hany, a reuniões para observar as estrelas. Na
época., eu achava muito romântico. Esta noite, quando acompanhei o olhar dele pelo
céu estrelado, o que senti foi só o vazio entre aqueles bobos e eu, como se fosse um
cobertor pesado prestes a cair em cima de mim. Foi quase tão asfbciante quanto meu
medo de ser enterrada viva.
Não sei o que ele vê nas estrelas e agora Maude também, pois começou a levá-la
quando vai a Heath, à noite, com o telescópio. Não falei nada, não posso reclamar e
Maude gosta dessa atenção. Mas fico triste, pois ele está incutindo nela o mesmo
racionalismo frio que descobri quando nos casamos. Claro que estou sendo ridícula.
Meu pai também me criou para ser lógica e desdenho o sentimentalismo desta nossa
época, que os "Waterhouse encarnam à perfeição. No fundo, gosto que Maude e Lavínia
sejam amigas. Apesar de irritante e melodramática, Lavínia não é fria e faz um
equilíbrio com a frieza da astronomia.
Fiquei ao lado da fogueira, todo mundo em volta estava tão alegre que pensei: como
sou estranha, até eu mesma sei disso. Espaço demais me assusta; espaço de menos me
assusta. Realmente, não existe um lugar onde eu me sinta bem: estou muito perto ou
muito longe do fogo.
Atrás de mim, Gertrude Waterhouse colocou um braço no ombro de cada filha.
Maude ficou ao lado de Lavínia e todas riam de alguma coisa: Maude, meio tímida,
como se não tivesse certeza se devia rir com elas. Tive pena.
Às vezes, é um sofrimento ficar com os Waterhouse. Pode ser que Lavínia domine a
mãe, mas existe um afeto entre elas que não consigo ter com Maude. Depois de
passar algumas horas com eles, resolvi andar de braço com Maude, como Gertrude faz
com Lavínia. Resolvi também ficar mais tempo com ela: ler, ajudar na costura, levá-la ao
jardim comigo, ir com ela ao centro da cidade.
Nunca foi assim. O nascimento de Maude foi um choque do qual jamais me
recuperei. Quando voltei à consciência, depois de cheirar o éter, segurei-a no colo pela
primeira vez e senti como se estivesse grudada na cama, presa pela boquinha dela no
meu peito. Claro que gostava e gosto dela, mas acabou naquele dia a vida que
imaginei ter. Comecei a sentir uma tristeza que volta cada vez com mais freqüência.
Pelo menos, tive sorte com meu médico, que veio me ver, poucos dias após o parto.
Pedi à enfermeira para sair do quarto e disse a ele que não queria ter mais filhos.
Ele ficou com pena de mim e explicou o ciclo e os sinais aos quais eu devia prestar
atenção, além disso, eu deveria dizer para meu marido ficar longe, nesses períodos.
Esse método não dá certo com todas as mulheres, mas funcionou comigo. Richard
nunca percebeu (não que ele freqüente muito a minha cama). Claro que, assim que me
recuperei do parto, tive de pagar a consulta por um preço simbólico ("para garantir que
entendeu a minha lição", como disse o médico). Fui ao consultório, fiquei de olhos
fechados, mas não foi tão ruim. Imaginei que ele poderia usar aquilo contra mim, me
chantagear para eu fazer outros pagamentos, usando o corpo, mas nunca fez isso e
fiquei agradecida, inclusive pela aula de biologia que me deu. Até chorei um pouco, no
dia em que soube que ele havia falecido. Às vezes, um médico compreensivo pode ser
útil.
Para ser justa com Maude, aquele sentimento de estar presa numa armadilha
apareceu bem antes do nascimento dela. Primeiro, na manhã em que Richard e eu
acabamos de voltar da lua-de-mel e mudamos para nossa casa em Londres. Ele se
despediu de mim com um beijo, fiquei na minha nova sala matinal, que eu quis que
fosse na frente da casa, vendo a rua e não o jardim, para eu ter um olho no mundo lá
fora.
Richard foi tomar o trem para o trabalho. Olhei pela janela ele se j distanciando e
senti a mesma inveja de quando vi meu irmão indo para a escola.
Ele virou a esquina e olhei a sala calma e parada, perto da cidade que é o centro do
mundo,
e comecei a chorar. Eu tinha vinte anos e minha vida havia entrado numa marcha
longa e lenta da qual eu não tinha controle.
Claro que me recuperei. Sabia bem que tinha sorte em muitas coisas: por ter tido
uma educação e um pai liberal, por ter um marido bonito e tão bem situado na vida que
podíamos ter uma cozinheira e uma criada, por ele me incentivar a me aprimorar,
mesmo não podendo me dar o mundo mais vasto que anseio. Naquela manhã,
enxuguei as lágrimas, contente, porque, ao menos, minha sogra não estava lá para me
ver chorando. Pequenas alegrias: agradeço ao meu Deus por elas.
Meu casamento não é mais o que já foi. Hoje, tenho pavor quando Richard anuncia o
réveillon. Não sei se ele sente mesmo prazer com isso ou se faz apenas para me castigar.
Não creio que eu possa ser o que ele quer, voltar a ser a esposa alegre que acha o
mundo um lugar justo e ele, um homem justo.
Se eu pudesse ser assim ou mesmo fingir que sou, poderíamos passar o réveillon em
casa. Mas não posso.
Tentei hoje à noite reprimir os meus sentimentos sombrios e, pelo menos, não
descuidar de Maude. Quando estávamos voltando para casa, fui para perto dela,
segurei-a pela mão e coloquei a mão dela no meu braço. Maude pulou como se eu lhe
tivesse dado uma mordida, depois ficou se sentindo culpada por reagir assim. Meio sem
jeito, ficamos de braço dado por alguns minutos até ela pedir licença e correr para ficar
com a amiga. E uma vergonha confessar, mas senti um alívio.
Maio de 1904

MAUDE COLEMAN
Sei que não devia dizer isso, mas quando a avó vem nos visitar consegue estragar o
nosso dia antes de chegar. A carta chegou ontem: estava tudo ótimo, nós três na mesa
do pátio lendo em voz alta notícias dos jornais. Essa é a hora que mais gosto de estar
com mamãe e papai. Era um dia quente de primavera e as flores no jardim de mamãe
começavam a abrir e ela parecia, por sua vez, muito contente.
Papai estava lendo notinhas do Mail, e mamãe lia no jornal local todos os crimes da
semana: fraude, espancamento de esposa e pequenos furtos, que era a notícia mais
comum. Ela adora a página policial.
- Ouçam isso: "James Smithson compareceu ao tribunal acusado de roubar o gato do
vizinho. Ao se defender, o sr. Smithson disse que o felino tinha levado o pernil de
domingo e ele estava apenas reclamando o que lhe pertencia e, a essa altura, estava
dentro do gato."
Nós três rimos, mas, quando Jenny chegou com a carta, mamãe ficou séria. Leu e
depois perguntou: - O que vou fazer com ela o dia inteiro?
Papai não respondeu: franziu a testa e continuou lendo o jornal.
Foi aí que sugeri uma visita ao columbário. Não sabia bem o que era isso, mas
inauguraram um no cemitério e parecia bastante imponente para a avó.
- Boa idéia, Maude. Se ela quiser - mamãe disse. Papai tirou os olhos do Mail. - vou
estranhar se ela quiser ver algo tão sem graça.
- Ah, não sei, acho interessante. Estranho é a sua opinião, pois gosta tanto de urnas e
jarros funerários.
Quando ouvi a palavra jarro, sabia que eles iam discutir, então corri para o fundo do
jardim para avisar Lavínia que no dia seguinte iríamos ao cemitério.
Papai e o sr. Waterhouse haviam colocado uma escada de cada lado para subirmos
na cerca com mais facilidade, depois que caí e desloquei o pulso.
A avó me assusta. Ela parece que engoliu uma espinha de peixe e ficou entalada e
diz coisas que, se eu dissesse, seria castigada. Hoje, quando chegou, olhou para mim e
disse: Nossa, menina, como você é sem graça. Ninguém diria que é filha de Kitty. Aliás,
nem minha neta. - Ela sempre quer lembrar que foi linda quando jovem.
Subimos para a sala da manhã e a avó disse outra vez que não gosta das cores que
mamãe mandou pintar a sala. Eu gosto. Parecem as cores do bar de operários onde
Jenny às vezes me leva e onde cada mesa tem um pote de mostarda e uma garrafa de
molho escuro. Talvez mamãe tenha visto lá e resolveu usar na sala da manhã,
embora seja difícil pensar em mamãe num bar de operários com toda aquela fumaça,
gordura e homens com a barba por fazer. Mamãe sempre diz que prefere homem com a
pele lisa como o papai.
Mamãe não deu atenção ao que a avó falou. -Jenny, por favor, traga o café - pediu.
- Para mim, não. Só um xícara de água quente e uma fatia de limão - a avó mandou.
Fiquei atrás delas, na janela, olhando pelas venezianas. Lá fora estava poeirento,
ainda mais com todo aquele movimento na rua: cavalos puxando carroças cheias de
galões de leite, carvão, gelo; o menino do padeiro indo de porta em porta com a sua
cesta de pão; meninos entregando cartas; criadas dando recados. Jenny sempre diz que
faz guerra contra a poeira, mas está perdendo a batalha.
Eu gostava de olhar a rua. Quando virei para a sala, a poeira flutuava num raio de
sol e parecia parada no ar.
- O que está espiando aí? - a avó perguntou. - Venha cá para a gente ver você.
Toque alguma melodia no piano.
Olhei para mamãe, horrorizada. Ela sabia que detesto tocar piano.
Mas não ajudou. -Ande, Maude, toque alguma coisa da sua última lição.
Sentei ao piano e limpei as mãos no avental. Sabia que a avó ia gostar de um hino a
Mozart e comecei a tocar Fique comigo, que sei que mamãe detesta. Após alguns
acordes, a avó disse: - Pelo amor de Deus, menina, que coisa horrível. Não sabe tocar
melhor?
Parei e fiquei olhando as teclas do piano. Minhas mãos tremiam. Eu detestava as
visitas da avó.
- Ora, mamãe Coleman, ela tem apenas nove anos e estuda piano há pouco tempo.
- Finalmente, mamãe veio me defender.
- Menina tem de saber essas coisas. Como está ela na costura?
- Não é boa - mamãe respondeu com franqueza. Puxou a mim. Mas lê muito bem.
Está lendo Razão e sensibilidade, de Jane Austen, não é, Maude?
Concordei. - E estou lendo de novo Alice no país das maravilhas. Papai e eu fizemos
o jogo de xadrez que tem no livro.
- Lendo-vovó repetiu a palavra, e seu olhar de espinha de peixe parecia mais
intenso. - Ler não leva uma menina a nada. Só vai enfiar idéias na cabeça dela.
Principalmente bobagens, como esses livros de Alice no País das Maravilhas. Mamãe
se aprumou na cadeira. Ela não pára de ler. Qual é o problema de uma menina pensar,
mamãe Coleman?
- Se pensar, não vai gostar da vida que leva - disse a avó.
- Como você. Eu sempre disse ao meu filho que você não seria feliz. Case com ela, se
quiser, mas ela nunca estará satisfeita. Eu tinha razão: você sempre quer mais alguma
coisa e, apesar de todas as suas idéias, não sabe que coisa é essa.
Mamãe não disse nada, mas fechou as mãos no colo com tanta força que os nós dos
dedos ficaram brancos.
- Eu sei o que você precisa - continuou a avó. Mamãe me olhou e balançou a cabeça
para a avó, o que significava que ia dizer algo que eu não devia ouvir. - Você devia ter
mais filhos - disse a avó, ignorando mamãe. Ela sempre ignora a mamãe.
- O médico disse que não há motivo físico para você não os ter. Vbcê gostaria de ter
um irmão ou uma irmã, não é, Maude?
Olhei para a avó e depois para minha mãe. - Gostaria respondi, para castigar mamãe
por me fazer tocar piano. Fiquei aborrecida na mesma hora, mas, afinal, era verdade.
Às vezes, invejo Lavínia por ter Ivy May, embora ela seja um transtorno quando tem
de ir para todo lado com a gente.
Nessa hora, Jenny apareceu com uma bandeja e ficamos aliviadas de vê-la. Ela
serviu e saiu da sala: dei um jeito de ir junto. Mamãe estava dizendo alguma coisa sobre
a Exposição de Verão na Academia Real. - Pode ter certeza de que vai ser maçante -
dizia a avó quando fechei a porta.
- Maçante - repetiu Jenny quando chegamos na cozinha, balançando a cabeça e
mexendo o nariz. Ela parecia tanto a avó que eu ri até minha barriga doer.
Às vezes, fico pensando por que a avó se preocupa em nos visitar. Ela e mamãe
discordam em quase tudo e a avó não é gentil. A mamãe então fica pondo panos
quentes.
- Minha mãe tem o privilégio da idade - explica papai, sempre que mamãe reclama.
Não gostei de deixar mamãe lá em cima, mas eu ainda estava zangada por ela ter
contado que costuro tão mal quanto toco piano. Fiquei na cozinha e ajudei a sra. Baker a
fazer o almoço. Ia ter língua fria, salada e dedos de moça na sobremesa. Os almoços com
a avó nunca são muito interessantes.
Jenny desceu com a bandeja de café e disse que ouviu a avó dizer que quer visitar o
columbário, "embora seja um lugar para pagãos". Nem esperei ela terminar, corri para
chamar Lavínia.
KITTY COLEMAN
Sinceramente, achei estranho minha sogra ficar tão interessada no columbário.
Acho que ela gosta do lugar pela limpeza e pela economia, mas deixou claro que
jamais seria adequado para cristãos.
Pelo menos, foi bom ter alguma coisa para fazer com ela. Detesto essas visitas,
embora seja mais fácil do que logo que me casei. Levei dez anos para aprender a lidar
com ela, como se aprende a montar um cavalo, com a diferença de que eu nunca soube
equitação: os cavalos são animais grandes e desajeitados.
Mas aprendi a lidar com ela. Os quadros, por exemplo. Ela nos deu de presente de
casamento vários retratos a óleo de membros da família Coleman do século passado.
Todos têm a mesma expressão severa que ela sabe usar tão bem, o que é estranho, já
que não é parente deles e não podia herdar o olhar.
Os retratos são horríveis, mas minha sogra insistiu que ficassem na entrada para
todas as visitas verem e admirarem. Richard não se manifestou, é raro ele discutir com
ela. Seu único ato de rebeldia foi se casar com a filha de um médico de Lincolnshire e
agora passa o resto da vida evitando outras discussões. Assim, os retratos foram
dependurados. Seis meses depois, descobri algumas aquarelas de plantas exatamente
do mesmo tamanho e coloquei-as lá, trocando pelos retratos sempre que minha sogra
vinha. Por sorte, ela não é de chegar de surpresa, avisa um dia antes, dando tempo para
a troca.
Após vários anos assim, fiquei mais segura até me sentir capaz de deixar as
aquarelas no lugar dos retratos. Claro que hoje, quando minha sogra chegou, foi a
primeira coisa que percebeu, antes mesmo de tirar o casaco. - Onde estão os retratos da
família? Por que saíram do lugar? - perguntou.
Por sorte, eu estava preparada. - Ah, mamãe Coleman (ela adora ser chamada assim,
embora não seja minha mãe, claro) -, acho que o vento da rua podia estragá-los e então
dependurei-os no escritório de Richard, onde a presença dos antepassados lhe faz bem.
A reação dela foi típica: - Não sei por que você deixou na entrada tanto tempo.
Eu queria falar, mas, afinal, a casa é sua e longe de mim dizer como você deve fazer
as coisas.
Jenny riu tanto, que quase deixou cair o casaco de minha sogra: ela conhecia bem
toda a história, pois me ajudava a substituir os quadros.
Tive uma vitória sobre a minha sogra antes, isso depois de muitas tardes exaustivas
em que eu acabava precisando tomar uma dose do elixir Beecham e me deitar. A sra.
Baker foi a minha vitória. Escolhi-a como cozinheira por causa do nome, que significa
"padeiro", em inglês. Admito que esse motivo fútil era irresistível e tive de contá-lo para
a minha sogra.
Ela engasgou com o chá, pasma: - Escolheu a cozinheira por causa do nome? Não
seja ridícula! Como é que se administra uma casa assim?
Para minha grande alegria, a sra. Baker (pequena, discreta, parece um feixe de
gravetos) passou a ser valiosa: é econômica, ótima cozinheira, entende na hora certos
detalhes que não preciso explicar. Quando digo que a sra. Coleman vem almoçar, por
exemplo, ela serve bouillon em vez de sopa; ovo pochê em vez de omelete. Ela é
preciosa.
Jenny foi mais difícil de se adaptar, mas prefiro ela à sra. Baker, que tem um olhar
enviesado, parece estar sempre desconfiada. Jenny tem uma bocarra e o rosto largo,
perfeito para risadas. Trabalha com um sorriso como se estivesse prestes a estourar com
um bom chiste. E ri mesmo: lá de cima, ouço a risada dela na cozinha.
Tento não pensar assim, mas acho que eu sou sempre o motivo da graça. com
certeza.
Claro que a minha sogra diz que Jenny não é de confiança. Talvez esteja certa.
Jenny é de uma agitação que parece que um dia vai explodir e todo mundo sofrer as
conseqüências. Mas decidi ficar com ela, quando menos para incomodar a minha sogra.
E Jenny é ótima para Maude: é carinhosa, enquanto a sra. Baker é fria como
mármore. Depois que a babá de Maude saiu, tenho de cuidar dela, e Jenny
é indispensável para dar uma olhada. Ela costuma levar Maude ao cemitério, mania de
Lavínia que Maude infelizmente adotou e no começo não percebi, como devia, Jenny
não reclama: acho que gosta de dar uma parada no serviço. Está sempre muito animada
para ir ao cemitério.
Maude disse que as Waterhouse também gostariam de conhecer o columbário, o que
foi ótimo. Acho que Gertrude Waterhouse é o tipo de mulher que a minha sogra
gostaria de ter por nora (eu nunca fui essa mulher) ou, pelo menos, que combina mais
com ela. No mínimo, elas poderiam falar da admiração que sentem pela finada rainha
Vitória.
O columbário fica numa das abóbadas do círculo do Líbano, onde cavaram uma
espécie de canal em volta de um grande cedro libanês com uma fila dupla de urnas
contendo cinzas de famílias.
Para chegar lá, sobe-se a avenida Egípcia, um caminho lúgubre, cheio de urnas e
sombreado por rododendros com entrada em estilo egípcio e colunas decoradas com
flores de lótus. O lugar é meio teatral, deve ter sido muito elegante lá pela década de
1840, mas hoje dá vontade de rir. O cedro é lindo, com galhos tortos que se espalham
quase na horizontal como um guarda-sol de varetas azuis-esverdeadas. Se, ao fundo, o
céu está azul, como hoje, eleva o espírito.
Eu devia, talvez, ter preparado as meninas para o que iam ver. Maude é calma e
forte, e Ivy May, a caçula dos Waterhouse, de grandes olhos castanhos, não demonstra o
que sente. Mas Lavínia é o tipo de menina que desmaia por qualquer coisa, o que fez
assim que olhou o columbário pela grade de ferro. Não há muito o que ver: é uma
abóbada pequena e alta, cheia de caixas de uns trinta por cinqüenta centímetros. Estão
todas vazias, exceto duas bem no alto, fechadas com placas de pedra, e outra com um
jarro em cima, ainda sem identificação. Como todas as sepulturas desse cemitério
têmjarros, não sei por que Lavínia fez tanto escarcéu.
No fundo, devo confessar que gostei do desmaio de Lavínia, pois até aquela hora
Gertrude Waterhouse e minha sogra estavam se dando muito bem. Não diria que eu
estava com ciúme, mas fiquei meio deslocada entre as duas. Quando Gertrude precisou
socorrer a filha desmaiada e colocar sais no nariz dela, enquanto Ivy May a
abanava com um lenço, minha sogra ficou mais crítica: - O que houve com a
menina? rosnou.
- Ela é um pouco sensível, não pode ver essas coisas - Gertrude desculpou-se.
Minha sogra fez uma expressão desconfiada. As expressões dela costumam ser mais
ameaçadoras do que as palavras.
Enquanto esperávamos Lavínia voltar a si, Maude perguntou por que o lugar se
chamava columbário.
- É a palavra latina para pombal, o lugar onde os pombos ficam.
- Mas aqui não há pombos.
- Não, as casinhas são para colocar urnas, como na nossa sepultura, só que bem
menores.
- Por que eles aqui usam urnas?
- As pessoas costumam ser enterradas em caixões, mas tem gente que prefere ser
queimada. As urnas contêm as cinzas, que são guardadas aqui.
- Pessoas preferem ser queimadas? - Maude repetiu, um pouco chocada.
- A palavra certa é cremada. Não tem nada de errado, é menos assustador do que ser
queimada. Mais rápido, pelo menos. Hoje está ficando mais comum. Acho que eu
gostaria de ser cremada. - Falei por falar, pois nunca havia pensado nisso, mas, ao olhar
uma das urnas, achei interessante, embora eu não fosse querer as minhas cinzas numa
urna. Preferia que fossem espalhadas em algum lugar como adubo para as plantas
crescerem.
- Bobagem! - minha sogra apartou.-E um despropósito uma menina da idade de
Maude falar nesse assunto. Ela não resistiu e continuou: -Além do mais, é anticristão e
ilegal, não sei nem se é permitido construir essas coisas, se não incentiva o crime.
Enquanto falava, um homem desceu a escada ao lado do columbário, vindo da parte
mais alta do Círculo. Parou de repente, quando ouviu o que minha sogra disse.
Inclinando-se, como quem pede licença, ele falou: - Desculpe, senhora. Ouvi seu
comentário e devo dizer que a cremação nunca foi ilegal na Inglaterra. A sociedade
inglesa é que não a aceitou e por isso o costume não se manteve, mas o primeiro
crematório da Inglaterra foi construído em Woking, em 1885.
- Quem é o senhor? E o que tem a ver com o que digo? - minha sogra perguntou.
- Desculpe, senhora - o homem repetiu, inclinando-se outra vez. - Sou o sr. Jackson,
diretor do cemitério. Só queria informá-la e garantir que o columbário não tem nada de
ilegal. A Lei de Cremação, aprovada há dois anos, regula os procedimentos e autoriza a
prática em toda a Grã-Bretanha. O cemitério apenas atende à demanda e reflete a
opinião pública sobre o assunto.
- Jovem, o senhor não está refletindo a minha opinião sobre o assunto - disse minha
sogra, irritada. - E tenho uma sepultura aqui há mais de cinqüenta anos.
Sorri ao pensar no que ela achava que fosse um jovem: o sr. Jackson devia ter no
mínimo quarenta anos e tinha fios grisalhos no bigode farto. Era alto, usava
terno escuro e chapéu coco. Se não tivesse se apresentado, eu acharia que estava no
velório de alguém. Já devia tê-lo visto, mas não me lembrava.
Minha sogra continuou falando: - Não estou dizendo que não deva existir cremação.
Isso pode ser uma opção para os não-cristãos, isto é, hinduístas, judeus, ateus e suicidas,
pessoas que não se incomodam com suas almas. Mas fico chocada de ver tal coisa num
campo santo.
Este columbário devia ter sido construído na área dos dissidentes protestantes, que
não é sagrada. Aqui, ofende ao cristianismo.
- As pessoas com cinzas que estão no columbário eram cristãs, senhora - disse o sr.
Jackson.
- E o que o senhor diz da reunião de corpo e alma no Dia da Ressurreição? Como vai
ser possível, se o corpo foi... - minha sogra não completou a frase, apenas fez um gesto
para o columbário.
- ... queimado até torrar - Maude terminou a frase. Contive o riso.
Em vez de render-se ao ataque, o sr. Jackson pareceu se fortalecer. Ficou bem calmo,
mãos para trás, como se estivessem discutindo uma equação matemática em vez de
uma espinhosa questão de teologia. Maude, eu e as Waterhouse (Lavínia tinha voltado
a si) ficamos olhando para ele, esperando o que ia dizer.
- Certamente, não há diferença entre os restos de um corpo enterrado e os de um
corpo cremado - ele avaliou.
- Há muita diferença! - minha sogra explodiu. - Mas esse argumento é de mau gosto,
sobretudo na presença de nossas meninas, uma das quais acaba de voltar de um
desmaio.
O sr. Jackson olhou em volta como se tivesse acabado de nos perceber. - Aceitem as
minhas desculpas, senhoras ele disse, inclinando-se (outra vez). - Não tive a intenção de
ofender. - Mas não desistiu da discussão, como minha sogra tanto gostaria. - Eu queria
apenas dizer que Deus tudo pode e nada do que façamos com nossos restos vai impedi-
lo, se quiser reunir nossas almas com os nossos corpos.
Fez-se um pequeno silêncio marcado por um leve suspiro de Gertrude Waterhouse.
Mas ela entendeu o que estava por trás das palavras dele, isto é, que minha
sogra podia estar duvidando do poder de Deus. Minha sogra também entendeu e, pela
primeira vez desde que eu a conheci, parecia não encontrar as palavras. Não durou
muito, claro, mas foi bem agradável, até ela finalmente dizer: - Jovem, se Deus quisesse
que cremássemos os nossos mortos, teria dito na Bíblia. Vamos, Maude. Está na hora de
visitarmos nosso túmulo - disse, dando as costas para ele.
Ela puxou uma Maude indecisa; o sr. Jackson olhou para mim e sorri para ele. Ele
inclinou-se pela quarta vez, murmurou alguma coisa sobre ter muito o que fazer e saiu,
com o rosto bem vermelho.
bom, pensei. bom.

LAVÍNIA WATERHOUSE

Eu não queria, desmaiar, não mesmo. Maude acha que faço de propósito, mas não é,
pelo menos dessa vez não foi. É que, quando olhei para o columbário, tive certeza de
ver alguma coisa se mexer. Pensei que fosse o fantasma de uma das pobres almas cujas
cinzas estavam lá, pairando em busca do corpo. Depois, senti alguma coisa tocar na
minha nuca, sabia que era um fantasma e desmaiei.
Mais tarde, quando contei para Maude o que havia acontecido, ela disse que devia
ser a sombra do cedro no muro atrás do columbário. Mas sei o que vi e não era desse
mundo.
Depois, me senti uma tola e ninguém ligou para mim nem para me dar um copo
d'água, estavam todas pasmas com aquele homem falando sobre cremação e tal. Não
consegui entender o que ele disse, era tão entediante.
A avó de Maude tirou-a dali e nossas mães foram atrás, só Ivy May me esperou. Às
vezes, ela é um amorzinho. Levantei do chão e estava limpando o meu vestido
quando ouvi um ruído no alto: era Simon no teto do columbário! Eu tive de gritar, já
não basta fantasma e tudo. Acho que só Ivy May ouviu o meu grito, pois ninguém
voltou para ver o que tinha acontecido.
Quando me recuperei, perguntei: - O que está fazendo aí, menino peralta?
- Estou olhando para você - ele respondeu, insolente.
- Quer dizer que gosta de mim? - perguntei.
- Claro.
- Mais do que de Maude? Sou mais bonita.
- A mãe dela é a mais bonita de todas - ele comparou. Fiz cara feia. Não era bem isso
que eu queria ouvir. -
Venha, Ivy May, temos de achar os outros - falei, estendendo a mão para ela, mas
não veio. Ficou olhando Simon, as mãos para trás como se fiscalizasse alguma coisa.
- Ivy May é meio boca fechada, não? - ele perguntou.
- É, é sim.
- As vezes, abro - ela disse.
- Pois é! - Simon disse, sorrindo para ela que, para minha surpresa, sorriu também.
Foi aí que o homem voltou, o sr. Jackson, aquele que falou na história da queimação.
Virou a esquina rápido, viu Simon e eu, e parou.
- O que faz aqui, Simon? Devia estar ajudando o seu pai. E o que faz com essas
meninas? Não são para o seu bico. Mocinhas, ele está incomodando vocês?
- perguntou o homem.
- Ah, estava me incomodando muito - falei.
- Simon! vou despedir seu pai por causa disso. Vá dizer a ele para não cavar mais.
Chega, rapaz.
Não sei se ele estava fingindo. Simon pulou de pé e ficou olhando para o homem.
Parecia querer dizer alguma coisa, olhou para mim e calou-se. Depois, deu uns
passos para trás e, antes que eu percebesse, saltou por cima de nós e foi do teto do
columbário para o cedro do Líbano. Tão rápido que fiquei lá, de boca aberta. Deve
ter pulado uns três metros.
- Simon! - chamou o homem, de novo. Simon escalou o cedro e foi subindo por um
galho. Quando estava bem no alto, sentou-se no galho, de costas para nós e ficou
balançando as pernas. Estava descalço.
- Mentira dela, ele não estava nos incomodando - disse Ivy May, que costuma falar
exatamente quando não quero. Tive vontade de dar um beliscão nela.
O sr. Jackson levantou as sobrancelhas. - O que ele fez? Não consegui dizer nada e
olhei para Ivy May.
- Ele estava mostrando o caminho para nós - Ivy May disse.
Concordei. - Estávamos perdidas, sabe?
O sr. Jackson suspirou. Mexeu a boca como se estivesse mastigando alguma coisa.
- Posso levar as duas mocinhas para a mãe. Sabem onde ela está?
- No nosso túmulo - respondi.
- E como você se chama?
- Lavínia Ermyntrude Waterhouse.
- Ah, o túmulo do gramado, com o anjo em cima.
- Isso mesmo. Fui eu que escolhi o anjo, sabe?
- Então, venham.
Viramos para acompanhá-lo e dei um bom beliscão em Ivy May, mas não valeu
porque ela não chorou. Acho que percebeu que já havia aberto a boca pelo dia todo.
EDITH COLEMAN
Terminei mais cedo a visita. Pensava ficar para o jantar e ver Richard, mas achei a
ida ao cemitério tão cansativa que, quando voltamos para a casa de meu filho, pedi à
criada para chamar um coche. A criada ficou na porta com uma dose de elixir Beecham
numa bandeja (foi essa a única vez, aliás, que ela conseguiu se adiantar ao desejo de
uma visita). Ela acrescentou tília ao elixir, eu disse que essa erva era absolutamente
inútil e ela riu. Malcriada. Fosse eu a dona da casa, teria lhe mostrado a porta da rua na
hora, mas Kitty parece que nem percebeu.
A visita ao cemitério foi ainda mais aborrecida porque Kitty não me disse quem
eram os Waterhouse, senão eu teria evitado um momento infeliz. (Não sei se ela fez de
propósito.) Ao visitarmos o nosso túmulo, notei o anjo da sepultura ao lado.
Richard já havia comentado que pretende pedir aos donos para substituírem o anjo
por um jarro para combinar com a nossa sepultura. Então, só perguntei a Gertrude
Waterhouse o que ela achava, não notei o nome escrito na lápide.
Tive a surpresa de saber que o anjo era deles, da mesma forma que ela de saber que
não gostamos do anjo. Minha intenção foi apenas dizer a verdade; afinal de contas,
alguém tem de fazer isso e a tarefa desagradável parece que sempre sobra para mim.
Deixei de lado qualquer inibição social e expliquei que todos preferiam que as
sepulturas tivessem jarros combinando. Kitty então foi contra e falou que estava
gostando do anjo, enquanto Gertrude Waterhouse admitia que eles não gostavam nada
do nosso jarro. (Essa é boa!) Foi então que aquela inconveniente menina dos
Waterhouse veio dizer que, se as sepulturas tivessem jarros iguais, todo mundo ia
pensar que as duas famílias eram parentes. Devo dizer que isso me fez parar e pensar.
Não creio que ligar os Waterhouse aos Coleman seja bom, para dizer o mínimo.
Não aprovo a influência que a filha deles tem sobre a minha neta: ela não tem senso
de harmonia e pode estragar o de Maude. Minha neta podia ter uma amiga melhor.
Quanto ao problema do anjo e do jarro, lavo as minhas mãos. Tentei, mas compete
aos homens resolver enquanto nós, mulheres, agüentamos as conseqüências. E pouco
provável que Richard faça alguma coisa agora, já que o anjo foi colocado há três anos e
ele e Albert Waterhouse são bons amigos no time de críquete.
Foi tudo muito estranho e fiquei furiosa com Kitty por deixar isso acontecer.
Ela gosta de me deixar em situações delicadas. Ela nunca foi uma pessoa fácil e eu
estava disposta a ter paciência quando Kitty se casou com o meu filho, pois sabia que
ele estava feliz. Mas, nesses últimos anos, eles não estão bem; senão, teriam mais filhos e
Richard não pareceria tão triste. Dou umas indiretas para Kitty, digo que as coisas
poderiam ser diferentes, mas não adianta: ela não alegra mais o Richard e é pouco
provável que me faça ser avó mais uma vez.
Para melhorar a situação com Gertrude Waterhouse, mudei de assunto: falei da
conservação do cemitério, achando que todos iriam concordar. Quando meu marido e
eu casamos, ele me levou ao cemitério para mostrar o túmulo da família Coleman e tive
mais certeza ainda de ter escolhido o marido certo. O cemitério parecia um lugar sólido,
seguro e limpo: os muros eram altos, os canteiros e alamedas bem cuidados; a equipe de
empregados, discreta e profissional. Não me interessei pelo tão decantado projeto
paisagístico do local, nem pelos exageros da avenida Egípcia e do círculo do Líbano,
mas admito que deram fama ao cemitério como local preferido para sepultamento de
pessoas da nossa classe.
Longe de mim reclamar.
Mas os gostos estão mudando. Hoje, vi tulipas mortas nos canteiros. Há trinta anos,
isso jamais ocorreria, as flores eram trocadas assim que abriam. E não se trata só da
administração do cemitério. Alguns donos de túmulos estão plantando flores do campo
nos túmulos! Daqui a pouco, trazem uma vaca para comer a grama.
Para mostrar como caiu o nível do cemitério, mostrei algumas heras num túmulo ao
lado (não era o dos Waterhouse) que estavam subindo pela lateral da nossa sepultura.
Se não tomarem uma providência, em breve, a hera vai cobrir o jarro e escondê-lo.
Kitty quis arrancá-las, mas eu a impedi, dizendo que isso era da competência do
cemitério. Eles deviam cuidar para que a planta dos outros não crescesse na nossa
propriedade. Insisti para ela deixar a hera como prova e que o próprio diretor fosse
comunicado do problema.
Para minha surpresa, Kitty foi na hora procurar o diretor, deixando Gertrude
Waterhouse e eu numa conversa esquisita até ela voltar: ela demorou um bocado de
tempo, realmente. Ela deve ter procurado no cemitério todo.
Para ser sincera, Gertrude Waterhouse é simpática. Só precisa ter mais tutano.
Devia pegar um pouco da minha nora, que tem demais.
SIMON FIELD
Gosto de subir em árvore. Do alto se vê todo o cemitério e, mais abaixo, a cidade.
Fico sentado tranqüilo, sem ninguém tomar conhecimento. Quando aparece um desses
corvos negros e grandes e pousa num galho perto, não atiro nada nele, nem grito para
voar: deixo ele ficar sentado comigo.
Fico pouco tempo. Quando as meninas somem de vista, desço logo para procurá-las.
Eu estava correndo pela alameda principal quando vi o sr. Jackson vindo pelo outro
lado: tive de me esconder atrás de um túmulo.
Ele falava com um dos jardineiros: - Quem é aquela mulher com as meninas? Aquela
de vestido verde-maçã?
- É a sra. Coleman, patrão. Sabe aquele túmulo perto da área dos pobres, com o jarro
grande? É deles.
- Claro, eu sei. Do jarro e do anjo que estão perto demais.
- Isso mesmo. Ela é bonitona, não? -Veja lá o que fala.
O jardineiro resmungou. - Certo, patrão. Desculpe.
Os dois passaram e eu fui até os túmulos. Tive de me esconder dos jardineiros que
estavam trabalhando no gramado. Nessa parte do cemitério é tudo limpo, a
grama aparada, as ervas daninhas arrancadas, a terra das alamedas afofada. Há lugares
para os quais eles não ligam muito, mas no gramado alguém está sempre fazendo
alguma coisa.
O sr. Jackson diz que o cemitério tem que ficar bonito para os visitantes, senão eles
não compram jazigos e aí não vai ter dinheiro para nos pagar. Meu pai diz que isso é
besteira, pois as pessoas morrem todo dia, precisam ser enterradas e vão pagar com ou
sem grama cortada. Ele diz também que o que interessa é a cova ser bem cavada.
Me escondo atrás do túmulo do anjo. A sepultura de Livy. Ainda não desenhei nela
a caveira com os dois ossos, meus dedos cocam só de ver a lápide tão limpa.
Cumpri a promessa que fiz a ela.
As senhoras estão em frente dos dois túmulos, conversando. Livy e Maude estão
sentadas na grama, fazendo correntes de margaridinhas. De vez em quando, dou uma
olhada, mas elas não me vêem. Só Ivy May me encara com seus grandes olhos verdes-
acastanhados como um gato que eriça o pêlo enquanto espera o que você vai fazer: dar
um chute nele ou fazer um carinho. Ela não diz nada e faço sinal para se calar.
Pssssiu! Ela salvou o emprego de nosso pai.
A senhora do vestido verde diz: -Vou achar o sr. Jackson, o diretor. Ele arruma
alguém para cuidar das coisas aqui.
- Não vai adiantar - avisa a senhora velha. - As coisas mudaram, a atitude mudou.
Os jovens de hoje não respeitam os mortos.
- Mas o diretor pode mandar alguém arrancar a hera, já que a senhora não deixa eu
arrancar - diz a dama de verde. Quando anda, ela chuta as saias do vestido.
Gosto de ver ela fazer isso. É como se ela quisesse arrancar as saias. - vou encontrar
o diretor. Volto já. - Ela sobe a alameda e passo de um túmulo para outro,
seguindo atrás.
Gostaria de dizer a ela onde o sr. Jackson está, mas não sei. Hoje, abrem três covas e
tem quatro enterros. Tem uma coluna sendo colocada perto da araucária, e umas
sepulturas novas afundaram, precisam de mais cascalho. O sr. Jackson pode estar em
qualquer desses lugares, supervisionando os homens. Ou pode estar tomando alguma
coisa no alojamento ou vendendo uma sepultura para alguém. Mas aquela senhora não
sabe.
Na alameda principal, ela quase foi atropelada por uma parelha de cavalos puxando
uma laje de granito. Deu um pulo para trás, mas não berrou, como muitas damas
fariam.
Ficou lá, pálida, e precisei me esconder atrás de um arbusto: ela pegou um lenço,
passou na testa e no pescoço.
Perto da avenida Egípcia, outra dupla de coveiros passa por ela com pás nos
ombros. São homens rudes, nosso pai e eu mantemos distância deles. Mas quando ela
pára e pergunta alguma coisa, os dois baixam o olhar como se estivessem encantados.
Um aponta para cima e à direita, ela agradece e anda na direção que ele indica.
Depois que ela sai, os dois se olham, um diz alguma coisa que não consigo ouvir e
riem.
Eles não me vêem seguindo ela. Salto de um túmulo a outro e me escondo atrás das
lápides. Meus pés pisam no granito morno, pois a pedra tomou muito sol. Às
vezes, paro um minuto para sentir esse calor, depois corro para alcançar ela. Por trás, a
dama parece uma ampulheta. Aqui no cemitério, temos sepulturas com ampulhetas de
asas: isso quer dizer que o tempo voa, diz o nosso pai. Achamos que temos muito
tempo aqui nesse mundo, mas não temos.
Ela dobra à direita, na altura da estátua do cavalo, na direção da área dos dissidentes
e lembro que estão podando galhos de castanhas-da-índia. Dobramos uma esquina e lá
está o sr. Jackson com quatro jardineiros: dois no chão e dois em cima de um grande
castanheiro. Um deles monta num galho e firma bem com as pernas. Um jardineiro no
chão diz que o galho parece uma mulher e todos riem, menos o sr. Jackson e a senhora,
que ninguém sabia que estavam lá. Ela achou graça.
Os homens prenderam o galho com cordas e os dois de cima usam um serrote de
duas pontas. Param, enxugam o suor do rosto e soltam o serrote quando ele prende no
galho.
Alguns homens vêem a senhora do vestido verde. Eles se cutucam, mas não avisam
ao sr. Jackson. Ela parece mais feliz olhando os homens na árvore do que quando estava
com as outras duas damas. Tem olhos negros que parecem manchados de carvão e as
pontas do cabelo dela escapam das presilhas.
De repente, ouve-se um estalo, e o galho parte no ponto em que estavam serrando.
A senhora grita, o sr. Jackson olha para trás e a vê. Os homens descem o galho com
as cordas e começam a serrar em pedaços pequenos.
O sr. Jackson dirige-se à senhora. Tem o rosto rubro como se estivesse serrando o
galho em vez de mandando nos homens.
- Desculpe, sra. Coleman, não vi a senhora. Está aqui faz tempo?
- O bastante para ouvir alguém comparar um galho a uma mulher.
O sr. Jackson engasga e tosse como se um gole de cerveja tivesse entrado pelo buraco
errado.
A sra. Coleman ri. - Não tem problema, foi engraçado.
O sr. Jackson não sabe o que dizer. Por sorte, um dos homens na árvore grita: - Mais
algum galho para podar aqui, patrão?
- Não, leve esse para perto da fogueira. E acabou-se. -Vocês fazem fogueiras aqui? - a
sra. Coleman pergunta.
- À noite, sim, para queimar galhos, folhas e restos. Senhora, em que posso servi-la?
- Queria agradecer por conversar com minha sogra sobre cremação. Foi muito
esclarecedor, embora ela tenha ficado surpresa por ter uma resposta tão firme.
- Quem tem opinião firme deve ser tratado com firmeza.
- Quem disse essa frase?
- Eu mesmo.
- Ah!
Os dois se calam um minuto. Depois, ela diz: - Acho que gostaria de ser cremada, já
sei que para Deus a urna é o mesmo que uma sepultura.
- Deve refletir com calma e decidir, senhora. Não é uma coisa para se resolver de
forma impensada.
- Não sei, às vezes parece que não terá a menor importância o que eu fizer ou deixar
de fazer ou o que me fizerem.
Ele olhou-a surpreso, como se ela tivesse dito um palavrão. Apareceu então um dos
porteiros correndo pela alameda, dizendo: - Patrão, o cortejo de Anderson está no final
da alameda do Cisne.
- Já? - perguntou o sr. Jackson, tirando o relógio do bolso. - Nossa, estão adiantados.
Mande um menino avisar aos coveiros para ficarem lá. Já vou indo.
- Certo, patrão. - O homem volta correndo pela alameda.
- Aqui é sempre assim, movimentado? - pergunta a sra. Coleman - Tanto movimento
não estimula a meditação. Embora aqui na área dos dissidentes pareça um pouco mais
calmo.
- Cemitério é um negócio como outro qualquer - explica o sr. Jackson. - As pessoas
costumam esquecer isso. Hoje, está até calmo quanto aos enterros, mas só podemos
garantir paz e tranqüilidade aos domingos. Nesse trabalho, é impossível prever quando
as pessoas vão morrer. Devemos estar preparados para agir rápido, nada pode ser
planejado. Houve um dia em que tivemos vinte enterros. Em outros, não temos
nenhum. Senhora, deseja mais alguma coisa? Preciso ir.
- Ah, meu problema parece tão trivial, comparado com tudo isso. - com as mãos, ela
faz um gesto mostrando em redor.
Vou ter que perguntar ao nosso pai o que quer dizer trivial.
- Nada aqui é trivial. Do que a senhora está falando?
- Do nosso túmulo: a hera da sepultura ao lado está subindo pela nossa. Acho que
compete a nós tirá-la, mas minha sogra ficou irritada, diz que o cemitério devia
reclamar com os donos da sepultura vizinha.
Agora entendo o que quer dizer trivial.
O sr. Jackson dá um sorriso especial para visitantes, como se estivesse com dor nas
costas e estivesse tentando disfarçar. A sra. Coleman parece sem graça.
-Vou mandar alguém tirar já essa hera - ele garante. E falarei com os donos do outro
túmulo. - Olha em volta como se procurasse um menino para mandar, então eu saio de
trás da lápide. É perigoso, porque sei que ele ainda está zangado comigo por andar com
Livy e Ivy May, em vez de trabalhar. Mas quero que a sra. Coleman me veja.
- Eu tiro, senhor - garanti.
O sr. Jackson parece estranhar. - Simon, o que está fazendo aqui? Incomodou a sra.
Coleman?
- Não sei o que é incomodar, senhor, mas não fiz isso. Estou me oferecendo para
arrancar a hera.
O sr. Jackson ia dizer alguma coisa, mas a sra. Coleman o interrompe. - Obrigada,
Simon. Você é muito gentil. - E sorri para mim. Nenhuma dama jamais disse uma coisa
tão linda para mim, nem sorriu. Não consigo me mexer, olhando o sorriso dela.
- Vai, vai, menino - diz o sr. Jackson baixinho.
Sorrio para ela. E vou.
Janeiro de 1905

