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Introdução.
As origens.
Mito e mythos
Mimese
A catarse
Quando Aristóteles observa os efeitos próprios da tragédia, fala (ou não teria
falado6) de catarse7. A catarse vem a ser a experiência estética resultante do efeito de
identificação emocional dos espectadores com os personagens no decorrer da ação
dramática através dos sentimentos de terror e piedade decorrentes de seus sofrimen-
tos. O choque emocional, sofrido em consequência da identificação com o persona-
gem no desenlace catastrófico da tragédia, produziria no espectador a purgação de
seus próprios vícios e falhas morais. Através da transferência para si mesmo, por
identificação, pela empatia, das qualidades positivas e negativas dos personagens em
cena, ele purgaria suas próprias falhas morais. Mas a dimensão da catarse depende do
grau de empatia produzida no decorrer da apreciação do espetáculo. A catarse se pro-
duz no desfecho da tragédia, como uma espécie de abalo emocional do espectador,
permitindo que ele transfira para si mesmo, como se fosse sua, a experiência vivida
Na Poética, como já foi visto, Aristóteles estabeleceu o que tem sido o mais
permanente modelo de análise daquilo que primeiro definiu como poesia, ou seja, a
imitação da ação humana (pelas diversas linguagens), e depois a sua classificação em
gêneros, através da identificação dos meios, modos e objetos com que a poesia realiza
a imitação.
Todas as vezes que um investigador se aproxima do texto da Poética, de
Aristóteles, ele se vê atraído para a decifração de sentidos alí contidos que estão enco-
bertos pela evolução das línguas e pela sequência de traduções sofridas ou pelas lacu-
nas existentes em partes não recuperadas do texto original. No caso aqui tratado, seria
desviar da apreciação da questão dos personagens tentar entrar nas discussões sobre a
Poética. Há diversos autores que se dedicaram a isso e quando for o caso será feita re-
ferência em nota de pé de página.
Conceitos práticos.
Pessoas e personagens.
Para o senso comum, a noção de personagem parece uma coisa óbvia, sem
maior discussão. Afinal, personagem é personagem. Ana Kerenina, Zumbi dos Palma-
res, Mãe Estela, Donald Trump, Madame Curie, Catarina Paraguaçu, Brad Pitt, Albert
Einstein, Pelé, Hamlet, Jubiabá, Gabriela, D. Raquel, minha vizinha, Sérgio, jardinei-
ro de condomínios e torcedor de futebol, são todos personagens?
A resposta não é simples. Todos são ou se tornam personagens no momento
em que aparecem neste ou em qualquer outro texto. Mas quase todos têm existências
próprias, independente do fato de estarem ou não no texto. Enquanto alguns deles
existem apenas em forma de linguagem, outros estão em vivos em algum lugar, exis-
tindo independentemente de serem ou não representados através de linguagens. No
entanto, a categoria que mais nos interessa é a daqueles personagens que existirão
para sempre, embora nunca tenham existido em carne e osso, só na forma texto. São
seres inventados por um autor e inscritos num suporte qualquer, através de uma lin-
guagem. São aqueles a que chamamos de personagens de ficção.
No que concerne à mimese, um personagem de ficção pode, em alguns casos,
ser inspirado numa pessoa real, existente em carne e osso, do presente ou do passado,
pode se basear em registros históricos, em tradições, lendas ou simplesmente em cren-
ças. Pode ser apresentado num romance, conto, filme, história em quadrinhos ou série
audiovisual, sem restrição de tipo de obra ou de linguagem. No campo deste trabalho
e das reflexões aqui desenvolvidas, o que interessa é o personagem enquanto texto, no
sentido amplo de texto semiótico, seja ele verbal, visual, acústico, cinematográfico ou
televisivo.
Os personagens de ficção costumam ser réplicas de pessoas, no sentido de
que duplicam as qualidades básicas que tornam um ser numa pessoa. Têm identidade,
corpo, aparência, características psicológicas, vida social, qualidades morais, necessi-
dades e vontades. De tudo isso resulta um modo de agir. Desde Aristóteles que a aten-
ção do crítico ou do analista está voltada para este agir, para a ação dramática. O per-
sonagem age dentro dos limites estabelecidos pelo autor entre dois parâmetros funda-
mentais: a necessidade e a verossimilhança. A necessidade é o que justifica o que ele
faz. A verossimilhança é o que torna a ação aceitável para o apreciador, dentro das
condições estabelecidas no mundo ficcional.
