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SH A K ESPEA R E (1773)

Sc diante de um homem me recordo daquela imagem monstruosa: “sentado no


alto de um penhasco! A seus pés a tempestade, trovoadas e o rugido do mar; sua ca­
beça, porém, na luz do céu"', então estou diante de Shakespeare! No entanto, será
preciso acrescentar que, embaixo, no extremo dos pés de seu trono rochoso, murmu­
ram as multidões que o explicam, salvam, amaldiçoam, desculpam, veneram, difa­
mam, traduzem e incomodam - embora Ele não escute ninguém!
Que biblioteca já não se escreveu sobre ele, a favor e contra! - e de modo al­
gum tenho o desejo de aumentá-la! Antes eu gostaria que, no pequeno círculo que
agora me lê, ninguém mais tivesse a ideia de escrever sobre, a favor e contra ele: de
desculpá-lo e difamá-lo; mas, que se queira esclarecê-lo, senti-lo como ele é, tomando-
-o útil e - se possível! - reconstruí-lo para nós alemães. Que essas páginas possam
contribuir para isso!
Os inimigos mais audaciosos de Shakespeare - e que aspecto variado não assu­
mem! - o desculparam e dele zombaram, pelo fato de que, mesmo sendo um grande
poeta, não era, todavia, grande dramaturgo e, caso o fosse, não seria um dramaturgo1

1. Ciiaç3o de de Mark Akenside, The Pleasures o f Imagination [Os Prazeres da Imaginação]; 1744, III,
versos 550-559. Mas 6 possível que Herder também lenha em mente o poema de Wilhelm von Gers-
tenberg. Der Skalde (O Escaldo]; 1766 I. versos 23-26 e 30-32. Escaldo era a designação para “poeta"
na antiga Escandinávia. A imagem do “Deus gigante" em Espinoza, como retomada de Lucrécio, De
Rerum Naiura [Da Natureza das Coisas], II, versos I e ss. e a tradição órfica também podem ser tidas
como referência, bem como um poema do próprio Herder, Selbstgesprach [Monólogo) onde o nome de
Shakespeare é mencionado com a mesma metáfora. [N.T.]

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/-St MIOS SOBIU. t S T f l h A í IJTtXKTLRA

lio clisMCo coino Sófocles, Euripedes. Carneillc c Yoltaire. os quais exploraram


tudo o que é grandioso c pleno nessa arte. E os audaciosos amigos de Shakespeare1
geral mente se contentaram somente em desculpá-lo quanto a esse ponto, de salvá-
lo de avaliar c compensar suas belezas apenas como se fossem uma afronta contra
as regras’; de declarar o absolvo ao réu e. assim, tanto mais endeusar o que realizou
de grandioso quanto mais precisaram elevar os ombros por causa dos erros. Essa é
ainda a situação junto aos mais recentes editores c comentadores dele234*- e eu espero
que essas páginas possam modificar o ponto de vista c que sua imagem se coloque
sob uma luz mais completa.
Mas não seria essa esperança muito audaciosa? De se arrogar contra tanta
gente grandiosa que já (ratou dele? Discordo. Quando cu mostro que de ambos os
lados apenas se construiu um preconceito, uma ilusão que nada é. se apenas tenho
que tirar uma nuvem diante dos olhos ou no máximo ajeitar melhor a imagem, sem
minimamente modificar algo no olhar ou na imagem: então talvez a minha época ou
um acaso possam ser culpados de cu ler acertado o ponto, com o que cativo o leitor.
“Pare aqui! Ou você nào verá nada mais que uma caricatura!"4 Sc devemos sempre
apenas enrolar e desenrolar o grande novelo da erudição, sem de modo algum avan­
çarmos com ele - que destino triste é esse fiar infernal'*

Foi da Grécia que herdamos as palavras drama, tragédia e comédia; e assim


como a cultura da escrita do gênero humano tomou o caminho de uma estreita faixa
do globo terrestre apenas por meio da tradição, também foi herdada naturalmente por
todos os lados, no seio desta tradição e com sua linguagem, certo acervo dc regras que
parecia inseparável da doutrina. E uma vez que é impossível que a formação de uma

2. Alusão a Alexander Pope e Samuel Johnson cm seus prefácios apologélicos de edições das obras de
Shakespeare, respectivamente de 1726 e 1747. (N.T.)
2. Referência às chamadas três unidades aristotélicas: de ação, de tempo e de lugar. [N.T.]
4. Referência a Christoph Martin Wieland. em sua edição alemã intitulada Shakespeare theatralische Werke
[As Obras Teatrais de Shakespeare], 8 vols., 1762-1766. [N.T.]
3. Alusão a Gerstenberg, que tentou classificar as obras de Shakespeare a partir da tipologia sugerida por
Polônio no Hamlet (cf. infra, nota 43 deste ensaio). [N.T.]
6. Alusão à Penélope, que na Odisséia de Homero sempre desfazia de noite o manto mortuário que tricotava
durante o dia para o sogro Laerte, a fim de se livrar dos pretendentes que a abordavam na ausência do
marido Ulisses. Ou seja, tal como Penélope, também os comentadores que procuram valorizar Shakes­
peare não chegam a lugar algum. Por outro lado, é interessante perceber que Herder empregará mais
adiante novamente essa metáfora do novelo, para tratar do labirinto de cenas no drama de Sófocles. Da
mesma forma, na abordagem de Shakespeare lidará com o motivo da aspiração de Aristóteles de ver
em Sófocles ura novo Homero. [N.T.J

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SH AKESPEARE (1771)

i-riaiwa possn (Korrcr c ocorra por meio da razão; mas antes pela visão, impressão e
K
ti\ iihIaJ c do exemplo c do hábito, assim nações inteiras são ainda mais crianças em
tudo o que aprendem. A semente não crescería sem o invólucro e elas também não
alcançarão nunca a semente sem o invólucro, mesmo que não possam fazer nenhum
uso do invólucro. Esse é o caso do dram a grego e nórdico.
Na Grécia surgiu o dram a como não poderia ter surgido no Norte. Ele foi na
Grécia o que não pode ser no Norte. Portanto, no Norte ele não foi e também não
deve ser o que foi na Grécia. Portanto, o drama de Sófocles e o drama de Shakespeare
são duas coisas que, em certo sentido, mal tem em comum o nome. Acredito poder
provar essas afirmações a partir da própria Grécia e justamente desse modo decifraj
a contento a natureza do drama nórdico e do maior dramaturgo do Norte, Shakes-
peare. Veremos a gênese de uma coisa por meio da outra, mas ao mesmo tempo a
transformação, de modo que ela não mais permanecerá a mesma7.

* * *

A tragédia grega surgiu como que de uma única cena, do impromptu do diti-
rambo, da dança mímica, do coro. Esse alcançou um crescimento, uma transfigura­
ção: Esquilo trouxe para o palco duas pessoas agindo, em vez de uma, descobrindo
assim a personagem principal e diminuindo o elemento do coro. Sófocles acrescentou
a terceira pessoa, inventando o palco - a partir de tal origem, mas tardiamente, o
teatro grego elevou-se à sua grandeza, tornando-se obra-prima do espírito humano,
ponto culminante da arte poética, que Aristóteles louva tanto e que nós não podemos
deixar de admirar com profundidade suficiente em Sófocles e Eurtpedes.
Mas vemos ao mesmo tempo que, a partir dessa origem, são passíveis de expli­
cação certas coisas que, de outra forma, admiradas como regras mortas, somos obri­
gados a desconhecer terrivelmente. Aquela simplicidade da fábula grega8, aquela
sobriedade dos costumes gregos, aquele elemento constante do coturno na expres­
são9, a música, o palco, a unidade de tempo e lugar - tudo isso residiu, sem arte

7. Essa formulação transpõe para a história do teatro uma noção da Ética de Espinosa destinada ao âmbito
da natureza: a forma de um corpo finito será explicada por outro corpo, tendo em vista que a matéria
infinita encontra-se em constante transformação. N5o se trata de explicar a origem do teatro grego, e sim
sua transformação. Ressalte-se que Herder operará, ao longo de todo o ensaio, com uma reciprocidade
e oposição entre o teatro antigo (Sófocles) e o teatro moderno (Shakespeare), a partir das noções de
simplicidade e multiplicidade. [N.T.]
8. Alusão à Poitica, 13. 1453b alO e ss. de Aristóteles, onde se lê que a melhor fábula deve antes ser sim­
ples do que complexa, isto é, passar da felicidade para a infelicidade, devido a um enro do personagem.
Liga-se a isso a unidade da ação da fábula (Poética 8, 1451a 15 e ss.). [N.T.]
9. O coturno é uma bota de salto alto introduzida por Ésquilo para servir ao ator nos papéis trágicos, para

