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onde late
um
cachorro
doido
azougue
2017
imagem da capa
Janaina Tschäpe
After the Rain Series: Dani 1, 2003
Edição de 5
Cibachrome
51 x 76 cm
projeto gráfico
Tiago Gonçalves
Alves, Moisés
Onde late um cachorro doido
1ª ed. - Rio de Janeiro: Editora Circuito / Azougue editorial, 2017
ISBN: 978-85-9582-014-2
1. Poesia brasileira 2. Literatura contemporânea
editora circuito
www.editoracircuito.com.br
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Logo se vê não conhece língua que lhe imponha falar de certa inti-
midade, quando perto dele mesmo, regurgita. Uma língua nele se
faz como se comprimida e mosaica manta lhe caísse doucement
sobre as costas e o devorasse de um jeito que falta-me um remate.
Nem mínima ou máxima, crua palavra. Tudo se tocado faísca. A
língua que o chama (qual?) arrasta-se até agarrar-se àquela outra
vibrante em qualquer boca vaga, primária ainda por vir a público
e movimentar-se, a língua que lhe falta é a mesma que ao agachar-
-se capta o triz o instante do salto. Essa no entanto não importa
não basta: sensores nossos adivinham seu funcionamento via
patas narinas chifres crinas caudas. Deve haver estilhaços nos
dedos do rapaz sem língua madre. Nada ergue sem nobre solidão
e com pessoa primeira nada fica no rés do chão. Quando levado
a referir-se a si próprio, emperra late gargalha finge-se de muito
morto. Fingir-se de morto aliás é uma ação alta e brava. Faz bem
se necessário. Não mata. Pôr seu morto no rosto, não mata. Trazer
à flor da pele seu outro possível tom, já instalado e vindo vindo
sem cessar, não mata. Encarar seu morto de frente, chumbado,
tente talvez algum cuidado: sem a arte de doar-se o morto perde-
-se, fica frágil, desiste de nossa força de touro em sonolência que
a qualquer instante no entanto, se triscado, pode vir a fagulhar. O
que mata não engorda. O óbvio não é familiar. Experimente isso,
meu bem: viver hora após hora sem morrer um pedaço.
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b) alegrar-se com quase tudo que acontece entre esse seu tédio
e o meu, amplificado à máxima nota musical neste recosto de
sofá, de chumbo. Movediço.
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b) você diz sem esforço que quer ser guinchado por alguma coi-
sa que fisga anima. Areia sobre dente aberto careado. Areiazinha
sobre nervos raiz e osso. Não sabe não quer saber que o a-dois
torna o-um mais brando e serena. Que a-dois maus delírios não
resistem a uma mão em encaixe estirada ao redor da cintura sua
que cabe o mundo teu mundo. Retorcido. Uma lâmina retorci-
da. Tua cintura. Lasca de madeira rasgada pelo fogo até o talo.
Passa com máxima suavidade um vento e um fogo qualquer se
desassossega. O-um desabrigado chora por todos os buracos,
deve regressar à lama pelos olhos. Você que conhece o servo
dos olhos convém chamá-lo ao mar. O mar descama. A pancada
marítima salva. Na pancada em ondas desatam-se dormências
vitais do corpo: minúsculas e largas e necessárias. Inesgotáveis:
a dor e as ondas.
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Você fura na unha roída o grânulo para que venha o pus cris-
tais derretidos cortantes metálicos entopem veias a gordura no
dedo concentra alguma ternura e deixa esquecido na vidraça
um resquício seu uma pegada. Com lágrimas cruas vindas de
coisa nenhuma prepara-se para espécie de parto onde quem
sabe seja sobretudo o recto espaço das filtragens não dos vaza-
mentos. Alguma latência acesa rasteja-se para baixo do refletor
onde ali protege-se como um bicho falsamente atingido sob luz
crassa finge a si mesmo que tudo é fatal. E não tem fatalidade o
que pode morrerviver. O corpo aguenta. Em potente estado de
vidência nem sequer faíscas escapam. Dai-vos, senhores, à toda
forma de irradiar-se. Você espalha-se em desassossego na forma
poema. Eu calo. Grito de socorro virá se por voz mão erguida
pede-lhe venha agora agora socorro. Pelo floema vejo sua barri-
ga cheia sabe-se lá de qual matéria orgânica qual fraca força. É
preciso cessá-lo um instante para que o pasto escorra logo entre
coxas e pelos e pernas seu leite morno espantosamente covarde.
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Você diz seguir a-dois deixa-o frágil como um corpo sem largos
braços para resgatá-lo de crostas mangues. Acha que assim só as-
sim vem o movimentar-se. Solto. Eu calo. Você diz sem qualquer
esforço que quer ser guinchado por aquilo que fisga anima o ca-
roço. Areia sobre dente aberto careado. Areiazinha sobre nervos
raiz osso. Não sabe que a-dois o um torna-se bem mais vasto e
serena mínimos ardis. Que a-dois maus delírios não resistem a
uma mão perdida na madrugada – sobre a cama - estirada ao
longo da cintura tua que cabe o mundo teu mundo. Retorcido.
