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Hesíodo e a germinal da polis na Grécia Arcaica

Discente: Renan Falcheti Peixoto


Orientador: Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi

1. Objetivos

O presente trabalho estabelece como objetivo analisar, a partir do que os


estudiosos convieram chamar por um esquema lógico-analítico a primeira parte do
poema Os Trabalhos e os Dias do poeta arcaico Hesíodo, o período da emersão da polis
em seu estágio embrionário: finais do século VIII ou inícios do VII a.C.
Pretende-se identificar na estrutura poética dos relatos que compõem a primeira
parte desta obra os aspectos sociais, políticos e religiosos que testemunham o processo
que conduzirá nos anos seguintes à integração moral de uma coletividade com direitos
igualmente compartilhados: a polis grega.

2. Material e métodos

Hesíodo e Os Trabalhos e os Dias

A fonte utilizada nesse trabalho é composta pelos primeiros 382 versos do poema
Os Trabalhos e os Dias, obra do poeta Hesíodo, que viveu na Beócia por volta do ano
700 a. C.
Essa parte do poema é constituída por um proêmio seguido pelo mito das duas
Lutas, o mito de Prometeu e Pandora, o mito das cinco raças e a fábula do gavião e do
rouxinol.
Hesíodo foi um bardo e agricultor que viveu na aldeia de Ascra, na região da
Beócia, provavelmente no final do século VIII ou inícios do século VII a.C. Seu nome,
entre os gregos antigos, atingiu fama comparável ao do de Homero. Porém, de Homero
apenas permanece um nome impreciso desprovido de detalhes autobiográficos, “[...] um
título mais que um nome pessoal.” (THOMAS; CONANT, 1999, p.149, tradução
nossa); enquanto sobre Hesíodo temos material suficiente de suas obras para espargir as
brumas do anonimato. “A história da Grécia antiga não é mais anônimas.” (THOMAS;
CONANT, 1999, p. 149, tradução nossa).

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Juntamente com Os Trabalhos e os Dias, a esse poeta também é atribuída outra
poesia chamada Teogonia. Esta obra canta os mitos da cosmogonia, o palco dos futuros
combates pelo poder dos deuses e ascensão de Zeus à supremacia dos deuses.
A obra de Hesíodo não representa a justaposição de mitos, mas a ordenação deles
de acordo com um projeto de engenharia do pensamento. O que o autor nos lega não é
uma mitografia compósita e arbitrária, mas um relato coerente de equilíbrio geral das
narrativas e unidade de sua arquitetura.
Desta maneira, distantes de reconhecer em sua narrativa um produto irracional de
pulsões afetivas, aqui nos interessa a narrativa mítica de Hesíodo como uma maneira de
expressão do pensamento simbólico onde se elabora uma linguagem cujos elementos
relacionam-se entre si, configurando uma semântica em constante referência ao
processo da composição:

A decifração do mito, portanto, opera seguindo outros caminhos e


responde a outras finalidades que não as do estudo literário. Visa a
destrinçar, na própria composição da fábula, a arquitetura conceitual
envolvida nesta, os grandes quadros de classificação implicados, as
escolhas operadas na decupagem e na codificação do real, a rede de
relações que a narrativa instituiu, por seus procedimentos narrativos,
entre os diversos elementos que ela faz intervir na corrente do enredo.
(VERNANT, 2006, p. 26).

Embora possamos atribuir a ele uma inovação importante no rigor lógico sem
precedentes na poesia épica no uso do mito, sua qualidade de organizador da tradição,
uma ressalva deve ser feita. Sua obra é o exemplo que porventura sobreviveu aos
tempos.

Mas isso não quer dizer que ele é inteiramente fenômeno novo, que o uso
misto de mitos não remonta a um longo caminho no passado, ou que,
mesmo no que hipoteticamente alguém pode chamar de um verdadeiro
estágio mitopoético, nenhuma conexão estava implícita e percebida entre
o conteúdo dos mitos e o conteúdo da vida.” (KIRK, 1973, p. 247,
tradução nossa).