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ESCRITOS SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA

e magia, tão natural e essencialmente na origem da tragédia grega, que essa, sem
todo o enobrecimento, não teria sido capaz de tudo aquilo. Tudo isso foi o invólucro
no qual cresceu o fruto.
Recuai à infância daquela época: a simplicidade da fábula residiu de fato tan­
to no que se chamava de ação da pré-história, da república, da pátria, da religião,
que se chamava de ação heróica, que o poeta tinha antes dificuldade para descobrir
as partes nessa grandiosidade singela, para introduzir dramaticamente o começo, o
meio e o fim do que era capaz de separá-las e amputá-las violentamente ou de con­
feccionar a partir de muitos eventos separados um todo único. Quem alguma vez
já leu Ésquilo ou Sófocles, nunca achará isso incompreensível. Junto ao primeiro a
tragédia é muitas vezes uma pintura alegórica-mitológica, semi-épica, quase sem
sequência de cenas, de história, de sentimentos ou, como diziam os antigos, apenas
ainda coro, ao qual se interpunha alguma história. Houve aqui o menor esforço e
arte para a simplicidade da fábula? E era diferente na maior parte das peças de Só­
focles? Seu Filoctetes, Ajax, o Édipo banido e assim por diante aproximam-se ainda
muito do carácter único de sua origem, da imagem dramática no meio do coro. Não
há dúvida! É a gênese do palco grego.
Vejamos o quanto se segue da observação simples. Nada menos que: “o arti­
ficial de suas regras não era arte! era natureza!” - unidade da fábula - era unidade
da ação que se encontrava diante deles; que não podia ser senão desse todo único,
segundo suas circunstâncias de tempo, da pátria, da religião e dos costumes. Unida­
de de lugar - era unidade de lugar; pois a ação única, breve e cerimoniosa ocorria
apenas em um único lugar, no templo, no palácio; por assim dizer num mercado da
pátria; assim ela foi reproduzida no começo apenas mímica e narrativamente e in­
tercalada; assim acrescentaram-se por fim os episódios [Auftrittte], as cenas - mas
tudo naturalmente ainda uma única cena. Onde o coro amarrava tudo, onde o palco,
segundo a natureza da questão, nunca podia ficar vazio e assim por diante. E que a
unidade de tempo, pois, se seguiu disso e naturalmente o acompanhava - para que
criança era preciso comprová-lo? Todas essas coisas residiam então na natureza, de
modo que sem elas o poeta nada podia com sua arte!
Certamente se vê também: a arte dos poetas gregos tomou inteiramente o ca­
minho oposto ao que hoje se atribui a eles aos gritos. Eles não simplificavam, penso
eu. e sim multiplicavam: Ésquilo o cara, Sãfaclcs a Ésquilo e basta comparar apenas

«|ue pudesse IjmiIh‘ih sei sisiu [x-lm ri|> nU iliiio sentado* iiuis limpe it«» pjlew. 1'onleriJ eles 4^0
e sublimidade ao papel deseiiijicnludo. jiriitu.iiidn o mudo da espiessJo |\u isso. a f>>rniuljsA>> de
llerder vis* jusUnirnie a i| ujMj pjite do uapedia. 4 elo* u\âo ou linpujpeiu. sepundo j cUtsih*. ji,1o dj
IWticti 6. IJMth 10. |N 1 |

::u
SH AKESPEARE (1773)

as peças mais artificiais do último, e sua grande obra-prima, o Édipo em Tebas, com
o Prometeu ou com os relatos do antigo ditirambo, para vermos a admirável arte
que ele conseguiu introduzir, M as nunca se tratava de fazer uma arte transformando
o múltiplo em algo único, m as antes transform ando o uno em algo múltiplo, em um
belo labirinto de cenas, junto às quais sua m aior preocupação consistia em manter
seus espectadores nos lugares m ais com plicados do labirinto, na ilusão do uno ante­
rior, de desenrolar o novelo de seus sentim entos de modo tão suave e pau lati namente
como se eles ainda o tivessem por inteiro, isto é, o sentimento ditirâmbico anterior.
Para isso ele lhes adornava a cena, mantendo o coro e tornando-o lugares de descanso
da ação, m antinha a visão do todo para todos, com cada palavra, na expectativa, na
ilusão do devir, do já possuir [Schonhabens] (o que o instrutivo Eurípedes, logo de­
pois, quando o palco mal estava constituído, novamente desperdiçou!). Em suma, ele
deu grandiosidade à ação (uma questão que assustadoramente não se compreendeu).
E jjjae Aristóteles soube valorizar em Sófocles essa arte de seu gênio e justa-
mentcjem,tudo queé_quase o contrário do que as épocas modernas preferiram extrair
dele, deveria ficar claro para cada um que o leu sem ilusão e no ponto de vista de sua
época. Justam ente tam bém deveria ficar claro o fato de que Aristóteles abandonou
Téspis e Ésquito e se ateve inteiram ente ao Sófocles que poetiza de modo variado;
que ele justam ente partiu dessa sua novidade para introduzir nela a essência do novo
gênero poético; que tornou-se sua ideia mais cara desenvolver um novo Homero e
compará-lo de modo tão vantajoso com o primeiro; e que ele não esqueceu de nenhu­
ma circunstância inessencial que pudesse apoiar em sua representação seu conceito
de uma ação que possui grandeza. - Tudo isso mostra que o grande homem tam ­
bém filosofou no sentido grandioso de seu tempo e de modo algum é culpado pelas
estropiações estreitantes e infantis que. atribuindo-se a ele. mais tarde se pretendeu
transformar em base de papel do palco. Certam ente, em seu excelente capítulo so­
bre a essência da fábula, "ele não reconheceu e soube de outra regra senão o olhar
do espectador, a alm a, a ilusão!" e diz expressam ente que não se pode determinar
por nenhuma regra os limites de sua extensão e, assim, muito menos a espécie ou o
tempo e o espaço da construção. Ó se A ristóteles ressuscitasse e visse o uso falso,
contraditório de suas regras em dram as de uma espécie inteiramente diferente! - Per­
maneçamos, porém, de preferência na investigação calma e tranquila.

** *

Assim como tudo se modifica no mundo: teve de modificar-se também a natu­


reza que propriam ente criou o dram a grego. A constituição do mundt'. os costumes,
a situação das repúblicas, a tradição da época heróica, a crença, mesmo a música.
ESCRITOS SO BRE ESTÉTICA E LITERATURA

a expressão, a medida da ilusão se m odificaram: e naturalm ente tam bém sumiu a


matéria para as fábulas, a oportunidade para a elaboração e o motivo para a finalida­
de. Certam ente pôde-se trazer de volta o que é m ais antigo ou mesmo algo estranho
de outras nações e revestir com a m aneira10123em voga: isso resultou em tudo menos
no efeito11; por conseguinte, em tudo isso tam bém não se encontrava a alm a, logo,
também não era m ais a coisa (por que devemos brincar com as palavras?). M arione­
te, cópia, m acaco^estátua1*, no qual apenas a cabeça m ais devota poderia encontrar
o demônio.que vivifica.a estátua. Deixem-nos passar logo para os novos atenienses
da Europa0 (pois os romanos eram muito estúpidos ou muito inteligentes, muito sel­
vagens e desm edidos para construir um teatro inteiram ente grecizado) e a questão,
parece-m e, ficará clara.
Tudo o que é marionete no teatro grego certam ente não pode ser m elhor pensa­
do e reproduzido do que o foi na França. Não quero pensar m eram ente nas cham adas
regras teatrais, que se atribuiu ao bom Aristóteles14, unidade de tempo, de lugar, de
ação, ligação entre as cenas, verossimilhança do cenário etc., mas perguntar de fato
se acim a da brilhante e clássica coisa, fornecida pelos Corneille, Racine e Voltaire,
acim a da série de belas cenas, diálogos, versos e rimas, com a regularidade, a ri­
queza e o brilho, algo é possível no mundo? O autor desse ensaio não apenas duvida
disso, mas justam ente todos os adm iradores de Voltaire e dos franceses, e m esmo
esses nobres atenienses, negá-lo-ão - e já o fizeram suficientemente, o fazem e o fa­
rão, "não há nada acima disso! isso não pode ser superado!", e sob o ponto de vista
da convenção, da marionete colocada no tablado, eles têm razão; e de fato devem ter
cada vez m ais razão em todos os países da Europa, dia após dia, quanto m ais nos
inebriam os com o que é cintilante e macaqueam os isso.
A pesar de tudo isso, fica um sentimento opressor e irresistível, "de que isso não
é uma tragédia grega! não é um dram a grego com a finalidade, o efeito, a espécie e a
essência!" e o partidário venerador dos franceses, depois de ter sentido os gregos, não
pode negá-lo. Não quero nem investigar “se eles tam bém observam seu A ristóteles

