Você está na página 1de 7

8.

A RELÍQUIA DE EÇA DE QUEIRÓS

PRINCIPAL FOCO DO ESTUDO DA OBRA – o modo como o passado se apresenta,


corroborando, transgredindo o discurso tradicional sobre a Vida de Cristo

1. ESPÉCIE DE PREFÁCIO OU ADVERTÊNCIA

O narrador anuncia, em paratexto, a narração da sua viagem à Palestina e, para isto,


recorrendo a um processo paratático, assente na confusão dos tempos enunciados.

“Em 1875, vésperas de Santo António, uma desilusão de incomparável amargura abalou o
meu ser: por esse tempo minha tia, D. Patrocínio das Neves, mandou-me do Campo de
Santana, onde morávamos, em romagem a Jerusalém: dentro dessas santas muralhas,
num dia abrasado do mês de Nizam, sendo Poncius Pilatus procurador da Judeia,
Elius Lamma legado imperial da Síria e J. Kaiapha sumo pontífice, testemunhei,
miraculosamente, escandalosos sucessos: depois voltei – e um grande mudança se fez
nos meus bens e na minha moral.” (p. 9)

NOTA:

PARATAXE – espécie/ género de construção sintática genericamente ligado à coordenação


e especialmente marcado pela ausência de CONEXÃO ou ELO SINTÁTICO entre os
elementos coordenados – processo sintático de coordenação a negrito

2. PRESENÇA SIMULTÂNEA DO NARRADOR EM 2 TEMPOS DISTINTOS

- O narrador, tal como se pode verificar no excerto, acima, descrito, pertence,


simultaneamente, a dois tempos distintos (passado, correspondente ao século I, e presente,
correspondente ao século XIX), sem, todavia, deixar de pertencer ao presente
- Este fenómeno acarreta consequências a nível do discurso/ diegese, nomeadamente a noção
de superficialidade da cor local e dos elementos descritivos que concorrem para a sua formação
(Eça revela-se consciente de tal caraterística de evocação do ambiente pretérito evocado, em carta
enviada a Luís de Magalhães, na qual afirma que o “mundo antigo está ali como um trambolho, e só
é antigo por fora, nas exterioridades, nas vestes e nos edifícios”), a qual se traduz, por sua vez,
numa consciência de artificialidade da reconstituição histórica levada a cabo, aquando da
construção da diegese.
- Este pequeno pormenor faz ecoar as críticas tecidas contra o romance histórico, de natureza
romântica, as quais assentavam na existência de uma intriga em tudo semelhante, sobretudo a nível
das personagens e da sua mentalidade, às obras cujo enredo se desenrolaria no presente do autor, a
qual estaria, apenas, escondida sob as roupagens de uma extrema saturação de cor local,
caraterística já denotada no estudo do romance histórico de Alexandre Herculano (relatividade da
escrita, oscilação entre o real e o ficcional).
- Face a estas críticas da suposta movimentação de personagens românticas em ambientes
espácio-temporais medievais, caraterística dos seus antecessores românticos, Eça, ironizando este
processo, cria uma narrativa na qual, a personagem, Teodorico, se situa, não deixando, não só de
existir na sua época, mas, também, de possuir a mentalidade desse mesmo período histórico, no
passado, tendo, a certo ponto, a noção disto, uma vez que a sua mentalidade e o seu conhecimento
se distanciam, completamente, da mentalidade das restantes personagens cuja existência se verifica
meramente no passado. (No romance histórico, a personagem, de natureza romântica, nasce e vive,
aos olhos do leitor, num ambiente tipicamente medieval (mesmo que este seja superficial), do qual
destoa completamente, dada as caraterísticas e mentalidade modernas que possui, embora não se
afirme como tal. Em Eça, a personagem que acaba por viver, ainda que durante certos instantes,
numa época pretérita, afirma-se, indubitavelmente, antes desta deslocação para o passado, como
uma personagem possuidora de caraterísticas e mentalidade novecentistas, sendo completamente
legítima a discrepância entre a personagem e o ambiente evocado, patente, por exemplo, na
estranheza e desconforto sentido - CRÍTICA AO ROMANCE HISTÓRICO ROMÂNTICO
- Para além disto, Eça mostra-se consciente dos restantes processos de elaboração do
romance histórico, nomeadamente, a necessidade de atestação da veracidade e a efabulação ou
invenção imaginativa que a este presidem, traços que acaba, também, por parodiar, indiretamente.
- No que diz respeito à atestação de veracidade da sua obra, dado o facto da efabulação
gerar, obviamente, no leitor, a desconfiança, uma vez que nenhum documento é apresentado de
modo a legitimar a narração, ao contrário do que acontecia nos romances históricos românticos, Eça
decide, então, utilizar, neste sentido, uma narração na primeira pessoa, aproximando-se, de certa
forma, do tom imprimido, pelos seus antecessores românticos, enquanto narradores-empíricos das
obras, não durante a diegese, mas, sim, em paratexto (nomeadamente, em prefácio, prólogo ou
advertência), no qual, estes procederiam, também na primeira pessoa, à atestação da veracidade.
- Deste modo, o narrador, neste caso, também personagem, apesar de expor uma única
verdade , por definição, não universal (parcial, lacunar, imperfeita), ao contrário da enunciada pelos
românticos, baseando-se, estes, em documentos verídicos e fidedignos, ou seja, a por si vivenciada,
colocando-se, acima de tudo, no centro do universo representado, é capaz de lhe atribuir uma maior
credibilidade, uma vez que, só ele, enquanto sede psicológica das sensações a pode confirmar ou
negar.
- Ainda, na linha deste pensamento, de maneira a salvaguardar a crença na sua suposta
versão dos acontecimentos, Teodorico-narrador declara que o seu amigo e companheiro de viagem,
Topsius falseou o conteúdo dos embrulhos de papel pardo, afirmando que, num destes, Teodorico
transportava os ossos dos seus antepassados. Ao negar tal versão, afirma recorrer à honestidade do
discurso.

