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PENELOPE E ULISSES
COIMBRA
2003
ULISSES E GILGAMES
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Perante tais afinidades, é legítimo indagar a relação existente
entre a epopeia de Ulisses e a de Gilgames. À partida, parece haver
muita. A construção das figuras, os objectivos dos poemas, o sitz im
leben das duas narrativas sugerem-na. Mas há algumas objecções que
abalam uma relação aparentemente simples: os tempos, os espaços e as
formas de composição. As tabuinhas mais antigas conhecidas da histó-
ria de Gilgames remontam ao período sumério na Mesopotâmia; a
formulação dos poemas homéricos perde-se no n° milénio a.C. O rei
de Uruk foi conhecido e cantado na Mesopotâmia, na Anatólia e na
Síria-Palestina. O rei de Ítaca foi cantado no mundo grego, da Ásia
Menor à Magna Grécia. O herói mesopotâmico foi evocado funda-
mentalmente em sumério e acádico. O aqueu chegou até nós através de
um grego artificial, com reminiscências das várias regiões gregas.
Como se podem relacionar as duas personagens e, consequentemente,
as duas epopeias?
Trabalhos recentes tentam demonstrar a factualidade dessa rela-
ção e influência, fornecendo dados que atestam a sua possibilidade e a
possível transmissão, defendendo que os compositores e poetas da
Grécia arcaica devem muito às culturas do Próximo Oriente Antigo,
aos seus motivos literários, às suas concepções cosmológicas e teoló-
gicas, aos seus procedimentos formais e técnicos e até mesmo à fra-
seologia, ao discurso e às línguas. Onde se teria dado a transmissão?
Os argumentos apresentados como prova da possibilidade dos contac-
tos entre as culturas em análise são pertinentes. A arqueologia atesta os
contactos gregos com a Síria, onde os Fenícios, marinheiros e merca-
dores por excelência, tinham as suas principais cidades; contactos que
ocorreram essencialmente no período micénico e no século VI1I a.c.
Pelo que este povo deve ter tido uma importância primordial na trans-
missão de culturas, sendo particularmente relevante a sua posição geo-
gráfica, por onde Cananeus, Hebreus, Mesopotâmios, Anatólios, Egíp-
cios e Gregos circularam. Mas os contactos entre Gregos e Fenícios
não tiveram necessariamente de ocorrer na Jónia ou na Síria. Ambos
foram povos que encontraram o caminho para Ocidente e aí fundaram
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as suas colónias e entrepostos comerCIaiS. Em trânsito, os contactos
seriam até, eventualmente, mais frutíferos. Além disso, convém recor-
dar que a Epopeia de Gilgal71esparece ter sido um autêntico sucesso de
leitura no Próximo Oriente Antigo. Os fragmentos conhecidos esten-
dem-se no tempo do período sumério ao selêucida (o texto mais
recente, que apareceu até à data, remonta a 130 da nossa era, e foi
escrito em Babilónia); e no espaço distribuem-se por sítios tão disper-
sos como Hatusa, Nínive, Asur, Babilónia, Nipur, Ur, Uruk, Meguido,
Ugarit e Akhetaton (Amarna)".
