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1. Introdução
O título deste artigo é demasiadamente pretensioso, ainda que possa ser útil no sentido de
indicar o encaminhamento de algumas reflexões que não podem deixar de vir à tona quando o
corpus sobre o qual se deseja debruçar integra uma tradição tão marcadamente clássica quanto a
do gênero épico. A pretensão vem, principalmente, do conceito de “herança clássica”, pois seu
sentido é tão amplo, que exigiria muito mais que um olhar ligeiro sobre este ou aquele aspecto
que denote, em uma obra épica brasileira produzida nos séculos XVI, XVII ou XVIII, laços com
a tradição homérica e virgiliana, seja pelo viés do anacronismo, pelo da paródia, o da
referenciação ou o da intertextualidade, só para citar alguns.
A amplitude do tema abre fronteiras com várias áreas do conhecimento. Poderíamos, por
exemplo, falar em “herança estética”. Contudo, como afirma Benedetto Croce, “Uma gramática
de cunho filosófico e uma poética filosófica eram inconcebíveis na Antiguidade” (2016, p. 172).
A partir desse ponto de vista, seria arriscado afirmar que os “modos criativos clássicos”, pensados
na antiguidade greco-romana, foram retomados aqui e acolá pelos escritores do Brasil Colônia.
Croce, afinal, diz que a indeterminação clássica do conceito de mimese e a dificuldade de se
estabelecerem lugares próprios para a poesia e para a história impediram que, mesmo nomes como
Aristóteles e Filóstrato, estudados por historiadores da Estética, pudessem servir de argumento
para sustentar a existência de uma “estética clássica” formulada como pensamento sobre arte.
Sendo assim, não se pode, sem um profundo debate que ratifique ou contrarie Croce, dizer que
um Santa Rita Durão foi influenciado pela filosofia poética grega, ainda que traços daquilo que
Aristóteles – reconhecendo, de certo modo, a mimese como uma atividade teorética – apontou
como especificidades épicas possam ser encontradas, por exemplo, em Caramuru.
Poderíamos, de outro lado, tomar o que Werner Jaeger, em Paideia, afirma sobre a visão
platônica de Homero como um “educador”. Para o autor, o reducionismo de certas afirmações
sobre a estreita relação entre estética e ética na literatura grega levou a formulações equivocadas
sobre o que seria uma “função” para a literatura no contexto grego. Jaeger diz que:
Por outro lado, Jaeger concorda com a ideia de que “Na epopeia manifesta-se a
peculiaridade da educação helênica como em nenhum outro poema” (1995, p. 64). Sendo assim,
como não sondar em que medida um poema épico como De Gestis Mendi de Saa, escrito por um
jesuíta e colonizador, pode guardar, propositalmente, o registro do poeta/educador à moda de
Homero, ainda que tenha sido Virgílio a fonte maior da criação de Anchieta? Que falar, nesse
sentido, de uma obra como Muhuraida, cuja matéria épica tem explícito compromisso com a
veiculação da ideologia cristã-católica?
Também a Mitologia seria campo teórico de grande importância para a análise dessa
“herança clássica”. Muitas vezes compreendida pela crítica como mero recurso alegórico
esvaziado de sentido relevante no conjunto de uma obra pós-clássica, a presença da mitologia
greco-romana em epopeias produzidas através dos tempos, em diferentes espaços e com
diversidade linguística imensa, merece, ao contrário, uma contemplação bem mais profunda.
Segundo Jaeger:
Tomando esse olhar como válido, como não discorreríamos sobre o significado da
presença de Proteu em Prosopopeia, ultrapassando o reducionismo de uma visão que entendesse
a criação de Bento Teixeira apenas como exemplo do simulacro em Literatura?
Buscando, por outro viés, como foco de reflexão a “herança deixada por elementos
estruturais”, poderíamos refletir sobre a abundância de epítetos na linguagem épica clássica e
partir da significação dessa abundância para, em seguida, compreender seu uso em obras muitos
posteriores. Ou poderíamos, no mesmo caminho reflexivo, vislumbrar como as categorias épicas
“proposição” e “invocação” se fizeram e se fazem presentes em epopeias ocidentais como
“herança estrutural”.
Se nos voltássemos para o campo da Filosofia, esbarraríamos, mais uma vez, em Jaeger,
que ressalta que “A epopeia grega já contém o germe da filosofia grega” (1995, p 80). Se assim
o é, quão instigante não se faria dimensionar o conteúdo filosófico de uma obra como O Uraguai,
em que o locus amoenos dos princípios iluministas se faz representar pela figura do indígena?
