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moisés alves

onde late
um
cachorro
doido

azougue

2017

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editor
Renato Rezende

imagem da capa
Janaina Tschäpe
After the Rain Series: Dani 1, 2003
Edição de 5
Cibachrome
51 x 76 cm

projeto gráfico
Tiago Gonçalves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do livro - SP, Brasil)

Alves, Moisés
Onde late um cachorro doido
1ª ed. - Rio de Janeiro: Editora Circuito / Azougue editorial, 2017
ISBN: 978-85-9582-014-2
1. Poesia brasileira 2. Literatura contemporânea

Índices para catálogo sistemático


1. Poesia brasileira

editora circuito
www.editoracircuito.com.br

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SUMÁRIO

dentro de rubro aquário 9


experiment/ação 19
elogio à segunda pessoa 33
cinema de poesia 107
desossar 135
onde late um cachorro doido 173

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Tenho muita comida deliciosa de abutre
dentro da minha cavidade torácica.
chelsey minnis

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A Rosana Junqueira

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dentro
de rubro
aquário

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I

O amor o possui. A esse escândalo vale doar a qualquer alheio


corpo de coisa e homem e espaço aquela velha rajada, seu viço
máximo. É a norma: amar a quem aquilo seja lá e cada vez mais.
Em alta voltagem. Amar. A quem de repente surja com um tiro
disparado em câmera lenta em direção ao peito diz ame-o, ame
a essa pessoa, a essa queda chegando, acolha-a sob sua tenda de
gaze - viciada - em frondosos fiapos esse teto todo seu e amplo,
de uma brutalidade vital. Cinema de ruídos épicos e fartura de
restos. O amor mais do que mais pousa sobre o ori, o poço, o
bico de ave, onde exato na pessoa alvo é pura peça laminada.
Perdoe tal anáfora mas o amor vem com um, dois cavalos: o par
de crina larga vai atacar toda a paz de cemitério a favor de ou-
tra a paz. Espérmica. Inominável. Anarco-poética toda a guerra
com suor cela campo aberto e arte. Outra vez o balé entre vasos
sacros. Que venham nacos de carne a mão o desossar, dois ca-
valos. A faca a destrinchar o osso do não osso, essa barbárie que
todos em alguma altura em algum instante de vida ávida sabem.
Das sobras: gestos e hábitos. Osso do não osso. Ao deus-dará
entrego os soldados mortos. Leves cadáveres de nunca mais no
jardim dessa praça. Aqui ao lado e para baixo um mato verde
cresce para dar-se talvez a uma boca de bicho a uma pisada qual-
quer. É assim o esplendoroso doar-se pois basta um aconteci-
mento. Qualquer. Um vira-lata de cinema. Qualquer. Um céu de

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centro da cidade. Quanto mais se doa mais se mata a fome mais
nova fome nasce. Meu Deus, a fome! Eis o que capturamos em
primeira instância um no outro e à toa ao redor de nossa comu-
nidade-frater. Ela, soberana, puro amor ao corpo e como manta
sobre ele atacante, um arranque, um grande ímpeto, um arroto
a fome, uma genitália em ânimo a fome, um pesadelo branco
e rasgado pela manhã a fome, um corpo que se tem saudade a
fome mas sempre além dela, a beleza, o horror dessa beleza com
boca aberta: sua forma e força. A fome: a Grande Beleza Hu-
mana tantíssima indomável que sorve pessoa, sua musculatura,
sua noite. E mata. E goza de gozar-se. A fome é bem verdade
engorda e mata e espirra sua porra e engorda e mata e ao desfe-
char assim seus golpes sua rítmica quem sabe nasça um capim
um inseto um curto vibrátil um início de coisa um papo sensual
onde endereço-me cada vez mais e alucinado para dentro de seu
rubro aquário.

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II

Digo ao moço do pensamento que a filosofia que me interessa


levo-a solta no corpo e não necessariamente em palavra trape-
zista na mão que o beija e afaga e nisto encerra-se o limite desta
pata preta que pousa sobre ele e encaixa-se, trança-se, enlaça-
-o em sofisticadíssima fisgada de escorpião; digo-lhe que nem
mesmo reconheço o corpo como campo de experiência vindo
de sensações e gestos e espaços mas o ato de pensar tem garan-
tido para-mim a melhor versão do viver só e povoado; o pensa-
mento mesmo experimenta e usa o que e quem quer que seja
para alargar sua teia; pensar sobretudo como atividade hormo-
nal interessa-me, uma mística bruta, ereta, áspera; o moço doa
essa sua graciosa maquinaria sísmica à escrita, para aquilo que
chama de sua vida; o moço artista beija o outro na boca e eletri-
zam-se; o moço me pergunta se esse movimentar-se parado tem
me dado corpo leve, se tenho esquecido a ponto de esquecer o
que deve ser soprado pelo vento, pólvora queimada; digo a ele,
a essa oferenda de deuses, que um corpo leve conquista-se; um
corpo leve ergue-se se alguém dá-se a dignidade de vivenciar
sem triagem todas grossas camadas dos bons maus afetos sem
recear-se ou levantar recalques e assepsias para atender seja lá
que projeto de humana gente; eis um leve corpo leve se dá à ira o
tempo que a ira a lágrima a paixão o rasgo necessitam; nem mais
ou menos, o inevitável apenas; se se dá ao beijo o tempo largo e

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necessário para que esta nuvem táctil do beijo se faça e estenda-
-se sobre este moço que tem conseguido daqui meu sim e sim de
todos os lados; de outro jeito entopem-se válvulas e desorien-
ta-se o faro, satélite poroso de todo corpo saudável; do portão
aceso por um azul cobalto abano meu rabo de cachorro louco e
com baba; experimento sua chegada; como experimenta-se al-
guém talvez alguém indague-se; digo-lhe que começa pela nuca,
hálito, até alcançar um volume d’alma sempre estendido no cor-
po; experimento o cheiro d’outro cachorro sem dono junto ao
poste, e amável; amável é o que acompanha um corpo, uma rede
ampla e que se faz amar, que se pode; tornar-se amável latimos
um sem palavra em disparo ao outro; secos sem qualquer pensa-
mento poético, secos como uma terra vermelha e amáveis, digo
ao moço o que faremos em hora de tédio alto, o quê; o moço
responde que segundo minha tese ir-se de cabeça em direção
ao tédio, amar essa alegria entediante que debruça-se implacável
sobre sexos, dias, existências, amar até a última gota de mercúrio
a essa fartura de nada-a-fazer que evapora-se do calor de um,
do outro, roçar-se nessa pequena catástrofe; a vida excitante ali
enroscada, mesmice sagrada; se quiseres leve seu corpo leve,
queira-me, ele diz; eu não faço silêncio, digo; também não grito
sempre, o moço diz; latimos, o latido nos quer; se quiseres leve
seu corpo leve, queira-me, ele diz: eu quero.

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III

Digo ao moço do pensamento que estamos juntos bem juntos


desde há algum tempo como se verdes frutos e carrapatos sus-
pensos em galhos, à espera que um ou outro uivasse de um ponto
da cidade e tal uivo tomasse cômodos da casa com seu espanto
e volume; não entendemos a piada e gargalhamos; digo-lhe que
estamos a tentar abrir um atalho a pancadas para que certos pra-
zeres atravessem e explodam assim portas cercas fechadas um dia
em legítima defesa; o moço diz para que servem tais estouros se
de estilhaços desenha-se outra porta sobre o chão; sem portas,
decidimos eu & ele, mas com o pé a pisada como nossa mais sofis-
ticada saída de emergência: pé pisada chão, tecnologia necessária
para o grande salto; faço doação ao moço de uma coisa preciosa
que disfarça-se em beijo e preciosa por levar no gesto e em ataque
o que chamam de moisés alves; abre o moço sua tenda e lá o cui-
dado, um jardim, um aquário, o acolhimento e aquelas brancas
borboletas em vidraças; o moço ri pela primeira vez esta tarde;
espalho quando posso mansas alegrias aqui, lá; pergunta-me do
que tenho achado graça; rio de todo choro que não crê em sua
precariedade, digo; caímos na risada, em transes imperceptíveis e
transas intocáveis, no de repente do poema que somos quando face
a face; foi-se o tempo largo muito largo de lágrimas, pensamos ca-
lados, escondeu-se tal grosso vento onde? talvez um dia regresse
como trovoada em estação cujo nome e hora e endereço deixam-

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-me sem verbo e em perplexidade pálida; uma prece, propõe sua
boca, hora de agradecermos eu-para-você e vice-versa; aceito a
ambos, tanto o chamado e o modo discreto que deus acende-se
e apaga, acende-se e apaga delicado como colos de velhos, seu
tiro no osso, à queima-roupa para que a coisa vibre & mova-se;
o moço chega para o encontro como um pobre e diz olhe bem,
veja que não trago nada do que tens; olhe bem veja atente que
só se tem e leva-se para duetos fartos como o nosso nossa fatal
pobreza. Eis o que tenho doidamente, diz o moço tomado por
intensidades; engatilhamos em direção um ao outro aquilo que
torna nossa pobreza vital: disparamo-nos; o moço pede-me que
prometa erguermos juntos uma festa se acaso um dia o rasgo se
impor sobre nossos sexos e diariamente e cabeça; digo que veja
de perto minha derme, sou bicho com couro áspero, anfíbio que
desconhece atos de promessa, digo-lhe nada posso contra aquilo
que precisa e arranja portanto um jeito de acontecer e acontece,
vai acontecendo; por enquanto digo-lhe esqueça essa clepsidra o
desfecho e dê vigor cada vez mais ao nó, ao elo, à encruzilhada,
a essa tecelagem gozosa, alvinegra cheirando a/mar; digo-lhe:
sente-se agora é a sua vez: em lugar da pobreza impossível, sou
daqueles que levam para cena uma estratégica virgindade dian-
te de qualquer acontecimento repetido ou inaugural; tem dado
certo; o moço pensa que minha alegria é teatro; eu digo beije-me,
traga em seu beijo o aflito o trapezista sua fatia mais brutal a ítaca a
mordida de cavalo a gaia o muito sensual o varado de amor e bala.

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IV

O que conto vem da grande vida ordinária, essa que cada um


leva na mão em ladainha e festa grave; amar ser amado: faixa de
jardim faixa de gaza, lugar que salva e protege, zona de ataque,
alarga o que seguia contraído na fibra da carne; amar ser ama-
do torce ossos músculos portanto águas de toda espécie vazam,
máquina a compor marítimos desertos; o moço diz que dessa
vez acertamos, alvo e disparo, estamos no  mesmo barco; daí
esse charme de cachorro doido; pois é, diz o moço, um char-
me pousa sobre esse teto e dispensa íntimas formas cotidianas
de vivo/morto, ali mesmo e no instante em que te flagrei em
gozo com mil máscaras de vida e morte, digo que não esqueci
de chamar-te pelo nome que de repente adivinhei; bem vivos
e vazantes, gritamos rente ao tabuleiro desse xadrez; adivinhei
sem esforço o moço diz que não surpreende-se fácil pois sabe
em sonho nossa tendência para artes do acato; prossiga, eu digo
em meu tom melhor; catamos em ruas e quartos em mínimos
gestos e passagens o que expande medidas de nosso largo aquá-
rio largo onde nos afogamos; atos de capturar do chão e entre
ruínas o brilhante ainda sem forma e arranjo, a isto diz ele, cha-
ma-se arte de imantar algo que corre solto; o moço ensina-me
a dançar um tango; tropeço, é assim mesmo ele diz, em dobra-
diça, quase no limite de torção que se faz um tango; forças do
acaso liberam coisas informes, coisinhas, e assim desenham-se

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choques solturas teias alianças varreduras rachas entre corpos;
desaba uma gota e tem-se líquidos estilhaços no meio do no-
nada onde te mando um beijo tranquilo sem no entanto qual-
quer saudade; acasos com s no final liberam massas de ar, eu o
moço fazemos disso junção em pleno meio dia e aí deus meu
a condensada matéria do encontro nosso se faz; não escapa-se
dessa condição de ser a qualquer hora um achado um perdido,
um sem terra e nome, sem lei a quem trouxer seu charme como
um laço anzol; se você faísca, ele prossegue com rima, lança o
inesperado magia, se faísca mova-se não, o sagrado trisca. O que
conto foi achado pelos cantos como se limo em rochas pesco-
ço junta de pernas braços; diz que pensa muito no demasiado
pouco, nas bagatelas, um pouco de lhe basta; essa palavra não dá
conta do que tem sido achado e perdido, achado perdido enros-
cado entre peitos, dorsos e mucosas neste quarto praias becos
calçadas, nesta sala; esse poema, o moço diz, não sabe de nada
disso. Ele não pesca e se pescado mata o peixe, o samba do peixe
n’água e há bocas que não acolhem cadáveres; peixe morto, para
que, se há por todo lado isca rede vontade? O peixe não se dá
senão dentro desse rubro, faiscante, alargadíssimo aquário.

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experiment/ação
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I

Riscar a giz o caminho que se percorre todo dia de casa para


qualquer lugar onde o corpo de repente entra sai entra sai nau-
fraga escapa. Em furor entrar e bradar: festejemos o viver, sim,
façamos com essa xícara uma festa para vinda urgente de vida
fresca a aproximar-se vagarosamente nesta hora com sua alca-
teia azul naval.

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II

Invadiu em sofreguidão o ateliê em busca que uma tatoo de um


grande deserto pousasse em seu pescoço ombro medula joelho.
Ficou parada. A coisa não pousou. Como desenhar um deserto
num corpo inteiro, pensou. O artista disse que para que a pele
aceite tal imagem é preciso antes curá-la, ir ao mangue, man-
guear-se, rabiscar-se de lama, víveres, mordiscos de peixe, fazer-
-se de chão, passagem, deixar-se ser iscada, capturada por aquilo
que ela queira. Ficar submersa no mangue durante um verão
que acontece a cada duas horas em seu quarto, entre felpudas
pernas embaralhadas entre a ternura e o chumbo do enlace. Às
cinco da tarde mudar de posição de encontro, preferencialmen-
te, ao sol acerejado. Toda hora o mar arremessa uma pedra pre-
ciosa na praia manchas sobre telhas lampejos em paredes. Na
cara. Mudar o nome dos pés à cabeça para Aurora. Faz parte.
Não mata. Experimente.

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III

Tenta-se dar um passo mesmo com a perna quebrada. O chão


não quer não te larga impede o salto. Tenta-se por um instante
uma vez mais o beijo o grito de boca alarmada. Não quer meu
charme. Meu espanto. Minha algazarra. Tenta-se então rastejar-
-se com sua pata anfíbia guardada em recato sob mãos, mãos
familiares, a gerarem tantos gestos e maldades tácteis suaves. De
bruços terra concreto argila rasgam um couro seu nunca antes
pensado e frágil, qualquer lâmina o couro berra em sobressalto.
Nocaute. Começa a contagem. Nocaute. Você pensa nas grada-
ções existentes entre comer beijar morder renascer, renasça em
sortilégios sob proteção de lobos vermelhos agachados com a
caça entre mandíbulas quase alvas. Eles te olham. Você não pen-
sa em nada. Almeja sobretudo que nenhum dente ataque sua
cauda vibrátil ao desfilar como uma passista na praça. Exausta.
Há, sim, há em ti um azul que se porta em vários pontos do cor-
po que não se deixa matar. El matador fracassa ao convocar seu
blue devasta/dor arrasa/dor cura/dor. Experimente chamá-lo
qualquer sábado a essa brutalidade cobalto. Faz bem. Não faz.
Ninguém sabe. Toalha.