Auferir do silêncio e obscuridade das lacunas um gênio absoluto em Hesíodo é


um passo arriscado, embora nesse trabalho se ressalte constantemente a inovação do
pensamento de suas poesias que porventura o tempo preservou.
Os Trabalhos e os Dias é uma poesia de lírica preocupação com o presente
direcionada ao seu irmão Perses a respeito de um conflito em torno das terras e bens
herdados do pai – um refugiado de Cime, Eólia (Ásia Menor) – bem como pequenos

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agricultores e alguns poderosos que fazem arbitragem nos centros urbanos. Seu
inovador teor de inquietação a coloca em um conjunto amplo de inovações na Grécia
Arcaica, ao qual fundamentalmente os vestígios arqueológicos são documentos.
Relacionando as passagens autobiográficas do poema como relatos pessoais em
seu panorama histórico, consideramos Hesíodo em carne e sangue (WALCOT, 1966, p.
105). Isto é, verificamos as passagens autobiográficas não como mero recurso literário,
reduzindo a figura histórica do autor à escassez da de um Homero, mas como passagens
de grande significância para a reconstituição de uma autor que (o primeiro que temos
notícias no Ocidente) formula suas preocupações contemporâneas em seu própria época:

Os Trabalhos e os Dias é um poema intensamente pessoal. Reconheça isto


e você será compelido a admitir a verdade do que Hesíodo tem para
dizer sobre si mesmo, seu irmão, e seu pai. Reconheça isto e você será
compelido a deixar de tratar as passagens autobiográficas como se elas
fornecessem estranhas mensagens de informação de não grande
significância em si mesmas. As querelas pessoais de Hesíodo e Arquíloco
interessam os poetas mesmos, interessam sua comunidade e, o que é mais
surpreendente, interessam muitos outros, pois mesmo em seu tempo de
vida muitos destes em sua audiência podem não ter sido concidadãos.
(WALCOT, 1966, p. 106, tradução nossa).

Ainda sobre essas considerações, o arqueólogo Anthony Snodgrass destaca a


importância do papel que o mundo particular do autor deve assumir nas considerações
traçadas sobre a composição de seus poemas:

Se a datação aceita de Hesíodo é válida [...] então nós temos que olhar
mais para explicações locais e pessoais para sua cruel pintura da raça de
Ferro: a adversidade da escolha do seu pai de terras para assentar, sua
situação remota nas montanhas do sul da Beócia, ou as injustiças
privadas que evidentemente sofreu. (SNODGRASS, 2010, p. 4, tradução
nossa).

Grécia Arcaica: antecedentes

A época arcaica é permeada de inovações importantes. Apesar das diferenças


regionais das diferentes áreas da Grécia ao longo desses anos, podemos nos referir a um
processo mais ou menos pareado de desdobramentos nas várias esferas da vida do grego
arcaico.
Uma das mudanças mais significativas desse decurso é a formação da coesão
comunitária sem a qual a polis não poderia ter emergido. Sua constituição está imersa
em um panorama de reorganização social em que parcelas cada vez maiores da
comunidade grega são integradas no compartilhamento do poder:

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Se uma vez houve reis nas comunidades gregas, eles foram logo deixados
de lado por um corpo de chefes que consideravam a si mesmos como
aristocratas e que compartilhavam poder entre eles. Como a comunidade
desenvolveu, houve um aumento no número de homens que detinham
terra e que lutavam pela sua comunidade, e que clamavam
reconhecimento por isso. Em alguns lugares a superação desta tensão foi
a captura do poder por um tirano, cujo governo enfraqueceu os
aristocratas e cujo exercício do poder e glorificação da comunidade para
o qual este poder era exercido fortaleceu o senso de parceria entre os
membros da comunidade. (MITCHELL; RHODES, 1997, p. 6, tradução
nossa).