“Por isso intimo o meu douto Topsius (que, com os seus penetrantes óculos, viu formar os
meus embrulhos, já na terra do Egipto, já na terra de Cana), a que na Segunda edição de
jerusalém passeada, sacudindo pudicos escrúpulos de académico e estritos desdéns de
filósofo, divulgue à Alemanha científica e à Alemanha sentimental, qual era o recheio que
continham esses papéis pardos – tão francamente como eu o revelo aos meus
concidadãos nestas páginas de repouso e de férias, onde a Realidade sempre vive, ora
embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da História, ora mais livre e saltando sob
a carapaça vistosa da Farsa.” (p.13)

- IMPORTANTE - transcrição a negrito – utilização da oração comparativa aliada aos


advérbio de modo “francamente”.

- No que toca à vertente ficcional de qualquer romance histórico, apesar do seu fundo factual
Eça afirma, em carta ao Conde de Ficalho, possuir consciência de tal particularidade:

“À sua carta recebida em Bristol, respondo de Londres, onde vim indagar sobre pedras,
nomes de ruas, mobílias e toilettes para a minha Jerusalém. Digo minha – e não de
Jesus, como pedia a devoção, ou de Tibério, como pedia a história – porque ela
realmente me pertence, apesar de todos os estudos, obra da minha imaginação.
Debalde, amigo, se consultam in-fólios, mármores de museus, estampas, e coisas em
línguas mortas: a história será sempre uma grande fantasia. (...) Reconstruir é sempre
inventar. (...) Além disso, o isolamento lança-me na leitura, que me lança na erudição: e
reaparece então o latente e culpado apetite do romance histórico.”

- Assim, partindo desta consciência, Eça parodia, na medida em que conduz ao exagero e,
consequentemente, ao ridículo, mais uma vez, o estilo que imita, entregando-o, por completo, ao
domínio da imaginação, visto que o passado reconstituído surge, meramente, enquanto sonho.
3. A SUBVERSÃO DO SAGRADO (patente ao longo de toda a obra) = FORMAS DE INSERÇÃO
DO PASSADO

3.1. EROTIZAÇÃO DO SAGRADO

- poderá ter a função premonitória de transgressão a que iremos assistir no sonho principal

- se Teodorico, enquanto criança, parodia eroticamente, perante a inglesa do Senhor Barão, o


canto religioso Ave-Maria, então, é possível afirmar que existe uma predisposição natural para a
subversão do discurso sagrado/ bíblico, que legitima, desde já, o caráter transgressivo do sonho
principal