JENNYWHITBY
Foi uma grande amolação, não tem dúvida. Nós dois entramos numa rotina. Estava
todo mundo feliz: a madame, as mininas, ele e eu (sempre fico no fim das listas). Uma
vez por semana, levo as mininas lá na colina. Eu me divirto, elas também e a patroa não
tem outra coisa a fazer senão ficar em casa e ler.
Mas aí ela meteu na cabeça de levar as mininas ao cemitério. No verão, passou a ir
duas a três vezes por semana. Para as mininas é um céu, mas para mim, o inferno.
Aí, ela passou a me mandar de novo e pensei: voltou tudo. Mas agora é inverno, as
mininas não vão muito e quando vão, ela quer levar. Às vezes, ela leva até quando elas
não estão com tanta vontade. Lá é frio, tem muita pedra. Elas precisam correr para
esquentar. Eu sei como me esquentar quando vou lá.
Por duas vezes, convenci a patroa de que eu devia ir. No mais, tenho de dar uma
fugida à tarde: à noite, ele não fica lá. Os jardineiros trabalham menos que as criadas,
sempre digo isso para ele.
- E ganhamos o dobro. Você tem uma vida de cão, não? - ele disse.
Perguntei a ele por que a minha patroa ia tanto ao cemitério.
- Talvez pelo mesmo motivo que você - respondeu ele.
- Nunca! com quem ela conversa, com os coveiros? eu ri.
- Com o diretor, ora - ele disse.
Eu ri de novo, mas ele estava falando sério e disse que todos viram os dois juntos,
falando na área dos dissidentes.
- Só falando?
- É, como nós. O caso é que nós dois falamos demais. Agora fecha a boca e abre as
pernas.
Sujeito desbocado, esse.
Outubro de 1905

GERTRUDE WATERHOUSE
Quero fazer uma alteração nas minhas tardes amigas. Sempre recebo na sala da
frente, uso o serviço de chá de rosas e Elizabeth faz um bolo que, esta semana, será de
limão.
Às vezes, Albert pergunta se não devíamos usar a sala da frente para as refeições,
em vez da sala dos fundos, que fica um pouco cheia quando aumentamos a mesa.
Albert tem razão em muitas coisas, mas, quando se trata de administrar uma casa, é
melhor eu cuidar. Gosto de ter a sala "melhor" para mostrar às visitas, mesmo que só
seja usada uma ou duas vezes por semana. Assim, insisti para deixarmos as salas como
estão, embora atrapalhe um pouco dobrar a mesa três vezes ao dia, no café, almoço e
ceia.
É bobagem e jamais contarei para Albert, mas prefiro as tardes amigas na sala da
frente para não ser vista da casa dos Coleman. É bobagem porque, segundo Livy (que
esteve em algumas tardes com Maude; eu nunca fui, claro), Kitty Coleman recebe na
sala da manhã, que fica no outro lado da casa, abrindo para a rua e não para a nossa
casa. Mesmo se a sala fosse do lado de cá, Kitty mal teria tempo para nos olhar da
janela. Apesar disso, não gosto de pensar nela nas minhas costas, avaliando o que faço.
Eu ficaria nervosa e não daria atenção às minhas visitas.
Sempre fico um pouco nervosa quando Lavínia vai às tardes amigas, de Kitty
Coleman, o que, felizmente, não é muito freqüente. É mais fácil as duas meninas virem
para cá, depois da escola. Maude diz que aqui é muito mais aconchegante, o que tomei
como um elogio e não como uma insinuação de pouco espaço. De toda forma, resolvi
considerar assim. Ela é um doce de menina e tento vê-la como uma pessoa isolada da
mãe.
Fico muito satisfeita porque, apesar de todo o espaço e elegância da casa dos
Coleman, as meninas preferem ficar aqui. Livy diz que na casa deles é muito frio e
venta muito, exceto na cozinha, e tem medo de pegar um resfriado, embora, afora os
desmaios, tenha uma saúde forte e ótimo apetite. Ela também diz que prefere nossos
confortáveis sofás e cadeiras escuros e as cortinas de veludo em vez dos móveis de
junco e das venezianas que Kitty Coleman aprecia.
Enquanto as meninas não chegam da escola, Ivy May me ajuda a receber nas tardes
amigas, passando o prato de bolo e levando o bule para Elizabeth encher de chá na
cozinha. As senhoras que comparecem são vizinhas da rua, conhecidas da igreja e
amigas fiéis que vêm de Islington para me ver, as queridinhas. Todas sorriem para Ivy
May, benza Deus, embora às vezes fiquem intrigadas com ela.
Ivy May é realmente um bibelô. No começo, eu me preocupava porque ela não dizia
uma palavra, mas, com o tempo, me acostumei e agora gosto ainda mais dela por isso.
O silêncio de Ivy May pode ser um grande conforto depois dos dramas e das
lágrimas de Livy. E Ivy May não tem qualquer dificuldade para aprender: lê e escreve
muito bem para uma menina de sete anos, além de conhecer os números. Ano que vem
vou mandá-la para a escola com Livy e Maude e aí talvez ela encontre algum problema,
pois os professores podem não ser tão pacientes quanto nós.
Uma vez, perguntei por que ela fala tão pouco e o bibelô respondeu; - Quando falo,
você escuta. - É incrível que alguém tão jovem tenha concluído isso sozinha. Eu podia
ter aprendido a lição, mas continuo falando sem parar, por causa dos nervos e para
preencher o silêncio. Às vezes, na frente de Kitty Coleman, tenho vontade de entrar
num buraco do chão, pois falo como um mico de circo. Kitty Coleman apenas sorri,
como se estivesse muito amofinada, mas a boa educação manda não demonstrar tédio.
Quando as meninas chegam da escola, Livy assume a tarefa de passar o prato de
bolo para as senhoras, e a pequena Ivy May senta quietinha no canto. Às vezes, fico com
pena. Mas gosto de ter as meninas em volta e tento fazer tudo o melhor possível. Pelo
menos aqui em casa, dou muita atenção a elas. Não sei o que Kitty Coleman faz quando
minhas filhas estão com Maude. Segundo Ivy, ela não cuida muito delas.
As meninas gostam de vir aqui e mais ainda de ir ao cemitério. Tive de limitar as
idas de Livy, senão iria todos os dias. Acho que ela mente para mim, pois uma vizinha
disse que um dia teve a impressão de ver Livy e Maude correndo entre as sepulturas
com um menino, quando devia estar brincando na casa de Maude.
Perguntei, Livy negou e disse que a vizinha estava precisando de óculos novos! Não
me convenci e Livy começou a chorar porque eu achava que ela era capaz de mentir.
Fico sem saber o que pensar.
Quis dar uma palavrinha com Kitty Coleman sobre a freqüência das visitas ao
cemitério, já que é ela quem costuma levar as meninas. Foi uma conversa estranha! Ela
faz com que eu me sinta uma tola. Quando falei, delicada, que talvez não fosse saudável
irem tanto ao cemitério, Kitty Coleman disse: -Ah, as meninas tomam bastante ar fresco,
o que é bem saudável. Mas, se querem ir lá, a culpa é da rainha Vitória, que elevou os
enterros a tais ridículas alturas e fez as meninas românticas ficarem embevecidas com
cemitérios.
Bem! Fiquei mortificada e um pouco zangada também. Além de fazer pouco de
minha Livy, Kitty Coleman sabe como continuo estimando a finada rainha, que Deus
abençoe sua alma. Não se deve criticar os mortos. Falei isso para Kitty Coleman, fui
bem sincera.
Ela apenas sorriu e disse: - Se não podemos criticá-la agora, quando poderemos?
Quando a rainha era viva, provavelmente seríamos acusadas de traição.
- A monarquia está acima de qualquer crítica - reagi, com toda a minha dignidade. -
São nossos soberanos e devemos considerá-los, ou isso se refletirá mal sobre nós.
Então, pedi licença e saí, ainda irritada com ela. Só depois lembrei que não tinha
falado direito em reduzir as visitas de Livy ao cemitério. Essa minha filha é impossível,
nunca vou entendê-la. Para ser sincera, nem quero.
Fevereiro de 1906

MAUDE COLEMAN
Eu conheço cada centímetro do cemitério. Conheço melhor que o jardim da minha
casa. Mamãe leva a a gente lá sempre, até mesmo depois da escola, no inverno, quando
já está escurecendo e nós não pedimos.
Claro que é muito divertido brincar lá. Primeiro, chamamos Simon e, se ele não está
ocupado, fica conosco um pouco. Brincamos de esconde-esconde, visitamos todos
os anjos (tem dois novos) e, às vezes, sentamos em nossas sepulturas e Lavínia conta
histórias de pessoas que estão enterradas no cemitério. Ela tem um velho guia que lê
para nós, contando da menina que teve o vestido queimado, do tenente-coronel morto
na Guerra dos Bôeres descrito como "corajoso e gentil de coração" ou do homem que
morreu num desastre de trem. Ou então ela inventa histórias que eu acho bem bobas,
mas Simon gosta. Não tenho a imaginação dela. Me interesso mais pelas plantas, pelas
árvores ou pelo tipo de pedra usada nos monumentos aos mortos ou, se Ivy May quer,
vejo como ela está em matéria de leitura em voz alta, testando com as palavras escritas
nas sepulturas.
Não sei o que mamãe faz enquanto brincamos. Ela fica andando e mal a vejo até que
aparece à nossa procura, na hora de ir. Ela diz que o ar puro é bom para nós e acho que
está certa, mas às vezes sinto frio e, confesso, estou um pouco cansada de ir lá.
É engraçado lembrar como eu ficava tão nervosa de entrar no cemitério quando não me
deixavam e agora que vou todo dia não é mais um lugar tão especial.
KITTY COLEMAN
Ele não vai me possuir. Estou louca por ele, mas não vai me possuir.
Durante quase dois anos visitei o cemitério só para vê-lo. Mesmo assim, ele não vai
me possuir.
Primeiro, tomei cuidado: eu o procurava, mas não queria dar essa impressão.
Sempre fui acompanhada das meninas, elas iam brincar e eu fazia de conta que
estava atrás delas, enquanto, na verdade, procurava era por ele. Percorria as alamedas
para cima e para baixo, parecendo encantada com os túmulos em estilo romano
comparados com simples cruzes para indicar sepulturas; obeliscos em pedra de
Portland em relação ao granito; lápides com nomes gravados ou em letras de ferro. Não
sei o que os empregados de lá pensam de mim, mas se acostumaram com a minha
presença e sempre me cumprimentam com respeito.
Aprendi muitas coisas sobre o cemitério que eu não sabia. Sei onde jogam a terra
que tiram das covas, onde guardam a madeira para escorar as sepulturas fundas e os
tapetes verdes que estendem em volta das covas recém-abertas para parecer grama. Sei
quais são os coveiros que cantam enquanto trabalham e onde escondem as garrafas de
bebida. Vi os livros de registros e os mapas detalhados, cada love numerado para
cadastrar as sepulturas. Me acostumei com os cavalos que puxam pedras pelo cemitério.
Aprendi a ver o lugar como uma indústria, mais do que um local para contemplação
espiritual.
Ele administra tudo aquilo como se fosse um imaculado navio de passageiros
cruzando o oceano. Se preciso, pode ser duro e grosseiro com a equipe, pois alguns
operários também são muito rudes. Mas acho que é justo e respeita o trabalho bem-
feito.
Acima de tudo, ele é gentil comigo sem fazer com que me sinta inferior.
Conversamos sobre todos os assuntos: o mundo e como ele funciona; Deus e como
Ele trabalha. Pergunta minha opinião e não ri delas, ao contrário, leva-as em
consideração.
Ele é como sempre esperei que Richard se tornasse. Cometi o erro de pensar que
meu marido mudaria depois de casado: não, ele ficou ainda mais fechado.
John Jackson não é um homem bonito. Não é rico, embora também não seja pobre.
Não pertence a uma boa família. Não freqüenta jantares, não vai ao teatro nem a
vernissages. Não é um homem fino, embora seja culto: quando mostrou a sepultura de
Michael Faraday, na área dos dissidentes, explicou as experiências dele em campos
magnéticos muito melhor do que Richard ou até meu irmão teria explicado.
É um homem honesto, religioso, de princípios, de moral. Foram essas últimas
qualidades que me conquistaram.
Não estou acostumada a ser rejeitada. Não que eu tenha me oferecido para algum
homem antes, mas gosto de flertar e espero uma reação, senão não tentaria. Mas ele não
flerta. No começo, quando tentei flertar com ele, ele disse que não gostava de mulheres
coquetes e que só queria sinceridade; então, parei. E assim estamos há vários meses,
com encontros sempre interrompidos pelos deveres dele no cemitério. Consegui contar
para ele o pouco que tenho a dizer da minha vidinha: a falta que sinto de meus falecidos
pais e irmão; a minha tristeza desesperada; a busca impossível por um lugar perto do
fogo que não seja nem quente nem frio demais. Deixei de contar poucas coisas: que sei
evitar um bebê; que minha cama é solitária; do réveillon a que Richard insiste em
comparecer. John ficaria aborrecido com este último fato. Quanto a mim, não me
revolto, estou resignada.
Finalmente, no outono, após um verão que julguei ser de galantaria, disse a ele com
todas as palavras o que eu estava pronta a fazer e ele disse não.
Então, passei um tempo sem visitar o cemitério: se as meninas queriam ir, eu
mandava Jenny levá-las. Mas não consegui ficar longe. E, assim, nesse último ano
voltamos a nos encontrar, não com tanta freqüência e sem grandes expectativas. Foi
difícil, mas John manteve seus princípios e tive de aceitar que eles são mais importantes
do que eu.
Ele me trata com carinho, em nossos encontros. Hoje, disse que sempre quis uma
irmã e agora tem. Eu não disse que já tive um irmão e que não quero outro.

Abril de 1906

LAVÍNIA WATERHOUSE

É tão bom ter o velório e o enterro de uma pessoa para ir vestida conforme manda o
figurino. E agora é ainda melhor, pois, aos onze anos, tenho idade para usar as roupas
apropriadas, de luto. A querida tiazinha ia ficar bem emocionada de me ver assim e
papai ficou com lágrimas nos olhos, eu estava "tão parecida com a minha querida irmã",
como ele disse.
Li com atenção os guias de etiqueta The Queen e o Cassdl's para não cometer erros e
escrevi meu próprio manual para ajudar outras meninas na mesma situação, com
dúvidas sobre o comportamento certo num enterro. Pedi a Maude para me ajudar, mas
ela não se interessou. Às vezes, ela começa a falar em constelações, em planetas, nas
pedras que achou em Heath e nas plantas do jardim da mãe, chego a ter vontade de
gritar.
Por isso, tive de fazer o manual sozinha. Acho que ficou muito bom, pelo menos foi
o que mamãe disse. Escrevi com caligrafia bem caprichada, em papel de borda preta e
pedi a I May para fazer um anjo na capa. Ela desenha muito bem e o livro ficou lindo.
Vou copiar o texto a seguir para tê-lo sempre.

Guia Completo da Etiqueta do Luto, pela Senhorita Lavínia Ermyntrude


Waterhouse É muito triste quando alguém morre. Marcamos o fato com o luto. Usamos
roupas pretas e jóias pretas especiais, além de papéis especiais para cartas, e não
comparecemos a festas nem concertos.
O luto tem duração diferente, conforme o grau de parentesco com o ente querido
que faleceu.
A viúva usa luto por mais tempo porque é a pessoa mais triste. Que coisa horrível é
perder um marido! Ela fica de luto por dois anos: um ano e seis meses de luto fechado e
seis meses de luto aliviado, ou seja, menos rigoroso. Algumas senhoras ficam enlutadas
por mais tempo. Nossa finada rainha Vitória guardou luto por seu marido Albert pelo
resto da vida: quarenta anos!
Que desolação para uma mãe perder um filho ou para um filho perder a mãe. O luto
para eles é de um ano.
Para irmãos e irmãs: seis meses Para avós: seis meses Para tios e tias: dois meses Tios
e tias-avós: seis semanas Primos em primeiro grau: quatro semanas Primos em segundo
grau: três semanas

Vestuário:

É muito importante usar as roupas adequadas. Elas devem ser novas e são
queimadas após terminar o luto, pois dão azar se ficarem na casa.
A casa Jay, na Regent Street, é onde todas as boas famílias londrinas compram seus
trajes de luto.
As senhoras usam vestidos da melhor seda paramatta, mista de algodão ou lã,
conforme a época do ano, e debruada de crepe, quando se trata de luto fechado por
marido, pais ou filhos. Para avós, irmãos e irmãs, as senhoras usam seda preta, simples,
debruada de crepe. Todas as demais pessoas usam preto sem debrum de crepe.
As senhoras usam luvas pretas e lencinhos brancos com barra preta.
Após um tempo, elas podem tirar o crepe. Isso se chama luto aliviado.
Depois, vem o meio-luto. As senhoras usam cinza, creme ou roxo ou então listras de
preto e branco sempre com luvas cinza, de cano curto ou meio cano.

Jóias:

No luto fechado, as senhoras podem usar broches e brincos negros. Os broches


podem ser enfeitados com uma mecha de cabelo do ente querido. No meio-luto, as
senhoras podem usar alguma coisa em ouro, prata, pérolas e diamantes.
Papéis de carta e cartões de visita O papel deve ter uma barra preta. E importante
que seja bem larga para honrar o ente querido, mas não tão larga que pareça vulgar.
Cavalheiros Os cavalheiros usam os trajes que costumam vestir para trabalhar, mas
com tarja preta nos chapéus, além de gravatas e luvas pretas. Não usam jóias de
nenhuma espécie.
Crianças com menos de dez anos As crianças podem usar luto se quiserem, sendo
mais comum usarem vestidos brancos ou creme, malva ou cinza. Podem usar luvas
curtas. Crianças acima de dez anos devem usar luto fechado.
MAUDE COLEMAN
Hoje, quando fomos ao cemitério, estavam abrindo o jazigo dos Waterhouse. Eu
sabia que o enterro da tia de Lavínia seria no dia seguinte, mas pensei que fossem abrir
mais tarde. Foi estranho ver Simon com o pai mexendo numa das nossas sepulturas e
não na dos outros. Sempre pensei que nossos túmulos fossem sólidos e indestrutíveis,
agora sei que se pode pegar uma alavanca, abrir e até derrubar um anjo no meio do
serviço.
Lavínia segurou meu braço quando viu os homens em volta da sepultura, achei que
ela ia fazer uma cena. Devo confessar que estou bem enfastiada com ela. Desde que a tia
morreu, só fala em roupas pretas e quando vai poder usar jóias de novo, embora não
possa usar jóia nenhuma com aquela idade! As regras de luto são muito rígidas, pelo
que ela diz. Acho que eu não ia seguir muito direito essas coisas. Ia desrespeitar o
tempo todo, sem nem perceber.
De repente, mamãe gritou - John! - e nunca ouvi ela falar tão alto. Demos um pulo
de susto, a seguir o pai de Simon bateu com a pá no sr. Jackson e ele quase voou, e
depois o anjo dos Waterhouse caiu no chão.
Foi tudo bem estranho. Durante muito tempo, não consegui ligar as coisas que vi.
Não entendi por que o pai de Simon empurrou o sr. Jackson com a pá e por que este,
muito pálido, agradeceu. Não entendi por que o anjo caiu, nem por que mamãe sabia o
nome de batismo do sr. Jackson.
Quando vi que a cabeça do anjo tinha se separado do corpo, fiz força para não rir.
Lavínia desmaiou, claro. Simon saiu correndo com a cabeça embaixo do braço e aí eu
dei risada, lembrei-me da poesia da personagem Isabellla enfiando a cabeça do amante
no pote de manjericão.
Por sorte, Lavínia não percebeu que eu ri: voltou do desmaio e dedicou-se a passar
mal. Mamãe fez uma incrível agitação, amparou-a e deu um lencinho.
Lavínia olhou para o lencinho e disse: - Ah, esse não, tenho que usar o meu lencinho
de luto.
- Não tem importância, não tem a menor importância - disse mamãe.
- A senhora tem certeza?
- Deus não vai fazer você cair morta só porque usou um lenço comum.
- O problema não é com Deus, é respeitar os mortos. Minha tiazinha ficaria magoada
se visse que não penso nela em tudo que faço - explicou Lavínia.
-Acho que a sua tiazinha não ia querer que você pensasse nela ao limpar a boca
depois de vomitar.
Ivy May riu e Lavínia olhou para ela, séria. Mamãe continuou o que estava dizendo:
- As coisas estão mudando, ninguém espera mais que você, seu pai ou sua mãe fiquem
de luto fechado. Pode ser que você não se lembre, mas o rei Edward ficou de luto pela
mãe apenas três meses.
- Eu me lembro. Mas minha mãe ficou por mais tempo que qualquer pessoa. E eu
teria vergonha de não usar luto por minha tiazinha.
- Posso ajudar, madame? - o sr. Jackson perguntou.
- Pode chamar um coche para nós, por favor - mandou mamãe, sem olhar para ele.
O sr. Jackson foi chamar o coche e, quando voltou, Lavínia estava de pé, mas ainda
pálida e transtornada.
-Vamos levá-la para o pátio? - o sr. Jackson perguntou.
- Senhorita, pode andar ou quer que a carregue?
- Posso andar - respondeu Lavínia, dando uns passos tortos.
Mamãe colocou o braço no ombro de Lavínia e o sr. Jackson segurou-a pelo cotovelo.
Os três foram andando devagar pela alameda, na direção da entrada. Ivy May e eu
seguimos atrás e percebi então que mamãe e o sr. Jackson pareciam se tocar sob o braço
de Lavínia. Não tive muita certeza e pensei até em perguntar a Ivy May se ela estava
vendo, mas mudei de idéia.
O sr. Jackson precisou carregar Lavínia na escada que dá no pátio, depois ela insistiu
que estava bem e podia andar. Chegamos ao portão de entrada: um coche pequeno
estava nos aguardando e não cabiam bem quatro pessoas, mesmo sendo nós três
meninas. Acho que foi o primeiro coche de aluguel que apareceu. O sr. Jackson fez
Lavínia entrar; na verdade, levantou-a porque ela estava muito fraca. Depois, virou-se e
estendeu a mão para me ajudar a subir e fez o mesmo com Ivy May, que se sentou no
meu colo. Assim, sobrou mais lugar para mamãe, que se sentou bem reta e imóvel.
Ivy May parece uma trouxinha, foi bom que ficasse lá, coloquei meus braços em
volta dela para firmar. Tive vontade de ter um irmão ou uma irmã para sentar no meu
colo o tempo todo.
O sr. Jackson estendeu a mão para a minha mãe entrar e fechou a porta para ela.
Mamãe abriu a janela e ele se aproximou para dizer: - Até logo, jovens
senhoras. Espero que melhore, senhorita - acrescentou, olhando para Lavínia. Vamos
colocar o seu anjo no lugar imediatamente.
Lavínia mal olhou para ele, fez sinal que sim e fechou os olhos.
O coche começou a andar e ouvi alguém dizer baixo: Amanhã. -Achei que foi o
sr. Jackson querendo dizer que o anjo estaria pronto para o enterro no dia seguinte.
Mamãe também deve ter ouvido, pois empertigou-se subitamente como se a
senhorita Linden da escola tivesse chegado com a sua régua e batido do lado dela, como
faz nas aulas de boas maneiras.
Depois, zunimos colina abaixo e vi Simon saindo do pátio do pedreiro, sem a cabeça
do anjo. Ele também nos viu: com o canto dos olhos, eu o vi correndo ao lado do coche
até não conseguir mais acompanhar.
SIMON FIELD
Foi isso que aconteceu. Vi tudo.
Para tirar o mármore da sepultura dos Waterhouse, tivemos de enfiar uma alavanca
no pé da coluna onde está o anjo. Joe e eu fizemos isso, enquanto nosso pai e o sr.
Jackson ficavam de olho. O sr. Jackson ficou dizendo como fazer, ele gosta, tive vontade
de dizer a ele que sabemos muito bem o que estamos fazendo, só que ele é o dono e fala
o que bem entende.
Joe estava empurrando a lápide com um ferro e se encostou na coluna do anjo para
firmar. Só que Joe é um homem grande e forte e, quando encostou, a coluna saiu do
lugar antes que a gente percebesse. Os pedreiros devem ter feito alguma besteira
quando fizeram a fundação. Eu cavo o cemitério faz seis anos e nunca vi uma coluna
sair do lugar.
O pior é que o cimento que prendia o anjo na coluna era fraco. O anjo balançou para
a frente e para trás.
- Joe, pare - avisei.
Joe parou de forçar com a alavanca, mas continuou encostado na coluna e o anjo
balançou de novo. Vi o cimento soltar da base e, antes de eu abrir a boca, o anjo foi
despencando das alturas. Uma mulher gritou quando ele tombou em cima do jarro dos
Coleman. A cabeça foi para um lado, o corpo foi para o outro. Na verdade, caiu bem
onde o"sr. Jackson estava, mas não estava mais porque nosso pai empurrou ele com a
pá.
Aconteceu tudo bem devagar e também depressa. Depois, Kitty Coleman e as
meninas correram para nós. Livy olhou o anjo descabeçado, deu um gritinho e
desmaiou, o que não é novidade. A sra. Coleman ajudou o sr. Jackson que estava com a
cara bem branca e todo suado. Respirava pesado, pegou um pano e enxugou o rosto.
Olhou para a base da coluna e para o cimento, limpou a garganta e disse: -Vou
estrangular esse pedreiro com as minhas próprias mãos.
Sei o que ele estava querendo dizer.
Ele, então, disse para o nosso pai: - Obrigado, Paul com uma voz calma e solene.
Foi engraçado porque nunca chama o nosso pai pelo nome.
Nosso pai apenas deu de ombros e disse: - Não sei para que eles precisam de anjo.
Jarros, anjos, colunas e não sei mais o quê. Pura bobagem: morreu, está morto.
Não precisa de anjo para provar. Eu quero só uma cova de pobre. Nosso pai bateu
numa cruz de madeira de pobre: - Meu pai foi enterrado assim e é só o que eu quero.
O sr. Jackson concordou: - Isso mesmo, pois a gente acaba mesmo na cova.
A gente pode pensar que nosso pai ficaria ofendido, mas do jeito que o sr. Jackson
falou, nosso pai riu. O patrão também riu e foi estranho, já que ele tinha quase batido as
botas. Pareciam dois companheiros com seus canecos no bar, rindo de uma piada.
- Bom, melhor cuidar das mocinhas - resolveu nosso pai, olhando para Livy. Maude
estava agachada do lado e a sra. Coleman ficou perto também. Livy sentou e
estava bem, sempre está.
Ivy May ficou ao meu lado e disse: -Você devia ter desenhado no anjo.
Levei um minuto para entender que ela estava falando na caveira com os ossos
cruzados. - Não posso, sua irmã não deixa - expliquei.
Ivy May balançou a cabeça e ficou séria. Que amolação, foi como se eu deixasse ela
triste. Não tive tempo de dizer mais nada, pois o sr. Jackson mandou: - Simon, corra até
o pedreiro e diga ao sr. Watson para vir já aqui. Se ele reclamar, entregue isso para ele. -
O sr. Jackson me deu a cabeça do anjo, com o nariz quebrado.
Era pesada e perdi o equilíbrio, por isso Livy deu outro gritinho. Enfiei a cabeça do
anjo em baixo do braço e corri.
JENNYWHITBY
Eu estava no jardim, batendo o pó dos tapetes, quando ele passou por cima da cerca
e caiu bem no meu pé. Gritei: - Ei, o que esse menino está fazendo aqui? Você, seu
velhaco cheio de lama, pulando a cerca como se fosse o dono da casa. Não bote lama de
cemitério nesse jardim!
O danado riu de mim e perguntou: - Por que não? Você já traz um montão de lama
do cemitério na barra das saias. Mas não tem aparecido por lá.
- Fecha essa boca - mandei. Pelas barbas do profeta, o menino é bem atrevido.
O nome dele é Simon. Nunca dei muita confiança para ele no cemitério, as mininas é
que só falam nele. Sempre acho que ele é o irmão que Maude não teve.
Já vi ele rastejando por trás da sepultura para olhar eu e aquele jardineiro.
Pensou que estava escondido, mas eu vi. O menino queria ver as coisas. Não
liguei, achei graça, mas, agora, mudou. O jardineiro não quer mais saber de mim.
Velhaco.
- Ele não era grandes coisas - disse Simon, como se soubesse o que eu estava
pensando. - Você se livrou dele, ouvi dizer.
- Fecha essa boca, ninguém perguntou nada. - Mas eu não estava brava com o
menino. Falar com ele foi um jeito de descansar as costas: é horrível quando
preciso bater os tapetes.
- Por que veio aqui?
- Quero saber onde as mininas moram.
- Como descobriu?
- Corri atrás do coche. Perdi de vista, fiz uma volta até encontrar, estavam deixando
Maude e a mãe aqui. Já devem ter deixado Livy.
- Claro, ela mora bem ali, a srta. Livy e a irmã. - Mostrei a casa do outro lado.
Simon olhou tudo com atenção. E um menino mirrado de tanto cavar. Tem rugas
nos olhos e os pulsos vermelhos e nodosos, saindo de um paletó pequeno demais para
ele.
- Espera aí - falei. Fui na cozinha, onde a sra. Baker estava cortando um frango.
- Quem é esse menino? - ela perguntou na hora. Essa dona não perde nada que
aconteça em volta, é impossível esconder alguma coisa dela. Sinto que me olha
desconfiada, sem dizer nada.
Não respondi: cortei um pedaço de pão e passei manteiga. Levei para Simon, que
ficou bem contente, engoliu tudo. Gostei, fui buscar mais pão. Quando estava
passando uma camada mais grossa de manteiga, a sra. Baker disse: - Se deixar migalhas,
vou atrás de você, - Cuida da sua vida - respondi.
- Esse pão é meu, assei de manhã e hoje não asso mais.
- Então, eu não como.
- Pois não coma. Se eu deixar, você come a despensa inteira. Se cuida, Jenny Whitby.
- Me deixa em paz - falei, saindo antes que ela falasse mais.
Simon ficou comendo o pão e voltei a bater os tapetes.
- Olha a Livy na janela. O que está fazendo? - ele perguntou.
Olhei para cima. - As duas fazem isso o dia inteiro. Ficam na janela dos quartos
fazendo sinal. Falam uma língua que só elas entendem.
- Eu entendo.
Funguei. -Então, o que ela está dizendo? - A srta. Livy apontou o dedo para cima e
inclinou a cabeça, depois passou o dedo pela garganta como quem corta.
- Está falando no cemitério - disse Simon.
- Como sabe?
- É a pose do anjo na sepultura delas. - Simon inclinou a cabeça e esticou uma mão. -
Ou era. A cabeça caiu, por isso ela passou o dedo na garganta.
Simon me contou o que aconteceu com o anjo e como o pai dele salvou a vida do
patrão. Foi uma coisa.
- Olha, Livy me viu.
A srta. Livy estava apontando para Simon. Alguém abriu uma janela e quando olhei
para cima a srta. Maude estava enfiando a cabeça pela janela.
- Acho que vou indo. Tenho de ajudar nosso pai com a sepultura.
- Fica, a srta. Maude vai descer para encontrar você.
- Obrigado pelo pão - disse Simon, indo embora.
- Tem sempre pão para você aqui - falei, olhando para o jardim e não para ele. - E
não precisa subir na cerca para entrar: se o portão estiver trancado, a chave fica embaixo
da pedra ao lado da calha da lareira.
Simon fez que entendeu e saiu pelo portão.
Eu devia ter dado alguma coisa para ele levar. Detesto ver menino com fome.
Sinto fome só de pensar na fome dele. Entrei para pegar mais um pão para mim. A
sra. Baker que vá para o quinto dos infernos.

LAVÍNIA WATERHOUSE

Esta noite, fui observar as estrelas em Heath, com Maude e o pai dela. Fiquei sem
saber se devia fazer uma coisa dessas no mesmo dia do enterro de minha querida
tiazinha, mas papy e mamy disseram que eu devia ir.
Os dois pareciam bem cansados, mamy até foi ríspida comigo.
Procurei no guia de etiqueta e no The Queen o verbete "observar estrelas", mas não
tinha, considerei um sinal de que podia ir, desde que não achasse muita graça nas
coisas.
No começo, não me diverti mesmo. Fomos ao anoitecer porque o pai de Maude
queria ver a Lua assim que surgisse no horizonte. Ele estava procurando um negócio
chamado Copérnico. Pensei que isso fosse o nome de uma pessoa, mas Maude disse que
era a cratera de um antigo vulcão. Nunca entendo direito o que ela e o pai conversam
sobre Lua e estrelas. Deixaram eu olhar no telescópio e perguntaram se vi alguma
cratera; eu sei lá o que é isso. Na verdade, não vi coisa alguma, mas, para ser gentil,
disse que vi.
Prefiro olhar a Lua sem telescópio, vejo muito melhor. Foi lindo ver uma meia-lua
alaranjada, bem clarinha, logo acima do horizonte.
Depois, deitei num cobertor no chão que eles tinham levado e olhei as estrelas que
começavam a surgir no céu.
Devo ter dormido, pois quando acordei estava escuro e havia muito mais estrelas.
Vi um anjo caindo e mais outro! Mostrei para Maude: claro que, quando ela olhou, já
tinham sumido.
Maude disse que aquelas luzes são chamadas estrelas cadentes, mas, na verdade, são
pedacinhos de um velho cometa queimando e se chamam meteoritos. Eu sei o que
realmente são: anjos trazendo os recados de Deus para nós. As asas deles riscam o céu
até conseguirem ficar de pé outra vez.
Tentei explicar isso para Maude e o pai dela: eles me olharam como se eu fosse
doida. Deitei para ver mais e fiquei bem quieta; então, vi outro anjo caindo.
RICHARD COLEMAN
Hoje à noite, a Lua esteve magnífica e a cratera de Copérnico, bem visível. Lembrei
de um céu há nos, quando levei Kitty e o irmão para observar a Lua. Pudemos ver
Copérnico quase tão bem quanto hoje.
Kitty estava linda à luz da lua e eu feliz, mesmo com o irmão dela, Harry, falando
sobre o homem Copérnico, tentando me impressionar. Naquela noite, resolvi pedi-la em
casamento.
Hoje, pela primeira vez em muito tempo, tive vontade que Kitty estivesse conosco,
em vez de ficar em casa, lendo um livro. Ela não vem mais ver estrelas.
Pelo menos Maude se interessa. As vezes, acho que minha filha é a dádiva que salva
esta família.
KITTY COLEMAN
Fiquei deitada, abraçada a ele e olhei através dos galhos do cipreste que se
inclinavam sobre nós. A meia-lua ainda estava baixa no céu, as estrelas haviam surgido:
vi uma caindo, como para me lembrar as conseqüências que me aguardavam. Naquele
dia, eu havia percebido e sentido os sinais dentro de mim e os desprezei. Tive,
finalmente, minha alegria e sabia que pagaria por ela. Não iria dizer a ele, mas aquilo
seria o nosso fim.
Quando finalmente chegou a hora, ele não vacilou.
Deitou-me sobre um canteiro de prímulas, meu corpo as amassou e o cheiro delas,
de amêndoas, espalhou-se em volta. Havia um anjo acima de nós, mas John não quis ir
para outro lugar: queria dar um susto no anjo, como fez com o outro ser alado, um dia
antes. Eu não me incomodei: a cabeça do anjo estava inclinada, olhava direto para mim,
eu tinha motivo para agradecer àquele ser alado por jogar um homem bem nos meus
braços.
Levantei a saia do meu vestido cinza e mostrei as pernas que, naquela luz suave,
pareciam caules de cogumelos ou o estame de alguma flor exótica, uma orquídea ou um
lírio. Ele abriu minhas pernas com as mãos e encostou-se. Até aí, eu conhecia. A
novidade foi que as mãos dele continuaram lá, me esfregando. Puxei a cabeça dele para
meu peito e ele me mordeu por cima do vestido.
Finalmente, o peso que havia em mim desde que me casei (talvez, desde que nasci),
sumiu, subindo lentamente numa bolha que crescia. O anjo olhava, olhos vazios, e por
uma vez fiquei contente por aqueles olhos não poderem me julgar, nem mesmo quando
a bolha estourou e eu gritei.
Maio de 1906

ALBERT WATERHOUSE
Não sei por que o pedreiro do cemitério me enviou duas cobranças. Uma, dizia:
Reparos na decoração da sepultura e estava separada da cobrança pela inscrição do
nome de minha irmã no pedestal. No enterro, não percebi nada de errado no túmulo.
Trudy diz que não sabe e, quando falei com Livy, ela ficou muito nervosa e saiu da
sala. Depois, disse que teve um ataque de tosse, mas não a ouvi tossindo. E Ivy May
olhou para mim como se soubesse a resposta, mas não pudesse me dizer.
Minhas filhas são um mistério maior do que a maldita cobrança, que devolvi ao
administrador do cemitério com uma pergunta. Vamos ver o que diz, parece um
homem competente.
Julho de 1906