Esse panorama é o que Snodgrass chama de “Revolução Estrutural” do século


VIII a.C. (SNODGRASS, 1980, p. 15) implicado no processo de alterações econômicas
e aumento demográfico no interlúdio do século XI ao VIII a.C.
São os sinais de tempos de prosperidade nas condições materiais dos gregos
arcaicos que só poderiam ter irrompido de um período em que os valores a serviço da
ordem – estabilidade e rigidez – enquadra a estrutura mental dessas gerações e no qual
se desenvolve boa parte da “[...] gênese daquela cultura clássica que só torna visível à
pesquisa documental nos séculos V e VII.” (HAVELOCK, 1996, p. 48).
Período Geométrico é a classificação dada ao antecedente do Período Arcaico e
sua característica essencial é a demanda por ordem, fundamento de suas fórmulas
visuais remanescentes nos vestígios arqueológicos. A ordem social como manutenção
prioritária após o colapso da civilização micênica é espelhada na poesia métrica e na
cerâmica geométrica. “A fórmula, oral ou geométrica, é tanto a ferramenta e material
de construção, e isso fornece para o épico monumental e o vaso monumental as
qualidades da estabilidade e unidade.” (HURWIT, 1985, p. 96, tradução nossa).
O valor desses enquadramentos mentais que se expressam na arte grega do
período torna-se significativo quando avaliado o declínio sócio-econômico dos séculos
que se sucederam ao colapso da Idade Micênica. Este colapso é um decurso gradual e
prolongado que abarca o século XII e início do XI a.C.
Depois da ruína do mundo micênico a Grécia entra em uma fase muito mais
austera. Se sobre ela paira a alcunha de Idade das Trevas, isso se deve não apenas à
escassez material do período, mas também ao próprio embaraço dos estudiosos
classicistas em lidar com um período aliterário. Acostumados com os esplendores
literários, artísticos, bem como institucionais da Época Clássica (sendo a formação da
democracia ateniense do século V a.C. ápice político do gênio grego) relega-se seus
precursores como nebulosos tempos onde a luz não espreita.

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Apenas rastreando os documentos não escritos, os indícios arqueológico
dispersos, podemos delinear – ainda que em tinta fraca e falha – os contornos dos
processos que deram razão a fase subseqüente, o período arcaico, aquele que é “[...]
talvez o período mais importante da história grega.” (AUSTIN; VIDAL-NAQUET,
1972, p. 59).
No registro arqueológico da Idade das Trevas, austeridade é o melhor termo para
aludir à condição desses séculos, de como o declínio civilizacional se imprimiu nas
evidências arqueológicas. A considerável redução populacional é reflexo dessa crise e
propulsora de uma nova maneira de associação política e espacial entre essas pessoas:

Com possíveis poucas exceções (apontadas por Morris) a população,


vastamente reduzida em números comparados ao da Idade do Bronze,
viveu em aldeias dispersas, cercadas por fazendas e pastagens e
consistindo de pequenos grupos de famílias que se engajaram na
subsistência através da agricultura e pecuária e seguiram a liderança de
seu membro mais capaz, uma espécie de chefe. (MICHELL; RHODES,
1997, p. 52, tradução nossa).

Geralmente, essas pequenas aldeias são chefiadas por um aristocrata, alcunhado


basileus, um rei. Não obstante, esse rei não guarda similaridade com o rei micênico,
nem quanto ao termo, nem quanto à sua denotação. Embora o significado do termo
basileus na escrita em Linear B das tabuinhas micênicas seja hoje impreciso, podemos
marcar a valorização de seu significado social. Nos tempos micênicos1, a categoria dos
basileus está claramente abaixo à do wanax, o soberano. Nos tempos homéricos,
basileus é o “rei”, substituindo o termo que outrora tinha essa denotação: o anax
(wanax).
Tal inversão se atribui antes às grandes transformações sociais subseqüentes à
queda de Micenas do que mera moda lingüística (FINLEY, 1989, p. 238). A
organização social da Idade das Trevas é muito mais simples que a complexa
estratificação hierárquica da Idade do Bronze. Desta maneira, essas novas circunstâncias
não mais requerem o uso da escrita micênica – o Linear B –, instrumento administrativo
indispensável de uma burocracia dos palácios da organização burocrática das
monarquias centralizadas.