10. M anter significa nesse contexto o conceito estético de ‘'m aneira", enquanto um mudo dc operar
subjetivo, algo como um procedimento estilístico de uma época |N .T.|
11. Wurkung ou Wirkung (segunda a escrita m oderna) é um dos c o n c eito s-c h tv e de tlerdcr fm
sentido orgânico, o efeito pode apenas ser operado no âmbito do núcleo (nào do invólucro), no hiwuonie
da alma como uma característica peculiar individual. [N.T.]
12. Ksses term os rem etem uo que é exterior e m enos im portante dc um a coisa, em bora seja a
expressão dc algo interior, I:xxa terminologia lembra o Trmir d e » senuirnwit 11 ralado das Sensa^iVs)
(1764), de Condiltac. |N .T |
13. Referência irônica aos dramaturgos do classicismo francês. |N I |
14. Alutftu aos Icóijcus do drama francês e suas obras o /J n r o u r t Jt% m u i unires |l>iscutso sobre
Três Unidadesj (1660) de í*«*ncillc, o Art /W fiq u r |A ltc Poética) (1674) dc Ibuleau c o Itatlv du
ftoèmt épiqur |Tratado sobre o Poema fqncoj 11 /(rl| de Kem* l e llossus |N T )
W M A M r t A M (/.*•» i

ik acordo com a ' rrgrav. Inl como cies mesmos promulgam, contra cujas gritantes
prrunMV^ /.fMinç rcccnlcmm tc suscitou terríveis tltívulas"1'. Admitido tudo isso.
o drama não é o mesmo, por que ’ Por que no interior nada é igual àquele, não há
ação. costumes, linguagem, finalidade, nada - c de t|uc serve, portanto, tudo o que
( exterior ow servado de modo tão igual? Alguém acredita que um herói do grande
tYxncille é um herói romano ou francês? Heróis espanhóis segundo Sêneca!1* Heróis
galantes, aventureiros corajosos, magnânimos, apaixonados e cruéis, portanto ficçòes
dramáticas, que fora do teatro se chamariam de loucos e que na época, pelo menos
na França, já eram meio estranhos e agora o sào totalmente na maioria das peças -
é isso que eles são. Racine fala a linguagem do sentimento - sem dúvida, segundo
esse único legado que se lhe concedeu não há nada acima dele; mas, afora isso - eu
não saberia onde um único sentimento assim se exprime. São quadros de sentimento
de terceira mão; nunca ou raramente as manifestações imediatas, primeiras e não
maquiadas, tal como procuram palavras e finalmente as encontram. O belo verso de
Voltaire, sua elegância, o conteúdo, a economia nas imagens, o brilho, a galanteria15167,
a filosofia - ele não é um belo verso? Sem dúvida! O mais belo que talvez se possa
imaginar, e se eu fosse um francês eu entraria em desespero se tivesse que fazer um
verso depois de Voltaire - mas belo ou não, não é um verso de teatro! Para a ação, a
linguagem, os costumes, as paixões, a finalidade de um drama (diferente do francês)
é uma eterna retórica escolar18, uma mentira e galimatia! E a finalidade de tudo isso?
De modo algum uma finalidade grega, trágica! Uma bela peça se fosse também uma
bela ação a ser levada ao palco! Uma série de senhores e damas bem-comportados
e bem vestidos, com belos discursos, também a mais bela e útil filosofia recitada em
belos versos! poetizar tudo isso também em uma história, que nos dá uma ilusão de
representação e que, portanto, atrai para si a atenção! E, por fim, deixar representar
tudo isso por meio de um número de senhores e damas bem treinados, que de fato
se aplicam muito na declamação, na solenidade das sentenças, na exterioridade dos

15. Nas partes 36-50 da Dramaturgia de Hamburgo dc Lessing, em particular o trecho da parte 46.
onde se lê: “Uma coisa é acomodar-se às regras e outra i realmente observá-las. A primeira é o que
fazem os franceses; a segunda, só os antigos parecem haver compreendido" (De Teatro e Literatura,
1992, pp. 44-45). [N.T.]
16. Referência à acolhida de materiais espanhóis no teatro francês, no caso o Cid de Comeille (inspirado
no drama espanhol Os Feitos da Juventude de Cid de Guillén de Castro (1569-1631) e no Cina de
Sêneca) e a Fedra de Racine (inspirada também na Fedra de Sêneca). Também está em questão a
herança estilística de Comeille e Racine, que remete à tradição do teatro de Etirípedes e Sêneca. [N.T.]
17. Preferimos traduzir Witz por "galanteria" e não “chiste", pois se trata aqui de uma crítica de
Herdcr ao princípio formal do “esprit", o dom de observação analítico e racional, que tinha justamente
em Voltaire um dos principais representantes do Iluminismo. [N.T.]
18. Schulchrie no original. A Chrie é uma elaboração segundo regras retóricas rígidas de um tema
previamente estabelecido, uma estrutura argumentativa esquemática. [N.T.]

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ESCRITOS SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA

sentimentos, com dedicação e agrado - tudo isso podem ser finalidades excelentes
e as melhores para uma leitura viva, para o exercício na expressão, na postura e na
abastança, para a pintura de bons costumes e inclusive heroicos e, por fim, uma com­
pleta academia da sabedoria nacional e da decência na vida e na morte (desviando de
todas as finalidades secundárias), belo! culto! instrutivo! excelente! Mas, tudo junto,
nem pé nem cabeça da finalidade do teatro grego.
E qual era a finalidade? Aristóteles o disse e discutiu-se bastante sobre isso -
nada mais nada menos do que certo abalo do coração, a comoção da alma em certa
medida^ ejm certos aspectos, em suma! um gênero de ilusão que, verdadeiramente!,
nenhuma peça francesa conseguiu ainda realizar e nem realizará. E, por conseguinte,
não é um drama grego (mesmo que seja tão magnífico e útil como se queira)! Não é
o teatro de Sófocles. Como marionete ainda lhe é semelhante; mas ã marionete fal­
ta espírito, natureza, verdade - e assim todos os elementos da comoção - e assim a
finalidade e o alcance da finalidade - ainda é a mesma coisa?
Com isso nada foi decidido ainda sobre o valor e o desvalor, estaríamos fa­
lando meramente da diferença, que acredito ter colocado fora de dúvida com o que
acabei de dizer. Deixo a cargo de cada um decidir por si mesmo “se uma cópia de
tempos, costumes e ações estranhos, com a finalidade preciosa de torná-la capaz_ou
semelhante a uma representação de duas horas19 sobre um tablado, pode ser igualada
ou colocada acima de uma imitação [Nachbildung] que, em certo sentido, era a su-
prema natureza nacional”; se um poema, cujo todo propriamente não tem nenhuma
finalidade (e da qual cada francês se desviará cantando) - o bem, segundo a confis­
são do melhor filósofo, é apenas um acréscimo no detalhe - se tal poema pode ser
comparado a uma instituição nacional202 1onde em cada pequena circunstância residia
o efeito, a suprema e mais pesada cultura; se, por fim, não deveria chegar uma época,
quando a maior parte e as mais artificiais peças de Corneille estarão esquecidas, em
que veremos com a mesma admiração Crébillon e Voltaire tal como agora se vê a
Astreia do senhor von Urfe21 e todas as Clélias e Aspásias da época dos cavaleiros".