EDITH COLEMAN
Tem sido freqüente o fato de eu ser forçada a tomar em minhas mãos uma situação
desagradável. Vivemos tempos fúteis. Vejo isso em toda parte: na extravagância das
roupas femininas, na permissividade chocante do teatro, nos boatos desse jocoso
movimento sufragista. Ouvi até falar do comportamento de nosso rei. Só espero que a
mãe dele nunca fique sabendo dos segredos dele com a sra. Keppel.
Falta aos jovens a fibra moral dos mais velhos e, mais uma vez, exige-se, na última
hora, que a minha geração conserte as coisas. Não reclamo do encargo: podendo ser útil,
claro que farei tudo que for necessário, em nome da caridade cristã. E quando se trata
da casa do meu próprio filho considero mais como um ataque pessoal: isso vai macular
a reputação dele e o nome Coleman.
Tenho a impressão de que Kitty está simplesmente cega. Fui eu que acendi a luz
para ela e iluminei os cantos escuros.
Fui almoçar na casa de meu filho; aliás, almoço servido naquele pavoroso aparelho
de porcelana xadrez, preto e amarelo, mais um exemplo das frivolidades de hoje.
Pior mesmo é o estado em que se encontra a criada. Depois que ela jogou os pratos
sobre a mesa e saiu gingando o corpo, fiquei pasma.
Kitty nem olhou para mim e deixou de lado o peixe ensopado e as batatas. Condeno
a falta de apetite à mesa, é egoísmo, quando se pensa quanta fome há no mundo.
Ia dizer isso para ela, mas fiquei mais preocupada em tocar no problema de Jenny, a
criada.
Tentei, primeiro, ser simpática e disse: - Minha cara, a criada Jenny não está bem. Já
conversou com ela?
Kitty me olhou sem entender: - Jenny? - repetiu, distraída.
- Sua criada não está bem. Claro que você já percebeu insisti.
- Qual é o problema?
- Minha cara, abra os olhos. O problema está claro como o dia.
- Está?
Não me contive, fiquei um pouco irritada com Kitty. Na verdade, gostaria de lhe dar
uma boa sacudida como se ela fosse uma menina, como se fosse Maude. De certa forma,
a filha é mais madura que a mãe. Lastimei que não estivesse conosco no almoço, pois às
vezes é mais fácil falar com ela do que com Kitty. Disseram que está na casa da
amiguinha. Pelo menos pude ser mais direta com Kitty do que se Maude estivesse
presente.
- Ela deu um mau passo. Esteve com um homem acrescentei, para que não houvesse
dúvida.
Kitty bateu os talheres, bem impertinente, e me encarou com seus olhos castanhos-
escuros que, há anos, fizeram de meu filho um basbaque. Ela estava muito pálida.
- Jenny está grávida de, no mínimo, seis meses - continuei, já que Kitty parecia
incapaz de falar. - Talvez esteja até há mais tempo. Eu sabia que essa moça não ia dar
certo. Jamais gostei dela, é muito atrevida, basta olhar. E trabalha cantando, não
permito que criadas façam isso. Suponho que o homem não vá se casar com ela e,
mesmo se casar, ela não poderá continuar aqui. Você não vai querer uma mulher casada
e com filho para esse serviço. Precisa de uma moça sem compromissos.
Minha nora continuava me olhando com uma expressão confusa. Estava claro que
ela não tomaria uma providência: eu teria de me encarregar.
- Deixe comigo, falo com ela depois do almoço - avisei, Kitty não disse nada e
acabou concordando com um gesto de cabeça.
- Agora, coma seu peixe - falei.
Ela empurrou mais o peixe para a beira do prato e disse que estava com dor de
cabeça. Não gosto de ver desperdício, mas não falei nada, pois ela ficou mesmo chocada
e parecia doente. Por sorte, tenho uma saúde muito boa e acabei de comer meu peixe,
muito saboroso, só o molho estava pesado.
Que Deus abençoe a sra. Baker: vai ter de cuidar de tudo até encontrarmos alguém
para o lugar de Jenny. Quando Kitty contratou-a, fiquei em dúvida, mas ela
cozinha bem e é uma pessoa simples, além de boa cristã. E bom ter uma criada viúva:
como eu, ela não deve ter muitas expectativas na vida.
Jenny entrou para tirar a mesa e fiquei olhando aquele desaforo. Como pôde pensar
que ia andar pela casa com um barrigão e achar que ninguém perceberia.
Incrível!
Ela deve conhecer a patroa que tem, pois, se eu não tivesse avisado Kitty, ela só ia
ver quando a criada estivesse com o filho chorando no colo! Vi Kitty observar Jenny
quando ela se inclinou para juntar os nossos pratos: fez uma expressão de medo. Eu
tinha quase certeza de que ela não ia despedir Jenny. Eu não tenho medo, tenho é um
bom motivo.
A única coisa que Kitty disse foi: - Não quero café, Jenny.
- Também não quero água quente para o chá - acrescentei. Não havia por que adiar
as coisas.
A moça resmungou alguma coisa e, quando saiu da sala, pensei que aquele pretexto
era uma bênção, a chance de nos livrarmos de uma maçã podre, que acaba estragando
todas as outras da fruteira.
Mandei Kitty descansar e esperei um pouco para ir à cozinha, onde a sra. Baker
estava tirando a farinha da mesa com um pano. Não costumo ir lá, por isso, a cozinheira
deve ter se surpreendido. Mas a surpresa dela tinha mais um motivo: a sra. Baker não é
boba, ela sabia.
- O peixe estava muito bom, sra. Baker - elogiei. - Da próxima vez, ponha um pouco
menos de manteiga no molho.
- Obrigada, madame - ela respondeu como devia, mas parecendo desconcertada.
- Onde está Jenny? Quero dar uma palavrinha com ela. A sra. Baker parou de limpar
a mesa. - Está na copa, madame.
- Quer dizer que você sabe o que vou falar.
A sra. Baker deu de ombros e voltou a limpar a mesa. Quem tem olhos, vê.
Fui para a copa e achei estranho quando a sra. Baker acrescentou: - Deixa ela,
madame, deixa.
- Você está querendo me ensinar como administrar essa casa? - perguntei.
Ela não respondeu.
- Não adianta ser boazinha nessas coisas, sra. Baker. Faço isso para o bem dela
mesma.
A sra. Baker deu de ombros, outra vez. Achei estranho, pois ela costuma ser uma
mulher sensível. Claro que tem uma origem muito diferente da minha, mas, às vezes
acho que ela e eu não somos tão diferentes.
Não demorei muito na copa: Jenny chorou e saiu, mas podia ter sido pior. De certa
forma, ela deve ter sentido um alívio que a coisa fosse finalmente descoberta.
Sabia muito bem que seria descoberta e esperar deve ter sido horrível, fico feliz por
ter tirado a moça desse desespero.
Só lastimo que Maude estivesse lá. Pensei que estivesse na casa dos Waterhouse,
mas, quando saí da copa, estava na porta da despensa. Falei baixo com Jenny e acho que
Maude não ouviu nada, só o choro: seria melhor que não tivesse ouvido nem isso.
- Jenny está doente? - ela perguntou.
- Está. Vai ter que nos deixar - respondi, achando que era o melhor jeito de explicar.
Maude ficou assustada: - Ela vai morrer?
- Não seja boba - ralhei. Ela reagiu com a mesma pergunta dramática que Lavínia
faria. Estava simplesmente imitando a amiga: eu sabia que era uma má influência.
- Mas o que foi...
- Sentimos a sua falta no almoço, achei que estava na casa da amiga - mudei de
assunto.
Maude ruborizou. - Eu, eu estava, mas Lavínia está com tosse e voltei. Estava
ajudando a sra. Baker a fazer pão.
Maude nunca soube mentir. Eu podia desmascará-la, mas estava preocupada com a
história da criada, então não disse nada. Para ser sincera, não queria saber o que ela
estava fazendo. Fiquei triste porque minha neta preferia fazer pão com a cozinheira a
almoçar comigo.
MAUDE COLEMAN
Nunca pensei que a avó fosse entrar na cozinha. Achei que lá eu estava segura e
podia ficar até ela ir embora, sem ter de almoçar junto. Mamãe também pensou que eu
estava na casa de Lavínia, mas minha amiga foi visitar as primas.
Quase consegui escapar da avó. Estava na despensa guardando a aveia, a farinha e o
bicarbonato para a sra. Baker quando ouvi a voz dela na cozinha. Me escondi e não
fechei a porta para que ela não me visse.
A avó passou, entrou na copa e ficou falando baixo com Jenny. Senti um frio na
espinha: era a voz que a avó usa para dizer alguma coisa horrível, como: que
descobriu que você quebrou um jarro, ou não foi à missa, ou teve nota ruim na escola.
Jenny começou a chorar e eu podia aproveitar para fechar a porta da copa, só que
preferi escutar a conversa. Me aproximei da porta e ouvi a avó dizer: - ... pagar até o
final da semana, mas pode arrumar suas coisas para sair agora. Então, Jenny
chorou, saiu da copa e subiu a escada. A avó também saiu e me viu, com o avental cheio
de farinha.
Achei estranho a avó dizer que Jenny estava doente, pois ela estava engordando,
como se tivesse alguma coisa na barriga. Ela devia tomar óleo de fígado de
bacalhau para ficar boa.
A avó então disse que Jenny tinha de ir embora por causa disso. Achei que ela devia
estar muito doente, mas a avó não ia contar mais nada.
Por sorte, a avó resolveu terminar a visita, senão eu teria uma tarde muito sem
graça, sozinha com ela, já que mamãe estava deitada com dor de cabeça. Levei a avó até
a porta, ela mandou eu avisar para mamãe, depois, que estava tudo muito bem. Eu
sabia que era melhor não perguntar o quê.
Depois que ela saiu, desci para a cozinha e perguntei à sra. Baker: - Jenny vai
embora?
Ela pensou e disse: - Acho que vai.
- Então está muito doente?
- Doente? Foi isso que sua avó falou?
Ouvi uma batida na porta e fui correndo abrir: - Deve ser a Lavínia.
- Não conte nada para a srta. Lavínia - avisou a sra. Baker.
- Por quê?
A sra. Baker suspirou e balançou a cabeça. - Deixa. Diga o que quiser. Ela vai saber
logo.
Era Simon que estava na porta. Ele não me cumprimentou, nunca cumprimenta.
Entrou e olhou em volta: - Onde está a nossa Jenny? Lá em cima?
Olhei para a sra. Baker, que guardava a tigela e a peneira que usamos para fazer o
pão. Franziu a testa e não respondeu.
- Está doente, talvez precise ir embora daqui.
- Ela não está doente, está choca - disse Simon.
- Choca quer dizer que levou choque? - perguntei, sem jeito. Tomara que Jenny não
tenha se machucado.
- Maude! - gritou a sra. Baker. Dei um pulo: ela jamais gritou comigo, só com o
menino do açougue se a carne estava ruim ou o menino do padeiro, a quem acusou de
colocar serragem nos pães. A sra. Baker virou-se para Simon: - É você que está
ensinando essa linguagem a ela? Olha aí, ela nem sabe o que diz. Que vergonha,
menino!
Simon olhou para mim de um jeito estranho e disse: Me disculpe. - Aceitei sem saber
por que ele se desculpou: Simon não sabia quase nada, nunca foi à escola, só lê o que
aprendeu nas lápides. Mesmo assim, sabia de coisas que eu não tinha idéia.
Simon perguntou à sra. Baker: - Tem pão?
- Está assando no forno, seu pidão. Vai ter que esperar - ralhou a sra. Baker.
Simon olhou para ela, sem parecer nem um pouco aborrecido por ser chamado de
pidão pelo fato de ficar pedindo. A sra. Baker suspirou, largou a tigela e a peneira e
olhou no guarda-comida onde tinha um resto de pão. Deu o pão para Simon: - Ponha
manteiga, você sabe onde tem. - Simon sumiu na despensa.
- Maude, faça um chá para ele - disse ela, pegando os pratos e indo para a copa.
- Ponha só uma colher de açúcar - acrescentou.
Pus duas colheres.
Simon tinha espalhado tanta manteiga no pão que parecia uma fatia de queijo.
Fiquei olhando ele comer, os dentes dando um corte retangular na manteiga. Olhei
para ele e perguntei, baixinho: - Simon, o que quer dizer choca? - Foi horrível falar isso,
depois que eu soube que era alguma coisa feia.
Simon balançou a cabeça. - Não posso dizer. Pergunte para sua mãe.
Eu sabia que jamais deveria perguntar isso a ela.
SIMON FIELD
Que cheiro bom tem o pão assando no forno. Vou esperar ficar pronto, foi sorte
conseguir alguma coisa com a sra. Baker. Ela não é tão boa para dar pão quanto a nossa
Jenny.
Quero ver a nossa Jenny. Maude acha que ela está no quarto, lá em cima. Então,
quando acabar de comer o pão, finjo que vou embora, mas não fecho a porta dos
fundos.
Espero até Maude e a sra. Baker entrarem na copa e subo devagar, sem ninguém ver.
Nunca entrei no resto da casa. É grande, com muitas escadas e vou parando porque
tem muito o que ver. As paredes têm quadros e desenhos de todo tipo de coisa, casas,
pessoas e, principalmente, passarinhos e flores. Conheço alguns pássaros e flores do
cemitério: são desenhos bem-feitos, com todas as partes da planta e da flor.
No depósito, tem um livro do sr. Jackson com desenhos assim.
Os tapetes na escada e nos corredores são verdes com um pouco de amarelo e de
azul e uns pingos de vermelho. Cada andar tem uma planta com folhas compridas e
finas que balançam quando eu passo. Nossa Jenny detesta essas plantas porque tem de
limpar cada folhinha e isso demora. Um dia, ela me disse: - Ninguém avisou que aqui
tinha essas plantas. Por que a madame não tem aquelas folhonas verdes e fáceis de
limpar?
Subo até chegar no último andar e vejo duas portas fechadas. Tenho de escolher,
então abro uma e entro. É o quarto de Maude. Dou uma boa olhada: tem tantos
brinquedos e livros como nunca vi. Uma prateleira inteira de bonecas de todos os
tamanhos e outra de jogos (caixas cheias de coisas, quebracabeças e tal). Há muitas
prateleiras de livros e um cavalinho malhado, de pau, com sela de couro preto que anda
para a frente e para trás sobre rodinhas. Tem uma casa de boneca de madeira com uma
linda mobília em todos os cômodos, tapetes, cadeiras e mesas em miniatura. O quarto
de Maude tem também retratos de crianças, cachorros e gatos e algo que parece um
mapa do céu com todas as estrelas ligadas por linhas, formando um desenho como
aqueles que vi nas estrelas, na noite que passei na cova.
O quarto está quente como uma torrada: tem uma lareira acesa e um guarda-fogo na
frente com roupas dependuradas para secar. Gostaria de ficar, mas não posso,
preciso encontrar nossa Jenny.
Saio e bato na outra porta.
- Vá embora - ela diz.
- Sou eu, nossa Jenny.
- Vá embora.
Abaixo e olho no buraco da fechadura. Nossa Jenny está deitada na cama, com as
mãos enfiadas no queixo. Está com os olhos vermelhos, mas não chora. Ao lado está seu
espartilho. Dá para ver sua barrigona por baixo da saia.
Mesmo assim, eu entro. Ela não grita comigo, então sento numa cadeira. O quarto
tem pouca coisa, só a cama e a cadeira, um penico, um balde de carvão, um tapete verde
e pregadores de varal com as roupas dela dependuradas. No parapeito da janela tem
duas garrafas, uma azul e outra verde. O quarto é escuro porque só tem uma janelinha
que abre para a rua, face norte.
- Jenny, nossa Jenny, o que você vai fazer? - pergunto.
- Não sei, acho que voltar para a casa da minha mãe. Tenho que ir no fim do dia.
- Você devia ir para nossa mãe, ela faz isso, traz filhos. Nellie de Leytonstone, à
direita na High Street, ao lado da loja Rose and Crown. Todo mundo conhece ela.
Se tivesse ido lá antes, ela teria livrado você disso.
- Eu não ia fazer! - nossa Jenny parecia chocada.
- Por que não? Você não quer, quer?
- Fazer isso é pecado, é como matar uma pessoa!
- Mas você já pecou, não? Então, que diferença faz?
Ela não responde, balança a cabeça e dobra as pernas embaixo da barriga. -Agora é
tarde, o bebê já vai nascer e pronto. Ela começa a chorar, soluça alto e feio.
Olho em volta e vejo na cadeira um xale de tricô marrom. Pego e cubro ela.
- Ó meu Deus, o que vou fazer? Mamãe vai me matar. Mando quase todo o
pagamento para ela, como vai ficar sem dinheiro? - Nossa Jenny chora.
- Você arruma outro emprego e sua mãe cuida do bebê.
- Ninguém vai me contratar se souber o que aconteceu. E a madame nunca vai me
dar uma referência. Só tive esse emprego na vida, preciso da referência dela.
Penso um instante e resolvo: - A sra. Coleman dá, se você pedir. - Acho ruim dizer
isso porque gosto da mãe de Maude. Lembro que ela sorriu para mim naquele dia que
estava de vestido verde.
Nossa Jenny levanta os olhos para mim, curiosa. - O que você quer dizer?
- Que você sabe de uma coisa, sobre ela e o sr. Jackson se encontrando no cemitério.
Podia dizer algo assim.
Nossa Jenny senta na cama. - Isso é maldade. Além do mais, falar não tem nada
demais. Eles só conversaram, não foi?
Finjo que não sei de nada.
Ela tira o cabelo que grudou no rosto. - O que eu podia dizer?
- Diga que, se não der uma boa referência, você conta para o marido dela do
encontro com o sr. Jackson.
- Ah, mas isso é maldade. - Nossa Jenny pensa um instante e faz uma cara
engraçada, como um ladrão que descobriu uma janela aberta na casa de um rico. - Vai
ver que eu até conseguia manter o emprego. Ela tem que ficar comigo para eu não
contar para o marido.
Ruim o que ela disse. Gosto da nossa Jenny, mas ela é ambiciosa, por isso digo: -
Não sei, nosso pai sempre diz para não pedir demais. Peça só o que precisa, senão pode
não conseguir nada.
- E olha o que seu pai conseguiu: ser coveiro a vida inteira - diz nossa Jenny.
- Não acho que ser coveiro é pior que ser criada-comparo.
- bom, vai saindo daqui. Se vou falar com ela, é melhor enfiar o espartilho.
Pela cara dela, vai falar mesmo. Saio e desço a escada. Chego no outro andar, onde
tem quatro portas fechadas. Fico prestando atenção e não ouço nada. Nunca estive
numa casa assim. Nossa mãe e irmãs moram em dois cômodos para as cinco.
Aqui nessa casa podiam morar umas seis famílias. Olho as portas: são de puro carvalho
com puxadores de bronze polido, sinal que nossa Jenny brilhou tudo. Escolho uma
porta e abro.
Já ouvi falar em lugares como esse, mas nunca vi um. Tem azulejo em tudo: branco,
no chão e pelos lados até acima da minha cabeça. Uma fileira dos azulejos tem flores
parecidas com tulipas, vermelhas e verdes. Tem uma grande banheira branca e uma pia
também branca, tudo com canos e torneiras de latão bem lustrados pela nossa Jenny. Há
grandes toalhas brancas dependuradas num cavalete. Passo a mão numa delas e fica
sujo de preto e perco a graça, estava tudo tão limpo.
Num quartinho separado fica uma latrina, branca também, com assento de mogno,
como a madeira dos caixões de gente rica que vejo no cemitério. Penso na latrina e no
balde que eu e nosso pai usamos, tão diferentes que nem parece que são para fazer a
mesma coisa.
Saio e abro a outra porta, da sala da frente. As paredes são amarelas e, embora sejam
face norte como o quarto da nossa Jenny, têm duas janelas enormes, com balcões
onde pode-se andar e a luz que entra fica dourada quando bate nas paredes. Tem
dois sofás formando um L e sobre eles tem xales abertos, enfeitados com borboletas e
flores. Tem também um piano e mesinhas com livros e revistas e um aparador com
fotos da sra. Coleman, de Maude, do pai de Maude e de outras pessoas.
Escuto nossa Jenny falando ali no andar. Não tenho tempo de sair da sala e sei que a
sra. Coleman e Jenny vão entrar. Me abaixo, rápido, atrás de um sofá. Se eu estivesse
brincando de esconde-esconde com as minhas irmãs, seria o primeiro lugar onde elas
iam procurar. Mas Jenny e a sra. Coleman não estão me procurando.
JENNYWHITBY
EU estava tão decidida quando falei com Simon, mas tinha muito medo de falar com
a madame. Ela foi boa para mim nesses anos que trabalhei aqui e sei que cometi um
pecado. Ao mesmo tempo, não gosto de fazer chantagem, mas preciso desse emprego.
Preciso do dinheiro que ganho. É como se eu estivesse passando pano molhado numa
sala sem prestar atenção e quando vejo estou espremida num canto, com tudo molhado
em volta. Preciso dar um grande pulo para sair sem pisar no chão.
Desci, depois de apertar as roupas, colocar a minha touca e passar uma água na cara.
Quando cheguei no andar, ela estava saindo do quarto e eu vi que precisava falar
naquela hora. Abri a boca e, antes que dissesse uma palavra, ela avisou: -Jenny, quero
falar com você, por favor. Vamos à sala da manhã.
Fui atrás dela. - Sente-se - mandou. Sentei num sofá. Limpo lá todo dia, mas nunca
tinha sentado. É uma linda sala.
Ela foi até uma das janelas e olhou pelas venezianas. Estava com um vestido de cor
clara, de gola alta, onde havia prendido um camafeu. Aquela cor não fica bem nela:
parecia cansada e pálida.
Engoli em seco, pois ainda não conseguia falar. Não tinha pensado bem no que
dizer.
Mas as coisas não aconteceram como pensei. Nem um pouco. Nem num milhão de
anos eu teria adivinhado o que ela queria dizer.
Ela saiu da janela e começou dizendo: - Lastimo que você esteja com esse problema,
Jenny. E lastimo o jeito como a sra. Coleman deve ter tratado você.
Ela consegue ser muito dura.
- Ela é uma serpente - falei, sem conseguir me conter. com isso, foi mais fácil
continuar. - Tenho uma coisa para dizer à senhora, madame.
- Por favor, escute-me primeiro. Talvez possamos nos ajudar.
- Eu ajudar a senhora? Não sei, madame, não posso fazer...
- Jenny, preciso de sua ajuda.
- Precisa de mim? Depois de me jogar na rua como uma vassoura velha, depois de
tudo que fiz pela senhora, pela srta. Maude e pelo sr. Coleman, só porque eu, eu...
- Não consegui: chorei.
Ela me deixou chorar um pouco. Depois, disse alguma coisa bem baixo. Não
consegui ouvir, ela teve de repetir: Estou no mesmo apuro que você.
Eu não sabia o que queria dizer, mas aquela palavra diferente parecia tão séria que
parei de chorar.
- Não está tão adiantada e por isso ainda posso fazer alguma coisa. Mas não sei
aonde ir, nem a quem pedir. Não posso falar com as minhas amigas. Então, peço que
me ajude, diga aonde posso fazer isso. Entendeu o que eu disse?
Olhei para ela e pensei nos dias em que ela não almoçara nem jantara, nas dores de
cabeça que tivera, nas tardes em que ficara dormindo e nos paninhos que não tivera de
lavar para ela por dois meses: então, acendeu uma luz na minha cabeça.
Na época, eu não percebi, porque estava preocupada com meus próprios problemas.
- Entendi, sim - respondi, calma.
- Não quero um lugar onde saibam quem sou. Tem que ser longe, mas não muito,
onde seja fácil de chegar. Você conhece algum lugar?
Acendeu outra luz na minha cabeça e entendi o que ela queria de mim. - É pecado -
lembrei.
Ela olhou pela janela, de novo. - Isso é para eu pensar, não para você.
Deixei ela esperar. Estava me entregando a chantagem numa salva de prata,
exatamente como eu levo as cartas para ela naquela sala, todas as manhãs. Eu não
precisava nem falar nada sobre ela e o sr. Jackson. Tanto melhor, pois eu não sabia
mesmo de nada entre os dois (até então).
Mas eu sabia por que ela estava me pedindo naquela hora: porque pensava que ia
mesmo se livrar de mim, assim eu não contaria para ninguém. Meu silêncio tinha um
preço e era aí que estava a minha chantagem.
- Vou cobrar por isso - avisei.
- Quanto você quer? - Ela falou como se eu fosse pedir uma quantia, um dinheiro.
Dei um susto nela.
- Quero continuar trabalhando aqui.
Ela ficou me olhando: - E se eu der dinheiro para você e o bebê viverem até você
encontrar outro lugar?
- Não.
- Claro que eu daria também uma boa referência. Não é preciso falar no bebê,
podíamos dar outro motivo para você sair, que sua mãe está doente e você precisa
cuidar dela, por exemplo.
- Não ponha a minha mãe nessa história.
- Não estou dando a entender...
- Quero continuar trabalhando aqui.
- E, e o que digo para a minha sogra? Foi ela quem demitiu você, não posso passar
por cima da decisão dela. -A sra. Coleman parecia desesperada.
- Madame, a senhora é a dona da casa, acho que pode fazer o que quiser. Já fez, de
todo jeito.
Ela ficou calada. O bebê se mexeu dentro de mim, senti seu pezinho chutando.
- Está bem, pode voltar depois que tiver o bebê. Mas tem que sair agora, não pode
vir com o bebê aqui, nem mandar ninguém com ele. Você vê seu filho aos domingos.
- E nos sábados à tarde, quero folga nos sábados à tarde também. - Fiquei pasma
comigo mesma: o sucesso da chantagem me deu coragem.
- Está certo, dou os sábados à tarde também. Mas não pode contar nada para
ninguém, senão mando pegar seu filho na sua casa. Entendido?
- Está, madame. - Era engraçado ela querendo ser dura: não se saía muito bem.
- Certo. Onde eu devo ir, então?
- A Leytonstone. Procure Nellie na High Street, à direita, perto da loja Rose and
Crown.
Ouvi um barulho atrás do sofá e sabia que tinha alguém lá. Mas ela não percebeu,
estava olhando pela janela, de novo. Olhei para trás e vi Simon agachado. Não estranhei
ele estar ouvindo a conversa, aquele danado. Ele fez uma cara zangada, porque dei o
endereço da mãe dele. Não me incomodei: o que ia fazer? - A madame então disse, sem
olhar para mim: - Pode ir. Arrume suas coisas, vou chamar um coche para você.
- Sim, madame. - Levantei. Tínhamos terminado a conversa e eu queria dizer
alguma coisa, não sabia - exatamente o quê, só consegui dizer: - Até logo, madame. - E
ela respondeu: -Até logo, Jenny. -Abri a porta e, antes de sair, olhei para ela. Continuava
na janela, de olhos fechados, com as mãos sobre a barriga.
- Ai - ela suspirou baixinho.
Simon continuava atrás do sofá. Espero que a mãe dele seja boa com ela.
Setembro de 1906

ALBERT WATERHOUSE
Acho que não vou contar para ninguém, nem mesmo para Trudy, mas numa noite
dessas levei Kitty Coleman em casa. Eu estava voltando do jogo de críquete em Heath
com Richard Coleman quando lembrei que Trudy queria que eu desse um recado para o
vigário da igreja de Santana, uma bobagem sobre flores do altar ou algo assim. Não
guardo essas coisas, Trudy se encarrega.
Avisei a Richard que eu o encontraria no bar Buli and Last e fui fazer minha tarefa
de moleque de recados.
Estava indo para o bar quando olhei para a Swain's Lane e vi Kitty Coleman,
andando devagar, cabisbaixa, chutando as saias do vestido. Achei esquisito, pois
anoitecia e ela estava sozinha, parecia sem rumo.
- Boa-noite, sra. Coleman - cumprimentei, tirando o chapéu. - Linda noite para uma
caminhada, não? Parece que estamos nos últimos clamores do verão. - Usei
umas palavras que me deixaram sem graça. Não sei por quê, Kitty Coleman me faz
dizer coisas que não devia.
Ela pareceu não me reconhecer: olhou, apenas, como se eu fosse um fantasma.
Fiquei pasmo com a aparência dela. Richard havia comentado que ela ficou doente e
estava com má aparência, mas era mais que isso. Tinha perdido a aparência.
- A senhora vai a algum lugar?
Kitty Coleman ficou indecisa: - Eu estive, eu queria subir a colina, mas não consegui.
- Essa colina do cemitério é íngreme. E se a pessoa esteve adoentada, a colina parece
uma montanha. Gostaria que eu a levasse até seu marido? vou encontrá-lo no bar.
- Não quero ver Richard - Kitty Coleman respondeu, rápido.
Eu não soube o que dizer, mas não podia deixála sozinha, parecia tão doente e
indefesa. - Posso levá-la para casa, então?
Ofereci o braço, sentindo-me meio parvo e pensando o que diria Truddy se nos
visse: sei que não admira muito Kitty Coleman. E sorte que ela estava enfiada em casa
com as nossas filhas. Maude também estava, ia dormir lá.
Kitty Coleman pensou um instante e segurou no meu braço. O caminho mais curto
para a casa dela era passando em frente ao bar, mas não fui por lá. Seria
estranho passarmos pelo bar e Richard Coleman olhar pela vidraça e me ver de braço
com a esposa dele, quando eu devia estar com o vigário. Eu podia explicar, mas
continuaria esquisito. Então, fiz o caminho por trás e ela não percebeu. Tentei conversar,
mas ela só dizia "obrigada", quando nem era o caso de agradecer nada.
Não tem importância. Avistei a casa dela, estava me sentindo meio paspalho e um
pouco orgulhoso também: ela podia não estar tão bonita, mas continuava com um porte
elegante e usava um lindo vestido cinzento, embora um pouco amassado. Dois
passantes olharam para nós e, sem querer, me aprumei.
Chegamos à porta da casa dela e perguntei: - A senhora pode caminhar bem até lá
dentro, sra. Coleman?
- Claro, muito obrigada.
- Cuide-se, então. Tome uma colherada de Horlicks e recolha-se cedo.
Ela concordou e entrou. Só quando estava indo para o bar percebi que ela não havia
pronunciado meu nome. Fiquei pensando se me reconheceu.
No bar, Richard brincou comigo por ter ficado tanto tempo com o vigário. Pedi uma
cerveja.
Outubro de 1906

LAVINIA WATERHOUSE
Levei um susto quando vi a mãe de Maude. Nós a encontramos por acaso. Na volta
da escola, passamos na casa de Maude: queria que me emprestasse um livro sobre
plantas para eu copiar uns pedaços para um trabalho da escola. Maude não estava
querendo emprestar porque acha errado copiar, nós é que temos de escrever nossas
redações.
(É tão entediante pensar no que escrever, principalmente sobre vida e os ciclos das
folhas) Mas agora acho que Maude não queria que eu visse a mãe dela. Há meses me
dei conta de que Maude vem à minha casa quase todo dia, mais até do que antes.
Ela pediu para eu subir rápido, pegar o livro no quarto dela e descer rápido também.
Foi então que a sra. Coleman saiu da sala da manhã. Olhou para nós tão distraída que
não tive certeza se nos viu, até Maude dizer bem suave: - Olá, mamãe! -A sra. Coleman
fez um gesto com a cabeça, de leve.
Achei a sra. Coleman tão estranha que nem comentei com Maude e isso me deixou
mais triste ainda, pois eu achava que comentávamos todos os nossos pensamentos.
Mas não podia perguntar por que a mãe dela está tão magra e por que o cabelo ficou
de repente meio grisalho e a pele parece água turva. Pode-se tingir o cabelo, arrancar os
fios brancos (como mamãe faz) e aplicar um tônico para pele sem viço. O pior era que a
sra. Coleman estava tão desanimada, nunca foi assim.
É claro que os Coleman estão com algum problema. A mãe de Maude está diferente;
há uns meses, a criada Jenny de repente adoeceu e teve que ir embora. "Vai ver que as
duas têm a mesma doença. Maude diz que Jenny volta logo. Tenho de ver se ela
também vai estar de cabelo branco. Ainda bem que Jenny volta porque as criadas
temporárias que arrumaram eram horríveis. Maude não gostou de nenhuma e a casa
não parece nada limpa, pelo pouco que vi. As plantas dos andares estavam todas
empoeiradas.
Não digo nada para Maude, coitadinha. Ela estava muito aborrecida quando fomos
para a minha casa. Tentei ser bem gentil com ela, até sugeri de irmos à abertura oficial
da biblioteca pública do nosso bairro. Ela foi construída durante todo o verão na
Chester Road e haverá uma festa na quinta-feira à tarde. Não estou com vontade de ir,
pois haverá muitos discursos maçantes, mas isso pode animar Maude, já que ela gosta
de bibliotecas. E assim poderíamos sair cedo da escola e não assistir à última aula, que é
de aritmética. Detesto essa disciplina, aqueles números bobos. Na verdade, não gosto de
nenhuma aula, exceto artes domésticas e composição, embora a srta. Johnson diga que
preciso colocar rédeas na minha imaginação.
(Imagino que isso seja um elogio!) Mamy terá de autorizar para nós sairmos cedo da
escola, já que a mãe de Maude não está podendo. E suponho que mamy e Ivy May vão
querer ir junto, embora a biblioteca fique a poucos minutos daqui. Maude e eu temos
onze anos e ainda não podemos ir sozinhas a lugar nenhum, exceto à escola. Mamy diz
que nunca se sabe o que pode acontecer e lê umas coisas horríveis nos jornais: bebês
largados no frio do inverno em Heath, pessoas que se afogaram em lagos, homens
brutos querendo atacar meninas.
Chegamos em casa e perguntei se podíamos ir todas à cerimônia na biblioteca. Ela
concordou, tão boazinha. Ela sempre diz sim.
Então, Maude pediu uma coisa esquisita. - Por favor, a senhora pode convidar
minha mãe para ir conosco? Ela não está bem há meses e pode ser bom tomar um ar
fresco.
Bom, primeiro, mamy ficou confusa (claro que a própria Maude podia convidar a
mãe!), mas disse que chamaria. Estou preocupada, pois não sei se quero ser vista com
uma pessoa completamente desleixada. Mesmo assim, devo ficar ao lado da minha
amiga; pode ser também que mamy não convença a sra. Coleman a ir, elas não são
íntimas.
Se convencer, uma noite dessas entro escondido na casa deles e deixo um vidro de
tinta de cabelos na entrada.
GERTRUDE WATERHOUSE
Não tive coragem de dizer não para Maude. É horrível que uma menina não possa
convidar a própria mãe para ir a um lugar. Quis perguntar por que ela não podia, mas
estava tão meiga e triste que eu apenas disse que faria tudo para Kitty ir conosco. Não
podia fazer muito, mesmo numa coisa tão sem importância como conseguir que alguém
saia de casa. Nunca tive influência sobre Kitty Coleman, e se a filha não podia
convencê-la a ir a um pequeno evento no bairro, não seria eu que conseguiria.
Mesmo assim, procurei Kitty na manhã seguinte, quando as meninas estavam na
escola. Quando a vi, me senti muito culpada por não tê-la procurado antes.
Estava horrível, magra e maltratada, seus lindos cabelos não tinham mais brilho. E
surpreendente ver a energia sumir de alguém tão vital. Se eu fosse má, podia me sentir
melhor por ver alguém perder toda a graça. Mas meu coração se entristeceu. Cheguei a
apertar a mão dela: surpresa, ela não recusou meu gesto. A mão estava gelada.
- Querida, como você está fria! - exclamei.
- Estou? - perguntou, distraída.
Peguei o xale de seda amarelo do sofá e enrolei nela. Lastimo que tenha estado
doente.
- Contaram para você?
- Ah, eu... - atrapalhei-me. -Foi Maude, ela disse que você teve pneumonia há algum
tempo. - Pelo menos era verdade, ou eu achava que era; pela reação de Kitty Coleman,
comecei a duvidar.
- Maude disse? - ela perguntou. Fiquei pensando se Kitty não podia responder, em
vez de fazer outra pergunta. Não me importei. -Acho que sim - ela resmungou, o que
era uma frase sem sentido, mas eu não quis perguntar nada.
Kitty tocou a campainha e quando a criada apareceu (não era a moça de sempre)
olhou-a distraída, como se tivesse esquecido por que chamou. A moça também ficou
olhando distraída.
- Pode trazer um chá para a sua patroa - sugeri.
- Isso mesmo, que bom - Kitty murmurou. Quando a moça saiu da sala, perguntei: -
Já foi ao médico?
- Para quê?
- Ora, para melhorar. Talvez possa tomar alguma coisa, um tônico. Ou ir a uma
estação de águas. - Estava tentando em vão sugerir soluções para o mal que a afligia.
Eu só conseguia lembrar de romances que lera nos quais a heroína ia a estações de
água na Alemanha, ou no sul da França, por causa do clima revigorante.
- O médico disse que preciso renovar as forças com muita alimentação e ar fresco -
Kitty repetiu, mecanicamente. Parecia que ela estava comendo pouco mais que uma
colher por dia e não acredito que saísse de casa.
- Era o que ia sugerir a você. Vamos levar as meninas à nova biblioteca que será
inaugurada na Chester Road e achei que você e Maude podiam ir também. Depois,
tomaríamos chá no Parque Waterloo. - Eu me senti meio boba, como se sugerisse uma
expedição à Antártica e não uma mera caminhada até ali na esquina.
- Não sei, é um pouco longe - ela ponderou.
- A biblioteca fica perto e não precisamos ir até lá no alto da colina para o chá-
corrigi, logo. - Podemos escolher um lugar mais próximo ou você pode vir à minha casa.
- Kitty nunca foi lá e eu não queria que visse minha acanhada sala de visitas, mas achei
que devia oferecer.
- Não estou...
Esperei Kitty terminar a frase, não terminou. Tinha acontecido alguma coisa com ela,
parecia uma ovelhinha perdida, andando sem rumo pelo campo. Eu não queria fazer o
papel de pastora e sabia também que Deus não quer que um pastor julgue o rebanho
dEle. Segurei a mão dela, de novo. - O que houve, minha querida? O que deixou você
assim?
Kitty me encarou. Tinha olhos tão negros que pareciam dois poços escuros. - Passei a
vida inteira esperando alguma coisa acontecer e cheguei à conclusão de que nada vai
acontecer. Ou já aconteceu, mas pisquei na hora e não vi. Não sei o que é pior: perder
ou saber que não há nada a perder.
Eu não soube o que dizer, pois não entendi nada. Mesmo assim, tentei dizer alguma
coisa. -Acho que você tem muita sorte: um ótimo marido, uma linda filha, uma casa e
um jardim maravilhosos - falei, com a voz mais firme que consegui. - Tem comida na
mesa e uma cozinheira para preparar tudo. Para muitos, sua vida é invejável.
- Embora eu não inveje, pensei.
- E, mas... - Kitty parou outra vez, olhando meu rosto à procura de alguma coisa.
Parece que não encontrou, pois baixou os olhos.
Soltei a mão dela e disse: - vou mandar procurar um tônico que minha mãe fazia
quando eu estava triste: levava conhaque, gema de ovo e um pouco de açúcar. Tenho
certeza de que vai revitalizar você. Tem uma brilhantina para cabelos? Se passar um
pouquinho na escova, seu cabelo ficará uma beleza. E, minha querida, venha conosco à
cerimônia na biblioteca, na quinta-feira. - Kitty abriu a boca para falar, mas tomei
coragem e me adiantei: - Insisto que vá. Maude vai gostar muito, ela queria tanto que
você fosse. Não a desaponte. É uma menina tão boa, a melhor aluna da classe.
- É mesmo?
Certamente, Kitty sabia que a filha ia bem na escola! Estaremos aqui para pegá-la às
duas e meia de quinta-feira. O ar fresco vai lhe fazer bem. - Antes que ela pudesse dar
uma desculpa, levantei-me e vesti as luvas, sem esperar o chá (a criada é bem lenta).
Pela primeira vez desde que conheço Kitty Coleman, eu estava em condição de dar o
tom de nossas relações. Em vez de desfrutar desse poder, eu apenas me senti infeliz.
Ninguém jamais disse que cumprir os deveres cristãos seja fácil.
MAUDE COLEMAN
Não sei por que Lavínia queria tanto ir à inauguração da biblioteca. Deve achar que
eu adoraria, confundiu comemoração com função. Claro que acho bom termos uma
biblioteca pública no bairro, mas prefiro emprestar livros a ir a festas e eventos. Lavínia
é exatamente o contrário: sempre gostou mais de festas que eu e não consegue ficar
sentada quieta numa biblioteca por cinco minutos. Nem gosta muito de livros, embora
aprecie Dickens, claro, e ela e a mãe costumem ler alto SirWalter Scott. Sabe também
declamar poemas: Lady of Shalott, de Tennyson, e La Belle Dame sans Merci, de Keats.
Para agradá-la, eu disse que iria. A sra. Waterhouse conseguiu convencer mamãe a
ir conosco: foi a primeira vez que saiu desde que adoeceu. Gostaria que mamãe tivesse
usado alguma coisa mais alegre. Ela tem tantos vestidos e chapéus lindos e foi escolher
um vestido marrom e um chapéu de feltro com três rosinhas pretas.
Parecia que estava de luto no meio das pessoas, mas, pelo menos, ela foi: só de andar
ao lado dela, já fiquei contente.
Acho que ela não entendeu direito onde fica a nova biblioteca. Papai e eu fomos lá
várias vezes, nas tardes de verão, para acompanhar a construção, mas mamãe nunca
foi conosco. Quando saímos da Swain's Lane e entramos na Chester Road, ela ficou
muito agitada ao ver o muro sul do cemitério, que dá para a Chester Road. Até apertou
o meu braço e, sem saber por quê, falei: - Não se preocupe, mamãe, não vamos entrar. -
Ela se acalmou um pouco e continuou me segurando até passarmos o portão sul e
chegarmos ao grupo de pessoas que estava do lado de fora da biblioteca.
O prédio é bonito, de tijolos aparentes, com bordas de florões escuros e uma varanda
com quatro colunas coríntias ladeada por janelas altas, em arco. Para a inauguração,
enfeitaram a fachada com panos brancos e montaram um pequeno palanque. Havia
muita gente na calçada e se espalhando pela rua. O vento mexia com os panos da
decoração, arrancava o chapéu-coco dos homens, as flores e plumas dos chapéus das
senhoras.
Logo que chegamos, começaram os discursos. Um homem subiu no palanque e
falou: - Boa-tarde, senhoras e senhores. Na qualidade de diretor do Comitê de
Bibliotecas e Educação do Conselho da Jurisdição de St. Pancras, é com prazer que lhes
dou as boas-vindas para esse auspicioso evento, a abertura da primeira biblioteca do
bairro. Trata-se do primeiro passo para a aprovação das leis das bibliotecas públicas em
St. Pancras.
- Agradecemos ao conselheiro municipal T. H. W. Idris, membro do parlamento e
falecido prefeito, por sua bemsucedida empreitada de conseguir a doação de
quarenta mil libras pelo sr. Andrew Carnegie, de Pittsburgh, nos Estados Unidos, para a
aprovação das leis.
Nesse momento, senti uma cutucada nas costas e Lavínia sussurrou: - Olha só!
- Vinha vindo um cortejo fúnebre pela Chester Road. O diretor viu os coches e
interrompeu o discurso; todos os homens tiraram o chapéu em sinal de réspeito e as
mulheres baixaram a cabeça. Também baixei a cabeça, mas fiquei olhando por baixo e
contei cinco coches atrás do que trazia o caixão.
Foi então que um vento forte obrigou todas as mulheres a segurarem os chapéus.
Lavínia, Ivy May e eu seguramos nossas boinas verdes da escola que costumam
ficar bem enfiadas na cabeça. Lavínia arrancou a dela como se o vento tivesse tirado,
soltou o cabelo e deu uma sacudida. Tenho certeza de que fez isso só para mostrar os
cachos.
Os funcionários do serviço funerário que seguiam a pé na frente do coche apertaram
as cartolas na cabeça, mas uma delas escapou e o homem teve de correr atrás, de casaca
e tudo. Os penachos negros dos cavalos balançavam, um cavalo relinchou e empinou,
assustado com o vento no focinho dele: o cocheiro teve que puxar as rédeas; algumas
mulheres gritaram e o cortejo parou. Mamãe tremia e apertava o meu braço.
O vento soltou os panos que enfeitavam a biblioteca e, quando deu outra rajada, eles
saíram voando. Panos brancos e compridos passaram sobre as nossas cabeças e fizeram
uma espécie de evolução sobre o cortejo, até que, de repente, o vento parou e os panos
caíram no coche que levava o caixão. As pessoas levaram um susto (Lavínia gritou,
claro) e o cavalo arisco deu outra empinada.
Foi uma confusão. Além dos gritos, do vento e do cavalo relinchando, ouvi uma
risada de mulher. Olhei em volta e vi que estava na ponta da multidão, toda de branco,
com um enorme laço flutuando no pescoço, de modo que ela parecia um pássaro. O riso
não era tão alto, mas penetrava em tudo como a voz esganiçada do mascate que
costuma passar por nossa rua gritando: - Compro ferro-velho!
O sr. Jackson saiu correndo pelo portão do cemitério para tirar o pano de cima do
coche: - Siga! Rápido, antes que os cavalos desembestem! - Gritou para o cocheiro.
Voltou para o portão e abriu-o de par em par, fazendo sinal para o coche da frente
entrar. Depois que o último passou, ele fechou bem o portão e pegou o pano da
decoração. Começou a dobrá-lo, olhando para a multidão na frente da biblioteca, e viu
mamãe: parou na mesma hora de dobrar.
Mamãe deu um pulo como se alguém tivesse dado um tapa em seu ombro e soltou o
meu braço.
O diretor da biblioteca então desceu do palanque e atravessou a rua para pegar o
pano. O sr. Jackson foi obrigado a virar-se para ele, e mamãe, de repente, ficou
cabisbaixa. Outra rajada atingiu a multidão e parecia que mamãe ia ser levada pela
ventania. No mesmo instante, a mulher que ria estava ao lado de mamãe, pegou
no braço dela e segurou com força.
- Que belo acontecimento, não? - ela disse, dando outra risada. - E os discursos mal
começaram!
Era uma mulher pequena, menor que mamãe, mas de ombros bem empinados de
forma que parecia tão segura quanto uma mulher mais alta. Tinha grandes olhos
castanhos que combinavam com o seu rosto, de modo que não se podia deixar de vê-
los. Quando sorria, aparecia um dente do lado, o que me lembrou um cavalo exibindo a
dentadura.
Na mesma hora, achei que não ia gostar dela.
- Meu nome é Caroline Black - apresentou-se ela, estendendo a mão para
cumprimentar.
Mamãe olhou a mão estendida, pensou um segundo e também se apresentou: - Kitty
Coleman.
Fiquei apavorada ao reconhecer quem era, embora fosse claro que mamãe não sabia.
Caroline Black era uma sufragista que, nas páginas de cartas do jornal, liderava uma
longa batalha contra vários cavalheiros que discordavam do direito das mulheres
votarem.
Papai ironiza muito as sufragistas: diz que essa palavra parece um curativo usado na
Guerra da Criméia. As sufragistas escreveram avisos com giz na calçada perto de nossa
casa e papai ameaçou-as (talvez uma delas fosse a própria Caroline Black) com baldes
de água.
O diretor voltou a discursar: - ... o conselho oferece uma porta por onde cada
morador de St. Pancras pode entrar, sem pagar entrada ou taxa, para desfrutar dos
tesouros da literatura mantidos e guardados neste prédio.
A multidão aplaudiu. Caroline Black não bateu palmas, nem mamãe. Procurei por
Lavínia, não a encontrei. Perto estavam a sra. Waterhouse e Ivy May, que olhava para o
outro lado da rua. Olhei também e vi Lavínia no portão do cemitério, fazendo sinal para
mim e empurrando o portão para mostrar que não estava trancado.
Fiquei indecisa, não queria deixar mamãe sozinha com Caroline Black. Por outro
lado, os discursos eram monótonos, como eu esperava, e o cemitério seria bem mais
interessante.
Dei um passo para encontrar Lavínia e ouvi Caroline Black dizer, de repente: - Isso é
muito bom, sr. Ashby. - Gelei. - Aplaudo a idéia de entrada grátis para a literatura e a
educação. Mas será que podemos realmente comemorar tal fato quando a metade da
população não pode usar este conhecimento recém-disponível naquele setor da vida tão
importante para todos nós? Se as mulheres não podem votar, por que se incomodar em
ler os tesouros da literatura?
Quando ela falou, as pessoas próximas deram passos para trás, de forma que ela
ficou sozinha com uma platéia em volta e só mamãe, sem jeito, ao lado.
O sr. Ashby tentou retrucar, mas Caroline Back continuou falando com uma voz
suave que ia longe e não podia ser interrompida. - Tenho certeza de que, se o sr.
Dickinson, nosso representante no parlamento, estivesse aqui, concordaria comigo que
o voto das mulheres tem a mesma importância de temas como bibliotecas públicas e
educação
para todos. Ele vai até apresentar uma moção ao parlamento sobre o voto da mulher.
- Caroline fez um gesto envolvendo os que estavam lá e continuou: -Apelo a todas as
senhoras, como parte educada e interessada do público, para que, a cada vez que
entrarem nesse prédio, lembrem-se de que lhes está sendo negada a oportunidade de
serem cidadãs responsáveis, dando seu voto para aqueles que vão representá-las. Se for
um cavalheiro que adentrar o prédio, essa oportunidade está sendo negada à esposa,
irmãs ou filhas dele. Mas todos nós podemos fazer alguma coisa.
Compareçam às reuniões da representação local do USPM, todas as terças-feiras, às
quatro horas, no Birch Cottage, West Hill, em Highgate. Voto para a mulher!
- Ela inclinou-se levemente, como que agradecendo os aplausos que só ela ouviu, e
deu um passo para trás, deixando mamãe e eu sozinhas no círculo.
Os rostos em volta de nós estavam curiosos, decerto pensando que também
fôssemos sufragistas. A sra. Waterhouse me olhou com horrorizado apoio. Ao lado, Ivy
May olhava para minha mãe que, por sua vez, prestava atenção em Caroline Black. Pela
primeira vez em meses, mamãe sorria.
Olhei para o portão do cemitério, mas Lavínia não estava mais lá. Vi-a passando por
dentro e sumindo entre duas sepulturas.
KITTY COLEMAN
O riso dela parecia um toque de trombeta, que sacudiu a minha espinha e me fez
abrir bem os olhos. Achei que aquele era mais um dia nublado, amortecido, mas,
quando procurei de onde vinha o riso, descobri que era um daqueles dias de outono
que adoro, frescos e cheios de brisa. Aqueles dias em que, quando menina, eu gostava
de comer maçãs e chutar folhas secas no chão.
Foi então que vi John Jackson do outro lado da rua, no portão do cemitério, e fiquei
bem quieta para ele não me ver. Mas viu. Tentei subir a colina várias vezes para
encontrá-lo e explicar. Não consegui. Acho que ele entendeu: ele entende muita coisa.
Ouvi o riso outra vez, bem ao meu lado. Caroline segurou meu braço e vi que tudo
ia ser diferente.
SIMON FIELD
Eu estava dentro da cova, em cima do caixão, quando ela chegou. O cortejo
terminou agora e estou colocando terra para encher os vãos em volta do caixão.
Depois, tenho de martelar as tábuas embaixo do caixão que nosso pai e Joe vão
puxar com uma corda. Essa cova tem mais de três metros de fundura.
Nosso pai e Joe estão cantando: Ela é minha amada, Minha pombinha, meu
amorzinho. Não é garota de ficar sonhando acordada. Ela é a única rainha da Laguna.
Eles param de cantar e eu continuo: Sei que ela me ama, Sei que me ama. Porque ela
me disse. Ela é o lírio da Laguna. Ela é meu lírio e minha Rosa, Levanto os olhos e vejo
Livy de pé na beira da cova, rindo.
- Pitomba, Livy: o que está fazendo aí? - perguntei. Ela balançou os cabelos e disse,
indiferente: - Estou olhando você, menino peralta. E a gente não pode falarpitomba.
- Disculpe.
- Vou aí onde você está.
- Não pode!
- Posso, sim. - Ela vê nosso pai e pede: - Me ajuda a descer?
- Ah, não, mocinha, não pode ir lá. Não é lugar para a senhorita. Além do mais, vai
sujar seu lindo vestido e seu sapato.
- Não tem importância, depois mando limpar. Como você desce? com escada?
- Não, não é com escada - nosso pai diz. - Numa cova funda como essa, a cada dez
centímetros mais ou menos nós prendemos uma tábua para a terra não desmoronar.
Subimos e descemos, apoiando o pé nas tábuas, mas a senhorita não faça isso - ele
explicou, mas já era tarde, Livy já está descendo. Só vejo duas pernas saindo do vestido
e das anáguas.
- Não desça, Livy - falo, mas sem nenhuma certeza. Ela vem descendo pelas tábuas
como se tivesse feito isso a vida inteira. Chega lá embaixo - Pronto, está contente de me
ver? - ela pergunta.
- Claro!
Livy olha em volta e se arrepia. - Está frio aqui. E tão cheio de lama!
- O que você queria? Afinal, isso é uma cova.
Livy raspa a ponta do sapato no caixão. - Quem está aí dentro?
Sei lá, penso. - Não sei. Quem está no caixão, nosso pai? - pergunto lá para cima.
- Deixa ver se eu adivinho - Livy diz. - Uma menina que teve pneumonia. Um
homem que se afogou num dos lagos de Heath, tentando salvar seu cachorro. Ou...
Nosso pai lembra: - O caixão é de um velho. Morte de causas naturais. - Nosso pai
gosta de saber um pouco a respeito de quem enterramos, em geral ouve dos
acompanhantes do cortejo, à beira da cova.
Livy parece desapontada. - Acho que vou me deitar diz ela.
- Não faça isso, está cheio de terra, como você falou.
Ela não me ouve. Senta na beira do caixão e deita, sujando o cabelo, a roupa, tudo. -
Pronto! - diz, cruzando as mãos no peito como se estivesse morta. Olha para o céu.
Não sei como ela não liga para a sujeira. Vai ver que endoidou: - Pára com isso, Livy,
levanta - mando.
Ela continua lá, de olhos fechados, e olho bem para ela: é estranho ver uma pessoa
tão bonita deitada na sujeira. Tem uma boca que me lembra umas cerejas com cobertura
de chocolate que Maude me deu uma vez. Fico pensando se aquela boca tem o mesmo
gosto.
- Onde está Maude? - pergunto, tentando parar de pensar nessas coisas.
Livy faz uma careta e continua de olhos fechados. - Está na biblioteca com a mãe.
- A sra. Coleman anda pintando e bordando...
Eu não devia ter falado isso, nem parecer desconfiado. Livy abre os olhos como uma
morta que de repente ressuscita. - O que você sabe a respeito da mãe de Maude?
- Nada, só que ela estava doente. Mais nada - respondo, rápido.
Fui rápido demais. Livy percebe. Engraçado, ela não é como a irmã, que está sempre
prestando atenção. Mas quando quer, Livy percebe.
- A sra. Coleman esteve doente, mas foi há dois meses - Livy conta. - Ela está com
uma aparência horrível porque deve ter algum outro problema, mas não sei o que é. -
Livy senta no caixão e diz: - Eu não sei, mas você sabe.
Fico sem saber o que fazer. - Não sei de nada - insisto.
- Sabe, sim - Livy sorri. - Você é ruim de mentira, Simon. O que sabe a respeito da
mãe de Maude?
- Nada que eu vá contar para você.
Livy parece contente e me arrependo de ter falado até essa última coisa. Ela insiste: -
Eu sabia que tinha alguma coisa e sei que você vai me contar.
- Por que tenho de contar?
- Porque, se contar, deixo me dar um beijo.
Olho para aquela boca. Ela umedece os lábios e eles ficam brilhando como chuva nas
folhas. Agora me pegou. Chego mais perto, ela afasta a cabeça.
- Primeiro, você conta o que sabe.
Não quero. É duro dizer isso, mas não confio em Livy. Quero meu beijo antes de
dizer uma só palavra. - Conto depois.
- Não, beija depois.
Repito que não e Livy vê que falo sério. Ela deita novamente no caixão. - Está certo.
vou fazer de conta que sou a Bela Adormecida e que você é o Príncipe Encantado que
vai me despertar. - Ela fecha os olhos e cruza as mãos no peito outra vez, como se
estivesse morta. Olho para cima. Nosso pai não está vendo, deve ter sentado ao lado da
cova com a sua garrafa. Não sei quanto tempo tenho, então me inclino e aperto minha
boca na dela. Ela fica parada. A boca é macia. Passo a língua nela: não tem gosto de
cereja com chocolate, mas um gosto salgado. Me afasto, Livy abre os olhos. Olhamos
um para a cara do outro sem dizer nada. Ela dá um sorrisinho.
- Simon, anda logo, rapaz. Temos outra cova ainda nosso pai manda, de cima. Ele se
debruça como se fosse cair lá dentro. Não sei se ele viu a gente se beijando, ele não diz
nada. - Precisa ajuda para subir, mocinha? - ele pergunta.
Não quero que ele desça quando Livy está comigo. Numa sepultura, três é demais.
- Pode deixar, eu subo ela aviso.
- Vou indo, assim que Simon me contar uma coisa Livy avisa.
Nosso pai dá a impressão de que vai descer na hora, então preciso ser rápido.
Falo bem baixo: -A sra. Coleman esteve na casa da nossa mãe.
- Como assim, uma visita de caridade?
- Quem disse que precisamos de caridade?
- Foi visita de negócios, não tinha nada com caridade.
- Sua mãe é parteira, não é?
- É, mas...
- Quer dizer que a mãe de Maude teve outro filho? Livy arregalou os olhos. - Maude
tem uma irmã ou um irmão secreto em algum lugar? Que maravilha, espero que seja
um irmão.
- Não é isso - digo, rápido. - Não tem irmão nem nada. Foi o contrário. Ela se livrou
de um irmão ou de uma irmã antes de nascer. Senão seria filho bastardo, entende?
- Ah! - Livy senta no caixão e me olha, séria, ainda de olhos arregalados.
Gostaria de não ter dito nada. Tem gente que finge não saber das coisas e Livy é
desse tipo. - Ah! ela repete e começa a chorar. Depois deita de novo na sujeira.
- Está tudo certo, Livy. Nossa mãe foi carinhosa. Mas a sra. Coleman precisou de um
tempo para se recuperar.
- O que vou dizer para Maude? - ela soluça.
- Não diga nada, ela não tem que saber - falo rápido, esperando não piorar as coisas.
- Ela não pode viver em companhia da mãe nessas circunstâncias.
- Por que não?
- Ela pode ir morar conosco, vou pedir à mamy. Tenho certeza que ela concorda,
principalmente quando souber por quê. - Livy pára de chorar.
- Não diga nada, Livy - peço.
Ouço um grito lá de cima: a mãe de Livy olha para nós, com Maude atrás. Ivy May
está do outro lado da cova.
- Lavínia, em nome de Deus, o que você está fazendo aí? Saia, já! - grita a mãe.
- Olá, mamy, estava me procurando? - Livy responde calmamente como se não
tivesse acabado de chorar. Senta no caixão.
A mãe de Livy se agacha e começa a chorar, não baixinho como a filha, mas alto,
com soluços grossos.
- Está tudo bem, sra. Waterhouse - Maude diz, batendo no ombro dela. - Lavínia está
ótima. Já vai subir, não é, Lavínia? - Maude olha para nós.
Livy dá um sorriso estranho, sei que ela está pensando na mãe de Maude.
- Não vá contar para ela, Livy - digo, baixo.
Livy fica calada e não me olha. Sobe rápido pelas tábuas e some antes que eu possa
dizer alguma coisa.
Ivy May joga um punhado de terra na sepultura. Cai nos meus pés.
Fica tudo calmo, quando elas vão embora. Raspo terra da cova para enfiar nos
buracos em volta do caixão.
Nosso pai aparece, senta na beirada e pendura as pernas para dentro. Sinto cheiro de
bebida.
- Vai me ajudar ou não, nosso pai? Já pode trazer a caixa de Lamb.
Desanimado, nosso pai balança a cabeça e diz: - Não vale a pena beijar meninas
como ela.
Quer dizer que ele viu. - Por quê? - pergunto.
Nosso pai balança a cabeça outra vez. - Essas meninas não são para o seu bico.
Você sabe disso, menino. Gostam de você porque é diferente delas, só. Podem até
deixar você beijar uma vez. Mas não vai chegar a nada com elas.
- Eu não quero chegar a lugar nenhum com elas. Nosso pai dá um risinho. - Claro
que não, menino.
Claro.
- Nosso pai pára de falar. - Mexo na terra outra vez, é mais fácil do que conversar
com ele.