Penetrando no campo da Política, lembraríamos o modo como Marilena Chauí, em
Introdução à história da filosofia, se refere à abordagem alegórica utilizada por Platão para
demonstrar a competência do político para “tecer” e “enlaçar”, como verdadeiro tecelão, o povo,
os homens, os escravos, em uma trama que resultará no tecido da Cidade (2002, p. 314). Nesse
sentido, como não nos atentaríamos para as colocações de Ivan Teixeira, quando reflete sobre a
visão de O Uraguai como alegoria do Estado Português (1999, p. 494-507)? Como passaríamos
por De Gestis Mendi de Saa, sem referendar Padre Armando Cardoso, quando reconhece na
urdidura da epopeia anchietana “o efeito magnífico de leis verdadeiramente civilizadoras, da
fundação das aldeias que se tornarão cidades, e da morigeração do ambiente que influenciará
profundamente a vida das famílias brasileiras” (1986, p.41)? Seria inválido realçar a presença da
Política como fator inerente à natureza do texto épico?
Se nos amparássemos nos estudos semióticos para confrontarmos os sentidos plurais
elaborados em Ilíada, por exemplo, e os que as epopeias brasileiras construíram, teríamos, como
pontos possíveis de partida, visões muito interessantes, como a de Salvatore D’Onofrio, para
quem:
Não poderíamos, tomando como base o olhar de D’Onofrio, estabelecer uma comparação
entre a construção das personagens em Ilíada e as que se dão em Uraguai, Caramuru e Vila Rica,
nas quais todo o repertório colonial se faz representar por personagens emblemáticas que
sustentam o processo de clivagem, por exemplo?
Há, ainda, o que poderíamos chamar de “herança histórica”, que residiria na própria
história da literatura ocidental como universo de constantes referenciações, muitas das vezes
utilizadas, principalmente no âmbito da produção épica, como recurso de filiação à própria
tradição referenciada. Criou-se, no âmbito do épico, tal como revela explicitamente a Divina
Comédia, uma confraria de poetas épicos entre os quais se firmou uma espécie de “pacto” de
constante exercício de superação.
Estudos sobre as reverberações da tradição clássica estão, nesse sentido, minuciosamente
presente nos dois volumes que compõem La tradición clásica, de Gilbert Highet, para quem:
Não menos importante seria a abordagem da “herança das traduções”. No artigo “Las
traducciones de Homero em América Latina”, Emilio Crespo y Jorge Piqué discriminam como as
traduções das epopeias homéricas circularam e circulam no universo luso e castelhano. Citando
desde os primeiros tradutores portugueses e firmando o século XIX como o que instaurou a prática
das versões em português dos poemas homéricos (ainda que registrem uma suposta versão em
português da Ilíada do século XVI), os autores revelam a complexidade do fenômeno da
tradutibilidade de Homero. Quando elegemos, como corpus, tanto obras épicas de séculos
anteriores ao XIX como posteriores, verificamos quão complexo é tratar dessa “herança” se não
temos competência para avaliar as relações implicadas no trabalho com o idioma grego. Além
disso, como afirmar quais foram as fontes em que se baseou um poeta épico do século XVIII para
compor sua própria epopeia?
Em outra extremidade, teríamos os estudos teóricos sobre o gênero épico propriamente
dito. Como não buscaríamos, em Virgílio, Tasso, Camões e Milton, de Cecile Bowra,
pressupostos que explicassem os modos de circulação da oralidade épica e da epopeia homérica
no seio da cultura ocidental? A diferença que Bowra estabelece entre “poesia épica espontânea”
e “poesia épica literária” seria crucial, por exemplo, para compreender o porquê de boa parte da
crítica ter firmado na existência de uma prévia oralidade a condição básica para a existência e o
reconhecimento de uma epopeia como tal. Bowra, a esse respeito, destaca:
A Literatura Brasileira tem suas raízes fincadas na tradição literária luso-europeia, forjada
nos longos séculos da civilização ocidental e naturalmente transplantada para o Brasil nos séculos
XVI e XVII, quando segmentos mais cultos da sociedade brasileira começaram a produzir
literatura. Essa tradição cunhava as formas artísticas, definia a condição humano-existencial de
ser e estar no mundo civilizado, determinava a concepção literária renascentista e barroca, e
induzia ao questionamento da relação do homem com o mundo a partir da experiência vivencial
herdada da Idade Média e do Renascimento, segmentos naturais das culturas europeias.
No século XVII, a integração da tradição épica na Literatura Brasileira foi
sobredeterminada pelas condições socioculturais da realidade colonial que motivava a classe
intelectual a elaborar uma expressão literária nativa que fosse reconhecida pela metrópole. Por
outro lado, para a criação de uma expressão literária colonial com feições próprias era necessária
a construção de uma narrativa literária de sua fundação histórica, dotando a tradição cultural
americana de uma identidade heroica nativa. Não é, assim, por acaso que se dá o resgate da
tradição épica, já que a epopeia, preservando a memória ancestral das narrativas míticas da
tradição oral, se apresenta, no curso da literatura ocidental, como a forma poética adequada para
celebrar e perpetuar a identidade heroica de um povo através da divulgação das conquistas de
seus heróis.
