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“Em 1875, vésperas de Santo António, uma desilusão de incomparável amargura abalou o
meu ser: por esse tempo minha tia, D. Patrocínio das Neves, mandou-me do Campo de
Santana, onde morávamos, em romagem a Jerusalém: dentro dessas santas muralhas,
num dia abrasado do mês de Nizam, sendo Poncius Pilatus procurador da Judeia,
Elius Lamma legado imperial da Síria e J. Kaiapha sumo pontífice, testemunhei,
miraculosamente, escandalosos sucessos: depois voltei – e um grande mudança se fez
nos meus bens e na minha moral.” (p. 9)
NOTA:
“Por isso intimo o meu douto Topsius (que, com os seus penetrantes óculos, viu formar os
meus embrulhos, já na terra do Egipto, já na terra de Cana), a que na Segunda edição de
jerusalém passeada, sacudindo pudicos escrúpulos de académico e estritos desdéns de
filósofo, divulgue à Alemanha científica e à Alemanha sentimental, qual era o recheio que
continham esses papéis pardos – tão francamente como eu o revelo aos meus
concidadãos nestas páginas de repouso e de férias, onde a Realidade sempre vive, ora
embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da História, ora mais livre e saltando sob
a carapaça vistosa da Farsa.” (p.13)
- No que toca à vertente ficcional de qualquer romance histórico, apesar do seu fundo factual
Eça afirma, em carta ao Conde de Ficalho, possuir consciência de tal particularidade:
“À sua carta recebida em Bristol, respondo de Londres, onde vim indagar sobre pedras,
nomes de ruas, mobílias e toilettes para a minha Jerusalém. Digo minha – e não de
Jesus, como pedia a devoção, ou de Tibério, como pedia a história – porque ela
realmente me pertence, apesar de todos os estudos, obra da minha imaginação.
Debalde, amigo, se consultam in-fólios, mármores de museus, estampas, e coisas em
línguas mortas: a história será sempre uma grande fantasia. (...) Reconstruir é sempre
inventar. (...) Além disso, o isolamento lança-me na leitura, que me lança na erudição: e
reaparece então o latente e culpado apetite do romance histórico.”
- Assim, partindo desta consciência, Eça parodia, na medida em que conduz ao exagero e,
consequentemente, ao ridículo, mais uma vez, o estilo que imita, entregando-o, por completo, ao
domínio da imaginação, visto que o passado reconstituído surge, meramente, enquanto sonho.
3. A SUBVERSÃO DO SAGRADO (patente ao longo de toda a obra) = FORMAS DE INSERÇÃO
DO PASSADO
- poderá ter a função premonitória de transgressão a que iremos assistir no sonho principal
“Porque Elias não morreu, D. Raposo. Habita o Céu, vivo, em carne, ainda coberto de
farrapos, implacável, vociferador e medonho...”
- a personagem, companheiro de viagem de Teodorico imprime à narrativa um caráter
sensual e irónico – mistura o físico com o espiritual
“Murmurei desconfiado:
- À maneira de Roma!
Que estranhos caminhos ia eu então trilhando? Que outros homens, dissemelhantes de mim, no falar
e no traje, bebiam ali, sobre a proteção de outros deuses, o vinho em ânforas do tempo de
Horácio?....”
- sente estas emoções à medida que se depara com o ambiente, o qual vais descrevendo
superficialmente, imbuindo neste a célebre Cor Local – descrição da estrada, da cidade de
Jerusalém, descrição do vestuário dos peregrinos – conversão, pelo menos, a nível superficial e
exterior do ambiente – caraterística do romance histórico romântico
- diálogo entre duas personagens, o qual é testemunhado por Teodorico e Topsius, Teodorico adota
uma focalização externa
- o diálogo coloca em causa a castidade de Cristo e, como tal, inicia a leitura heterodoxa de toda
paixão
O velho riu, pesadamente. Casto, o Rabi! E então essa galileia de Magdala, que vivera no bairro de
Bezetha, e nas festas do Prurim se misturava com as prostitutas gregas às portas do teatro de
Herodes?...E Joana, a mulher de Khosna, um dos cozinheiros de Ântipas? E outra de Efraim,
Susana, que uma noite, a um gesto do Rabi, a um aceno do seu desejo, deixara o tear, deixara os
filhos, e com o pecúlio doméstico, escondido na ponta do manto, o seguira até Cesareia?... (...) esse
Rabi da Galileia chegava, no seu impudor, a tocar fêmeas pagãs, e outras mais impuras que o
porco...Um levita viu-o, na estrada de Siquém, erguer-se afogueado, detrás da borda dum poço, com
uma mulher de Samaria!”
- ao ver Cristo:
“Mas, oh rara surpresa da alma variável, não senti êxtase nem terror! Era como se de repente me
tivessem fugido da memória longos, laboriosos séculos de História e de Religião. Nem pensei que
aquele homem seco e moreno fosse o Remidor da Humanidade...Achei-me inexplicavelmente
anterior nos tempos. Eu já não era Teodorico Raposo, cristão e bacharel: a minha individualidade
como que a perdera, à maneira dum manto que escorrega, nessa carreira ansiosa desde a casa de
Gamaliel. Toda a antiguidade das coisas ambientes me penetrara, me refizera um ser; eu era
também um antigo. Era Teodorico, um lusitano, que viera numa galera das praias ressoantes do
Promontório Magno, e viajava, sendo Tibério imperador, em terras tributárias de Roma. E aquele
homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias – mas apenas um moço de Galileia que, cheio dum
grande sonho, desce da sua verde aldeia para transfigurar todo um mundo e renovar todo um Céu, e
encontra a uma esquina um Nethenin do Templo que o amarra e o traz ao pretor, numa manhã de
audiência, entre um ladrão que roubara na estrada de Siquém e outro que atirara facadas numa rixa
em Emath!”
- é reiterada, de certa forma, a ingenuidade inicial, dado que se o narrador tem conhecimentos do
presente, os não pode expor no tempo de Tibério, no qual se encontra, dado que essa atitude
falsearia toda a Cor Local
- altera, mais uma vez, a história oficial, fazendo deslizar o foco da narração dos adeptos de Jesus
para os mercadores expulsos – enaltece a visão dos mercadores, visão esta não referida nos textos
bíblicos
- NEGAÇÃO DA RESSURREIÇÃO – EXPOENTE MÁXIMO DA SUBVERSÃO DO
SAGRADO
- Através desta constante paródia dos textos bíblicos e dos momentos por este referidos, descritos e
narrados, Eça parece querer levar o poder de efabulação e invenção que preside a todo o romance
histórico, ao nível extremo, transgredindo o razoável – acaba por demonstrar como as fontes
documentais acabam por entregar a História ao completo domínio da efabulação, da criação
imaginativa e de como os romances históricos surgem como meros textos ficcionais, embora seja
constantemente referido o seu fundo de verdade, que assume a história, embora como pano de
fundo, como um mero ponto referencial