19. Referência ao Discours des Irois unités [Discurso sobre as Três Unidades] de Corneille, também
criticado por Lessing na pane 45 da Dramaturgia de Hamburgo. |N.T.|
20. Alusão ao fato de que as tragédias gregas eram uma cerimônia religiosa, no âmbito das Dioni-
sfadas. |N,T,|
21. lionoré d'Urfé (1568-1625). autor do romance pastoral l.’A\trée (1607-1627). nu traduzo nlenü
Auràa (1619). |N.T.|
22. Clélia 6 a heroína do romance de Madcleine de Scudéry, intitulado Ctétie. hiuoire nmuiine |C!éliu.
história romana| (1654-1660), um romance galante no qual a burguesia e ligurada por máscaras roma­
nas. A\fHÍ\iu é uma narralivu de Wicland. na qual é ridiculari/ada a literatura galante Iruncesu em suj
obsessão por ternas amorosos. Clélia e Aspásia sâo, portanto, tipos do ideal feminino extravagante c
exagerado da literatura da primeira metade do século XVII |N.T.|

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SHAKM rM M . í/77»|

“thcio dc inteligência c sabedoria. cheio tlc invenção c trabalho! quanto nfio se po-
dem «prender delns! quanto - mus. pena! que é por meio da Aslreia c da Clélia".
0 todo de sua arte d sem iinlurc/.n. é nventuroso, repulsivo! F;cli/cs seríamos se já
loesscmos chegado no gosto dn verdade! Todo o drama francês teria se transforma-
Jo numa coletânea de belos versos, sentenças, sentlments” - mas o grande Sófocles
ainda permanecerá tal como ele é!

***

Deixe-nos, pois, supor um povo que, a partir das circunstâncias que não nos
cabe investigar, tivesse vontade de, em vez de macaquear e se satisfazer com a casca
danoz, inventar ele mesmo seu drama: parece-me, então, que a primeira pergunta
seria: quando? onde? sob quais circunstâncias? a partir de que o fariam? e não se­
ria necessária nenhuma prova de que a invenção não será e não poderá ser senão o
resultado dessas perguntas. Se ele não tira seu drama do coro, do ditirambo, então
ele também não pode ter nada do tipo do coro, do ditirambo. Se não tem à sua dis­
posição tal simplicidade dos fatos da história, da tradição, do que é[doméstico, das
relações estatais e religiosas - naturalmente ele não pode ter nada disso. Seu drama,
quando possível, irá inventar-se segundo sua história, segundo o espírito do tempo,
dos costumes, das opiniões, da linguagem, dos preconceitoj^nacionais, das tradições
e das paixões, mesmo que oriundas do entrudo e do jogo de marionetes (justamente
como o fizeram os gregos nobres a partir do coro) - e o inventado será drama, caso
alcance junto a esse povo uma finalidade dramática. Estamos, como se vê, no

Toto divisis ab orbe Britannis232425


E seu grande Shakespeare.

Que ali, nessa época e antes dela não havia nenhuma Grécia, não negará ne­
nhum pullulus Aristotelis25, e querer exigir aqui e ali, portanto, um drama grego, que
nasça naturalmente (não falamos de nenhuma macaqueação), é irritante tal como que­
rer que um carneiro conceba leões. A primeira e a última pergunta que se pode fazer:
“como é o solo? Para o que foi preparado? O que foi semeado nele? O que ele pode­
ría fornecer?” - e céus! Como estamos aqui longe da Grécia! A história, a tradição,

23. Em francês no original: “sentimentos". [N.T.]


24. "Entre os britânicos, separados de todo o universo", citação modificada de um verso de Virgílio,
Écloga, I, 66. No original: “Et penitus toto divisos ab orbe Britannos" (Os britânicos separados de
todo o globo terrestre). [N.T.]
25. Em latim no original: “pintinho de Aristóteles”. [N.T.J

225
ESCRITOS SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA

os costumes, a religião, o espírito do tempo, do povo, da comoção, da linguagem -


como estamos longe da Grécia! Conhecendo muito ou pouco as duas épocas, o leitor
não confundirá em nenhum momento o que não possui nada semelhante. E se nesse
tempo modificado, feliz ou infelizmente, houvesse justam ente uma única época, um
único gênio, que tiraria de sua matéria um a criação dram ática tão natural, grandio­
sa e original, assim como os gregos o fizeram a partir de seu m aterial - e se essa
criação atingisse o mesmo propósito justam ente pelos cam inhos mais distintos, pelo
menos em si algo simples múltiplo e algo múltiplo simples e que - portanto (segun­
do todas as definições metafísicas) seria um todo perfeito - quem seria tolo a ponto
de ficar comparando e mesmo condená-lo, porque esse segundo não é o primeiro? E
toda sua essência, virtude e perfeição reside no fato de não ser o primeiro: o fato de
que do solo da época justam ente brotou a outra planta.
O que Shakespeare encontrou diante de si e em torno de si nada tinha da sim­
plicidade dos costumes da pátria, nos feitos, nas inclinações e nas tradições históricas
que constituíram o drama grego. E uma vez que, segundo o prim eiro enunciado m e­
tafísico do saber, do nada nada vem, não teríamos tido, de acordo com os filósofos,
não apenas um dram a grego, mas, se de fato nada mais existe, não teria havido mais
nenhum outro drama no mundo e nem poderia haver. Mas, uma vez que o gênio, como
se sabe, é m ais do que o filósofo26, e o criador é algo diferente de um analista: então
foi dado a um m ortal, imbuído da força dos deuses2728, a partir da m atéria oposta e
com a mais distinta elaboração provocar o mesmo efeito, temor e compaixão ! e am ­
bos num grau que aquela primeira matéria e elaboração poucas vezes foi capaz de
produzir! Afortunado filho dos deuses em seu empreendimento! Justam ente o novo,
o primeiro, o que é inteiramente distinto mostra a força originária de seu ofício.
Shakespeare não encontrou um coro diante de si; mas certam ente peças itine­
rantes3®e jogos de marionetes - muito bem! foi a partir disso, das peças itinerantes e
do jogo de marionetes, a partir dessa má argila! que ele plasmou a criação magnífica
que se encontra aí diante de nós e vive! Ele não encontrou um caráter do povo e da
pátria tão simples, mas uma variedade de estamentos, tipos de vida. mentulidades.
povos e dialetos - a aflição diante do passado teria sido em vão; portanto, ele poe­
tizou estamentos e homens, povos e dialetos, reis e bobos da corte, bobos da corte

26. A lusio às H rflrxA n de Yourtg. que distingue a genialidade, com» ciínctu n u la. da e ru d ito ,
torno t ifncm emprestada |N.T.|
27. f-ksu imugem jú surge ei» Lucrécio. t i r Rrrum Nulura | | ) j Natureza das Coi%as|. com eto do*
livros I. III c V. rni seu louvor ■ hpicuro |N T.|
28. Slaaiii/iirlr ou Sluiiluikiiiwrn designam |>e\as de teatin que eram riuenadas por irupe» itine­
rantes c em sua maior parte parodias cômicas. tom conteúdos históricos e políticos tpni i*so o termo
Slanl-). |N T |

-’2fl
W M M \ r i A * f (1771 1

c m « para um l«xlo m ngnílim ' I Ir min encontrou um espírito lâo simples da histd-
na. «Ia fábula. «Ia «çâo. cie tomou n história Inl como n encontrou c com um espírt-
10 ctia«t«H m m m ns coisas mais diversas cm um todo mágico, o «pie nós queremos
denominar, se não rtfilo no entendimento grego, ação no sentido da época medieval
«xi. na linguagem «Ia época moderna, cvrnln (evenemetU), grande acontecimento - 6
AnsitMcIcs. como você n5o homcriz.aria o novo Sófocles!29301Irias pocti/ar sohre ele
uma teoria tão própria, que agora seus compatriotas. Home e Hurd. Pope c Johnson,
ainda não poetizaram! Você alcgrar-sc-á de poder extrair de cada uma de suas peças
a ação, o caráter, o modo de pensar, a expressão, o palco™, tal como se faz com os
dois pontos de um triângulo, que no alto se encontram em um único ponto, com uma
finalidade e perfeição*'! Você diria para Sófocles: pinte a folha sagrada desse altar!
c para vocc, ó bardo nórdico, diria que pinte todos os lados e paredes desse templo
em um afresco im ortal!32
Permitam*me continuar como intérprete e rapsodista: pois estou mais próximo
de Shakespeare do que do grego. Se neste impera a unicidade de uma ação, aquele
trabalha para o todo de um acontecimento, de um evento. Se junto a este predomina
um único tom dos caracteres, naquele predominam todos os caracteres, estamentos e
espécies de vida, tantos quanto são capazes e necessários para constituir o tom prin­
cipal de seu concerto. Se neste impera uma única linguagem fina cantante, tal como
numa idade avançada, aquele fala a linguagem de iodas as idades, de todos os homens
e espécies de homens, ele é o tradutor da natureza em todas suas línguas33 - e em
caminhos tão distintos ambos são familiares a uma única divindade? - e se Sófocles
representa, ensina, comove e forma gregos, Shakespeare ensina, comove e forma
homens nórdicos! Quando o leio, desaparecem o teatro, o ator e o bastidor! Puras
folhas esvoaçantes isoladas na tempestade das épocas, a partir do livro dos eventos,