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IV

Logo se vê não conhece língua que lhe imponha falar de certa inti-
midade, quando perto dele mesmo, regurgita. Uma língua nele se
faz como se comprimida e mosaica manta lhe caísse doucement
sobre as costas e o devorasse de um jeito que falta-me um remate.
Nem mínima ou máxima, crua palavra. Tudo se tocado faísca. A
língua que o chama (qual?) arrasta-se até agarrar-se àquela outra
vibrante em qualquer boca vaga, primária ainda por vir a público
e movimentar-se, a língua que lhe falta é a mesma que ao agachar-
-se capta o triz o instante do salto. Essa no entanto não importa
não basta: sensores nossos adivinham seu funcionamento via
patas narinas chifres crinas caudas. Deve haver estilhaços nos
dedos do rapaz sem língua madre. Nada ergue sem nobre solidão
e com pessoa primeira nada fica no rés do chão. Quando levado
a referir-se a si próprio, emperra late gargalha finge-se de muito
morto. Fingir-se de morto aliás é uma ação alta e brava. Faz bem
se necessário. Não mata. Pôr seu morto no rosto, não mata. Trazer
à flor da pele seu outro possível tom, já instalado e vindo vindo
sem cessar, não mata. Encarar seu morto de frente, chumbado,
tente talvez algum cuidado: sem a arte de doar-se o morto perde-
-se, fica frágil, desiste de nossa força de touro em sonolência que
a qualquer instante no entanto, se triscado, pode vir a fagulhar. O
que mata não engorda. O óbvio não é familiar. Experimente isso,
meu bem: viver hora após hora sem morrer um pedaço.

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V

a) extirpar em grande violência naco a naco o sabor de um al-


guém trincado em seu corpo. Sai sangue. Não mata;

b) alegrar-se com quase tudo que acontece entre esse seu tédio
e o meu, amplificado à máxima nota musical neste recosto de
sofá, de chumbo. Movediço.

c) como não há o que fazer o fastio cansa-se de nos esgotar e


agora só eu você;

d) experimentos-a-dois convocam suores esperma álcoois lágri-


ma, mínimos volumes que se acautelam e arranjam um jeito de
dar o fora dessa nossa alcova cárnea;

e) a vida experimenta-nos com seu talher perfurante e visco-


so de gaze e basta, basta para que o corpo caia em excitação
e desalento como uma boca vira-lata diante de corpo-de-boi
flechado, suspenso em gancho de açougue; salve-a, cuide de
sua porção vira-lata; 

f) e no entanto o tédio nos atrapalha e somos nele tão atrapalha-


dos que vale bem mais essa perna destra sobre meu colo e o que
preparamos em silêncio ao longo de nocturnas manhãs e manhas;

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g) se der vontade de gritar, estique braços cerre punhos gri-
te, grite obscena de seu assento e janela por isso-que-passou e
o-que-virá. Amor fati;

h) o mundo trabalha e nada é mais quente que essa hora que


surpreendo – flagrante – seu olho me olhando. Acintoso. Exaus-
to de amar;

i) de repente o poema insiste dizer que tudo que se tem é essa


solidão que todos trazem de muito longe em vertigem como um
flash desabando no rosto. Sua vida é essa, a que se porta quando
dorme acorda. A vida é de ninguém, está solta bem solta nas
coisas. O que resta à vida é encostar-se n’outra e então, o duelo, a
radiação, o elo, atalhos de mato rumo à floresta negra. A solidão
se espanta perante tanta faísca e distraidamente retorna, sem
que percebamos, ao lugar de pouso. Há alguma coisa, vi num
romance inglês, que neste instante trisca, experimenta-nos, pas-
sa sua língua rugosa em nossa testa. Deixe-a. Deixe-a em paz, a
escavar. Vá à feira. Veja seu charme. Esqueça-a.

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VI

a) Seguir a-dois deixa-me frágil você diz como um corpo sem


braços deslizando entre crostas mangues. Viventes dali pouco
se comovem e lançam suas esporas. Um corte basta para que
aconteça o inimaginável em pequenos rasgos sobre sua pele fina
confundem a esta altura de tudo as intensidades íntimas todas;
não sabemos desembaraçá-lo da lama. A vida te quer para chão
de taipa. Prefiro o céu varado de lua. Eu calo.

b) você diz sem esforço que quer ser guinchado por alguma coi-
sa que fisga anima. Areia sobre dente aberto careado. Areiazinha
sobre nervos raiz e osso. Não sabe não quer saber que o a-dois
torna o-um mais brando e serena. Que a-dois maus delírios não
resistem a uma mão em encaixe estirada ao redor da cintura sua
que cabe o mundo teu mundo. Retorcido. Uma lâmina retorci-
da. Tua cintura. Lasca de madeira rasgada pelo fogo até o talo.
Passa com máxima suavidade um vento e um fogo qualquer se
desassossega. O-um desabrigado chora por todos os buracos,
deve regressar à lama pelos olhos. Você que conhece o servo
dos olhos convém chamá-lo ao mar. O mar descama. A pancada
marítima salva. Na pancada em ondas desatam-se dormências
vitais do corpo: minúsculas e largas e necessárias. Inesgotáveis:
a dor e as ondas.

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c) todos trazem um salva vidas em exílio no corpo: solte-o, te-
nha coragem, solte-o já. Não tenha medo da dor. O corpo pode.
Conhece alquimias vertiginosamente sensuais: a hora do dispa-
ro, do recuo, do agache, do exato instante em que a vida orde-
na retome o espaço assaltado pelo invasor, destitua-o, é seu o
tal espaço inatacável e penetrável como uma placenta viscosa e
cárnea a compor um povo, onde milagrosamente une-se uma
multidão de muitas águas e nasce assim uma coisa.

d) Deve regressar a um tempo a-vir ainda sem nada e por isso


mesmo com tanto e tanto. O que não se tem é amplo e não aca-
ba. O não-ter entorna sua vazante, faz do dia claro um escândalo,
um carnaval: quando mais jorra vem o ouríssimo necessário. O
que não tenho e não quero é dourado e está tão solto. Experi-
mentar o não-ter e sustentá-lo cintila a vida à deriva no corpo.
A vida gosta de rostos e corações vaziíssimos pois só assim se
espalha. Esparramada sobre existências vibráteis ela brinca, ela
desmonta a arena. Ocorre que é essa a festa, não vê? Coisas não
tidas à toa nos espaços à espera que uma mão qualquer agar-
re-as, você não percebe que com o seu machado a vida mes-
ma abre frestas, curvas, atalhos para que o não-ter encontre se
esbarre aconteça sobre outra sensual carência que o abraça, o
beija, diz fique fique um tanto, também eu tenho quase nada a
esta hora noite coral. Satélites desvairados. Enquanto isso uma
faca crua no pescoço macio do porco é amor em alta ferocidade,

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amor à rósea carne.

e) O-um desabrigado cava com unhas pouco sofisticadas para o


ato uma toca o seu possante mar de lama onde ficará um pouco,
de onde sairá vai sair – como de costume – em alta preciosidade
de tal forma que se valerá de uma discrição estratégica para de-
fender-se de alheios que doam suores e bocas vorazes para vasta
patinagem. Você então desliza. Escorre mais firme e suave para
outras tocas. Faz frio. Entre. Aceite o chá. A promessa sobera-
na de alegria nova raia. Experimente-a e deixe-se experimentar.
Pela alegria. Alguma dor de qualquer jeito faz parte. Está inscrita
a dor em tudo que vibra. Pousa vindo de grande distância um
sorriso em teu rosto sem querer saber do-que-passou. É bom. O
deslize. O espasmo dessa outra chegada. Você vira a cabeça para
o lado a fim de que ninguém te veja e aos poucos, bem vagarosa-
mente você ri da vida e ela, a vida, seja qual for a circunstância,
te aceita, tragando excitada sua saliva branca seu pau uma orquí-
dea em mansa barbárie. A vida te quer. A vida diz sim por todos
os lados em saltos e desvarios e piruetas com sua cara e fogo de
palhaço.

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VII

Em cada parte do corpo mora um bicho. Daqui vejo o teu. Não


te espantes se ele nesta hora se desagacha aos poucos desaga-
che-se e mostra plêiades de precárias preciosidades. Faz bem se
não grita pois pode a coisa afugentar-se e estabanada saltar de
janelas lábios dos teus braços. Soltar-se na marra enquanto pau
vagina e mãos querem ficar dizem vá não vá. Deixe-a pois sem
âncora mas com linha suavíssima para que não se perca do bom
lodo teu, da tua anárquica graça. Não te espantes se quem a cose
salta do trem de repente e vai à forca. Prata-cobalto. Procuro
saber o nome de certa espada em que Mishima extraía ora do
rim ora baço grandes poses. Vinha todo ele daquele fio de metal
rasgando o que aprende-se a retribuir com carícias e impecáveis
rituais: gestos dentro de dias e noites. Não sabia jamais saberá
de intensivas glândulas vindas do ficar. Por mais um instante:
não dá. Estou exausto. No volume máximo - exausto - de um
modo que você por muito medo do estridente não ousa estar.
Dando o fora, sim, dizendo: basta. Curto-circuito. Do punho
quer o bicho dali escapar. Um negro falcão em brasa. Basta - so-
pro e prece - intempestivamente saudável articulá-lo. Faz parte.
Não mata. Experimente.

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VIII

Ela oferece o corpo ao abate. No seu ao-redor estacas mandíbu-


las. Olhos fundos em faísca olhos com muita carência no meio,
a carência por querer muito ataca estraçalha desfigura mata. Vê
a própria mão como espada forasteira e a decepa enquanto bas-
tava o grito, mulher, o grito é seta: diz: é por aqui: diz: onde
há mais grito, talvez curve-se ali um caminho a ser desfolhado
um acolhimento uma parada para a boca que pede água. O que
for necessário, se gritado se arado, chega. Veja como a cabra se
aproxima quando a hiena sopra seu berro. Desvaira-se aquilo
que dá-se senão em rasgo. Rasgar paredes telhas rastros vidra-
ças à esquerda por onde fogem fissurados aqueles à procura da
saída de emergência. A saída não abre a porta. Foge - por ser
muito pobre - corre das amplas fomes e pisadas violentas a pas-
sagem de ar fresco. Os que a querem são levados a tomar nota
da delicada arte de ficar por um instante parado. Deixar o que
for queimar. Exilar-se dentro de uma hora, por exemplo, às cin-
co da tarde, em uma nuvem fumaça, dentro de uma tripa, um
abraço. Experimente. Os que, incansáveis, desenham uma seta,
e seguem. Experimente. Soberana seja a arte de largar pelo meio
o que não estala, qualquer doçura, uma carne rugosa no prato. A
mão não aguenta, lâmina cristal, máquina samurai, não aguenta
rasgar, rasgar. Ela deita-se sobre a maca e pede que retirem logo
(urgentemente) um, dois nacos, achando que apenas com mais

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dor passará sua grande dor. Não passa. Nem que ela brinque de
escorrer-se como acqua entre rochas: não passa; nem que faça
do sucesso seu grande fracasso: não passa; nem que erga ter-
ritórios e não suporte povoá-los: não passa. Nem que se deixe
ser arrastada pelas ondas do mar, afogue-se desafogue-se: não
passa. De sua clínica em vez da cura extrai-se a fúria a fúria a fú-
ria. Ela tenta esticar-se crescendo pelos lados mas não conquista
a altura necessária para ficar face a face com sua dor e por isso
falha, cortando, em vez de atar, soldar, acariciar. Afirmo que há
um possível ganho ao enfrentar, como um lenhador, hora a hora
o que se perde, hora a hora o que se perdeu. Faz parte. Não mata.
Experimente.

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elogio
à segunda
pessoa
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elogio
à segunda pessoa
ou primeiro latido anarco-poético:

Você acende um incenso e quer saber para onde vão farrapos e


visgos de horas de tanta alegria apertos de mãos festejos. Você
come e é sagrado o mesmo gosto de comida na boca. A mes-
ma doçura ainda. O sal. E como às vezes a saúde do que está
vivo mostra-se ampla numa vontade intensiva de morte, você
grita na janela para alarmar a morte encrustada em vísceras e
fendas e de onde escoa seu lascivo suor: a morte de soslaio não
responde. Não chegou quem sabe você ao ponto de abate. O
que se invoca com vigor vem hora ou outra em momento de
distração no máximo tédio entre a xícara alva e o líquido opala
do café. Uma palavra qualquer incita a coisa desejada e começa
a prepará-la. Qual palavra? Ao despertar você desenha no papel
um sinal para esse dia a fim de envergá-lo como mágico com
talheres. Você aceita visíveis comandos mas não os vitais os sus-
surros os estalos os delírios os espasmos. Isso acontece porque
seu pavor de naufragar não passa. Apesar da escuridão que teme
é nossa a escuridão que nos salva e que por ousadia-mor alguns
fazem dela sísmica casa. Você não naufraga, embora naufraga-se
às duas horas da tarde no meio da sala em frente ao caixa do su-
permercado. Sua vocação para ir a pique chega a divertir seu dia
a multidão do dia. Você quer chegar ao outro lado da praça onde

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se está mais vivo mas carros passam. Se você nada por que não
pede licença e desliza entre suas preciosas águas? Você poderia
talvez apossar-se desse tombo e observar-se cada vez mais em
câmera lenta indo à lona. Tem visto fora da tv esse nocaute: duas
mãos sobre a face. Nocaute. Aliás você está em plena sintonia
com cabos e fibras que te livram mais e mais dos tais comandos
vitais. Você põe sob palhas sua pele de búfalo e vai ao homem
das flores onde de repente você racha. Você tem esperança que
ele dispare um tiro de flor em seu peito e a abrace como manta
espessa protege o dorso de outros tons. Ao meu modo, naufra-
go. Às três, diante do bilheteiro no instante em que o líquido
quente preto comove a porcelana alva. Você povoa seu leito com
moças rapazes, você acolhe-os, você tem talento para o acolhi-
mento e é incrível como eles não captam essa graça. Desistiram
talvez eles do medo do baque enquanto você estampa tal medo
no meio da testa, no meio.