LAVÍNIA WATERHOUSE

Finalmente, decidi.
Fiquei adoentada desde que Simon me contou.
Mamy pensa que peguei um resfriado lá na cova, não foi. Estou sofrendo de repulsa
moral. Nem o beijo de Simon (do qual jamais contarei nada) pode apagar o horror que
senti com a história de Kitty Coleman.
Quando elas foram me buscar no cemitério, mal consegui olhar para Maude. Sabia
que ela estava aborrecida comigo, mas realmente me senti mal e não podia falar.
Depois, passamos pela biblioteca e fiquei pior ainda ao ver a mãe de Maude.
Felizmente, ela não me deu atenção: estava aos chistes com uma mulher pavorosa que
Maude me disse que é sufragista. (Não sei por que tanta confusão com essa história de
voto feminino. Política é uma coisa tão maçante: qual é a mulher que vai querer votar?)
As duas foram andando de braços dados e falando numa intimidade como se fossem
amigas há anos e não tomaram conhecimento de mim, o que não faz diferença.
E realmente incrível a ousadia da mãe de Maude, depois do que fez.
Desde aquele dia, não me senti mais à vontade com Maude e, realmente, fiquei bem
adoentada, não pude vê-la, nem ir à escola. Sei que ela achou que era fingimento, mas
fiquei mesmo agastada. Depois, graças a Deus, chegaram as férias do meio do ano:
Maude foi visitar a tia em Lincolnshire e não precisei vê-la por algum tempo. Só que ela
voltou e, agora, o segredo que sei me pesa mais do
que nunca. Detesto esconder dela a verdade; para ser sincera, detesto esconder dos
outros a verdade, isso me deixa doente.
Não contei para mamy porque não quero chocá-la. Fico muito orgulhosa de
meus queridos papy e mamy e até de Ivy May. São pessoas simples, ao contrário de
mim, que sou mais complicada, mas, pelo menos, sei que eles são honestos. Esta não é
uma Casa dos Segredos A Sete Chaves.
Preciso fazer alguma coisa. Não posso sentar e esperar que a contaminação no seio
do lar dos Coleman chegue até a querida Maude. Assim, após três semanas de exame de
consciência, hoje à tarde sentei no meu quarto e escrevi, com letra disfarçada, a seguinte
carta: Prezado Sr. Coleman, E meu dever cristão informá-lo de conduta indecorosa em
seu lar, com respeito à senhora sua esposa. Sugerimos que o senhor indague à mesma o
verdadeiro motivo de sua doença, no início deste ano. Cremos que o senhor ficará
profundamente surpreso.
Escrevo esta com vistas ao bem-estar moral de sua filha, srta. Maude Coleman.
Tenho as melhores intenções com relação a ela.
com grande respeito e votos de permanecer seu mais sincero, Anônimo.
Hoje, no final da tarde, saio de casa de mansinho e enfio a carta embaixo da porta
deles. Depois disso, tenho certeza de que me sentirei melhor.
Novembro de 1906

JENNYWHITBY
Primeira coisa: a casa estava imunda. Tive de limpar de cima a baixo, duas vezes. Foi
bom só porque assim não pensei no Jack. Outra coisa: a sra. Baker gostou de me ver de
novo, acho que detestou as minhas substitutas. Essas criadas que fazem biscate não
valem nada.
Tive também o problema dos meus peitos. Toda hora eles vazavam e o leite saía
para Jack mamar e aparecia na blusa. Coloquei uns panos, troquei e só assim adiantou.
Ainda bem que a madame nem viu, não que fosse perceber. Uma vez aconteceu de
eu estar tirando o carvão da lareira no quarto da srta. Maude. Ela entrou e tive de
empilhar umas roupas de cama na minha frente, tinha poeira de carvão por todo lado,
dei uma desculpa e saí do quarto. Ela achou graça e não disse nada. Está tão contente de
eu ter voltado que não vai reclamar.
Não sei até onde a menina sabe. A sra. Baker acha que ela não sabe de nada, que
ainda é uma ovelha inocente. Mas desconfio, às vezes ela me olha ou olha a mãe, e eu
penso: essa minina não é boba.
A madame, isso que é estranho. Voltei de mansinho, com medo de encontrar com
ela depois do jeito que nós se despedimos. Achei que fosse me estranhar, mas, quando
cheguei, ela apertou minha mão e disse: - Que bom ver você outra vez, Jenny. Entre,
entre! - Me levou para a sala da manhã onde estava uma mulherzinha cheia de
saracotico, tal de srta. Black, que levantou e apertou minha mão também.
- Jenny é nosso tesouro - a madame disse para a srta. Black e eu tive de ruborizar.
Achei que estava mexendo comigo, mas era sincero, como se ela tivesse esquecido a
minha ameaça de escândalo. Avisei: - vou deixar minhas coisas no quarto e já começo o
serviço. - A madame pareceu nem ouvir e me contou: - A srta. Black e eu estamos
tramando muita coisa, não é, Caroline? Tenho certeza de que você poderia nos ajudar
bastante.
- Ah, não sei, madame. Talvez eu possa preparar um chá. E a srta. Black me
perguntou: - Escuta, Jenny, o que você acha do sofrágio da mulher?
- bom, a mulher sofre mesmo, não é? - falei, sem jeito, sem saber o que devia
responder.
A srta. Black e a madame riram, embora eu falasse sério. A srta. Black então
explicou:
- Sufrágio é o voto, o direito das mulheres votarem nas eleições.
- Mas as mulheres não votam - falei.
- Não votam porque não podem votar, mas deviam ter esse direito, como os homens.
É por isso que estamos lutando, sabe? Você não acha que tem tanto direito quanto
seu pai, seu irmão, seu marido, de eleger quem vai governar o país?
- Não tenho nenhum desses - respondi, pois a srta. Black não falou em filho.
- Jenny, estamos lutando pela sua igualdade de direitos - a madame explicou.
- É muito gentil da sua parte, madame. E a senhora quer café ou chá?
- Ah, café, acho. Não, Caroline?
As duas ficam juntas o dia todo, tramando contra o governo ou alguma coisa assim.
Eu devia estar contente pela madame, que está mais alegre que antes. Mas não estou.
Tem alguma coisa errada com ela, como uma piorra com corda demais que está
girando, girando, mas vai quebrar.
Não que isso agora me interesse muito, tenho com quem me preocupar. No primeiro
sábado que folguei e fui para a casa de minha mãe, chorei quando vi Jack. Só cinco dias
longe e ele já parecia filho de outra mulher. Eu ainda tinha um pouco de leite, mas ele
não aceitou, queria a moça do outro lado da rua que está amamentando ele depois que
perdeu seu menino. Chorei de novo quando vi ele mamando nela.
Não sei como vou pagar a ama-de-leite todos esses meses. Gostaria de pensar nisso
quando garanti meu emprego aqui com a madame. Quatro meses atrás, ela teria
me dado qualquer pagamento, mas agora, se eu pedir aumento, ela decerto vai falar em
sofráge de mulher. Uma coisa eu aprendi: é só ameaçar de chantagem que resolve.
Acho que agora ela quer saber é de votos da mulher.
Outra coisa engraçada: a madame está ocupada como se nada tivesse acontecido
com ela nesse verão, mas tem alguém que ainda lembra. Eu estava colocando os sapatos
no corredor, todos engraxados e prontos para serem usados no dia seguinte, quando
enfiaram uma carta embaixo da porta da frente. Peguei o envelope e olhei: era para o sr.
Coleman. Uma letra esquisita, como a de uma minina escrevendo sentada numa cadeira
de balanço. Abri a porta e olhei para ver se tinha alguém na rua. Era uma noite de
nevoeiro, mesmo assim vi a srta. Lavínia correndo pela rua até sumir no escuro.
Não coloquei a carta na salva de prata para entregar ao patrão. Fiquei com ela e, na
manhã seguinte, sentei na cozinha para tomar uma xícara de chá e mostrei para a sra.
Baker. Engraçado como ficamos mais amigas depois que Jack nasceu. Ela não sabe da
chantagem que fiz, mas deve desconfiar. Nunca perguntou como é que voltei para o
emprego.
- Essa menina está escrevendo para o patrão só para dar encrenca - comentei.
A sra. Baker olhou bem a carta, botou no vapor do bico da chaleira e num minuto
abriu o envelope. E isso que gosto nela: às vezes pode ser uma mulher dura
demais, mas é decidida.
Li por cima do ombro dela. Quando terminamos, a gente se olhou e eu perguntei:
- Como ela sabe de tudo isso? - e achei que a sra. Baker não sabia do problema da
patroa.
Sabia sim, a sra. Baker não é boba. Deve ter concluído sozinha. Ela disse então: - Essa
menina patusca. Querendo criar problema. - A sra. Baker abriu a portinha do fogão e
jogou a carta no fogo.
Como eu disse, ela é decidida.
EDITH COLEMAN
Ela abriu a porta para mim e pensei que estivesse sonhando. Mas sabia que estava
bem acordada, não sou do tipo que sonha. Claro que ela deu um sorriso falso para
mostrar que eu não esperava encontrá-la.
- O que você faz aqui? - perguntei. - Onde está a criada que contratei? Fiquei
supervisionando a casa enquanto Kitty esteve doente e contratei várias, até encontrar
uma que servisse.
- Voltei para cá, madame - informou a impertinente.
- Por ordem de quem?
- Melhor perguntar à minha patroa, madame. Posso guardar seu casaco, madame?
- Não pegue nele. Vá esperar na cozinha. Eu subo sozinha, sem ser anunciada.
A criada deu de ombros e tenho a impressão de que disse: - Arranje-se.
Ia responder, mas não me dei ao trabalho: não é com ela que preciso falar. Claro que
Jenny não estaria lá se Kitty não tivesse autorizado, agindo pelas minhas costas e
contrariando as minhas ordens.
Entrei na sala da manhã sem ser anunciada. Kitty estava com a srta. Black, que eu
havia conhecido numa outra ocasião, rapidamente. Na hora, não prestei muita atenção
nela, que falou sem parar sobre sufrágio feminino, tema que acho insuportável.
As duas se levantaram e Kitty me deu um beijo. - vou tirar seu casaco, mamãe
Coleman. Por que Jenny não tirou, na entrada?
- Era o que eu queria conversar com você - respondi, sem tirar o casaco. Não tinha
muita certeza se ia fazer a visita. Pena que Kitty estivesse acompanhada, preferia não
falar na frente de uma estranha.
- Mamãe Coleman, a senhora já conhece Caroline Black - disse Kitty e virou-se para
a outra: - Caroline, você se lembra de minha sogra, sra. Coleman?
- Claro - a senhorita disse. - E um prazer encontrá-la outra vez, sra. Coleman.
- Aceita sentar-se conosco? - Kitty perguntou, mostrando os sofás. - Jenny acaba de
trazer o chá, e a sra. Baker fez bolinhos.
Sentei-me, estava esquisita, de casaco. Nenhuma das duas pareceu notar.
- Caroline e eu estamos discutindo a União Sociopolítica das Mulheres - Kitty
informou. -A senhora sabe que abriram um escritório em Londres perto de Aldwych?
É bem prático para as redações dos jornais e de lá eles podem influenciar melhor os
membros do parlamento sobre o sufrágio feminino com uma base aqui, em vez de em
Manchester.
- Sou contra a mulher votar - interrompi. - Não precisam: os maridos podem
perfeitamente fazer isso por elas.
- Há muitas mulheres que são solteiras, como eu, e precisam ser representadas
- argumentou a srta. Black. -Além disso, nem sempre a esposa tem a mesma opinião do
marido.
- Em qualquer bom casamento a mulher concorda em tudo com o marido. Senão,
para começo de conversa, não deveriam ter se casado.
- É mesmo? Kitty, você sempre votaria no mesmo candidato que seu marido? - a
srta. Black perguntou.
- Eu preferia votar no Partido Conservador - Kitty respondeu.
- Está vendo? Os Coleman sempre votam nos conservadores - falei.
E Kitty aparteou: - Mas isso porque um conservador pode apoiar o sufrágio da
mulher. Se um candidato liberal ou trabalhista declarasse abertamente seu apoio, eu
votaria nele.
Fiquei horrorizada com essa notícia. - Não seja boba, claro que não votaria.
- Não estou preocupada com os partidos políticos, mas com uma questão moral.
- Você deveria estar preocupada com questões mais ligadas ao lar - falei.
- O que a senhora quer dizer? - percebi que Kitty perguntou sem me olhar.
- Por que Jenny está aqui? Eu a despedi em julho. Kitty fez que não entendeu e
sorriu para a srta. Black como se quisesse se desculpar por mim. - E eu a contratei de
novo em outubro.
- Kitty, dispensei sua criada há quatro meses por comportamento imoral. Uma
decisão dessas é irreversível e ela não pode trabalhar nessa casa.
Finalmente, minha nora olhou para mim. Demonstrava quase tédio. - Pedi para
Jenny voltar porque é ótima, estava sem emprego e precisamos de uma boa criada.
As moças que a senhora contratou não eram boas.
Alguma coisa nela me disse que estava mentindo, mas eu não sabia no quê.
- Esqueceu o que ela fez? - perguntei.
Kitty suspirou. - Não, não esqueci. Mas acho que isso não tem muita importância.
Estou preocupada com outras coisas e queria uma criada que cuidasse direito da
casa.
Aprumei-me. - Isso é ridículo! - declarei. - Não pode ter aqui uma criada que... -
parei e virei-me para a srta. Black, que me olhava, calma. Não queria medir as palavras,
mas não era de bom-tom usar da franqueza na presença de uma estranha.
Interrompi a frase, esperando que Kitty a completasse. Resolvi mudar de tática: -
Que exemplo essa criada vai dar para Maude e para meu filho?
- Eles não sabem, pensam que Jenny esteve doente.
- O alicerce moral dessa casa vai se corroer aos poucos com a presença dela, quer
Maude e meu filho saibam ou não.
Kitty sorriu, o que me pareceu a reação menos adequada.
- Mamãe Coleman, sabe que sou muito grata por ter cuidado da casa enquanto
estive doente. Foi generosa em dar seu tempo e seu esforço. Mas está na hora de eu
voltar a controlar a minha casa. Resolvi que Jenny pode trabalhar para nós e não se fala
mais nisso.
- O que diz meu filho?
- Felizmente, Richard ignora os assuntos domésticos. Foi o que a senhora me
ensinou sobre como administrar uma casa: jamais incomode o seu marido.
Não tomei conhecimento do que minha nora disse, mas não esqueci. - Tenho de
conversar com o meu filho.
- A senhora acha que ele gostaria de discutir isso?
- Acho que qualquer marido gostaria de saber que seu lar está sob uma ameaça
moral.
- Fica para o chá, mamãe Coleman? - Kitty perguntou com toda a delicadeza, mas as
palavras subentendiam que eu queria ir embora.
Queria mesmo. - Não, obrigada - falei, levantando-me. - Não ponho os pés nessa
casa enquanto essa criada estiver aqui. Adeus, Kitty. - Virei-me e saí. Kitty não
me acompanhou e ainda bem que a criada impertinente não estava na entrada para me
ver: não sei o que seria capaz de dizer a ela.
Uma das conseqüências ruins de ter o que chamaria de um "temperamento
determinado" é que às vezes fico num dilema. Se necessário, não tenho qualquer
escrúpulo em cortar relações com Kitty, mas não posso dizer o mesmo em relação ao
meu filho e à minha neta. Afinal, não é culpa deles que Kitty seja relapsa, moralmente.
Por outro lado, eu não queria envolver Richard no que, como a própria Kitty me
lembrou, são problemas de mulher.
Mesmo assim, achei que ele devia saber da indecência da esposa e da decisão de
aceitar Jenny de volta ou, pelo menos, da amizade dela com aquela mulher
questionável.
Uma noite, convidei meu filho para vir a minha casa sozinho, com a desculpa de
discutir a herança do falecido pai. Assim que o vi, sabia que eu não ia comentar nada
sobre Jenny, nem sobre Caroline Black. Ele estava alegre, apesar do dia de trabalho; me
fez lembrar como era quando voltou da lua-de-mel.
É isso, pensei sem meias palavras: ela o levou para o leito outra vez e, assim, pode
fazer o que quiser fora dele.
Minha nora não é tola. Mudou muito desde o dia em que Richard a apresentou, uma
moça miúda, desajeitada, do interior, usando vestidos que já estavam fora de moda há
dois anos. Não gosto de fingir, mas quando olhei para o meu filho vi que o tinha
perdido.
RICHARD COLEMAN
Este ano, passaremos o réveillon em casa.
Fevereiro de 1907

GERTRUDE WATERHOUSE
Deus! Acabo de chegar de uma tarde amiga na casa de Kitty Coleman e estou com
uma dor de cabeça horrível.
Em janeiro, aconteceu o que sempre temi: Kitty Coleman mudou suas tardes para as
quartas-feiras, assim poderia ir a uma espécie de reunião em Highgate, às terças.
(Pelo menos, com isso ela não vem às minhas tardes!) Então, sou obrigada a ir, não
toda semana, espero, mas pelo menos uma ou duas vezes ao mês. Consegui escapar das
primeiras tardes, dizendo que estava gripada ou que as meninas não estavam bem, mas
eu não podia dar desculpas para sempre.
Assim, lá fui eu hoje, com Lavínia e Ivy May de companhia. Chegamos e a sala já
estava cheia de mulheres. Kitty Coleman nos recebeu e flanou pela sala, sem fazer as
apresentações devidas. Devo dizer que foi a mais barulhenta tarde amiga a que já
compareci. Todas as presentes falavam ao mesmo tempo e não sei se alguém
ouvia alguma coisa. Mas eu ouvi e, com isso, abri bem os olhos e fechei bem a boca.
Não disse uma palavra. A sala estava repleta de sufragistas.
Duas delas discutiam um encontro que tinham em Whitechapel. Outra mostrava
pela sala o desenho de uma mulher na janela de um trem, com uma placa na qual estava
escrito: Voto da Mulher. Quando vi, chamei minhas filhas e mandei Lavínia ajudar
Maude a servir o chá. Maude servia na sala e estava com uma expressão tão
infeliz quanto a minha. Recomendei: - Não ouçam nada do que estão dizendo aqui.
Lavínia olhava bem para Kitty Coleman: - Ouviu o que eu disse, Lavínia? - Ela balançou
a cabeça como se quisesse sacudir minhas palavras, fez uma cara esquisita e foi
procurar Maude. A seguir, falei com Ivy May: - Filha, por favor, desça e pergunte à
cozinheira se ela precisa de ajuda.
Ivy May concordou e sumiu. E uma boa menina. A mulher ao meu lado dizia que
tinha falado num comício em Manchester e jogaram tomate podre nela.
- Ainda bem que não foi ovo podre - gritou uma outra mulher e todas riram. bom,
quase todo mundo.
Algumas senhoras, como eu, estavam bem quietas e pareciam tão chocadas quanto
eu. Deviam ser velhas amigas de Kitty que foram à tarde, esperando uma conversinha
amena e os deliciosos bolinhos da sra. Baker.
Uma delas, menos recatada que eu, finalmente perguntou: - O que vocês tanto falam
nesses comícios em Manchester?
A mulher do tomate podre olhou para ela como quem não acreditava no que ouviu:
- Ora, falamos a favor do voto das mulheres, claro!
A pobre senhora ficou rubra como se ela é que tivesse levado um tomate. Fiquei
mortificada por ela.
Caroline Black veio em defesa da outra: - A União Sociopolítica de Mulheres luta por
uma lei a ser encaminhada ao parlamento para conceder às mulher o direito de voto nas
eleições, direito esse que os homens têm - explicou. Estamos recebendo apoio de
mulheres e de homens em todo o país: falamos em público, escrevemos para jornais,
tentamos a aprovação de membros do parlamento e fazemos abaixo-assinados. Você já
viu o folheto da USPM?
Pegue um e leia, é bem informativo. Você pode fazer uma doação na mesa ao lado
da porta, quando sair. E lembre de passar adiante o folheto depois de ler, é incrível o
interesse que ele desperta.
Ela estava à vontade, falando calma e gentilmente e, ao mesmo tempo, com firmeza.
Várias mulheres aceitaram os folhetos e deixaram moedas sobre a mesa, inclusive eu
(fico envergonhada de confessar). Quando a pilha de folhetos passou por mim, Caroline
Black estava me olhando com um sorriso tão simpático que tive de pegar um. Não pude
enfiá-lo atrás do sofá, como gostaria. Fiz isso depois, em casa.
Kitty Coleman não estava tão segura quanto Caroline Black, mas continuava muito
agitada, os olhos brilhantes, o rosto rosado como se ela estivesse num baile e não
parasse de dançar. Não parecia muito saudável.
Sei que não devo dizer isso, mas gostaria que ela jamais tivesse conhecido Caroline
Black. Kitty mudou da água para o vinho. Sem dúvida, saiu do mau estado em que se
encontrava, mas não é a mesma pessoa de antes: ficou mais radical (não que eu
aprovasse muito como ela era, mas ainda era preferível). Quando não está nas
tardes amigas com as sufragistas por todo canto, não pára de falar em política e as
mulheres isso, as mulheres aquilo até que eu tenho vontade de tapar os ouvidos.
Ela comprou uma bicicleta e pedala por aí, mesmo em dia de vento ou chuva, fica
com a barra das saias sujas, quando já não estão manchadas de giz dos avisos que
escreve
nas calçadas sobre reuniões, encontros e tal. Sempre que a vejo agachada numa
calçada, escrevendo alguma coisa, atravesso a rua e finjo que não a vi.
Nos últimos tempos, nunca está em casa à tarde, fica em reunião e larga a pobre
Maude, que vergonha. Às vezes, considero Maude como minha terceira filha, está
sempre em nossa casa. Não estou reclamando: Maude é muito atenciosa, serve o chá
comigo ou ajuda Ivy May a fazer o dever de casa. É um bom exemplo para Lavínia,
mas lastimo dizer que minha filha jamais segue esse modelo. E tão estranho que uma
filha que não recebe atenção da mãe seja uma boa menina, enquanto outra que tem toda
a atenção do mundo seja tão difícil e egoísta.
Foi um alívio sair da tarde amiga, de Kitty. Lavínia também estava ansiosa para ir
embora. Chegamos em casa e ela foi muito gentil comigo, mandou que fosse me deitar
por causa da dor de cabeça e insistiu em esquentar o jantar. Nem me importei por ter
queimado a sopa.
JENNYWHITBY
Deus meu, espero que essas tardes amigas não durem.
Desde que a madame mudou o dia para as quartas, estou descadeirada. Ainda bem
que Maude me ajuda, não sei se vai continuar. Esta tarde inteira ela parecia que ia
estourar, mesmo quando Lavínia veio fazer companhia.
Essa aí, a sita. Lavínia, me faz rir. Quando vem aqui, olha a madame com uma raiva!
E quando o patrão está em casa, a minina faz uma cara intrigada e com pena.
Não disse nada, nem tentou mandar outra carta: fiquei de olho. Não quero que ela
destrua essa casa, pois preciso do meu dinheiro, não estou conseguindo sustentar o
Jack. Quer dizer, estou, mas faço uma coisa que jamais imaginei que seria capaz: vendo
as colheres de um velho faqueiro de prata que fica no guardalouça, a madame herdou
da mãe. Eles não usam esse talher e só eu mexo, para dar lustro. Sei que isso não é certo,
mas não tenho escolha.
Hoje, finalmente, ouvi as sofragistas, enquanto servia os bolinhos. Ouvi e tive
vontade de cuspir. Falam em ajudar as mulheres, mas só as que elas querem. Não estão
lutando pelo meu voto, só pelo das mulheres que têm posse ou que foram para a
universidade. A tal Caroline Black teve o descaramento de pedir para eu doar um
pouco do meu pagamento "pela causa". Eu disse que não daria um centavo, pois a causa
não tinha nada a ver comigo!
Fiquei tão fula de raiva que tive de contar para a sra. Baker depois, quando
estávamos lavando a louça do chá.
- E o que essa tal disse? - perguntou a sra. Baker.
- Ah, que os homens jamais aceitariam conceder o voto para todas as mulheres ao
mesmo tempo, que as sofragistas tinham de começar com algumas e depois que
conseguissem lutariam por todas. Mas não é sempre assim? Primeiro elas? Por que não
podem lutar primeiro por nós? Deixa que as mulheres que trabalham mostrem como
são as coisas.
A sra. Baker riu. - Você não ia saber em quem votar nem se o candidato mordesse a
sua bunda.
- Eu ia saber, sim! - falei, alto. - Não sou tão burra. Eu votaria no Partido Trabalhista,
claro, pois sou uma trabalhadora. Mas essas madames lá de cima não votariam nesse
partido, nem mesmo no Partido Liberal. Elas iam votar nos conservadores, como os
maridos, e os conservadores nunca vão dar voto para as mulheres, não interessa o que
elas digam.
A sra. Baker ficou quieta. Talvez estivesse surpresa por eu falar em política.
Para dizer a verdade, eu também estava. Tenho visto tanta sofragista que elas
começam a me fazer falar besteira.
Julho de 1907

MAUDE COLEMAN
Papai e eu estávamos no planetário, quando percebi. Era a nossa saída das sextas-
feiras à noite e tínhamos instalado o telescópio na colina do parlamento.
Observamos algumas estrelas e estávamos esperando Marte aparecer. Eu não me
importava em esperar: às vezes, conversávamos, mas em geral ficávamos apenas
sentados, olhando.
Na hora em que fui tomar um gole de chá da nossa caneca, senti uma dor esquisita
na barriga, como se tivesse comido demais. Mas mal havia tocado na torrada com queijo
derretido que a sra. Baker fez no jantar, não sinto fome no verão. Puxei meu banquinho
dobrável para me concentrar no que papai dizia.
- Há pouco tempo, numa reunião da Sociedade, alguém disse que este mês a
oposição de Marte deve ser muito boa ele disse. - Não sei se esse telescópio vai ter
potência suficiente. Devíamos ter emprestado um da Sociedade, mas já deve estar com
alguém. Tudo isso será muito mais fácil quando o observatório for construído.
- Se for - lembrei a ele. A Sociedade Científica Hampstead procurava um lugar em
Heath para construir um observatório, mas havia sempre um problema e o assunto
causava discussões acaloradas na página de cartas do jornal.
Senti uma coceira no meio das pernas, estava molhada como se eu tivesse
derramado chá no meu colo. De repente, entendi o que era. -Ah! - exclamei, sem me dar
conta.
Papai estranhou.
- Não foi nada, foi... - Parei, sentindo uma dor.
- Você está bem, Maude?
De repente, a dor ficou tão forte que mal pude respirar. Parou um momento e
começou de novo, como se uma mão apertasse minha barriga e soltasse.
- Papai, não estou me sentindo bem, desculpe. Preciso voltar para casa.
Papai ficou mais sério. - O que foi? O que houve?
Fiquei tão sem graça que mal soube o que dizer. - E, é uma coisa que eu preciso falar
com mamãe. - Na mesma hora, desejei que tivesse dito apenas que estava com dor de
estômago. Não sei mentir direito.
- Por quê... - papai parou a frase. Acho que entendeu o que era. Pelo menos, não
perguntou mais. - Levo você em casa - ele resolveu, desmontando o tripé do telescópio.
- Posso ir sozinha, é perto e você não precisa arrumar tudo outra vez.
- Claro que vou com você. Não quero minha filha sozinha em Heath, à noite.
Gostaria de contar para ele que, desde que mamãe ficou tão ocupada com as
sufragistas, comecei a andar por toda parte sozinha: vou ao cemitério, ao Village, até do
outro lado de Heath, a Hampstead. Às vezes, Lavínia me acompanha, mas, geralmente,
fica nervosa de ir longe. Aquela não era hora de contar essas coisas para papai.
Além disso, ele não sabia quão envolvida mamãe tinha ficado: falava sobre o
sufrágio da mulher com todo mundo, menos com ele, e em geral fazia as atividades da
USPM de dia e nas noites em que papai estava ocupado. Ele pensava que mamãe ficava
em casa todo dia, lendo e fazendo jardinagem, como antes.
Arrumamos as coisas em silêncio. Ainda bem que estava muito escuro para papai
ver o meu rosto: enrubesci. Desci a colina atrás dele, sendo obrigada a andar mais
devagar quando a dor aumentava. Papai não parecia notar e continuou descendo como
se estivesse tudo certo. De vez em quando, eu corria para alcançá-lo.
Passamos pelo final de Heath, onde os homens pareciam jorrar da porta do Buli and
Last, com suas cervejas. - Papai, posso ir sozinha daqui. Tem bastante gente na rua e
vou bem.
- Bobagem. - Papai continuou andando. Chegamos em casa e ele abriu a porta. Uma
lamparina estava acesa na entrada. Papai pigarreou. - Sua mãe está visitando uma
amiga doente, mas Jenny pode cuidar de você.
- É! - Fiquei encostada na parede, temendo que a mancha atrás aparecesse.
Morreria de vergonha, se papai visse.
- Então, você está bem? - Papai virou-se, parado na porta.
- Estou.
Ele fechou a porta e resmunguei. Minhas coxas estavam grudentas e eu queria me
deitar. Mas precisava de ajuda. Acendi uma vela e desci a escada, sem saber se entrava
na sala matinal de mamãe. Talvez ela estivesse lá, sentada no sofá, lendo um livro.
Olharia para mim e diria, como de costume: -- Olá, que coisas celestiais você viu?
Abri a porta. Claro que ela não estava. Às vezes, eu achava que aquela sala não era
mais de mamãe, mas de uma causa. Os velhos sinais dela estavam todos lá: o xale de
seda amarelo sobre o sofá, o piano com um jarro de flores secas, os desenhos de plantas.
Notei um cartaz dobrado no sofá com a frase: Ação sim, palavras não; a pilha de
folhetos da USPM no piano e o álbum de recortes sobre a mesa, mais notícias de jornais,
cartas e fotos empilhados ao lado de uma tesoura e um vidro de cola; a caixa de giz, os
impressos, os papéis com palavras rabiscadas. Papai nunca entrou lá. Se entrasse, ficaria
surpreso.
Fechei a porta, subi para o quartinho de Jenny e bati na porta: - Jenny? - chamei.
Ninguém respondeu, bati de novo, ouvi um resmungo e Jenny abriu a porta, piscando,
com uma marca rosada onde encostou o rosto no travesseiro. Estava com uma comprida
camisola branca e descalça. - O que houve, srta. Maude? - resmungou, esfregando o
rosto.
Reparei nas grossas unhas amarelas dos pés de Jenny. Preciso da sua ajuda, por
favor - falei, baixo.
- Não pode esperar de manhã? Eu estava dormindo, não? Tenho de levantar mais
cedo que todos.
- Desculpe, é que fiquei menstruada e não sei o que fazer.
- O quê?
Repeti e fiquei ruborizada outra vez.
- Ah, céus, o paquete - murmurou Jenny. Olhou para mim, de cima a baixo.
- Coitada, srta. Maude, começou cedo, doze anos, não tem nem peitos!
- Não sou tão criança. vou fazer treze daqui a oito meses. -Vi que estava fazendo
papel de boba e chorei.
Jenny abriu a porta toda. - Espera, não precisa chorar. Ela me abraçou. - Melhor
entrar, não adianta ficar aí berrando.
O quarto de Jenny foi da minha babá, quando eu era pequena. Já tinha entrado lá
algumas vezes, depois que Jenny chegou, e ainda era um lugar familiar. Cheirava a
corpo cálido, cobertores de lã e óleo de cânfora, como as compressas que a babá punha
no meu peito quando eu pegava um resfriado. O vestido, o avental e a touca de Jenny
estavam dependurados em pregos. A escova de cabelo se encontrava na pequena
prateleira sobre a lareira, perto de um retrato de Jenny com um bebê no colo. Os dois
estavam na frente de uma cortina com palmeiras pintadas e Jenny usava a melhor
roupa. Pareciam sérios e surpresos, como se não esperassem o espocar doflash do
fotógrafo.
- Que retrato é esse? - Eu nunca tinha visto.
Jenny estava vestindo um roupão e nem olhou. - É meu sobrinho.
- Você não falou nele. Como se chama?
- Jack. -Jenny cruzou os braços. - bom, sua mãe contou alguma coisa para você ou
deu alguma coisa para usar?
Neguei.
- Claro que não, eu devia imaginar. Sua mãe anda tão ocupada, salvando mulheres,
que nem cuida da que tem em casa.
- Eu sei o que é, já li nos livros.
- Mas não sabe o que fazer, não é? Isso é que interessa, o que fazer. Quem se
incomoda? Ação sim, palavras não: é o que sua mãe vive dizendo, não?
Fiquei séria.
Jenny apertou os lábios. - Desculpe-me, srta. Maude. Muito bem, vou emprestar um
pouco dos meus até conseguirmos o que precisa. - Ela se ajoelhou ao lado de um
bauzinho onde guardava suas coisas e pegou um pedaço de pano grosso e um cinto
estranho que eu nunca tinha visto. Mostrou como dobrar o pano em três e prender no
cinto.
Falou do balde com água salgada para colocar o pano e deixar embaixo da cama, ao
lado do penico. Depois, desceu para pegar um balde e uma garrafa de água quente para
a dor, enquanto fui ao meu quarto me lavar e tentar colocar a toalha e o cinto.
Parecia que as minhas anáguas e as calças três quartos tinham se enrolado no meio
das minhas pernas, fazendo eu andar como uma pata. Tive certeza de que todo mundo
ia perceber.
Por pior que tinha sido aquilo acontecer quando estava com papai, fiquei contente
porque pelo menos Lavínia não estava lá. Ela jamais me perdoaria por ter
ficado menstruada primeiro. Ela sempre foi a belezinha, a mulherzinha, até quando
éramos pequenas ela me mostrava as mulheres nos quadros pré-rafaelistas, de cabelos
cacheados e corpos redondos. Jenny tinha razão: estou gorda e, como a avó já disse uma
vez, as roupas em mim parecem dependuradas num varal. Lavínia e eu sempre
achamos que ela ficaria menstruada primeiro, usaria espartilho primeiro, casaria
primeiro, teria filhos primeiro. Às vezes, aquilo me aborrecia, mas, no fundo, ficava
calma.
Nunca disse a ela, mas não tenho tanta certeza de querer me casar e ter filhos.
Eu ia ter de esconder dela o cinto, os panos e as cólicas. Não gostava de ter segredos
com a minha melhor amiga, embora ela guardasse um. Desde que mamãe começou a
andar com Caroline Black, Lavínia está estranha com mamãe, mas não diz o motivo. Se
pergunto, ela apenas diz que as sufragistas são más e tenho certeza de que não é só isso.
Tem alguma coisa a ver com Simon e com ficar lá embaixo da sepultura. Ela não vai
dizer, nem Simon. Fui sozinha ao cemitério e perguntei, mas ele fez que não me ouviu e
continuou cavando.
Jenny voltou com o balde e me abraçou. - Agora você é uma mulher. Daqui a pouco,
vai usar espartilho. Precisa contar para a sua mãe, amanhã.
Fiz sinal com a cabeça, concordando. Mas sabia que no dia seguinte não diria nada.
Mamãe não estava lá quando precisei tanto. Amanhã não interessava mais.
Fevereiro de 1908

KITTY COLEMAN
Estranho: foi mais difícil enfrentar Maude do que Richard.
A reação de Richard era previsível: uma raiva que ele controlou na frente da polícia
e liberou no coche, a caminho de casa. Falou alto do nome da família, da desgraça para
a mãe, da inutilidade daquela causa. Tudo isso eu esperava, pelo que soube dos
maridos das outras mulheres. Realmente, tive sorte de passar tanto tempo sem Richard
reclamar. Ele pensava que minhas atividades na USPM fossem inocentes, para
comparecer entre um chá e outro. Só agora entendeu que eu também sou uma
sufragista.
Eu só não esperava o que ele disse no coche: "E a sua filha? Está se tornando uma
mulher, precisa de um exemplo melhor do que o que você está dando."
Fiquei bem séria: a frase era tão estranha que ele devia estar querendo dizer outra
coisa. - Como assim? - perguntei.
Richard olhou para mim, incrédulo e constrangido: Ela não lhe contou?
- Contou o quê?
- Que já começaram as, as... - Ele fez um gesto vago para a minha saia.
- Já?! - exclamei. - Quando?
- Há meses.
- Como você sabe e eu não?
- Porque eu estava com ela, só isso! Foi constrangedor para ambos. Ela acabou tendo
de falar com Jenny, você não estava em casa. Eu devia ter percebido quão envolvida
nessa bobagem você estava.
Richard podia ter dito mais, deve ter percebido que não precisava. Lembrei-me de
quando as minhas regras começaram e corri para a minha mãe, chorando, e de como ela
me acalmou.
Ficamos calados pelo resto do caminho. Chegamos em casa, peguei uma vela na
mesa da entrada, acendi e subi direto para o quarto de Maude. Sentei na beira da cama
dela e olhei-a naquela luz tênue, pensando que outros segredos ela estaria me
escondendo e como eu iria dizer o que precisava.
Ela acordou e sentou-se antes que eu dissesse qualquer coisa. - O que foi, mamãe? -
perguntou, com uma voz tão clara que não sei se estava dormindo.
Era melhor ser sincera e direta. - Sabe aonde eu fui hoje, enquanto você estava na
escola?
- Na sede da USPM?
- Fui a Caxton Hall lutar pelo sufrágio das mulheres no parlamento. Depois, fui à
praça do parlamento com outras mulheres, tentando entrar na Câmara dos Comuns.
- E, e... conseguiu?
- Não, fui presa. Acabo de voltar da delegacia de Cannon Row, com seu pai. Ele está
muito zangado, é claro.
- Por que você foi presa? O que fez?
- Não fiz nada. Estávamos apertadas no meio da multidão quando os policiais nos
agarraram e nos jogaram no chão. Levantamos, eles nos derrubaram de novo e assim
foi, por várias vezes. Tenho muitos arranhões nos ombros e as costelas doídas. Todas
nós ficamos machucadas.
Não contei que muitos arranhões foram por montar a égua Black Maria e por andar
no furgão da polícia: o motorista fazia curvas tão fechadas que eu era jogada de um
lado para o outro e estava tão cheio de pessoas detidas que tive a impressão de estar de
pé num caixão de defunto. Também não contei do fedor, pois tenho certeza de que os
policiais urinaram dentro do furgão para nos castigar.
- Caroline Black também foi presa? - perguntou Maude.
- Não, ela ficou para trás, falando com alguém e, quando viu, a polícia já havia nos
prendido. Ficou muito aborrecida por ter sido excluída, mas esteve na delegacia de
Cannon Row para nos ver.
Maude ficou quieta. Eu queria perguntar sobre o que Richard havia me contado,
mas não consegui. Era mais fácil falar sobre o que me acontecera.
- Amanhã cedo estarei no tribunal. Pode ser que me mandem direto para o presídio
de Holloway. Por isso, queria me despedir agora.
- Mas... quanto tempo vai ficar... presa?
- Não sei, talvez mais de três meses.
- Três meses! Como vamos fazer?
- Você? Vai ficar ótima. Só preciso que faça uma coisa para mim.
Maude me olhou, ansiosa.
Antes de pegar o cartão de doação e falar na semana de levantamento de fundos que
a USPM estava promovendo, eu sabia que estava agindo errado. Como mãe, devia estar
dando segurança e apoio para minha filha. Mesmo assim, mesmo quando Maude fez
uma carinha desapontada, continuei explicando que era para ela pedir aos nossos
vizinhos e às visitas que marcassem uma quantia no cartão e mandassem o dinheiro
para o escritório da USPM no final da semana. Não sei por que fui tão dura.
DOROTHY BAKER
Em geral, não me meto nas tricas e futricas dessa família. Chego às sete e meia da
manhã, faço a comida e saio às sete da noite ou às seis, se o jantar é de frios. Fico de
fora, não tenho opinião ou, se tenho, guardo para mim. Tenho a minha casinha, os meus
filhos criados, com seus problemas: não preciso de nada mais que isso. Não sou como
Jenny que, se puder, mete o nariz em tudo. Milagre que ainda não lhe cortaram a
bicanca.
Mas, realmente, tenho pena da srta. Maude. Outra noite, eu estava indo para casa
num nevoeiro forte e a vi na minha frente. Nunca a tinha visto no Parque Tufnell, não
tem o que fazer lá, a vida dela é em outros lugares, para norte e para oeste, em Highgate
e Hampstead e não a leste, no Parque Tufnell e em Holloway. É o que se espera de uma
família daquela classe.
As ruas aqui são bem perigosas, por isso mesmo não gostei de vê-la sozinha,
principalmente nesse nevoeiro. No meio dele, qualquer um pode sumir para sempre.
Achei que devia segui-la para garantir que não aconteceria nada. Já sabia aonde ela
ia e até entendo: se fosse ela, também iria lá, embora eu more perto e não tenha muito
interesse de ver. A diferença é que não tenho ninguém da família lá dentro. Meus filhos
vivem seus problemas, mas respeitando os limites da lei.
A srta. Maude foi andando ligeiro: apesar do nevoeiro e de não conhecer as ruas, ela
se orientava. Chegou lá, parou e olhou. Deve ter se assustado quando o prédio
surgiu no nevoeiro: o Castelo, como as pessoas da região chamam. Até parece um,
com uma grande entrada em arco, torres e ameias de pedra. Lugar estranho para
instalar uma cadeia. Meus filhos costumavam brincar de cavaleiros e donzelas na frente,
quando tinham coragem. O Castelo tem também uma fila de janelinhas num muro
de tijolo longe da rua: é lá que devem ficar os presos.
Nessa hora, a srta. Maude e eu levamos o mesmo susto: aposto que quem estava na
frente da cadeia era aquela tal de Black, andando de um lado para o outro. Ela é
baixinha, mas estava com um casacão comprido até os calcanhares e parecia mais alta.
Cantava o seguinte: Cante uma música pelo plano da moça Cristabel. Vinte e quatro
sufragistas apertadas num furgão. Quando a porta do furgão foi aberta, elas foram para
a Câmara dos Comuns: não era um prato cheio para a dupla Campbell-Bannerman?
Asquith estava contando dinheiro no cofre; Lloyd George, no meio das mulheres
liberais, dizendo coisas gentis. Então, aqueles homenzinhos tiveram uma grande idéia: -
Vamos deixar as mulheres votarem e seremos todos amigos outra vez.
A tal Black ficou de frente para as janelinhas e gritou: - Animem-se, minhas caras,
estão na metade do caminho, só faltam três semanas! E temos muito a fazer quando
vocês saírem!
- A voz dela quase não se ouvia no nevoeiro, não sei como achou que alguém iria
ouvir lá dentro da cadeia.
A srta. Maude tinha visto o suficiente: virou-se e correu. Fui atrás, mas, como já faz
tempo que não consigo correr, eu a perdi de vista. Estava anoitecendo, fiquei
preocupada. As lojas estavam fechadas e dali a pouco não haveria mais gente direita na
rua para ela perguntar o caminho.
Virei uma esquina e, de repente, ela saiu do nevoeiro na minha frente. Parecia bem
assustada.
- Srta. Maude, o que está fazendo aqui? - perguntei, fingindo não saber.
- Sra. Baker! - A menina ficou tão aliviada de me ver que apertou meu braço.
- Devia estar em casa e não andando na rua - ralhei.
- Fui... dar uma volta e me perdi.
Olhei para ela. Eu não tinha por que fingir. - Queria ver onde a sua mãe está?
- Queria. - A srta. Maude baixou a cabeça.
Tive um arrepio. - Lugar feio. Não gosto de morar perto dele. Ei, moço, venha cá! -
chamei um rapaz que passava.
- Olá, sra. Baker.
- Srta. Maude, este é Jimmy, filho do meu vizinho. Faz favor de levar ela para Boston
Arms. De lá, ela sabe o caminho.
- Obrigada, sra. Baker - disse baixinho a srta. Maude. Fiz de conta que não foi nada. -
Não é da minha conta, não vou contar para ninguém. Cuidado como anda no nevoeiro,
srta. Maude.
Cumpri a promessa.
Março de 1908

