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Entretanto, foi justamente essa geração que explicitamente baniu da sua prática
literária um gênero que, desde Herculano, desfrutava de prestígio e de público: a
novela histórica. Mesmo correndo o risco de repetir um texto bem conhecido, creio
que vale a pena recordar em que termos o autor do Eurico equacionava a ficção e
a ciência históricas em 1840, na revista Panorama:
Como nos textos do mestre, temos nessa novela de Martins um narrador que
intenta dar das cenas e fatos narrados uma visão de conjunto e relevância
histórica e que, para isso, em várias ocasiões, intervém didaticamente, nomeando-
se historiador e descobrindo, sob o véu da ficção, o caráter especulativo dessa
forma de aproximação ao passado. No prefácio, datado de 1866, deparamo-nos
com uma teorização em que a presença de Herculano também é muito sensível.
Dá-nos ali Oliveira Martins uma defesa apaixonada do valor pedagógico da ficção
histórica, que permitiria «simbolizar, não só no pensamento geral, como no
andamento e desenlace do enredo, o caráter dominante de uma época; fazer-lhe
sobressair as suas máculas e a sua glória, as suas sombras e a sua luz». Ou seja,
sendo mais sensível e concreta que a história, a narrativa ficcional poderia
desempenhar mais abrangentemente a tarefa de aperfeiçoamento da sociedade
por meio do conhecimento do passado. Subsidiária da história, essa ficção podia e
devia ser «a expressão ideal da ciência histórica, a vivificação de uma época,
cujas tendências, cujos usos e constituição social ela estudou e descobriu».(2)
Passados porém doze anos, já Oliveira Martins não pensa a questão da mesma
maneira. Em 1879, quando publica a sua História de Portugal, o historiador está
convencido de que a novela histórica é um gênero desimportante e uma atividade
nociva ao interesse da ciência e da pedagogia. Assim, no decorrer de um rápido
balanço dos estudos históricos em Portugal, ao tratar de Herculano, valoriza
devidamente o seu papel de fundador da nova historiografia e a sua contribuição
ao conhecimento do passado nacional. Porém, como nesse elogio pudesse estar
incluída a produção novelística do escritor, voltada para as mesmas épocas de
que redigira a História, Martins vê-se obrigado a deixar claro o seu ponto de vista
atual. Por isso insurge-se violentamente contra a novela histórica, nomeando seus
principais cultores, e marcando a distância a que agora está do gênero com que
iniciara sua carreira. No tempo de Herculano, diz-nos Martins, “ao lado da História
formava-se um gênero híbrido e falso, o romance histórico, em que é para
lamentar o tempo e o talento desperdiçados a compor verdadeiros pastiches. O
valor dessas obras, a que ficaram ligados os nomes de Herculano e Garrett, de
Mendes Leal e Rebelo da Silva, de Marreca e Bernardino Pinheiro, de Corvo e
Arnaldo Gama, de Camilo Castelo Branco e ainda de Pinheiro Chagas, valor
escasso ou nulo como obras poéticas, é apenas o da história dos costumes,
trajos, etc., do pitoresco da história, traduzidos pelos autores com maior ou menor
saber e fidelidade.”(4)
Ora, todos sabemos que Oliveira Martins, desde o inverno de 1870, passou a
integrar espiritualmente o Cenáculo. Mesmo isolado em Santa Eufêmia, na
Espanha, mantinha contato com Antero de Quental e teria feito uma das
Conferências Democráticas, não fosse a intervenção governamental que as
proibiu. Assim, é provável que, para a mudança do ponto de vista do historiador
quanto à novela histórica, também tenha contribuído a introdução de novos
valores e novas concepções do romance em Portugal.