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elogio
à segunda
pessoa ou xeque mate

Não é arrancando pentelhos com pontas de unha que a vida fi-


cará do seu jeito. Para você poder tomar tranquila um sorvete na
sexta não esqueça seu uniforme de colegial, de covarde e cole-
gial. Você põe todas as vestes de uma não iniciada no azar. Você
mente. Se insistir, vai sangrar. Para você fazer poema com pente-
lho e sorvete trisque no nervo, afunde o dedo. Você precisa ficar
à altura daquilo que te naufraga com seu tesouro dentro. Mãos
sujas de sangue aqui valem quase nada. Você terá de se esforçar.
Passam um a um muitos bacantes e com o ponto exato da bala
que os eliminará desenhado um pouco acima do rim perto do
lampejo no meio do joelho e cabeça. No alforje, anote, há qual-
quer coisa pronta a atacar nele à queima-roupa como um poema
ou cinzas do pai guardadas qual graxa sob as unhas, na fundura
do alforje que leva: o que toca, toca o pai com ele. Amamo-nos
não mais que uma rasante de ave. O acordo era esse: tinha que
virar lágrima toda a dor em ferrugem encrustada em seu olho
e em troca fingia ele cair aos meus pés. Você escapa mas vira
e mexe entra na tocaia de quem lhe acerta distraído mais uma
vez no osso, você clandestina o disparo, coitado, com seu dedo
ferido de tocar piano em espinho de flores. Em dias de ritual
sacrificamos uma cabra e lemos páginas em branco. Você sus-

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surra poemas bravos e sofisticados bem na hora que basta nossa
excitação infernal. Você assume que tem pensado em sobreviver
como crianças que de repente sobrevivem em Alepo. Você men-
te. Você tem tristeza porque quer vencer a vida. Para que essa
vitória serve? Matamos no dente a cabra. É assim: você se pre-
para para morrer a semana inteira mas a morte ainda não te pôs
na agenda, aí você dorme acorda come trepa adormece aurora.

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elogio
à segunda pessoa ou
com uma mala na mão

Você soluça diante da mesa posta, você elabora ruídos guturais


que te lançam de regresso a instantes que, como um bárbaro,
fitava apenas no traçado das coisas o volume de carne o que ali
havia de ferocidade e ameaça. Você soluça sem cessar junto ao
azeite ervas e pães como se o vasto vasto soluço trouxesse à tona
um chamado: povos miúdos sopram através de sua garganta o
ultimatum. Não atrase. Basta um abraço e pode toda uma he-
rança lhe ser dada em uma bofetada. O soluço não parava de te
fazer engolir palavra por palavra. E talvez um susto bastasse, mas
a esta hora qualquer gesto seria um cuidado e você sobre a tá-
bua de sacrifício, a mesa posta, você soluça e pensa vive-se como
pode, vivo com talheres hasteados e olhos sobre pratos cheios
de raridades. Com essa pose sairá em revistas do mundo animal
e vegetal. Você soluça e tem sorte que quase nenhum apetite
lhe sobra, você vê um rapaz franzino e pálido e lhe beija voraz a
face. Ele arde, mas perdão, rapaz. Você está espantado de tanto
afogar-se em palavras e tantas rígidas, duras, inquebrantáveis,
avariadas pelo seu modo de tocá-las com enxada e sequer um
grito um gemido para desarquitetar manhãs atacantes. Você está
alarmado e espera de mim senão um sobressalto. Você sempre
morre no momento xeque-mate. Você pode arisco aproveitar

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esse vinho branco e ir recostando lentamente costas e conquis-
tas suaves rente à poltrona. Pedem-lhe uma taça mas tudo o que
possui é um leve clamor quase sem ar. Voz rouca. Você se coça
como se um flamingo rosáceo e que plumagem tem escondido
no meio da praça de álcoois e tragadas letais. Você tem herdado
acenos e carícias e faltam-lhe braços para guardá-las em bolsos,
colocá-las em ponta de grafite onde refulge letra em aço, você
tem bravura mas não a graça para lançá-las como purpurina e
brilhante areia ao alto. Com uma mala na mão você se levanta,
diz cuide-se, adeus e para no meio da sala, para.

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elogio
à segunda pessoa ou
o gosto da língua na boca

Você canta. Que voz! Ter uma voz e um temperamento para


acompanhá-la, são, talvez, sua loucura a clínica que sua loucura
funda para tratar-se em chão roto de madeira mil vezes retesa-
do devido aos impactos de pincéis pisada cálamo; aplaude-se o
canto, de repente, aplausos; um espanto; para sua sorte a máqui-
na de soprar nessa hora noturna não falha não atrasará contudo
jamais o instante da falha, chegará, exato - como um sexo aceso
- chegará no alvo; sagrado seja o uso que se faz de um passo em
falso; suor a sovar, a depilar e desfigurar a face de quem acolhe
uma voz impávida na garganta, vermelha voz com sangue, imu-
nidades escapam; lisa e aquática como sempre fora a face onde
inscrevem-se um tapa um tom um gesto de cuidado; você exige,
você ordena que desabe uma nuvem sobre sua colheita (de ges-
so!); planta-se o pó em seu lar enquanto no canto de sua boca,
um tanto de pólvora; por que não, a pólvora? O dedo em riste
incendia o lugar que mira: você diz é assim, é ali, pondo a língua
molhada para fora – parte mais cachorro de uma boca – todos
sabem todos portam uma língua que de tanto vexame, só osso
ao redor sem diamante, enclausurou-se na boca e lá vibra e es-
taca; o necessário você esconde a dois passos para trás, atrás da
porta sua cauda; finge procurar para achar em felicidade o que

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de fato sabe não sabe; você ri e por delicadeza sigo sua risada
sem graça; a vida não tem no entanto compromisso em obede-
cer ordens suas. Ela é majestática. Ouve ela, se ouvir for uma
de suas virtudes sussurros zumbidos cacarejos a chamar, a rogar
que a vida desabe sobre - logo, agora, de qualquer jeito – desabe,
suntuosa menina, como uma onda sobre a cabeça (em uma só
tacada) caia e dê forma ao sopro, a essa promessa de voz, essa
voz que aos poucos raia.

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elogio
à segunda pessoa ou
uma passagem secreta entre braços

Você anuncia querer o que houver nele de guerra e arte. Sabem


disso cafés e pátios, macas onde tem você cacarejado. O oco.
Palavra colhida em lava. Sabem disso amásios de ontem ampla-
mente solitários em seu abraço. De uma solitude a outra, é o que
sobra na testa, nos gestos e lábios para o dia que te põe entre
tripas e costura de cima a baixo sua coluna com fio de nylon gra-
fite prateado. Que bravo dia. Você brilha. Para o reencontro, só
isso: espasmos e certa solidão de repente em você escancarada,
em grande perplexidade. Você tenta mais uma vez: cara a cara,
sem alarme, vocês: o punho erguido e o punhal. Estilhaça-se
uma taça. Bocas vazias servem-se. Você engole e rumina. Pau-
sa. Prossegue a longa pausa. Com a mão na boca escapa-lhe o
raio-x de um susto cabal. Que retrato, pensa você espantada, de
susto capturado em flagrante. Em preto e branco. Nem mesmo
uma saudade. Nem sequer qualquer saudade para mover no ar
fonemas, estampidos, eu-te-amo. Quem diria. Você planta mina
e fica presa por apenas uma faísca à cilada desenhada a um pal-
mo de terra, ligada pela temperatura ao que te ameaça, sísmica,
você planta mina doirada, sem saber, sob seu quarto de dormir,
dormir e arfar. Você lembra-se de não ter morrido. O que resta
ali não consegue sair do lugar. Diante de você ele lembra-se de

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não ter morrido. Ele planta uma mina fora de minha escrita,
bem em frente ao portão de sua casa: ele abre o portão, e um
dia, nossa mina. Você costura na guerra a arte. Você fura na
unha o grânulo para que venha o pus. Você rasga. Cravos, sobre
sedosa pele, nascem. Aos poucos, discretamente, livra-se de nós
um riso de labiríntica seta solta entre vísceras e garganta, não
emperra entre soluços na garganta o riso franzino. Covarde. E
então de algum lugar menos contraído raia a frase: como você,
soldado, como tem passado?

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elogio
à segunda pessoa ou

Você come uma espinha de peixe e essa espinha encontra outra


sua. Esgrimam. Tem início uma rixa para saber qual espada de
rasgo fica. Você se prepara para morrer mas a morte não vem tão
fácil para aquilo que contém coisa fervendo e na bolsa, sequer
uma pílula sacra de morfina como portam garotas punks em fil-
mes de Inglaterra, chuva caindo, 1980. O que a morte quer não é
alma mas cavar no corpo seu grande silêncio, deixá-lo à mostra.
Quanto mais gritar então mais a morte cessa. Você fica quieto
por um instante para ver se você vem e nada chega. Você mistura
na lata farinha com espinha de peixe. Você come, a comida te
cospe inteiro. É de um grande luxo a maneira que se favorece
do mais arcaico uso da mão. Espinha se mirada de bem perto é
quase uma inscrição em caverna ancestral. Você tenta ler sobre
o objeto pontiagudo algum aviso ou segredo e só tem chama-
do, você não segue, extravia-se, você não abre a porta e aos tro-
peços, vai. Com isso, você pensa que se torna espantosamente
fatal ficando atrás da porta. Você come o fino esqueleto, engole
assim um mapa de uma cidade marítima inteira, engole pedras
e vestimentas seladas no desenho de peixe. Você tosse por ig-
norar que espinhas suas entrincheiradas te defendem de outras
entupidoras de dutos e canais. Não tussa: espinhas e escamas
suas querem sua jangada em alto mar. E cadê você nesta hora

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aquática, cadê? O grande peixe manda dizer que há sob seus pe-
los amplo arsenal para ataque cuidado arte resistor. Você não
sabe. Você entra em combate com a rotina apontando-a como
soldado de reino contrário, mas ela toda é campo aliado onde o
mato bom viceja. Você não tem jeito: diz me ame para quem na
manhã-de-cinza não vai, não quer, não vai lembrar da maneira
que você desatina e no desatino, toda sua graça.

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elogio
à segunda pessoa ou
com a morte nos olhos

Ela era movida por pequenos comandos. Acorde, coma, siga,


espero-a às dez. Ela estava livre até o ponto que o corpo estala
prevendo que uma força qualquer ronda, quer chegar. Se mui-
to frágil, é levada a reboque por cegos piratas num tempo que
saudava seus holocaustos diários. O volume de coisa havia de
atravessá-la. E ela sem altura e punho para a sua coisa. Mas sabe
que precisa preparar-se como se fosse servir um jantar aos pares
de alma. Terra e mato. Ela se vangloriava pela raridade de seu ta-
lento em perder - sem salto alto - perder como porco na ameaça
do abate retém uma lágrima, porco e só isso ser diante de faca
no pescoço. Ela se tornava uma ruína majestosa daquelas sem
dentes frontais na boca. Uma ruína. Uma árvore em chamas. O
ponto mais verde de uma folha. Penugem levíssima de ave que
se solta perante noturno espanto. O que perdia contudo não lhe
deixava um cansaço, vistas baixas e em falta de glorioso apetite
para carne com sangue a escorrer sob a garganta. E lá tantas
vozes querendo alargar-se, na garganta. Ela pensa em resgatar
para esta noite uma pose já perdida de uma vida em decadência
gradativa. A pose não presta: estanca o rio da gente, entorpece o
gesto a tal modo que o fotografado se torna cada vez mais des-
moronável. Mas você se esforça e olha para o pequeno portal

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luminoso e para o rosto contraído do fotógrafo e fica de repente
sem saber o que fazer. E ainda impossibilitado de distanciar-se
da pose que já te doma pernas e braços. Você declara neste ins-
tante guerra diante de nomes e olhos sagazes que irão tocá-lo,
cheirá-lo, abandoná-lo sobre a mesa de sala ou gabinete. Al-
guém vacila e ri, você tenta enlouquecidamente apanhar esse
riso e pô-lo como um palhaço na cara, fazê-lo de maquiagem.
Você pensa que não tem ninguém na mão e como pode ser bom
não ser a pose mas a presa o par na dança do homem que te cha-
ma por qualquer um de seus nomes. Todos arcaicos e seus. Você
capta o chamado e vai como presas que sabem do tanto de fome
na boca de seu carrasco, vai fatal em direção a essa boca com
fome. Você não vê a lágrima sitiada, sua lágrima.

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elogio
à segunda pessoa
ou anarquias suaves

Em estados de arte as coisas são aquilo que entram em contato


contágio contaminação disparam comandos. Farejam certa ma-
téria e a convocam para combate. Escute. O alvo fica estatelado
para que se torne cada vez mais amável, seja mirado pelo fervor
e delírio de quem passa e te olha discretamente de soslaio sobre
faixas e vozes e cantos comerciantes luminosos onde talvez o
passante pare um pouco para ver o que acontecerá. Você não
para. Atravessada a fronteira você roça em peles muros alfinetes.
Pede que soldados clandestinos na cidade se apresentem ao
passante que precisa bem mais amar ser amado muito agora.
O passante desaparece com sua barba quase ruiva ruidosa da
avenida esfumaçada mas com brisa. O passante, é claro, está
disponível apenas ao cinza. Você me acusa pois já que tenho
mão língua se o corpo arrepia, por que não. Você diz vale juntar
solidão com outra promessa de solidão e ver em que volume de
solitude dará, deixar que o elo em silêncio se faça e de repente
pegue um e outro num domingo de manhã chuvosa em instante
que pé contra pé encontra seu par e então desenha-se ali mes-
mo qualquer bosque floresta negra um cardume uma espécie
andarilha de casa. Seu estar-só é afinal o que primeiro alguém já
possui e pode dar. Você segue entre densa neblina contudo o sol

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raia e raia sem cessar hora após hora por aqui a chama radicada
em tocaia sob esses lençóis para onde delicadamente exilamo-
-nos. Ainda que surja um tanto de coisas na pessoa-que-vem
você tem um corpo só, portanto não deserte-se. Não caia. Isto é
tão envolvente e sagrado. Você é o alvo mas precipita-se e atira
contra todas suas carnes. Alguém tomba. Você é o alvo de quem
nem mesmo sabe que vem chegando chegando para sua paisa-
gem deixando-se ser arrastado pelo faro e um dia diante de seu
lodo sua magia pergunta faiscante seu nome. Você ri, ri em plena
batalha com seu cavalo vermelho de guerra, no laço.

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elogio
à segunda pessoa ou
bagaço

Você fura na unha roída o grânulo para que venha o pus cris-
tais derretidos cortantes metálicos entopem veias a gordura no
dedo concentra alguma ternura e deixa esquecido na vidraça
um resquício seu uma pegada. Com lágrimas cruas vindas de
coisa nenhuma prepara-se para espécie de parto onde quem
sabe seja sobretudo o recto espaço das filtragens não dos vaza-
mentos. Alguma latência acesa rasteja-se para baixo do refletor
onde ali protege-se como um bicho falsamente atingido sob luz
crassa finge a si mesmo que tudo é fatal. E não tem fatalidade o
que pode morrerviver. O corpo aguenta. Em potente estado de
vidência nem sequer faíscas escapam. Dai-vos, senhores, à toda
forma de irradiar-se. Você espalha-se em desassossego na forma
poema. Eu calo. Grito de socorro virá se por voz mão erguida
pede-lhe venha agora agora socorro. Pelo floema vejo sua barri-
ga cheia sabe-se lá de qual matéria orgânica qual fraca força. É
preciso cessá-lo um instante para que o pasto escorra logo entre
coxas e pelos e pernas seu leite morno espantosamente covarde.

