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A história da evolução do corne inglês

Israel Silas Muniz


Solo Corne Inglês
Orquestra Filarmônica de Minas Gerais

Belo Horizonte
2020
A história do corne inglês

Explicar a origem do corne inglês é um grande desafio, pois enquanto a


história do oboé já é bem consolidada e documentada, a do corne inglês possui até
hoje alguns pontos não esclarecidos, segundo vários autores.
Tendo o período pré barroco como ponto de partida, abordaremos de forma
sucinta a história deste interessante instrumento, representante da família das
palhetas duplas.

O Tenor Schawn ou charamela tenor

Foto: Tenor Schawn - do Museu da Universidade de Yale - EUA


Assim como da evolução das charamelas nasceu o oboé, da mesma família
nasceu o equivalente ao corne inglês no período renascentista. O tenor schawn ou
charamela tenor, era um instrumento muito rudimentar. Ele possuía a pirouette, que
era uma pequena peça que envolvia a palheta dupla, de modo que o músico não
tinha acesso direto dos lábios na palheta, dificultando o controle da afinação e da
intensidade do instrumento. Apesar dessas dificuldades, a charamela tenor tinha um
papel importantíssimo nos conjuntos de palheta dupla, sendo utilizada amplamente
em cerimoniais, dança e música militar. Ela não era um instrumento solista, mas
fornecia um bom suporte harmônico.
Na França, por volta da segunda metade do século XVII, foram
desenvolvidas novas versões da charamela para serem utilizadas na banda real da
corte do rei Louis XIV. Nesta época, vale ressaltar que existiu um peculiar conjunto
chamado "Os doze grandes oboés do rei, onde tocavam Jean Hotteterre e Michel
Philidor. Hotteterre teve um importantíssimo papel no desenvolvimento das
charamelas e foi o principal responsável pelo surgimento do primeiro oboé. Também
há indícios que nessa mesma época, um outro instrumento tenha sido inventado por
Hotteterre, o Taille du Hautbois.

Taille du Hautbois.

O Taille du Hautbois era um oboé tenor com afinação em fá, uma quinta
abaixo do oboé, empregado para tocar a terceira linha nos conjuntos de sopro e
posteriormente foi utilizado nas orquestras da época de Lully. Ele pouco difere da
antiga charamela tenor, apenas foi retirado a pequena peça que envolvia a palheta
dupla, o que o deixava com a aparência de um oboé com grandes proporções.
O Taille du Hautbois tinha um corpo reto com duas chaves e uma campana aberta.
Sua provável primeira aparição foi na obra Alcidiane, de Lully (1658).
A famosa banda da qual Hotteterre fazia parte, era um grupo musical que consistia
de vários instrumentos de palheta dupla, numa gama que abrangia desde sopranino
ao contra baixo. O Taille du Hautbois também se fez presente nessa banda.
Juntamente com outros membros da família do oboé, o taille de hautbois foi
transportado para a Inglaterra, Alemanha e Holanda, onde foi empregado em
orquestras e conjuntos de sopro.
Ele chegou à Inglaterra em 1673, juntamente com os primeiros oboés agudos
e lá ficou conhecido como o 'tenner hautboy'. Henry Purcell foi o primeiro
compositor inglês a se interessar pelo instrumento, estreando o na obra em The
Prophetess, ou The History of Dioclesian (1690)
Vox humana

Foto: Vox Humana - MIMO - Musical Instrument Museums Online

A vox humana surgiu na Inglaterra no momento em que o 'tenner hautboy'


estava dando lugar à trompa. Era um oboé tenor em fá, uma quinta abaixo do oboé,
utilizado em meados do século XVIII. Caracteriza-se por um perfil estreito e
praticamente sem adornos. Era construído em duas partes, com a campana
integrada na parte inferior, com ligeira abertura e uma curva angular para apoiar a
palheta. Tem duas chaves e seis orifícios para os dedos. O nome do instrumento foi
aparentemente derivado de uma pequena peça de ressonância existente nos órgão
de tubo, que possuem o mesmo nome, a qual produz um som que em muito se
assemelha a voz humana.
Embora tenha sido ouvido ocasionalmente no teatro, o vox humana foi usado
principalmente nas bandas de palheta dupla e muitas vezes empregado no lugar de
órgãos em igrejas provinciais pobres. Também foi um instrumento muito utilizado no
sul da Itália, especialmente Nápoles, na época anterior ao surgimento do corne
inglês.
Oboé da caccia

Foto: Oboe da Caccia - The Look of Musik by Philip T. Young

As dificuldades de dedilhado do oboé tenor de corpo reto foi percebida por


alguns luthiers alemães da cidade de Leipzig. Há evidências de que foi o luthier
alemão Eichentopf quem projetou um instrumento de corpo curvo, revestido em
couro, com campana aberta e metálica e o chamou de oboé da caccia. Este nome
foi pensado devido a curvatura de seu corpo e sua campana metálica, lembrando
uma trompa de caça.
Bach teve acesso a esse instrumento logo após a sua chegada em Leipzig e
prontamente começou a compor para ele, optando por deixá-lo sempre como
instrumento solista. Ele compreendeu muito bem o som do instrumento de natureza
gentil e expressiva e o utilizou lindamente em momentos marcantes da paixão
segundo São Mateus. Gaspar Gleditsch, primeiro oboísta da Stadtpfeifer, na época,
foi quem estreou muitas dessas composições. Era ele quem testava esses oboés e
o promovia nos arredores.
Embora o instrumento tivesse um som distinto, ainda era considerado um
oboé tenor e, como tal, também era usado para tocar partes marcadas como
"Taille".