SIMON FIELD
Está uma chuvarada., por isso a nossa Jenny me deixa entrar. A sra. Baker não diz
nada quando me vê, só resmunga.. Depois, faz um ovo quente para mim.
Nossa Jenny olha pela janela enquanto estou comendo.
- Cruzes, que dia para se ir à cadeia.
- Quem está indo para a cadeia? - pergunto.
A sra. Baker bate com uma jarra d'água no fogão e olha para nossa Jenny, que nem
liga. Nossa Jenny fala o que bem entende.
- O patrão e a srta. Maude. Não puderam visitar antes porque as sufragistas só
recebem visita depois de um mês. Primeiro, ia só o patrão, mas ouvi os dois discutindo
e a srta. Maude conseguiu, que bom. Sente falta da mãe, sabe Deus por quê, pois a
madame nunca está em casa.
- Chega de falar, Jenny - a sra. Baker manda.
- Não tem importância, é só o Simon que está aqui.
- O que não tem importância? - Maude aparece na escada, de braços cruzados,
olhando duro para mim.
Nossa Jenny e a sra. Baker olham rápido para ela. Nada, srta. Maude: comeu
bastante? - pergunta a nossa Jenny.
- Não estava com muita fome, obrigada.
- Que falta de sorte, ficar incomodada com essa chuva, no dia da visita.
Maude olha para mim e arregala os olhos para nossa Jenny.
- Pelo amor de Deus, Jenny, deixa a menina! - A sra. Baker não costuma gritar.
- Jenny, suba e tire os pratos da mesa.
Nossa Jenny sai esbaforida e eu não sou besta de falar nada sobre o paquete. Só
disse: - Olá, Maude.
- Olá.
Difícil de imaginar que a mãe de Maude está presa. Quem pensaria uma coisa dessa?
Quando nossa Jenny me contou, deixei escapar por acaso um dia para o sr. Jackson que
a sra. Coleman estava na cadeia de Holloway. Ele deu um pulo como se tivessem batido
nele.
- Meu Deus. Por quê?
Para dizer a verdade, eu não sabia. - Coisas de mulher, senhor.
Ele me olhou tão sério que tive de dizer mais qualquer coisa. - O senhor sabe, essas
mulheres que ficam andando de bicicleta, escrevendo com giz nas calçadas, gritando em
comícios e tal.
- Você quer dizer sufragistas?
- Acho que sim, senhor.
- Meu Deus - ele repetiu. -A prisão é um lugar horrível para mulheres, espero que
ela não seja maltratada.
- Deve ser tratada como todo mundo, senhor. Meu primo ficou lá seis meses e saiu
só com ferrada de pulga.
- Isso não serve de consolo, Simon.
- Disculpe, senhor.
Preciso dizer uma coisa para Maude agora, mas não consigo pensar em algo que
ajude. Aí, batem na porta dos fundos e Livy entra completamente molhada de chuva e
não dá jeito de eu dizer nada. Maude não parece muito contente com a visita. Livy dá
um grande abraço nela e me vê por cima do ombro de Maude, mas não diz nada.
Desde que eu beijei ela, ficou estranha comigo. Isso já faz mais de ano, ela mudou de
jeito. Acho que nosso pai estava certo.
O fato é que faz muito tempo que nós três não nos encontramos. Nada como aquele
tempo em que as meninas eram menores e estavam sempre no cemitério.
- Oh, querida, você está tão pálida! - diz Livy. - Deve estar muito perturbada com a
visita.
O problema com Livy é que ela fala uma coisa e quer dizer outra. Livy não acha que
é muito horrível a sra. Coleman estar na cadeia: para ela, é bem divertido, embora não
vá confessar. Está tão agitada que já sei o que vem por aí.
Ela senta Maude numa cadeira ao lado da mesa e avisa: Quero pedir uma coisa.
- Fala como se não tivesse mais ninguém na cozinha, como se eu também não
estivesse na mesa, a sra. Baker não estivesse descascando batatas e nossa Jenny não
estivesse levando para a copa uma bandeja com as coisas do café. Livy sabe que
estamos ouvindo. - Sei que você não vai querer, então prometa ficar calada até eu
acabar de falar. Promete?
- Prometo - diz Maude.
- Quero ir agora de manhã visitar sua mãe com você.
- Não pode...
- Ainda não terminei de falar. Maude franze a testa e fica quieta.
- Você sabe que vai ser horrível e você vai ficar nervosa. Não quer que sua amiga
esteja lá, segurando sua mão e ajudando-a a ser corajosa na frente de sua mãe?
Todos nós ficamos prestando atenção no que Maude iria responder: nossa Jenny na
porta da copa e a sra. Baker olhando séria para uma casca de batata como se não
estivesse ouvindo. - Mas e sua mãe, Livy? E meu pai? Tenho certeza de que ele não vai
deixar você ir.
Livy sorri. - Mamy não precisa saber e não se preocupe com seu pai, ele vai
concordar, garanto.
Garante mesmo. Livy consegue de um homem qualquer coisa. Já a vi no cemitério,
revirando os olhinhos e rodando a saia e os homens obedecendo. Até o sr. Jackson traz
uma caneca de água, se ela quiser, mas deve ser porque até hoje não gosta de lembrar
que o anjo dela quebrou. Só quem olhar muito percebe onde o pedreiro juntou a cabeça.
O nariz é que ficou uma porcaria, deviam ter deixado lascado. Uma vez, dei uma volta
com Livy, observando os anjos do cemitério, e mostrei como eram cheios de lascas e
marcas. Fiz isso para ela melhorar, só serviu para piorar.
- Maude, está pronta?
Todo mundo olha para o pai de Maude na escada. Pelo jeito de nossa Jenny e da sra.
Baker, é claro que ele jamais desce lá: Jenny arregala os olhos e a sra. Baker corta o dedo
com a faca e tem que chupar o sangue. Ele deve estar nervoso de ir à cadeia de
Holloway ou então não gosta da casa vazia e veio procurar gente.
Até Maude levanta ao ver ele: - Estou pronta, papai. Só tenho de pegar uma coisa no
quarto. Já volto. - Ela olha para Livy, passa pela amiga e pelo pai e sobe. O pai continua
no alto da escada, parecendo estranhar o lugar.
Livy está a postos para jogar seus olhares. - Sr. Coleman...
O sr. Coleman já me viu e pergunta: - Sra. Baker, quem é o menino comendo nosso
pão?
A sra. Baker nem se mexe. - É o filho do jardineiro, senhor. - Boa resposta: o jardim é
território da sra. Coleman e o patrão decerto só põe os pés lá para fumar um cigarro.
Não vai saber quem é o filho do jardineiro.
O sr. Coleman olha a chuva. - bom, ele sem dúvida escolhe o dia certo para tratar do
jardim, não?
- E mesmo, senhor. Ouviu, Simon? Hoje não dá para cuidar das plantas. Vai saindo.
Engulo o resto do meu chá, ponho o boné e saio na chuva. Não consigo dizer nada
para Maude, nem ouvir a conversa mole de Livy. Não tem problema, pelo menos
enchi a pança.

LAVÍNIA WATERHOUSE

Não foi nada difícil. Bastou apelar para o lado mais sentimental dele. E ele tem esse
lado. É evidente que está alquebrado pelo fato da esposa estar presa: é só olhar para ele
(acho que ninguém tem feito isso, só eu). Sinto também que nós dois temos uma ligação
especial por causa da carta. Ele não sabe que fui eu quem escreveu, mas sabe que
alguém está olhando por ele.
Passei um bom tempo sem entender por que ele não pôs a esposa porta afora depois
de ler a carta, mas agora que estou mais velha e começo a entender melhor os
homens vejo que, galante, ele deixou de lado seus sentimentos para proteger o nome da
família de um escândalo.
Ele concordou quando pedi para ir à prisão de Holloway. Repeti mais ou menos o
que disse a Maude: que eu seria um consolo para ela em situações difíceis; também dei a
entender que ele estava sendo um pai exemplar e um cavalheiro por levar em
consideração as necessidades da filha.
Não posso deixar de admitir que ele concordou, em parte, porque prefere a minha
companhia à de Maude. Certamente, eu era a mais animada no coche que ele chamou
para nos levar. Como não estaria animada? íamos entrar numa prisão! Eu não conseguia
pensar em nada mais interessante.
O único fato que "molhou" a minha alegria (além da chuva, rá, rá, rá!) foi que,
quando o coche passou pela nossa casa, Ivy May estava afastando a cortina de filo e
olhando pela janela. Parecia olhar para mim e tive de rezar para ela não contar: mamy
pensa que estamos na biblioteca.
Nunca tinha ido à prisão de Holloway. Quando passamos pela entrada principal,
com portas de madeira em forma de arco, apertei o braço de Maude. - Parece um
castelo! - sussurrei.
Levei um susto quando Maude puxou o braço e disse: Isso aqui não é um conto de
fadas!
Bom. Fiquei um pouco sem graça, mas logo me recuperei, vendo a mulher que abriu
uma porta lateral para entrarmos. Era baixa, gorda e usava um uniforme cinza com uma
penca de chaves dependuradas na cintura. O melhor detalhe era que ela tinha uma
enorme verruga acima do lábio superior. Era igualzinha a uma personagem de Dickens,
mas não comentei isso com Maude. Tive de pôr a mão sobre a boca para a mulher não
me ver rindo. Mas viu, a Bruxa.
Entramos numa sala, Maude e eu sentamos num banco estreito e a Bruxa abriu
um livro de registros: anotou informações sobre o sr. Coleman. Fiquei impressionada,
pois a Bruxa sabia ler e escrever.
A Bruxa olhou para nós. - Só uma das meninas pode entrar. São três visitas por vez e
já tem uma pessoa lá. Uma de vocês tem que esperar aqui. - Ela grudou um olho
amarelo em mim.
O sr. Coleman ficou espantado: - Outra visita? Quem é?
A Bruxa colocou o dedo numa página do livro e leu: Srta. Caroline Black.
- Com os diabos, o que ela faz aqui?
- Conseguiu uma visita, exatamente como o senhor.
- Não é parente de minha esposa. Diga a ela para sair.
A Bruxa sorriu, esperta. - Tem o mesmo direito que o senhor. É sua esposa quem
decide quem quer ver.
O pobre sr. Coleman ficou irritado, mas não podia fazer nada. Virou-se para nós e
disse: - Esperem as duas aqui.
- Vim para ver a mamãe! - disse Maude, alto.
- É melhor você ficar com Lavínia. Não podemos deixála sozinha.
Virou-se para a mulher: - As meninas podem me esperar aqui?
A Bruxa resmungou alguma coisa. Sorri, aliviada pelo cavalheirismo dele.
- Você pode ficar aqui sozinha, não é, Lavínia? - Maude insistiu.
Abri a boca para reclamar, mas aquela mulher desagradável pulou: - Não quero
duas meninas enchendo o meu banco.
- Apontou para Maude: - Você vai com seu pai e você (apontou para mim) espera
onde está. Foi até a porta e gritou alguma coisa no corredor.
Fiquei tão chocada que não consegui falar. Ser largada sozinha numa prisão com
uma Bruxa horrenda? E por motivo tão fútil como espaço num banco duro? Claro que a
Bruxa estava fazendo aquilo só para me perseguir. Virei para pedir ajuda ao sr.
Coleman. Infelizmente, ele demonstrou não ser tão galante quanto pensei:
concordou com a Bruxa, apenas.
Outra mulher apareceu (essa era alta) com o mesmo uniforme cinza e chacoalhando
chaves do jeito mais irritante possível.
- Cela H15, segunda divisão. Já tem uma visita lá - a Bruxa disse.
A carcereira concordou e fez sinal para o sr. Coleman e Maude seguirem com ela, e
lá se foram os dois, sem sequer darem um olhar para mim.
bom. Quando se foram, a Bruxa sorriu por trás da mesa onde estava. Fiquei surpresa
de ver que tinha todos os dentes: esperava que fossem cariados. Ignorei a Bruxa e fiquei
bem quieta, como uma ratinha, pois estava meio apavorada.
O fato é que uma ratinha não consegue ficar sem olhar em volta em busca de algo
para roer. A sala não tinha muito o que observar (só a mesa e alguns bancos,
todos vazios) e passei a examinar a Bruxa. Ela estava sentada, escrevendo algo no livro
sobre a mesa. Era mesmo uma mulher repulsiva, nem Dickens teria imaginado uma
coisa assim. Tive certeza de que a verruga brilhava e fiquei pensando se tinha pêlos, o
que me fez rir. Acho que ela não reparou que eu a estava espionando enquanto fingia
que olhava minhas unhas. Mas ela rosnou: Rindo do quê, hein?
- Bobagem, coisa minha - respondi, corajosa. - Nada a ver com você. Aliás, acho
melhor me chamar de srta. Waterhouse.
Ela teve a audácia de rir, então me senti na obrigação de informar que tinha quase
certeza de que nós, os Waterhouse, éramos parentes do grande pintor John William
Waterhouse, embora papai discorde. Falei também que escrevi ao artista para descobrir
nossa ligação sangüínea, mas não falei que o sr. Waterhouse jamais respondeu a minha
carta. Claro que eu estava esperando demais de uma guarda de presídio com uma
verruga no beiço, apesar de ela saber escrever. Claro também que ela nunca ouviu falar
em J. W. W, nem mesmo quando descrevi em detalhes o quadro de Lady Shalott que
está na Galeria Tate, de Londres. Ela também jamais tinha ouvido falar em Lady Shalott!
Só faltava me perguntar quem foi Tennyson: foi o autor do poema que inspirou o
quadro, ora!
Felizmente, essa conversa infrutífera foi interrompida pelo aparecimento de
mais uma carcereira. A Bruxa disse que era bom que a outra tivesse chegado, pois "Essa
menina fala tanto que é capaz de fazer cair a orelha de um elefante. E só fala besteira".
Fiquei com muita vontade de mostrar a língua para ela, mas, quanto mais ficava
sentada lá, mais perdia o medo. Foi aí que tocou uma campainha e a Bruxa saiu para
atender à porta. A outra carcereira ficou me examinando como se eu fosse uma peça de
museu. Olhei bem para ela, a mulher pareceu não se incomodar. Suponho que não seja
todo dia que elas vêem meninas como eu sentadas no banco, compreende-se então por
que ficou olhando.
A Bruxa voltou com um homem a reboque, de terno escuro e chapéu-coco. Ele ficou
ao lado da mesa, enquanto a Bruxa olhava no livro de registros e concluía: - Ela já
recebeu as visitas do dia. Que dama conhecida, essa. O senhor mandou um pedido por
escrito?
- Não, senhora - respondeu o homem.
- Tem que pedir autorização - a Bruxa informou, satisfeita: gostava da desgraça
alheia. - Depois da autorização, a detenta decide se quer ver o senhor.
- Entendo - o homem disse e virou-se para ir embora. bom. Dizer que nessa hora
levei um susto é pouco: ele passou os olhos por mim e fez como um cavalo que refuga o
passo. Eu apenas sorri o meu sorriso mais doce e cumprimentei: - Olá, sr. Jackson!
Por sorte, ele saiu antes que Maude e o pai voltassem, senão teríamos uma cena
esquisita. Dessa vez, a Bruxa segurou a língua, em vez de piorar o que já era um horror,
e eu também me calei. Muito estranho, realmente, que o sr. Jackson quisesse visitar a
mãe de Maude.
Foi um dia tão cansativo que cheguei em casa e precisei dormir um pouco, depois
comi uma tigela de pudim de pão para me confortar, como se estivesse doente. Minha
cabeça não parava de pensar coisas que tentavam se encaixar e que tinham a ver com a
mãe de Maude e o sr. Jackson.
Fiz um grande esforço para não juntar os dois, acho que consegui.
MAUDE COLEMAN
Papai e eu seguimos a carcereira por um corredor até um grande pátio interno. Lá,
do térreo, podíamos ver até o teto da prisão. Havia fileiras de portas e mais portas que
davam para corredores de ferro preto, tendo outras carcereiras de uniforme cinza
fazendo a ronda.
Nossa carcereira subiu conosco dois lances de escada e entrou num corredor.
O espaço vazio que ia do corrimão do meu lado até o corrimão do outro lado do pátio
era coberto por uma rede de ferro. Havia coisas esquisitas jogadas nessa rede: uma
colher de pau, uma touca branca, um sapato de couro velho.
A porta de cada cela tinha uma abertura no meio, tampada por uma placa de couro.
Passei por uma e fiquei com uma vontade enorme de levantar a placa para ver
dentro da cela. Reduzi o passo: papai e a carcereira ficaram bem à frente, então eu
rapidamente puxei a placa e olhei.
A cela era bem pequena, devia ter um metro e meio por dois metros, pouco maior
que a nossa copa. Não pude ver muita coisa: um estrado encostado numa das
paredes, uma toalha dependurada num cabide e uma mulher sentada num banco, no
canto.
Tinha cabelo castanho-escuro preso num coque, pele morena; o queixo e a boca eram
como os de um soldado quando marcha num desfile.
Mantinha as costas bem eretas, como a avó está sempre dizendo para eu fazer.
Usava um vestido verde-escuro com flechas brancas costuradas (marca das
detentas), avental xadrez e uma touca branca igual à que vi jogada na tal rede. No colo,
um novelo de lã e agulhas de tricô.
Queria que ela olhasse para mim e, quando finalmente isso aconteceu, reconheci
quem era. Nunca tinha visto a sra. Pankhurst, a famosa Emmeline Pankhurst, líder das
sufragistas. Mamãe esperava que ela comparecesse a uma tarde amiga, mas nunca foi.
Ouvi Caroline Black uma vez descrever os olhos da líder como "azuis-escuros e tão
penetrantes que você faz qualquer coisa por eles: desmonta o monte Snowdon com uma
pá, se ela disser que está atrapalhando a vista".
A sra. Pankhurst sorriu para mim.
- Maude!
Pulei para trás. Era papai, me olhando, horrorizado. A carcereira continuava na
frente, parada com o grito de papai. Corri até ele.
- Que diabo você estava fazendo? - ele perguntou baixo, segurando no meu braço.
- Desculpe - sussurrei.
A carcereira resmungou: - Fica direito, perto de mim, ou não vai encontrar sua mãe.
Lá adiante, no corredor, havia duas mulheres na porta de uma cela: uma carcereira e
Caroline Black. Sob o casaco cinza, Caroline usava um vestido branco com carreiras de
renda na pala e um chapéu enfeitado com prímulas murchas. Parecia que estivera
passeando no Hide Park. Comparados com a roupa dela, meu simples casaco azul e o
velho chapéu de palha pareciam sem graça.
Quando nos aproximamos, ela falou para dentro da cela: - As cores devem ser
vermelho de dignidade, branco de pureza e verde de esperança. Não é uma ótima
idéia? Ia usar hoje, mas preferi as prímulas, por você. Pense como essas cores vão
chamar a atenção em comícios, com todo mundo vestido das mesmas cores! - Ela nos
viu, sorriu e anunciou: - Mais visitas!
- Quem é? - alguém perguntou, de dentro da cela.
- Mamãe! - gritei. Corri para entrar e tive de parar: a porta da cela estava aberta, mas
uma grade impedia a entrada. Tive vontade de chorar.
A cela de mamãe era igual à da sra. Pankhurst, até no novelo de lã cinza colocado
num banco; havia também uma meia cinza com listras vermelhas quase terminada,
ainda nas agulhas do tricô. Mamãe estava encostada na parede do fundo: - Olá, Maude,
quer dizer que veio ver a sua velha mãe presa, não? - Como a sra. Pankhurst, ela estava
de sarja verde-escura com flechas brancas. A roupa era grande demais: cobria os pés e
escondia a cintura de mamãe. Mesmo assim, dava para ver, pelo rosto enrugado, que
ela estava mais magra. Tinha olheiras e a pele manchada e sem cor.
Os olhos brilhavam como se ela estivesse febril.
- Olá, Richard - ela cumprimentou papai, que estava atrás de mim e de Caroline
Black.
Ficamos os três de pé na entrada, apertados e tentando olhar para dentro, como se
fosse uma jaula em um jardim zoológico. Havia uma carcereira de cada lado da porta,
de sentinelas.
- Meu Deus, Kitty, você não come? - papai perguntou.
Eu não sabia o que dizer e Caroline Black meneou a cabeça de leve, os cabelos
esvoaçando sob o chapéu. Seria melhor se papai dissesse outra coisa, em vez de atirar a
primeira coisa que lhe veio à cabeça. Tive pena dele também, parecia tão cansado e
desajeitado.
Mamãe não se incomodou com a pergunta: sorriu como se ele tivesse dito uma
piada. - Se você visse o que nos servem, também não comeria. Outro dia, quebrei um
dente numa pedra que tinha no pão. E difícil.
- Mamãe, escrevi uma carta para você, mas foi devolvida - contei. E ela explicou: -
Nas quatro primeiras semanas de prisão, não temos direito de receber cartas.
Caroline podia ter avisado. E quanto de dinheiro você conseguiu arrecadar na
semana de dedicação à causa? Espero que uma boa quantia.
- Eu, eu não lembro - murmurei.
- Não lembra? Claro que sim. Faz só um mês e você tem boa memória para números.
Será que está com vergonha porque conseguiu pouco? Não tem importância, não
esperava que conseguisse o mesmo que eu. Quanto foi? Dez libras?
Concordei com a cabeça, só que conseguira um décimo dessa quantia. Precisava
pedir doações a vizinhos e a visitas: não consegui. Dei todo o meu dinheiro; a sra. Baker
e a sra. Waterhouse deram alguns centavos. Acabei odiando aquele cartão de doação.
Caroline Black perguntou para mamãe: - Sabe que algumas mulheres passaram a
semana toda comendo só pão e sopa de aveia em homenagem a vocês, presas?
E doaram para a USPM o dinheiro que economizaram comendo "dieta de presídio"!
Ela e mamãe riram. (Caroline Black mostrou o dente do lado.) - Como está a sra.
Pankhurst? Esteve com ela? Caroline perguntou.
Mamãe respondeu: - Estamos um pouco preocupadas. Ela não desceu para fazer
exercícios hoje, nem foi à capela de manhã. Espero que não esteja doente.
- Eu a vi - falei, satisfeita por dizer alguma coisa útil.
- Viu? Quando? - mamãe quis saber.
- Agora mesmo. Numa cela perto daqui.
Mamãe e Caroline Black me olharam, encantadas. Mas nossa carcereira fechou a
cara.
- Como ela estava? O que fazia? - perguntou mamãe, ansiosa.
- Fazia tricô.
- Ela disse alguma coisa?
- Não, mas sorriu para mim.
- Pare com isso! Não pode falar nessas coisas. Devia mandar você sair já daqui
- zangou-se a carcereira.
- Que boa notícia - mamãe disse, sem tomar conhecimento da carcereira. - Ela está
fazendo tricô, como eu? Olhou para o novelo no banco e riu. - Obrigaram-me a fazer
logo o pior de todos os trabalhos manuais: tricô. Sou péssima, mas quando sair daqui
estarei especialista em meias.
- As meias são para você? - perguntei, mal conseguindo imaginar mamãe com meias
cinza listradas de vermelho.
- Não, não! São para os detentos. É para nos ocuparmos com alguma coisa, senão
fica um tédio insuportável. Eu pensei que fosse enlouquecer, mas não. Ah, trouxe a
minha Bíblia para ler. - Mostrou uma prateleira com dois livros, um prato e um copo de
alumínio, um saleiro de madeira, um pedaço de sabão amarelo, uma escova de dente e
um pente. - E vejam o que eles nos deram para ler! - Pegou na prateleira o livro e li o
título, de longe: Como manter um lar saudável. - Li da primeira à última página, e
sabem o que diz? Manda que se durma de janelas abertas! -
Mamãe olhou a janelinha da cela, alta, com barras de ferro e riu de novo.
Caroline Black riu junto.
- Kitty - papai chamou, baixo. Ainda bem que mamãe parou de rir.
- Aprendeu a lição, aqui? - papai perguntou. Mamãe ficou séria. - O que você quer
dizer com "lição"?
- Agora, basta! Quando você sair, voltaremos à vida normal.
- Depende do que você entende por "normal". Papai não respondeu.
- Está querendo dizer para eu desistir da luta quando sair daqui?
- Claro que não vai continuar, vai?
- Pelo contrário, Richard, acho que a prisão me fez mudar. Por incrível que pareça, a
dureza me transformou numa barra de ferro. "O que não me vence me fortalece", frase
de Nietszche, você sabe.
- Você lê demais - papai reclamou.
Mamãe sorriu. - Você não pensava assim quando me conheceu. Mas quando sair
vou ter muita coisa para fazer e não terei tempo de ler.
- Discutiremos isso quando você voltar para casa papai disse, olhando para Caroline
Black. - Não se pode esperar que pense direito aqui.
- Não há o que discutir. Tomei uma decisão que não tem nada a ver com você.
- Tem tudo a ver comigo: sou seu marido!
- Desculpe, Richard, mas nada do que fiz na minha vidinha teve alguma importância
até eu entrar para a USPM.
- Como diz isso na frente de Maude? Mamãe olhou para mim e parecia realmente
preocupada. E Maude? - repetiu papai. - Quer dizer que ter uma filha não teve
importância?
- Claro que foi importante. É por Maude que estou nesta cela: faço isso para que ela
possa votar.
- Não, não, você está fazendo isso para poder borboletear pela cidade, se achar
importante, fazer discursos tolos e largar seu lar e sua família.
- Eu me sinto importante - mamãe retrucou. - Talvez pela primeira vez na vida tenho
alguma coisa para fazer, Richard. Estou trabalhando! Não sou otimista como Caroline e
as irmãs Pankhurst, achando que conseguiremos o voto feminino ainda vivas. Mas
nosso trabalho vai, um dia, levar ao voto. Maude verá os resultados, se eu não puder.
- Ah, desça do caixote onde subiu para discursar - ironizou papai. - Diz que faz isso
por sua filha. Já perguntou a Maude o que ela acha de ser largada sozinha? Perguntou?
Cinco duplas de olhos viraram-se para mim. Papai estava furioso, mamãe curiosa.
As duas carcereiras me olharam com interesse. Só os olhos de Caroline Black,
castanhos como os de um cão, me olharam com complacência. Enrubesci. Meu
estômago doía.
Dei um passo atrás e outro e, antes de perceber, virei e saí correndo.
- Menina, pare! - uma carcereira gritou. Continuei correndo pelo caminho por onde
viemos, desci a escada, passei pelo pátio e o corredor, acompanhada pelos gritos de
mulheres de uniforme cinza que jamais conseguiram me pegar. Cheguei numa porta,
abri, corri para o banco e abracei Lavínia.
- Ah, minha coitadinha - Lavínia disse, dando tapinhas nas minhas costas enquanto
eu soluçava. - Pronto, agora chega. Pronto. Ainda bem que eu vim.
RICHARD COLEMAN
Quando voltamos de Holloway, fui direto à sala da manhã de Kitty, onde ela guarda
seus livros. Lá, vi o quanto ela havia entrado no buraco negro que é essa causa.
Pensei em achar o Nietzsche e pôr fogo nele, mas queimei todos os impressos,
jornais e faixas que encontrei.
Maio de 1908

ALBERT WATERHOUSE
Pobre Richard. Nunca pensei que fosse ficar com pena dele, mas estou. Sempre achei
que a esposa ia fazer e acontecer.
Esta noite, nós dois estávamos na lista de participantes do críquete e vimos Kitty
Coleman quando caminhávamos na direção de Heath. Devo dizer que me alegro
porque Trudy jamais me pediu uma bicicleta. Pois Kitty vinha pedalando alegremente,
com o vestido levantado até os joelhos. Dei uma boa olhada num tornozelo - belo
tornozelo, aliás - até conseguir desviar os olhos para outro lado.
Richard fez de conta que não a viu, então imitei-o, mas ela tocou a campainha da
bicicleta e tivemos de tirar os chapéus para cumprimentá-la. Ela acenou e foi indo, deu
para ver uma ponta do outro tornozelo.
Achei que ela estava muito bem para uma senhora que passou seis semanas em
Holloway, mas não comentei com Richard. Na verdade, era melhor não dizer nada.
Richard, no entanto, disse algo, o que estranhei, já que não somos dados a
confidencias. - Escute, Albert, como você lida com a sua esposa?
Tropecei numa pedra do calçamento. - Como lido com a minha esposa? - com uma
firme afeição, pensei, enquanto me reequilibrava. Falei um pouco baixo, há coisas que
cavalheiros não devem comentar alto.
- Kitty me chantageou - Richard prosseguiu.
- Como assim?
- Disse que, se eu tentar proibi-la de trabalhar para as sufragistas, ela vai discursar
nos comícios. Você consegue imaginar o nome Coleman em todos aqueles malditos
impressos que elas distribuem? Ou colado em postes, escrito a giz nas calçadas?
A prisão em Holloway quase matou a minha mãe de vergonha; se Kitty fizer
discursos, acabará de matá-la. No meu lugar, o que você faria?
Tentei imaginar Trudy fazendo tal ameaça para mim, não consegui. No mínimo,
porque ela é mais preocupada com o nome Waterhouse do que eu. E preferia comer um
prato de carvão a falar em público. As ameaças que me faz têm a ver com o tom das
cortinas da sala da frente ou em que cidade praiana vamos passar as férias.
Richard ficou me olhando à espera de uma resposta. Talvez seja apenas uma fase
que a sua esposa esteja passando. Talvez o movimento sufragista desapareça.
Estão planejando uma manifestação no Hyde Park, em junho, não é? Até Trudy
sabe, embora não seja sufragista. com isso, pode ser que elas se dêem por satisfeitas e a
sua esposa sossegue.
- Talvez - repetiu Richard, mas acho que não estava muito convencido.
KITTY COLEMAN
Há semanas Maude me evita, desde que saí de Holloway. Primeiro, não percebi, já
que tinha tanta coisa a fazer, ainda por cima tendo de organizar a passeata em junho.
Será a maior manifestação pública já realizada em algum lugar, inclusive do mundo.
Estamos exaustas com tantas tarefas: reservar passagens em trens vindos de todas as
partes do país; conseguir autorização para o percurso da passeata e uso do Hyde Park;
consultar a polícia; encontrar oradores e bandas para tocar; aprontar as faixas com
frases. E como planejar uma batalha. Não, não, uma batalha é pouco: uma verdadeira
guerra.
Aliás, Caroline teve uma ótima idéia para nós duas usarmos na passeata. Tem de ser
algo bem marcante e quero comemorar a minha libertação, tanto da prisão quanto
da angústia, usando uma roupa livre. Será um grande dia.
Em meio a tantas atividades, percebi que Maude saía da sala assim que eu entrava e
fazia mais refeições na casa dos Waterhouse do que na nossa.
Comentei isso com Richard e ele fez de conta que não tomava conhecimento: - O que
você esperava? - perguntou. Está difícil falar com ele, que também me evita desde que
voltei de Holloway. Ainda bem que a minha pele formou uma casca grossa para me
proteger!
Não estranhei o que ele fez com a minha sala da manhã. Os maridos de outras
sufragistas fizeram pior. Para acabar com essas reações, tive de recorrer à chantagem, da
qual não me orgulho, mas que foi necessária. Também funcionou: ele pode detestar o
que faço, mas tem mais medo da mãe dele.
Numa manhã de sábado, encontrei Maude desanimada, na sala de desenho, e tive
uma idéia: - Venha ao centro comigo, há um automóvel para nos levar. Olha lá. -
E mostrei pela janela o automóvel dos Jenkins parado em frente de casa. A sra. Jenkins,
uma rica integrante da USPM que mora em Highgate, fez a gentileza de emprestar o
automóvel para ser usado na cidade. O marido dela não sabe, só usamos quando ele
está no trabalho ou fora da cidade e tivemos de dar uma propina para Fred, o motorista,
ficar quieto. Valeu cada centavo.
Maude ficou impressionada com o automóvel que reluzia ao sol. Vi que ela gostaria
de ir, mas achou que não devia.
- Venha, está um lindo dia, mandamos descer a capota - sugeri.
- Aonde você vai?
- À Clements Inn, mas não demoro - acrescentei rápido, sabendo que ela não gosta
da sede da USPM. - Depois, à Bond Street e podemos passar na loja Fortnum and
Mason: faz tanto tempo que não tomamos sorvete.
- Está bem - ela resolveu, por fim.
Pedi para ela e Jenny trazerem as pilhas de faixas que costurei, ou melhor, que
comecei a costurar, vi que não dava tempo e paguei para Jenny e a sra. Baker
costurarem.
Ainda estou muito aquém da quantidade que me comprometi a fazer. vou ter de
incluir Maude, embora ela costure pior do que eu.
Foi emocionante percorrer Londres num automóvel. Já fiz isso muitas vezes e
continuo adorando. O motorista usa grossos óculos de borracha para proteger os olhos
do vento, mas eu me recuso, acho que não enxergaria nada com aquela coisa presa na
cabeça. Prendemos nossos chapéus com lenços: o meu lenço é roxo, verde e branco, e
tem escrito Voto para a Mulher (ofereci um para Maude, mas ela não quis). O vento
mexia loucamente com tudo e a poeira da rua penetrou em nossas roupas e cabelos. Foi
muito divertido. A velocidade era enlouquecedora: zuníamos passando por carroças de
leiteiros, ônibus puxados por parelhas de cavalos, homens de bicicleta e competíamos
com táxis e outros autos particulares. Bares, casas de banho, lojas de chá, tudo passava
num borrão.
Até Maude se divertiu, embora não tenha falado muito: também, não podíamos
conversar, com o barulhão dos motores. Pela primeira vez em meses ela estava
tranqüila, enfiadinha no assento de trás, entre mim e as faixas. Passamos por uma
avenida arborizada e as folhas formavam uma cúpula sobre nós: Maude encostou a
cabeça para trás e olhou o céu.
Ela me ajudou a descarregar as faixas na Clements Inn (o motorista jamais levanta
um dedo para ajudar, é contra as sufragistas), só não entrou no escritório, preferiu
esperar do lado de fora com Fred. Tentei ser rápida, mas havia tantas companheiras
para cumprimentar, dúvidas a esclarecer e pontos a levantar que, quando voltei, Maude
e Fred estavam de tromba.
- Desculpem a demora! Não tem problema, vamos seguir - falei, alegre. - Fred, por
favor, siga para a joalheira Collingwood, na Bond Street - mandei. Essa parada não era
para tratar de assuntos da USPM, mas estava ligada ao sufrágio da mulher.
Maude achou estranho. - Papai deu alguma coisa nova para você? - Era lá que
Richard comprava jóias para mim.
Ri. - De certa forma, sim. Você vai ver.
O joalheiro, todo orgulhoso, trouxe uma caixa de veludo preto com o colar.
Quando Maude viu, não teve a reação que eu esperava. Ficou muda.
O colar era de esmeraldas, ametistas e pérolas, formando flores brancas e roxas, com
folhas verdes. As pedras eram de colares que eu tinha; as pérolas, eu ganhara quando
fora crismada; as ametistas, herdara de mamãe e as esmeraldas eram de um colar que a
sra. Coleman me dera quando casei. Cumprimentei o joalheiro: - Ótimo trabalho. Ficou
uma jóia tão diferente! Maude continuou olhando o colar.
- Não gosta? - perguntei a ela. - As cores, percebe? São as mesmas da USPM: muitas
mulheres estão fazendo adereços nessas cores.
- Pensei que ... - Maude não terminou a frase.
- O quê?
- Bem... não era para eu herdar as jóias que formam o colar?
- Ora, é esse o problema? Então você herda esse colar, pronto.
- Papai vai ficar furioso. A avó também, as esmeraldas eram dela - Maude disse,
calma.
- Ela me deu o colar para fazer o que eu quisesse. E meu, ela não tem nada a dizer.
Maude ficou calada, um silêncio pior que o mau humor de pouco antes.
- Vamos tomar sorvete na Fortnum and Mason? sugeri.
- Não, obrigada, mamãe. Prefiro voltar para casa Maude falou com uma vozinha
sumida.
Pensei que ela fosse adorar o colar. Parece que sou incapaz de agradá-la.
RICHARD COLEMAN
Percebi na hora. Kitty estava na entrada de casa, se olhando no espelho, antes de
sairmos para a festa de mamãe. Jenny segurava a estola, enquanto Maude olhava da
escada. O vestido de Kitty era decotado e, quando olhei o decote, vi as esmeraldas.
Lembro-me delas, sendo usadas por mamãe muitas vezes, quando ia com papai a festas
e solenidades; uma vez, para serem apresentados à rainha. As esmeraldas ficaram
horríveis, misturadas num novo colar com outras pedras.
Não falei nada: realmente, a chantagem de Kitty cortou a minha língua. Fiquei
irritado comigo mesmo por não ter qualquer autoridade sobre a minha esposa.
Certamente, era assim que um marido devia ser agora: sem voz e sem poder. Kitty
sabia muito bem o que estava fazendo.
Mais tarde, quando vi a expressão de mamãe ao notar o colar, tive vontade de
esganar o lindo pescoço alvo de minha esposa.
EDITH COLEMAN
Viu que notei. O pobre Richard, ao lado dela, não tinha idéia do que se passava.
Esmeraldas são domínio da mulher, não do homem. Jamais contarei para ele.
Não fiz nenhuma cena, nem podia, na frente de todos os convidados, e também não
ia fazer isso para agradá-la. Esperei até o último convidado se retirar. Então, sentei no
escuro e chorei.
Acho que ela gosta de me atormentar. Já não basta o ano passado, as poucas vezes
em que, por pura obrigação, tive de visitar meu filho na casa dele.
Pior foi quando ela foi mandada para Holloway e o nome Coleman apareceu
estampado nos jornais. Fiquei mortificada, mas passou mais depressa do que eu
imaginava.
Minhas amigas, minhas boas amigas, não comentaram, poupando-me maiores
constrangimentos. Fiquei feliz de James estar morto, assim não pôde ver seu nome
rebaixado a tal ponto.
O pior foram as esmeraldas que minha sogra me deu de presente na noite anterior
ao meu enlace, sabendo que ia guardá-las e cuidar delas para um dia entregálas para a
minha filha ou para a esposa de meu filho. Naquele tempo, essas coisas não precisavam
ser ditas. Jamais me passou pela cabeça senão usar as esmeraldas com orgulho e
entregálas de bom grado, quando chegasse a ocasião. Nunca pensei que uma Coleman
fosse profaná-las como Kitty fez.
Ela usou as esmeraldas na minha festa anual, em maio, com um vestido de seda
verde decotado demais. Notei-as imediatamente, apesar de não conhecer aquele colar.
Reconheceria minhas esmeraldas onde quer que estivessem.
Junho de 1908