Fica desenhada aqui a questão da mimese. Qual relação que se estabelece en-
tre o personagem e a pessoa da qual é uma réplica? Qual a relação entre a obra e o
mundo? Grande parte da avaliação crítica das obras de ficção se baseia em como a
obra representa o mundo e quais posições assume diante dos valores, das ideias, das
relações sociais desse mundo. Mas há também posturas críticas que valorizam os as-
pectos formais internos da obra, como estrutura, linguagem, inovações e estilo, dei-
xando a crítica ao mundo concreto que representa ou apresenta, relegada a um segun-
do plano de importância. Entre os extremos dessas duas posições há uma possibilida-
de de atitude intermediária que, em vez de buscar afirmar ou negar a mimese, investi-
ga como se dá a mimese. A pergunta seria: qual modo de mimese a obra propõe?
Para encaminhar a análise do modo de mimese, tem que ser considerada aqui
também a relação proposta entre o autor e o leitor. O modo de mimese tem início
numa proposta do autor que dialoga com uma expectativa do leitor. Criação e recep-
ção. Entre as intenções e posições estéticas dos autores e as expectativas dos aprecia-
dores pode haver abismos. Umberto Eco, em seu livro Seis Passeios pelos Bosques da
Ficção12, propõe analisar essa relação a partir dos conceitos de autor modelo e leitor
modelo. Para cada tipo de obra há um tipo(modelo) de leitor e de autor. Eco pontua a
necessidade de distinguir entre autor modelo e autor empírico, e do mesmo modo, lei-
tor modelo e empírico. Esta relação supõe a interdependência entre os dois membros
da relação. Assim como o autor modelo é configurado no ato de composição da obra,
também o leitor modelo se qualifica e, por assim dizer, se adestra, desenvolve as com-
petências próprias para ler, decodificar, interpretar e fruir completamente os conteú-
dos da obras que aprecia, passando subjetivamente a coabitar o universo ficcional da
obra. Assim como há autores de histórias policiais ou de ficção científica, há leitores
especializados em determinados gêneros e linguagens. Alguns chegam a incorporar a
suas vidas pessoais aspectos, símbolos e objetos dos universos ficcionais que mais
apreciam.
Um dos fundamentos da relação autor, obra, leitor, na ficção, é a suspensão
da descrença, pelo leitor. Exigir do relato lido o caráter de plausibilidade dentro das
condições construídas, em vez de exigir do relato o caráter de verdade absoluta – mas
tomá-lo como se verdade absoluta fosse. O faz-de-conta que... Isto estabelece uma es-
pécie de contrato de leitura que deve ser observado pelos dois lados para que se reali-
ze com sucesso. Aí se inclui a construção da verossimilhança, já identificada por Aris-
tóteles. Verossímil não é sinônimo de possível. É sinônimo de crível. A autoria cons-
trói as condições para que o regime de crença seja instituído no leitor e que este assu-
12 ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção.Traduzido por Hildegard
Feist. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
ma sua condição de credulidade, que não é tomar a narrativa como absolutamente ver-
dadeira, mas aceitar as condições do faz-de-conta.
Apesar de Polti analisar cada uma das situações apresentadas, alguns temas
se repetem ou estão muito próximos. Como distinguir entre os temas em torno de sa-
crifício, de vingança ou de adultério? Ao que tudo indica, o interesse gerado pelo tra-
balho de Polti se concentra no fato de ter sido uma inciativa pioneira em relação à per-
cepção de elementos que se repetem nas obras narrativas. Seriam manifestações ante-
cipadas daquilo que apareceria mais tarde como estruturas profundas. Algo como re-
gras presentes, mas não aparentes, regulando a construção das obras narrativas, como
sintaxes da ação dramática (DUCROT e TODOROV, 1972, pág. 221).
O mais radical avanço nos métodos e conceitos da crítica literária viria no
início do século XX da Russia, com o lançamento das bases da análise estrutural das
narrativas por um grupo que ficou conhecido como Formalistas Russos. Vladimir
Propp, integrante desse grupo, publicou, em 1928, A Morfologia do Conto16. Propp
reuniu e analisou um corpus de quase quinhentos contos de fadas e identificou nesses
contos 31 funções dramáticas permanentes, presentes em todos eles. Ele definiu uma
função dramática como “a ação de uma personagem, definida do ponto de vista do
seu significado no desenrolar da intriga.” (PROPP, 1983, pág. 60). Nesse estágio, as
funções de Propp eram as partes das ações desenvolvidas no enredo ao longo de sua
linha de tempo. Uma depois da outra. Essas funções estavam sempre presentes, em to-
das as histórias analisadas, mas encarnadas por personagens diferentes. Em situações
estruturalmente equivalentes mas diferentes na aparência.