Corne Inglês
Fr. cor anglais; Ger. Englischhorn; It. Corno inglese.

Ao longo da história dos instrumentos que antecederam e originaram o corne


inglês, há uma recorrência terminológica que se refere a este instrumento como um
oboé tenor. Tailles du Hautbois, Oboe da Caccia, o Altoboe de Richard Wagner. O
que leva a uma questão muito emblemática de como sua nomenclatura se
estabilizou em uma referência a um chifre inglês.
Levando em conta as metamorfoses de um idioma, que se modificam ao
longo do tempo enquanto uma língua viva, que está em constante mutação, é
possível observar algumas explicações dadas por diversas fontes bibliográficas
para essa questão.
Uma das teorias é que o uso do instrumento em ângulo lembrava a descrição
de um chifre angular na língua francesa e a maneira como a palavra angular era
grafada nesta língua se assemelhava muito com o som fonético da palavra inglês.
Gerando assim uma confusão de nomenclaturas, terminologias e traduções.
Uma outra teoria é que o nome do instrumento deriva do termo alemão
engellisch horn, ou chifre angelical, remetendo à antigas figuras de anjos tocando
um instrumento curvo, muito semelhante a esse instrumento. Engellisch também
significa inglês e esses significados duplos naturalmente se confundiram e de chifre
angelical, se tornou chifre inglês.
O corne inglês foi desenvolvido a partir do oboé da caccia logo após 1720,
possivelmente J.T.Weigel de Breslau. Os cornes ingleses do final do século XVIII
eram suavemente curvos em relação aos modelos barrocos e por volta de 1790
alguns eram feitos em formato angular. Esse instrumento ainda não era conhecido
na França e sua introdução na ópera de Paris por volta de 1805 é creditada à
Alexandre Ferlendis.
A partir dessa época o corne inglês caiu nas graças do luthiers franceses que
lhe aplicaram as melhorias que haviam implementado no oboé, minimizando assim
as as dificuldades que haviam em relação ao dedilhado.
Em 1839. o oboísta, compositor e construtor de oboés Henri Brod,
apresentou na Exposição Universal de Paris o seu corne inglês moderno. Um
instrumento de corpo reto e com a mecânica dos oboés idealizados por ele. O
lançamento foi um sucesso e a partir de então, a maioria dos fabricantes preferiram
construir o instrumento em corpo reto. Posteriormente Guilloume Triébert seguiu
com mais melhorias na construção, baseando se nas melhorias realizadas em seus
modelos de oboé "Sistema Triébert" 3, 4, 5 e 6. Mas foi finalmente com François
Lorée que o corne ganhou sua definitiva e atual forma. Ele re-calculou a posição dos
furos e diminuiu a distância entre os dedos, facilitando consideravelmente a sua
digitação.
Claves

A música para corne inglês foi notada de várias maneiras. Na Itália, durante o
final do século XVIII e a primeira metade do século XIX, as partes eram notadas na
clave de fá na quarta linha, uma oitava abaixo do tom, porque o instrumento era
frequentemente tocado por fagotistas. Em outros lugares, as partes eram anotadas
na clave de dó na terceira linha. Bach, por exemplo tinha esse método como
preferido quando escreveu as partes de oboé da caccia. Na França, eles eram
anotados na clave de dó na segunda linha, para serem lidas como na clave de sol, a
fim de efetuar a transposição correta. Na notação moderna, o instrumentista lê na
clave de sol, tocando as notas como no oboé. O instrumento soa uma quinta justa
abaixo. No entanto, nas partituras modernas, a parte é frequentemente notada no
tom da afinação.

Oboístas que se destacaram com o corne inglês

Nas regiões de língua alemã da Europa, o solista de corne inglês mais


significativo do final do século 18 foi Philipp Teimer (Filip Matyas Tajmar, 1761 –
c1817), que era o caçula dos três irmãos oboístas. Ele trabalhava junto com seu pai
e irmãos no estabelecimento musical do príncipe Johann Joseph Schwarzenburg e
se apresentava frequentemente como solista. Vários trios para oboés e corne inglês,
incluindo possivelmente o op.87 de Beethoven, foram escritos para os três irmãos.
Outro que também foi muito conhecido no final do século 18 foi o compositor e
oboísta Giuseppe Ferlendis (1755-1810).