No Brasil (e em outras nações que passaram pela condição colonial), esse processo de
resgate épico não foi herdado de uma tradição oral nativa, uma vez que a produção cultural
indígena brasileira não incluía a oralidade épica. A tradição épica brasileira já nasceu, portanto,
sob o signo da inventividade literária, marcadamente norteada, em termos formais, pela tradição
épica europeia importada, em especial a camoniana. Contudo, se, de um lado, são irrefutáveis as
reverberações da épica europeia em solo brasileiro, de outro, também o são as transformações que
essa herança sofrerá ao ser contaminada tanto pela vivência cultural de uma terra habitada por
nativos, cujas peculiaridades identitárias são próprias e incongruentes, em muitos aspectos,
quando postas ao lado da cultura importada, quanto pela influência do regime escravocrata e a
consequente presença dos referentes culturais africanos na gradativa formação do Brasil como
nação independente.
As epopeias brasileiras do século XVIII realizaram literariamente matérias épicas em que
se fundem referenciais simbólicos da aderência mítica nativa com eventos históricos da
colonização, que constroem, por isso, uma narrativa literária da formação histórica do Brasil
1 O Prof. Dr. Marcos Martinho (USP), em recente conversa sobre o tema, me esclareceu alguns pontos acerca da divisão
de uma epopeia em cantos ou livros. Esse fenômeno se deu nos séculos III ou IV, quando gramáticos alexandrinos (tais
como Zenódoto de Éfeso e Aristófanes de Bizâncio) passaram a dividir as epopeias homéricas em 24 partes. Essas
produções, até então, tinham um bloco único.
2 As considerações desta parte do artigo remontam à obra História da epopeia brasileira. Das origens ao século XVIII,
3Também as sínteses aqui apresentadas foram fruto das análises presentes no segundo volume de História da epopeia
brasileira. Estas sínteses serão incluídas no “Mapeamento épico”, em desenvolvimento e a ser disponibilizado on-line
pelo CIMEEP, Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos Épicos.
e criou o “Canto de Proteu”, que profetizará a importância de Olinda como a “Nova Lusitânia”,
buscando inserir Albuquerque em uma galeria clássica de heróis.
O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, compõe-se de 1.377 versos decassílabos e
brancos, agrupados em cinco cantos com estrofação livre, antecedidos por uma Carta Dedicatória
e um soneto dedicado ao Conde de Oeiras, formando, junto com as notas explicativas ao longo
do poema e dois sonetos ao autor no final, um paratexto explicativo. Foi concebida para exaltar o
governador e bandeirante Gomes Freire de Andrade por sua intervenção histórica junto às Missões
Uruguaias dos Sete Povos, ponto de conflito entre os governos de Portugal e Espanha e, mais,
ponto de conflito entre a então politicamente decadente Companhia de Jesus e a filosofia
pombalina. Na intenção épica implícita no poema, contudo, quem acaba tornando-se herói é o
índio guarani Cacambo, que revela, no tenso diálogo com Gomes Freire, uma consciência crítica
em relação à dupla exploração que jesuítas e bandeirantes exerciam sobre as tribos que
dominavam. Essa realidade cultural ganha relevância mítica quando Cacambo penetra no
maravilhoso, por meio da aparição do índio Sepé, morto na batalha, que o instruirá no sentido de
não desistir da luta pela posse da terra que lhes foi legada por seus ancestrais, ainda que sob a
condição de morrer. Cacambo executou a ação heroica recomendada com sucesso, mas foi morto
ao retornar à aldeia, entretanto, sua figuração assume função redentora, no sentido de animar a
consciência da presença indígena, com seus valores, no seio da cultura brasileira.
Vila Rica (1773), de Cláudio Manuel da Costa, compõe-se de 2.718 versos decassílabos
com rima emparelhada e estrofação livre, distribuídos em dez cantos de extensão irregular, e
circulou em cópias manuscritas no Brasil e no exterior até sua primeira edição gráfica em 1839.
Sua matéria épica é a fundação da cidade de Vila Rica, que tem sua dimensão real reconhecível
na sequência de eventos históricos que, encadeados no percurso da viagem do governador
Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho às Minas Gerais, no início de século XVIII, culminam
com a fundação da cidade de Vila Rica em 1711. Tal como fez Camões, Claudio Manuel da Costa
vai usar abundantemente do episódio lírico para fazer a interação entre os planos estruturais do
poema e projetar o seu herói, que se filia à estirpe do herói civilizado e pacificador e não à do
herói guerreiro tradicional, e o relato histórico no plano maravilhoso. Os eventos históricos se
prendem a diferentes temáticas da História do Brasil, como as guerras regionais, no caso a dos
Emboabas, as campanhas contra os índios, as viagens dos bandeirantes, a descoberta do ouro, a
conquista do sertão, a mineração e a fundação de povoados. Todas essas temáticas tiveram
desdobramentos no curso de nossa formação histórica, culminando, não raro, com luta e
derramamento de sangue. Os vários eventos atrelados à trajetória do herói servem de roteirização
histórica para a fundação de Vila Rica que é, de acordo com a proposição do poema, o evento
central.