Por exemplo, as primeiras funções estabeleciam a situação de solidão da fu-
tura vítima de um malfeitor. Essa função era
1 – Afastamento. Ela era deixada só por causa de um afastamento dos mais
velhos, que podiam ser seus pais, o Rei ou outra figura qualquer que detivesse poder e
autoridade.
2 - A Proibição. À futura vítima era imposta uma interdição, algo que não
poderia fazer em hipótese alguma sob pena de quebrar uma regra moral ou mágica, e
16 PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto. 2ª ed. Traduzido por Jaime Ferreira e Vic-
tor Oliveira. Lisboa: Vega, 1983.
3 - Transgressão. A futura vítima transgredia a proibição.
4 – Interrogatório. O vilão se aproxima e procura obter informações.
5 – Informação. O vilão obtém a informação que revela uma fragilidade de
sua vítima.
6 – Ardil. O vilão arma sua estratégia para se apoderar da vítima.
E assim a história prossegue até o desfecho. Propp encontrou 31 funções des-
ta natureza.
Embora sua preocupação principal fossem as funções dramáticas, Prop não
podia deixar de considerar a questão da distribuição dessas funções entre os persona-
gens. Para isso ele agrupou logicamente as funções que correspondiam aos persona-
gens que as realizavam e chegou às esferas de ação, que eram sete.
1. A esfera de ação do Antagonista (ou malfeitor).
2. A esfera do Doador (ou provedor), que fornece o objeto mágico ao herói.
3. A esfera do Auxiliar, que ajuda o herói em tarefas difíceis.
4. A esfera da Princesa (personagem procurado) e seu pai, que compreende:
da princesa o as de seu pai.
5. A esfera do Mandante. Que envia o herói.
6. A esfera do Herói. Pode ser o herói doador ou o herói-vítima.
7. A esfera de ação do Falso Herói, de pretensões enganosas.
O conceito de esfera de ação produz uma importante mudança no método de
analisar as obras narrativas. O conceito fundamental de morfologia. Daí, o título do li-
vro, A morfologia do conto maravilhoso: “uma morfologia, isto é, uma descrição do
conto maravilhoso segundo as partes que o constituem, e as relações destas partes
entre si e com o conjunto.”(PROPP, 1983, p. 57).
Por razões que se torna impossível detectar, o livro de Vladimir Propp só
chegou à França no final dos anos 50, traduzido de uma versão em língua inglesa, pu-
blicada nos EUA.
Antes disso, foi lançada em Paris uma espécie de resposta, um tanto irônica,
às 36 situações dramáticas de Gozzi-Goethe-Polti. Foi o livro As 200 mil Situações
Dramáticas17, lançado em 1950, por Étienne Souriau, que deslocava a questão das si-
tuações dramáticas para funções dramatúrgicas.
17 SOURIAU, Etienne. As duzentas mil situações dramáticas. Traduzido por Maria Lú-
cia Pereira. São Paulo: Ática, 1993.
Souriau estabeleceu seis as funções dramatúrgicas que de longe se asseme-
lham às esferas de ação de Propp: “Chamo de Função Dramatúrgica o modo específi-
co de trabalho em situação de um personagem: seu papel próprio enquanto força
num sistema de forças” (SSOURIAU, 1993, p. 52).
Por que 200 mil? A operação lógica de Souriau é conceber a situação dra-
mática como o agrupamento e modo de interação das funções dramatúrgicas em cada
peça. O número resulta da possibilidade matemática de combinações dessas seis fun-
ções, umas com as outras, uma a uma, duas a duas, três a três e assim por diante. O
trabalho de Souriau é dirigido principalmente aos dramaturgos e críticos de teatro,
como instrumentação dos seus processos de trabalho. Ele enumera as seis principais
funções dramatúrgicas e dá a cada uma delas um nome tirado da astrologia, de forma
relativamente arbitrária e possivelmente imbuído de certa ironia:
Leão ou força temática. É a força geradora de toda tensão dramática. Condu-
tora da ação.