29. Afirmação que rem ete à Poética de A ristóteles, que tem como um de seus objetivos centrais
comparar Sófocles a Homero, no sentido de que Sófocles seria um novo Homero. Por outro lado,
considerando-se que em Shakespeare predominam conceitos tipicamente épicos, tal como o evento e
o acontecimento, no lugar da ação, poder-se-ia dizer que aos olhos de Herder o verdadeiro Homero é
de fato Shakespeare. IN.T.]
30. Referência às seis partes da tragédia, segundo a Poética 6. 1430a 5- 1450b 20, de Aristóteles:
a composição da ação ou fábula, os caracteres, o pensamento (objetos da imitação), a elocução e a
melopéia (os meios da imitação) e. por fim, o cenário ou espetáculo teatral (modo da imitação). [N.T.]
31. Vótlkommenheit: o termo rem ete à escola de Baum garten e diz respeito à característica a ser
atingida pelo conhecimento sensível estético. Já Kant, na Crítica da Faculdade de Julgar, nega que o
prazer sensível possa ser perfeito. [N.T.J
32. Herder ilustra com essa imagem a oposição que introduziu anteriormente, entre a simplicidade
do teatro de Sófocles e a multiplicidade do teatro de Shakespeare. [N.T.]
33. Zungem a palavra alemã refere-se ao órgão humano e não a uma língua como linguagem, por
exemplo, português e alemão. fN.T.J

227
ESCRITOS SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA

da providência, do mundo! - traços m arcantes dos povos, estam entos, almas! que
são todos as mais diversificadas m áquinas e atuando o mais separadam ente possível,
todos - o que somos nas mãos do criador do mundo - instrum entos inscientes, cegos
para o único todo de uma imagem teatral, de uma única grandeza de um evento dado,
que apenas o poeta abarca com a visão. Quem pode im aginar um poeta maior da
humanidade nórdica e da época!
Tal como diante de um m ar de eventos, quando um a vaga m arulha noutra
vaga, coloque-se diante de seu palco. As cenas da natureza avançam e recuam; fa­
zem efeito uma sobre a outra, por mais disparatadas que pareçam ; produzem -se e se
destroem, para que se realize o propósito do criador, que parece ter associado todos
no plano da embriaguez e da desordem - pequenos símbolos escuros para o traçado
solar de uma teodiceia de Deus. Lear, o espírito apressado, acalorado, nobremente
fraco, tal como se encontra ali diante do mapa de seu país, presenteando coroas e
destruindo terras, - na primeira cena de aparição ele já traz em si todas as sementes
de seu destino para a colheita do mais negro futuro. Veja! O bondoso esbanjador, o
homem impetuoso, o pai infantil; ele logo estará, mesmo nos átrios de suas filhas,
suplicando, orando, esmolando, amaldiçoando, sonhando, abençoando - ó Deus! - e
pressentindo a loucura. Logo estará com a cabeça desnuda sob trovões e relâmpago,
rebaixado às classes mais baixas dos homens, na com panhia de um bobo e na caver­
na de um mendigo desvairado, como que suplicando a loucura do céu. E agora ele é
o que é, em toda a leve majestade de sua miséria e abandono; e então se recobran­
do, ilum inado pelo último raio de esperança, para que essa se apague eternam ente,
eternamente! Aprisionado, em seus braços a benfeitora m orta, a que lhe perdoou, a
criança, a filha! Ele, morrendo sobre seu cadáver, e o velho servo seguindo o velho
rei na morte. Deus! Que alternância dos tempos, das circunstâncias, da tem pestade,
das estações, das épocas! E tudo isso não apenas uma única história - uma peça de
heróis e situações políticas, se quiser! De um único início até um único fim. segundo
as rigorosas regras de seu Aristóteles; mas aproxime-se, e sinta o espírito humano.
que também ordenou cada pessoa, idade, caráter e acessório no quadro. Dois velhos
pais e todos seus filhos tão diferentes! O filho de um deles desafortunadam ente agra­
decido ao pai ludibriado, o outro m edonhamente desagradecido e abominavelmente
afortunado diante do pai bondoso. Aquele contra us filhas! Estas contra ele! Seus es­
posos, pretendentes e cúmplices na felicidade e na infelicidade. O cego Glosier nos
braços do filho que ele não reconheceu, e o Lear louco aos pés de sua filha expulsa!
E finalmente o instante da encru/illiadu da felicidade, quando (iloster morte embaixo
de sua árvore e a trombeta soa, todus us circunstâncias acessórias, as motivações, os
caracteres e as situações poeticamente inseridos - tudo em jogo! Se desenvolvendo
para um único todo - reunido pura um todo constituído de pai-e-filhos, rei-e-bohos.

m
SnAKHSrMRhH 177.1)

mendigt **c •m iséria, mus onde respira por ioda parle, nas mais disparatadas cenas, a
alma do evento, onde mesmo os lugares, os tempos, as circunstâncias, diria mesmo,
a lilosotia pagà do destino c do injluência dos astros, que domina por completo, per­
tencem de tal modo a esse todo que eu não poderia modificar, substituir nada, trazer
algo de outras peças ou transpor dessa peça para outras peças. E isso não seria um
drama? Shakcspcarc não seria um poeta dramático? Que abarca com os braços cem
cenas de um evento mundial, ordena com o olhar, preenche com a alma única, que
tudo anima e vivifica - e ele não arrastaria consigo, do começo ao fim, a atenção, o
coração e todas as paixões, toda a alma? Sc não mais, deve o pai Aristóteles dar o
testemunho, "a grandiosidade do ser vivo só pode ser abarcada por meio de um único
lance de vista" - e aqui - céus! como o todo do evento é sentido continuadamente e
terminado com a mais profunda alma! Um mundo de história dramática, tão grande
e profundo como a natureza; mas, o criador nos dá o olhar e o ponto de vista para
vermos tão grandiosa e profundamente!
No Otelo, o mouro, que mundo! Que todo! História viva de nascimento, progres­
são, irrupção e triste fim da paixão desse nobre infelizl E em que plenitude e conver­
gir das rodas para uma única obra! Como esse lago, o diabo na figura humana, vê o
mundo e brinca com todos os que estão a seu redor! E como este grupo particular,
um Cássio e um Rodrigo, Otelo e Desdêmona, nesses personagens particulares, com
o pavio da receptividade de sua chama infernal, tem de ficar em torno dele, e cada
um cai em seu jogo, e ele emprega de tudo, e tudo apressa para o triste fim. Se um
anjo da providência pesasse e comparasse entre si as paixões humanas, agrupasse as
almas e os caracteres e lhes fornecesse motivos, segundo os quais cada um agiria no
delírio da liberdade, mas seria ele quem conduziría a todos, com esse delírio, à sua
ideia, como se o fizesse com a corrente do destino - assim atuou o espírito humano
que aqui projetou, pensou, desenhou e conduziu.
Não deveria ser preciso recordar nem mesmo uma única vez o fato de que
tempo e lugar sempre andam juntos, tal como o invólucro em torno da semente, e
no entanto justam ente sobre isso se fez o mais estridente alarde. Se Shakespeare
encontrou a destreza divina para reunir um único mundo inteiro^de cenas as mais
disparatadas em um único evento; naturalm ente pertenceu à verdade de seus eventos
idealizar também todas as vezes o lugar e o tempo, de modo que contribuíssem para
a ilusão. Existe alguém no mundo para quem o lugar e o tempo sejam indiferentes,
mesmo quanto a um detalhe m ínim o de sua vida? E eles não são particularmente
importantes junto às coisas nas quais toda a alm a é excitada, formada e modificada?
Na juventude, em cenas de paixão e em todas as ações que envolvem a vida! Não
são aí justam ente lugar e tem po e plenitude das circunstâncias exteriores que devem
dar a toda a história sustentação, duração e existêncial E uma criança, um jovem.