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elogio
à segunda pessoa
ou uma alegria brutal

sei dos festejos e braços ao alto e de certas mãos que algumas


vezes disseram: venha; meninos se livres ao canto e rebolado
dão-se à dança com mais avidez que moças; estas podem dançar
a qualquer data e hora; mulheres por lançarem leite e sangue em
outros solos sabem mais bem mais quanto a foras e exteriori-
dades; conheci certa feita uma garota chamada aurora; aurora
costumava dizer que só entendia o que realmente lhe importava
entre máscaras e cordas, tropeços que por acaso traziam uma
boca de carnaval; aurora desapareceu com um turco que ia para
manaus, que de repente teve sua bagagem extraviada numa ci-
dade de aquários e encruzilhadas; soube um dia desses que um
pede a benção ao outro pelo sagrado erro: ele não queria essa
cidade e ela não esperava em plena multidão e algazarra o laço
fulvo e árabe; o melhor arranja um modo de acontecer, o me-
lhor cumpre-se; alguém tenta salvar-se para amanhã evitando
ficar sob o sol da avenida; o-que-virá não precisa de bote sal-
va vida, sobreviverá, chegará, chegará. então cante; essas rimas
terríveis saem do encontro de aurora e seu homem; o melhor
não conhece sábados noturnos ou feriados, desaba sem lhe dá
chance de desenhar uma pose e caber nessa postura imaginária;
eu mesmo sei dos choros, se vindos de pobres decalques e ma-

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quiados extraem-se saúdes tristes enquanto poder-se-ia talvez
ali lambuzar-se como velhos infantes; deve haver nas cidades es-
paços reservados para pessoas chorarem seus mundos cotidia-
nos junto a outras: parar um pouco criar pausas chorar regres-
sar do choro aprumar-se voltar; sem tal espaço se tem chorado
sem cessar, lágrimas miúdas e ininterruptas; a dor é inimitável, a
nossa e alheia mas a alegria tem exigido de minha parte uma es-
tranha originalidade; tem vindo um riso calmo por quase coisa
nenhuma; para mim são cada vez mais alegrias vívidas e polifô-
nicas aquelas lançadas e sopradas pelos espaços que vindas de
rosto e pessoa. Espaços sintonizam-se, acolhem, possibilitam,
captam a gente; é de um enorme ineditismo banal e reinciden-
te esse meu convite para que você se aproxime do meu poema;
tem sido simples: é reincidente conforme dito: basta atravessar
pelo meio aquela cerca de arame farpado, atravesse-a e venha.

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elogio
à segunda pessoa
ou cão de aluguel

Você diz seguir a-dois deixa-o frágil como um corpo sem largos
braços para resgatá-lo de crostas mangues. Acha que assim só as-
sim vem o movimentar-se. Solto. Eu calo. Você diz sem qualquer
esforço que quer ser guinchado por aquilo que fisga anima o ca-
roço. Areia sobre dente aberto careado. Areiazinha sobre nervos
raiz osso. Não sabe que a-dois o um torna-se bem mais vasto e
serena mínimos ardis. Que a-dois maus delírios não resistem a
uma mão perdida na madrugada – sobre a cama - estirada ao
longo da cintura tua que cabe o mundo teu mundo. Retorcido.
Uma lâmina retorcida. Tua cintura. Lasca de madeira rasgada
pelo fogo a essa hora até o talo. O-um desabrigado chora. Deve
regressar à lama pelos olhos. Deve regressar a um tempo a-vir
ainda sem nada e por isso mesmo com tanto e tanto. O-um desa-
brigado cava com unhas pouco sofisticadas para o ato uma toca
o seu possante pântano de onde sairá vai sair - como de costume
- em alta preciosidade. Aguarde um tanto. Aguarde.

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Você diz seguir a-dois deixa-o como mosca encurralada dentro
de poça prateada. Perco o ar e no entanto não tombo mesmo
esforçando-me tombar, não tombo ainda que gestos seus dizem
obrigado nunca mais adeus. Saiba que a força por aqui tem sido
maior que o fracasso embora fracassar seja onde surge o meu
melhor: melhor modo por onde tenho feito sucesso heavy-
metal total.

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Você diz seguir. Não movo um passo. Você diz ao seu cachorro
despreparado para viver sem dono eis você: agora prontíssimo
para ser abandonado. Desimpedido para ser largado. Queda li-
vre. Não movo nada move-se pane geral. Onde, aqui. Os assa-
nhados em suave estado de dança. Retrato 1. Retrato 2. Fuga
escancarada e matinal pela porta de entrada. Querem outros
entrar e em voz baixa dizem boca olhos gestos seus soltos no
espaço fique com deus e o diabo. Berro. Como um fungo tento
ficar parado dentro da parede à espera que a dor passe. A parede
não deixa.

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Reconheço alguma coisa em você depois de tanto tempo em
desaparecimento. Aceito o convite e vou ao encontro de alguma
perda. A armadilha: diante um do outro não haver antes trançado
uma cilada fatal deixa-me à deriva, fácil, ao acaso. Você fala e es-
queço suas palavras tão concentrado estou em ficar distraído para
o que de agora em diante virá. Não peço nada. Não me queixo.
Berro. Aprendi naquele instante táticas de ir desaparecendo aos
poucos diante de boca força motriz suores dessitiados de acolhi-
mento. Minha boca selada fica de lado bem torta. Você diz tem
encanto esse sorriso triste em sua boca. Peço por favor repita. O
quê. Isso. Um sorriso triste. Um deslize. Você como de costume
aproxima-se com uma garra em carne viva. Levanto minha tenda
lentamente no meio do bar ou praça. Onde estamos. Em guerra,
tu dizes. Lembro de dizer muito obrigado por tudo que não me
foi dado extraviado desencravado. Único texto decorado. E pobre
como é natural daquilo que vem da memória. Você aceita e ri. Po-
brezas sem charme. Você é bem mais triste do que eu e o bar intei-
ro. Desconhecer esse lance torna-o quase letal. Você nem descon-
fia que mais uma vez hei de recomeçar só comigo. Do pântano ao
dia após dia. Do pasto ao dia após dia. Da água sobre a face ao dia
após dia. Da primeira urina ao dia após dia. Do instante em que o
peixe encontra sua escama devida ao dia após dia. Agora. Depois
desse instante. Sem drama. Incrivelmente só como estamos.

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Você vai mais uma vez recomeçar. Desconfia. Tem desconfiado
de motores que antes não precisam esquentar-se. Não sabemos
de nada senão do que em nós se desmonta incha ou vaza ou dói
ou racha. Você desliza. É bom. Fique à vontade. Forças defen-
dem-se por haver mais artevida na defesa do que no ataque.

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Você disfarça-se de alguém que não conhece a dor. Não ri, guar-
da-se para um tempo melhor, diz que nasceu na festa errada, en-
gana, apaixona-se quase nada, não acredita em formas deliran-
tes em delírios sobranos que ergem um real possível, aqui neste
quarto mais fora da casa do que sacadas, jardim, mais fora dessa
casa que rastros de fumaça, mais fora dessa casa que aposenta-
dos em bancos de praça, mais fora dessa casa do que qualquer
vontade, mais fora dessa casa que um corpo para além da alma.
Ninguém vale qualquer espera. Se esperar te agrade, outro ob-
jeto de espera talvez valha. Por que não. Comigo não funciona
seu disfarce de alto executivo ou palhaço pois aprendi pegar de
relance e em flagrante o que em alguém é força bruta e rara.

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caça

[] procura-se e a procura não está nem fora ou dentro: sobre


o punho, na penugem do queixo, num canto de orelha faísca o
que importa de uma pessoa, no jeito em que seu calcanhar che-
ga primeiro que todo resto do pé sobre um chão de madeira []
quando você passa, passante, minha terra por ser macia demais
treme [] uma pessoa nunca procura: o que procura está sem
pessoa dentro: geralmente pessoa não serve se a missão for ir
em busca [] o que procura não é um quem mas alguma coisa que
diz em sussurro estamos perto [] aquilo que procura tem frescor
e torce-se tanto a ponto de perder o desenho com o qual víamos
um ao outro em alucinação mares revoltos e abcessos: faz-se en-
tão preciso grafitar sobre o papel seu corcunda de um quando
em que nem você e ele tinham nome [] é desse corcunda que
a matéria cresce [] o que tem magia em você me chama [] en-
quanto dança gestos redesenham certo corcunda que há tempos
vem te procurando: agache-se táctil e lentamente encontre []
doenças querem corpos assim como suores e carências daquele
talvez seu amante o modo que pede ele aos santos, nesta hora,
seu nome [] nome é bom para pôr entre os dentes apenas [] o
que tem força, se necessário, aporta, cospe-se em sobressalto à
nossa frente [] se soubesses, menina, procurar é ato simultâneo
não ansiavas tanto tanto, se soubesses tudo é ativo e passivo ao
mesmo tempo em que amarras impaciente penas de ganso nos

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cabelos, tais filetes de ave te prendem [] não se procura isola-
damente: se acaso estás à captura de repente a outra banda do-
brada sua também queira, queira sua folia seu endereço [] boca
de vira-lata com fome e sede e baba torna-se o melhor radar:
veja: sai o vira-lata fica só a boca atlética sobre asfalto quente: ela
quer, nós queremos [] luxo é isso então: querer aos poucos e ter.

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variações

uma
outra arte 
de pai.
Cegantes estilhaços sobre
gestos o rosto em tumescência
do menino delirante
em delírio por falso amor ao pai.

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II

Sobrevive-se
- está grafado – 
à desaparição sempre inacabada
de um pai. O pai (por amar demais a cela)
diz não a esse
exercício monumental de edição, de etc. 
e recomeço:
falta-lhe o talento
para o sobrevivente:
não não quero minguam ombros
para ser seu sobrevivente.

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III

Basta fitar o menino


(ainda curto em seus volumes)
para fazer nascer o pai
ir nascendo
como se saído de uma rocha
agora
sem pés e braços inamomível
talvez amanhã
chegue nele
um pai
talvez em discreta faísca. Indaga-se
como pode um miúdo
segurar nos braços
um homem adulto.

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IV

Entre vívido bolo escarlate e cru


luz crua
o menino pari 
ao nascer
aquele
que será (não se sabe) se portar
no olho mancha esplendor testemunho de um chão
carvalho
rocha 
ao pingar gota d’água
deixa escorrer seu tom que
alastra-se
alastra-se pelos pés muradas
desertos
chegada a hora de despregar como um prego um cravo na pele
rachada
um pai da parede.

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V

Para cada estação 


do menino
um pai
chega e naturalmente
perde-se na estrada cujo grande enigma
este:
é reta contínua
a linha
vento desembaraça
as formas
um riso
qualquer pobreza
qualquer pobreza estala.

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VI

Espelhos se ampliados
deixam ver um povo
um peixe um povo em revolta
exaurido querendo 
escapar. Jorge Luis Borges cai
lentamente entre nós. Nada
fazemos senão estar junto
de um corpo experimentando
ao seu modo
sua queda.
No espelho alguém desconcertado
menino
a invocar o pai nele
inscrito
entalhado. O povo do espelho
canta em uníssono saia logo daí
desse buraco dessa mina
dos buracos desse rosto
o senhor faça o favor.

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VII

O cheiro que o menino sente


(ele não sabe ainda)
não esquecerá 
jamais.
Cheiro de apertado
estar junto
aos braços do pai
e por isso mesmo cada vez mais abandonado no enlace 
para
o mundo
desembaraçado neste aperto nó amorosa cilada dele sim o
menino
para o que der e vier. Escuta: 
para o que der e vier.
E assim segue sendo.

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as forças

Assim: a boca pede e a vida vai dando socorro. Era impressio-


nante: ela estava feliz, a moça. Com uma lança atravessada no
dorso desmoronam de fígado baço em urina poemas, poemas se
anunciavam em lágrimas. Era a força. Com duas pernas hastea-
das – sobre elas um tronco e uma razão desaparecida da cabeça,
sem ninguém para suspeitar àquela hora com faísca nenhuma
do que se descolava de sua tenda e lodo, do seu pânico. Vive.
Dá-se à existência. Esse detalhe lhe basta. 

A força a sufoca, a força da moça. De tão suntuosa vacila,


apresenta-se com toda barbárie, torna-se quebradiça. A boca
amplificada não sopra, sequer fala. A força vaga. A força não
suporta ser convocada, portanto apenas no berro, em berro a
coisa se sobressalta a tal ponto que vaza em suores fezes ar-
repia a pele. Alguma onda noturna contra o império de uma
rocha milenar estrala.

A moça sabe no instante do tiro entregar-se ao impacto, fazer


a força, pô-la à frente para rivalizar com a bala, medir massa de
resistência, carbono, gestos clássicos de corpo caindo, baleado.
Ela faz. Ela tira no entanto o corpo para fora de sua força e tom-
ba. Inacreditável. Como é que se faz? Nua, pousa então com gra-
ve suavidade mãos de um homem e nada mais e tanto, naquelas

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mãos. A força trinca. Diz uma à outra: escape. Agora. Pelo cu e
vagina, na viração dos dedos, escape. A força não quer saber de
pessoa. Quer o que pode vibrar vir a ser fazer contato contagiar.
Diante daquela gente a moça é cavalo da força. Estou arrepiado.

Como um latido de cão na madrugada, após o máximo aban-


dono a força se arruma em vértebras, nos desvarios dela, em
suas cascas, reencaixada como uma corda no pescoço. As for-
ças pedem retorno. As forças, de novo, na jogada. Ela dorme.
Está em estado de alarme, ela, a moça. As forças querem um
punho, uma forma para fisgar, seu sexo. A moça pensa nas for-
ças, somente as necessárias. Sim nunca talvez são palavras-pas-
se em direção ao umbral. É o que se tem tudo que se pode lan-
çar e ter ao longo do dia um sim, nunca, um quem sabe talvez,
esses disparos de Deus.

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mangue seco
I

Não se aprende a povoar desertos que se tem esparramados na


cara, nos ossos. Não há tal aprendizagem para lidar com deserti-
ficações entre nós no ocidente. Viventes árvores, viventes ondas
do mar, viventes bichos do mato sabem. Enquanto isso, paga-se
o preço: o corpo arde.

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II

Convém triscar o limite onde o árido esfola uma garganta. Nem


mesmo um grito, meu deus, gritar às vezes afoga, às vezes sal-
va. À beira do alto choro, convém tatuar desertos, planificá-los,
encharcar-se deles. Grito. Caso porte força em punho, pata ou
garra, arranjar um necessário e exato gesto para instalar-se dian-
te da grande seca e gargalhar. Vale como reza ou prenda. A gar-
galhada.

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III

Capturar a grossa umidade que emana de todo espaço cru até


alcançar o estado em que se vive gota a gota. Alarmado. Algum
calor escondido nessa tarde me quer e ataca. Pede tiras enru-
gadas, palhas ainda vivas pousadas sob essa plumagem negra
esfumaçante. Cada vez mais negra à medida que escavam nacos
olhos, escavam para encontrar a lágrima preciosa de um tempo
que o áspero ainda não portava sangue. O que era vivo não es-
tava entupido de sangue. Aliás, vivo ou com sangue, assim pode
ser o primeiro nome daquilo que encontrou o riso para expor
mandíbulas sede cansaço soluço a fome. Com Sangue Antônio
da Silva Santos. Em clínicas e escolas: Libertina da Silva Santos
– ela - altiva e aos berros: com sangue!

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IV

Radicalmente táctil o pânico o calor que vem das paredes desse


quarto, de sua ira saudável cotidiana lançada para lugares onde a
ferocidade fragiliza políticas e tratos de morte. E no entanto seu
fogo dobrado sobre fogos meus, onde, penso, o rosto dentro da
cabeça? Cabeça oca, diz você a mim, sem nada a cabeça, a não
ser sombras nódoas químicas vultos nuances palavras. Quero
descansá-la, reclamo, amar o que a assalta. Estendo-me sobre e
junto a seus pântanos - lodos macios. Irradiantes.