Afinal, não foi esse justamente o tema da conferência de Eça de Queiroz? Não
dizia ali o futuro autor de Os Maias que o romance moderno deveria fundar-se
sobre a observação e de análise e, portanto, escolher os seus temas em sincronia
com o tempo da escrita?(5) A arte moderna – propunha então Eça de Queiroz –
tem por objetivos examinar a sociedade e o indivíduo, proceder à “crítica dos
temperamentos e dos costumes”, tornar-se “auxiliar da ciência e da consciência”,
comprometendo-se por essa via com a verdade e a promoção da justiça social.(6)
Daquele ponto de vista, não havia lugar para o romance histórico, e o estudo do
passado era objeto de outra forma de conhecimento, com métodos e técnicas
diferenciados: a ciência histórica. Nesse quadro, coerentemente, Eça de Queiroz
desqualificava os principais romances do século, que explicitamente nomeava
(Eurico, O Monge de Cister, A Mocidade de D. João V, O Arco de Sant’Ana),
recusando-os enquanto gênero e descobrindo-lhes a falsidade e a inferioridade
enquanto obras literárias.(7)
A forma dramática, assim, está inscrita na própria forma de ser dos agentes
históricos. O herói martiniano, portanto, não é simples encarnação de uma idéia,
mas um ser múltiplo, que requer, para ser bem compreendido, uma análise
abrangente, em que a psicologia – o traçado do caráter e sua evolução – tem um
lugar de destaque: “a épica jornada de Alexandre é a sua biografia, e o crítico ao
observar a evolução psicológica do herói descobre o segredo da história.”(10)
Nesse quadro, fica claro que a biografia de alguns dos principais vultos da dinastia
de Avis, com que Oliveira Martins pretendia coroar a sua obra reflexiva sobre a
sociedade portuguesa, era o desenvolvimento natural dos pressupostos que
serviram de base a todo o seu trabalho historiográfico.(16) Também fica claro o
trajeto que vimos descrevendo, no que toca ao sentido e valor da novela histórica
segundo Oliveira Martins, quando consideramos que essas monografias são um
reatar das pontas da sua vida literária: evocam e retomam, pelo caráter biográfico
e pela temática (a galeria dos vultos exemplares de Avis) a obra com que estreara
em livro.
A esse primeiro reparo, Oliveira Martins respondia pela aceitação. Reconhecia que
se tratava de “excrescências” originadas do seu processo criativo – “eu vejo, sinto
e vivo as cenas que escrevo”, responde ele – e prometia suprimi-las nas edições
futuras.(20)
A réplica de Oliveira Martins, nessa carta datada do ano de sua morte, mais uma
vez permite que observemos o quanto ele continuou próximo das concepções de
Herculano sobre o que seria o conhecimento artístico do tempo pretérito. Em
primeiro lugar, respondia pela postulação do caráter típico das personagens do
passado e do presente: há repetições, homologias, que ao historiador cumpriria
identificar. Em segundo lugar, em termos que retomavam o texto do mestre, de
1840 (“recompor o coração do que é morto pelo coração do que é vivo” ), Oliveira
Martins afirmava simultaneamente a importância da sua experiência de
intervenção política – cujas vivências lhe pareciam úteis para a melhor
compreensão do passado –, e a validade do tratamento psicológico das figuras
dos tempos recuados. Ambas as postulações se embasavam na crença de que “a
alma humana é sempre a mesma.” – como respondia ao amigo – “A diferença é
que os simples procedem espontânea e inconscientemente, e os requintados
[...]refletida e conscientemente.”(21) Partindo dessa premissa, Martins vai afirmar
que “não basta o artista pintar um simples reproduzindo a atitude hierática e as
formas broncas do seu aspecto exterior”, o que é preciso é explicar: “dizer que
misteriosas revoluções se abrigaram dentro de um cérebro que todavia as não
raciocinava nem as podia compreender”. Por fim, insistia nesse ponto, afirmando:
“esmerilhar os estudos de espírito é quanto a mim o dever a missão do
historiador”.
É por isso muito compreensível que a crítica tenha, desde Eça de Queiroz, batido
sempre na mesma tecla, voltando contra Martins as censuras que ele mesmo
dirigira à novela histórica: hibridismo, falseamento, gosto pelo pitoresco e pelo
dramático em detrimento dos dados mais objetivos revelados pela pesquisa
documental e do estilo sóbrio, despido, “científico”. Finalmente, porém, desde que
se começou a proceder a uma alteração muito profunda na forma de conceber a
pesquisa histórica e a própria ciência, cada vez mais as qualidades excepcionais
de sua interpretação global da história portuguesa têm passado a ser apreciadas,
e o seu método tão singularmente exercido vem sendo objeto de revalorização. O
exemplo mais notável da forma como se tem transformado a apreciação das
qualidades do texto martiniano deu-nos António José Saraiva no seu último livro, A
Tertúlia Ocidental, em que dedicou páginas memoráveis a essa “obra de
instrospecção» que é a História de Portugal escrita por Oliveira Martins.