Como se teria dado a transmissão? Através da leitura dos textos
orientais? O problema da língua tem sido evocado como dos mais
difíceis de resolver. Não tanto do lado oriental, onde a plural idade de
espaços, povos e contactos levou a uma tolerância e interculturalidade
acentuada. Frequentemente, cita-se o caso das cartas de Amarna, data-
das dos reinados de Amen-hotep II1 e lV (sec. XlV a.C.), uma colec-
ção de documentos enviados dos mais variados reinos, de Babilónia,
Assíria, Mitani, Hati, Arzava, Chipre, Ugarit e outras cidades de
Canaã, ao faraó do Egipto, maioritariamente escritos em acádico. Isto,
porque, durante o século XlV a.C., o acádico era linguafranca. Mas se
há evidência de que existia um claro domínio do acádico nos vários
reinos do Próximo Oriente Antigo no no milénio a.C., o mesmo não se
pode dizer do mundo micénic03. Acrescente-se o argumento, muitas
vezes evocado, da natureza grega, relutante em conhecer as línguas
daqueles a quem chamavam ~áP~IXPOt4. E se a transmissão tivesse
sido oral? Eis um ponto onde os autores que se têm dedicado a esta
questão preferem apostar. As semelhanças encontradas entre o cantor
profissional na Suméria, o naru, e o aedo e o rapsodo grego deixam
adivinhar um costume transversal e comum de ouvir as lendas e as
epopeias, antes de as passar a escrito. Além disso, não deixa de ser
curioso mencionar a tradição suméria segundo a qual o deus Enki tinha
atribuído as artes musicais a um cego. O que lembra o que os Gregos
nos contaram acerca de Homer05. É a transmissão oral que explica a
2 Sobre estas questões, M. L WEST, The East Face of Helicol1. West Asiatic
EIements in Greek PoetlY and Jfyth, Oxford, 1997: C. PENGLASE, Greek J\{vths and
J1esopotamia. ParolleIs and Influence in the Homeric Hymns and Hesiod, London and
New York. 1994 e A. GEORGE, op. cit., xxvi.
3 M, L WEST, op. ciL 592.
4 Ainda assim, M. L WEST, op. cit., 593 deixa em aberto a possibilidade de
terem existido algumas traduções da literatura oriental para grego via aramaico.
5 Na verdade, a música e o canto eram profissões «naturalmente» adequadas a
um cego, pelo que muitos cegos, em muitas sociedades, as escolheriam como modo de
\ida. Daí a associação e a coincidência.
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evolução da Epopeia de Gilgames, por exemplo, da forma como a
conhecemos no período sumério à forma como a encontramos no
período neo-assíri06. Fenómeno semelhante ao que deve ter acontecido
com os poemas homéricos. E tal como os Gregos atribuiram a compo-
sição final da llíada e da Odisseia a «Homero», os Babilónios fizeram
o mesmo, reclamando «Sin-leqe-uninni» como autor das aventuras de
Gilgames. Em ambas as culturas, é possível que esses cantores, ou
outros profissionais itinerantes, autênticos transmissores de cultura,
viajassem de cidade para cidade, de templo para templo, de casa
senhorial para casa senhorial, acompanhassem os exércitos e entreti-
vessem os soldados à noite com as histórias dos seus heróis e dos seus
deuses. Assim se terão ouvido contar as lendas de Aqhat, Keret,
Gilgames e Ulisses. Assim terão sido transmitidas em feitorias comer-
ciais nas costas mediterrâneas, mas também a mercenários e a traba-
lhadores itinerantes provenientes das mais diversas cidades, dos mais
diversos povos, que outra língua teriam necessariamente de ter apren-
dido para poderem comunicar as suas necessidades básicas. As dádivas
e as recepções teriam vindo por arrastamento. Terá sido mesmo
assim?7
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mai,' C/assica/ Stlldies in .Hemory of Kar/ H. HlI//ev, Chicago, 1984, 1-19: J. CORS I
MEYA, «Homer i l'influx de la mitologia oriental», Faventia 7/1 1985 7-19: J. R.
WILS00l, «The Gilgamesh Epic and the lliad». Échos dll monde c/assique 30 1986 25-
4 I: J. DUCHEMIN.jlythes grecs et sources orienta/es, Paris, 1995: S. MORRIS,«Homer
and the Near East» in I. Morris, B. PowelL eds .. A Xe1l' Companion to Homer.
Leiden/New York/Kêiln, 1997, 599-623.
R Não são. de forma alguma. casos únicos nas culturas grega e orientais. Têm
sido estudados paralelismos e possiveis influências entre a l/iada, os hinos homéricos,
Hesíodo, Ésquilo. sem mencionar narrativas mitológicas isoladas, e as diversas narra-
tivas contidas no Génesis e no livro dos Juizes, a Epopeia de Aqhat, a Narrativa de
Sinllhe, o Conto do nálifi'ago, o Conto dos dois irmãos, entre outros. Uma relação
entre a Odisseia e o Êxodo foi também já notada por J. MEDINA, Ulisses, o Europeu,
Lisboa. 2000. 47. 55-57.