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V

Tristezas selvagens vêm quiçá daí:


sobre essa inabilidade de
para estar à altura de qualquer deserto
desertificar-se.

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VI

Há em nós mais espaços inabitados que moradas: digo: mais


limo deiscências buracos onde de repente águas porosas águas
vazam. Arte torna-se então isto, meu bem: procurar e achar for-
mas de ir entrando corajosamente e com fogo nessas zonas de
contágio.

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VII

Qualquer deserto em mim fareja um poço.

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VIII

Forças ali entranhadas abrem a terra, a terra árida mostra os-


sadas carcaças pesadelos reinos à espreita, ainda à espera que
invasores apareçam. Não chegarão. Nada atravessa aquele solo
incinerado. Alguma coisa terá de suavizar-se e então. Sob a terra
todo lugar é sagrado portanto tocável – indevassável. Impossível
mas nosso em intimidade o indevassável. Um resto de areia to-
dos portam no casco. Mãos-naves vibram qualquer delinquên-
cia, deflagram guerra quando tentam um passo, à sua esquerda.
Qualquer deserto em mim fareja uma moita para que possa ir
crescendo aos poucos. Nas trincheiras. Qualquer canto molha-
do onde possa ficar encharcado de coisas cheias de ânimo. Um
mangue. Qualquer deserto aqui instala-se sem que outros já
pousados se sobressaltem. Amanhece e só neste instante perce-
bo que aqui, a esta hora, um deserto estoura.

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IX

O que pede ao te alcançar uma terra árida? Que a deixe em car-


ne vivíssima. Sai sangue. Não mata.

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X

Ele vem chegando, o deserto-que-vem. Exuberante. Impiedoso.


Plissado de prata, estala seu beijo no deserto de minha boca. O
bicho frisa sua asa negra encouraçada, o bicho encrespa-se para
o ataque. Digo: é assim mesmo. Levante delicadamente a saia
e outra e outra. A nudez não se doa, é pega em flagrante numa
pessoa. Às três da tarde. Na escada ou mesa de bar. Num cadá-
ver. Se lhe renderem nua, você pode talvez começar uma dan-
ça. Acelerar. Desertificações não esquecem de trazer um mun-
do amplo. Largo. Amplo, exatamente do seu tamanho. É assim
mesmo: de um dia para o outro pode sua magia capturar alguma
coisa com deslumbre e malícia. Aguarde. Deuses sabem. De um
triz a outro, a chave.

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XI

Acolher como uma alegria esse deserto-que-vem se conside-


rar que toda forma contém violentamente uma precariedade.
Que nos cabe amar. Amar como o bárbaro à cabra de tal modo
que se faz necessário rasgar à lâmina o seu ventre de cima a
baixo. Alegria: portar o sabor das coisas, dar ao precário, a esse
lampejo, morada.

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John Coltrane plays the blues

Chega
um tempo
que nem mesmo o cansaço na pessoa
ou a pessoa no cansaço. Nada.
É alegria ou que aqui se chamará de falta-me o pavor de perder.
A Alegria, sim. Falta-me o pavor de perder
existências
que erguem
aqueles tais dias hoje
jamais.
Falsos blecautes e gases perolados e vontades soltas no espaço deixam
os festivos alheios à toa no silêncio do water closet
diante do espelho
alguém retoca sem medo do cliché sua máscara carmim e fica pálido.
E volta. À dança. É necessário. Voltar.
Num desses cantos
(ainda deve estar ali) alguém
dança com vagar e sem haver sequer ruído amplificado
uma dessas canções que livram-se de qualquer elo masmorra
da boca e levam sem que o corpo queira ou resista
o corpo
à dança.

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algum desenho à faca e um animal

Chovia e um vento misturado de muito longe lhe alcançava a


testa. Um fio de prata em nuca que nada servia nem mesmo para
enforcar-se senão a um frágil embelezamento - um fio - atava
corpo e vida e espírito. Essa massa de ar era como se uma mão
conduzisse uma onda com brutalidade e a lançasse contra uma
soberania rochosa – estrondo - como se tecido empoeirado,
caça levada na boca pelo seu carrasco, naco de carne no balcão
do açougue. Ar rocha ela e a onda: tudo portando sua majes-
tática impossibilidade de ser lapidado. O cru: o sem enfeite: o
cavalo do sagrado. Vou parar aqui pois quer ela a corpulência do
sangue. Ela quer matar e sabe apenas que para assassinar basta
uma vontade encaixada na mão. Uma pata cheia de vontade de
desmoronar sobre chão vidrado; um corpo em cólera sobre ou-
tro ávido por doar seu fogo cárneo. No olho cabe um cadáver.
No olho cabem agora mesmo búfalos a fome de búfalos o pre-
dador da manada. No olho que escorram em lágrimas cenas e
todas as cenas nossas e mais aquelas que esquecemos e que nos
esquecem dia após dia e aquele nosso tédio eróticosacro. O olho
chora para que se cumpra a drenagem. Caso algo seja nele reti-
do, cria osso e é função do talo duro furar lascar devorar finíssi-
mos fios sem qualquer responsabilidade pelas vivências ali guar-
dadas mas já na hora de baterem na pálpebra lábio nuca estampa
porcelana maquiagem. O osso rasga película o segredo d’olho.

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Reter constrange. Ir-se embora. Vá. Tudo grita seu afastamento,
tudo fere o ouvido, o pau, meus ouvidos. O Indo está aconte-
cendo. Eu deixo. Alguém vindo chegar. Há um espaço cuja por-
ta não abre jamais ninguém abrirá. Cerrada. Tão oca que um
pé ali afunda e não cessará de afundar. Um poço radical. Terra
delicada, cratera e jardim de frutos doirados tomados pela mata
alta. Como matar sem faca, gargalhada, tiro, reza e arte? Matar
sem morrer um pedaço. Como eliminar a existência da coisa na
pessoa? A vida é tão à toa: não é eliminada nem encarcerada ou
grafada. Uma vida qualquer escapa antes do último sopro, rede-
moinha, dá sua rasante, cai sobre uma bactéria e bactericida vira
um ruído, deixa-se encontrar por outra vida à toa e avoluma-se
mais, sem sequer uma mácula de ida ou chegada. Em pânico, a
vida, intocável. Em sua grande astúcia atordoada. Ainda assim
dança seu êxtase. Você dança? Você em qual porto, e quando?

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pornograma

sentado ao lado lê o moço a página esquerda de livro-poema


enquanto como de costume prefiro o que passa extraviado à
minha direita em sinuosidade. ainda que findados letra imagem
ficam alastradas rente à página certa nuance de dedos rabo de
olho do rapaz ao lado ao meu lado diz ele à disposição para guer-
ra e paz. com a um possível. vindo. de onde mesmo. para onde
esse possível. onde estourará. trancado do lado de fora. vindo.
com audácia e em vertigem e retilíneo ferve aqui tudo alarma.
se déssemos as mãos assim. se avocássemos como uma guitarra
avoca uma mão desenhar-se-ia legiões de forasteiros neste cam-
po aberto do encaixe. duas mãos. sussurra-me se danço se tenho
tornado-me cada vez mais dançante. o que importa no lugar de
dançar tornar-se o dançante ele pensa e diz e ri e cala-se. sem
desvios ou furor vou grafando aquilo que sobe mercúrio por ar-
térias planta do pé e estala eis a dança. sem um passo em falso.
sem chão sequer para acolhimento de rastro pista pegada. uma
alegria tímida vem de nada a nada e de repente toma espaço. um
pacto muscular que tal. outra fé mágica outro espanto manifesto
de arte para o tempo que passa dançar diante de qualquer que
seja a coisa. responda logo responda assim que puder com uma
pose um aceno com um desconcerto se você dança se quer se
quer esse nada a fazer estratosférico desse quarto três e quarenta
da tarde sábado.

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quantas velocidades
lentas são necessárias
para que a música saia dessa caixa preta ao ouvido

qual duração

e chame às vezes de braços ímpetos músculos pernas


alguma dança ali
desacesa
informe
impossível de gesto

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dá-se um passo para fora de onde
se guarda aquilo que monta uma preciosidade da casa
torce-se o braço tornozelo a malha suada no braço
e vê com estarrecedor assombro vida em excessiva raridade e tamanho
espalhada por toda parte. A vida espalha seu mercúrio sob pele ainda
nossa metálica
anfíbia.
Aquela dor morreu de fome
fulminada pela própria voracidade.
O que interessa agora talvez seja
abrir os braços como uma águia e ir junto com essa ventania atlética que dá
seu coice seu rasgo naquilo que lhe atravessa a passagem em direção a
toda parte.
Vale essa patada
na cara
forma agreste
e avançada de fazer contato
assim como alguns usam a boca
quando se faz necessário agarrar o beijo
que corre solto no ar e de repente duas bocas abertas em silencioso ges-
to de extermínio e alta sensualidade de repente
o raptam.

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morada

Nesta casa
moramos eu quem me beija o lábio
o cu a veia luminárias ampolas
uma lagartixa roxa e irmã moscas que vem vão
de uma pobreza a outra riscam em voo
elos
entre janelas porcelanas potes orelhas
paredes azuis
azulando-se
sequer testemunham sobre mancha deixada pelos retratos que
carcomidos esfarelam ainda encharcados no possante azul, lazúli
fresta de úmida parede
correntes elétricas
pequenos ferrugens
intensos
desta minha ponta a outra (de pernas cruzadas - ele) inalcançável
diálogo selvagem entre corações
misturas líquidas miúdos roedores de alegria fazem a festa
em insuspeitada hora aportam com seus espectros
maus
eu grito
afastem-se
deem o fora

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desapareçam
aqui outros contágios uma gripe esforça-se e num sopro
talvez conquiste um corpo como soubesse do talento de todos
para porta dor paisagem proviral
Concórdias
Rezas que tenho esquecido lembrado em espanto e
esquecido
abandonado pelo meio
Eles entendem
[que se arranjem] explodam
No meio lanço pétalas britas fluorescentes ao alto para iluminar
o espaço de terra
ocupado por minhas centelhas
E o que interessa fica pelo meio no meio
dele
um resto
nesta morada
calores confirmam-se tiranamente como temperatura oficial
exilam-se tiranamente
acolho
o que queima
sobretudo uma mão em luva blue vinda por trás da moita
pousa
sobre ruínas fortes
passa a noite

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vigilante em guarda ao redor de
uma cintura
que em nó delicado superinvisível enlace
dá-se.

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com um falcão em punho

1. Estava pronta para sua violência que aguardara até esse ponto
radical sem retorno e que a acolhia como o mar ao peixe branco
lançando-o para fora de seu sumidouro de espuma. Sem pressa,
retirava com vagar órgãos e vasos estourados em duelo aluci-
nante e sensual da bandeja. Metálica.

2. Películas e poemas deram-lhe com suas sobras altíssimos cur-


sos sobre estados e hora para mover uma perna flechada, ficar
quieta, parada, quieta para que não seja possível que a quentura
que porta não atraia a quentura da bala em disparo. Houve em-
bora uma força-mulher que lhe ensinara a cair em câmera lenta,
suave e lenta. Quando o corpo não sabe tombar à sua maneira,
qualquer queda livre se torna quase fatal e de rara violência. Se o
corpo não aprende a tombar à sua maneira, cai na queda do ou-
tro, em sua armadilha e poço, no desvairado salto mortal. Não
caia.

3. Espalhado no breu com uma pobreza majestática por não ha-


ver sequer fantasmas, black-out total, serena-se como pode um
corpo a esta hora serenar.

4. Sem desposar-se do precioso cuidar-se, não cai desajeitada-


mente em solo alheio pois segura cambaleante o passo, arrastan-

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do-se até à saída por onde entram e saem formosos empregados
do desejo alquimistas serventes cantores de fado. E segue.

5. Tinha sempre estojo com pólvora a ser usado para encobrir


seu rosto quando trincheiras e acordos falhavam. Costurava pe-
les e não bandeiras: bandeiras se rasgadas apodrecem ainda has-
teadas. Portanto frágeis, elas, as que dão bandeira aos sábados.
Com agulha e fio de nylon não permite que vaze pelas vísceras
seu poema cabra preto esmeralda.

6. Com o punho enrolado numa estampa de soldado morto em


batalha, caminhava por desertos urbanizados e via, via sob visei-
ra catacumbas madrepérolas trapos de carnavais. Não assustava-
-se senão quando uma boca aproximava seu hálito a exigir-lhe
agora, agora é hora de entregar-se a esta boca amável úmida e
sua [é sua essa boca] sobre seu sexo e nuca, áspera.

7. O cruel gesto não lhe imprimia no rosto peso ou pânico se


porventura fosse o alvo de força bruta. Linhas riscadas na testa
vindas de lascas de útero marchas noturnas em leitos nada cor-
diais, insuficientes para o disfarce diante dela uma movência e
ninguém. Tal naco de coisa bárbara todos portam em algum tre-
cho de pescoço antebraço. Sobre o dorso rastros do que lhe foi
desenhado em navalha. Sem pavor no instante que alguma coisa
ruidosa lhe convoca, sabe doar-se ainda que para a mais vivaz

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morte movediça no rosto. Sabe doar-se ainda que venha dela o
grito de socorro, concede-se toda ao grito e estoura. Cerrado o
punho e ajustada em sua loucura escreve com pólvora no rosto,
segue trôpega e cada vez mais doida em direção à toda forma de
guerra e arte.

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da língua interessam-me só 
os uivos. nada mais. modos vários que algo com boca traz e se
deixa criar
que se traz e se aperfeiçoa, ali desde sempre e emperrada
porém
e ainda assim a vazar sobre mantos e sob lençóis do dito povo.
algo com boca: máquina: a urdir qualquer coisa soberana ou
banal: existências em nada miúdas negras negras negras de
tanto morro, 
meu rapaz: imprimem deste jeito os espaços cor em corpos.

da língua o desenho das palavras primeira sílaba lá antes


acentuada o vibrar da língua grânulos de alguma coisa sem
forma chegando, o radical corte de lâmina. o que nasce
primeiro na língua não interessa àqueles com um buraco
em contração, aberto, no meio da cara; embora o que nasça
primeiro na língua, é certo tremor nos lábios
alguma coisa que comove os lábios
sim não

de sua língua quero a umidade dada pelas palavras e nada mais


os contágios sensuais e nada mais
(dedico-me à Virginia)
véus arcos papilas e talvez seu
mormaço, moça rapaz, áspero quando sobre 
mucosas e páginas minhas.