Encontramos aí, pela primeira vez, um julgamento muito abalizado que
corresponde, na forma de considerar a obra de Oliveira Martins e de valorizá-la,
aos objetivos e preocupações metodológicas do seu autor. “Ele entendeu –
escreve António José Saraiva – que a realidade se processa de dentro para fora,
da semente para a flor, ao passo que os historiadores comuns, julgando-se
cientistas, procedem de fora para dentro, como é habitual na análise científica,
mas afastando-se cada vez mais daquilo que pretendem explicar. [...] É por isso
que, em comparação com esta História de Portugal, as outras, à sua luz, nos
aparecem como sombras imperfeitas.”(23)
De meu ponto de vista, é esse projeto, informe ainda no Febo Moniz, de contar por
dentro a história da vida da nação, que vai constituir a espinha dorsal de toda a
sua obra e só vai de fato desabrochar plenamente nas páginas de A Vida de
Nun’Álvares, que, sem qualquer demérito para o autor, também se deixa ler como
uma vívida e emocionante novela, apoiada em vários apêndices e muitas
centenas de notas eruditas, que o leitor comum pode, sem problema, ignorar por
completo.
Notas:
5. Nas suas palavras: “O realismo deve ser perfeitamente do seu tempo, tomar a
sua matéria na vida contemporânea. Deste princípio, que é basilar, que é a
primeira condição do realismo, está longe a nossa literatura. A nossa arte é de
todos os tempos, menos do nosso.” Eça de Queiroz: “A literatura nova (o Realismo
como nova expressão da arte)”. In: António Salgado Jr. História das Conferências
do Casino. Apud Ribeiro, Maria Aparecida. História crítica da literatura portuguesa
(vol. VI). Lisboa, Verbo, 1994, p.94.
6. Eça de Queiroz: “A literatura nova (o Realismo como nova expressão da arte)”,
cit., p. 94.
7. Sobre a questão da falsidade, ver, p.ex., esta passagem: “... quando a ciência
nos disser: a idéia é verdadeira; quando a consciência nos segredar: a idéia é
justa; e quando a arte nos bradar: a idéia é bela, teremos a obra de arte superior.
Do contrário teremos uma obra falsa, fora do momento, da verdade, etc.” Id. Ibid,
p. 94.
10. Oliveira Martins. O helenismo ..., cit, p. 209. A propósito da teoria martiniana
do herói, veja-se o excelente trabalho de Sérgio Campos Matos: “Na génese da
teoria do herói em Oliveira Martins”. In: Estudos em homenagem a Jorge Borges
de Macedo. Lisboa, INIC, 1992, pp. 475-504.
11. É por isso que, para Martins, enquanto o romance realista se configura como
uma forma válida de conhecimento do presente, a mesma palavra “romance”,
quando ligada ao passado, vai designar sempre a narrativa desprovida de valor de
verdade. V.g. esta passagem da “Advertência”, in: Os Filhos de D. João I ( Lisboa,
Guimarães Editores, 1993, p. 9): "E há-de [a história], por outro lado, assentar
sobre a base de um saber solidamente minucioso, de um conhecimento exato e
erudito dos fatos e condições reais, sob pena de, em vez de se escrever história,
inventarem-se romances."
12. As citações que se seguem neste parágrafo foram colhidas em: Oliveira
Martins. Portugal Contemporâneo (5ª ed.). Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1919, t.
II, pp. 321-323.
13. Não vou considerar aqui, porque não caberia, a outra censura que Martins faz
a Herculano: a de não ter sido serenamente imparcial, como conviria a um
historiador, e sim ter projetado suas crenças e opiniões sobre o passado que
estudava. Registro-a, entretanto, porque é muito curiosa, quando confrontada com
a fortuna crítica do próprio Oliveira Martins.