3.2. 1º SONHO COM A INTERVENÇÃO DO DIABO (enquanto interlocutor)

- sonho na viagem de vapor entre Alexandria e a Terra Santa

- A ascensão divina de Cristo é visionada ironicamente, parodiada como se se tratasse,


efetiva e literalmente, da ascensão aos céus da cruz, de tal modo que seriam necessários anjos para
aparar tal objeto

“A cruz do meio, a do Cristo, desarraigada do outeiro, como um arbusto que o vento


arranca, começou a elevar-se, lentamente, engrossando, atravancando o céu. E logo de
todo o espaço voaram bandos de anjos, a sustê-la apressados como as pombas quando
acodem ao grão; uns puxavam-na de cima, tendo-lhe amarrado ao meio longas cordas
de seda; outros, de baixo, empurravam-na – e nós víamos o esforço entumecido dos
seus braços azulados. (...) Um ancião enorme de túnica branca, a que mal distinguíamos
as feições, entre a abundância da coma revolta e os flocos de barbas nevadas, comandava,
estirado entre nuvens, estas manobras da Ascensão, numa língua semelhante ao latim e
forte como o rolar de cem carros de guerra.”

- delineia-se/ preludia-se uma perspetiva completamente distinta da transmitida, durante


séculos, pela ortodoxia religioso – prenúncio da transgressão no sonho principal

3.3. DISCURSO DE TOPSIUS (sobre Salomé, Herodes e S. João Batista)

“Porque Elias não morreu, D. Raposo. Habita o Céu, vivo, em carne, ainda coberto de
farrapos, implacável, vociferador e medonho...”
- a personagem, companheiro de viagem de Teodorico imprime à narrativa um caráter
sensual e irónico – mistura o físico com o espiritual

4. SONHO PRINCIPAL – SÉCULO I

- Teodorico é acordado por Topsius – sente estranheza e desconforto ( «E eu vi, assombrado,


aparecerem soldados romanos, desses que tantas vezes amaldiçoara em estampas da Paixão!») à
medida que penetra no universo distante – neste, sentido, é importante referir a focalização interna e
o tom individualista, no que toca às emoções sentidas, na medida em que é este desconforto que
permite a manutenção da narração em primeira pessoa, o sujeito, apenas, sabe de si próprio e
daquilo que ele próprio sente, sendo este o único ponto de vista transmitido, neste ponto, ao leitor,
que, assim sendo, não o pode negar – contribuição da narrativa em primeira pessoa para a atestação
de veracidade

“Murmurei desconfiado:

- À maneira de Roma!

Que estranhos caminhos ia eu então trilhando? Que outros homens, dissemelhantes de mim, no falar
e no traje, bebiam ali, sobre a proteção de outros deuses, o vinho em ânforas do tempo de
Horácio?....”

- sente estas emoções à medida que se depara com o ambiente, o qual vais descrevendo
superficialmente, imbuindo neste a célebre Cor Local – descrição da estrada, da cidade de
Jerusalém, descrição do vestuário dos peregrinos – conversão, pelo menos, a nível superficial e
exterior do ambiente – caraterística do romance histórico romântico

- VERDADEIRA SUBVERSÃO DO SAGRADO

- diálogo entre duas personagens, o qual é testemunhado por Teodorico e Topsius, Teodorico adota
uma focalização externa

- o diálogo coloca em causa a castidade de Cristo e, como tal, inicia a leitura heterodoxa de toda
paixão

“- Osanias, o Rabi é casto!

O velho riu, pesadamente. Casto, o Rabi! E então essa galileia de Magdala, que vivera no bairro de
Bezetha, e nas festas do Prurim se misturava com as prostitutas gregas às portas do teatro de
Herodes?...E Joana, a mulher de Khosna, um dos cozinheiros de Ântipas? E outra de Efraim,
Susana, que uma noite, a um gesto do Rabi, a um aceno do seu desejo, deixara o tear, deixara os
filhos, e com o pecúlio doméstico, escondido na ponta do manto, o seguira até Cesareia?... (...) esse
Rabi da Galileia chegava, no seu impudor, a tocar fêmeas pagãs, e outras mais impuras que o
porco...Um levita viu-o, na estrada de Siquém, erguer-se afogueado, detrás da borda dum poço, com
uma mulher de Samaria!”