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nudez

era uma festa cujos convidados tinham de lá ir e chorar. Muitos


quartos sem iluminação (a dor era a luz-guia, a dor que se sen-
te alumiava confeitava certos estados de matéria, animava-as).
Não consegui. Falhei em tirar dos bolsos a grande dor - qual será
- tirar aquela veste subitamente diante de outras estampas so-
fisticadíssimas, muito rudes bem frágeis em suas costuras. Essa
nudez como oferecê-la a quem que seja? A que nomeia cada
corte, as grandes tesouradas, as navalhadas na face, os inchaços
permanentes, as orfandades, faltou-me o talento para agredi-la
expondo-a sob refletor com fumaça de gelo seco. Ficou a febre.
Pausar-se um instante diante de um anônimo e chorar: como se
faz? Dessa nudez performática, falhei. Aproveito para pedir em
público desculpa ao anfitrião: é porque não sei ainda maldizer
o que em mim vem com fúria e a fúria me salva de instantes de
fraca paz que paralisam minh’alma, vértebras cabeça uma alma.
Essa paz a quem serve. Esse modo cruel de paz. Não deu com
você, mais uma vez não deu aquela história de macios elos, ra-
paz. Um amigo – soube há pouco – um amigo no meio da noite
coseu-se todo num galho de árvore com trapos o antilírico o
antivida o anti-o-que-virá; cada trapo tornou-se linha um nó
uma saída à francesa da festa nossa, qual; costurou um mapa
da garganta ao pés para que territórios invisíveis fossem para
sempre preservados; ali talvez seus nômades e índios fiquem

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delicadamente dobrados em barro ou fogo ou terra. Romperam
fibras e ligamentos do amigo, estouraram; ainda que esse baila-
rino amador preserve a rota, não desembaraça-se desse grande
buraco espantosamente aberto, em latência, um grande buraco
entre nós à espera qualquer hora que um buraco nosso se am-
plie cada vez mais e chame como um ímã um buraco-par. Aqui:
todos com vocação na testa para seu chamado embora atraves-
samos como se espaços sem suspeitos. Sequer um suspeito que
diga, que valha seu buraco. Tempo de ver frutos de casa amadu-
recendo por amadurecer, fatal e discretamente e para ninguém.
Espera-se que de repente apareça qualquer boca para mordê-los
e então morda, morda, morda mesmo.

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teatro

Tenho morrido muito ao longo desses dias.


Não parece.
Tenho morrido muito. Até agora tenho dado
forma ao fogo nas palhas. Até agora faço valer meu fogo
pondo-me atacante na mesma altura e massa do que abrasa.
Não é fácil:
rói o calcanhar.

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Um olho abre outro fecha espanta-se. O corpo cede. Estamos
enfim largados na manta rochosa cálida
aos saltos
estendidos muito à toa
nesse tendão de ar em que tudo pode acontecer. E acontece.
De repente fico sem inveja do teu amante espocando sem
pressa mas firme e previsível de uma pele nova sua. Elástica,
finíssima. Infecta. Tal promessa vem do instante em que nós o
invocamos
esse usual forasteiro. Um dia o temi tanto e hoje. Hoje é
hoje para todos. Há um raio atravessando espaços e a todos
triscando delicadamente. Ele que sempre vem de fora e
instala-se como um tronco de mangueira
na frente no fundo sobre pedra imaculada de casa. Sangra
quem veio de longe. Cabe que você acaricie como se diante de
felpuda ave
cabe que lentamente rasgue mais e mais a chaga
lapide-a
chegue ao osso
gritará como se entre nervo e ponta amolada de ferro
esse teu amante
preso em olho
teu
escapando

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tunga’s old sweet caves

O que resta
nunca pó d’ouro. Resolve-se profanar
as carcaças para que uma distância salva-vidas
instale-se uma distância, magia entre um ponto e outro entre
existências.
Resina entre unhas
rastro de ave de rapina ao redor do alvo sem a energia de
alguma mirada vai para bem longe muito longe. Incapturável.
Sequer desesperos altissonantes sensibilizam tal caça para
doar-se a esse bacante em suave estado de sanha
como trisca em tudo o caçador a caça carcaça.
Um gosto de qualquer coisa
dura na boca. Uma faca crua. Um pânico fantástico.
Bruto
como se cheiro de cachorro molhado
qualquer coisa
inominável.

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arquivos marítimos

separa-se de vez uma das partes


após impedir a que fica desmontada
em dar toda sua arte de cuidar
acolher
espantar maus fantasmas. Silêncio bandeirante. Um momento.
Regresso devagar para a cena. Continuemos:

Desfiadas as promessas é preciso ir à feira. Hoje, frutas amarelas.


Desfiadas
como um cancro promessas
é preciso neste instante um mergulho e fazer dele, o mergulho,
esconderijo toca zona sísmica. Tal boca – mergulho – engolindo
fatal o menos forte que ele, o menos atônito. Do mar quem es-
capa.
Doa-se a esta hora acordos não cumpridos a quem queira ban-
quete
pequenos terrorismos diários
elos vitais em estilhaço de volta
a quem parte primeiro e com louca vontade finge que vai mas
não vai: deixa colado ofegante o rosto na vidraça suada. Prepa-
ra com vertiginoso cuidado o próprio bagaço assim como nós
todos embora alguns os preciosos encharcados de limo algas
águas vivas vida alta. A você devolvo as pobrezas que não in-

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tensificam o dia. Devolvo agora uma a uma em matemática pura
extraídas da minh’alma, com o dedo, pobrezas fracas. As suas.
As suas, rapaz.
Compromete-se
está comprometido o artista sem seu alvo do cuidado com um
homem-que-virá nele dobrado
que não cessa tal fresco campo aberto para outros experimen-
tos, não cesse de chegar (homem-que-vem ruminante) posto
em órbita, em grosso desenho
fique sabendo que aceito desdejá odes e escarros e prazeres vul-
tosos
se em sinceridade se vindos da ordem vital da necessidade.

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dos presentes de deus não dou um pio:
agradeço baixo ao próprio presente de deus por ser o presente
de deus.
queria tanto agora dizer no teu ouvido que você é para mim um
deles.
tenho alguns, e todos assim como Tu,
douradíssimos.

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não espante-se
com o presente de deus se for reconhecido depois
bem depois de sua
chegada.
Isso diz que deus sempre chegou e de viés
fica espiando vindas pisca-piscas
escapes síncopes hiatos recatos sumiços chiliques resgates
orgasmos redesaparições sumiços insídias elipses
(miúdos douradíssimos que lança ele
sem cessar
para dentro para fora das casas)
fleumas banquetes jabuticabas blecaute:
face a face
blecaute

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com língua e nome tomba um presente de deus
neste sofá a esta altura
do campeonato
sem raia de partida e chegada. desrostificado para que sua
beleza
não apavore a boca abertíssima tal boca
lançara o chamado.
o presente de deus não faz ontem é para já.
em meio a esta euforia de absolutamente tudo haver estar
surgir
uma lágrima uma apenas chega vale basta, no contraponto
e exata
lágrima

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tem pousado em estilhaços de ondas
respingos salivares, mordeduras de bichos esvoaçantes com
curtas asas
e em veneno
deixam ali injetados pequenas promessas de morte um
presente
de deus
letal
de perto o presente de deus chega vez e outra
com uma alegria em chaga. pouco sim descabelado; pouco sim
arregaçado como cascos e gentes fugitivas de toda espécie de
naufrágios
o presente de deus sem parecer ser um presente
de deus por haver em algum pedaço muita seriedade ou
excessiva banalidade
assim como uma mão
gélida
sobre o dorso

pétala

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cinema
de poesia
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como se a musculatura
arranjasse um meio de parir
seu poema

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como se acenos que erguem o
vigoroso diariamente desenhassem por lado
alegres saídas de emergência

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como se um gesto qualquer
não levasse tempo para
compor-se e daí disseminar-se
num certo
corpo

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como se um gesto em sua
preciosa banalidade de titânio valesse
e vale como uma
espada no ar em ziguezague

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após o primeiro lance de
escada bater sem espanto na
porta à esquerda e ir entrando
como se
a vida fosse uma coisa de
cinema

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coar
dos acontecimentos coar
nacos avariados e seguir como se
bravo exercício delicado de arte
contemporânea

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basta bater de repente e com
máxima vontade em porta
assim assado e alguma coisa
ali
alguma coisa quente
começa

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alguém chamado clarice diz
que estar distraído constitui
prática vital para que o
necessário subitamente
aconteça como uma pancada

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geografia chacal

volto a aquele endereço pergunto aos donos da rua se ainda ali


moramos. eles dizem que pareço um pássaro outra natureza de
pássaro negro e em carne vivíssima com um tacho de caça em
brasa na boca como se ave de sacrifício ralando garras a penu-
gem grossa a película no asfalto como se motociclista esvoaçan-
te surfista como se ave de sacrifício. digo que esta vinda deve-se
a um chamado há um chamado de voz que em todo lugar diz-
-me siga siga agora. pergunto aos reis da praia onde o filme em
que realizamos nosso melhor teatro odes épica pobreza de inti-
midade o circo era nosso sabíamos o circo pedia licença e ainda
assim não furtava-se de invadir cidades tetos sonhos de gentes
cuja solidão era por demais precária pergunto sobre o cinema de
poesia de força espantosamente frágil onde emprestamos rostos
e sistemas de pensamento e gestos diários onde, pergunto, di-
zem foi cortado o filme à navalha. o rasgo é preciso matemático
é sempre na hora exata rasgo. espada no ar em ziguezague. sir-
vam-se do que virá como o melhor prato da casa, sopra a gran-
de casa. flashes o tablado palavras à vera soltas em varanda em
silêncios e quartos rebelaram-se. esqueceram-se a tal ponto que
impossibilitado o seu resgate do poço um esquecimento selva-
gem encrustado e solto naquela varanda em silêncios e azulejos
que vende-se aluga-se sem suspeita nem fantasma ou suspenses
paguem se for o caso o preço. vital. volto a aquele endereço e

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são múltiplas portas e janelas pergunto ao dono da encruzilha-
da por onde. ele diz entre e basta o ato de ir entrando. qualquer
partida como chegada em algum ponto. perco o ângulo o timbre
a data em que catamo-nos em praça pública e dentro do achado
a despedida em laços e laços dourados vibrante imperceptível.
infernal. essa cena vai atrapalhar o bailado o cinema do poema.
poema costuma dar rasante tropeçar rastejar-se rapinar nocau-
tear meter a pata apanhar pastar. poema punho cerrado. e ponto.
ponto final. sigamos. matei e morri sem escândalo. e ponto. é
assim que se mata que se morre que se escapa por um triz por
um detalhe por acaso. nacos de coisas miúdas afiadas os pecu-
liares dizem agora não senhor naufrágio. evita-se comprometer
outras chegadas a minha chegada como um disparo à queima
roupa n’outro alvo. uma moça polonesa disse cuide mais de sua
casca não entendi disse diga por favor mais alto a moça virou-se
você está ferido você foi golpeado e que beleza há nessa pancada
quanta beleza trágica quanta fome faminta ruiva de boca aberta
ampla necessária. pois é assim que se mata que se morre que se
dança um tango psicodélico punk sexy aceite esse beijo bruto
bem bruto um beijo chacal.

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artimanhas para trançar ferro chumbo fogo pétala

poderia se assim quisesse inaugurar como de 


costume outro raiado e ainda mais perolado
desembaraçar-se
despertencer
de tais pernas língua e de vazios 
tácteis
como se duas asas soltas pálidas esvoaçantes e soltas
sem qualquer encaixe
não quer. embora com a foice em punho o viscoso
tecido de miúdos licores saídos de parte sacra
de corpo a dizer vá dê o fora logo após
o sensual combate
lembra-se talvez de um ponto de corte
de um fio laminado
lembra-se desse charme
de existência
onde o que possui força atômica pode de repente soltar-se
da provisória morada
dessa arquitetura erótica
como deixar aquele pombo branco ir em direção
à sua natureza de ar como se fosse
um fogo branco desatado 
naco de nuvem faiscante

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avassalador
como uma espécie de sobrevivente
essas faíscas
chegam sem vacilo como um soco de 
direita um xeque-mate um soco no estômago
vindo de que
parte de qual punho fechado não se sabe
forças e ânimos do rasgo
sem visgo forte
sem encarnação possível por hora
tratam até a manhã seguinte
de seguir à sós 
a qualquer hora e selváticas
seguir viagem

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miúdo romance para pequenas coisas diárias

achado perdido constitui estado básico dos corpos/recolhe-se,


cultiva-se protege o que se acha/de repente desiste-se do acha-
do como se estômago saciado diante de mesa farta/ primeiro
procedimento de sucesso e fracasso: separa-se a coisa radiante
do mundo enquanto nós a coisa radiante não se impede o vívi-
do de exercer sua liberdade que não há senão/solturas encaixes
cavidades remendos/ amparos despenhadeiros tendões/ quer-
-se separar o mijo do cachorro do poste/ bobagem /da calçada
não impede-se aquilo que possui força de atração de chocar-se/
em todo lugar insta-se o tombo, o encontro não há senão/ sol-
turas encaixes desencaixes lâmina gaze rasgos nervura aço/
trapézios/ pode-se de flagrante em flagrante sem interrupção
lamber a coisa o seu ao-redor como língua de cachorro e a sua
chaga, objeto de amor/ folia do cão/ pode-se, é verdade, por
haver muito pavor gradativo piscar o olho, perdê-la de vista,
perder a coisa ferida exibida pornográfica e suavemente em ruas
escolas lojas/achado, acha-se o que for (pau cu buceta pensa-
mento sobras misérias profissionais retratos golpes de estado)
dispostos em plena praça a quem queira, se houver coragem
para pegar, reter, de repente deixá- los por lá/ não querê-la, a
coisa ferida por ter sido talvez achada herdada avariada apare-
cida depressa demais demorada/ fica o achado sem magia/ frá-
gil / aquilo o achado perde-se de algum outro lugar lugar outro

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de chegada também bem possível/ aquilo o achado pode em
algum momento fabricar um berro latir berrar pela janela, sal-
ve-me/ salve-se do delírio, do sonho de quem por muito amor
produziu um rapto/ é hora é agora o momento de regressar ao
sítio do perdido, aquilo que por muito amor e loucura foi ex-
traviado/ devolva, devolva a coisa/ às colônias todas, camas e
aromas, à sanha desses povos/ diante do pavor não esqueça que
em você vai um fogo/ não descuide-se do seu fogo/ nomes lín-
guas espaços acham perdem desistem das coisas/ profana-as/
de flagrante em flagrante acha-se sem cessar pequenas elásticas
bocas tentáculos garras preciosas abertas em chaga com capa-
cidade de amar/de chupar lamber rasgar largar reter em graça/
permanecer violentamente debater-se eixar-se contra-atacar ter
nenhuma saudade deseixar-se ficarem trêmulas sob seu alvo sob
essa rajada sob teu golpe de olho espernear amar.

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1 notas de aula
um estudante ontem disparou uma flecha perguntando-me em sala o que
fazer como se faz quando se está encharcado de solidão quando há tanta
solidão sem nobreza medicalizada cadastrada em intraduzibilidade como
se fosse um processo ou camelo dança de alma penada ou estado muitíssi-
mo especial uma prenda um fraco espetáculo. convoquei como de costu-
me pus na frente da jogada a minha própria solidão para estar à altura do
chamado, dizendo-lhe sobre a engenharia ora com ora sem arte que tenho
feito para defendê-la e atacá-la. esse meu bicho disse ao bicho d’outro que
talvez seja necessário atacar mais mais o estar só para que nesta torção de
braço alguma coisa fecundante para a mirrada vida política de alguns so-
litários no armário, que armem-se, armem-se já & justamente com aquilo
que toma posse deles. um arrebatamento. os enrustidos pelas alegrias me-
dianas não sabem da sensualidade alta e da alta devassidão do que chega
em desmedida - portanto força trágica - e vai escapando escapando dei-
xando lascas de alegria tímida distraída. quase nada mas brava. o bicho do
estudante despedia-se da cena quando o bicho alheio em espectro e solto
de alguém de repente chegou. disse vejam essa navalhada em minha cara.
vejam seu design seu aroma sua cor, vejam como está pousada sobre esse
tecido cárneo, é minha ela toda desde o gesto e vontade máxima de quem
a lançou ao traçado do aço em vir para cima de trêmula carne, está trinca-
da aferrolhada soltíssima em mim. não larga. foi capturada no fora como
aqueles pedregulhos diamantinos que a gente tropeça cata aceita como
formas de deus no meio do vasto beco onde cada um de nós espreme-se
afirma-se orgasma passa um tempo.