9 Como as árvores dos deuses. árvores de cornalina carregadas de cachos de
uvas, árvores em que os frutos eram feitos de lápis-Iazúli, coral, ágata, hematite e
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«virgem» !o. Trata-se de uma deusa, como indica o determinativo acá-
dico que precede o seu nome, madura e sábia, que aparece velada
(kutummi kuttumat, pleonasmo que significa «velada com um véu») e
que habita junto do mar e da montanha do Sol. Caberá a Siduri instruir
o herói. A deusa começa por assustar-se com a chegada do forasteiro,
fazendo comentários para si própria e fechando-se dentro de casal I.
Gilgames pede-lhe que não tenha medo e conta a sua aventura,
pedindo-lhe ajuda para encontrar Uta-napistim. Ao saber da demanda
de Gilgames e depois de ter enumerado os feitos do herói, Siduri avisa-
o da futilidade da tarefa mas, ainda assim, indica-lhe o caminho para
chegar ao homem imortal. Gilgames arma-se com um machado e uma
espada e continua a sua demanda (EG XI, l-I 05).
Como se vê, são vários os elementos que permitem estabelecer
uma comparação entre Siduri e Circe e Calipso. Tal como as deusas
homéricas, também a taberneira ostenta o determinativo de divindade.
A relação de Circe com o Sol é conhecida: a deusa feiticeira era filha
dele. Eeia (Ata:t Y)), a sua ilha, é localizada no poema «onde a
madrugadora Aurora tem a sua casa com os seus coros e o Sol enceta o
seu curso» (Od XII,3 -4) e, apesar de não demonstrar medo dos recém-
chegados, parece senti-lo ao oferecer-lhes «mel fulvo com vinho de
Pramno, a que adicionou funestas drogas» (OdX,234-235). Tal como a
ilha, Eetes (Ahí-rY)s), irmão de Circe, tem sido relacionado com a
mitologia solar grega. Consequentemente, este ciclo parece ter um
parentesco com o da deusa babilónica Aia, a divindade da Aurora e a
esposa do deus-Sol no panteão mesopotâmico e hitita, associada ao
amor sexual. E até o nome de Circe (KípKY)) tem sido relacionado com
KípKOS, que tanto significa "círculo" como "falcão", sendo de notar
que o falcão foi usado como iconografia da divindade solar entre
Egípcios e FenÍcios. Acrescente-se que a palavra hebraica para falcão
outras jóias; enfim. uma espeCIe de paraíso e beleza para os olhos, Epopeia de
Gilgames X, 171-195. Seguimos J. NUNES CARREIRA,Literaturas da ,'v!esopotâmia.
Lisboa, 2002, 143 e consideramos as tabuinhas da versão ninivita da epopeia. também
conhecida como versão estandardizada, equivalentes a cantos.
10 Aliás, refira-se que apenas a versão hitita da epopeia indica o nome desta
mulher; a versão ninivita usa apenas o substantivo sabitu. a «taberneira». Convém
recordar que no Próximo Oriente Antigo esta referência tem uma conotação social
importante, pois representa não só o centro comercial da vida urbana que emergia e,
consequentemente, um espaço privilegiado de trocas de bens e ideias, como o apoio
encontrado pelos viajantes, comerciantes e guerreiros, que aí encontravam o que beber
e comer e muitas vezes onde pernoitar.
II Reacção que lembra a das servas de Nausicaa em Esquéria. quando encontram
Ulisses náufrago, Od. VI, 130-148.