229
ESCRITOS SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA

um amante, um homem no cam po de batalha: perm itirão eles que se lhes amputem
sequer uma única circunstância do local, do como? onde? quando? sem que toda a
representação de sua alm a sofra? Aqui Shakespeare é o m aior mestre, justamente
porque ele é apenas e sempre servo da natureza. Q uando ele refletia sobre os eventos
de seu drama, revolvendo-os em sua mente, quanto não se revolviam junto, todas as
vezes, os lugares e os tempos! A partir das cenas e dos decursos tem porais de todo o
mundo encontra-se, como uma lei da fatalidade, justam ente aquela que é a mais ideal
e plena de força para o sentimento da ação; onde as circunstâncias mais especiais,
mais audaciosas apoiam com mais frequência a ilusão da verdade, onde a mudança
de lugar e de tempo, administrados pelo poeta, gritam m ais alto: “aqui não temos
um poeta! Mas sim o criador! A história do mundo!"
Quando o poeta, por exemplo, revolvia em sua alm a com o um fato da criação
o terrível assassínio real, a tragédia chamada Macbeth - se você, meu caro leitor,
foi tão estreito a ponto de não sentir agora, em nenhuma cena, a cena e o lugar ju n ­
tos - pobre de Shakespeare e pobre da folha murcha em suas mãos. Pois então você
nada sentiu da abertura com as feiticeiras na charneca, sob relâm pagos e trovões!
Nada então sentiu do homem banhado em sangue que relata os feitos de M acbeth
em mensagem ao rei, não sentiu nada de como a cena se tranform a abruptam ente,
revelando o espírito mágico profético, e misturando a mensagem anterior com essa
saudação em sua cabeça - você não viu sua esposa vaguear por seu castelo com
aquela cópia da carta do destino, a mesma que mais tarde vaguearia de modo tão
assustadoramente diferente! Não sentiu com o silencioso rei, ainda por um a últim a
vez, tão suavemente a brisa noturna, em torno da casa, onde é bem verdade as an­
dorinhas fazem suavemente seu ninho, mas onde você, ó rei - é o que se encontra
invisivelmente em obra! - se aproxima de seu túmulo de morte. A casa em inquieta
e hospedeira preparação e Macbeth preparando-se para a morte! A cena noturna se
preparando, Banquo com archote e espada! O punhal! O assustador punhal da visão!
O sino! Mal aconteceu e as batidas na porta! A descoberta, a reunião - vasculham-se
todos os lugares e tempos, onde, para o propósito, segundo a criação, isso poderia
ocorrer ali e assim de outra forma. A cena do assassinato de Banquo na floresta; a
cena noturna e o espírito de Banquo - novamente a charneca das bruxas (pois seu
assustador feito do destino está consumado!). E então a caverna de feiticeiras, conju­
ração. profecia, ódio e desespero! A morte dos íilhos de M acduff sob a proteção dc
sua mãe solitária! E aqueles dois exilados sob a árvore, e então a tenebrosa noitvaga
no castelo, e o cum prim ento milagroso da profecia - u floresta que se aproxima - a
morte de Macbeth por meio da espada do não nascido - eu teria de elencar todas,
todas as cenas, a íim de nomear o local idealizado do todo inominável, tto mundo do
destino, do mundo do assassínio do rei e o mundo da ina^ia, que anim a como alma

no
.s u a k i \ r t A t t r r /;/.»)

a peça. nté a menor circunstâncin de (empo. de lugar, mesmo da aparente confusão


intermediária: eu terin de elenenr Iodas as cenas, a fim de fa/.cr de tudo na cena um
único lodo tenebroso c inseparável - e mesmo assim, com isso tudo, eu não diria nada.
() que há de individual em cada peça, cada universo singular perpassa com o
lugar e o tempo c a criação por todas as peças. Lessing desenvolveu algumas cir­
cunstâncias de Hamlet cm comparação com a rainha do teatro Semíramisu - como
é pleno todo o drama desse espírito local do começo ao fim. O pátio do castelo c o
frio amargo, a rendição da guarda c as narrações noturnas, descrença e crença - a
estrela - c então ele aparece. Pode haver alguém que não pressinta em cada palavra e
circunstância a preparação e a natureza! E assim por diante. Todas as possibilidades
de mostrar-se espíritos cm cena são esgotadas! Esgotam-se também as possibilida­
des de aparição para os homens! O canto do galo c o timbale, um aceno mudo e a
colina próxima, palavra e não palavra - que local! Que marca profunda da verdade!
E como o rei assustado se ajoelha e o Hamlet corre apressado para o quarto da mãe,
diante da imagem de seu pai! E logo a outra aparição! Ele na cova de sua Ofélia!
O comovente good fcllow em todas as conexões com Horúcio, Ofélia, Laerte, For-
timbras! O jogo juvenil da ação, que perpassa a peça e até o fim quase não se toma
uma ação - quem aí por um único instante sente e procura a estrutura cênica e nela
procura uma única série dc diálogos articulados e refinados, para esses não poetizou
nenhum Shakespeare e Sófocles, nenhum verdadeiro poeta do mundo.
Tivesse eu palavras para especificar a sensação principal única que domina,
pois, cada peça e a atravessa como uma alma do mundo. Como efetivamente no
Otelo faz parte da peça tanto a busca noturna quanto o fabuloso amor milagroso, a
viagem marítima, a tempestade no mar, assim como a impetuosa paixão de Otelo,
a tão escarnecida maneira de morrer, o despir-se sob a cançãozinha de morte e o
uivo do vento, tal como no tipo do pecado e da própria paixão - a entrada dele, sua
fala à luz da noite etc. Seria possível apreendê-lo em palavras, o modo como tudo
isso pertence viva e intimamente a um único mundo do evento trágico? - mas isso
não é possível. Se nem mesmo um miserável quadro em cores se deixa descrever ou
reconstituir em palavras, o que dizer do sentimento de um único mundo vivo em to­
das as cenas, circunstâncias e magias da natureza? Percorra, meu leitor, o que você
quiser, o Lear e os Ricardos, o César e os Henriques, mesmo peças mágicas e di­
vertimentos, em particular Romeu - a doce peça do amor, mas também romance em
cada circunstância de tempo, lugar, sonho e poesia - percorra a peça que escolher,
tente retirar dela algo dessa espécie, trocar, inclusive simplificar para uma estrutura 34

34. Na Dramaturgia de Hamburgo (partes 10-12) Lessing compara criticamente o surgimento do fantasma
na peça de Voltaire, Semframis (1749) com as aparições do fantasma no Hamlet. (N.T.J

231
ESCRÍTOS SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA

cênica francesa - tente modificar para essa estrutura um mundo vivo com tudo o que
é autêntico [Urkundlicheri] em sua verdade - bela troca! Bela transformação! Retire
dessa planta seu solo, a seiva e a força e a plante no ar:_retire desses homens o lugar,
o tempo, a consistência individual - e então você retirou deles a respiração e a alma
e resta apenas uma imagem da criatura.
Justamente nesse ponto Shakespeare é irmão de Sófocles, embora aparentemen­
te lhe seja tão dessemelhante, para internamente ser inteiramente como ele. Uma vez
que toda ilusão é conquistada por meio disso que é autêntico, verdadeiro, criador na
história, e que sem ele não apenas não seria conquistada, mas não restaria mais (ou
eu teria escrito em vão) nenhum elemento do drama de Shakespeare e do espírito dra­
mático: vê-se assim que todo o mundo é para esse grande espírito apenas um corpo;
todas as cenas da natureza são nesse corpo membros, assim como todos os caracte­
res e modos de pensar são para esse espírito traços - e podemos nomear esse todo
como aquele deus gigantesco de Espinosa: “Pan! Universo!” Sófocles permaneceu
fieljàjiatureza ao elaborar uma única ação de um único lugar e de um único tempo:
Shakespeare pôde unicamente permanecer-lhe fiel ao revolver seu evento mundial
e destino humano através de todos os lugares e tempos, onde eles - bem, onde eles
acontecem. E que Deus tenha piedade do francês brincalhão que chega apenas para
o quinto ato de Shakespeare para então engolir a comoção em sua quintessência. Em
muitas peças francesas isso pode talvez interessar, por que ali tudo é versificado e
transposto visualmente em cenas meramente para o teatro; mas aqui, em Shakespeare,
ele sai justamente totalmente vazio. Nesse caso, o evento mundial já passou: ele vê
apenas a última e pior consequência, homens que caem como moscas; ele vai embora
e zomba: Shakespeare o incomoda e seu drama é a mais boba tolice.