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2 notas de aula
muitas tonalidades de corpos a falarem a todo instante da cor preta: preto
opala tição preto-azul preto cabo verde preto-oliva preto sarraceno preto-
-gris. E assim vai. cada tom aí exerce atração sobre o outro dispõe-se então
aos poucos uma constelação. sangue desce tem descido (você bem sabe)
para fazer chorar olhos de gente com preto diverso aqui, lá, em Cuba, aqui,
onde quer que esteja pousado o tom. tanto tem-se chorado que alguns
desdobram no olho mesmo outras retinas e funções, criam-se assim vi-
dências: olham com o olho e no olho-do-outro o que vem e na hora são
olhados por tais forças vindouras que lhes deixam ver a coisa. desvairada.
sob a luz do luar um jovem moço negro-gris lambuza-se em outro jovem
homem negro-oliva. bichas pretas encontram-se quando muito moços às
escondidas em becos vielas sob escadas em quartos às pressas, mocinhos
entrincheirados à esquerda e direita, mocinhos pretos. matérias se uma
vez roçadas há risco, há abertura promovida pelo visgo; visgos se reconhe-
cidos e articulados criam mundos. caçar em todo canto e onde quer que
esteja no corpo-de-alguém o seu riso e prazer. o ponto de descostura. o
grau de ardência. porta aquele homem - estado de força em movimento
como nós todos - ouro na boca. quanto ao ouro, cada um leva o seu onde
pode e se for a hora saca-o como arma e oferenda quando convém, treta
nossa, vá e conheça. você bem sabe onde seu ouro, não é mesmo?

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diário de bordo

Pois que o sistema da ostra falha. É então que precisa fazer o quê
fazer se nem mesmo recomeço há a não ser uma mão uma garra
qualquer que saca uma linha como uma pipa esvoaçante como
uma faca no ar a raia e é preciso conduzi-la para onde não há
por hora um lugar senão cavidades grutas furos de acolchoados
fissuras vivas de rosto acnes riscos na cara e aquelas rochas de
império que o mar desguarnece quando maré baixa aquela flo-
resta de fantasmas ele essa floresta.

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sutilíssimo

O que em relação ao recomeço? Segue-se a linha: seguir. Não


há sobre o fio de navalha ponto exato para o restauro o reen-
gate pois a linha viva voraz trepante mole não para. Ele disse:
pegue a linha e leve; pegue o osso amuleto de cachorro e saia em
disparada; com muita pressa; com um riso trágico encharcando
pedaço qualquer de rosto; o seu; é um pedaço seu que corre e te
carrega; nada é meu; o que me flecha dissemina um lodo mágico
e escorre pelas pernas como escorre o sanguíneo o espérmico.

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três crianças
montadas em velhos cavalos de praça
entram no mar

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outubro, 1982.

Nesta idade sabe-se que um rosto


possui formas diversas
[de pasto ou abelha, de álcool ou com algum detalhe
digo
concentrem-se nesta fagulha no meio da cara de quem passa ao
lado.
Nesta idade põe-se com bravura diante de um flash
um clique, este acontecimento infotografável retido no ar.
Nesta idade sabe-se por exemplo desenlaçar-se de coisinhas
muito graúdas
isto é, algum suor em malha [qual, branca ou amarela],
era domingo, na sala pelo menos um domingo. Em outros
cômodos o tempo não existia e se sim errava a porta
desengonçado e arrasava com a teia de João Margarida e João.
Nesta idade a risada fica solta como as tripas e sacos plásticos
em surfe baixo no asfalto.
Nada serve nesta idade
[bem lembrado, querida.
Entra-se em loja e depara-se com inúmeras variações de cores e
tão graciosas
mas e para o osso, o desenho do osso, seus líquidos nada nada
em liquidação.
Nesta idade anda-se sem suspeita em fratura exposta. A criança

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arrastada pela mãe olha bem ali no olho de alguma coisa e
dá de graça alguma raridade que não vale deixar aberta em
palavra.
Ganha-se prêmios pela execução de coisa nenhuma.
Nesta idade fala-se a língua que sobra conforme o solicitado.
Nesta idade deus já passou por aqui às pressas e deixou-lhe um
beijo, comovente, em rede nacional e bye bye coração.
Esquece-se de tudo nesta idade e esquece o que está em
gavetas, fogueiras, livros, acnes.
Nesta idade assusta-se demasiado com luzes que às seis da
tarde começam a disparar-se e atingem um viveiro, lugar de
viva gente aqui, fora, aqui, ali perto de casa.

O mar decide a esta altura do campeonato ficar.

Nesta idade diz-se de repente diante do banquete “basta este


café com leite”.

Após alguns pensamentos densos serem inacreditavelmente


incorporados, celebra-se sem aplausos apenas aqueles dois, três
no máximo que abriram o grande atalho e todos tinindo ora
em taças, latas, boca de vira-lata.
Nesta idade não intui-se não levanta-se nem desaba não sabe-
se de nada nada nada.
Nesta idade pretende quem esse que escreve conhecer um

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portão de madeira
visto numa cena de cinema ou como se chama lembre-me o
nome do poema que rodopiou, deu saltos, caiu de cabeça,
achou forma em língua de escritora polonesa, a senhora
Wislawa Szymborska.

Nesta idade alguma alegria de qualquer quilate desafia o peso


de pétala da gravidade e vence. Vence a parada.
Nesta idade não pensa-se nisto escrito à mão acima dessa frase.

Nesta idade cada palavra que escrevo decepa uma mão minha
quando cai sobre tela página. Ninguém preso em flagrante.
Outra, despudorada, aguarda na tocaia o instante da chamada.

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homenagem

Para você que faz aniversário hoje desejo-lhe


saudáveis encontros fogo no rabo uma legenda precária
sobre tela fosca que desenhe ali um bote salva-vida útil nestes
tempos de euforias mirradas e preços altíssimos para quaisquer
alegrias
um regresso de presidente que possibilite o elogio majestático
à existência diária no salão onde corre sem cessar teu charme
nossa festa. No Brasil. Desejo-lhe, meu amor, uma revolta
máxima incontrolável trágica para que teus orgasmos e
fomes saciadas logo brandas não te impeçam de ver estrias e
tentáculos do real

o real não engana se visto não trapaceia sem quarta parede


isto que de modo muito pobre nomeia-se
o real

Todos se vivos fazem aniversário dia a dia incansavelmente


sem com asma sem com cachaça amante vontade sem perigos
graves a cada hora uma vitória sobre o esgar do estômago
impeça-o que sobreponha-se a chamados existenciais mais
soberanos. Se for mesmo mais um dia em que para ficar cabe-
lhe violentar o que reduz o viver
saiba que a vida pousa em pedaços de gentes em laterais e

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traseiras
vai na frente como sinal de nascença
toma às vezes nacos de rosto uma coisa na pessoa um mênstruo
um gesto
mancha vermelha do queixo à testa
em rosto vidente

aquilo que impera no moço e não tem jeito de desatar-se dele


leva ele pendurado gasoso
em vidência no rosto
e a coisa acontecendo

não esqueça de recomeçar


não esqueça de recomeçar
em noites cujo corpo teu não vê a noite não a aceita imagine
uma mão tracejada aberta
remando em águas doces de rios dulcíssimos
cujo rumor a voragem tu trazes esparramados em teu largo
corpo

e ainda que tua própria ostra te torça e solte ácidos sobre ela
mesma e em teus nervos
ainda assim celebre: vale celebrar o salto da criança sobre o
adulto com a ferida madura bem aberta: ferida: ação de forças
intensivas. Caso seja o teu corpo o aniversariante a paisagem a

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ser festejada
receita:
1. faz bom uso dele quem esquece alivia-se paga o preço. paga-
se
eu pago
(diga alto)
está pago

2. faz bom uso quem esboça para si e pares como um arquiteto


de vôos e piruetas e reviravoltas
clínicas alquimias místicas sem gramáticas
neste reino do possível

3. faça bom uso faça


do que corre solto à toa
como furor de vira-lata diante da chegada
de seu dono, mago
como um latido que capta-se pêndulo no ar
não sei por hora de quem ou de quê
não interessa
resolve-se então latir junto latir
junto ao latido solto
diante do muro sobre ele diante do mar da fúria do mar entre
nós
assim:

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desossar
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Estou em estado
de guerra com a
dor. Amanheço.
Penso no café, na
xícara. No que
virá após café
xícara a barriga

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satisfeita. Ponho
uma música toda
estrangeira para
que a dor se
atrapalhe. Para
que fique
espantada. Ela

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salta corre
gargalha.
Amanheço e
ainda não é o
instante exato
de puro
diamante que

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repito e esqueço
o café a xícara
como partes
integrantes do
dia. Tudo ganha
uma existência e
um valor

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terríveis de
tolerar. A dor
exige o que tem
vitalidade e
banal magia.
Café xícara
alvíssima corpo

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sentado na
mesa. A dor quer
lançar seus
tentáculos ao
mais banal do
banal e ganha
todas as

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medalhas. A
guerra que me
instalo não
reparte o dia:
toda hora é
exato instante
de tramar uma

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aurora. Quando
findam os
compromissos
volta alguém à
casa sem odor
sem teus hábitos
tua carícia.

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Amanheço. É
tempo de
guerrear com
gestos em motim
deixados neste
quarto: uma
cabeça sobre o

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travesseiro um
pé no braço do
sofá, pelos de
teu peito por
toda parte
sinalizam terra
vacante.

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Devastada. Os
aromas
dérmicos. Uma
arruaça. Estou
em estado de
guerra com a
dor. Tem ela a

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altura da pessoa
com câimbra no
braço. É tempo
de dizer aos seus
soldados, basta.
Basta. É a hora
do sono da

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pessoa. Agora
não. Mais tarde.
Daqui a pouco
temos um
encontro,
Madame das
Novas Formas.

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Confira as
fechaduras da
casa, deite-se,
regule a
temperatura do
quarto, ocupe o
meio da cama o

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meio do
combate, deite-
se e trate
com ternura
teu cansaço
as preciosas
desorganizações

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as rachaduras
por onde há de
vazar e entrar as
garantias
precárias os
guinchos as
molas a massa

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pastosa de
vagina ou pau;
ainda assim
com nada nos
braços e ao lado
você sufoca; ainda
assim

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não imprime à
tua condição a
baixeza de um
drama;
preferível berrar
como um porco
com faca na

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garganta que
sofisticar
espanto o rubor;
ainda assim no
momento em
que diz basta um
filete de graça

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qualquer coisa
em tua direção
avança um
charme um novo
volume um par
de dança um
nome

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qualquer coisa
que arfe e arfará
por um tanto de
tua nuca teus
pânicos. A dor
sabe. A dor é
vidente e

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visionária por
isso sidera não
te poupa,
aproveita-se do
tempo em que te
encontra em
estado de muitas

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pobrezas
majestáticas
para siderar,
provocar. A dor
não baixa seus
fogos e infâmias,
arrebenta cordas

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tendões onde
você se atraca
exato no porto.
Você foge e não
adianta pois é da
natureza da dor
pousar ir

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pousando sobre os
talhes. Nestes
dias em que
pouca coisa em
ti torna-se lázuli
pouca coisa em
ti deixa-se ser

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amável. Nestes
tempos em que
qualquer um
adivinha que o
corpo teu carece
daquilo que você
acredita que

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compõe o
melhor do teu
mundo.
Qualquer
forasteiro
desenha nacos
das carências

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vivas tuas.
Ardendo.
Mentira. Foi um
engano. Outro.
Passa. A dor vê
vestígios do-que-
vem de um

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ponto
inimaginável. Por
isso que após um
tempo é preciso
perdoá-la ainda
que enquanto
isso haja açoites

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pele em chagas.
Os mais sensíveis
flagram-na
através dos
olhos que você põe
em público,
de soslaio. A dor

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sabe das coisas.
Amanheça se
precisar quando
um detalhe ficar
muito árduo de
sustentar.
Disque socorro.

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O mínimo do
mínimo: infernal:
mata. Deite-se
reze um poema
para aquilo que
protege tua
carne animada

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cesse de chorar.
Vale não vale
quase nada
portanto
durma
faça ziguezague
com tua espada

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erga-a aos ares
lanhe quando
possível a
gordura dessa
passagem; se
forças fracas
rasgue-as todas

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é assim mesmo
um
espanto sem
palavra, durma e
deixe-se cavalgar.

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onde late
um
cachorro
doido
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É necessário retornar àquele instante em
que a onda dobra-se se transformando
num aglomerado espantoso de pura força.
De novo a vida por aqui dobrou-se.

É um domingo de cinema.

Aquela onda me encharca de alguma coisa


que eu não sei não preciso saber o nome. A
onda voltou e me pegou desprevenido em
seu gesto de pancada. Também preparo o
contragolpe. Fatal. Ela me engole e cospe.
Sua capacidade de alargar-se me estoura.

Ela tenta mais uma vez despertencer a um


esquema que a embaraçava. Ela não mais o
ama e deve ser por isso que sente pés mais
grossos sobre rocha limo areia. Toda ela
movediça e integrante ao mesmo tempo
daquilo que compõe sua natureza.

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A ausência dele - o incontornável - sua cur-
va fez que astros reconfigurassem outro de-
senho. Ela sente alguma coisa movendo-se,
sente. Não é mais amor. Talvez uma gosma
que à medida que retira-se com dedos, trans-
fere seu visgo para a pele. E quase nada dele
em sua escama brônzea de peixe. Não pode
fugir da grande onda. Que venha. Diz. Vive
de hora em hora, comanda o mínimo do mí-
nimo, evita um certo triz para que o limbo
não alce suas correias e a rapte às suas fron-
teiras sagradas, pretende apenas vencer esse
dia. Vence o combate. Não sabe como.

A ausência é matérica, o não-estar dele é


cárneo.