LAVINIA WATERHOUSE
No começo, me recusei a ajudar Maude. Não queria qualquer ligação com faixas de
sufragistas. Mas Maude não sabe costurar e um dia vi os pobres dedos dela na escola,
furados de agulha (alguém precisa ensinar a ela como usar direito um dedal!). Fiquei
com pena e passei a ajudá-la, todas as tardes.
Foi uma boa ação! A coitada é tão lenta e a horrenda mãe deixou uma pilha enorme
de faixas para costurar. Primeiro, foi estranho ficar sentada naquela sala da manhã,
costurando: tive medo de que a mãe de Maude, de repente, entrasse, pois não me sinto
à vontade com ela depois daquela descoberta. Mas ela nunca está em casa e, quando
está, fala ao telefone que mandou instalar e nem nota a gente. Esse telefone me deixa
neurastênica: pulo quando toca e detestaria atendê-lo. Quando a mãe não está, Maude
atende e anota recados sem fim sobre reuniões, requerimentos e outras bobagens.
Felizmente, costuro muito bem, faço três faixas enquanto Maude faz uma e não dá
para acreditar nos pontos que ela dá. Mesmo assim, é divertido, falamos e cantamos.
Às vezes, quando os dedos estão muito furados, sangrando, Maude desiste e passa a
ler alto um livro, enquanto eu trabalho. Jenny traz chá sem parar e até uma ou duas
xícaras de café, quando imploramos.
Graças ao bom Deus, só temos de costurar. Recebemos o pano, as letras já vêm
cortadas e a frase, escrita num papel alfinetado na faixa. As letras costumam ser brancas
e o pano, verde ou preto. Acho que eu não conseguiria fazer uma frase nem que me
pagassem. Algumas são muito complicadas, sem pé nem cabeça. Que diabo quer dizer
Imposto sem representação é tirania'? Ou, outra, pior: O sim das mulheres vencerá o
não de Asquith. O que tem o Primeiro-ministro Asquith a ver com isso?
O melhor foram os erros. Fiz o primeiro quando estava costurando as letras para
uma das muitas faixas que diziam Ação sim, palavras não (não agüento mais essa
frase!).
Terminada a costura, dobrei a faixa, bati os olhos nela e vi que tinha costurado
Palavras sim, ação não. Pensei em refazer as letras, mas olhei para Maude e ela não
tinha percebido: estava séria, debruçada sobre outra faixa, chupando mais um dedo
furado. Então, dobrei calmamente a faixa, coloquei na pilha e dei uma risadinha
interior. Deve haver centenas de faixas, pois mulheres do país inteiro estão
costurando. De vez em quando, a mãe de Maude entra na sala correndo, pega a pilha
pronta e sai correndo outra vez, sem nem dizer um "obrigada". Duvido que alguém vá
descobrir que o erro é meu.
Depois, comecei a cometer mais "enganos", fiz mais algumas faixas Palavra sim, ação
não e depois inventei Meu marido é meu Deus e guardei no bolso do avental as letras
que sobraram. Foi bem divertido inventar erros: Trabalhadoras exigem votar ficou o
contrário Eleitoras exigem trabalhar. A esperança é forte ficou: Esperar dá sorte.
Já havia costurado meia dúzia, quando Maude percebeu; me ajudava a dobrar uma e
disse: - Espera um instante. Abriu a faixa com a frase Quem quer se libertar, perde o
lugar.
- Lavínia! A faixa era: Quem quer se libertar, precisa lutar. Conhece, é de um poema
de Byron?
- Ah, meu Deus - falei e ri.
- Você nem leu o que costurou? E onde estão as letras que faltam?
Sorri desconsolada e as tirei do bolso. - Pensei que estavam sobrando ou que fosse
um engano - expliquei.
- Você sabe muito bem como era a frase - reclamou Maude. - O que faremos com
isso? E tarde demais para mudar e não podemos esconder, mamãe vai contar as faixas e
perguntar por que falta uma.
Tentei também disfarçar e disse: -Ai, céus, acho que vou me libertar e perder o meu
lugar. - Foi uma bobagem, mas Maude achou graça. Dali a pouco estávamos
chorando de tanto rir. Era bom vê-la rir, tem andado tão séria. Acabamos dobrando a
faixa e colocando-a na pilha.
Eu não ia à passeata no Hyde Park: tinha arrepios só de pensar em ficar no meio de
centenas de sufragistas. Mas, depois de tantos dias costurando e ouvindo coisas sobre a
manifestação, achei que seria divertido. Deveriam estar presentes mulheres do país
inteiro, embora nem todas fossem sufragistas, eram apenas simpatizantes da causa e ia
ter também banda de música, discursos e coisas acontecendo por todo lado. Maude me
disse que todo mundo devia usar branco, verde e roxo e descobri a roupa perfeita para
nós. Iríamos de vestido branco e pegaríamos flores do jardim dos Coleman Para
prender em nossos chapéus de palha. A mãe de Maude Pode ser uma pecadora, mas
sabe cultivar lindas flores. Então decidi: - Esporas, centáureas azuis, jasmins-estrela e
margaridinhas, entremeadas com folhas verdes. Vai ficar uma beleza.
- Você falou que não ia. O que a sua mãe vai dizer? perguntou Maude.
- Mamy vai conosco. Não precisamos entrar na passeata, ficamos só olhando
- sugeri.
Maude acha que mamyjamais vai querer, mas ela sempre faz o que eu peço.
GERTRUDE WATERHOUSE
Sentime uma tola, mas encontrei uma desculpa para impedi-la de ir. Quando Livy e
Ivy May chegaram da escola, eu estava com o tornozelo enfaixado e o pé descansando
num banquinho. - Tropecei na beirada da porta. E só uma torção, felizmente, não
quebrou nada expliquei, quando Livy estranhou.
- Ah, mamãe, você é tão desajeitada - lastimou Livy.
- Pois é, eu sei.
- O médico mandou ficar assim quanto tempo?
- Uma semana, no mínimo.
- Então, você não poderá nos levar à passeata no domingo!
- É, eu sei. Sinto muito, querida, sei que você estava com muita vontade de ir.
- Pessoalmente, estava achando um horror.
Livy berrou: - Mas temos de ir, não podemos perder. Não é, Ivy May?
Ivy May estava examinando o pé enfaixado. Eu devia ter apertado melhor.
- Quem sabe, papy nos leva - sugeriu Livy.
- Não - falei logo. Não queria que Albert se envolvesse naquilo. - De manhã, vocês
vão à igreja com ele. À tarde, ele vai jogar críquete. É melhor ficarem em casa.
- Então, podíamos ir com Maude e a mãe.
- Não! - repeti, mais depressa ainda.
- Ficamos com elas, sem correr nenhum perigo.
- Não!
Livy olhou para mim com tal dureza que mal consegui suportar. - Não mesmo, Livy,
querida - falei, com todo o carinho que pude. - Não entendo por que vocês querem
tanto ir. Não se trata de nada que interesse a vocês, nem deve interessar. Tenho certeza
de que o homem com quem cada uma vai se casar será totalmente capaz de decidir em
quem devem votar.
Livy então anunciou: - Pois eu sou a favor do sufrágio da mulher.
Ivy May deu uma risadinha e disse: - Livy não quer ficar de fora das coisas.
- Psiu! Ivy May, tenho certeza de que você também quer ir ao Hyde Parkdisse Livy.
-Você apoia mesmo o sufrágio da mulher? - perguntei, estranhando minha filha.
- Apoio! As cores são lindas: lenços e jóias em roxo, verde e branco. E as mulheres
zunindo em automóveis, tão animadas e envolvidas com a causa. - Livy parou de falar
quando me olhou e viu a minha cara.
- Não apoio as sufragistas, nem essa passeata - falei dura, esperando colocar o ponto
final na questão.
Claro que não coloquei ponto final algum. Livy chorou dois dias e não falou comigo
até que, finalmente, na noite anterior à passeata, desisti. Nada impede Livy de fazer o
que quer, nem mesmo os princípios bobos da mãe dela. Não queria que ela descobrisse
que tentei enganá-la com a história do tornozelo, por isso acabei nem podendo ir. Tive
de entregálas a Kitty Coleman.
Ivy May me viu andando com o tornozelo "torcido". Graças a Deus, não disse nada.
MAUDE COLEMAN
Saltamos do ônibus na estação Euston e começamos a entrar na multidão de pessoas
que já estava nas calçadas. A estação ferroviária despejava mulheres sem parar, vindas
do norte, em trens especiais. Lavínia e eu ficamos de mãos dadas com Ivy May e
seguramos firme quando fomos empurradas e apertadas num mar de sotaques, de
Birmingham e Manchester e Lancashire.
Mamãe andava rápido entre as pessoas: o aperto não a incomodava, o que estranhei,
sabendo que ela detesta ficar sem espaço. Quando chegamos à rua em frente à estação
de St. Pancras, ela começou a olhar as mulheres de vestido branco que tinham se
juntado na rua com suas faixas. - Ah, lá estão elas! - mamãe gritou e foi forçando a
multidão na calçada a andar na rua.
Aí, eu respirei melhor, na rua tinha mais espaço. Foi esquisito ficar no meio de uma
rua tão larga, sem coches, carroças nem carros para atrapalhar: tinha só uma fila
comprida de mulheres de branco na frente e atrás, com homens e mulheres na calçada
olhando para nós.
Mamãe nos levou até um grupo de mulheres, muitas das quais eu conhecia das
tardes amigas. - Aqui estão elas, Eunice - mamãe falou, segurando o braço de uma
mulher alta, com rosto sardento que usava uma etiqueta costurada na roupa onde
estava escrito Capitã das faixas. - E lá está Caroline! exclamou mamãe, acenando: -
Caroline!
Caroline Black correu, animada, os cabelos saindo do chapéu. Carregava um pano
grande, amarrado num mastro. Mamãe deu um beijo nela e perguntou: - Conseguiu
tudo?
- Sim, acho que sim. Graças a Deus, dei ontem a armadura para o menino trazer.
Senão, não agüentava carregar.
Não entendi o que elas falavam, mas, antes que eu perguntasse, mamãe me disse:
- Maude, agora deixo vocês com Eunice, que vai cuidar das três.
- Você também vai entrar na passeata, não? - perguntei, tentando não demonstrar na
voz o pânico que sentia. Como nós.
- Vou, mas tenho de fazer uma coisa em outra parte da passeata. Você vai ficar
ótima, conhece quase todas as mulheres.
- Onde você vai? O que vai fazer?
- É surpresa.
- Mas pensamos que fôssemos ficar com você. Dissemos à sra. Waterhouse que você
cuidaria de nós.
Mamãe balançou a cabeça, impaciente. - O que tenho a fazer é muito mais
importante do que olhar vocês. Na verdade, Eunice é melhor do que eu: é a capita das
faixas dessa ala e muito eficiente. com ela, vocês estão bem cuidadas. Encontro vocês no
final do dia, depois do Grande Grito, às cinco da tarde. Vá para o palanque cinco, no
qual a sra. Pankhrust estará falando. Vejo vocês lá. Agora temos que ir mesmo.
Divirtam-se, meninas! Lembre-se, Maude, palanque cinco, depois do Grande Grito.
- Ela segurou o braço de Caroline Black e sumiu na multidão. Tentei segui-la com os
olhos, mas não deu, era a mesma coisa que acompanhar um graveto numa correnteza
forte.
Lavínia ficou branca. - Como vamos fazer sem ela? - reclamou, o que foi um tanto
falso, já que não gosta de mamãe.
- bom, meninas, teremos um grande dia, hein? - Animou-se Eunice, enquanto
ajudava duas mulheres próximas a segurar a faixa onde estava escrito A esperança é
forte.
Eunice então avisou: - Preciso conferir as outras faixas da minha ala. Fiquem aqui ao
lado dessa faixa até eu voltar. - E foi indo antes que disséssemos qualquer coisa.
- Maldição! - xinguei, baixinho. Tínhamos sido abandonadas.
Lavínia olhou para mim, chocada com o palavrão que eu disse e com a nossa sina,
espero. - Vai ver que mamy tinha razão. Eu devia ficar em casa, estou sentindo uma
fraqueza anunciou.
- Pare com isso - zanguei. - Vamos conseguir. - Ia ser uma tarde monótona e a
situação ficaria pior ainda se ela desmaiasse. Olhei em volta, procurando algo para
distraí-la.
- Olhe a banda de música, Banda de Metais do Bairro de Hackney, li na faixa deles. -
Lindos os uniformes, não? Eu sabia que Lavínia gostava de homens uniformizados.
Já estava dizendo que pretendia casar-se com um soldado. Os músicos davam
sorrisinhos para as mulheres que passavam e um tocador de eufônio piscou para mim
antes que eu olhasse para o outro lado.
Lavínia segurava a faixa que nos foi entregue. -Esperar dá sorte - disse ela, de
repente, e riu.
- O quê?
- Nada, nada.
Dali a pouco, estávamos nos sentindo melhor. As mulheres em volta falavam e riam,
via-se que estavam contentes de participar. O efeito geral era um grande vozerio de
mulheres, às vezes esganiçado, alto, mas que não assustava como assusta um vozerio de
homens. Era difícil não se contagiar com tanta animação. E as senhoras não pareciam
sufragistas, muitas eram iguais a nós, tinham ido passar a tarde lá por curiosidade, sem
carregar faixas nem gritar. Havia muitas mulheres com suas filhas, algumas bem
pequenas. Tinha até meninas, todas de branco com laços verde e roxo no cabelo,
sentadas numa charrete puxada por um pônei, perto de nós.
Lavínia apertou o meu braço e disse: - E animadíssimo, não? Está todo mundo aqui!
Menos mamãe. E fiquei pensando no que ela e Caroline Black estavam aprontando.
A banda então começou a tocar uma ária da ópera Aída, sob a batuta de um homem
com o bigode virado para cima como um guidom de bicicleta. Todo mundo se
aprumou, parecia que as pessoas estavam presas a um arame que puxava e soltava. A
multidão fez um som ansioso. De repente, Eunice reapareceu e gritou: - Agora,
levantem as faixas! - As mulheres à nossa volta levantaram os mastros e prenderam as
faixas em ganchos; quando as outras viram, também levantaram suas faixas até que só
havia faixas balançando sobre um mar de cabeças. Naquela hora, tive vontade de ter
uma faixa.
Alguns minutos depois, o murmúrio da multidão diminuiu, sem que tivéssemos
saído do lugar.
- Não vai começar nunca? - gritou Lavínia, arrastando os pés no chão, ansiosa. - Se
demorar mais, não agüento!
E, de repente, começou. As faixas que estavam na frente andaram e abriu-se um
espaço na nossa frente.
- Vamos, agora, meninas! - Eunice gritou.
Fomos andando, as pessoas que estavam na calçada deram gritos alegres e calafrios
percorreram as minhas costas. Tinha mais seis alas além da nossa, vindas de todas as
regiões próximas de Londres, com os participantes se encaminhando para o Hyde Park.
Era emocionante demais fazer parte de um todo enorme, de centenas e centenas de
mulheres fazendo a mesma coisa, ao mesmo tempo.
Demorou um pouco para a passeata manter um passo firme. Ficamos parando e
andando, abrindo caminho por St. Pancras, depois pela estação Euston. Dos dois lados
das ruas, os homens nos olhavam passar, alguns sérios, outros fazendo brincadeiras,
mas a maioria sorria como faz meu tio quando acha que falei alguma bobagem. As
mulheres que ficavam nas calçadas eram mais ativas, sorriam e acenavam. Algumas
saíram da calçada e entraram na passeata.
No começo, Lavínia estava muito animada, cantarolando junto com a banda, rindo
quando uma faixa na frente pegou um vento e foi caindo. Mas quando começamos a
andar mais firme, depois de Euston e perto da estação Great Portland, ela suspirou,
arrastando os pés. - E só o que vamos fazer? Andar? - reclamou.
- Vai ter discursos em Hyde Park, está perto. E vamos passar pela Oxford Street,
você pode olhar as vitrines das lojas - falei com segurança, mas não sabia por onde
seguiríamos. Não conhecia direito a geografia de Londres, nunca fui muito ao Centro e,
quando fui, estava com papai e mamãe. Eu conhecia os rios mais importantes da África
melhor do que as ruas de Londres.
Nessa altura, Ivy May mostrou: - Olha ali o Simon.
Foi um alívio ver uma cara conhecida no meio daquela massa de estranhos. - Simon!
- Lavínia e eu chamamos juntas.
Ele nos viu e ficou todo animado, saiu da multidão e surgiu junto de nós.
- O que faz aqui, menino peralta? - Lavínia perguntou, apertando o braço dele.
Simon enrubesceu. - Vim procurar você.
- Vai ficar conosco? - perguntei.
Simon olhou em volta: - Não tem nenhum homem, tem?
- A banda é só de homens. Fica.
- Bom, fico um pouquinho. Mas tenho de pegar o cavalo em Hyde Park.
- Que cavalo?
Simon ficou espantado. - O cavalo para as senhoras, para a sua mãe. Ela não contou?
- Mamãe não tem cavalo, detesta hipismo.
- O cavalo é de um amigo do sr. Jackson. Emprestou só por hoje.
- Sr. Jackson? O que ele tem a ver com isso?
Simon já estava achando que devia ter ficado quieto. Sua mãe perguntou ao
sr. Jackson se ele conhecia alguém que podia emprestar um cavalo. Tinha de ser branco.
Um amigo dele tem, lá por Baker Street. Então emprestou e pediu que eu selasse o
cavalo e trouxesse. Me pagou e tudo.
A banda começou a tocar a canção da ópera cômica Os piratas de Penzance. Tentei
entender o que Simon disse, mas era difícil pensar com tanta gente e tanto barulho.
- Mamãe nunca vai ao cemitério, como encontrou o sr. Jackson?
Simon fez-se de bem informado: - Ele foi visitar a sra. Coleman em Holloway. E, não
faz tempo, ouvi eles conversando no cemitério sobre sufragismo e essas coisas.
- Minha mãe não está a cavalo, está? Onde está? Simon não quis dizer mais nada.
- Procure. Elas estão na frente da passeata.
- E longe?
- Vou mostrar para você. - Simon saiu da multidão para a calçada, certamente
aliviado por largar uma passeata só de mulheres.
Fui atrás, mas Lavínia segurou o meu braço. - E eu? - gritou ela.
- Fica aí, eu volto.
- Você não pode me deixar sozinha!
- Não está sozinha, está com Ivy May. Fica com a faixa - acrescentei, mostrando A
esperança é forte. - Eu volto para encontrar você. E Eunice vem logo. Diga a ela que fui
olhar as faixas, não diga que fui ver mamãe.
- Vamos com você - gritou Lavínia, mas soltei meu braço e entrei na multidão antes
que ela me seguisse. Não sabia o que mamãe estava fazendo, mas não queria que
Lavínia visse.
SIMON FIELD
Só posso dizer que a sra. Coleman não estava com aquela roupa quando entreguei o
cavalo para ela. Devia estar com aquilo por baixo do vestido.
Fico espantado, mas procuro não mostrar meu susto. Não consigo tirar os olhos das
pernas dela. Só vi pernas de mulher assim uma vez, num teatro de Dick Whittington,
mas com meias de malha e uma túnica até os joelhos. A sra. Coleman não está como
Dick, mas como Robin Hood. Tem uma túnica curta, verde, amarrada na cintura,
botinhas verdes e um boné verde e roxo com uma pena branca. Está com as pernas
nuas, dos tornozelos até... bom, até bem em cima.
Ela conduz o cavalo branco que a srta. Black monta. Você pensa que a srta. Black ia
estar vestida de Lady Marian ou de frei Tuck ou algo assim, mas não, está toda de
armadura e um elmo de prata com uma pena branca que mexe para cima e para baixo
conforme o passo do cavalo, como ficam as penas de avestruz dos carros fúnebres.
Ela segura as rédeas numa das mãos e na outra uma bandeira com palavras que não
sei ler.
Maude fica só olhando. Não tem culpa, está todo mundo olhando as pernas de Kitty
Coleman. Tenho de dizer: belas pernas. Fico vermelho de olhar e vou direto pelo meio
de todo mundo. Tenho de cruzar as mãos na minha frente para ninguém ver. Para me
distrair, pergunto a Maude: - A srta. Black está com roupa do quê?
- Joana d'Arc - responde Maude, como se cuspisse as palavras.
Nunca ouvi falar nessa Joana, mas não digo para Maude. Sei que ela não quer
conversa.
Ficamos na calçada, um pouco na frente da passeata para podermos ver bem.
Quando as duas senhoras passam, Maude parece querer dizer alguma coisa para a mãe,
não diz. A sra. Coleman não olha para ela: tem um sorriso estranho e olha em frente
como se visse alguma coisa no horizonte que está louca para pegar.
Passam. Maude não diz nada, nem eu. Só olhamos e Maude diz alguma coisa.
- O que foi? - pergunto.
- Tem um erro na faixa de Caroline Black-mas ela não diz que erro.
KITTY COLEMAN
Durante quase toda a passeata fiquei como num sonho.
Estava tão enlevada que mal ouvi o que se passava em volta: a gritaria das pessoas,
o ranger das rédeas do cavalo, a estridência da armadura que Caroline usava: estava
tudo lá, mas distante. As patas do cavalo pareciam acolchoadas ou como se as ruas
estivessem forradas de serragem para amortecer os passos, como, às vezes, fazem nos
enterros.
Também não enxerguei as coisas direito. Tentei enfocar os rostos que passavam, mas
eles formavam um borrão. Acho que vi alguns conhecidos: Richardjohnjackson, Maude,
até minha falecida mãe, mas eram só parecidos com eles. Foi mais fácil olhar para a
frente, para o nosso destino, fosse lá qual fosse.
A única coisa que senti com intensidade foi o sol e o vento nas minhas pernas.
Depois de passar a vida inteira usando vestidos pesados, com camadas de pano
envolvendo as pernas como se fossem bandagens, foi uma sensação difícil de descrever.
Então, ouvi um estampido que não era abafado. Olhei na multidão, de repente,
consegui enxergar bem, e havia alguém parecido com o meu falecido irmão na
calçada do outro lado.
Ele olhava para Caroline com uma expressão tão perplexa, que tive de me aproximar
para ver o que era.
Houve outro estampido. Pouco antes do cavalo empinar, li o que estava escrito na
faixa que Caroline levava: Palavras sim; ação não.
Arre, pensei, quem fez esse erro ridículo? Depois, o cavalo pisou no meu peito.

LAVÍNIA WATERHOUSE

Maude voltou com Simon e, de propósito, não falei com ela, fiquei bem quieta
enquanto passávamos por Portland Place, pela parte de cima de Regent Street, até
pararmos um pouco na Oxford Street. Não podia perdoá-la por ter-me deixado lá,
sozinha.
Ela também não falou, só foi andando com uma cara de tempestade, sem
perceber que eu tinha mandado ela para Coventry, isto é, para o fim do mundo. Nada
mais aborrecido que alguém não perceber que você está se vingando dela. Na verdade,
parecia que a castigada era eu mesma. Eu estava louca para saber da mãe de Maude e
do cavalo, mas, já que estava de mal, não podia perguntar. Gostaria de que Ivy May
falasse comigo, para meu silêncio com Maude ficar mais evidente. Apertei o chapéu de
Ivy May na cabeça, estava caindo para trás, ela apenas agradeceu com um gesto. Não
costuma falar quando a gente quer.
Depois, a passeata parou outra vez. Simon saiu correndo para pegar o cavalo e
entramos em Hyde Park por Marble Arch. Fomos ficando mais apertados à medida que
a multidão espremida nas calçadas passava pelo portão do parque. Era como ser um
grão de areia numa ampulheta, esperando a vez de passar pelo buraquinho do meio. O
parque ficou tão cheio que segurei na mão de Maude e de Ivy May.
Entramos e, subitamente, havia espaço, sol, grama e muito ar fresco. Engoli o ar
como se fosse água fresca.
Um imenso mar de gente havia se formado em torno de várias carroças onde se
equilibravam muitas sufragistas. com aqueles vestidos brancos e apertadas acima da
multidão, elas me pareceram nuvens macias, lá longe.
- Anda, anda-dizia uma mulher atrás de nós com uma etiqueta de pano escrito
Coordenadora geral. - Há centenas de pessoas atrás querendo entrar. Sigam na
direção dos palanques, por favor, mantendo a fila.
A passeata devia continuar até os palanques, mas, quando chegou no parque, as
pessoas começaram a se dispersar de um lado para outro e ficamos fora de ordem.
Homens que estavam assistindo das calçadas se misturaram às senhoras que
desfilaram e quando andamos, meio perdidas rumo aos palanques, ficou mais cheio
ainda, e os homens empurravam. Mamy ficaria horrorizada se nos visse,
desacompanhadas, no meio de todos aqueles homens. Vi a boba da Eunice, gritando
para alguém trazer a faixa dela.
Não tinha condição de ela cuidar de nós três.
Havia faixas por todo canto. Vi uma que eu havia costurado, mas eram tantas que
meus erros se diluíram no meio. Nunca imaginei que tanta gente pudesse se juntar num
lugar ao mesmo tempo. Dava medo e, ao mesmo tempo, era emocionante, como quando
um tigre no zoológico olha bem para você com aqueles olhos amarelos.
-Você está vendo o palanque cinco? - Maude perguntou. Eu não conseguia ver
número algum, mas Ivy May apontou para um palanque e fomos para lá. Maude
continuou me puxando por muros de gente e tive de segurar com mais força a mão de
Ivy May, que estava ficando suada.
- Vamos ficar por aqui, está muito cheio - sugeri a Maude.
- Só mais adiante, estou procurando mamãe. - Maude continuava me puxando pela
mão.
De repente, havia gente demais. Os pequenos espaços onde conseguíamos entrar
viravam uma parede dura de pernas e costas. As pessoas davam encontrões, estranhos
empurravam meus braços e ombros.
Senti uma mão atrás de mim, os dedos passando de leve. Levei tanto susto que, por
um instante, não reagi. A mão levantou meu vestido e começou a mexer nos meus
calções, no meio de toda aquela gente. Era incrível que ninguém visse.
Tentei me afastar, a mão continuou. Olhei para trás: o homem que estava ali era da
idade de papai, alto, grisalho, com um bigode fino e óculos. Os olhos estavam fixos no
palanque. Não acreditei que a mão fosse dele: parecia um senhor tão respeitável. Fiz
pontaria e dei um bom pisão no pé atrás de mim. O homem se assustou, a mão sumiu.
Logo depois, ele desapareceu, outra pessoa pegou o lugar.
Estremeci e disse a Maude: - Vamos sair daqui - mas minha voz sumiu junto com
um toque de clarim. A multidão avançou e Maude foi empurrada em cima da mulher
da frente, soltando da minha mão. Depois, fui jogada com força para a esquerda e olhei,
mas não consegui ver Maude.
- Sua atenção, por favor, gostaria de abrir esse encontro, que é o mais significativo
evento já realizado no Hyde Parkdisse uma voz estridente. Uma mulher no palanque
tinha subido num caixote e se destacara das outras. Seu vestido malva parecia lavanda
borrifada num sorvete de baunilha. Tinha um porte ereto e seguro.
- Essa é a sra. Pankhurst - comentaram as mulheres perto de mim.
- Tenho a satisfação de ver à minha frente uma multidão de pessoas, mulheres e
homens também, que apoiam o simples direito das mulheres assumirem seus lugares ao
lado dos homens e votarem. O Primeiro-ministro Asquith disse que precisa de garantia
de que, por trás do pedido de voto para as mulheres, está a vontade do povo.
Pois, sr. Asquith, participo ao senhor que, se estivesse onde estou agora e visse o
mar de pessoas que estou vendo, o senhor não precisaria de mais nada para
se convencer!
A multidão urrou. Apoiei as mãos no ombro da mulher ao meu lado e pulei para ver
melhor. - Maude! - chamei, mas era tanto barulho que ela jamais me ouviria. A mulher
fez uma cara zangada e tirou minhas mãos do ombro dela.
A sra. Pankhurst aguardou que o barulho diminuísse. Teremos discursos a tarde
toda e, sem mais a declarar...
- Maude! Maude! - gritei.
A sra. Pankhurst fez uma pausa e anunciou: -... gostaria de apresentar...
- Maude!
- Lavínia! - alguém acenava acima da multidão, à direita. Acenei de volta e fui
andando na direção da mão.
A sra. Pankhurst tinha parado de falar outra vez. - Psiu! Psiu! - as mulheres no
palanque começaram a pedir silêncio. Continuei a empurrar abrindo espaço, sem
prestar atenção no que se passava no palanque. Então, na minha frente, vi a guirlanda
de margaridinhas e jasmins-estrela que eu havia trançado naquela manhã para o
chapéu de Maude. Dei mais um empurrão e encontrei-a.
Demos um abraço apertado, o coração de Maude batia forte, eu tremia.
- Vamos sair do meio de toda essa gente - disse Maude, baixo. Concordei, segurando
bem nela e fomos nos afastando do palanque e das pessoas que ouviam a sra.
Pankhurst.
Finalmente, voltamos a achar espaço e chegamos numas árvores bem longe da
multidão. Eu então parei e avisei: vou vomitar.
Maude me levou perto de uma árvore onde eu podia me esconder. Depois,
encontramos uma sombra para sentar na raiz da árvore. Ficamos caladas por alguns
minutos, olhando as pessoas passarem devagar ou correndo, saindo de uma roda em
volta de um palanque e indo para outra. Víamos quatro palanques e, de longe, as
mulheres que discursavam eram pequeninas, com os braços rodando como pás de
moinho.
Eu estava com muita sede.
Ia chegar uma hora em que Maude faria a pergunta inevitável. Fiquei morrendo de
medo. E ela perguntou: - Lavínia, onde está Ivy May? Comecei a chorar. - Não sei -
respondi.
MAUDE COLEMAN
Mamãe estava sentada a duas árvores de distância de nós. Só descobrimos depois
que a manifestação terminou.
Não adiantava procurar por ninguém enquanto estivessem discursando e houvesse
tanta gente espremida. Lavínia estava desesperada, mas eu sabia que Ivy May era uma
menina inteligente: concordo que falava pouco, mas não deixava escapar nada em volta
e sabia que tínhamos de encontrar mamãe no palanque cinco, após o Grande Grito, seja
lá o que fosse isso.
Foi o que fiquei pensando e repetindo para Lavínia, se é que me ouvia. Ela acabou
encostando a cabeça no meu colo e dormindo, o que é uma atitude bem dela, numa hora
difícil. Ela gosta é de melodrama: drama real é muito sem graça. Fiquei inquieta,
esperando os discursos terminarem e Lavínia acordar.
Finalmente, soou o clarim. Quando tocou pela segunda vez, Lavínia acordou, o rosto
rosado e amassado. - Que horas são? - perguntou, bocejando.
- Não sei, devem ser quase cinco.
Lá longe, as pessoas acenavam e davam gritos de apoio. O clarim soou, de novo.
Ouviu-se um vozerio, como uma orquestra numa sinfonia tocando cada vez mais
alto, parecia que as pessoas estavam gritando: Como com a colherl Só na terceira vez
percebi que berravam: Voto para a mulherl No último grito, o vozerio parecia um
trovão, as vozes e risadas eram uma chuva caindo das nuvens.
Depois, de repente, a multidão debandou e veio muita gente na nossa direção: olhei
os rostos passando, na esperança de encontrar alguém conhecido. Vi Eunice, que passou
rápido, com uma faixa e estandarte. Ela não nos viu e nós não quisemos para-la.
- Temos de ir para o palanque cinco. Deve ter alguém lá - falei.
Lavínia e eu nos demos os braços e fomos andando: foi bem difícil, já que a multidão
vinha do palanque na direção contrária à nossa. As pessoas tinham uma expressão
exausta: eram crianças com sede, mulheres impacientes, homens preocupados, todos
querendo saber como chegar em casa com tanta gente no caminho. Como ninguém mais
estava organizado, em alas, as ruas em volta do Hyde Park deveriam estar um caos,
cheias de gente, coches e ônibus lotados, puxados por burros. Levariam horas para
chegar em casa.
Finalmente, chegamos perto do que eu lembrava que era o palanque cinco, mas a
faixa com o número tinha sido derrubada; a sra. Pankhurst e as outras tinham
descido da carroça. Um homem atrelava um cavalo à carroça.
- Estão tirando o palanque! Como vamos achar mamãe sem o palanque - perguntei.
- Olha a Caroline Black: que roupa é aquela? - Lavínia perguntou, puxando a manga
do meu vestido.
Caroline Black, impaciente, virava de um lado para outro, ainda com a armadura de
Joana d'Ark; a pluma branca no elmo seguia o mesmo ritmo, sacudindo para baixo e
para cima. Ela parecia muito contrariada e meu estômago ficou embrulhado ao vê-la
sozinha.
- Vocês estão aí! - ela gritou, sem sorrir para mim como costumava. - Aonde foram?
Estou procurando vocês há séculos!
- Onde está mamãe? - perguntei.
Caroline Back parecia que ia chorar. - Sua mãe... sua mãe teve um pequeno
problema.
- O quê?
- O triste é que tudo deu tão certo. - Caroline Black balançou a cabeça. - Foi ótimo,
tivemos tanto apoio de nossas camaradas e da platéia. E o cavalo era ótimo, tão dócil e
ótimo de montar. Se não...
- O que houve? Onde ela está? - era só o que eu conseguia dizer para não gritar.
- Alguém jogou espoletas no meio das pessoas, quando estávamos em Oxford Street.
O cavalo se assustou e nessa hora Kitty ficou na frente dele, lendo a minha faixa, não
sei por quê. O cavalo empinou, mal consegui me equilibrar na sela e, quando desceu as
patas, pisou no peito de Kitty.
- Onde ela está?
- A teimosa insistiu em continuar na passeata, conduzindo o cavalo e tudo, como se
nada tivesse acontecido. Disse que estava ótima, só um pouco sem fôlego.
E eu, estúpida, deixei. Depois, ela não quis sair durante os discursos, disse que tinha de
ficar para encontrar com vocês no final.
- Onde ela está, pelo amor de Deus? - gritei. Lavínia pulou de susto e as pessoas
perto olharam, mas Caroline Black não se alterou.
- Está sentada ali embaixo das árvores. - Apontou para o lugar de onde tínhamos
vindo.
Lavínia agarrou o meu braço quando fui andando para lá.
- E Ivy May? Temos de encontrá-la - gritou.
- Vamos falar com mamãe e depois procuramos por ela.
- Sabia que Lavínia estava zangada comigo, mas fiz de conta que não sabia e fui
caminhando.
Mamãe estava encostada no tronco da árvore com uma perna dobrada e a
outra estendida.
- Cáspite! - Lavínia exclamou. Eu havia esquecido que ela ainda não tinha visto
mamãe com aquela roupa.
Mamãe sorriu ao nos ver, mas seu rosto estava tenso, como se lutasse para esconder
alguma coisa. Respirava com dificuldade. - Olá, Maude, gostou da passeata?
- perguntou.
- Como vai, mamãe?
Mamãe bateu no peito e disse: - Está doendo.
- Temos de levar você para casa, minha cara. Consegue andar? - perguntou Caroline
Black.
- Ela não deve andar, pode piorar - falei, lembrando das aulas de primeiros socorros
na escola.
- Você vai ser médica? - perguntou mamãe. - Que bom, pensei que fosse ser
astrônoma, vejo que me enganei. Tendo uma profissão, não me importo qual seja.
Menos, talvez, esposa. Mas não diga isso ao papai. - Ela fechou os olhos ao respirar
fundo. - Vá para a universidade.
- Calma, mamãe. Não fale.
Olhei em volta. Caroline Black e Lavínia me olhavam como se eu estivesse no
comando.
Então, vi um conhecido se aproximando a passos largos.
- Graças a Deus está aqui, sr. Jackson - gritou Lavínia, segurando no braço dele. -
Pode encontrar Ivy May para nós?
Interrompi: - Não, o senhor tem que conseguir um coche para mamãe, ela precisa de
um médico já.
O sr. Jackson olhou para mamãe: - O que houve, Kítty? -Ela foi pisada por um cavalo
e não consegue respirar falei.
- Olá, John - mamãe murmurou. - Foi isso, ponho uma roupa de Robin Hood e sou
pisada pelo cavalo da figuração.
- Ivy May se perdeu, sr. Jackson! Minha irmãzinha se perdeu naquela multidão
horrível! - gritou Lavínia.
O sr. Jackson olhava de mamãe para Lavínia. Vi que ele não podia resolver, eu tinha
de decidir: - Sr. Jackson, traga um coche, o senhor consegue com mais facilidade do que
eu ou Lavínia e pode carregar mamãe até o coche. Caroline, espere aqui com mamãe:
Lavínia e eu vamos procurar Ivy May.
- Não! - Lavínia gritou, mas o sr. Jackson já tinha ido chamar o coche.
Mamãe concordou e disse: - Obrigada, Maude. Você é muito responsável. - Ficou
encostada na árvore, com Caroline Black ao lado, usando aquela estranha armadura.
Segurei a mão de Lavínia: - Vamos encontrar Ivy May, eu prometo.

LAVÍNIA WATERHOUSE

Não a encontramos. Procuramos em toda parte, mas não a encontramos.