Seguindo a tradição homérica, embora também bastante influenciado pela concepção
épica camoniana, o poema épico Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, contém 6.672 versos
decassílabos, agrupados em oitavas reunidas em dez cantos. A matéria épica – a colonização do
Brasil – se origina da lenda brasileira que envolve as figuras de Diogo Álvares Correia, náufrago
português, cujo domínio da arma de fogo, desconhecida dos indígenas, projeta-o na dimensão
mítica, e lhe permite escapar de ser devorado pela tribo antropófaga, que passa a chamá-lo de
“Caramuru”; e de Paraguaçu, posteriormente Catarina, por quem Diogo/Caramuru se apaixona e
com quem se casa na corte francesa do rei Henrique II e de Catarina de Médicis. Após o retorno
ao Brasil, os heróis do poema, Caramuru e Paraguaçu, assumem a “missão” de direcionar o
humano ao divino, com a decorrente extrapolação da compleição carnal e a expurgação de
sentimentos e gestos espiritual e socialmente negativados. São, portanto, instrumentos para um
processo de colonização baseado na ideologia cristã. Ambos são personagens que ainda hoje
integram o repertório cultural baiano como fundadores do Brasil Colônia. Santa Rita Durão,
através de recursos criativos que integram ao poema a lenda de São Tomé e a visão profética da
Virgem Maria, que aparece a Paraguaçu, soube fundir os planos histórico e o maravilhoso em um
enredo coeso que ainda em nossos dias sobrevive no rol das narrativas e lendas que integram o
folclore brasileiro.
O poema Muhuraida (1785), de Henrique João Wilkens, composto por 1.072 versos,
agrupados em 134 oitavas distribuídas em seis cantos (Cantos II e VI com 23 oitavas, e os outros
com 22) permaneceu desconhecido do público até a década de 1990, quando começou a despertar
o interesse dos estudiosos da história, da etnografia e da literatura amazônica. Sobre a matéria
épica – a conversão dos indígenas ao catolicismo – pode-se dizer, a rigor, que o poema de Wilkens
reconstrói o cenário histórico do confronto do colonizador com os índios, para nele inserir o relato
da conversão de um índio Mura à fé católica, mediante a intervenção de um anjo enviado por
Deus, que lhe fala diretamente, tomando a aparência física de um índio, parente do Mura, julgado
morto. Como resultado, o Mura convertido consegue incutir a mesma fé nos companheiros,
levando sua tribo a desistir da luta e a procurar acomodação nos aldeamentos, mediante uma
rendição voluntária. O Mura cristão, assim, profere um discurso evangelizador que repudia a
identidade histórica do passado guerreiro e incentiva a deposição das armas e uma rendição
voluntária e pacífica.
Passemos, agora, ao recorte aqui proposto para a investigação da herança clássica
possivelmente presente nas proposições dessas seis obras épicas do Brasil Colonial.
4Este estudo é parte integrante da pesquisa de pós-doutorado “A proposição épica à luz do anacronismo em literatura”,
desenvolvida em parceria com investigações sobre o anacronismo em literatura (Programme Anachronismes porteurs)
propostas pela equipe Équipe “Écritures et Interactions Sociales”, do Centre de Recherches sur les Littératures et la
Sociopoétique - CELIS (Université Clermont-Auvergne, França) e coordenada por S. Neiva e B. Mathios.
Investigando, em nível de amostragem, a presença da proposição em epopeias de diferentes nacionalidades e épocas,
com destaque para as produções modernas e pós-modernas, nos idiomas português, espanhol, inglês e francês,
averiguamos a hipótese de ser possível encontrar, nessas obras, casos em que o anacronismo pode envolver distintas
perspectivas.
estabelecimento de uma “filiação” literária, mas pode fazê-lo por encontrar em produções
anteriores o instrumento necessário para dizer algo que, afinal, de algum modo assemelha-se ao
que veio antes.
Luzzi também lembra a visão de Armstrong em relação ao ato da leitura, destacando que
o “desmascaramento” de textos literários não seria um fim em si mesmo, mas um meio para se
aproximar das revelações da obra que se lê. Quando se observam, portanto, aspectos anacrônicos
dentro de uma obra literária, pode-se chegar a diferentes anacronismos, a depender da intenção e
da função dos episódios ou recursos identificados como apropriações ou estruturas dialógicas em
relação a obra ou obras anteriores. Luzzi lembra as categorias Morier – progressive anachronism,
generalized progressive anachronism, regressive anachronism ou catachronism – e nos faz
entender que a termo “anacronismo” é pleno de sentidos e de manifestações diferentes e até
divergentes. A visão de Goethe, entretanto, de que toda poesia lida essencialmente com
anacronismos (LUZZI, 2009, p. 71) sintetiza que não é possível elidir obra literária e referências
estéticas externas, visto ser esse processo de reinvenção da tradição um dos mais relevantes e
notórios fios condutores da história da literatura ocidental. Esse ponto de vista ratifica a expressão
de Lukács “necessary anachronism”, ainda que seja importante discernir o aparecimento não
intencional, em textos literários, de relações históricas inconcebíveis para quem vive em tempo
diverso do aquele que foi tomado como referência.