O que povoa a casa são modos em que o


a-dois estende seus hábitos. A casa super-
povoada a expulsa de sua placenta. Não a
quer. Apesar de possuir uma mão e ela, a
mão, tudo poder mover é regurgitada de
cama, talheres, um composto de preciosas
bagatelas em que um gesto dele fatalmen-
te inscreveu-se. Como um bote sobre as

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coisas. Damos um bote nas coisas e afetos.
Está tudo solto e de repente ascoisas são
surpreendidas por uma estocada. Um corte
radical se faz necessário, o corte que separa-
rá de vez e para nunca mais uma intimidade
em que seu faro poderia invocar e reconhe-
cer em distâncias inimagináveis esse pássaro
de outra plumagem. Um pelo desterritoriali-
zado sobre seus ombros, insistente. Um pelo
branco e sua cabeça, um farelo de pão que
sua boca caça. Tudo agora, ela pensa, preci-
sa ser navalhado e ela portanto navalha. Um
pedaço de unha não varrida que pisamos
neste momento delicadamente para não
romper-se. E o chão expande-se para que o
glorioso mundo de possibilidades ali exila-
do ganhe espaço. Fazer chão. Riscar uma tra-
jetória. Improvisar recursos próprios. Fazer
um chão que ligue os pés à sala àquele ins-
tante em que ela pertence, sob as águas, ao
mar, a tudo que não tem. O não ter é amplo.
É um máximo. Fazer chão para o sólido fun-
cionar como uma corda. Ela à sós e descalça
sobre a calçada tem pouco medo. O que um
dia assaltaram hoje não podem mais. Essa

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solidão dela, cirúrgica, dela, quem pode afi-
nal assaltar. Quem um dia uma vez mais será
o alvo onde ela descarregará toda flama ora
essas centelhas. Quem há de fazê-la desme-
recer esse mundo amplo e farto que ela ago-
ra sabe seu, constituinte pois de suas pernas
rosto de sua fisiologia inteira. Essa eficácia
que tem descoberto de dar conta de sua
massa peso altura, essa riqueza. Esse recurso
de ser gangorra dela mesma.

As traças.

O que fazer com aquela forma que escapa


de um rosto em gozo. Ela pega um martelo
e abre um buraco na parede. Estende um
retrato. Desse vulto em suspenso se vê ago-
ra, capturado e materializado, dele, só seu
desaparecimento.

As coisas por serem muito inertes em sua for-


ma de mover-se deixam-se colonizar, e que
depois saibam, nunca se sabe, como afastar o
gesto da coisa, despregá-lo, rasgá-lo como se
corpo aberto. Chegou a hora de abandoná-lo

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definitivamente. Chegou a hora de despedir-
-se dessa constelação de ruínas, dos vestígios,
dos líquidos - de seu melhor lodo e suor, do
que existe e tudo que ela deu existência ago-
ra encontra-se como invenção e resto.

Onde ela se solta, ela volta.

Aprendeu a tomar posse de seu vôo de


pantera ainda que às vezes o bicho derrape
e lasque de cima a baixo uma pata.

Ela não apela. Sem apelação chora. Não


chora para afogar-se. O que quer que seja
não merece seu afogamento. Isso que a de-
sespera. Chora como uma mulher de roça
que lança toda força para extrair da terra cas-
tanha aquilo que é seu, que lhe é de direto, o
plantado na terra, cuidado na terra, a haste
magnetizada, o esplendor que é dela pois foi
seu o arremesso e que daí em diante retira
com músculo, tração nas pernas e por lan-
çar nesse ato o que pôde dar o que não pode
mais, é certo, com alguma lágrima. Mas o
que fazer se se tem olhos que escapam aos

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comandos, e se podem chorar então que
chorem.

Ele vai ficar majestaticamente mais pobre


sem isto que agora ela toma de volta. Que
ela pede retorno. Ele não sabe. Ele larga
mas não escapa. Quanto a ela, enrosca-se
na forma que lhe é possível acolhê-la, o pâ-
nico, o sem, o sem ele agora é tudo que tem.
Esta taça do sem aberta vazada por onde
entra e sai fluxo de diamante. Tudo que
pode ser arrastado pelo dia em direção aos
seus pés. Tudo o que vem é muito amplo
e bem maior que os acontecimentos que
sem esforço de memória, racham e espati-
fam-se a qualquer rajada de vento em tarde
de inverno.

É inverno. Ele me deixou. Pouco a pouco


tem sido bom. Vai ser.

Aos poucos rebenta sem que eu o veja um


rosto vindouro, meu próximo rosto. É tal-
vez com ele que serei reconhecida e vista
nos mesmos lugares como uma estrangei-

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ra. Pousado sobre minha cabeça esse rosto
convocará outro, outra existência. Exige da
moça o tal rosto cautela com ela mesma se
irromper de vez pois é noviço e mais amplo
no que tange aos experimentos. Em cons-
tantes variações precisa o rosto acostumar-
-se com esse novo plano e vice versa. Este
rosto a quer. Aceita ela tal desejo.

Aquele homem, o autor do abandono,


pode-se dizer que está dessitiado de um
tempo, perdido e preso por não haver mais
sequer uma testemunha de um tempo que
lhe aconteceu. O rosto que um dia foi ama-
do na moça, que era dela, esse rosto está
desaparecido. Ele não reconhecerá o rosto-
-que-vem. Não terá força. Ele perdeu.

Ela tenta dar forma ao despertencimento.


Pela primeira vez se vê como se tivesse vi-
vendo e simultaneamente assistindo-se
numa tela de cinema. O filme está acon-
tecendo. Este filme a acontece. É impres-
sionante como ninguém saberá como uma
borboleta nasce e se rasteja na lama até que

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erga seu salto de prata, até que elabore seu
ataque às belezas da mata. Verdes. A arte de
chafurdar-se na lama. Fecundante. A lama.
Todas as cores que tem um nome e são os
nomes desprezados por ela.
Esqueça.

Esqueça aquele homem.

Agora ela sabe ele não possui raridade. Foi


um equívoco cujo preço ela paga. Está acos-
tumada a pagar o que for necessário quando
engana-se no garimpo do mínimo do míni-
mo do mínimo. Quando ela confunde espa-
ços onde na pessoa cabe sua arte. A escultura
caiu do quarto andar. Não precisava. O ges-
so era muito frágil. Está devolvido. Está de
volta o homem para o mundo onde os cor-
pos possuem a mesma altura volume massa.

Não terá inveja da moça que ficará com


aquele homem. Com a desordem total.

Ela escreve. Não escreve. Não consegue.


Hoje um vazio está alto demais. Para al-

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cançá-lo só um grito para espraiar-se sobre
esse manto invisível e que ocupa tanto es-
paço. Ninguém ocupará o lado direito da
cama incendiado após sua última passa-
gem, a passagem daquele homem. O quar-
to terá de ser descascado como se portasse
uma chaga. Inflamável. O que fazer com
gemidos o roçar de pelos pernas com nó-
doas esquecidas nestas malhas, os abalos,
as lutas. O que fazer no instante que um
corpo convoca em fria noite o calor do ou-
tro. Vagarosamente seu braço procura al-
gum resguardo nos longos braços da moça.
É sonâmbulo tal gesto. Alguma coisa alí se
faz. Em silêncio. O encaixe. O desencaixe.
O aperto. O encontro entre modos de exis-
tência. Deus está de brincadeira. Aceito.
Aceito o enlace. É dele que eu cuido. Desse
ponto de desgostura. Do meu descuido ele
responde com um beijo. O mundo podia se
soltar de galáxias rochas podiam desencra-
var-se de altos mares aos céus. E essa nossa
tenda inquebrantável e firme entre nossas
mãos e pernas.

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Acabou. Fim da folia

com tal rapaz.

De perto

não se vê outras forças no corpo

em retrato senão aquela

do seu desaparecimento.

Para onde dirige-se o rapaz pela primeira


vez não lhe interessa. Ela segue. Segue os
passos que pede sua vontade máxima que
sejam dados. O primeiro. O talvez. O passo
sem o firme passo. A moça em estado de
escrita desbrava dentro de sua casa labirin-
tos onde um povo qualquer tenta escapar.
A moça desenha sobre o papel sua própria
sina e aterrissa-se entre contornos e linhas.
Fica por lá um tanto descansada de ter ca-
beça, de toda sua cabeça raptada por esse
acontecimento sem palavra.

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Agora é a vez deles, chegou a hora de mon-
tar erguer montar a quatro mãos a festa do
despertencer, do deixar o outro ir, desen-
caixar-se, do deixá-lo agora definitivamen-
te, deixá-lo saudável para outra pessoa, do
deixar alguém talvez chegar, deixá-lo ser
mais amado, do deixar-se ficar por um ins-
tante calada dentro desse espanto: separa-
mo-nos.

A vida quer mais. A vida manda.

De repente a vida cansa-se de atar um cor-


po n’outro e prefere ataduras a pensamen-
tos espaços atos arte. A vida às vezes dá a
gente de bandeja a outras potências sem
pau nem buceta. A vida lança sobre aquele
homem químicas que atuam enfraquecen-
do meu contágio sobre o que o fisgava, que
o arrebatava. Mostra ao rapaz no meio da
festa a saída de emergência. O rapaz vai.
Caiu na cilada de ir ainda com a haste acesa
e ligar-se assim, talvez por muito tempo, à
armadura cárnea que pouco a pouco virará
seu grande fantasma.

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A vida manda mas nem sempre

a obedeço. E perco. Não deixo no entanto


passar a chance de fracassar. Fracassar me-
lhor. Melhor do que antes. Fracassar como
um pombo espatifando-se sem fôlego para
o salto. Fracassar como quem não flagra a
exata hora de saltar, saltar para o fora. Im-
pregnado de ânimo. Esquecido mesmo o
porquê daquele salto tão profundo em di-
reção a qualquer coisa, a alguma coisa que
não posso senão chamar de meu formidá-
vel pântano.

Aquele homem é agora homem de quem


triscar em seu nervo, no seu sumidouro e
jardim à flor da pele.

Quanto àquilo que um dia tocara, já não


existe, adquiriu outras fibras e formas das
quais nada sei nem mesmo como açoitá-las
a fim de que passe um ar, atalho, alguma
coisa que o faça parecer menos, o menor fo-
rasteiro. Não sei. Não quero, não sei como
massacrá-lo senão em letra e por dentro da

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letra dura corre um ácido que o derrete in-
teiro. Fico com os restos muito delicados.
Algum dia, se soprados por engano como
poeira, nada, nada mais.

A parte mais radical da ausência daquele


homem vem de meu pânico, ainda latente
o pânico, de não ter força maior para dei-
xá-lo ir embora de vez de zonas minhas
sensíveis demais, prontas para o estouro, o
estrondo assustadoramente alarmante e no
entanto cuidadosamente aberto a qualquer
hora para o encaixe de quem quiser amar e
ser amado.

Peço que esse homem dê o fora. Peço que


ele se safe, safe-se do perigo do duplicar, do
relembrar.

Esta noite dormi como se nunca nos co-


nhecêssemos, com aquelas correias que
libertam, como se não houvesse perdido
nada. A minha noite encontra-se sob do-
mínio de um rapto.

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A casa é grande demais, o teto, o quarto
grande demais, o medo, a cama muito larga
tudo aqui projetou-se para um par.
Mortos na Guerra dos Sete Anos, abati-
dos numa batalha que nenhuma história
de bairro guardará. História dos detalhes.
Como se faz. Ninguém quererá, não vale
nada. Não valerá daqui a algum tempo nem
mesmo para aqueles que a pintaram de pre-
to branco lilás. Passará. É infernal. Passará
como o que deve passar para que o viver
estenda sua magia. Robusto. Atlético. O ca-
dáver deve atravessar a praça logo para que
a cidade caia de novo dentro das horas que
chamam toda noite os homens para a futu-
ridade. Vasta, aérea. Indevassável. Não nos
dá sequer uma esperança embora faça par-
te do jogo aguardar. A este possível. Onde
o possível. Aguardar o que for nem melhor
ou pior mas o necessário: aquilo que não se
pode evitar. Aguardar com vela acesa o ne-
cessário chegar. O único retorno sagrado.

Por ele vivo cada hora. Eu o chamo. Ele se


mostra. Apaga e acende, acende e apaga.
Tem graça, o vital.

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É de guerra. Tenho também alguma pólvo-
ra. Ele me chama.

Combate.

A vida não tem alvo. Ela dispara suas forças


para todos os lados. O que quer que seja, se
ela toca, move-se; e movido, que se mostre
agache-se, acolha, trate-se como se fosse
dourado. Ame. Ataque.

Ela quer vida mais, mais vida, a vida que


lhe caiba e seja necessária.

Se assim pede, a vida dá.

Ela vai escapar. Ela tenta. Ela não cessa


de pensar, está enrodilhada nesse desen-
contro quase esgotada de produzir inin-
terruptamente distanciamentos com os
quais aquele homem não haverá chance
de alcançar. Ele não terá a a violência pre-
cisa para aproximar-se desse desencaixe.
Fatal. O desencaixe da moça de seu corpo
inteiro ocorrerá. A cirurgia avança. O bis-

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turi. O corte. O sangue. O desenlace.

Nada ali dizia que a terra nossa iria desabar


após desbravarmos sete vezes uma floresta
com água sagrada. Sim àquele enigmático
encontro. O sim galopava em nosso entor-
no. O rio o lago as montanhas a mata ala-
ram-nos para que não evitássemos, para que
não fosse evitado o que havia de acontecer.
O que há de acontecer chega indomável, ala-
do nas coisas.

Esse espaço abaulado onde agora me en-


contro tenta tocar alguma forma minha
radicada de sobrevivência que vive em dis-
crição neste corpo que escreve. À essa for-
ma devo o gesto hábil de tornar estilhaço
cada acontecimento vindo com selvageria
que ela - essa forma sobrevivente minha
resistente de guerra - que cada guerra pre-
para e entalha, essa forma por ser muito
maciça e tocante, desmantela. Pois parece
não haver combate que simultaneamente
não produza aquelas forças pavorosas que
servirão como memória trêmula da luta, a

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depender do dia e hora, serão sua vitória e
derrota. É-se sempre de certa maneira para
quem vive isto e aquilo um estado latente
de guerra. Assassino ou assassinado. De-
pende do cinema. É o preço que se paga. É
o preço obsceno e indispensável para algu-
ma coisa em nós seguir. Não se foge não se
escapa à habilidade bélica de comprometer
todos os lados. Dependendo da intensida-
de a guerra não para de realizar-se, reali-
zar-se na pessoa deles. Dos sobreviventes.
Essa guerra não para. Não se sabe aonde ir,
o porquê, a ida, em estar indo em estar exa-
tamente ali. A boca aberta não dá resposta.
Nem as paredes. Nada. Estamos muito a
sós com essa pessoa sobrevivente de suas
guerras assustadoramente vitais. Tal forma
resiste sem saber de que maneira - por ser
muito maciça e tocante - racha o aconte-
cimento, essa bala à toa no espaço – solta.
Fulminante.

Sem uma proposta ou negociata o fim


chegou.

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O fim todo aceso

nas ausências.

O fim estreia por todos os lados

da casa.

O fim diz: agora alguma coisa começa.

Alguma coisa se enceta a galopes nunca em


rota linear.

O fim instala-se com seu grande povo neste


lugar. O povo entra.

Salta. Dança seu espetáculo. Canta sua lín-


gua estranha, aquele povo.

O fim me pede o que só ele mesmo pode


dar.

Este fim me pertence.

É fundamental para até então o reconheci-


mento de minha forma habitual. Essa for-

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ma vai desaparecer. Mais uma vez. É inevi-
tável. Esta forma que dou ao mundo agora
por dentro da magia desse fim vai romper-
-se com toda sua potência de crueldade.

A vida acolhe. A vida é o colo onde pouso


a cabeça. É a via daquilo que nos distrai en-
quanto se faz em surdina, em artifícios, às
gargalhadas e gritos.

Assim: como um cachorro doido.

Onde late um cachorro doido.

Onde late esse latido no cachorro.

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Moisés Alves vive em Salvador.

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