14. Portugal contemporâneo, cit., pp. 319-20: “Para ele que, como lusitano, nada
tinha de artista (prova, os seus romances), a literatura era uma missão e não um
diletantismo. O universo, a história, a sociedade não se lhe apresentavam como
assunto de estudos sutis e curiosos, de observações finas ou profundas, de
quadros brilhantes, vivos ou comoventes; mas sim como objeto de afirmações ou
negações, inspiradas pela convicção estóica.”
15. A passagem em que Oliveira Martins mais claramente apresenta as questões
referentes ao método artístico e menciona “o palpitar vário dos tempos” encontra-
se na “Advertência” a Os Filhos de D. João I. A respeito desses pontos, podem-se
consultar os textos de minha autoria, já referidos, e ainda: “Oliveira Martins e a
arte de escrever a história”, a ser em breve publicado nos anais da reunião
Oliveira Martins: History, Social Sciences and National Mythology. Londres,
University of London, School of Advanced Study, Institute of Romance Studies, 27
e 28 de outubro de 1994.
16. Oliveira Martins planejava escrever cinco biografias, nas quais sintetizaria a
vida sob a segunda dinastia: Os Filhos de D. João I e A vida de Nun’Álvares
(publicados em 1891 e 1893 respectivamente) e mais três, que não teve tempo de
realizar: um dedicado a D. João II, outro a Afonso de Albuquerque e o último a D.
Sebastião. Se concluísse o seu plano, dizia na apresentação de A vida..., poderia
mesmo mudar o nome da sua História de Portugal para Introdução a uma História
Portuguesa.
17. Na verdade, toda a obra histórica de Martins foi objeto desse tipo de crítica,
como é lógico. Desde a primeira edição da História de Portugal, houve aqueles
que a acusaram de “fantasista”. Ver, a respeito, a nota que Oliveira Martins apôs à
segunda edição: “A ‘História de Portugal’e os críticos”. In: História de Portugal, cit.,
pp. 215-226, especialmente p. 217.
18. A respeito das monografias do final da vida, ver o excelente estudo de Martim
de Albuquerque, que serve de prefácio à edição crítica da História de Portugal, já
referida. Nesse texto, a tantos títulos notável, o leitor poderá encontrar dados
muito interessantes sobre o esforço documental que presidiu à elaboração das
últimas obras martinianas e concluir, com o autor, que “as considerações
expendidas permitem questionar a idéia feita sobre a carência de análise e a
deficiência documental do historiador Oliveira Martins. Pode-se, inclusive, afirmar
que ele percorreu uma trajetória de aperfeiçoamento progressivo, de crescente
rigorismo metodológico.”(p.43)
20. Carta de Oliveira Martins a Eça de Queiroz, datada de 8 de maio de 1894. In:
Correspondência, cit., pp.169-172.
22. Creio que é essa incorporação decidida do aspecto artístico que levou A. J.
Saraiva, em textos dos anos 40, a identificar nas monografias biográficas uma
aproximação ao romance, e a ligá-las, por essa via, ao Febo Moniz. Cf. esta frase:
“Os próprios livros em que procurou fazer romance, ou aproximar-se dele – Febo
Moniz, A vida de Nun’Álvares e Os Filhos de D. João I – nos dão os argumentos
mais flagrantes e consideráveis contra o lugar-comum do Oliveira Martins
romancista.” António José Saraiva. “Oliveira Martins, artista”. In: Para a História da
Cultura em Portugal (4ª ed.), vol I. Lisboa, Europa-América, 1972, p.200. O ponto
de Saraiva, nesse ensaio, não é a questão do gênero. Tampouco o ocupa aqui a
investigação do valor de verdade dos textos de Martins dentro da oposição
romance/história. Está antes preocupado em investigar as capacidades
expressivas do texto martiniano. É nesse sentido que recusa o mito do Oliveira
Martins romancista: quer dizer, não acredita que as qualidades literárias do texto
de Martins provenham da organização romanesca do seus textos.