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é TNi (ayah), uma forma feminina. Elementos que levaram a defender a
ideia de que Circe não era mais que uma interpretatio graeca daquela
deusa oriental12. Mas é ao nível da função do episódio que a seme-
lhança é maior. Em ambas as epopeias, é o aparecimento desta mulher
que permite ao herói continuar o seu caminho: na Epopeia de Gilga-
mes é Siduri quem indica a forma de atravessar as Águas da Morte e
chegar a Uta-napistim; na Odisseia é Circe quem revela a Ulisses o
caminho para o Hades, onde consultará Tirésias. Note-se que o episó-
dio de Circe é muito mais extenso que o de Siduri. Para isso contri-
buem algumas outras cenas, nomeadamente a amorosa, ausente da
narrativa sumero-acádica. Contudo, o convite amoroso de Circe e a
carga erótica que contém reporta-nos a Gilgames e à intervenção de
IStar que, atraída pela beleza do herói, o convida a deitar-se com ela
(EG VI, 1-21). Convite que o herói declina, lembrando à deusa o des-
tino de todos os seus amantes anteriores. Será esta ofensa que desenca-
deará a ü~ptS do herói, e as queixas da deusa ofendida lembram as de
Afrodite na llíada (Il.V ,336-370), tal como a vingança divina lembra a
de Posídon na Odisseia. Ao contrário de GilgameS, e ainda que
cauteloso, Ulisses aceita o convite da deusa (Od.X,336-344). É igual-
mente IStar que Circe recorda quando domina os animais. A deusa
mesopotâmica é também descrita como senhora de um carro puxado
por leões, feras que rodeavam o palácio da feiticeira grega, e Gilgames
acusa-a de transformar alguns dos seus amantes em animaisl3. Final-
mente, não deixa de ser curioso que a chave da imortalidade para
Gilgames seja uma planta e que a imunidade que Hermes dá a Ulisses
para que possa escapar aos encantamentos de Circe, uma forma de
morte, venha também a sob a forma de uma planta, a I-lWAU14.
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A outra mulher odisseica relacionável com Siduri é Calipso. De
algum modo, a história de Calipso é uma repetição da de Circe: a
deusa que habita a ilha encantada, a carga erótica que envolve UEsses,
a ascendência divina das mulheres. O episódio tem elementos que nos
levam a reflectir num também possível parentesco com Siduri. O seu
nome, por exemplo, K<XAu1jJw, derivado de K<XA Ú1C1W, significa «a
coberta» ou «velada», o que equivale à descrição que se faz de Siduri.
Também Aia, a deusa mesopotâmica da Aurora, é descrita como
velada, sinónimo de «noiva». A ilha de Ogígia, morada da divindade, é
descrita como um Éden na Odisseia (Od V ,61-73; cf. EG IX,171-190).
Jardim que deixa Argifonte, o visitante de Calipso, maravilhado; reac-
ção semelhante à de Gilgames quando chega ao jardim de Siduri, ape-
sar de a descrição do bosque dos cedros, onde vive o gigante Hum-
baba, ser ainda mais próxima da da gruta da ninfa. Assim como
Calipso instrui Ulisses a cortar árvores de Ogígia para fazer a jangada
que o levará ao seu destino, também Gilgames corta algumas depois
da entrevista com o barqueiro de Uta-napistim (EG X,158-168 e
OdV,162-166; 238-240). Por fim, os desígnios eróticos de Calipso
encontram também eco nos de IStar15. Mas eis um aspecto de disseme-
lhança: o herói grego é muito mais susceptível de ceder às tentações da
carne que o mesopotâmico. Já antes aceitara o leito de Circe
(OdX,325-344) e a rejeição de Calipso vem depois de ajá ter conhe-
cido, em todos os sentidos (uma vez mais, o episódio de IStar distribui-
se pelas duas mulheres odisseicas). Com apenas uma ou duas excep-
ções, o erotismo pouco se manifesta na história de Gilgamdl6. Já
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Ulisses, apesar de casado, apesar de a saudade que sente por Penélope
ser um dos elementos estruturantes da epopeia, passa pelo leito de
Calipso e de Circe. Porquê? Parece-nos que o amor e a sexualidade se
revestiram de uma função diferente no poema homérico. Tratar-se-á da
recompensa do herói? O direito ao usufruto do prazer carnal, oferecido
por deusas, como se isso o elevasse aos olhos dos homens? Talvez.