Aravamudan, por exemplo, ainda sustentado nas formulações de Vico, reflete sobre o
conceito de “nação” e as injunções decorrentes de uma suposta pretensão à originalidade e ao
decorrente autocentramento que está na base de todo nacionalismo.
Esse aspecto nos serve para pensar o anacronismo em literatura, sob o ângulo das relações
entre dominadores e dominados ocidentais como fruto de um processo milenar de subserviência
dos povos colonizados aos povos colonizadores, que se reflete na presença maciça de referentes
eurocêntricos em produções literárias dos continentes americanos, por exemplo. Assim, longe de
“condenações”, a discussão sobre o anacronismo no âmbito da épica brasileira, principalmente
aquele anacronismo em que se aproximam temporalidades distintas, criando lapsos de sentido,
incongruências de visões de mundo ou mesmo uma artificialidade totalmente supérflua, busca
identificar justamente o processo de formação de uma identidade literária nacional, reconhecendo
seus momentos de ruptura com uma tradição que é importada apenas pela condição de um suposto
status que conferiria à obra produzida. De certo modo, a aparição de anacronismos “abusivos” ou
“naïfs” relevaria uma subserviência em relação ao outro, já tomado como referência identitária
obrigatória.
Em contrapartida, tal como afirma Aravamudan, “just as antiquarian fetichism and
transgressive modernity may clash in literature, there are radical instances of historians
practicing deeply creative history even as they revive the role of anachronism” (2001, p. 342),
logo, intervenções criativas que promovem, em literatura, relações entre espaços, tempos e
estéticas aparentemente incongruentes podem fazer do anacronismo um recurso para se alcançar,
em relação ao literário, uma identidade estética e mesmo conceitual própria. Essa visão nos parece
compatível com o que Domitille Caillat entende por “temporalidade” (temporalité):
“positionnement de l’énonciation de référence par rapport à l’intervention en cours” (2012, p.
427), ou seja, para nós, que trabalhamos com o texto épico, a temporalidade será atualizada
quando lida a partir da relação entre o tempo daquilo que está sendo referenciado e o tempo em
que a própria manifestação discursiva se insere. E da análise dessa relação é que se poderá afirmar
algo sobre o tipo de anacronismo que se pode reconhecer.
Seguindo o que propõe a pesquisa desenvolvida pelo Programme Anachronismes
porteurs, do Centre de Recherches sur les Littératures et la Sociopoétique – CELIS, o
anacronismo será considerado a partir de quatro eixos conceituais: (a) o anacronismo que integra
representações equivocadas do passado; (b) o anacronismo que elide temporalidades distintas,
aproximando referentes; (c) o anacronismo como emulação criativa; e (d) o anacronismo como
um código “retro” intencional.
Passemos, agora, à proposição épica como aspecto a ser observado de modo a nos
aprofundarmos um pouco na questão do anacronismo na produção épica até o século XVIII.
ESTUDO DA PROPOSIÇÃO
I
As armas e os barões assinalados
Que, da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram.
6 Conforme Antônio Geraldo da Cunha, “’palavra ou frase que qualifica pessoa ou coisa’, ‘congnome’” 1982, p. 308).
Vejamos agora, pelo viés do estudo da proposição épica, como a “herança clássica”,
deixada por Homero e Virgílio, e a “renascentista”, deixada por Camões, reverberarão na
produção épica brasileira até o século XVIII.
.