- ao ver Cristo:

“Mas, oh rara surpresa da alma variável, não senti êxtase nem terror! Era como se de repente me
tivessem fugido da memória longos, laboriosos séculos de História e de Religião. Nem pensei que
aquele homem seco e moreno fosse o Remidor da Humanidade...Achei-me inexplicavelmente
anterior nos tempos. Eu já não era Teodorico Raposo, cristão e bacharel: a minha individualidade
como que a perdera, à maneira dum manto que escorrega, nessa carreira ansiosa desde a casa de
Gamaliel. Toda a antiguidade das coisas ambientes me penetrara, me refizera um ser; eu era
também um antigo. Era Teodorico, um lusitano, que viera numa galera das praias ressoantes do
Promontório Magno, e viajava, sendo Tibério imperador, em terras tributárias de Roma. E aquele
homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias – mas apenas um moço de Galileia que, cheio dum
grande sonho, desce da sua verde aldeia para transfigurar todo um mundo e renovar todo um Céu, e
encontra a uma esquina um Nethenin do Templo que o amarra e o traz ao pretor, numa manhã de
audiência, entre um ladrão que roubara na estrada de Siquém e outro que atirara facadas numa rixa
em Emath!”

- importância da focalização externa de Teodorico . Enquanto personagem do passado, não pode


sentir comoção ao ver Cristo, dado que este, enquanto tal, ainda não existia

- é reiterada, de certa forma, a ingenuidade inicial, dado que se o narrador tem conhecimentos do
presente, os não pode expor no tempo de Tibério, no qual se encontra, dado que essa atitude
falsearia toda a Cor Local

- EXPULSÃO DOS MERCADORES DO TEMPO – geralmente, entendida como tentativa de


preservação da pureza e santidade atribuída a um local sagrado, valorização do espiritual em
detrimento do material, poder corruptor do dinheiro

- altera, mais uma vez, a história oficial, fazendo deslizar o foco da narração dos adeptos de Jesus
para os mercadores expulsos – enaltece a visão dos mercadores, visão esta não referida nos textos
bíblicos
- NEGAÇÃO DA RESSURREIÇÃO – EXPOENTE MÁXIMO DA SUBVERSÃO DO
SAGRADO

- O ponto máximo, porém, é o da negação da Ressurreição, elemento indispensável para a criação


do Cristianismo. Renan, no seu estudo já várias vezes citado, põe sérias dúvidas sobre o que teria
acontecido, mas não acredita em absoluto na Ressurreição, preferindo duvidar da morte de Jesus,
apoiando-se nos Evangelhos que considera pouco claros. A sua tese de que a reação emocional de
Maria Madalena teria contribuído em muito para a mitificação pretendida serve de pretexto a Eça
para pôr na boca de Teodorico a frase, «E assim o amor de uma mulher muda a face do mundo, e dá
uma religião mais à humanidade.», e criar um diálogo onde Gad confessa a Teodorico e Topsius o
estratagema para salvar Cristo, narcotizando-o. Como, apesar de tudo, a morte acontece, põem-no
noutro túmulo e deixam correr o boato da ressurreição. A aparente verdade, dado que os eventos são
narrados por alguém contemporâneo e amigo de Cristo, contraria a versão oficial e leva a subversão
ao ponto de se afirmar, mesmo se num sonho e através do relato de uma personagem do passado,
que o Cristianismo «se erige sobre uma fraude», como afirma Aparecida de Fátima Bueno

- Através desta constante paródia dos textos bíblicos e dos momentos por este referidos, descritos e
narrados, Eça parece querer levar o poder de efabulação e invenção que preside a todo o romance
histórico, ao nível extremo, transgredindo o razoável – acaba por demonstrar como as fontes
documentais acabam por entregar a História ao completo domínio da efabulação, da criação
imaginativa e de como os romances históricos surgem como meros textos ficcionais, embora seja
constantemente referido o seu fundo de verdade, que assume a história, embora como pano de
fundo, como um mero ponto referencial

Você também pode gostar