Note-se que Circe e Calipso estão entre o grupo das mulheres adúlteras
e o das virtuosas da epopeia, não havendo qualquer condenação por
parte do poeta da sua atitude, É com o episódio de Calipso que as duas
epopeias encontram também o seu maior ponto de convergência: a
recusa da imortalidade oferecida pela deusa de belas tranças e a perda
da planta que a conferia por Gilgames. O resultado de ambas as situa-
-
çoes e, o regresso a casa e a, or d em h umana na t ura 117.
Vejamos agora um segundo elemento de comparação: o apare-
cimento do maravilhoso que se manifesta em criaturas híbridas e ima-
ginárias, Na aventura de Gilgames, o seu lugar é ocupado pelos
homens-escorpião, pelo gigante Humbaba e, em parte, por Enkidu. É
verdade que na Odisseia não existe qualquer ser que se assemelhe aos
homens-escorpião da Epopeia de GilgameS (EG IX,41-141). Mas, de
algum modo, são um paralelo nas figuras das sereias odisseicas. Tam-
bém estas fazem parte de um mundo de fronteira não-humano e, con-
sequentemente, desordenado. Mas é a personagem do ciclope Polifemo
que de momento nos interessa analisar. Num outro estudo, analisámos
as funções de Polifemo como figura associada à natureza, símbolo de
tudo o que o «homem humanizado» não é na poesia homérica18. É isso
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que se conclui da sua forma monstruosa de gigante de um olho só, da
sua asebeia, anomia e misantropia, do seu desconhecimento do mundo
agrário. Na Epopeia de Gilgames, essa função é dada por Enkidu e
Humbaba. Antes de se tornar o grande amigo e companheiro de Gil-
games, Enkidu é apresentado logo no canto I como um selvagem:
corpo piloso, cabelos longos como os de uma mulher, desconhecedor
de povo ou país, vivendo em companhia dos animais selvagens, um
caçador recolector e não um agricultor, que só sabe beber o leite de
animais, ignorando o pão e o vinho (EG 1,100-160). Características que
se identificam com as de Polifemo na epopeia grega. Mas enquanto a
personagem homérica entra e sai de cena, desempenhando a sua função
e servindo para exaltar a astúcia e superioridade do herói, a persona-
gem mesopotâmica passa por uma transformação, devida à intervenção
do herói titular, que a humaniza. E a humanização chega através de
uma mulher, a prostituta Samhat, a portadora de sabedoria, e com ela a
única cena erótica concretizada de toda a epopeia. Depois de conhecer
o amor e o sexo, Enkidu perde o seu estado natural, simbolizado pelo
afastamento dos animais selvagens e pelo desejo de procurar a cidade
de Uruk, espaço onde se anda vestido e há festas (EG 1,160-250).
A introdução de Samhat faz pensar na função da prostituta sagrada na
Mesopotâmia, referência da maternidade e da fertilidade em geral,
sendo talvez essa associação que confira o estatuto de sábia à mulher
que «converte» Enkidu. Ou talvez se associe ao facto de aí a prostituta
ser uma realidade confinada aos limites do mundo urbano e, por con-
sequência, o princípio do espaço «humanizado»19. Ou talvez Samhat
apenas o tenha feito conhecer o amor e o amor humaniza ... Na Odis-
seia, mais prolífica em erotismo, essa função parece ter-se esbatido.
Apesar de também Polifemo se ter apaixonado. Mas essa foi uma outra
história, recordada mais tarde20. Pelo que, apesar das evoluções
diferentes nas mitologias em questão, parece estarmos perante uma
personagem com funções idênticas. Contudo, na Mesopotâmia, o
conhecimento da civilização e o afastamento do estado natural, leva-
100
ram à ü~ptS e à condenaçã02]. Sentido moral ausente na Odisseia.
onde o episódio prefere reter o humor. Mas a função Polifemo/Enkidu
parece ser partilhada na epopeia oriental com a de Humbaba, o guar-
dião da floresta dos cedros. A descrição não-humana deste, a forma
como aparece e pergunta por quem o perturba nos seus domínios
recorda também o canto IX da Odisseia. Mas desta vez a relação faz-se
através do mito do combate do pequeno contra o gigante e com a der-
rota deste, que encontramos em outras narrativas, como a de David e
Golias (1 Sm 17,12-58), por exemplo. A vitória de Gilgames sobre
Humbaba, que é como quem diz da cultura sobre a natureza, é a vitória
de Ulisses sobre Polifemo, e, nesse sentido, as epopeias voltam a con-
vergir em termos de caracterização dos seus heróis. Quer um quer
outro parecem deixar momentaneamente o mundo da cultura, como
consequência da ofensa divina, para fazer uma incursão no mundo da
natureza22 .