Há, entretanto, variações. O uso da forma verbal no futuro, por exemplo, indica ainda
mais claramente que em Eneida a autoria da composição literária. O “começarei a cantar” e o
“cantarei” projetam o que vai ser narrado numa temporalidade futura, ainda que o fato seja
histórico. Isto é, a elaboração discursiva promove, no/a leitor/a a expectativa de saber “como” o
fato será narrado. Ainda que, mais adiante, apareça a invocação a Jesus (que, neste caso, será
herói, nomeado como “Cristo” e também assumirá a função da musa, nomeado como “Jesus”), o
eu-lírico/narrador toma categoricamente para si o lugar da instância de enunciação. Mantém-se,
em relação aos modelos homérico e virgiliano, o uso do epíteto (“Cristo Rei”) e a imediata relação
entre proposição e invocação. Na proposição de De Gestis Mendi de Saa, entendemos se
presentificar o anacronismo que elide temporalidades distintas, com o intuito de conferir ao
poema o “tom grandioso” da tradição épica. O que se revela, entretanto, curioso na epopeia de
Anchieta é a atribuição do heroísmo a Cristo
Prosopopeia (1601, Bento Teixeira) apresenta, igualmente, uma proposição não nomeada
integrada ao primeiro canto ou livro. Uma leitura rápida já indica estar ali uma clara peça criada
aos moldes de Os Lusíadas, principalmente naquela tônica de querer superar modelos anteriores,
o que, neste caso, conferirá ao anacronismo o caráter de elidir temporalidades distintas,
aproximando referentes, em recurso de evidente artificialismo:
Assim, com uma proposição não nomeada, integrada ao primeiro canto, com centramento
na figura do herói e com conteúdo predominantemente metalinguístico, Bento Teixeira inaugura
seu poema deixando, simultaneamente visíveis, a herança clássica (nas referências às obras
homérica e virgiliana) e renascentista (no pastiche da proposição de Os Lusíadas), e os vínculos
com a concepção religiosa recolhida do verso “Cujo valor e ser, que o céu lhe inspira”. O uso da
primeira pessoa, que assume o próprio canto, e o recurso retórico artificial de desejar superar os
modelos clássicos configuram um exemplo básico do que teria sido, segundo Aravamudan, a
primeira visão de Giambattista Vico, para quem “any history that is less than the total of all
possible histories risks being anachronistic” (2001, p. 333). Muito longe de ter material literário
para, de fato, poder confrontar sua obra com a herança épica clássica, ou mesmo com a camoniana,
a obra de Bento Teixeira se mostra anacronicamente refém de determinados aspectos estruturais,
ainda que, no decorrer do poema alguma inventividade lhe garanta méritos de outra natureza.
Relembrando, mais uma vez Aravamudan, “Literary history, meanwhile, has often built
its empires on the shaky ground of textual traditions” (2001, p. 343), entendemos que a concepção
épica de Bento Teixeira se fundamenta no modelo clássico e no camoniano como uma espécie de
“império” a ser tomado como fonte inexorável de acesso ao reconhecimento épico. Daí o tipo de
anacronismo presente em sua obra.
Os versos iniciais de O Uraguai
também apresentam uma proposição do tipo não nomeada e integrada ao primeiro canto, com
foco em um herói ainda não nomeado, ainda que presente com “H” maiúsculo, e em seus feitos,
com caráter referencial, ou seja, não contempla a dimensão mítica da matéria épica (a Guerra das
Missões). Podemos observar que o eu-lírico/narrador se une à musa na função de “honrar” a
história a ser narrada. Contudo, não aparece o epíteto nem a tradicional menção a “cantar”. A
forma “honremos”, que integra eu-lírico/narrador e Musa na parceria da enunciação, parece
sutilmente realçar o compromisso do poeta com o registro fidedigno ao fato histórico abordado e
possibilita, ainda que muito precariamente, intuir que, em seu poema, Gama fará uso de uma série
de recursos inventivos, que acabarão conferindo a Cacambo e não a Gomes Freire o heroísmo
épico.
Para que fique mais fácil compreender as afirmações acima feitas, lembramos que, de
forma curiosa, no decorrer do poema, o poeta, além de evitar a utilização do maravilhoso clássico,
deixa de exaltar no seu herói a excelência humanista do civilizador cristão, movido por ideais
nobres e altruístas de liberdade, coragem e justiça, indispensável para a configuração do herói
pacifista, glorificado pela ação moral inerente aos seus feitos. Por isso, Gomes Freire de Andrade,
construído no poema a partir da ótica cultural do colonizador, carece da condição mítica do herói,
por ser retratado apenas como um soldado que executa os decretos reais que se torna um “braço
punitivo do Rei”, mas falta-lhe a grandeza de espírito para avaliar a justiça e a responsabilidade
de seus atos.
Sob o mesmo enfoque, os índios são um “povo rude”, inculto e bárbaro. O general
português, comandando uma tropa paramilitar luso-espanhola, marcha em direção a uma aldeia
indígena, com a suposta missão de pacificar os índios missioneiros revoltados e libertá-los do
jugo escravizante dos padres que os incitavam à rebeldia, efetivando, ao mesmo tempo, a troca
da colônia de Sete Povos das Missões pela colônia do Sacramento, segundo a determinação do
Tratado de Madri.
A Guerra de Troia e seus heróis eram por demais conhecidos na tradição oral das
narrativas míticas, dispensando a inserção de um contexto informativo da guerra no relato
narrativo. Homero, contando com o paratexto externo das narrativas míticas, construiu a matéria
épica sobre um episódio localizado, sem precisar inserir um amplo contexto da guerra no corpo
do poema. Já Basílio da Gama, para suprir a falta de informação sobre a guerra guaranítica, criou
um paratexto externo e, excluindo a expedição de Gomes Freire de Andrade do maravilhoso
indígena ou do plano maravilhoso do poema, fez do relato histórico da campanha luso-espanhola
no poema, um contexto interno da guerra, no curso da qual insere a batalha de Caiboaté.
