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A TERRA E O VERDE

Meu pai certa vez me disse que é impossível compreender por completo qualquer pessoa.
Especialmente uma Mulher. Que, por mais que a convivência forneça pistas e juízos de valores,
sempre vai ter algo encoberto, inacessível. Vontades secretas, falava, Cheia de segredos e
vontades secretas, ele referia à minha mãe. E qualquer noção de previsão ou domínio sobre o
outro é uma ilusão que arrasa do mais vil até o mais nobre e inteligente dos homens. Este é o
tipo de sabedoria que somente a faca é capaz de ensinar, filho, seguida da queda. E do sangue.
Deu-me este pensamento como um presente.

O vento arrastava poeira e folhas secas em redemoinhos, meu pai cavava a terra. O sol
machucava os meus olhos, eu prestava atenção nas nossas sombras, a dele castigando a terra.
Me levou pra aprender a trabalhar. Vez ou outra, os movimentos da enxada faziam respingar
aquela terra em mim eu vestia branco, manchou a minha roupa O frio que fazia, o branco que
manchava de terra, por quê?, e os montes subindo, o frio a terra, o escuro, a escuridão
Machucou? Hã?, o quê?, perguntei. O seu braço, apontou. Ele estava sangrando, começou a
doer. Melhor lavar isso daí, venha cá. Ele pegou a mangueira e passou água no meu ferimento,
ardeu. Quando a gente entrar em casa, eu vou pegar o kit pra passar alguma coisa aí. Não viu
onde foi que caiu? Acho que não, respondi. Eu não caí. Ele murmurou, hum, você tem que ficar
mais atento; é muito desligado. Seque com a camisa não. Deixe assim, eu vou lavar com soro
e passar sanativo. Deixe só eu terminar aqui. Uhum. Vá buscar o escavador pra mim, por favor.
Eu corri até o galpão em que ele guardava as ferramentas, abri a porta. Estava escuro, mas não
acendi a luz. Passei o olho pelas ferramentas no lado esquerdo, peguei o escavador e corri de
volta pro meu pai. Ele estendeu a mão. Eu entreguei, ele voltou a cavar. Quando a terra fica
dura demais, a gente tem que adaptar, trocar a enxada pelo escavador, tá entendendo? Uhum,
estou sim. Remexeu a terra um pouco mais, soltou a ferramenta e enfiou o braço direito naquele
fundo. Com pouca força, arrancou um pedaço enorme de raiz de lá, bateu nele pra tirar o excesso
de terra. Olhava pra aquela raiz como se fosse um filho seu, como se eu não existisse. Era assim
quando trabalhava naquela horta, esquecia-se do resto. Como se o atravessar do muro que
separava nossa casa do terreno o transportasse até outro universo, onde só existissem
preocupações com o verde e a terra.

Em casa, ele era totalmente diferente. Atencioso com a gente, ajudava com o dever de
casa, nos botava pra dormir, contava histórias. E sempre mantinha a casa limpa e organizada,
como se quisesse compensar a ausência da minha mãe, preenchendo o vazio com atividades
domésticas e o cuidado que ela tinha o cuidado que ela tinha, a minha mãe brincava, era feliz,
mãe sorria, por quê? Por que, mãe? Eu precisava tanto de você. Nos deixar assim, com que
direito? O meu pai, o meu pai... Claro que tínhamos Lindinalva, que ajudava na limpeza, mas,
o resto, tudo era ele, principalmente na cozinha. Ele fazia, preparava tudo, com os vegetais que
ele mesmo cultivava e os alimentos que comprava no supermercado. Não aceitava que ninguém,
senão ele, lidasse com a alimentação da casa. Parece estranho, mas eu levei muito tempo até
descobrir qual era a profissão do meu pai, como ele mantinha aquela casa enorme. Só depois
que me perguntaram na escola, e riram de mim quando eu disse que ele tinha uma horta;
apontaram o dedo. Crianças podem ser cruéis. Quando eu cheguei em casa, ele me disse, Juiz
aposentado. Mas, como assim?, sem um único fio de cabelo branco?, não engoli. Então, certa
vez, tia Helen apareceu de surpresa lá em casa, perguntando por ele, “Oi, meu amor! Tudo
bem?, como vai você?, meu irmão está?”, não tia. Ele saiu. Eu era apaixonado por ela. Ela
aparecia tão pouco, mas toda vez eu a achava mais bonita que qualquer menina do meu colégio,
sem comparação, o cabelo dela brilhava que nem o sol, todo amarelo, mas ela parecia tão
nervosa. Queria cuidar dela. “E a sua irmã?, está bem? Quero vê-la.” A Maria está dormindo,
tia. “Hum, tudo bem. Eu vou esperar pelo meu irmão, você pega um copo d’água pra mim, por
favor?” Fui na cozinha, abri a geladeira e enchi um copo até a borda pra ela, o copo condensava
na minha mão e a água escorria. “Obrigado, meu amor.” Bebeu o copo até a metade. “Você está
tão lindo, sabia? Muito lindo.” Ficou olhando pra mim. “Mas, esses olhinhos tristes. Você tem
os olhos da sua mãe. Parecem com o mar daqui.” Voltou a beber. Tia, perguntei, como é que o
papai já é aposentado? Ele não é velho nem nada. “Aposentado? Não meu bem, ele pediu
afastamento depois que a sua mãe ” a minha mãe, os olhos da minha mãe... olha o que eu achei!
Uma borboleta? Ele entrou em casa, trazia mais ferramentas. “O que faz aqui, Helen?” “Eu
preciso falar com você, Henrique; é coisa séria.” “Vamos no meu escritório. E você,” falando
comigo, “vá para o quarto.” Eles foram, eu subi as escadas, mas só até a metade. Me agarrei no
corrimão e tentei escutar a conversa senti frio, a minha mãe, os lençóis coloridos, o meu lençol,
manchado de terra, a areia coçando o meu olho mas eu não consegui escutar quase nada, só
ouvir gritos, um baque forte logo depois. Tia Helen nunca mais apareceu em nossa casa.