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fossem asas, como Ícaro, e o lança na Casa do PÓ, «a casa das trevas, a
morada de Irkala ... a do caminho sem retorno». As trevas são enfatiza-
das constantemente, recordando a terra dos Cimérios, onde nunca «o
Sol brilhante lhe envia os seus raios» e onde «uma noite de morte
estende-se sobre os infelizes mortais» (cf. Od.XI, 15-19 e EG VII,183-
190). Na Casa do Pó, Enkidu vê, entre outras, as sombras dos antigos
reis da terra, como Etana, que recorda a visionação de Agamémnon,
Aquiles e Minos na catábase deUlisses (Od.XI,385-575; EG VII,200-
205; cf. 1s 14,9, onde se evoca o mesmo tema). O sonho de Enkidu
termina com uma referência a Ereskigal, a deusa dos Infernos meso-
potâmicos, paralelo da alusão a Perséfone na Odisseia. Apesar de a
parte final da tabuinha da versão ninivita não ter sobrevivido, dá para
perceber que a extensão da catábase de Enkidu era menos profunda
que a de Ulisses. Além disso, se houve influência temática de uma para
outra epopeia, na de Gilgames não há reflexões filosóficas, ou narrati-
vas evocativas, apenas um pequeno catálogo mitológico. Tudo isso foi
contribuição original dos Gregos.
No poema conhecido como Gilgames e o Afundo dos j\i[ortos, a
descrição do inferno mespotâmico que GilgameS ouve da boca do seu
amigo Enkidu oferece outros paralelismos pertinentes. Depois de ter
perdido para o mundo inferior os talismãs que a deusa Inana lhe ofere-
ceu, Gilgames lamenta-se e o seu amigo decide empreender a viagem
de recuperação dos objectos ao reino dos mortos. Conhecendo os peri-
gos desse mundo, GilgameS dá a Enkidu uma série de avisos, que o
herói desrespeita, ficando por isso retido (algo como a história de
Orfeu e Eurídice ou a de Perséfone e a romã). Perdido também o com-
panheiro, Gilgames decide então pedir a ajuda de algumas divindades;
mas só Enki se mostra disponível para o fazer, pedindo ao deus Sol
que traga do mundo inferior a alma-sombra de Enkidu. Gilgames e o
amigo ficam frente a frente e estabelece-se um diálogo acerca do
mundo dos mortos, alimentado pela curiosidade do rei em saber como
é a vida além-túmul023. O episódio recorda a conversa de Ulisses com
a alma de Aquiles (como a deste com a de Pátroclo, na Ilíada). E é
através dela que temos as concepções mesopotâmicas do post mortem
e as referências éticas da relação mortos/vivos. Aliás, o tema sacrifício
publicada por A. GEORGE, op. cit., 175-191, que incluem fragmentos de versões de Dr
e Me-Turan. É também conhecido por tabuÍnha XI! ou supra-numerária. Para uma
análise do tema, A. HEIDEL, The Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels,
Chicago, 19707, 170-207.