Nesse sentido, foi provavelmente inspirado em Camões, que, por sua vez, utilizou três
dos dez cantos de seu poema para contextualizar a História de Portugal e nela inserir a viagem de
Vasco da Gama. Assim como a História de Portugal desempenha, em Os Lusíadas, a função épica
de servir de contexto para a viagem e de suporte para construção da identidade heroica de Vasco
da Gama, a história da guerra guaranítica contextualizada no poema, servindo de contexto para a
batalha de Caiboaté e de suporte para construção da identidade heroica de Cacambo, exerce a
mesma função. Desempenhando uma função épica específica, a campanha de Gomes Freire de
Andrade torna-se um recurso poético internamente construído, desvinculando-se do
condicionamento externo dos referentes ideológicos e laudatórios.
Entendemos o anacronismo em O Uraguai como uma emulação criativa, que abre espaço
à inventividade do próprio poeta, que não denota preocupação em seguir fielmente nenhum dos
recursos épicos das tradições clássica e renascentista, mas apenas buscar neles meios para
alcançar sua própria notoriedade. Daí, inclusive, o curto número de cantos que seu poema possui.
A proposição da obra Vila Rica, diferenciando-se da tradição clássica e renascentista,
constitui um interessante caso de proposições múltiplas, uma vez que apresenta dois tipos de
proposição: a proposição nomeada, em destaque, e em forma de prosa, que, na obra, são duas:
“Prólogo” e “Argumento histórico” e proposição não nomeada integrada ao primeiro canto. O
teor de “Prólogo” é bastante esclarecedor no que se refere à intencionalidade épica do autor e ao
comentado desprestígio da épica no século XVIII, quando os parâmetros épicos clássicos
começaram a ser ou contestados ou valorizados como um cânone já não atingido pelos poetas
épicos neoclássicos anteriores. Por essa razão, pode-se dizer que a ênfase dessa primeira
proposição está no plano literário, o que confere a Costa a precoce condição de problematizar, em
texto metalinguístico (que, inclusive, dialoga com o leitor), a condição épica de uma obra.
Vejamos um trecho dessa proposição:
Leitor,
Eu te dou a ler uma memória por escrito das virtudes de um Herói que
fora digno de melhor engenho para receber um louvor completo. Não é
meu intento sustentar que eu tenho produzido ao mundo um poema com
o caráter épico; sei que esta felicidade não conseguiram até o presente
momento aqueles homens a quem a fama celebra laureados na Grécia,
na Itália, em Inglaterra, em França e nas Espanhas. Todos se expuseram
à censura dos críticos, e todos são arguidos de algum erro ou defeitos;
a razão pode ser a que assina um bom autor: inventaram-se leis aonde
não as havia (2008, p. 691).
O comentário final – “inventaram-se leis aonde não as havia” – demonstra a visão crítica
de Costa em relação ao tratamento crítico recebido pela produção épica e que, por fim, acabaram
trazendo a ideia do esgotamento do gênero. Também a natureza da épica literária fica expressa
em ‘memória por escrito”, que denota a consciência do poeta de ser porta-voz de uma história
que, em muito, dependerá de sua própria memória para acontecer. Nesse trecho, caberia,
inclusive, o questionamento sobre seu caráter de ser uma defesa prévia da própria acusação de
anacronismo integração de representações equivocadas do passado.
Por outro lado, “Fundamento Histórico”, a segunda proposição em prosa, centra-se
exclusivamente no plano histórico, como indica o próprio título. De longa extensão, o texto se
abre com novo parágrafo metalinguístico, para, então, seguir com a proposta por ele elucidada:
“escrever esta preliminação histórica” (2008, p. 693). Na concepção de Cláudio, as notas,
subgênero também muito presente nas epopeias, não seriam suficientes para oferecer ao leitor a
base contextual para a compreensão do poema. Assim, em lugar de notas, oferece esse prólogo
de intenção historiográfica.
Assim sendo, podemos destacar que Costa cria um paratexto informativo, composto pela
“Carta Dedicatória”, “Prólogo” e “Fundamento Histórico”, que antecede o poema, e as notas que
o acompanham. O “Fundamento Histórico”, certamente inspirado em Voltaire, que compõe com
os demais o plano de referência do poema, não constitui nenhuma aberração, até pelo contrário,
é um elemento indispensável da épica. A epopeia, nutrindo-se do real e do mito, exige, muitas
vezes, para a perfeita compreensão de sua dimensão histórica, a existência de um paratexto que
sirva de suporte ou fundamento histórico dos eventos narrados. A Ilíada de Homero não seria
entendida, nem em sua época nem na nossa, sem as diversas narrativas míticas sobre a guerra de
Troia e sobre os heróis gregos que integraram o exército de Agamenon; e a Eneida, de igual modo,
sem o conhecimento do paratexto lendário e de obras como Annales de Ênio. Quando o paratexto
histórico externo se perdeu devido à criação de matérias épicas apartadas da tradição oral, se fez
necessária sua inclusão na matéria narrada do poema, como Camões, por exemplo, que dedica
três dos dez cantos de Os Lusíadas para contar a história de Portugal que servirá de contexto para
a viagem de Vasco da Gama. Ou como Basílio da Gama fez em O Uraguai, utilizando a
contextualização da guerra guaranítica como suporte da ação heroica dos índios na batalha de
Caiboaté.