***

Em geral todo esse novelo de questões relativas ao lugar e ao tempo já teria


há muito tempo saído de sua confusão caso uma cabeça filosófica tivesse querido se
dar ao trabalho de também aqui perguntar: o que é, pois, lugar e tempo? Se eles são
o tablado c a duração de um divertissement au théâtre™: então ninguém no mundo
senão os franceses têm unidade de lugar, medida de tempo e das cenas. Os gregos -
em sua elevada ilusão, da qual não temos quase nenhum conceito - jam ais pensaram
o mínimo sobre isso em suas instalações para o caráter público do palco, em sua
justa veneração diante dele como um templo. Mas, como deve ser a ilusão de um35

35. Em francês no original: •‘diversão teatral". () icrmo rem ete a pecas de entretenimento, entre
peças. | N.T. |
SHAKESrtlÁKE (I77jf

homem que. após cada cena. quer olhar para seu relógio, para verificar se algo assim
lambtím pode ocorrer cm lanto lempo? Para quem IamWin é um elemento principal
de alegria no coração verificar que o poeta cm nenhum momento o enganou, c sim
mostrou sobre o palco somente o que ele mesmo pode ver no tempo de passo de les­
ma de sua vida? Que criatura, para quem essa é a principal alegria! E que poeta que
trabalha para isso como sendo sua finalidade principal c que então se vangloria com
a tralha de regras, dizendo: “como sou comportado, com meus tantos e tão belos
brinquedos! sobre o espaço dado e estreito dessa cova de tábuas denominado théâtre
François [ste]36 e no espaço de tempo dado, espremido c marcado da visita! As cenas
enfileiradas e enfiadas! tudo costurado e prendido exatamente!" - lamentável mestre
de cerimônias! Savoyarde37 do teatro, não criador! poeta! deus dramático! Pois se
você é um destes, não lhe badala nenhum relógio na torre ou no templo, é você que
tem de criar o espaço e a medida de tempo; e se você pode produzir um mundo e
ele não pode existir de outro modo senão no espaço e tempo, então sua medida de
prazo e de espaço está aí, no interior; é nesse âmbito que você deve enfeitiçar todos
os espectadores, que você deve impor a todos esse mundo ou você é - o que eu dis­
se: tudo, menos um poeta dramático.
Será necessário que se demonstre a alguém no mundo que espaço e tempo não
são propriamente nada em si, que são a coisa mais relativa quanto à existência, à ação,
à paixão, à sequência de pensamento e à medida da atenção dentro ou fora da alma?
Você, bondoso relojoeiro do drama, nunca teve em sua vida épocas em que as horas
se tornaram instantes e dias se tornaram horas; inversamente, horas que se tornaram
dias e noites de vigília que se tornaram anos? Você não teve situações em sua vida
em que sua alma em algum momento morou completamente fora de você, aqui nesse
quarto romântico de sua amada, lá junto ao cadáver rígido, aqui nessa opressão da
mais extrema e vergonhosa miséria? E agora novamente sobrevoando sobre o mun­
do e o tempo, saltando espaços e regiões do mundo, você esqueceu tudo a seu redor
e se encontra no céu, na alma, no coração daquele cuja existência você sente? E se
isso é possível em sua preguiçosa e sonolenta vida de verme e de árvore, onde raízes
suficientes lhe prendem ao chão morto de sua posição e cada círculo que você arrasta
lhe é um momento lento o suficiente para medir seu passo de verme - imagine então
um único instante noutro mundo, num mundo de poeta, num sonho? Nunca percebeu
como lhe desaparecem lugar e tempo no sonho? O quão inessenciais eles devem ser,
sombras diante do que é a ação, o efeito da alma? O quanto depende apenas dessa
alma^criar para si o espaço, o mundo e a medida temporal, como e onde ela quer? E

36. Em francês no original: “teatro francês". Herder grafa erroneamente "François" e não “français". [N.T.]
37. Em francês no original: “fanfarTão". [N.T.]

233
ESCRITOS SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA

se você o tivesse sentido pelo menos uma vez em sua vida, se acordasse um quarto
de hora depois e o resto obscuro de suas ações no sonho o tivessem feito jurar que
dormira, sonhara e agira por noites a fio? Deveria então o sonho de Maomé parecer
a você, como sonho, ainda por um único instante como sendo absurdo? E não seria
justamente o primeiro e único dever de cada gênio, de cada poeta, em particular do
poeta dramático, colocá-lo em tal sonho? E imagine agora que mundos você confun­
de quando mostra ao poeta seu relógio de bolso ou seu quarto de visita, para que ele
lhe ensine a sonhar nesse espaço e segundo esse tempo?
No curso de seu evento, no ordine successivorum e siniultaneorum3*
* de seu
mundo, é aí que reside seu espaço e tempo. Como e para onde ele arrasta você? Para
onde quer que ele o arraste, é aí que está seu mundo. Quão rápido ou devagar ele
fizer correr o tempo; ele o faz correr; ele imprime em você essa sequência: essa é
sua medida de tempo - e como aqui Shakespeare é novamente mestre! Seus eventos
começam devagar e pesados, em sua natureza como na natureza: pois ele apresenta
esta apenas em medida rejuvenescida. Quanto esforço até os móbeis começarem a
atuar! quanto mais atuam, porém, como caminham as cenas! quão mais curtos os
discursos e aladas as almas, a paixão, a ação! E como então, a seguir, é potente essa
movimentação, a dispersão de certas palavras, quando ninguém mais tem tempo. Por
fim, quando ele iludiu inteiramente o leitor e o vê perdido no abismo de seu mundo e
paixão, como ele se torna audacioso e o que ele deixa suceder, um evento após outro!
Lear morre depois de Cordélia e Kent depois de Lear! É, por assim dizer, o fim de
seu mundo, o dia do juízo final está aí, quando tudo rola c se precipita mutuamente,
o céu é envolvido e as montanhas caem; desapareceu a medida do tempo. Por outro
lado, certamente não para o espirituoso e animado caclogaliniano ” , que chegasse ao
quinto ato com a pele fresca e sarada, para poder medir no relógio quantos aí morre­
ram e em quanto tempo. Mas, Deus, se isso deve ser a crítica, o teatro, a ilusão - o
que seria, pois, crítica? ilusão? teatro? o que significariam todas essas palavras vazias?

* * *

Justamente aqui começaria o coração de minha investigação, “como? a par­


tir de que arte e modo criativo Shakespeare leria podido transformar poeticamente
um miserável romance41', novela e história de fábula nesse lodo tão vivo? que leis

3K J4n latir» 110 original "na ordem d » vuicvvivo c d» urmiltinru |N E|


39. Cf. lupru, ooU 24K d » 1‘nmrin» llmqur ( illli n A vánia lia tonal mgIrva votar uma (a%a dc gah ik n n
drvcnvtilviduv r erudito» vetvr utjui • H ridri pata irlrm vr iionuatitrnu* *>» fi*iKr»rv. rm ulonu
imtSncia prla própn* piuiiimdadr looeiua tom ii itomo t i l l u |N I |
40. RomanZf no original, »&<> Romun. tomo vr Iradu/ uvualmriilc "nw uik.r’* |N I |