Sol ou o Bem Desejado. É aquilo que resulta da ação do Sol. Pode ser uma
coisa, um valor ou um outro personagem. Pode ser pensado como o Bem decorrente
da ação do Sol.
Terra ou Astro Receptor. Aquele que obtém o resultado da ação do Sol. Se o
herói luta por algo para si mesmo, ele reune as duas funções, de Sol e Terra. Se ele
luta pela salvação de alguém ou da sua aldeia, estes terão a função Terra.
Marte ou o oponente. A força diretamente oposta, o obstáculo à ação do Sol.
Representa tudo que se oponha à necessidade, desejo ou vontade do herói.
Balança ou árbitro. Não deve ser confundido com o papel de juiz, na verdade
é a função daquele que detem o poder de atribuir o Bem Desejado às forças que o dis-
putam.
Lua ou espelho da força. Satélite e espelho astral. Não tem luz própria. Cúm-
plice; Aliado de alguma das outras forças atuantes.
Uma função dramática não coincide necessariamente com um personagem.
Vários personagens podem exercer em conjunto a função de Marte, por exemplo, ou
várias funções podem ser exercidas por único personagem. O herói romântico que luta
para conquistar a sua amada acumulará as funções Leão e Terra. Ela, Sol.
A percepção do significado destas funções dentro de um enredo ajuda o autor
a configurar as ações de seus personagens de acordo com o jogo das forças em con-
fronto, que vem a ser a estrutura do conflito dramático. Com este tipo de percepção o
olhar do autor deixa de ficar restrito às particularidades psicológicas ou sociais de
cada personagem e passa a enxergar como se estruturam as suas relações, uns com os
outros. A partir de Souriau, é possível entender que a situação dramática não é apenas
um conjunto de personagens num lugar, agindo em função de seus motivos particula-
res. Eles passam a ser peças de um sistema articulado que funciona num espaço e tem-
po e põe em confronto as funções assumidas por cada um dos personagens, que agem
tanto de acordo com o caráter de cada um quanto de acordo com a função que devem
desempenhar na narrativa. Como um sistema de forças. Essa consciência dá ao autor o
poder de ajustar o nível do efeito que deseja que se produza sobre o espectador, e ao
analista, o entendimento de como a estrutura dramática se organiza.
18 BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz. Trad. Maria Luiza Machado Jatobá.
São Paulo: Papirus, 2008.
19 GREIMAS, A. J. Semântica estrutural.Trad. de Hakira Osakap e Izidoro Blikstein.
São Paulo: Cultrix, 1973.
Os elementos desta figura20 são sempre dispostos em pares, por oposição: Su-
jeito x Objeto, Destinador x Destinatário, Adjuvante x Oponente.
Em qualquer situação narrativa em que haja ação dramática, e portanto con-
flito, haverá presença dessas funções. Cada uma se define dentro dos pares a que per-
tencem.
Sujeito x Objeto. Sujeito é o actante da ação principal que determina uma
operação verbal na qual há um octante que sofre a ação, o Objeto. Observe-se que o
Sujeito vai corresponder ao herói de Propp e ao Leão de Souriau. O Objeto correspon-
derá ao ser amado em Propp e ao Sol em Souriau.
Destinador x Destinatário. O Destinador é aquele que motiva a ação do Su-
jeito. Vai corresponder ao Doador, em Propp e ao Árbitro, em Souriau. O Destinatário
é o que recebe o benefício ou o valor produzido pela ação do Sujeito. Equivale ao be-
neficiário da ação do herói, em Propp e à função Terra, em Souriau.
Por fim, o par Adjuvante x Oponente. O adjuvante é um aliado de qualquer
outra função. Corresponde ao Auxiliar nas esferas de Propp e ao Lua, em Souriau. O
Oponente é o vilão das histórias. Opõe-se ao herói. Será o Agressor, em Propp ou
Marte, em Souriau.
O grande passo à frente no modelo actancial é a sua flexibilidade na aplica-
ção às análises de narrativas ou de peças teatrais. Na aplicação desse modelo, qual-
quer personagem pode, a seu tempo, ser visto como sujeito de uma ação e podem ser
observadas as oposições, os objetos e os destinatários de suas ações.