Andamos para cima e para baixo pelo parque onde as pessoas tinham ficado e a
grama estava toda amassada como se tivesse passado uma boiada. Tinha muito menos
gente naquela hora, seria fácil ver uma menina sozinha. Mas não havia nenhuma, só
grupos de rapazes passeando. Eles me deixavam nervosa, principalmente quando nos
chamaram. Maude e eu apertamos os braços e seguimos.
Foi tão desanimador: não encontramos um policial, nem mesmo uma das sufragistas
que estavam na passeata com etiquetas na roupa dizendo Capitã das faixas ou
Coordenadora geral. Nenhum adulto por perto para ajudar.
Foi então que um grupo de homens grosseiros disse: Olá, meninas, que tal um
drinque? - e vieram na nossa direÇão. bom, Maude e eu pensamos: "pernas, para que
vos quero" e saímos do parque. Os homens não nos seguiram, mas eu me recusei a
voltar ao parque, era muito perigoso. Ficamos olhando, na entrada de Marble Arch,
protegendo nossos olhos do sol do começo da tarde.
Eu procurava não só por Ivy May, mas por Simon. Não o vimos mais desde que ele
saíra da passeata para buscar o cavalo (que a mãe de Maude conduzia, naqueles trajes!
Ainda estou pasma. Não é de estranhar que o cavalo tenha dado um coice). Simon disse
que voltaria ao parque depois.
Fiquei procurando, enquanto pensava que os dois chegariam juntos:
Simon, segurando Ivy May pela mão. Estariam tomando sorvete e teriam mais um para
Maude e outro para mim. Ivy May, aquela bochechudinha, estaria sorrindo para mim
com os olhos brilhando e eu daria um beliscão nela pelo susto que me dera.
- Ela não está aí, já teríamos visto. Talvez tenha ido para casa. Pode ter tomado o
caminho de volta até Euston e entrado num ônibus. Ela é esperta.
Peguei a bolsinha que estava presa na minha cintura. Ela não tinha dinheiro para o
ônibus. Mandei me dar a bolsinha para não perder - falei.
Maude repetiu: - Ela pode ter achado o caminho de volta. Talvez fosse bom
fazermos o itinerário da passeata.
- Estou tão cansada, acho que não consigo mais andar. Vamos ficar aqui mais um
pouquinho.
Então, Simon apareceu. Parecia tão pequeno naquele gramado enorme, os braços
soltos, vinha chutando coisas que ficaram pelo chão: pedaços de papel, flores, uma luva
de senhora. Não pareceu surpreso de nos ver, nem de ouvir Maude dizer: - Ivy May
sumiu.
- Ivy May sumiu, sumiu - repeti e comecei a chorar.
- Ela desapareceu - Maude disse, de novo.
Simon olhou para nós, sério como eu nunca tinha visto. -Achamos que ela pode ter
seguido o caminho que fizemos - disse Maude. - Procure conosco.
- Com que roupa ela estava? Não lembro como era -- disse Simon.
Maude suspirou: - Um vestido branco, como o de todo mundo. E um chapéu de
palha com flores, igual ao nosso.
Simon foi conosco e voltamos pela Oxford Street. Dessa vez, não podíamos andar
pelo meio da rua, pois estava atulhada de coches de aluguel, ônibus e automóveis.
Ficamos na calçada cheia de gente que vinha da manifestação. Simon atravessou a
rua para procurar no outro lado, olhou em portas, alamedas, nos rostos que passavam.
Eu não acreditava que teríamos de refazer todo o caminho, estava com tanta sede e
com os pés doendo tanto, achava que não agüentaria. Chegamos na parte de cima da
Regent Street e vi uma cocheira com uma bomba manual para dar água aos cavalos: fui
lá e coloquei o rosto embaixo da água que esguichava. Não me importava se aquela
água era suja ou se meu cabelo ficaria molhado, estava com tanta sede que tinha de
beber.
O relógio na torre da estação St. Pancras estava batendo oito horas quando,
finalmente, chegamos ao ponto inicial da passeata.
- Mamy deve estar apavorada - falei. Apesar de estar tão cansada, eu tinha medo de
chegar em casa e enfrentar mamy e papy.
- O dia ainda está bem claro - disse Maude. - Hoje é o dia mais longo do ano, sabia?
bom, deve ser o segundo, depois de ontem.
- Ai, pelo amor de Deus, fica quieta, Maude. - Eu não agüentava ouvir ela falar como
uma professora na sala de aula. Além do mais, eu estava com uma horrível dor de
cabeça.
- Melhor irmos para casa - disse Maude, sem tomar conhecimento do que pedi.
- Avisamos nossos pais e eles entram em contato com a polícia. E eu vejo onde está
mamãe.
- A sua mãe - falei. De repente, estava com tanta raiva que queria cuspir em alguém.
Maude disse para o sr. Jackson 'evar a mãe dela, em vez de nos ajudar.
Ele teria encontrado Ivy May, tenho certeza. - A porcaria da sua mãe nos meteu
nessa confusão.
- Não culpe minha mãe! Foi você quem tanto quis vir à passeata! - gritou Maude.
- Sua mãe. Você não sabe a metade da história dela ameacei.
- Não fale nada, Livy, não - pediu Simon.
Maude olhou para mim e para Simon: - Nem quero saber, seja lá o que for. Não
precisa me contar, nunca.
- Vocês vão para casa! - gritou Simon. Eu nunca tinha visto ele levantar a voz.
- Olha o ônibus ali.-E nos empurrou para dentro.
- Não podemos largar Ivy May, não podemos entrar num ônibus e deixar ela à
mercê dessa cidade horrível falei, parando.
- Eu volto e procuro ela - avisou Simon.
Tive vontade de dar um beijo nele, mas já tinha sumido pela Euston Road.
JENNYWHITBY
Nunca esperei uma coisa dessa.
Não imaginava quem podia tocar a campainha da casa num domingo à noite, eu
tinha acabado de chegar da mamãe, nem tinha colocado a touca e o avental. Também
não costumava estar lá naquela hora, voltava mais tarde, depois que Jack dormia, mas
naquele dia ele ficou tão cansado de correr que, depois do chá, caiu na cama e dormiu.
Talvez tivessem roubado a chave da madame e da srta. Maude, no meio das gentes.
Ou fosse um vizinho querendo emprestar um selo de carta, ou pedir um pouco de
azeite de lamparina. Mas quando abri a porta, era o homem do cemitério carregando a
madame no colo. E mais: ela não estava usando uma roupa direita! Estava com as
pernas nuas como no dia em que nasceu. E de olhos abertos, como se tivesse acordado
de um cochilo.
Eu não consegui dizer palavra, só meus olhos ficaram pulando, o sr. Jackson me
empurrou para dentro, com aquela sufragista srta. Black saracoteando atrás dele.
- Temos de colocála na cama. Onde está o marido? - perguntou o sr. Jackson.
- Está no Buli and Last - respondi. Sempre vai lá depois do críquete. - Fui na frente,
mostrando o caminho para o quarto dela. A srta. Black usava uma espécie de roupa
de metal que chacoalhava quando ela andava. Estava tão esquisita que comecei a pensar
se aquilo era sonho.
O sr. Jackson deitou a madame na cama e disse: - Fique com ela, vou chamar o
marido.
- E eu vou chamar um médico - avisou a srta. Black.
- Tem um na Highgate Road, logo depois do bar, eu posso... - falei.
Eles já tinham ido, antes de eu oferecer de chamar o médico e a srta. Black ficar com
a madame. Parecia que ela não queria ficar lá.
Então, ficou só eu e a madame. Ela me olhava, parada. Eu não sabia o que fazer.
Acendi uma vela e ia fechar a cortina quando ela pediu, baixinho: - Deixe as
cortinas abertas e abra as janelas.
Ela parecia tão bobinha naquela roupa verde, as pernas de fora. O sr. Coleman ia ter
um ataque se visse ela assim. Depois de abrir a janela, sentei na cama e comecei a tirar
as bolinhas verdes dela.
- Jenny, quero perguntar uma coisa - disse ela, bem calma.
- Pois não, madame.
- Alguém sabe o que aconteceu comigo?
- O que aconteceu com a senhora? - repeti. - A senhora teve um pequeno acidente, é
só.
A madame abriu bem os olhos e balançou a cabeça. Jenny, não dá para falar
bobagem. Dessa vez, sejamos claras: alguém sabe do que aconteceu comigo há dois
anos?
Eu sabia do que ela estava falando antes, fiz de conta que não sabia. Coloquei as
bolinhas no chão. - Ninguém sabe, só eu. E a sra. Baker, ela percebeu. Ah, e Simon.
- O menino do cemitério? Como soube?
- A senhora procurou a mãe dele.
- Só... ninguém mais sabe?
Não olhei para ela, mexi na boina e no cabelo dela. Ninguém. - Não disse nada sobre
a carta da srta. Livy. Não tinha motivo para agitar ela, naquele estado.
Simon, a sra. Baker e eu podíamos manter o segredo, mas ninguém tem idéia do que
a srta. Livy podia falar um dia desses ou já ter falado. Mas a madame não precisava
saber.
- Não quero que os homens descubram.
- Não vão descobrir - garanti. Coloquei a mão nas costas dela e comecei a desabotoar
a túnica.
- Prometa que eles não vão saber.
- Não vão.
- Prometa mais uma coisa.
- Sim, madame.
- Não vai deixar minha sogra pôr as mãos em Maude. Tirei a túnica e levei um susto:
o peito dela estava com uma enorme mancha escura. - Nossa, o que foi com a senhora,
madame?
- Prometa!
Então eu entendi por que ela estava falando daquele jeito.
- Ah, madame, a senhora daqui a dois dias está ótima. O médico já vem, ele resolve.
A srta. Black foi buscar ele. E o senhor, aquele cavalheiro foi buscar o patrão.
- A madame tentou dizer alguma coisa, não deixei. Fui falando o que saía da minha
cabeça: - O sr. Coleman agora está no bar, num minuto chega. Vamos colocar essa
camisola antes deles chegarem, não? Tão linda, com renda nos punhos e tudo.
Vamos passar a camisola pela cabeça e puxar para baixo. Pronto! E o cabelo, pronto.
Agora está melhor, não?
Ela deitou de novo, como se estivesse fraca demais para responder. A respiração era
pesada, uma hora curta, uma hora comprida. Eu não agüentava ouvir aquilo.
- vou correr e acender as lamparinas para o patrão e para o doutor. Num segundo. -
Corri, antes que ela falasse alguma coisa.
O sr. Coleman entrou quando eu estava acendendo as lamparinas na entrada, depois
chegaram o doutor e a srta. Black. Subiram e ficou tudo em silêncio. Não teve jeito:
fiquei encostada na porta ouvindo o que falavam lá dentro.
O médico tinha uma voz tão baixa que só consegui escutar "sangramento interno".
Depois, o sr. Coleman gritou com a srta. Black: - com os diabos, por que não
procurou um médico na hora em que o cavalo pisou nela? Vocês estavam se gabando de
que haveria muita gente no encontro, claro que no meio de duzentas mil pessoas
haveria um médico!
- Você não está entendendo. Estava tão cheio que era difícil se mexer e até falar,
quanto mais encontrar um médico - explicou a srta. Black.
- Por que não trouxe Kitty logo para casa? Se você tivesse um pouco de sensatez, ela
estaria bem agora, só com uns machucados.
- Não acha que insisti para ela vir? Vê-se que não conhece sua esposa, se acha que ia
me obedecer. Ela queria chegar ao Hyde Park e ouvir os discursos nesse evento
histórico: nem eu nem ninguém, nem mesmo você, faria com que ela mudasse de idéia.
- Exagero! - gritou o sr. Coleman. - Até numa hora dessas vocês, sufragistas,
exageram! Você ao menos viu o peito dela, depois? Ao menos viu como tinha ficado?
E quem, por Deus, mandou Kitty conduzir um cavalo? Ela odeia cavalos!
- Foi idéia dela. Ninguém a obrigou. Ela nunca me disse que não gostava de cavalos.
- E onde está Maude? O que houve com a minha filha? - o sr. Coleman perguntou.
- Ela, ela está chegando, tenho certeza. - Caroline Black estava chorando.
Eu não quis ouvir mais nada. Desci para a cozinha e coloquei a chaleira no fogo.
Sentei e chorei.
IVY MAY WATERHOUSE
Por cima do ombro dele, vi uma estrela caindo. Era eu.
SIMON FIELD
Nunca tinha visto uma pessoa morta. Parece estranho um coveiro dizer isso.
Passo o dia inteiro cercado de mortos, mas estão em caixões, bem fechados e
cobertos de terra. Às vezes, fico de pé num caixão dentro da cova, só com uma tábua
entre eu e o morto. Mas não vejo ele. Se ficasse mais tempo fora do cemitério, veria
mortos o tempo todo. Engraçado, nossa mãe e irmãs já viram centenas de mortos,
mulheres e bebês que se vão no parto ou vizinhos mortos de fome ou de frio.
E estranho ver assim uma pessoa que eu conheço. Se não conhecesse, eu não sabia
quem era. Não é que ela teja cortada, pisada ou alguma coisa assim. É só que ela não
está ali. Estão as pernas, os braços, a cabeça, tudo no lugar certo, deitada no fundo de
uma cocheira, atrás de uma pilha de tijolos. E o rosto está limpo e suave, a boca fechada,
os olhos um pouco abertos como quem não quer mostrar que está olhando. Mas quando
olho o rosto, não consigo ver ela. Não é mais uma pessoa, é uma coisa como um saco de
batatas.
- Ivy May - chamo, baixinho, agachado ao lado dela Falo o nome, mesmo sabendo
que está morta. Talvez eu esteja querendo que ela volte, se eu chamar o nome.
Mas não volta. Não abre os olhos e me vê com aquele olhar dela de quem sabe tudo
o que está acontecendo, mas não diz. Não fica sentada com as pernas bem juntas, como
gosta de sentar. Não fica firme como se ninguém consegue derrubar ela, por mais que
empurre.
O corpo está lá. E tenho de dar um jeito de levar ele, de uma cocheira perto da
Edgware Road até o Parque Dartmouth.
Como vou carregar ela por todo esse caminho, sem ninguém ver? Fico pensando.
Quem ver, vai achar que fui eu.
Depois, olho para o fundo das cocheiras e tem um homem lá. Alto. Não consigo ver
bem a cara, só o brilho dos óculos onde bate a luz da lâmpada da rua e um bigode fino.
Ele está me olhando e quando me vê se esconde atrás da cocheira.
Ele pode achar que fui eu e foi avisar alguém. Mas eu sei que não. Foi ele.
Nosso pai diz que os homens não conseguem deixar o lugar do crime: vêm dar uma
olhada, ver se perderam um dente ou ficam por ali, sem fazer nada.
Saio correndo da cocheira, vou atrás dele, sumiu. Sei que vai voltar e se eu não levar
ela agora, ele leva.
Aperto um pouco o vestido, arrumo o cabelo e fecho a fivela de um sapato que
abriu. Ponho ela nas minhas costas e vejo que o chapéu estava embaixo dela. Todo
amassado, as flores também, é difícil pegar o chapéu com Ivy May pesando nas minhas
costas, então eu deixo no chão.
Se alguém perguntar, digo que é minha irmã que dormiu. Mas passo longe dos bares
e fico nas ruazinhas, depois pego os parques, Regents, depois a colina Primmers, Heath
pelo lado, tem pouca gente. Ninguém pergunta nada. Nessa hora da noite, os homens
estão muito bêbados para perceber ou então preocupados com suas próprias coisas e
não querem chamar atenção.
No caminho todo, fico pensando naquele chapéu. Não queria ter deixado. Não
quero deixar nada dela lá. Então, quando acabo e deixo ela em casa, volto o caminho
todo pelos parques e as ruas. E rápido, sem o peso dela nas minhas costas. Chego na
cocheira e olho atrás dos tijolos: o chapéu já sumiu, com flores e tudo.
MAUDE COLEMAN
Fiquei sentada na escada de ferro forjado que dá nas portas envidraçadas, ligando
com o jardim. Esperei.
Havia um cheiro de jasmim, hortelã e grama orvalhada.
Os sapos coaxavam no lago no fundo do jardim e, pela janela de baixo, vinham os
soluços de Jenny na cozinha.
Jamais gostei de esperar: parece uma perda de tempo e me sinto culpada, como se
devesse estar fazendo outra coisa. Naquele momento, não havia nada mais a fazer.
A avó tinha chegado e estava sentada na sala da manhã, tricotando furiosamente,
mas eu não quis me ocupar. Preferi olhar as estrelas, identificando as constelações: Ursa
Maior, Corvo, Lobo.
Perto, os sinos da igreja bateram à meia-noite.
Papai apareceu na porta e acendeu um cigarro. Não olhei para ele.
- A noite está clara - ele comentou.
- É.
- Pena que não podemos montar o telescópio no jardim, daria para ver até as luas de
Júpiter. Mas não seria certo, numa hora dessas, não é?
Não respondi, embora pensasse a mesma coisa.
- Maude, desculpe ter gritado com você quando chegou em casa. Estava nervoso.
- Não tem problema.
- Estava com medo de ter perdido você também. Mudei de posição no degrau de
metal frio. - Não fale assim, papai.
Ele tossiu: - Está certo, você tem razão.
Ouvimos então o grito, longo e agudo, vindo da casa dos Waterhouse. Senti um
calafrio.
- Meu Deus, o que foi isso? - perguntou papai. Balancei a cabeça: não tinha contado
para papai do sumiço de Ivy May.
Alguém pigarreou atrás de nós. O médico tinha descido para falar conosco.
Naquele momento, quando a espera tinha terminado, eu não queria sair da escada.
Não queria ver minha mãe. Esperei por ela a vida inteira e preferia esperar para
sempre, se não houvesse outra escolha.
Papai atirou o cigarro no jardim e virou-se para acompanhar o médico. Ouvi o
cigarro aceso chiando na grama úmida. Quando apagou, também entrei.
Mamãe estava deitada, muito calma, o rosto pálido, os olhos abertos, com um brilho
artificial. Sentei na beira da cama e ela olhou para mim. Sabia que esperava eu falar.
Não tinha a menor idéia do que dizer ou fazer. Lavínia e eu tínhamos ensaiado essa
cena muitas vezes, quando brincávamos de fazer teatro, mas nenhuma palavra parecia
adequada, naquela vez. Seria bobo dizer alguma coisa melodramática e ridículo dizer
algo banal.
Acabei lançando mão do banal. - O jardim está tão perfumado essa noite. Cheira
muito a jasmim.
Mamãe mexeu a cabeça, concordando. - Sempre gostei de jasmins em noites de
verão - ela disse e fechou os olhos.
Será que só íamos falar em jasmins? Parecia que sim.
Apertei a mão dela e olhei bem seu rosto, como se quisesse guardá-lo na memória.
Não conseguia me despedir.
O médico tocou no meu ombro: - Melhor sair agora, senhorita.
Soltei a mão de mamãe, desci e voltei ao jardim: andei pela grama molhada até a
cerca dos fundos. A escada continuava lá, embora Lavínia e eu não nos encontrássemos
mais lá com tanta freqüência. Subi a escada e vi que do outro lado não havia nada.
Equilibrei-me um instante e pulei: caí na grama molhada e sujei o vestido.
Retomei o fôlego e fui pelo jardim até as portas envidraçadas que davam na sala dos
fundos dos Waterhouse.
A família estava num semicírculo que poderia ter sido esboçado por um pintor.
Ivy May foi colocada na espreguiçadeira, os cabelos jogados no rosto, os olhos
fechados.
Lavínia estava aos pés dela, sentada no chão, com a cabeça encostada na beira da
cadeira. A sra. Waterhouse, sentada numa cadeira de braço perto da cabeça de Ivy May,
segurava a mão dela. O sr. Waterhouse, encostado na cornija da lareira, cobria os olhos
com a mão. Simon estava perto da porta, de cabeça baixa.
Só de olhar para eles, juntos e, ao mesmo tempo, isolados na mesma dor, eu sabia
que Ivy May estava morta.
Senti como se eu também tivesse um buraco no lugar do coração e até do estômago.
Entrei, todos me olharam. Lavínia levantou-se e atirou-se nos meus braços,
soluçando. Por cima do ombro dela, olhei para a sra. Waterhouse e foi como se eu
estivesse refletida nela. Tinha os olhos secos e a expressão de quem recebeu um golpe
do qual não iria se recuperar.
Por isso, olhei para ela e disse apenas: - Minha mãe morreu.
KITTY COLEMAN
Por toda a vida, mesmo quando não estava comigo, Maude ficou do meu lado.
Afastei-a, mas ela continuou próxima.
Naquele momento, estava segurando a mão dela e não queria que ela fosse embora.
Ela é que tinha de me deixar ir. Quando finalmente deixou, eu sabia que estava
sozinha e que era a minha hora de partir.
SIMON FIELD
Eu sabia que ele tinha sumido faz tempo, a polícia nunca ia encontrar.
Mas eu ia. Um dia. Por causa de Ivy May.
No dia seguinte, o sr. Jackson saiu e deu um tiro na cabeça daquele cavalo branco.
Mais tarde, nosso pai, Joe e eu estávamos cavando quando a polícia veio me fazer
perguntas. Nosso pai nem estranhou. Só balançou a cabeça e eu sabia o que ele estava
pensando: nunca devia ter me metido com aquelas meninas.
A polícia perguntou muitas coisas sobre o que eu fiz naquele dia: não só de procurar
Ivy May ou de encontrá-la, mas sobre o cavalo, Kitty Coleman e o sr. Jackson.
Achei que eles não sabiam do que estavam falando e também que não foram muito
simpáticos comigo. Era como se quisessem facilitar as coisas para eles e dizer que eu a
matei.
Quando parecia que estavam quase me acusando, perguntei: - Será que eu ia ser tão
burro de fazer aquilo com uma menina e depois levar ela para a casa dos pais?
- Você não imagina o que os criminosos são capazes de fazer - falou um policial.
Lembrei-me do homem alto, de óculos, no fundo das cocheiras. Mas quando fui
contar como encontrei Ivy May, não falei nele. Ia ser mais fácil para mim se falasse, era
outra pessoa para eles fazerem pergunta.
JOHN JACKSON
combinei de encontrar a srta. Coleman na sepultura da família. Pensei em pedir para
ela ir ao túmulo de Faraday, onde a mãe dela e eu costumávamos nos ver. Mas era
bobagem, coisa sentimental, além de arriscada: se fôssemos vistos sozinhos na área dos
dissidentes, iriam fazer perguntas, enquanto no gramado poderíamos estar
conversando sobre detalhes do sepultamento.
Ela estava de luto fechado, com o cabelo preso num chapéu de palha preto. Nunca a
havia visto com o cabelo para cima: parecia muito mais velha. Não sabe, mas está
ficando parecida com Kitty.
- Agradeço ter vindo, srta. Coleman - falei, quando nos encontramos ao lado da
sepultura. - Lastimo a perda, foi um grande choque para todos nós. Mas agora sua mãe
está com Deus. - Olhei para baixo. Costumo expressar meus pêsames para os parentes
no cemitério, mas dessa vez percebi como as palavras são insuficientes.
- Minha mãe não acreditava em céu, o senhor sabe disso - Maude disse.
Pensei no que aquelas últimas quatro palavras podiam significar. O quanto saberia
de minha intimidade com a mãe dela? Ela estava com a expressão tão contida que era
impossível saber.
- Simon deu o recado, mas não disse por que o senhor queria me encontrar.
Imagino que seja a respeito do enterro de minha mãe, mas meu pai já esteve com o
senhor.
- Sim, esteve aqui ontem. Eu queria comentar com ele uma coisa, não consegui.
Talvez a srta. e eu pudéssemos falar.
Maude levantou as sobrancelhas e não disse nada.
Não era fácil de dizer, não havia lugares-comuns ou eufemismos que aliviassem o
choque da idéia. - Sua mãe me disse que gostaria de ser cremada, em vez de enterrada.
Maude olhou para o jarro na sepultura dos Coleman com atenção, como se nunca o
tivesse visto. - Eu sei. Ela sempre teve medo de ser enterrada viva.
- Então, talvez a srta. possa dizer isso a seu pai.
- Por que o senhor não falou com ele ontem?
Pensei. - Sua mãe não falou oficialmente, isto é, não deixou por escrito, nem
comunicou ao marido. Não seria adequado eu dizer.
Maude apertou os lábios. - Papai já sabe que ela queria ser cremada, os dois
costumavam discutir sobre isso. Ele acha que devemos fazer o que a sociedade manda
quanto ao... ao corpo.
- Será que ele não concorda, mesmo sabendo que era desejo ardente da esposa?
- Ele vai fazer o que for melhor - disse Maude e parou.
- Ele a perdeu e agora que a recebeu de volta quer ter certeza de ficar com ela.
- As pessoas fazem com seus mortos um reflexo delas mesmas e não de seus entes
queridos - considerei. - Acha que todos esses jarros e anjos significam alguma coisa para
os mortos? É preciso ser muito generoso para fazer exatamente o que a esposa deseja,
sem levar em conta a vontade e os critérios próprios ou os da sociedade. Esperava que
seu pai fosse assim.
- Se todas essas estátuas não têm sentido para os mortos, então nada do que fazemos
por eles tem sentido, não? retrucou Maude. - Se os mortos não se importam, fazemos o
que nos importa, não? Afinal, somos nós que ficamos. Muitas vezes eu pensei que o
cemitério é, na verdade, um lugar para os vivos, não para os mortos.
Fazemos a sepultura para nos recordarmos da pessoa que se foi e do que lembramos
dela.
- O jarro no jazigo de sua família vai lembrar você do que sua mãe foi ou do que
queria?
- Não, não lembra nada dela - admitiu Maude. - Se minha mãe fosse escolher sua
sepultura, teria uma estátua da sra. Pankhurst, o nome dela e a frase Voto para as
mulheres.
Balancei a cabeça. - Se sua mãe fosse escolher a sepultura, não teria estátuas, nem
frases. Teria um canteiro de flores do campo.
Maude franziu o cenho: - Mas mamãe está morta, não é? Não vai pensar na
sepultura.
A srta. Maude era uma jovem dama marcante: poucas teriam dito o que ela disse
sem titubear. Continuou: - Como ela está morta, não vai se importar com o que acontece
com seu corpo. Não vai ser enterrada viva, sabemos. O que importa somos nós, meu
pai, principalmente.
Ele representa todos nós e deve decidir o que é melhor.
Inclinei-me e espantei uma aranha na sepultura dos Waterhouse. Sabia que não seria
justo da minha parte exigir coisas de Maude: afinal, tinha apenas treze anos e havia
acabado de perder a mãe. Mas, por Kitty, eu tinha de pedir. E pedi, gentilmente: - Srta.
Coleman, gostaria apenas que lembrasse ao seu pai a vontade de sua mãe, da qual ele já
deve ter conhecimento. Claro que compete a ele resolver o que será feito. Maude
concordou e virou-se para ir embora.
- Maude - chamei.
- Pois não?
- Mais uma coisa.
Ela fechou os olhos um instante e me encarou.
- Sua mãe - parei, de repente. Não podia dizer a ela, estava além de minhas
obrigações profissionais e poderia perder o cargo no cemitério, se falasse. Mas queria
preveni-la, de alguma forma. - Seria bom que falasse com seu pai o quanto antes.
- Está certo.
- É um problema urgente. Talvez mais do que a srta. possa imaginar.
- Vou falar com ele hoje. - Maude virou-se e andou rápido pela alameda que levava à
saída do cemitério.
Fiquei lá por algum tempo, olhando a sepultura dos Coleman. Era difícil imaginar
Kitty sendo enterrada lá. Aquele jarro ridículo me deu vontade de morrer de rir.
RICHARD COLEMAN
Ela me procurou no meu escritório, quando eu estava cuidando dos papéis. Parei de
escrever. - O que foi, Maude?
Ela respirou fundo, era evidente que estava bem nervosa.
- Mamãe uma vez me disse que queria ser cremada e ter suas cinzas espalhadas.
Olhei minhas mãos. O punho da minha camisa estava manchado de tinta. - Sua mãe
disse muita coisa que não deve ser levada em consideração. Uma vez, disse que queria
quatro filhos. Você tem irmãs ou irmãos? Nem sempre fazemos o que dizemos.
- Mas...
- Basta, Maude. Não há mais o que dizer sobre esse assunto.
Maude estremeceu. Fui mais ríspido do que esperava. Tem sido difícil encontrar um
tom certo para o que quero dizer.
- Desculpe, papai - disse ela, baixinho. - Eu estava apenas pensando na mamãe, não
queria irritar o senhor.
- Não me irritou! - Apertei a caneta com tanta força no papel que a pena quebrou. -
com os diabos! - Joguei a caneta no chão.
Maude saiu sem dizer mais nada. Quanto antes esta semana acabar, melhor.

LAVÍNIA WATERHOUSE

Compras feitas na loja Jay, da Regent Street, no dia 22 de junho de 1908:

1. Um vestido preto de seda paramata para eu usar no enterro e aos domingos. Meu
velho vestido de lãzinha fica para todo dia. A loja tinha um vestido ainda mais lindo, de
seda, com gola alta debruada de crepe, mas era caro demais.
2. Um vestido preto de algodão para mamy. Parecia tão barato e surrado que tentei
convencê-la a comprar um de paramata, mas ela disse que não temos dinheiro e
preferia que eu tivesse o de seda, meu preferido. Ela foi um amorzinho.
3. Uma combinação preta de algodão para mim; dois pares de calções amarrados nos
joelhos com fita preta.
4. Um chapéu de feltro preto com véu para mim. Fiz questão do véu, fico horrível
quando choro e assim ponho o véu para esconder os olhos e o nariz
vermelhos. Mamy não comprou chapéu, disse que ia tingir uma de suas boinas. Pelo
menos comprou umas penas de avestruz para enfeitar.
5. Dois pares de luvas pretas de algodão para mamy e eu, com quatro lindos botões
pretos no punho. Mamy tinha escolhido luvas simples, sem botões; não
percebeu quando as troquei. E ainda: um par de luvas, uma tarja preta de chapéu e uma
gravata preta para papy.
6. Sete lencinhos debruados de preto: dois para mamy e cinco para mim. Eu queria
comprar mais, ela, porém, não deixou. Mamy até agora não chorou, porém insisti para
ela ter alguns, caso chore.
7. Duzentas folhas de papel com borda preta de largura média.
8. Cem cartões de recordação, sob encomenda, com os seguinte dizeres:

10 anos Linda flor, tão cedo arrancada para enfeitar os campos divinos.
IVY MAY WATERHOUSE
No Dia do Juízo, muitos desejarão ter tido vida tão curta quanto a minha, Fui eu que
escolhi a inscrição para o túmulo, pois mamy ficou nervosa e teve de sair para tomar ar.
A vendedora disse que aquela inscrição era para bebês, não para uma menina da idade
de Ivy May, mas eu achei linda, principalmente a frase Para enfeitar os campos divinos,
e insisti.
Por mim, passava o dia inteiro na Jay: é tão reconfortante estar numa loja
inteiramente dedicada ao sentimento pelo qual se está passando. Mamy não quis ficar
mais e só falou por monossílabos. Não sei o que fazer com ela: está muito pálida,
pobrezinha, e quando abre a boca é para discordar. Fica quase o dia inteiro no quarto,
deitada como se estivesse doente, mal aparece para as visitas, então eu tenho de fazer
sala: sirvo o chá e fico mandando Elizabeth trazer mais bolo e pãezinhos.
Hoje, vieram tantos primos que acabaram os pães e tive de mandar Elizabeth ir à
padaria para comprar mais. Não consigo comer nada, só uma fatia de pão de
corinto, recomendado pelo médico de Sua Majestade para o rei manter a disposição.
Tentei fazer mamy se interessar pelas cartas de pêsames que recebemos, acho que
não leu nenhuma. Tive de responder a todas, pois, se deixar por conta dela, vai
simplesmente esquecer e não se deve demorar a agradecer.
As pessoas disseram as coisas mais surpreendentes sobre Ivy May: como ela era
angelical, que filha perfeita, que apoio para mamy, quão trágico para nós e o quanto sua
falta será sentida. Na verdade, às vezes tenho vontade de responder, perguntando se
eles acham que fui eu que morri. Mas restrinjo-me a assinar meu nome, com letras
grandes e claras, para que não haja dúvidas.
Mamy me disse no café da manhã que não quer que eu vá à escola, posso terminar o
ano letivo em casa. Achei ótimo, já que não estou com vontade de ir à sala de aula.
Certamente, eu iria atrapalhar tudo, chorando nas horas erradas. Mamy disse
também que no próximo ano vou mudar de colégio e passar para o Santa União, na
Highgate Road. Meu coração deu um pulinho, pois os uniformes das meninas de lá são
muito lindos. Achei estranho, claro, já que esse colégio é católico e eu talvez não seja.
Na noite passada, mamy chamou o padre da igreja de São José em Highgate para vir
aqui. Papy não disse nada. Se mamy sente um consolo em voltar a ser católica, o que se
vai dizer?
Papy tem andado muito ocupado com as providências a tomar e acho que isso é
bom.
Sempre que pude, eu o ajudei, já que mamy não está em condições. O funcionário
dos serviços funerários veio falar conosco e eu escolhi o vestido para Ivy May usar (que
foi meu, de algodão branco com mangas bufantes), as flores do caixão (lírios) e disse
como arrumar o cabelo dela (solto, com uma coroa de rosas brancas). Papy respondeu
as outras perguntas sobre o caixão, os cavalos do coche e tal. Ele também esteve com os
funcionários do cemitério, com o padre e a polícia.
Este último detalhe me causou um choque, pois papy trouxe um policial dentro de
casa para me interrogar! Ele foi bem gentil, mas perguntou tantas coisas sobre aquela
horrível tarde no Hyde Park que fiquei confusa a respeito do momento exato em que
Ivy May sumiu. Tentei ser corajosa e acho que usei todos os lencinhos que tínhamos
acabado de comprar, de tanto que chorei. Por sorte, mamy estava no andar de cima e
não precisou ouvir os pormenores. Quando terminamos a conversa, papy estava com
lágrimas nos olhos.
O policial ficou perguntando sobre os homens na multidão da passeata. Perguntou
até sobre Simon, como se ele fosse uma pessoa para se desconfiar! Corrigi isso e deixei
bem claro para o policial. Falei também dos homens que perseguiram Maude e eu no
parque e de como ficamos assustadas.
Não falei do homem que pôs a mão na minha parte de trás. Sei que devia ter falado,
era exatamente isso que o policial queria. Mas fiquei sem graça de tocar num assunto
assim. E não podia nem pensar que aquele homem pegou minha irmã.
Contar ao policial seria como admitir que o homem realmente o tinha feito.
Queria deixar Ivy May longe dele, pelo menos na minha cabeça, se não pudesse ser
em outra parte.
Ninguém comentou o que realmente aconteceu com Ivy May. Mas posso imaginar,
não sou boba. Vi as marcas no pescoço dela.
Hoje à noite, eu estava na janela quando vi Maude do outro lado. Acenamos, ficou
uma situação muito estranha e eu logo me afastei. Não temos permissão de nos
visitar, pois ninguém pode fazer visita, se está de luto. Além do mais, não creio que vê-
la fosse me trazer muito conforto: só penso na mãe dela nos abandonando naquela
enorme multidão e da mão suada de Ivy May escorregando da minha.
Sentei na minha cama e olhei para a caminha branca de Ivy May, no canto. Nunca
mais íamos ficar deitadas, à noite, falando baixinho e ouvindo histórias, ou melhor, eu
contando e ela ouvindo. Agora estou completamente só.
Doeu tanto olhar para aquela cama que desci na mesma hora e pedi a papy para tirá-
la de lá.
GERTRUDE WATERHOUSE
Tenho sentido tanta culpa que não consigo sair da cama. O padre e o médico vieram
me ver e nenhum dos dois conseguiu que eu me levantasse.
Não contei para eles nem para Albert que fingi estar com o tornozelo machucado.
Albert, que Deus o abençoe, acreditou. Se não tivesse fingido e tivesse levado as
meninas à passeata, ou se tivesse enfrentado Livy e proibido que ela fosse, Ivy May
agora estaria sentada aqui comigo.
Matei minha filha com a minha estupidez e, se ela não está aqui, eu também não
quero mais viver.
EDITH COLEMAN
A primeira coisa que fiz foi despedir a criada impertinente. Lastimo dizer que fiquei
contente com um fato ocorrido numa casa enlutada, mas me alegrei mesmo. Claro que a
criada chorou e se lastimou, mas esse teatro não teve efeito: no mínimo, me deixou mais
convicta de ter feito a coisa certa, bem rápido.
Jenny teve o descaramento de falar em Maude: - Como ela vai ficar? - perguntou,
chorando.
- Maude vai continuar como sempre esteve. vou cuidar dela: estou aqui pelo tempo
que precisarem de mim. Mas isso não é da sua conta.
Jenny parecia chocada. Lembrei a ela: - Há dois anos, mandei você embora por
motivos que tenho certeza de que são do seu conhecimento. Minha nora jamais devia tê-
la aceitado de volta. Junte suas coisas e vá embora: o resto do seu pagamento será
entregue a você.
- E a referência do serviço?
Bufei. - Acha que vou dar referência de uma mulher como você?
- E como vou conseguir outro emprego?
- Devia ter pensado nisso quando se deitou com aquele homem.
Ela saiu da sala. Para minha surpresa, a sra. Baker apareceu minutos depois,
pedindo para eu manter Jenny na casa.
- Por que eu deveria ficar com uma pessoa de moral tão baixa? - respondi. - Pode ter
certeza de que ela vai ficar muito melhor em casa cuidando do filho, pobre criança.
- E o que ela vai dar para o filho comer? Ar?
- Como disse?
- Não estou preocupada com o filho de Jenny, madame - a sra. Baker disse. - E por
causa da srta. Maude que estou pedindo para deixar Jenny. A pobre menina acabou de
perder a mãe e eu também detesto vê-la ficando sem as pessoas. Jenny está aqui desde
que a srta. Maude era bebê. Para ela, é como se fosse uma pessoa da família.
- Aquela criada não é como se fosse da família para Maude - fiquei tão furiosa que
foi difícil falar baixo. Como ousa compará-la com os Coleman! E Maude não precisa
dela: tem a mim. - Quase acrescentei que, ao perder a mãe, ela ganhou uma avó, mas
achei melhor não.
Então, Jenny saiu. Maude, com o rosto muito pálido, não disse uma palavra, só ficou
na porta olhando a criada sair.
Então, pelo bem dela e de Richard, tomei outra decisão. Na manhã seguinte ao
falecimento de Kitty, começaram a chegar flores: lindas braçadas de lírios, íris,
centáureas azuis, rosas brancas, presas com laços roxos, verdes e brancos. Os cartões
diziam coisas como "À nossa finada companheira" e "A esperança é forte, tanto no céu
como na Terra" e "Ela se entregou à causa". E aquele telefone infernal tocou tanto, que
chamei um homem e mandei desligar. Depois, as sufragistas começaram a bater na
porta, querendo saber do velório, até que dei ordem para a moça contratada no lugar de
Jenny ir lá fora e mandá-las embora. Era evidente que, para as tais sufragistas, Kitty
estava se transformando em mártir. Eu nem queria pensar o que o enterro seria se elas
resolvessem comparecer em bando: podiam tomar conta da cerimônia e transformá-la
num comício. Jamais me perdoaria por permitir que o nome da família de James fosse
enlameado outra vez.
Não ia deixar. Contei meu plano a Richard e ele prontamente concordou. Depois,
não foi muito difícil arrumar as coisas de acordo com a nossa conveniência: afinal, a
discrição é soberana, quando se trata de um serviço fúnebre.
JENNYWHITBY
Eu estava na rua, indo embora com a minha mala, e ela correu atrás de mim. Eu
tinha parado de chorar: estava com tanto medo do que ia ser de mim que não conseguia
chorar. Ela não disse nada, só me abraçou forte.
Ela não pode fazer nada: como uma menina de treze anos vai enfrentar uma avó
daquelas? Achei horrível não cumprir a promessa que fiz à mãe dela em relação àquela
malvada, mas não posso com uma pessoa dessa, a madame devia saber. Como também
não posso impedir que os homens saibam do segredo dela. Agora, está nas mãos de
Deus ou da srta. Livy, o que é mais provável.
Não devia estar me preocupando com nada disso, tenho os meus problemas: como
sustentar minha mãe, meu filho e eu, sem emprego e sem referência. Não tenho
tempo para lágrimas. Estou com o resto do faqueiro da madame na minha mala, mas ele
não dura para sempre.
ALBERT WATERHOUSE
fiquei desconcertado com o comportamento de minha filha. Sei que está passando
por dias difíceis, como todos nós, cheguei a pensar que ela não agüentaria. Mas
esperava que Livy e Maude não falassem coisas tão feias em público e bem na sepultura
de Ivy May, minha pobre Ivy May, a quem não pude proteger de homens perversos.
É tranqüilizador para mim que Trudy esteja sendo confortada pela irmã e não tenha
falado com os policiais: ficaria horrorizada, se tivesse de prestar depoimento.
Durante o enterro, as duas meninas primeiro discutiram por algo relacionado ao
vestido de Maude. Não sei avaliar essas coisas, mas Maude estava com um lindo
vestido de seda e claro que Livy teve ciúme. Livy disse que o vestido era pomposo para
uma menina de treze anos e Maude retrucou: - Lavínia, você não sabe escrever a
palavra pomposo, quanto mais entender o sentido. As roupas de luto, por definição,
não são pomposas.
Foi surpreendente, pois Maude costuma ser tão gentil. Mas tinha acabado de perder
a mãe. E Livy estava chocada e com uma expressão lívida, lastimo dizer.
Ela aí disse:
- Sei muito bem que você não devia estar usando um chapéu de palha com esse
vestido, nem puxar o cabelo dentro do chapéu, fica sem graça. Além disso, seu cabelo
está caindo atrás, é muito fino para levantar, não é armado como o meu.
- Talvez você não se lembre de que eu agora não tenho mais mãe para perguntar,
nem irmã, nem mesmo criada disse Maude.
- Eu também não tenho mais irmã! Esqueceu? Maude pareceu mortificada com
aquele lapso e, se Livy tivesse deixado ela se desculpar, a discussão teria terminado ali.
Claro que Livy quis insistir no assunto: - Você só pensa em si mesma. Por acaso já
pensou um pouquinho na minha pobre mamy, que perdeu uma filha? Existe alguma
coisa pior do que perder um filho?
- Talvez exista: perder a mãe - respondeu Maude, baixo.
Aquelas comparações eram tão horríveis que tive de intervir, o que devia ter feito
antes (sempre percebo isso tarde demais). - Livy, gostaria de acompanhar sua mãe até o
coche? - perguntei, dando um olhar solidário a Maude (espero que tenha sido).
- Papy, quantas vezes tenho de lembrar ao senhor que meu nome é Lavínia? - Livy
deu as costas para Maude e foi procurar a mãe. Eu ia dizer alguma coisa (não sei bem o
quê), mas Maude saiu rápido pela alameda do cemitério.
Mais tarde, à noite, não consegui dormir: então, levantei, acendi uma vela e desci
para olhar no CasselVs e no The Quem. Nunca havia folheado um manual para
senhoras (graças ao bom Deus, não tenho qualquer afinidade com coisas domésticas) e,
finalmente, encontrei o que procurava. Os dois manuais dizem que o período de luto de
um filho por um dos pais (e vice-versa) é o mesmo: um ano.
Deixei os dois livros na mesa, abertos nessas páginas, mas quando desci na manhã
seguinte não estavam mais lá.
MAUDE COLEMAN
Eu tremia sem parar, nunca fiquei tão irritada. O pior foi que eu também disse coisas
horríveis, Lavínia conseguiu arrancar os meus piores defeitos e é muito mais difícil
viver com eles do que com as coisas que ela falou. Eu já estava acostumada com as
bobagens que ela diz e, em geral, conseguia não me nivelar, até o dia de hoje.
Fiquei sentada um bom tempo, ao lado do anjo adormecido. Não sabia para onde
estava correndo, até chegar naquele lugar. E foi lá que ele me encontrou, acho que sabia.
Sentou-se na beira da lápide de mármore sem me olhar, nem dizer nada. É o jeito dele.
Olhei para cima, o céu estava claro e muito azul: para um dia de enterro, o sol estava
despudorado. Parecia que Deus zombava de todos nós.
- Detesto a Lavínia - falei, esmagando um matinho que crescia no pedestal do anjo.
Simon resmungou. - Parece a Lavínia falando. Ele tinha razão, mas acrescentou logo:
- Só que você não é a Livy. Fiz que não ouvi.
- Escute, Maude -- ele começou a falar e parou.
- O quê?
Simon ficou batendo com o dedo no mármore. - Estamos cavando a sepultura de sua
mãe agora.
- Ah! - não consegui dizer mais nada.
- É cedo demais para abrir uma cova num terreno de areia, com enterro só depois de
amanhã. Devíamos fazer isso amanhã à tarde, senão a cova pode desmoronar.
É bem perigoso, nem sempre adianta escorar a areia. Além do mais, a cova de Ivy May
fica tão perto. Não gosto de ter ao mesmo tempo duas sepulturas tão próximas
porque no meio a terra não junta direito. Mas não tem solução, tem?
- Quem mandou você cavar a sepultura de mamãe agora, em vez de amanhã?
- O diretor mandou, hoje de manhã. Nosso pai tentou argumentar, mas ele disse
para começar assim que o enterro de Ivy May terminar. Disse que ele arcaria com as
conseqüências.
Esperei que Simon continuasse. Pelo jeito dele, vi que tinha algo para me dizer, aos
poucos, com tempo. E continuou: - Então, dei uma olhada no mapa de trabalho que fica
no depósito e não tinha nada marcado. Fiquei sabendo que a capela para a sua mãe está
reservada para amanhã de manhã. Os caixões das sepulturas de amanhã vêm de fora,
não sei para que essa capela.
Balancei a cabeça. - As exéquias de mamãe serão na capela de Santana, na sexta à
tarde. Papai me disse.
- Um dos acompanhantes do enterro de Ivy May disse agora que vai ter um serviço
na capela aqui, amanhã. Simon continuou como se eu não tivesse dito nada. - Tem de
ser da sua mãe. A sepultura dela é a única que está pronta sem ter nada para enterrar.
Levantei-me. Era triste ouvir Simon falando em mamãe daquele jeito, mas não quis
demonstrar o quanto me magoou.
- Obrigada por me avisar. vou perguntar a papai se mudou alguma coisa.
Simon concordou. -Achei que você gostaria de saber ele disse, desajeitado.
Fiquei pensando se Simon sabia que o sr. Jackson tinha me falado sobre cremação,
ele parecia saber de tudo. Se sabia, não disse. Durante o sepultamento de Ivy May, o sr.
Jackson me olhou e respondi com um gesto à pergunta que ele fez em silêncio. Deve ter
concluído que papai não quis a cremação, do contrário o diretor do cemitério já teria
sabido.
Perguntei a Simon uma coisa diferente, tinha certeza de que ele sabia. - O que
aconteceu com Ivy May naquele dia? Ninguém vai me dizer - falei, olhando bem
para ele.
Simon mudou de posição no mármore. Durante um bom tempo, não disse nada e
fiquei pensando se teria de repetir a pergunta. Ele então pigarreou e disse: - Ela foi
estrangulada.
A resposta foi tão direta que senti minha garganta apertar.
- Por um homem? - consegui perguntar.
Simon fez sinal que sim e vi pela cara dele que não devia perguntar mais.
Ficamos um instante calados.
- Sinto muito pela sua mãe - Simon disse, de repente. Então, inclinou-se e me beijou
no rosto. Num pulo, sumiu.
Em casa, corri para falar com a avó, que estava na sala da frente olhando um buquê
de flores que tinha chegado: eram lírios, amarrados com laços verde, branco,
roxo e preto. Sufragistas! - resmungou ela. - Nós também nos... - ela parou quando
me viu. - Já voltou da refeição do velório?
- Não fui à casa dos Waterhouse - confessei.
- Não? Pois então vá e apresente os seus cumprimentos. A mãe daquela pobre
criança está morta de tristeza. Que horrível fim. Espero que consigam pegar o homem
que... - ela parou.
- Eu vou lá - menti. - Antes, preciso falar com a sra. Baker. - Desci a escada para não
ter de explicar por que não ia à refeição do velório de Ivy May. Não agüentava ver o
rosto lívido da sra. Waterhouse. Não conseguia imaginar o que deve ser perder uma
filha, ainda por cima de forma tão horrível e misteriosa. Só podia comparar com a perda
de minha mãe: uma dor oca e um sentimento da precariedade da vida ao se acabar uma
das coisas que eu valorizava. Nesses últimos anos, mamãe podia ter sido ausente ou
distante, mas pelo menos estava viva. Era como se ela me protegesse de uma fogueira e,
de repente, saísse e as thamas ficassem queimando meu rosto.
Mas a sra. Waterhouse devia sentir um horror que eu não conseguia nem imaginar.
Será que um sentimento era pior do que o outro, como Lavínia deu a entender? Eu
não sabia. Só sabia que o olhar vazio da sra. Waterhouse fazia com que um abismo se
abrisse dentro de mim.
Em vez de ir à refeição do velório dos Waterhouse, desci para falar com a sra. Baker
sobre a refeição do velório de mamãe. Já que ela estava preparando os pratos, saberia se
houve mudança.
A sra. Baker estava no fogão de lenha, mexendo uma panela de gelatina de carne.
Cumprimentoume: - Olá, srta. Maude. Devia comer, faz dias que não toca na
comida.
- Não estou com fome. Eu, eu queria saber se está tudo arrumado para sexta-feira. A
avó mandou perguntar.
A sra. Baker achou graça: - Claro que está. - Virou-se para a panela e continuou
dizendo: - Estive hoje de manhã com a sua avó, nada muda em duas horas. A
gelatina de carne fica pronta à noite e o presunto vai ser entregue hoje à tarde, estará
tudo certo no final do dia. A sra. Coleman queria os pratos cedo para eu ajudar na casa
amanhã, ela não está satisfeita com a moça que contratou. Não é que eu faça qualquer
coisa, não vou me ajoelhar para ela, pode ter certeza. Olhou na panela: eu sabia que a
sra. Baker sentia falta de Jenny, mas jamais diria.
Percebi que a sra. Baker pensava que o enterro seria na sexta-feira. Se papai mudou
o dia, só ele sabia e, provavelmente, a avó. Eu não tinha coragem de perguntar, nem
eles iam me dizer.
Na manhã seguinte, quando desci para o café, papai e a avó estavam na mesa com
suas melhores roupas de luto, sem terem tocado nas xícaras servidas. Estavam com uma
expressão reveladora, mas disseram apenas: - Bom-dia, Maude! Sentei para tomar a
tigela de mingau e tentei comer, mas não conseguia engolir, fiquei empurrando o
mingau com a colher.
A campainha tocou, papai e a avó levaram um susto. Eu atendo - disse a avó para a
criada que olhava, encostada no guardalouças. Fiz uma cara incrédula para papai: ele
continuou olhando para o jornal, embora eu duvide que estivesse lendo alguma coisa.
Ouvi pessoas falando baixo na entrada e passos pesados subindo a escada, os
sapatos rangendo. Os passos ficaram no andar de cima e se encaminharam para o
quarto de mamãe. Simon tinha razão.
- Por que fez isso, papai? - perguntei.
Ele continuou sem olhar para mim. - Termine de comer seu mingau, Maude.
- Não estou com fome. Por que você mudou o dia do enterro?
- Vá vestir a sua roupa nova, Maude - a avó mandou, da porta.
Não me mexi na cadeira. - Quero saber por que você fez isso. Tenho o direito de
saber.
- Você não tem direito algum! - disse meu pai, batendo com força a mão na mesa e
fazendo o café espirrar das duas xícaras. - Nunca mais me fale assim. Você é
minha filha, faz o que eu mandar. Vá para o seu quarto trocar de roupa!
Não me mexi na cadeira.
Papai olhou fixo para mim. - Será que não mando na minha própria casa? Ninguém
me obedece? Será que a influência dela foi até minha filha, que não faz o que mando?
Não me mexi na cadeira.
Papai pegou minha tigela de mingau e jogou-a no chão. Ela se partiu aos pés da
criada assustada.
- Richard! - a avó gritou. Virou-se para mim, com o rosto mais vincado do que o
habitual, como se não tivesse dormido direito. - Maude, o enterro de sua mãe vai ser
agora de manhã. Achamos melhor fazer uma cerimônia íntima para que elementos
estranhos não se apossem dela. Suba e ponha o seu vestido. Rápido, enquanto eu falo
com a sra. Baker. Nosso coche já vai chegar.
De repente, papai disse: - Eu não queria que as sufragistas tomassem conta
da cerimônia. Você viu, quando ela saiu da prisão: foi uma comemoração de vitória.
Estarei perdido se elas transformarem sua mãe em mártir. "A companheira que
caiu", é assim que a chamam. Que vão todas para o inferno!
- Ele sentou-se e tinha o rosto tão sofrido que quase o perdoei pelo que fez.
Percebi que eu não podia fazer nada e subi para o meu quarto. Passei pela porta do
quarto de mamãe, onde evitei entrar a semana toda, deixando que a avó fizesse tudo
que fosse preciso lá. Ouvi um martelar: estavam fechando o caixão de mamãe.
Fui para o quarto e me vesti rápido. De repente, lembrei que havia algo que eu podia
fazer. Peguei papel, caneta e tinta e escrevi uma nota, parando um instante para lembrar
o endereço que sempre lera na página de cartas do jornal. Depois, agarrei chapéu e
luvas e corri escada abaixo, passando pelas caras surpresas de papai e da avó, na
entrada. Desci outro lance de escada até a cozinha.
A sra. Baker estava sentada, de braços cruzados, olhando as comidas sobre a mesa,
inclusive um grande presunto untado com gelatina, o prato principal. Falei baixo: - Se a
senhora gostava de minha mãe, por favor, mande alguém entregar isso já.
Por favor, faça isso por ela, o mais rápido possível.
A sra. Baker olhou o endereço no envelope e, sem uma palavra, escancarou a porta
dos fundos e saiu. Quando entrei no coche com papai e a avó, vi a sra. Baker
chamando um menino na rua e entregando o envelope. Não sei o que ela disse, mas o
menino correu como se estivesse atrás do chapéu levado pelo vento.
Chovia muito. O funcionário do serviço funerário tinha espalhado serragem na
frente de nossa casa para amortecer o som das patas dos cavalos: não foi preciso, pois a
chuva abafou tudo. Alguns vizinhos viram o cortejo fúnebre e ficaram na porta de suas
casas, mas a maioria só esperava fazer isso no dia seguinte.
No caminho, nós três não falamos. Olhei pela janela do coche, as casas, uma atrás da
outra, depois o comprido muro de tijolos com a cerca de ferro que separava o cemitério
da rua. O carro fúnebre seguia na nossa frente, com suas laterais de vidro, levando o
caixão salpicado de chuva. Nas ruas por onde passamos, os homens tiravam o chapéu
em sinal de respeito.
O sr. Jackson estava na porta do cemitério: tinha um grande guarda-chuva e ajudou
a avó e eu a descermos do coche. Ele me cumprimentou com a cabeça, e fiz o mesmo.
Depois, nos acompanhou até a capela onde tia Sara nos aguardava. Ela era doze
anos mais velha que mamãe e morava em Lincolnshire. As duas não se davam.
Beijou-me no rosto e apertou a mão de papai. Entramos na capela para a cerimônia.
Sentei no banco da frente, entre papai e tia Sara, a avó ao lado de papai.
Éramos só nós quatro e o padre da igreja de Santana, que oficiou a cerimônia.
Mas quando começamos o primeiro hino ouvi outras vozes cantando Mais perto de
ti, Senhor, virei para trás e vi o sr. Jackson e Simon.
Ao terminarmos o segundo hino, Fica comigo, Senhor (que mamãe detestava, claro),
a porta da capela foi aberta com força. Caroline Black tinha chegado: ofegante, com o
chapéu torto, o cabelo solto e despenteado. Papai suspirou: - com os diabos. - Caroline
ficou num banco no meio da capela e olhou para mim.
Cumprimentei-a com um gesto de cabeça. Voltei a olhar para o altar, sentindo o ódio
de papai ao meu lado: dei um risinho e levantei o queixo, como mamãe costumava fazer
quando era provocada.
com os diabos o senhor, papai, pensei. O senhor é que vá para o inferno.
Quando tudo terminou, isto é, o caixão foi levado para a sepultura e colocado na
cova com o enorme vaso em cima; quando Simon e o pai começaram a jogar terra em
cima, trabalhando sem parar sob a chuva forte; quando me afastei de minha mãe para
voltar para casa, Caroline segurou minha mão. Só então chorei.
DOROTHY BAKER
Foi um pecado jogar tanta comida fora. Ela sequer pediu desculpas, disse apenas
que houve uma mudança e seriam quatro pessoas para a refeição do velório. E eu fiz
comida para cinqüenta!
Se não fosse pela srta. Maude, eu teria ido embora na hora. Na mesma semana,
a menina perdeu a mãe, Jenny e a melhor amiga, pelo que diz a criada dos Waterhouse.
Não merece que eu também vá embora.
SIMON FIELD
Nunca vou contar para Maude o que aconteceu hoje. Acho que nunca vou contar
para ninguém. Depois do enterro de Kitty Coleman, nosso pai, Joe e eu começamos a
jogar terra na sepultura. Como o terreno é de areia, fica difícil cavar muito de uma vez,
mesmo com chuva. É sempre pior cavar na areia. Se o lugar é de terra, precisa tirar com
a pá porque ela se ajunta e pode ser trabalhada mais fácil do que a areia.
Tomamos bastante cuidado com essa sepultura, porque fica tão próxima da de Ivy
May. Tem três metros e meio de fundura para que caibam Maude, o pai e a avó,
quando chegar a hora deles. Demos uma escorada extra com madeira bem firme para
segurar a areia, que pode ser muito perigosa, se não lidar com cuidado.
Estamos cavando há algum tempo e a sepultura está quase cheia. Chove cataratas e
estamos ensopados. É então que nosso pai deixa o boné cair na cova.
- Eu pego - digo para nosso pai.
- Não, filho, eu pego. - E salta na sepultura como se fosse um menino outra vez.
Pula bem em cima do boné e começa a rir: - Pelas barbas do profeta, essa foi boa, em
cima. Você me deve uma cerveja, filho.
- Onde vai conseguir cerveja? Terá que andar um bocado - eu digo, rindo.
O único bar perto do cemitério que aceita coveiros é o Duke, em St. Albans, no final
de Swain's Lane, mas não deixam nosso pai entrar porque um dia ele ficou tão bêbado
que tentou beijar a dona do bar, depois quebrou uma cadeira.
Nessa hora em que eu estou falando com nosso pai, faz um barulho, e o escoramento
da sepultura de Ivy May racha e a terra em volta cai. Não dá para nosso pai fazer nada,
só segurar a madeira que vem solta pelo ar: o lado da sepultura desmorona.
Acontece rápido, embora não pareça. Dá impressão de que fiquei um bocado de
tempo vendo nosso pai olhar para cima como quem ouve um trovão e esperando ver o
raio.
Êpa! - acho que ele disse.
A terra cai em cima dele e nosso pai fica enterrado até a cintura. Parece que tem um
pequeno intervalo, mas não demorou muito porque Joe e eu ainda não saímos do lugar,
não dissemos uma palavra, nem respiramos.
Nosso pai me dá uma olhada de segundo e parece sorrir para mim. Um monte de
terra cai e derruba ele.
- Homem na cova! - grito o mais alto que posso, naquela chuva. "Homem na cova" é
coisa que ninguém gosta de ouvir no cemitério.
A terra continua se mexendo como se fosse viva e eu não consigo ver nosso pai.
É como se ele não estivesse lá. Joe e eu andamos com cuidado em volta da sepultura
para não derrubar mais terra. Três quartos da cova estão cheios de terra.
Precisamos de uma madeira grande ou de uma escada para colocar em cima do
buraco e cavarmos de pé, em cima dela. Não tem nada por perto, tínhamos uma escada,
alguém pediu emprestado.
Quando uma pessoa fica coberta de terra assim, é preciso rapidez porque ela morre
em minutos, sem ar. Pulo na cova, embora não deva, e caio de quatro como um gato.
Procuro, procuro e encontro o que nosso pai me ensinou. Vejo a ponta do dedo dele,
só a ponta, mexendo na lama. Ele se lembrou de levantar o braço. Começo a cavar com
as mãos, em volta do dedo. Não pode usar pá. Cavo com tanta força que embaixo das
minhas unhas fica cheio de areia e dói um bocado.
- Agüenta, nosso pai, vamos tirar você daí. Estou vendo os dedos do senhor.
Vamos tirar o senhor.
Não sei se ele me ouve, se sim, pode se sentir melhor.
Cavo, cavo e cavo tentando ver a cara dele, esperando que tenha colocado a outra
mão na cara. Não tem tempo nem de olhar para cima. Se eu olhasse, ia ver Joe na beira
da cova, vendo, sem fazer nada. Joe é um homem grande e pode cavar horas sem parar,
mas não pensa nas coisas. Não consegue fazer nada mais difícil, é melhor que fique lá
em cima.
- Joe, vai contando - digo eu, enquanto cavo. - Comece por dez, vai contando. - Acho
que estou cavando faz dez segundos.
- Dez, onze, dozimo - Joe conta.
Se ele chega a duzentos e eu não encontro a cara de nosso pai, vai ser tarde demais.
Penso.
- Trinta-dois.
- Sessenta-cinco.
- Cento-um.
Percebo alguma coisa lá em cima, na beira: colocaram uma escada de atravessado na
cova. Se cair mais terra, posso agarrar nos degraus para escapar. Nessa hora, alguém
pula dentro da cova, ao meu lado. É o sr. Jackson. Ele pega com os braços toda a terra
que eu tinha tirado e empurra para um lado, assim eu tenho mais espaço. Nunca pensei
que ele tinha essa força. Faz o que preciso, sem eu ter de falar.
- Cento-setenta-oito.
Meus dedos tocam em algo. É a outra mão de nosso pai. Cavo em volta dela e
encontro a cabeça, cavo em torno dela e puxo a mão para que a boca e o nariz fiquem
livres.
Os olhos estão fechados e ele está branco. Encosto o ouvido no nariz dele, mas não
sinto respiração.
O sr. Jackson me afasta e põe a boca em cima da de nosso pai como quem dá um
beijo. Respira dentro da boca algumas vezes e vejo o peito de nosso pai subir e descer.
Olho para cima. Em torno da sepultura, em silêncio, parados, tem um círculo de
homens: são outros coveiros, jardineiros, carpinteiros e até os meninos que cuidam do
lixo. A notícia se espalha rápido e todo mundo veio correndo. Tiraram os bonés, apesar
da chuvarada, e estão olhando e esperando.
Joe continua contando. - Duzentos - vinte - seis, duzentos - vinte - sete, duzentos -
vinte - oito.
- Pode parar, Joe. Nosso pai respira - eu digo.
Joe pára. Os homens se mexem, arrastando os pés, tossindo, falando baixo: tudo o
que pararam de fazer enquanto aguardavam. Alguns não gostam de nosso pai porque
ele toma cerveja, mas ninguém quer ver um homem daquele jeito preso dentro de uma
sepultura.
- Joe, traga uma pá, ainda temos muito o que fazer diz o sr. Jackson.
Nunca estive dentro de uma cova com o sr. Jackson. Ele não lida tão bem com a pá
quanto eu e os outros coveiros, mas insiste em ficar lá até tirarmos nosso pai.
E não manda os outros homens voltarem ao trabalho. Sabe que eles querem ver o
final.
Gosto de trabalhar ao lado dele.
Leva um bom tempo para desenterrar nosso pai. Temos de cavar com cuidado para
não machucar ele. Por um tempo, fica de olhos fechados como se estivesse dormindo,
depois abre. Falo com ele enquanto trabalho, assim ele não fica assustado.
- Estamos tirando o senhor, nosso pai. O escoramento desmoronou quando o senhor
estava na cova, mas o senhor cobriu o rosto, como me ensinou a fazer e está bem.
Vamos tirar você num minuto.
Ele não diz nada, só olha para o céu, com a chuva caindo tão forte e se espalhando
pelo rosto dele. Ele parece não sentir. Começo a ter uma impressão ruim e não digo
nada porque não quero assustar ninguém.
- Olha, o sr. Jackson está cavando: nosso pai nunca pensou que fosse ver o diretor
cavando, hein? - pergunto.
Nosso pai contínua calado. A cor está voltando ao rosto, mas ainda tem uma coisa
faltando no olhar dele.
- Vou pagar a cerveja que devo a você, nosso pai - digo, já desesperado. - E vai ter
muito homem comprando cerveja para o senhor hoje. Aposto que vão deixar você
entrar no Duke de St. Albans. A dona vai até deixar você beijar ela.
- Deixa ele, menino! - diz o sr. Jackson, com muita calma. - Levou um susto, pode
demorar a se recuperar.
Passamos a trabalhar em silêncio. Quando, enfim, nosso pai fica descoberto, o sr.
Jackson vê se tem costela quebrada. Depois, pega nosso pai no colo e passa parajoe, que
coloca ele no carrinho que usam para carregar pedras. Dois homens descem nosso pai
pela colina, na direção da entrada. O sr. Jackson e eu saímos da cova, enlameados, e o
sr. Jackson vai atrás do carrinho. Fico lá sem saber o que fazer: a sepultura não está
cheia de terra, temos de terminar o serviço. Aparecem dois coveiros e pegam as pás.
Não dizem nada: junto com Joe, eles acabam a sepultura da sra. Coleman.
vou atrás do sr. Jackson e do carrinho, pela alameda. Quando chego perto, quero
dizer uma coisa de agradecimento, algo que une nós de forma que não sou apenas mais
um coveiro. Eu estava perto dele na sepultura de Kitty Coleman e quero lembrar disso.
Então, digo o que sei sobre os dois, assim ele vai lembrar da ligação e saber como estou
agradecido por salvar nosso pai.
- Sinto muito pelo bebê, senhor. Ela também ficou triste. Nunca mais foi a mesma
depois, não é? - comento.
Ele vira e me olha, atento. - Que bebê? - pergunta.
Percebo que ele não sabia, mas já era tarde para eu engolir as palavras. Então, eu
conto para ele.
Maio de 1910