A relação do corne inglês com a ópera italiana

O corne inglês era geralmente associado à ópera italiana no final do século


XVIII, e a maioria dos instrumentos eram feitos em cidades que apoiaram óperas
italianas, entre elas Viena, Dresden, Milão, Veneza e Lisboa. Ainda no final do
século, Veneza se tornou um importante centro para a escrita de corne inglês.
Talvez não por coincidência, Ferlendis foi empregado lá entre 1778 e 1801. Gustave
Vogt (1781-1870) foi solista na Ópera e o principal oboísta francês de sua época.
Muitos solos foram escritos para ele, incluindo o de Rossini na Abertura de
Guilherme Tell (1829).

Compositores e obras

Berlioz, que foi um grande admirador de Gustave Vogt, se inspirou para


explorar o caráter especial do instrumento desde seus primeiros trabalhos. Em seu
grande tratado de instrumentação, Berlioz ajudou a formar o caráter do corne inglês,
descrevendo-o como um instrumento que cria sentimento de ausência, de
esquecimento e de tristeza solitária.
O corne inglês era pouco conhecido na Alemanha e na Áustria no início de
meados do século XIX. Wagner, só foi utilizar o corne inglês depois de tê-lo ouvido
em Paris. Ele foi o primeiro compositor alemão da época a fazer uso extensivo dele.
O corne inglês continuou a ser ouvido regularmente na ópera italiana em toda a
Europa, onde podemos citar Rossini em suas óperas, Bellini em Il pirata (1827), que
posteriormente serviu de inspiração para Antonio Pasculli escrever a famosa peça
para corne inglês e harpa, intitulada Omaggio a Bellini. Saint-Saëns também utilizou
em duas de suas primeiras sinfonias. Cabe citar também A Sinfonia de César
Franck em ré menor, a 9. sinfonia de A. Dvořák, Concierto de Aranjuez de J.
Rodrigo Sibelius no cisne de Tuonela, Saint Saëns em Sansão e Dalila e Borodin
nos Steppes da Ásia Central, entre muitos outros.

O Altoboe utilizado por Wagner

Entre 1872 e 1875, Wagner solicitou à J.S. Stengel, fabricante de


instrumentos de sopro de Bayreuth, que construísse um oboé tenor em fá, com
corpo de corne inglês e campana semelhante a de um clarinete. O objetivo era de
alcançar um som mais penetrante do que o corne inglês, estendendo a tessitura da
seção de oboés para o registro do tenor.
Wagner especificou que o novo Altoboe deveria substituir o corne inglês em
todas as apresentações futuras de suas partituras. No entanto, o instrumento é
especificamente solicitado apenas em Parsifal (1882). Foi usada em Bayreuth com
alguma regularidade, especialmente entre 1882 e 1894, mas só se manteve até o
ano de 1896. Um único espécime da oficina de Stengel sobrevive no Museu
histórico de Viena. (Kunsthistorisches Museum, Viena).
Foto: Cor Anglais Moderne de Henri Brod - Museu da Universidade de Yale - EUA
Foto: Corne inglês em ângulo: The Look of Music by Philip T. Young. (Início do século XIX -
Guilloume Triébert).
Foto: Corne inglês curvo - The Look of Music by Philip T. Young
Foto: Corne curvo - visão frontal. Museu da Universidade de Yale - EUA
Foto: Coleção de Instrumentos de palheta dupla do Museu de Leipzig. Contracapa do livro Loan
Exhibtion of Historic Double Reed Instruments by: Phillip T. Young. University of Victoria, 1988 Oboé
barroco em dó, oboé tenor reto de Denner, oboé d'amore de Eichentopf e oboé da caccia de Weigel.
Referências Bibliográficas

Browne, Geoffrey. The art of cor anglais. Sycamore Pub., 2005.

Morrison, Philip. "The New Grove Dictionary of Music and Musicians." (1981)

Sainsbury, John S., and Alexandre Choron. A dictionary of musicians from the
earliest times. Da Capo Press, 1966.

Young, Phillip T. University of Victoria Loan Exhibition of Historic Double Reed


Instruments. University of Victoria, 1988

Ennes, Nizaor. O Corne Inglês e sua Evolução. Disponível em


<www.oboenahistoria.com.br> Acesso em : 25 jun. 2020.

Berlioz, Hector. Berlioz's Orchestration Treatise: A Translation and Commentary,


translated from the French by Hugh Macdonald (Cambridge Musical Texts and
Monographs. Cambridge and New York: Cambridge University Press, 2002): 108.
ISBN 0-521-23953-2.

Sugestão de outros sites para pesquisa

- www.metmuseum.org

- www.mimo-international.com

Israel Muniz - Bio

Formado pela Faculdade de Música Carlos Gomes e pós graduado na Alemanha


pela Faculdade de Música de Colônia como bolsista da DAAD, Israel Muniz trabalhou em
importantes grupos orquestrais fora do Brasil, como Bamberger Symphoniker, SWR Baden
Baden und Freiburg, Staatstheater Braunschweig e Deutsche Kammerphilharmonie
Bremen. No Brasil, integrou a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e a Orquestra
Sinfônica da USP. Atualmente é membro da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais como
solo corne inglês, representa enquanto artista as marcas Ludwig Frank/Gebrüder Mönnig e
atua internacionalmente como solista, camerista e recitalista.

CONTATO

Professor Israel Silas Muniz


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Email: israelsmuniz@gmail.com

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