20 Figura do autor
Nos anos 90, pensando na aplicação do modelo actancial de Greimas ao tea-
tro especificamente, Anne Ubersfeld21, faz uma análise dele e propõe, entre alternati-
vas, a possibilidade de ir além dos pares de oposições, formando triângulos entre as
funções. No decorrer das análises poderão ser vistas as relações trilaterais, como os
triângulos Sujeito – Objeto – Oponente, ou Destinador – Sujeito – Objeto. Cada um
desses triângulos revelará um aspecto dramatúrgico da composição de forças dramáti-
cas e das regras internas de articulação dos elementos do enredo.
Um exemplo seria a configuração da regra de ação do Oponente. De acordo
com o Destinador que o tivesse sob influência, ele faria oposição ao nível do Objeto
ou ao nível do Sujeito. A Oposição ao nível do Objeto seria a disputa pela obtenção
do valor produzido pela ação do Sujeito. A disputa de um bem material, do afeto de
uma pessoa ou de um conhecimento secreto. E doutro modo será a oposição quando
ela se dê diretamente contra o Sujeito, independente do Objeto. O Destinador, nesse
caso, seria um sentimento de ódio ou necessidade de vingança centrada contra o sujei-
to. Isso faria diferença na sintáxe da ação dramática.
Anne Ubersfeld usa Greimas para definir o ator como uma particularização
do actante:”...os atores, em geral dotados de um nome, são as unidades particulares
que o discurso dramático especifica com simplicidade: um ator ( da narrativa) = um
ator (que atua na representação)” (UBERSFELD, 2005, p. 62). E aqui surge um com-
plicador, em que ator deixa de ser entendido no sentido de como o senso comum o re-
conhece, como a pessoa dotada das habilidades de representar papeis no teatro ou no
cinema, e passa a ser uma espécie de ação que determina um papel. Então o termo
ator, na semiologia e na linguagem técnica da análise dramatúrgica, passa a ser aplica-
do a um tipo de agente dentro das narrativas, caracterizado pelo tipo de ação que pra-
tica. Esse agente poderá ser representado por uma única pessoa ou por várias, sempre
caracterizado pelo tipo de ação e função que desempenha ao agir. Dirá ela, adiante:
“Um ator se define, portanto,por um certo número de traços característicos: se duas
personagens possuem, ao mesmo tempo, as mesmas características e executam a
mesma ação, elas são o mesmo ator”(UBERSFELD, 2005, p. 63). Estabelece-se en-
tão, ao lado do modelo actancial, uma função actorial. Nessa função, o ator entra
como entidade semiológica caracterizada pelo modo e pela finalidade de sua ação. Fi-
21 UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Trad. José Simões. São Paulo: Perspectiva,
2005.
cará mais fácil entender esta noção de ator de relembrarmos a noção de tipo de perso-
nagem, personagem-tipo.
Resta ainda definir mais precisamente o sentido de papel. O papel tem uma
situação intermediária, entre o actante e o personagem singular. Personagens tipos de-
sempenham certos papéis, como príncipe, bruxa má, padre, sedutor. Cada papel reú-
ne certos conjuntos de funções e de atributos. Portanto, de cada papel será esperada
uma ação correspondente. Obviamente, os papeis são estabelecidos na história dos
campos narrativos em análise, de acordo com tradições culturais. Dai pode-se com-
preender a importância deste tipo de análise. Por exemplo, em relação à previsibilida-
de ou criatividade de um determinado enredo. Ao analisar uma situação em que haja
personagens que figurem certos papeis, pode-se verificar se eles agem da forma espe-
rada, prevista para esses papeis, ou não, nesse caso produzindo o efeito surpresa, ino-
vação etc.
Nunca será demais repetir que a comédia e o humor em geral são fenômenos
complexos que demandam estudos e pesquisas de diversos campos do conhecimento
humano, desde a semiótica à psicanálise, da narratologia à sociologia e à história. Es-
ses estudos devem focar questões morais, políticas, ideológicas, sistemas de poder,
costumes, tradições etc. A proposta aqui é que observemos os personagens cômicos
de forma geral: dos palhaços de circo atuais aos arquétipos da Comedia dell’Arte,
passando pela literatura satírica e pela comédia teatral, dificilmente um personagem
cômico estará fora dessa tipologia geral definida acima. Isto porém não faz com que
estes personagens não acumulem, superpostas, outras funções dramáticas, já aponta-
das antes, quando abordadas nas questões relativas às estruturas profundas das narrati-
vas em geral. Para fins de análise, estes conceitos devem ser postos em ação sempre
que convocados pela sensibilidade e agudeza do processo de análise.