Grécia Arcaica: “A Era da Revolução”

1
Na realidade “pa²-si-re-u” é a forma gráfica encontrada nas tabuinhas e que hoje acredita corresponder à forma
grega basileu. (FINLEY, 1989, p. 238).

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Os anos no interlúdio 750-650 compõem para historiador americano Chester G.
Starr “A Era da Revolução” (STARR, 1991, p. 190). Entre literatura e arte desse
intervalo, há interconexões significativas entre os diferentes planos de um panorama de
agitação intelectual ligada não somente à situação interna, mas também à ampliação dos
horizontes externos: a renovação dos contatos culturais com o Oriente é registrada no
aumento substancial de peças orientais importadas durante o século VIII a.C.
É o período em que a estabilidade proporciona condições mais promissoras que
aumentam exponencialmente o número de habitantes em diversas regiões da Grécia. A
constituição da polis está intrinsecamente relacionada às demandas do aumento
populacional do século VIII a.C.:

Uma organização frouxa sob uma família dominante, com decisões ad


hoc tomadas por um governante local e apenas assembléias ocasionais de
algum grupo maior, torna-se impraticável quando a comunidade mais
que dobrou seu número entre uma única geração. (SNODGRASS, 1980,
p. 23, tradução nossa).

Para a coesão desse laço político comunitário fruto de reorganização social, foi
indispensável a elaboração de uma cidadania religiosa na coerência dos espaços
sacramentais. O culto heróico ou o culto de uma divindade patrona, um santuário central
na cidade (espaço sagrado), vai entrelaçando nos negócios públicos homens e deuses:

[...] para fazer parte de uma comunidade política onde nasceu, o


candidato à cidadania deve necessariamente participar dos sacrifícios
públicos, ter acesso aos altares, aos santuários, aos deuses da cidade, e
em seguida as assembléias e as magistraturas. (DETIENNE; SISSA,
1990, p. 237).

Uma cidadania calcada na religião é, assim, aspecto inerente da polis:

[...] a elaboração de uma cidadania religiosa foi uma condição sine qua
non para a formação da cidade, ou melhor, para o próprio processo de
redefinição da coesão social da qual a polis resultou [...]. (POLIGNAC,
1995, p. 74, tradução nossa).

Desta maneira, a difusão dos espaços sociais, dos cultos heróicos das divindades
patronas da cidade e a invenção do alfabeto grego elaborado através dos contatos com
os fenícios são alguns exemplos do amplo quadro de transformações em que a unidade
coletiva se aprofunda, seja por mecanismo administrativos, seja por mecanismos
religiosos:

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[...] como uma primeira causa, o rápido crescimento da população em
um tempo de crescente prosperidade; como significantes sintomas, a
construção de templos urbanos, o surgimento de santuários rurais, a
instituição de cultos estaduais para heróis locais e, claro, o renascimento
da escrita, essencial na administração de uma polis para além da
comunicação da palavra da boca e ouvidos. (COLDSTREAM, 2003, p.
414, tradução nossa).

Da mesma forma que a exaustão do estilo geométrico abre o terreno das pinturas
cerâmicas e artesanatos para novas inspirações orientais (COLDSTREAM, 2003, p.
360), a tradição épica cede lugar a uma maneira de pensamento mais adequado a esse
momento de alterações expressivas no mundo grego. O clamor de justiça de Hesíodo
lançado em sua obra contra os reis que fazem arbitragem nos centros urbanos é a
erupção mais antiga de que se tem registro de uma agitação política que trilhará o
caminho dos gregos em suas políticas nos séculos seguintes.

Pela primeira vez na história grega um indivíduo específico fala por si


mesmo, e o tom ético de seu brado badala em uma batida com os
contemporâneos, lançando protestos de injustiça do qual emergiu os
antigos profetas de Israel. (STARR, 1991, p. 269, tradução nossa).