102
T.:ItO pelos vivos/melhor condição das almas dos mortos está presente
.:m ambos os poemas: assim como o homem que tem mais filhos a
.:uidar da sua alma é mais bem tratado no além, também Ulisses pro-
mete às almas deambulantes sacrificar por elas em Ítaca. O diálogo
.:ntre os dois heróis mesopotâmicos atinge um grau mais filosófico que
as noções que compõem a versão de Nínive. Os conselhos dados a
Enkidu criam um ambiente que sugere também o do Hades homérico;
mas é na enunciação das almas que povoam o mundo inferior que de
algum modo os dois poemas mais se identificam. Gilgames pergunta a
Enkidu se viu (também aqui as formas do verbo «ver» são omnipre-
sentes) as sombras de diversos tipos humanos, que correspondem a
uma relação ética de modo de vida/consequências na morte. Estes des-
filam na boca de Enkidu como outras personagens passam em frente
aos olhos de Ulisses: o guerreiro que morreu em combate/Aquiles,
Pátroclo, Antíloco e Ájax; o homem que caiu do telhado/Elpenor; o
que ficou sem sepultura24/Elpenor; o que desrespeitou os pais e foi
amaldiçoado/Édipo(?); o que morreu prematuramente e é honrado
pelos vivos/ Aquiles; o que sofre a sede eterna/Tântalo; o pó (Koví ll)
que cobre Enkidu rodeia também Sísifo. Há discrepâncias de exemplos
que não têm qualquer paralelo, provavelmente sintoma de outras
preocupações culturais, desde já significativas na concepção que
preside à elaboração dos poemas e que só abona em favor dos textos.
:.v'Iasalgumas das almas anónimas da Mesopotâmia correspondem a
uma tipologia que também encontramos na Grécia e onde ganharam
um nome célebre, produto de uma mitologia mais elaborada. Acerca
deste episódio podemos ainda referir que a ordem para que Gilgames
faça um buraco no chão, a fim de a alma de Enkidu ascenda do mundo
inferior, tem o seu paralelo no conselho dado por Circe a Ulisses, para
que faça o mesmo e aí faça libações aos mortos (Od.X,516-520). Em
ambas as epopeias o mundo dos mortos é inferior e de trevas. Tal
como Gilgames sabe do destino dos seus pais a partir da visita de
Enkidu ao inferno, também Ulisses conhece o da mãe com a sua visita
ao Hades; e ambos os heróis abraçam, em vão, as almas sem consis-
tência dos seus entes queridos. É à viagem sobre as Águas da Morte
que a navegação de Ulisses em direcção à terra dos Cimérios se asse-
melha, assim como é com a de Uta-napistim que a função de Tirésias
encontra paralelo; é na descida ao fundo do mar em busca da planta da
imortalidade que encontramos o paralelo da catábase de Ulisses,
24 Surge nos versos 149-155 de uma versão acádica publicada por A. GEORGE,
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momentos iniciáticos que ganham sentido no homem renovado que
regressa à superfície. Contudo, nenhum destes episódios se encontra no
canto da evocação gilgaméshica dos mortos. Refira-se também que
enquanto a noção de felicidade está ausente do Hades odisseico, o
lrsitu sugere-a em relação a alguns casos25. De igual modo, registe-se
que enquanto as almas gregas manifestam um contínuo apego à vida,
interessando-se pelos vivos, as almas mesopotâmicas não o fazem. Se
houve influências, estas questões mantiveram-se apartadas.
Poderíamos citar e analisar outros exemplos onde o paralelismo é
possível26. Mas há também originalidades inegáveis, quer ao nível da
temática do episódio quer ao nível da composição daquele que parece
comum. Jacqueline de Romilly aponta mesmo uma diferença fun-
damental, ao afirmar que «em Homero, os heróis nem sequer desejam
a imortalidade, como por exemplo GilgameS ...; pelo contrário, Ulisses
rejeita-a quando prefere o regresso a Ítaca a uma união eterna com
Calipso. Não é possível imaginar universo mais deliberadamente
77
centrado no homem»~. Por outro lado, temas que encontramos
104
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mães; o inferno mesopotâmico tem uma palavra para a virgem e para a estéril (cf. EG
XIl,270-278 e Od.XI,260-329), por exemplo.
28 «Constitui um traço próprio da cultura grega o facto de ter-se inspirado nas
culturas orientais para logo se afastar progressivamente das mesmas.», diz também
J. de ROMILL Y, op. cit., 24.
29 Cf. M. H. URENA PRIETO. «Relendo Homero .. », Hwnanitas 46 19943-16.
105