Haverá um pós-personagem?
É difícil determinar as razões de todas estas mudanças. Tudo isso teria tido
início com Ibsen, Strindberg e Tchekov. Seria um longo estudo. Mas pode-se supor
algumas dessas razões. Talvez a vida moderna tenha reconfigurado a existência das
pessoas, no sentido de fazê-las parte de multidões anônimas e sem poder. Joguetes de
macro sistemas diante dos quais não será mais sujeito nem objeto, mas um átomo
indistinto.
O diálogo no modelo drama-na-vida se dá entre os personagens. O autor está
fora. No drama-da-vida, analisado por Sarrazac, o autor entra no diálogo, que se
amplia e, mesmo pronunciado pelos personagens em cena, passa a ser um diálogo
multivozes, expressão de um novo tempo histórico. Como a ação já não se desenrola
num presente absoluto, como numa corrida em direção ao desenlace, a uma catástrofe
futura, mas passa a consistir num regresso reflexivo e ou interrogativo a um drama
passado e a uma catástrofe já ocorrida, quem está no centro não é o homem que age,
mas o homem sofre, um homem em paixão. Agir é, antes de tudo, querer agir. A crise
da ação começa sem dúvida na crise do sujeito, nas falhas do eu e da sua capacidade
de querer.
Até aqui o teatro moderno foi usado como corpus da observação do
fenômeno de uma pós dramaticidade. É possível, sem muito esforço, estender estas
questões para outras linguagens artísticas como a literatura e o cinema, e verificar
que, também nestas formas artísticas, os enredos e os personagens, em determinados
segmentos ou nichos poéticos, sofrem os mesmos efeitos apontados por Sarrazac no
teatro. Mas não se deve esquecer que estas formas poéticas convivem com outras,
estabelecidas anteriormente, cuja atualização se dá ao nível dos efeitos visuais e das
chamadas trucagens. Permanecem os velhos apelos emocionais. Quando se trata dos
meios de comunicação de massa, a performance artística cede terreno a funções
econômicas. As obras, no fundo, são predominantemente mercadorias e, apesar de
tudo, seguem como oportunidades quase únicas de experiência estética para as
multidões que correspondem á descrição de Sarrazac.
Sarrazac chega ao final do seu “Outro Diálogo” apontando para uma
configuração do personagem que alcançaria uma dimensão a que ele chama de
impessoal. O impersonagem do título deste trabalho. Embora este assunto mereça
análise mais minuciosa e profunda, não parece apenas uma coincidência histórica o
que acontece tanto no campo do pensamento filosófico como na dramaturgia.
O pensamento filosófico, e falando apenas como um observador leigo em
filosofia, não como especialista, depois de Karl Marx, de Freud, de Nietzsche e
outros, evoluiu no sentido da desconstrução de certezas baseadas num suposto contato
efetivo e completo entre os sujeitos das observações e um mundo externo concreto,
coisa observada. Marx pensa o homem como objeto de suas próprias condições
materiais de existência e não como um sujeito autônomo, determinante de sua
consciência. Freud, por sua vez, empurra o eu consciente para um abismo insondável
dentro da própria mente. A realidade objetiva cede lugar ao discurso do sujeito do
conhecimento como objeto de atenção. Enquanto isso, conforme nos expõe Sarrazac,
citando principalmente Robert Abirached, o drama fundamentado no acontecimento
completo e acabado, baseado na ação humana exercida por sujeitos conscientes da
própria vontade, é substituído por uma forma de narrativa não dramática, em que o
clímax, antes ponto de convergência das obras, passa a o ser objeto de análise dentro
da própria ação “dramática”, depois de acontecido, por personagens que nada sabem
de si, que perdem seus caracteres e dissolvem-se na multidão, como o homem comum
ou o Zé Ninguém.
Para efeito de análise de obras narrativas numa pesquisa, estas mudanças
devem ser vistas dentro dos modelos de análise propostos nas funções dramáticas e na
visão das estruturas profundas, mas caberá ao observador perceber se o procedimento
responde às demandas de compreensão e entendimento dos personagens que analisa
ou se terá que buscar outras formas de compreendê-los.
Conclusão
Referências bibliográficas.