Hesíodo protesta contra a arbitrariedade do governo dos aristocratas, processo


pareado com a restrição nos anos seguintes do poder dos aristocratas, em muitas regiões
levado a cabo pelo tirano. Esse baluarte contra o despotismo é a “[...] inicial erupção na
agitação política que produziu a organizada cidade-estado.” (STARR, 1991, p. 268,
tradução nossa).
Contudo, essa queixa deve ser delimitada para que não se atribua ao pensamento
do autor projetos e ambições além das possibilidades de seu próprio tempo. Como o
próprio Starr reconhece, o mundo dele é dominado pelos basileis e ainda não há um
pensamento consistente de que a comunidade deve se baseada em uma encarnação
pública do princípio de justiça. “Hesíodo não tem soluções prontas para a injustiça que
ele vê e que de fato sente. Ele pode predizer, contudo, que Zeus, quem testemunha todas
as coisas, irá punir exatamente os atos malignos.” (THOMAS; CONANT, 1999, p.
155, tradução nossa).
Pensar a ética social através da manipulação de mitos é uma maneira de
vocabulário político em que os conceitos são personificados e estágio que prepara o
terreno para um pensamento puramente conceitual: “Idéias derivadas de instituições
concretas tornam-se abstratas ao adquirir o status de divindade; as conexões entre

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essas abstrações são expressas em termos de relações familiares.” (MURRAY, 1993,
p.61, tradução nossa).
Hesíodo narra condições fundamentais da existência humana em Os Trabalhos e
os Dias, os valores humanos submetidos ao balanço do universo já desenhado na
Teogonia. Neste poema, nos é apresentado a estrutura religiosa do universo, a gênese
dos deuses e suas devidas porções de influência e relações no equilíbrio perfeito da
ordenação do mundo sujeita à moral da perfeita soberania de Zeus. Este é um plano de
elaboração conceitual que devemos manter sempre nossas atenções ao pensar sobre a
constituição da soberania pública:

Reputação não mais depende de homens e no que eles têm o esmero de


dizer. É agora ‘através de Zeus’ e ‘na direção de Zeus’ que homens são
celebrados ou relegados, e é o deus, e não o homem, que nós devemos
pensar como outorgador de uma reputação ilibada ou sórdida.
(WALCOT, 1966, p. 84, tradução nossa).

Beócia

Ao século VII a.C. também é atribuído uma tensão particular em torno de crises
que se ligam diretamente a terra que afetaram muitas regiões da Grécia. Diversas áreas
parecem ter sofrido sobrepovoamento e agravantes como a exploração insuficiente do
solo, repartição desigual das terras e a prática da divisão do patrimônio entre os
herdeiros do falecido que desfavorecia os pequenos donos de terra que não podiam
dividir indefinidamente sua posse sem serem reduzidos à miséria. Além disso, os ricos e
poderosos avançavam seus domínios e aumentavam sua mão-de-obra dependente à
custa dos pobres e pequenos agricultores. (AUSTIN; VIDAL-NAQUET, 1972, p. 68).
A colonização arcaica para o sul da Itália foi promovida como válvula de escape
dessas regiões diretamente afetadas pela carência do solo disponível para sustentar uma
população em crescimento. Cálcis, Corinto, Mégara e cidades da Acaia sofreram
diretamente essa escassez e partiram para soluções além-mar. Ao contrário, Atenas,
Argos, Tessália e Beócia parecem ter contornado essa crise e estendido sua população
nas áreas adentro de seu território. (COLDSTREAM, 2003, p. 221-222).
A Beócia se localiza na parte central da Grécia, entre os golfos de Eubeia e
Corinto. Nosso conhecimento a respeito dessa região nos séculos oito e sete antes de
nossa era é, principalmente, provindo de escassos vestígios arqueológicos.