2S4
SHAKKSPKARtl (177.1)

dc nossa arte histórica, filosófica, dramática residem cm cada um de seus passos c


gestos artísticos?" Que investigado! quanto não teremos para nosso edifício da his-
tória. para a filosofia da alma humana e para o drama. Mas eu não sou um membro
de todas nossas academias históricas, filosóficas c dc bclas-ortcs \schnnkiinstlichen\,
onde natural mente se pensa cm tudo menos isso! Mesmo os compatriotas dc Shakes­
peare nào pensam nisso. Dc que falhns históricas não o acusaram frequentemente
seus comentadores! O volumoso W arburton4142, por exemplo, que belezas históricas ele
nào culpou! E mesmo o último autor do Ensaio sobre Ele*1, alcançou ele por acaso
a idéia predileta que eu procurava em Shakespeare: “como ele compôs um drama a
partir dc romances e novelas?" Essa ideia mal lhe veio à mente, tal como não veio
ao Aristóteles desse Sófocles britânico, o Lord Home.
Um mero aceno, portanto, para as classificações comuns de suas peças. Ainda
recentemente um escritor4345678, que certamente sentiu seu Shakespeare de modo inteiro,
teve a ideia de fazer daquele homem honrado da corte, o Fishmongefw, com barba
grisalha e rosto enrugado, olhos penetrantes e sua “plentiful lak of wit together with
weak hams"*i, a criança Polônio, no Aristóteles do poeta, e propor a série de “-ais”
e "-cais”*6, lançada a esmo em sua conversa fiada, como uma classificação séria de
todas as peças. Eu duvido. Shakespeare tem certamente a mania de colocar na boca
de seus personagens, especialm ente de crianças e de bobos da corte, locos commu-
nes*1 vazios, sentenças morais e classificações que podem ser aplicadas a centenas
de casos, mas que na verdade não servem para nenhum; e um novo Estobeu e flo-
rilégio ou uma cornu copiae da sabedoria de Shakespeare41, tal como em parte os

41. Referência ao comentário em oito volumes às obras de Shakespeare (Londres. 1747), publicado
por William Warburton (1698*1779) e Alexandcr Pope. [N.T.]
42. Trata-se, na verdade, do ensaio da autora Lady Elizabeth Montagu (1720-1780), An Essay on
lhe Writings and Genius o f Shakespeare [Ensaio sobre os Escritos e o Gênio de Shakespearel (1770).
Herder fez uma resenha da tradução dessa obra para o alemão, feita por Eschenburg, em 1771. [N.T.]
43. Canas sobre Curiosidades da Literatura. Terceira coleção. [Na obra Briefe über Merfo\ürdigkeiten der
Utteratur, 1766, Gerstenbcrg propõe para os dramas de Shakespeare a classificação apresentada por
Polônio no segundo ato do Hamlet, tentativa criticada logo a seguir por Herder. O autor faz referência
equivocada à terceira coleção: a localização correta da passagem se encontra na 17* carta da segunda
coleção; N.T.]
44. Em inglês no original: “peixeiro". Expressão com a qual Hamlet (II, 2) se refere a Polônio. [N.T.],
45. Em inglês no original, grafado incorretamente "total falta de engenho junto a pernas fracas"
(jHamlet. II. 2). [N.T.]
46. Terminações da nomenclatura mediante as quais Polônio divide os dramas. (N.T.)
47. Em latim no original: “lugares-comuns”. [N.T.]
48. João Estobeu (de Estobi. na Macedônia), compilou no século V d.C. uma Anthologia (literalmente
“coleção de flores) com excertos de centenas de autores gregos. O mesmo propósito de reunir os prin­
cipais extratos da obra de um ou vários autores define os florilégios (termo latino correspondente ao
grego) e cornu copiae (“chifre da fartura"). A ideia de um “novo Estobeu" alude à obra The Beauties
o f Shakespare [As Belezas de Shakespeare], contendo passagens do bardo inglês reunidas por Wiliam

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ESCRITOS SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA

ingleses já possuem e nós alemães, graças a Deus, supostam ente também teríamos
tido recentemente - obras desse tipo teriam alegrado bastante um Polônio, um Lan-
celot, um Arlequim e um Bobo da Corte, um estúpido Richard, ou um inflado rei dos
cavalheiros4\ pois, em Shakespeare, todo homem íntegro e são nunca fala mais do
que o necessário para agir; mas mesmo assim eu ainda tenho m inhas dúvidas aqui.
Polônio deve aqui provavelmente ser apenas a velha criança, que toma nuvens por
camelos e camelos por violas, que chegou em sua juventude até a atuar no papel de
Júlio César e foi um bom ator, tendo sido morto por Bruto, e sabe muito bem “Why
Day is Day, Night Night and Time is Tim e”50.
Ou seja, também nesse caso ele está girando um pião de palavras teatrais - quem
gostaria todavia de construir algo a partir disso? E o que teríam os com a classifica­
ção? Tragedy, comedy, history, pastoral, tragical-historical e historical-pastorell, e
pastorical-comical e comical-historical-pastorical e se m isturarm os ainda cem vezes
os cais", o que teríamos por fim? Nenhuma jgeça seria ainda assim umajragedy,
comedy e pastoral gregas e não deveria sê-lo. Cada peça é history no mais amplo
sentido, quecertam ente se nuanceia cm maior ou menor grau como tragedy, comedy e
assim por diante. As cores oscilam aí ao infinito, mas no fim cada peça perm anece e
deve perm anecer o que ela é: história! Peças sobre heróis e nações para a ilusão de
épocas medievais! Ou (excluídos alguns poucos e autênticos plays e divertissements)
um acontecimento que possui uma completa grandiosidade de um evento mundial,
de um destino humano.
Mais triste e importante torna-se o pensamento de que tam bém esse grande
criador da história e da alm a do mundo envelhece cada vez mais! Uma vez que as
palavras, os costumes e os gêneros da época murcham e caem, tal como um outono
de folhas; nós agora já estamos tão longe dessas grandes ruínas da natureza cavalhei­
resca, que mesmo Garrick, aquele que o ressucitou e que perm anece como um anjo
da guarda sobre seu túmulo, precisa modificar, excluir e m utilar muito da sua obra. E
talvez em breve, já que tudo se apaga tanto c tende em outras direções, também seu
» • »« -

dram a tornar-se-á inteiramente incapaz de uma representação viva, transformando-se


na ruína de um colosso, de uma pirâmide, que todos adm iram c ninguém com preen­
de. Sou feliz por ter vivido ainda no decurso de um tempo em que pude aprendê-lo
e onde você, meu amigo51, que nessa leitura se reconhece e se sente, quem abracei

Dodd c publicada cm dois volumes em 1752. Tralava-sc de um livro amplamenle divulgado inclusive
na Alemanha. |N.T.|
49. Lisla de personagens cômicas c tolas dos dramas de Shakespeare. |N T |
50. Em inglês no original: "l'or que o dia t diu, u noite i noite e o tempo e tempo" (Hamltl. II. - 1 |N I |
51. Trala-sc de Gocthe. Durante o período cm ipie llerder elaborou este ensaio em suas litS diferentes
versões, entre 1770 e 1773, (iocllic lumhcm trabalhava no levto inicial do que viru a ser. alguns anos
\/m / sn \n

«i,»iv lie uma ve/ ilianlc ila i mugem va piada dele. e onde você pode ainda ler seu so
nfro dive e Jipno de eonvliuir em iiowa língua veu monumenio. n iinrtir <lr tmw <n
( ,irri//u irrM m e para nossa lãn degenerada lerra natal l.u o invc|o por esse
ovdio e que veu nobre aluar alem ão não ccssc ntê que a coroa penda l.í em cima I.
moMno que mais larilc você vir com o vacila o cliào sob seu edifício, como o povj.
n*u permanece cm lorno dclc cm silencio, com olhares curiosos ou cm zombaria, c
a pirâmide duradoura não for m ais c a p a / de dcsperlar novamcnle o antigo espírito
egípcio. Sua obra perm anecerá c um sucessor fiel visitará seu túmulo c lhe escreverá
com mão vcncradora o que foi a vida para praticamcntc todos os que foram dignos
no mundo: "Voluit! Q uicscíl!"52

depois, sua peça Gõtz von Berlinchingen, drama criado a partir dc uma história real sobre um cavaleiro
alemão e suas batalhas no início do século XVI. Hcrder, na época muito próximo a Goethe, teve contato
com esse texto inicia! e vê assim no poeta alem ão uma promessa frente ao desafio representado por
Shakespeare: uma literatura verdadeiramente nacional, produzida a partir do material popular de seu
próprio tempo e lugar. Cabe lem brar também que o ensaio de Herder sobre Shakespeare foi lançado
na coletânea de 1773, Da M aneira e A rte Alemãs, que contava com o famoso artigo de Gothe sobre
a arquitetura alemã. [N.T.]
52. Em latim no original: "E le aspirou! A gora poderá descansar!". A origem dessa citação não fo»
localizada. [N.T.]

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