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Jeanne-Marie Gagnebin*
*
Professora de Filosofia na PUC/SP e no IEL/UNICAMP.
mar, sem jamais retornar a Ítaca — o deus do mar ouve a prece de seu fi-
lho. Isto permitirá à Odisséia o desenvolvimento de numerosos episódios.
A interpretação de Adorno e de Horkheimer centra-se no primeiro ar-
dil de Ulisses, no fato dele não revelar seu verdadeiro nome. Distinguem
dois momentos essenciais nessa mentira salvadora: primeiro Ulisses é ca-
paz de distinguir, de separar o nome e o objeto nomeado, isto é, de superar
a identidade mágica-mimética entre o nome e o nomeado. Ele reconhece,
por assim dizer, a arbitrariedade do signo, reconhecimento altamente lógi-
co-racional, e se aproveita dessa distância ontológica entre as palavras e as
coisas para proteger sua vida. Mas só o consegue, num segundo momento,
porque aproveita a ambigüidade do nome, simultaneamente arbitrário e si-
gnificante, para se auto-denominar de ninguém. Isto é, na leitura de Adorno
e Horkheimer, Ulisses só consegue salvar sua própria vida porque aceita
ser identificado com a não-existência, com a ausência, com a morte, com
"ninguém". Esse gesto prefiguraria, então, a dialética fatal da constituição
do sujeito burguês esclarecido: só consegue estabelecer sua identidade e
sua autonomia pela renúncia, tão paradoxal quanto necessária, à vivacida-
de mais autêntica e originária da própria vida, de sua própria vida. Razão
esclarecida e adulto razoável conservam as marcas dessa violência — e
dessa proximidade com a morte. O preço da autoconservação do sujeito é,
pois, a renuncia à sua vida mais elementar:
1
Adorno, Theodor W. Dialética do Esclarecimento, Trad. de Guido Antonio de Almeida, Rio de
Janeiro, Zahar, 1985, pp. 70-71.
O que ele escuta não tem conseqüências para ele, a única coisa que con-
segue fazer é acenar com a cabeça para que o desatem; mas é tarde
demais, os companheiros - que nada escutam - só sabem do perigo da
canção, não de sua beleza - e o deixam no mastro para salvar a ele e a si
mesmos. Eles reproduzem a vida do opressor juntamente com a própria
vida, e aquele não consegue mais escapar a seu papel social. Os laços
2
Idem, p. 45.
3
Ver J.P. Vernant e M. Detiènne, Les ruses de l'intelligence, la Métis des grecs.