Ela gostava? A mamãe, perguntei. O olhar que ele me gritou, fiquei duro que
nem estátua. Não, me respondeu, sua mãe não gostava de nada que viesse da terra, era boa
demais pra isso, não é? O senhor acha que ela ainda volta? Não. Ela não volta mais, foi embora.
Não fale mais dela. Mas, ela foi pra onde? Você quer calar a boca!? Eu já mandei você não falar
mais dela. Ela foi embora! Acabou. Tive vontade de chorar, fiz força pra segurar a lágrima. Era
difícil insistir com ele. Ele olhou pra mim e depois pro buraco que havia cavado. Sabia que teve
um que eu nunca consegui encontrar?, me disse. Um dos primeiros que eu plantei. Você era
pequeno ainda. Cavei, cavei e cavei, mas não consegui encontrar o danado. Era assim com a
sua mãe, por mais que você cavasse e cavasse, não ia achar. Cheia de segredos. Ela..., ele parou
um instante, apertou a raiz. Eu não sentia os meus membros, Queria ir embora, viver outras
coisas. Não vai voltar mais. Ele virou o rosto para que eu não visse, mas eu vi. Ele estava
chorando. Vamos voltar, ele disse, por fim. Vou preparar isso aqui pra vocês. Vá olhar a sua
irmã.

De volta à casa, a procurei no varando, mas só vim encontra-la na escada, brincando


com o meu carrinho de bombeiro o meu carrinho de bombeiro, eu brincava com ele. Eles
brigavam, ela nunca chorava, minha mãe, os montes subindo, a terra no olho, manchou a
cabeça. Ela era a mais linda de todas do mundo, eu tinha feito pra ela, eu peguei as flores pra
ela, as mais lindas, amarelas, e vermelhas, e azuis, deitada, meu pai cavava, me levou pra
assistir, aprender a trabalhar ela queria ir embora, levar vocês. Descontrolada, sem controle,
me dê isso aqui, pegou o meu lençol de bombeiro, eu estou com frio. Me dê isso aqui. O que
fazem as borboletas? As borboletas são como as abelhas, vão de flor em flor e, por onde elas
passam, vão deixando sementinhas pra outras plantas crescerem, vão desde uma larvinha para
uma lagartinha, até uma linda borboleta. Vamos cuidar bem dela. Quanto mais delas, melhor.
Quer dizer que o ambiente está saudável e o ar é limpo, não é? O meu carrinho de bombeiro,
Maria. Me devolva. Não!, é meu, disse, protegendo o carrinho nos braços. Tentei tomar à força,
mas ela começou a espernear, a gritar, ameaçar choro. Para com isso, me dá. Tomei. Começou
a chorar. Fica quieta. É meu. Não, isso aqui é meu. Não, me devolva. Estendeu os braços. Vi
que tinha um pedacinho de ferro na escadinha do carro. Era um broche. Cinza com uma pedra
verde escura no centro. Brilhava no escuro feche os olhos o que é isso, Maria? É meu, me
devolva, chorando. “O que é isso aí?” A voz vinha debaixo, da cozinha. Era do meu pai. Nada
não! Ele não quer “Como nada?” Cala a boca, toma. Nada não, pai. “Você tome cuidado com
a sua irmã.” Tá certo. Maria, onde você pegou isso? É meu. Calma, eu não vou tomar, eu só
quero saber onde você pegou. No quartinho do papai. Isso não é dele, Maria. Não, é da mamãe.
Ela me deu. Que mentira! Você nem ia se lembrar dela, era muito bebê. Quem não lembra é
você. Era da vó dela, ela disse que eu ia ficar, eu achei. Deixa eu ver. Calma, eu só quero ver,
me empresta. Na minha mão, não era pequeno. Verde. Qual era a cor dos olhos dela? Onde?
Quando?, perguntei. Ela me disse no jardim. Nós nunca tivemos um jardim, Maria, você tá
inventando. Tivemos, sim!, mamãe me levava pra ele, era lindo, tinha flor, borboleta sua mãe
não gostava de nada que viesse da terra, não é? Muitas borboletas quer dizer que o é limpo e
você pode respirar. Verdes. Tristes, como os da sua mãe, o frio que fazia, deitada Uma
borboleta preta de asas verdes e machucadas

“Vamos descendo vocês dois? O jantar está na mesa.” Vamos, Maria. Meu brinquedo,
minha joia! Toma.

Na mesa do jantar, eu perguntei, Pai, já tivemos um jardim? Não, me respondeu, sem


nem olhar pra mim, olhava pro prato, suas raízes vindas do chão. Maria brincava com a comida.

É o que eu digo, uma que você nunca vai ter é o todo, este acesso é impossível, uma
ilusão de crianças. Nascemos naturalmente limitados. Nesta vida, você só pode ter certeza de
uma única coisa: vai haver violência. E é impossível sair dela sem conhece-la, não é, Maria?

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