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Embora a crise de terra não tenha afetado essa região da maneiras da regiões
colonizadoras citadas acima, guardamos da obra do bardo beócio uma preocupação
didática do uso da terra direcionados a agricultores da Beócia que, talvez, possam ter
sido compelidos ao uso da terra no processo de expansão do uso da terra que a própria
expansão habitacional implica. (COLDSTREAM, 2003, p. 314).
Hesíodo viveu na pequena aldeia de Ascra, de onde partem as investidas contra a
injustiça dos “reis” (basileis) de sentenças tortuosas localizados na cidade de Téspia,
poucos quilômetros ao sul. Em seu tempo, sua população provavelmente se resumia na
casa das centenas: “[...] O. Davies estima duzentos ou trezentos (1928).” (THOMAS;
CONANT, 1999, p. 147, tradução nossa).
A relação da aldeia de Hesíodo, Ascra, com a cidade Téspia tem sido vista de
acordo com leituras a priori ora como a relação que presume a unificação fundamental
da polis arcaica e clássica entre cidade e o campo, ora como autonomia dessas esferas:

Acabamos de notar que, na obra de Hesíodo, o camponês só se sente


ligado a Téspias pelo ódio que sente contra os juízes que o despojam, mas
poderiam objectar-nos que essa dependência é ainda um laço
testemunhando que uma autoridade se estabeleceu. Escapamos
dificilmente à leitura do passado em função do futuro. (AUSTIN;
VIDAL-NAQUET, 1972, p. 61).

Afirmar se existia ou não polis no período de Hesíodo nessa região é uma


convicção temerária. Nossa evidência deve corresponder às limitações e lacunas dos
nossos documentos. O cuidado de se distanciar de elaborações categóricas sobre a
existência ou não da polis, ou mesmo de referir-se a um movimento linear e homogêneo
para todas as regiões da Grécia se faz necessário.
Portanto, através das devidas considerações aos trabalhos de metodologia
indutiva, dos limites e possibilidades de asserções dos materiais remanescentes de um
período que apenas há pouco recuperou a capacidade da escrita, aqui se realizará o
balanço das articulações das narrativas míticas com os conselhos práticos da vida
política do homem derivados destes mitos, enquadrando-as no panorama histórico do
autor.

3. Resultados

Como resultado parcial, constatou-se que, em um período de conflitos e tensões


que antecedem à codificação das leis na Grécia antiga – período no qual a sociedade

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toma as normas como negócio público – Hesíodo pensa a ética social através da
manipulação de seus relatos míticos.
Mesmo que não totalmente consciente dessas transformações contemporâneas
capitais, esse tipo de virtude diferente do da tradicional ética aristocrática homérica
marca um novo tempo de disposições mentais que Hesíodo é limiar.

4. Conclusões

Nesse momento de efervescência cultural que caracteriza a Grécia Arcaica,


observamos o estado embrionário da constituição da polis.
O lamento de Hesíodo por justiça alude esse início de uma comoção política que
posteriormente produzirá a submissão equitativa dos homens gregos aos órgãos formais
públicos de justiça, uma das características da redefinição da organização social que a
polis constitui. Esse pensamento precursor compõe um século ao longo do qual o senso
de delimitação da identidade comunitária em várias regiões da Grécia se esboça.
Portanto, Hesíodo consegue estabelecer um novo paradigma mítico e moral entre
os gregos ao pensar sobre as tradições míticas ou julgar o comportamento dos
governantes terrenos em um período particular de tensões políticas, econômicas,
religiosas e sociais.

5. Referências bibliográficas

Fonte primária

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Introdução, trad, port. e comentários Mary


Camargo Neves Lafer. 3. Ed. São Paulo: Iluminuras, 1996.

Fontes secundárias

AUSTIN, Michel; VIDAL-NAQUET, Pierre. Economia e sociedade na Grécia antiga.


Lisboa: edições 70, 1986.
COLDSTREAM, J. N. Geometric Greece: 900-700 B.C. 2. Ed. New York: Routledge,
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DETIENNE, Marcel; SISSA, Giulia. Os deuses gregos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
FINLEY, M. I. Economia e sociedade na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes,
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HAVELOCK, Eric A. A revolução da escrita na Grécia: e suas conseqüências
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HURWIT, Jeffrey M. The art and culture of Early Greece, 1100-480 B.C. Ithaca:
Cornell University Press, 1985.
KIRK, G. S. Myth: its meaning and functions in ancient and other cultures. Cambridge
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POLIGNAC, François de. Cults, territory, and the origins of the Greek city-state.
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