LAVINIA WATERHOUSE
A primeira coisa em que pensei quando ouvi os sinos repicando é que podiam
incomodar mamy em sua delicada condição. Mas, ah, mamy não admirava esse rei
tanto quanto gostava da mãe dele, a rainha Vitória.
Claro que o passamento dele é muito triste e lastimo pela pobre rainha Alexandra,
mas não é como quando a rainha Vitória faleceu.
Abri a janela para olhar a rua. Devia estar chovendo, com nevoeiro, ou nublado,
mas, naturalmente, não estava: era uma linda manhã de maio, ensolarada e suave.
O tempo nunca está como deve ser.
Os sinos pareciam tocar em todos os cantos. O som era tão fúnebre que me benzi.
Depois, estremeci. Do outro lado do jardim, Maude também tinha aberto sua janela e
estava olhando, de camisola branca. Olhava direto para mim e parecia sorrir.
Quase me afastei da janela, mas seria muito indelicado, pois ela já havia me visto.
Fiquei onde estava e me orgulhei de mim mesma: cumprimentei-a com a cabeça. Ela
fez o mesmo.
Há quase dois anos não nos falamos, desde o enterro de Ivy May. Foi muito simples
evitá-la. Não estamos mais na mesma escola e, quando passei por ela na rua, virei a cara
e fiz de conta que não a vi. Às vezes, no cemitério, ao visitar Ivy May, via Maude na
sepultura da mãe, então eu saía de mansinho e dei uma caminhada até ela ir embora.
Só uma vez ficamos frente a frente na rua. Foi há mais de um ano. Eu estava com
mamy e ela com a avó, então foi impossível evitá-la. A avó de Maude não parou de dar
pêsames a mamy, enquanto Maude e eu ficamos de cabeça baixa, olhando para nossos
sapatos, sem uma palavra. Foi muito esquisito. De vez em quando, dava uma olhada
nela e reparei que estava usando o cabelo puxado para cima e tinha começado a usar
espartilho! Fiquei tão surpresa que tive vontade de falar alguma coisa, claro que não
falei. Depois, obriguei mamy a ir direto na loja comprar um espartilho para mim.
Não comentei muito com mamy sobre o rompimento com Maude. Ela sabe que
brigamos, mas ignora o motivo. Ficaria mortificada se soubesse que, em parte, foi por
causa dela. Sei que ela acha que Maude e eu estamos sendo bobas. Talvez estejamos.
Não confessaria a Maude, mas a verdade é que sinto falta dela. Não conheci ninguém
no colégio União Santa que seja uma amiga como Maude foi. Na verdade, as meninas
são horríveis comigo e, para ser sincera, acho que é porque sou muito mais bonita
do que elas. Ter um rosto como o meu pode ser um problema, mas, se for para escolher,
prefiro ficar com ele.
Espero que o cumprimento dado com a cabeça tenha servido para mostrar a
Maude que eu a perdoei.
Desci para o café da manhã, ainda de camisola, com uma expressão triste, adequada
ao passamento do rei. Mamy pareceu não ter ouvido os sinos. Ela agora está tão grande
que nem senta direito na mesa, então estava comendo um prato de torrada com geléia
na espreguiçadeira, enquanto papy lia o jornal para ela. Enquanto ele lia as notícias,
mamy estava com um sorriso nos lábios e a mão na barriga.
- Que notícia triste - falei, dando um beijo na cabeça de cada um.
- Oh! Olá, querida. Quer sentir o bebê chutando na minha barriga? - mamy
perguntou.
Argh, aquela pergunta bastava para me fazer sumir da sala. Está certo que mamy
esteja contente com o bebê, principalmente na idade dela, e é bom porque ganhou um
pouco de cor no rosto. Mas parece que ela se esqueceu completamente de Ivy May.
Papy sorriu para mim, como se entendesse a situação. Por causa dele, não saí da
sala: comi uma tigela de mingau, embora não estivesse com fome.
Subi para mudar de roupa e fiquei um bom tempo olhando no guarda-roupa,
resolvendo o que usar. Sabia que tinha de vestir preto por causa do rei, mas, só de olhar
o velho vestido de lãzinha dependurado, quase desmaiei. Se eu ainda tivesse aquele
lindo vestido de seda da loja Jay, usaria, mas queimei-o um ano após o falecimento de
Ivy May, já que não se deve guardar roupas de luto. Elas atraem o Destino, que nos
obriga a usá-las outra vez.
Além disso, eu queria usar o meu vestido azul, que a-doro. Ele tem um significado
especial: uso-o sempre, principalmente, considerando que daqui a pouco mamy vai ter
o bebê. Quero que nasça um irmãozinho. Sei que é bobagem, mas achei que, se eu
usasse azul, ajudaria. Não quero outra irmã: seria muito doloroso, eu lembraria do erro
enorme que cometi com Ivy May, deixando a mãozinha dela escapar.
Portanto, usei o vestido azul. Pelo menos é azul-escuro, tão escuro que, de longe,
pode-se pensar que é preto e, portanto, estou respeitando o passamento do rei.
O triste a respeito do dia de hoje é não só o rei ter morrido, mas que agora a mãe
dele se foi mesmo. Se ela tivesse morrido agora, eu usaria preto sem pensar duas vezes.
Há pouco tempo, comecei a achar que sou a única pessoa que ainda se lembra dela
como um modelo para todos nós. Até mamy só pensa no futuro. Estou começando a me
cansar de nadar contra a corrente.
MAUDE COLEMAN
Fiquei deitada na cama um bom tempo, tentando adivinhar os sinos de cada igreja:
Santa Maria, lá em cima da colina, em Brookfield; São Miguel e São José na colina de
Highgate, a igreja que freqüentamos; e Santana, no fim. Todas deram só uma badalada
grave e, embora cada igreja fosse num tom diferente e repicasse mais ou menos
devagar, todos os sinos pareciam iguais. Não ouvia esse som desde o falecimento da
rainha Vitória, há nove anos.
Olhei na janela e vi Lavínia se benzendo lá do outro lado. Geralmente, quando a vejo
em algum lugar (no jardim da casa dela, ou na rua), levo um susto, como se levasse um
empurrão por trás. Mas hoje foi tão estranho vê-la fazer aquele gesto que esqueci o mal-
estar. Deve ter aprendido a se benzer no colégio União Santa.
Lembrei dela, há anos, com medo de ir à área dos dissidentes no cemitério, onde os
católicos eram enterrados. Achei graça: como as coisas mudam.
Ela me viu na janela, hesitou um instante e cumprimentoume para retribuir meu
sorriso. Não estava sorrindo para ela, mas, já que me cumprimentou, achei que tinha de
responder.
Saímos da janela e fui me vestir, ainda sem saber a roupa. Aquele de seda preta
continua no armário, mas precisa de conserto, ficou apertado na última vez; além do
mais, estou usando espartilho. Fiquei de luto por quase um ano, após o falecimento de
mamãe, e aí então entendi por que fazemos isso. Não é só pelo fato de a cor mostrar a
tristeza do espírito, mas também para não pensar em que roupa vestir. Passei um bom
tempo acordando de manhã com o alívio de não precisar escolher um vestido:
escolheram por mim. Eu não tinha vontade de usar roupa colorida, nem de me
preocupar com a aparência. Só quando tive vontade de usar cores outra vez, vi que
estava começando a me recuperar.
Às vezes, eu ficava pensando como Lavínia agüentou um luto tão prolongado por
Ivy May: seis meses para uma irmã, embora eu ache que ela acompanhou a mãe e usou
preto por um ano. Fiquei pensando o que ela usaria agora pelo rei.
Olhei meus vestidos outra vez. No meio deles, vi o vestido cinza de mamãe e pensei
que talvez me servisse. É estranho quando um vestido dela cabe em mim. A avó não
gosta que eu os use, mas, depois que teve o derrame, ela não pode falar direito e
consigo ignorar seus olhares bravos.
Acho que, em parte, a avó não quer por causa de papai e procuro não usar os
vestidos de mamãe na frente dele. Vejo-o agora, fumando um cigarro no jardim: mamãe
o havia proibido de fazer isso, pois ele sempre joga os tocos na grama. Desci, usando o
vestido cinza, e saí sem que ele me visse.
Na Swain's Lane, os meninos jornaleiros apregoavam a morte do rei e algumas lojas
já estavam com faixas pretas e roxas nas fachadas. Mas ninguém estava pintando de
preto as cercas de ferro das casas, como fizeram quando a rainha morreu.
Algumas pessoas estavam de luto, outras, não. Paravam para conversar, sem falar
baixinho como as pessoas enlutadas, mas normalmente, comentando o falecimento do
rei.
Lembrei-me de que, com a rainha, tudo parou: ninguém foi trabalhar, as escolas não
funcionaram, as lojas fecharam as portas.
Ficamos sem pão e sem carvão. Percebi que isso não ia acontecer mais: o padeiro
entregaria o pão; o leiteiro, o leite; o carvoeiro, o carvão. Era sábado e, se eu fosse a
Heath, os meninos estariam empinando pipas.
Pretendia devolver um livro na biblioteca, mas, quando cheguei lá, estava fechada,
com um pequeno aviso na porta, de luto. Alguns ainda seguiam a tradição. Olhei a
porta do cemitério do outro lado da rua, lembrando da faixa branca da biblioteca caindo
no cortejo fúnebre e do sr. Jackson e de Caroline Black.
Parecia que aquilo havia acontecido há tanto tempo: para mim, era como se tivesse
perdido mamãe ontem.
Não queria voltar para casa, então atravessei a rua, entrei no cemitério e fui andando
pela alameda que levava à parte principal. No meio do caminho, encontrei o pai de
Simon sentado numa sepultura lisa, encostado numa cruz celta. Tinha as mãos nos
joelhos e olhava ao longe, como fazem os velhos que ficam sentados à beira-mar.
Seus olhos brilhavam tanto com o azul do céu que era difícil dizer o que miravam.
Não sei se ele me viu, mas parei: - Olá!
O olhar dele se mexeu, mas não se fixou em mim. - Olá! - ele respondeu.
- Que pena a morte do rei, não? - perguntei, achando que devia conversar.
- Que pena a morte do rei - o pai de Simon repetiu. Fazia muito tempo que não o
encontrava. Sempre que via Simon trabalhando, estava sem o pai, mas podia ser que
estivesse buscando uma escada em algum lugar, um carrinho de mão, uma corda. Uma
vez, eu o vi encostado num túmulo, dormindo, e pensei que estivesse bêbado depois de
uma noitada.
- Sabe onde está Simon? - perguntei.
- Onde está Simon.
Coloquei a mão no ombro dele e olhei-o bem. Ele me via, mas não parecia me
reconhecer. Era como se fosse cego, embora enxergasse. Tinha alguma coisa errada com
ele: estava claro que ele não era mais capaz de empilhar terra numa pá. Fiquei pensando
o que teria havido.
Apertei o ombro dele. - Muito bem, gostei de ver o senhor.
- Gostei de ver o senhor.
Fiquei com lágrimas nos olhos e fui caminhando pela alameda.
Tentei ficar longe de nosso túmulo e andei um pouco pelo cemitério, olhando as
cruzes, colunas, jarros e anjos silenciosos, brilhando ao sol. Mas acabei entrando pelo
caminho.
Ela já estava lá. De longe, pensei que estivesse de preto, mas quando me aproximei
vi que o vestido era azul como o que mamãe usou de luto pela rainha Vitória e causou
tanto escândalo. Sorri para ela e, quando Lavínia perguntou por que eu estava sorrindo,
achei melhor não dizer.
SIMON FIELD
As duas estão sentadas cada uma na sua sepultura, como antigamente. Faz muito
tempo que não vejo elas juntas e, quando encontro uma, nunca diz o que aconteceu com
a outra. Acho que aconteceu coisa demais em tempo de menos, na vida delas.
Elas não me vêem, me escondo bem.
Não são mais como eram, não ficam de braço dado, nem riem como antes. Estão
sentadas longe e conversando, comportadas. Maude pergunta: - Como vai sua mãe?
Livy faz uma cara engraçada: - Mamy está para ter um bebê a qualquer hora.
Maude fica tão surpresa que eu quase rio, me afasto. Que ótimo! Pensei que fosse
muito tarde para ela ter filhos, e depois que Ivy May...
- Parece que não é tarde.
- Você está contente?
- Claro, a vida segue, afinal - diz Livy. -É!
As duas olham suas sepulturas com os nomes de Ivy May e Kitty Coleman.
- E a sua avó, como está? - pergunta Livy.
- Continua morando conosco. Há alguns meses, sofreu um derrame e não pode falar.
- Ah, coitada!
- Mas está bem, é mais fácil lidar com ela.
As duas riem como se Maude tivesse dito alguma bobagem. Saio de trás de uma
sepultura e esfrego os pés no cascalho da alameda, assim percebem que estou lá.
As duas pulam de susto. - Olá - diz Maude e Livy pergunta, como sempre: - Onde
estava, menino peralta? - Parece que os velhos tempos voltaram. Me abaixo perto da
sepultura de nosso avô, do outro lado de onde elas estão, pego duas pedrinhas do chão
e esfrego nas mãos.
- Como soube que estávamos aqui? - pergunta Maude. Não me altero: - Sabia que
viriam. O rei morreu, não é?
- O rei morreu, viva o rei - dizem as duas juntas, sorrindo.
- Que pena, não? Se mamãe tiver um menino, vai ter de chamá-lo George. Gosto
mais de Edward, assim eu o chamaria de Teddy. Georgie já não é tão bonito.
Maude ri. - Eu tinha me esquecido das suas observações tolas.
- Não fala - pede Livy.
- Simon, vi seu pai agora mesmo - diz Maude, de repente. Largo as pedras no chão.
- O que houve com ele? - ela pergunta, bem delicada.
- Acidente. Maude não diz nada.
- Ele ficou soterrado. Conseguimos tirar, mas... - Faço de conta que não me altero,
outra vez.
- Sinto muito - diz Maude, bem baixinho.
- Eu também - Livy ajunta.
- Queria perguntar uma coisa a você - digo para Livy.
Ela me olha, assustada. Aposto que está pensando naquele beijo dentro da cova,
anos atrás. Mas não é o que vou perguntar.
- Você sabe que eu marquei todas as sepulturas daqui. Todas as do gramado, acho.
Menos a da sua família - lembro a ela, olhando para o anjo dos Waterhouse. - Você
pediu para não marcar, faz tempo, depois que a rainha morreu. Então, não marquei.
Mas eu queria, por causa de Ivy May, para lembrar que ela está aí.
- Lembrar o quê, se só tem ossos? Horrível! - diz Livy.
- Não, não é. Para lembrar a você que ela continua aí. Parte dela acabou, claro, mas
os ossos vão estar por centenas de anos. Por mais tempo que essas pedras, aposto.
Por mais tempo que a minha marca. É isso o que interessa, não é a sepultura e o que
você põe em cima dela.
Maude me olha de um jeito engraçado e vejo que nesses anos todos ela não
entendeu o que quer dizer a minha caveira com os dois ossos cruzados, por mais que
seja mais inteligente que Livy.
Livy pensa um minuto e diz: - Pode fazer a marca.
Levanto e vou para trás da coluna do anjo com a minha faquinha de bolso.
Enquanto estou lá, fazendo a marca, elas voltam a conversar. Livy começa: - Não me
importo, se Simon marcar. Para mim, o anjo nunca mais foi o mesmo depois que caiu.
Estou sempre achando que vai cair de novo e ainda vejo o lugar onde o nariz e o
pescoço quebraram. - E Maude responde: - Jamais gostei da nossa sepultura. Nada nela
lembra a mamãe, apesar de ter o nome gravado. Sabe que ela queria ser cremada?
- Nossa! E ficar no columbário? - Livy parece achar muito ruim.
- Não, ela queria que suas cinzas fossem espalhadas em canteiros de flores. Foi o que
pediu, mas papai não fez.
- Tomara que não faça.
- Sempre achei errado enterrá-la aqui, mas não se pode fazer nada. A vida continua,
como você diz.
Termino a marca e guardo a minha faquinha. Fico contente de ter feito: é como se
tivesse uma coceira nas costas e conseguisse finalmente coçar. Estava devendo isso para
Ivy May faz tempo. Saio de trás da sepultura e aviso: - Tenho de voltar ao trabalho, Joe
deve estar me procurando. - Fico quieto um instante e pergunto: - Vão voltar aqui para
me ver?
- Claro que vamos - dizem as duas, juntas.
Não sei por que pergunto isso, pois sei que a resposta não é o que falaram. As
meninas estão crescendo e não brincam mais no cemitério. Maude usa o cabelo
preso para cima e está cada dia mais parecida com a mãe; Livy, bom, Livy com dezoito
anos deve casar com um soldado.
Estendo a mão para despedir de Maude. Ela estranha, mas estende a mão também.
- Adeus - digo. Ela sabe por que me despeço, pois também sabe a verdadeira
resposta. De repente, ela se levanta e dá um beijo na minha cara suja. Livy também
levanta e beija do outro lado. Riem, ficam de braço dado e vão descendo a alameda para
a saída.
Quando eu estava atrás da sepultura de Ivy May, tive uma idéia. Ouvi o que Maude
falou, pensei no túmulo da mãe dela e como nosso pai ficou soterrado lá. Sempre achei
que aquilo era um sinal de que a sra. Coleman não queria ser enterrada lá.
Às vezes, acho que o sr. Jackson pensa a mesma coisa. Na hora que o caixão baixou
na cova, ele estava com a cara de que tem uma faca remexendo nas tripas.
Desço para falar com o sr. Jackson. Ele está no depósito, combinando um enterro
com uma família, então espero no pátio. Uma fila de homens empurra carrinhos de mão
no chão cheio de lixo. Esse lugar não pára nem quando morre um rei.
O sr. Jackson leva as visitas até a porta. Limpo a garganta e pergunto: - Posso dar
uma palavrinha, diretor?
- O que foi, Simon?
- Preciso falar uma coisa aqui dentro, longe dos outros. Faço sinal, indicando os
homens com os carrinhos de mão.
Ele me olha curioso, deixa eu entrar e fecha a porta. Senta e fica passando a mão por
cima da página onde anotou os dados do próximo enterro: dia, hora, local, fundura da
cova e enfeite.
O sr. Jackson é muito bom para mim. Nunca reclama porque nosso pai não trabalha
mais. Continua pagando a mesma coisa de sempre e dá tempo para eu e Joe
terminarmos o que ele não fez. Tem coveiro que não gosta disso, mas o sr. Jackson
manda eles calarem a boca. Às vezes, eles olham para nosso pai e vejo que têm raiva.
- Cruzes, que Deus nos livre. - Também não falam muito com a gente, isto é, com Joe e
eu, como se a gente fosse maldito. bom, vão ter de me agüentar, não tenho para onde ir.
A menos que tenha uma guerra, como às vezes o sr. Jackson diz que pode ter.
Aí, vão precisar de coveiros.
- O que queria, Simon? - o sr. Jackson pergunta. Está preocupado com o que
eu posso contar, pensando que tenho mais alguma surpresa. Ainda me aborreço
quando lembro que falei do bebê de Kitty Coleman.
É difícil começar.-Eu estava na sepultura dos Coleman. Maude e Livy estavam lá
- digo, enfim.
O sr. Jackson pára de mexer no livro de registros e põe as mãos sobre a mesa.
- Maude diz que a mãe queria ser queimada, quer dizer, cremada. E que ela olha a
sepultura e não tem nada da mãe lá, só o nome.
- Maude falou isso?
- Falou e fiquei pensando...
- Você anda pensando muito.
Quase não continuo porque ele parece tão triste. Mas nós dois continuamos com
uma ligação por Kitty Coleman.
- Tem uma coisa que podemos fazer - digo.
O sr. Jackson olha para a porta como se tivesse medo de alguém entrar. Levanta e
tranca. - Como assim? - ele pergunta.
Conto a minha idéia.
Ele pensa um pouco. Olha as mãos sobre a mesa e, depois, as fecha.
- O problema são os ossos, temos de fazer um fogo bem forte por bastante tempo.
Talvez numa temperatura de carvão - ele diz e pára.
Fico quieto.
- Pode levar tempo para preparar.
Concordo. Temos tempo e sei a que horas fazer: quando todo mundo estiver
olhando para outro lugar.
GERTRUDE WATERHOUSE
Quando Livy entrou, hoje de manhã, não falei nada sobre o vestido. Não percebi que
era azul. Estranhei e disfarcei, falando sobre o bebê. Espero que ao menos no dia do
enterro do rei ela use preto. Dizem que vai ser marcado para daqui a quinze dias.
Talvez seja bom que Livy esteja de azul. Acho que eu não ia agüentar o drama que
ela faz por causa do luto. A querida Ivy May ficaria impressionada com a perturbação
da irmã por causa dela, quando nunca se incomodou muito quando era viva.
Sinto muita falta de Ivy May. Cheguei à conclusão de que essa dor nunca passará,
nem a minha culpa, embora eu tenha finalmente conseguido me perdoar.
Talvez eu esteja sendo injusta com Livy. Ela cresceu muito nesse último ano e disse
que fez as pazes com Maude. Fiquei contente, uma precisa da outra, essas meninas,
apesar de tudo o que aconteceu. Livy me contou agora: - Sabe, mamy? Os Coleman
acabam de instalar eletricidade na casa. Maude disse que é uma maravilha. Acho que
nós também devíamos ter.
Não ouvi direito. Senti alguma coisa no ventre que não era um chute do bebê.
Estava começando.
ALBERT WATERHOUSE
Confesso que bebi umas e outras. Fiz um brinde à saúde de Trudy, outro ao finado
rei e mais outro ao novo rei: as bolachas de cerveja foram se empilhando na mesa.
Estava no bar desde o meio da tarde, quando Trudy começou o trabalho de parto.
Richard chegou e eu já estava me apoiando no balcão do Buli and Last.
Ele não notou. Pediu uma cerveja para mim quando soube que Trudy estava em
trabalho de parto, falou sobre críquete e nos jogos que seriam cancelados devido ao
falecimento do rei.
Depois, fez uma pergunta singular. Na verdade, não sei bem se ele perguntou
mesmo, ou se foram as cervejas que falaram na minha orelha: - Maude quer ir para a
universidade.
- De novo?
- Hoje, ela me disse que quer ir para um colégio interno preparar-se para as provas
de Cambridge. O que acha que eu faço?
Quase ri: Richard está sempre com problemas com suas mulheres. É verdade que
tudo pode acontecer com aquelas Coleman. Lembrei de Kitty Coleman naquele dia,
segurando meu braço, quando a levei para casa e ela na bicicleta, suas coxas delicadas e
lindas sob a saia, mas não consegui achar graça. Tive vontade de chorar. Fiquei olhando
a espuma da minha cerveja. - Deixa Maude ir - falei.
Nessa hora, nossa criada entrou e me disse que tenho um filho. - Graças a Deus! -
gritei e paguei uma rodada de cerveja para o bar inteiro.
RICHARD COLEMAN
Hoje à noite, Maude ficou comigo no jardim enquanto eu fumava um cigarro. Aí, a
sra. Baker chamou-a e ela entrou, me deixando sozinho. Olhei a fumaça passando pelos
meus dedos e pensei: vou sentir falta dela quando ela for embora.
DOROTHY BAKER
Não devia ter esperado tanto para avisar a srta. Maude. Mas eu não devia saber,
não? Tento me meter só nas minhas coisas. E não podia dizer nada enquanto a avó dela
estava de patroa. Esse derrame foi um mal que veio para bem, a srta. Maude
amadureceu desde que a avó teve de sossegar.
Eu não disse nada logo depois do derrame, ficava ruim falar mal de uma senhora
com uma doença dessas. Mas, no outro dia, o correio devolveu o envelope da carta que
mandei para Jenny, veio com o aviso Mudou-se. Claro que sumiram com a carta e com
as moedas que coloquei dentro do envelope. De vez em quando, eu mandava para
Jenny um xelim, quando dava para economizar, para ajudar ela. Eu sabia que estavam
passando por dificuldade: ela, a mãe e Jack. Não devem ter conseguido mais pagar o
aluguel.
À tarde, quando estava planejando o cardápio da semana com a srta. Maude, decidi
falar. Talvez devesse ter sido mais vaga, mas não é do meu feitio. Terminamos os
cardápios, fechei o caderno e disse: -Jenny está com problema.
A srta. Maude se endireitou: - O que foi? - Nunca falamos em Jenny, então ela
estranhou.
- Devolveram uma carta que mandei, eles se mudaram.
- Não quer dizer que haja problema. Podem ter mudado para um lugar melhor.
- Ela teria me avisado. E não tem dinheiro para nada melhor. - Nunca falei para a
srta. Maude como a situação deles estava ruim. - A verdade é que Jenny passou por
muita dificuldade desde que a avó despediu ela sem dar uma referência.
- Sem referências? - a srta. Maude repetiu como se não tivesse entendido o que eu
disse.
- Sem referência ela não consegue outro trabalho em casa de família. Trabalhou num
bar e a mãe passou a lavar roupa para fora. Mesmo assim, o dinheiro não dá.
A srta. Maude estava ficando assustada. Ainda não sabe muita coisa do mundo lá
fora. Não contei para ela no que costuma dar, uma mulher trabalhando em bar.
Achei estranho quando me perguntou: - Como ela consegue criar um filho?
Eu não tinha idéia que ela sabia que Jack era filho de Jenny. Mas a srta. Maude falou
calma, como quem não está julgando nada.
Fiz que não sabia.
- Temos de encontrá-la, é o mínimo que podemos fazer - disse a srta. Maude.
- Como encontrar? A cidade é grande e, se os vizinhos soubessem o endereço, teriam
dado para o carteiro.
- Simon descobre onde ela está. Conhece ela - resolveu a srta. Maude.
Eu ia dizer uma coisa, mas ela estava com tanta confiança no menino que não tive
coragem de falar. Então, perguntei: - Se ele encontrar, o que fazemos? Não podemos
chamar para cá, tem a nova criada que é muito boa. Não seria justo mandar ela embora.
- Escrevo uma referência para ela.
É incrível como uma menina cresce quando resolve crescer.
SIMON FIELD
Maude me pediu para achar Jenny e eu não pergunto o nada., Por quê-As vezes, não
preciso saber o motivo.
Não é difícil: Jenny esteve com nossa mãe, que me diz onde ela está. Chego lá e
encontro ela, a mãe e Jack num quartinho, sem uma migalha de pão para comer. Jenny
gastou tudo o que tinha no trabalho que nossa mãe teve de fazer para ela.
Levo eles a um café e compro comida, Maude me deu dinheiro. O menino e a avó
comem tudo o que aparece, mas Jenny só cisca. Está com a cara cinza.
- Não estou me sentindo bem - ela diz.
- Isso passa - digo, é o que nossa mãe sempre diz, depois que uma mulher esteve
com ela. Alguns anos atrás, Jenny não queria nada com o que nossa mãe faz, mas as
coisas mudaram. Ela sabe o que é ter um filho e não ter comida para ele. Isso muda as
idéias de trazer mais uma boca para o mundo sem poder sustentar.
Não digo nada. Jenny não precisa que eu diga que as coisas mudam. Fico de boca
fechada e faço ela tomar um pouco de sopa.
Acho que encontrei ela bem na hora.

LAVÍNIA WATERHOUSE

Bem, não sei. Realmente, não sei o que pensar. Maude sempre diz que preciso ser
mais compreensiva e acho que essa é uma oportunidade para tentar. Só que é difícil.
Agora tenho mais dois segredos com Maude.
Claro que acabo de chegar do cemitério. Parece que nossas vidas giram em torno
dele. Fui sozinha visitar nosso jazigo. Queria ir antes do enterro do rei: claro que mamy
não podia me acompanhar, pois continua de resguardo, com o pequeno Georgie
deitado ao lado. Quando saí, os dois dormiam, o que é bom, pois não queria deixá-
la sozinha. Elizabeth está lá, mas não confio nela em relação a Georgie, tenho certeza de
que deixaria ele cair de cabeça no chão. Papy está trabalhando, apesar de ter dito que
essa semana está muito monótona e calma, todo mundo de cara comprida e trabalhando
pouco, esperando que o rei seja sepultado, em descanso eterno.
Podia pedir para Maude me acompanhar, mas ontem passamos o dia todo juntas, na
fila para ver o rei em câmara ardente, no palácio Whitehall. Hoje, estou querendo ficar
na minha própria companhia.
Fui ao nosso jazigo, levei mais um buquê para Ivy May e tirei um pouco do mato da
nossa sepultura e da dos Coleman, estava precisando. Nesse aspecto, os Coleman são
um pouco relaxados. Depois, fiquei lá, parada: era uma linda e calma tarde ensolarada.
Sentia a grama, as flores e as árvores em torno, vivas. Pensei no novo rei, George V Até
pronunciei alto o nome algumas vezes. E mais fácil aceitar o rei depois que tenho um
irmão com o nome dele.
Então, tive vontade de ver os anjos do cemitério. Fazia tanto tempo que não os via.
Claro, comecei pelo nosso e fui contando os outros: há mais quatro novos, além dos
trinta e um que havia. Mas eu só queria ver os antigos, da minha infância, era como
cumprimentar velhos amigos. Consegui achar trinta, não encontrava o
trigésimo primeiro. Estava procurando no fundo do cemitério, perto do canto noroeste,
quando tocou a sineta avisando que os portões iam ser fechados. Eu tinha me
esquecido do anjo adormecido e corri pela avenida Egípcia: só depois de vê-lo (deitado
de lado, com as asinhas recolhidas) achei que podia ir embora.
Corri pela alameda rumo à saída. Era bem tarde, não tinha ninguém e fiquei
preocupada que os portões já estivessem fechados. Apesar disso, corri para me despedir
de Ivy May.
E foi assim que encontrei Simon, Joe e o sr. Jackson começando a retirar a pedra de
granito da sepultura dos Coleman! Levei um tal susto que parei, boquiaberta.
Por um terrível instante, achei que tinha perdido Maude também. Simon então me
viu e largou a pá, Joe e o sr. Jackson também. Tinham uma cara tão culpada que eu
sabia que havia algo errado.
- Por Nosso Senhor Jesus Cristo, o que estão fazendo? - gritei.
Simon olhou de esguelha para o sr. Jackson e disse: Livy, sente aqui um instante. -
Fez sinal mostrando os pés do meu anjo e sentei, um pouco desconfiada: depois que ele
caiu, nunca mais confiei.
Simon explicou tudo. Primeiro, não consegui falar; quando retomei o fôlego, disse: -
E meu dever cristão lembrar que estão fazendo algo que é, ao mesmo tempo, ilegal e
imoral.
- Nós sabemos - disse aquele menino peralta, quase com alegria!
- E a vontade dela - disse o sr. Jackson, bem calmo. Olhei-o. Se eu contasse, ele e
Simon seriam demitidos.
Se contasse para a polícia, poderia acabar com a vida deles e deixar Maude e o pai
terrivelmente aborrecidos. Poderia.
Mas isso não traria Ivy May de volta.
Eles me olhavam assustados, como se soubessem que eu estava avaliando a situação.
Perguntei ao sr. Jackson: - O senhor vai contar para Maude?
- No momento adequado - considerou ele.
Deixei que esperassem mais um pouco. O cemitério estava em completo silêncio,
como se todas as sepulturas esperassem minha resposta.
- Não vou contar para ninguém - falei, enfim.
- Garante, Livy? - Simon perguntou.
- Acha que não consigo guardar segredo? Não contei a Maude o que houve com a
mãe dela, do bebê. Mantive segredo.
O sr. Jackson ficou rubro. Olhei para ele, depois de ficar anos pensando naquele
quebracabeça, faltando uma peça. Deixei que ele tomasse seu lugar na história ao lado
de Kitty e, para minha surpresa, tive pena dele.
Mais um segredo. Mas não ia contar. Deixei os três em sua árida tarefa e corri para
casa, tentando não pensar naquilo. Não foi difícil: quando segurei o bebê no colo,
descobri que era bem fácil esquecer tudo e só pensar na carinha linda do meu irmão.
MAUDE COLEMAN
Passava da meia-noite quando papai e eu chegamos ao alto da colina do parlamento.
Tínhamos ido ao novo observatório da Sociedade Científica Hampstead, ao lado do lago
Whitestone. Fomos ver a passagem do cometa Halley e estávamos passando por Heath,
de volta para casa.
Foi um desapontamento, pois a lua minguante brilhava tanto, que não deu para ver
bem o cometa, embora sua cauda comprida e curva fosse espetacular. Papai adora o
observatório, lutou muito para que fosse construído e eu não queria estragar a noite
reclamando da lua. Era uma das poucas damas presentes e fiquei quieta.
Agora, com a lua baixa no céu, o cometa estava mais visível e me senti melhor do
que no planetário com sua nesga de céu, cheio de homens tomando conhaque e
fumando charuto. Havia muita gente ainda na colina, olhando o cometa. Alguém até
tocava num acordeão .4 little ofwhat voufancy, embora ninguém dançasse; afinal, o rei
ia ser enterrado dentro de algumas horas. Era estranho que o cometa aparecesse uma
noite antes do enterro, assim como era o tipo do acontecimento que faria Lavínia tirar
muitas conclusões. Mas eu sabia que era apenas coincidência e essas coisas se explicam.
- Vamos, Maude. Vamos para casa - papai chamou, jogando um toco de cigarro na
grama.
com o canto dos olhos, percebi um brilho na colina ao lado, na direção de Highgate,
e vi uma grande fogueira iluminando as árvores em volta. Entre os galhos que pareciam
dançar, vi o cedro do Líbano do cemitério.
Aquela fogueira não era, certamente, coincidência: alguém devia tê-la feito em
memória do rei. Sorri. Adoro fogueiras. Era quase como se ela tivesse sido acesa para
mim também.
Papai sumiu descendo a colina, na escuridão que havia à minha frente e fiquei mais
um pouquinho, com os olhos passando do cometa para a fogueira.
SIMON FIELD
Demorou bastante. Ficamos a noite toda. O sr. Jackson tinha razão a respeito dos
ossos. Quando o sol apareceu, pegamos uns baldes e enchemos até a metade com areia.
Misturamos as cinzas na areia e espalhamos por todo o gramado. O sr. Jackson tem
plano de deixar as flores do campo crescerem lá, como ela queria. Vai ser diferente dos
canteiros e das alamedas cuidadas.
Ainda sobrou um pouquinho de areia e cinza num balde: fui até a roseira do nosso
avô e joguei o resto lá. Assim, tenho certeza de onde ela está, se um dia Maude quiser
saber. Além do mais, osso faz bem para as rosas.
AGRADECIMENTOS
Esta é a única parte de um romance que mostra a voz -- "normal" do autor ou da
autora. Assim, sempre leio os agradecimentos procurando pistas que mostrem um
pouco sobre eles, seus métodos de trabalho, e suas vidas, além de sua ligação com o
mundo real. Desconfio de que algumas pistas estão em código. Que bom: esse romance
não tem sentidos latentes, é apenas uma voz que quer agradecer a ajuda que recebeu de
diversas maneiras.
Às vezes me pergunto se agradecimentos chegam a ser necessários ou se quebram a
ilusão de que os livros são inteiramente formados da imaginação do autor. Mas os livros
não saem do nada: são ajudados por outros livros e outras pessoas, de muitas formas.
Usei diversos livros para criar este. Os mais úteis foram The Victorian
Celebration ofDeath, de James Steven Curl (Stroud: Sutton Publishing, 2000), Death
in the Victorian Family, de Pat Jalland (Oxford: Oxford University Press, 1996), Death,
Heaven and the Victonam, de John Morley (Londres: Studio Vista, 1971), e o meu
preferido, On the Laying Out, Planting and Managing of Cemeteries and on the
Improvement ofChurchyards, de J. C. Loudon (1843, reprodução em fac-símile
publicada pela Redhill, Surrey: Ivelet Books, 1981).
É privilégio do romancista inventar o que quiser, mesmo quando a história tem
pessoas e lugares reais. O cemitério deste livro mistura verdade e ficção: está
entremeado de detalhes concretos e vôos de imaginação, sem qualquer necessidade de
separá-los. Embora exista um cemitério de verdade no lugar onde este livro se passa,
não tentei recriá-lo totalmente, ele é mais uma invenção, com personagens sem a
pretensão de qualquer semelhança com a realidade.
Da mesma forma, usei alguns detalhes de fatos ocorridos com as sufragistas para
inseri-las na história. Tomei a liberdade de colocar na boca de Emmeline Pankhurts
palavras que ela não disse, mas acredito ter mantido o espírito de seus inúmeros
discursos. Além disso, Joana d'Arc e Robin Hood participaram de uma passeata,
vestidos como descrevi, mas não foi na manifestação do Hyde Park. Gail Cameron, que
trabalha no Museu de Londres, setor Coleção Sufragistas, ajudou muito a fornecer
fontes úteis.
Finalmente, agradeço ao meu quarteto de guardiães Carole Baron,Jonny Geller,
Deborah Schneider e Susan Watt - que se mantiveram firmes sempre que titubeei.

Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini Rio de Janeiro, junho de 2008

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