Uma lâmina retorcida. Tua cintura. Lasca de madeira rasgada
pelo fogo a essa hora até o talo. O-um desabrigado chora. Deve
regressar à lama pelos olhos. Deve regressar a um tempo a-vir
ainda sem nada e por isso mesmo com tanto e tanto. O-um desa-
brigado cava com unhas pouco sofisticadas para o ato uma toca
o seu possante pântano de onde sairá vai sair - como de costume
- em alta preciosidade. Aguarde um tanto. Aguarde.
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uma
outra arte
de pai.
Cegantes estilhaços sobre
gestos o rosto em tumescência
do menino delirante
em delírio por falso amor ao pai.
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Sobrevive-se
- está grafado –
à desaparição sempre inacabada
de um pai. O pai (por amar demais a cela)
diz não a esse
exercício monumental de edição, de etc.
e recomeço:
falta-lhe o talento
para o sobrevivente:
não não quero minguam ombros
para ser seu sobrevivente.
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Espelhos se ampliados
deixam ver um povo
um peixe um povo em revolta
exaurido querendo
escapar. Jorge Luis Borges cai
lentamente entre nós. Nada
fazemos senão estar junto
de um corpo experimentando
ao seu modo
sua queda.
No espelho alguém desconcertado
menino
a invocar o pai nele
inscrito
entalhado. O povo do espelho
canta em uníssono saia logo daí
desse buraco dessa mina
dos buracos desse rosto
o senhor faça o favor.
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Chega
um tempo
que nem mesmo o cansaço na pessoa
ou a pessoa no cansaço. Nada.
É alegria ou que aqui se chamará de falta-me o pavor de perder.
A Alegria, sim. Falta-me o pavor de perder
existências
que erguem
aqueles tais dias hoje
jamais.
Falsos blecautes e gases perolados e vontades soltas no espaço deixam
os festivos alheios à toa no silêncio do water closet
diante do espelho
alguém retoca sem medo do cliché sua máscara carmim e fica pálido.
E volta. À dança. É necessário. Voltar.
Num desses cantos
(ainda deve estar ali) alguém
dança com vagar e sem haver sequer ruído amplificado
uma dessas canções que livram-se de qualquer elo masmorra
da boca e levam sem que o corpo queira ou resista
o corpo
à dança.
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qual duração
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Nesta casa
moramos eu quem me beija o lábio
o cu a veia luminárias ampolas
uma lagartixa roxa e irmã moscas que vem vão
de uma pobreza a outra riscam em voo
elos
entre janelas porcelanas potes orelhas
paredes azuis
azulando-se
sequer testemunham sobre mancha deixada pelos retratos que
carcomidos esfarelam ainda encharcados no possante azul, lazúli
fresta de úmida parede
correntes elétricas
pequenos ferrugens
intensos
desta minha ponta a outra (de pernas cruzadas - ele) inalcançável
diálogo selvagem entre corações
misturas líquidas miúdos roedores de alegria fazem a festa
em insuspeitada hora aportam com seus espectros
maus
eu grito
afastem-se
deem o fora
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1. Estava pronta para sua violência que aguardara até esse ponto
radical sem retorno e que a acolhia como o mar ao peixe branco
lançando-o para fora de seu sumidouro de espuma. Sem pressa,
retirava com vagar órgãos e vasos estourados em duelo aluci-
nante e sensual da bandeja. Metálica.
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O que resta
nunca pó d’ouro. Resolve-se profanar
as carcaças para que uma distância salva-vidas
instale-se uma distância, magia entre um ponto e outro entre
existências.
Resina entre unhas
rastro de ave de rapina ao redor do alvo sem a energia de
alguma mirada vai para bem longe muito longe. Incapturável.
Sequer desesperos altissonantes sensibilizam tal caça para
doar-se a esse bacante em suave estado de sanha
como trisca em tudo o caçador a caça carcaça.
Um gosto de qualquer coisa
dura na boca. Uma faca crua. Um pânico fantástico.
Bruto
como se cheiro de cachorro molhado
qualquer coisa
inominável.
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Pois que o sistema da ostra falha. É então que precisa fazer o quê
fazer se nem mesmo recomeço há a não ser uma mão uma garra
qualquer que saca uma linha como uma pipa esvoaçante como
uma faca no ar a raia e é preciso conduzi-la para onde não há
por hora um lugar senão cavidades grutas furos de acolchoados
fissuras vivas de rosto acnes riscos na cara e aquelas rochas de
império que o mar desguarnece quando maré baixa aquela flo-
resta de fantasmas ele essa floresta.
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Nesta idade cada palavra que escrevo decepa uma mão minha
quando cai sobre tela página. Ninguém preso em flagrante.
Outra, despudorada, aguarda na tocaia o instante da chamada.
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e ainda que tua própria ostra te torça e solte ácidos sobre ela
mesma e em teus nervos
ainda assim celebre: vale celebrar o salto da criança sobre o
adulto com a ferida madura bem aberta: ferida: ação de forças
intensivas. Caso seja o teu corpo o aniversariante a paisagem a
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É um domingo de cinema.
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As traças.
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De perto
do seu desaparecimento.
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Combate.
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nas ausências.
da casa.
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