Voltando-nos à Proposição, temos uma terceira, não nomeada e inserida no primeiro
canto, que será sucinta e estará centrada no plano histórico e na figura do herói, sem destacar-lhe
ainda o feito. Cabe observar que, tal como Gama, Costa faz uso de um “nós”, que une a musa e o
eu-lírico/narrador na responsabilidade de “cantar” a matéria épica.
CANTO I
I
De um varão em mil casos agitado,
Que as praias discorrendo do Ocidente,
Descobriu o Recôncavo afamado
Da capital brasílica potente:
Do Filho do Trovão denominado,
Que o peito domar soube à fera gente;
O valor cantarei na adversa sorte,
Pois só conheço herói quem nela é forte
(2008, p. 363).
Na proposição criada por Wilkens não aparece o epíteto, uma vez que não há a
identificação de um herói. Como a epopeia de Wilkens é religiosa, parece mais natural que se
distancie da tradição clássica. A Proposição se faz seguir pela invocação judaico-cristã,
metatextual e tradicionalmente inserida no poema. Seu valor abstrato que sugere uma energia
espiritual não personificada. Contudo, a presença, no Canto I, da alusão à “minha musa casta”
(WILKENS, 1993, p. 109) confere ao poema uma tonalidade clássica. No conjunto da obra, há
algumas referências vocabulares relacionadas ao repertório clássico pagão, mas esse fato não
chega a configurar um anacronismo relevante.
Se houvesse referenciado obras como Jerusalém Libertada, de Tasso ou Paraíso Perdido,
de Milton, talvez pudéssemos abordar o anacronismo sob o viés da presença da tradição religiosa
na literatura. Mas isso não se deu. Assim, entendemos a emulação à épica camoniana como um
anacronismo que elide temporalidades distintas, aproximando referentes, apenas para inserir a
nova obra em uma tradição literária.
Conclusão
Como dissemos na abertura deste artigo, falar em herança clássica na literatura é pisar em
terreno movediço. Seja pelo viés da herança clássica estética, seja pelos da herança clássica
filosófica, mitológica, política ou pedagógica, entre outros, muitos são os pontos possíveis de
aproximação entre as obras literárias gregas e romanas e as que o Ocidente produziu através dos
tempos. Aproximações que, elidindo eventos e tempos discrepantes, revelam as manifestações
literárias como frutos necessários da expressividade humana.
Tal como vimos, José de Anchieta, Bento Teixeira, Basílio da Gama, Santa Rita Durão,
Cláudio Manuel da Costa e Henrique João Wilkens, cada qual a seu modo, fez uso das tradições
épicas clássica e camoniana para sustentar estruturalmente a identidade épica de seus textos, sem,
contudo, na maior parte dos casos, constituírem-se como meras reproduções arcaicas de um dizer
esgotado e encerrado em seu próprio tempo. Ao contrário, seja com maior ou menor ênfase, a
inventividade se fez notar nessas seis obras, evidenciando que a subserviência brasileira aos
modelos europeus não impediu que o exercício da criação épica pudesse abrir espaço às
exigências de uma identidade cultural discrepante, em muitos aspectos, às fontes épicas em que
esses autores buscaram suas referências. Daí o uso criativo do próprio anacronismo, que, sem
negar a herança, reafirma uma identidade própria.
Ainda que o anacronismo que elide temporalidades distintas, aproximando referentes, e
o anacronismo como código “retro” intencional tenham se destacado na análise das proposições
em foco, pode-se perceber, principalmente em Anchieta, Basílio da Gama, Cláudio Manuel da
Costa e Santa Rita Durão, traços de personalidade autoral que nos afastam da visão reducionista
que insiste em compreender a tradição épica brasileira como uma derivação não criativa da
tradição épica europeia, ela própria posta na berlinda a partir do final do século XVII e início do
XVIII, de que é prova, por exemplo, The Rape of the Lock. A hero-comical poem (1712–14), de
Alexander Pope (1688-1744).
São muitas, enfim, as possibilidades de leituras analíticas sobre as relações entre a
literatura clássica e as manifestações épicas no Brasil. Outros espaços discursivos certamente
voltarão a nos instigar à realização dessas leituras.
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