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Umbral

Mas que membros nos deixa o precipício?


Ossos despedaçados
soltaram-se na queda
a marca ilustre do seu corpo
o rosto os traços de um pai nobre
tudo o baque sobre a funda
terra confundiu
no tombo seu pescoço se quebrou
a cabeça aberta exalava
o cérebro
jaz um
corpo sem formas
Nisso também
igual ao pai

[S 1110]
Sapiens

Neste ofício de arauto melhor seria


o homem sem compaixão
mais afeito à falta de pudor
diferente de mim

A morte próxima
derruba as maiores palavras

[T 786. S 575]
Puerilia

Não dá no mesmo, criança, ver e viver


Num o nada
noutro ao menos esperança

[T 630]
Temor/Tremor

Trêmulos trêmulos
membros
levem meus rastros
para ao servil
dia desta vida

[T 1330]
O bom soldado

Ao menos te poupei de uma aflição


ao cruzar as correntes do escamandro
lavei o cadáver
limpei ferimentos

Agora vou cavar a sua cova


para que juntos terminenos
o teu o meu interesse
e logo volte o barco para casa

[T 1155]
Temor/Tremor

Levanta desgraçado
tira a cabeça
o pescoço do chão
Não há mais reino nem rainha
Não tente opor a proa
contra o acaso das ondas

[T 98]
Puerilia

Nenhuma lei poupa o vencido


ou veta seu castigo

e agora você diz que nefasto


seria imolar as virgens?

[S 333, 331]
O bom soldado

Quando invadiam nossas margens


morriam sem a privação
das terras e torres da pátria

Quem a guerra aniquilou


não viu seus filhos
não recebeu o funeral nas mãos
da esposa
e agora deita exposto em terra estranha
repasto de aves rapaces

O grande estrategista
pelo que mais odeia
mata o mais amado

Em casa o mal não muda


pra quem fica
esposa sem marido
outra órfã de filho
na casa
pariu pra nada
na cova ninguém
vai sacrificar o sangue à terra

[T 370]
Puerilia

Morreu como morreu


porém melhor
do que eu que vivo

Sina abençoada

A morte é a primeira
a fugir dos desgraçados

[S 954]
Temor/Tremor

Ele tirou de mim o maior fruto dos males


nada temer
tudo tomou-se-me das alegrias
e o horror ainda tem por onde vir

Terrível é temer
quando nada mais se espera

[S 420]
A coisa mais bela

Pra que chamar os deuses


se nunca ouviram
quando chamados?
Vamos correr ao fogo
que hoje a coisa mais bela
é morrer na pátria incendiada

O sol breu sobre o céu gris


e a chama não impede
a cobiça nas mãos do vencedor

Vai pé caduco
como puder para saudar
tua cidade arruinada

[T 1280, 1275. S 17]


Cripta

Todo luto chorado será meu luto

[S 1060]
Tombeau

Um anjo
tenta se afastar daquilo que olha
esbulhado boquiaberto
e de amplas asas

encara no passado
nossa cadeia de acontecimentos
como a catástrofe inacabada
ruína em ruína
ante seus pés

Preferia pousar
acordar os mortos
remontar os fragmentos
porém do paraíso sopra
um vendaval
que enlaça suas asas
e ele não sabe mais fechá-las
arrastado ao futuro
ele vai de costas
e a pilha de ruínas à sua frente
alcança o céu

[W 9]
Cripta

Não há trincheira para o pranto

[S 812]
A coisa mais bela

Sequer nascer se iguala à morte


Ante a aflição da vida
melhor morrer
sem dor
ou estética dos males

Feliz de quem morre em guerra


e vê tudo consigo con
sumir-se

[T 636]
Temor/Tremor

Antes ter mais voz nos braços mãos


cabelos pés pra que em uníssono tudo
agarrasse em teus joelhos vertendo todos
os discursos

[H 835]
Puerilia

Sepultem o corpo
numa tumba
porque ele já ganhou
grinaldas fúnebres

Penso que para o morto


pouco importa
se recebeu exéquias

É tudo névoa-nada
a ostentação dos vivos

[T 1245]
O bom soldado

Estes acham que a morte redime o atraso


dos barcos Aqueles se alegram por ver
tombar um inimigo A maioria leviana
detesta todo crime e o contempla

[S 1126]
Puerilia

Mãe de uma cidade vazia


lágrima por lágrima
porém um morto esquece as dores

[T 603]
Temor/Tremor

Podem ameaçar com chamas chagas artes


do suplício fome sede pestes várias ferro
afundado nas vísceras queimadas flagelo
cárcere sem luz e todo o mais que ousar o
vencedor em fúria temeroso

[S 582]
O bom soldado

O homem que pilha cidades


navios sepulcros sacrários dos mortos
desolados
e ao fim também se enterra

[T 95]
Temor/Tremor

Nosso presente por você

arrancar os cabelos
um golpe sobre o peito

que resta

[T 792]
Puerilia

Errando sobre o mar dilacerou-lhe a pele

[H 782]
Sapiens

Não levo comigo o que trazem


os homens

esperança

Nem me iludo
que faço o bem

Doce seria crer

[T 681]
Lápide

Eis a criança que um dia


por medo mataram
os argivos

[T 1190]
guilherme gontijo flores

Tróiades
remix para o próximo milênio
Copyright © Editora Patuá, 2015.
Tróiades © Guilherme Gontijo Flores, 2015.

Editor
Eduardo Lacerda

Projeto Gráfico e Diagramação


Leonardo Mathias | flickr.com/leonardomathias

F657t Flores, Guilherme Gontijo.

Tróiades. / Guilherme Gontijo Flores.

São Paulo: Patuá, 2015.

ISBN 978-85-8297-214-4

1.Poesia Brasileira. I.Título.

CDD – B869.91

Índice para catálogo sistemático:

1.Poesia Brasileira : Literatura brasileira B869.91

Todos os direitos desta edição reservados à:

Editora Patuá
Rua Manuel Luiz de Araujo Costa, 287 – Casa 1
CEP 03280-020 São Paulo – SP Brasil
Tel.: (11) 2216-0407 / (11) 974928378
www.editorapatua.com.br
Vbi Hector? Vbi Phryges?
Vbi Priamus? Vnum quaeris: ego quaero omnia.

(Sêneca, Troades v. 571-2)


Umbral

Mas que membros nos deixa o precipício?


Ossos despedaçados
soltaram-se na queda
a marca ilustre do seu corpo
o rosto os traços de um pai nobre
tudo o baque sobre a funda
terra confundiu
no tombo seu pescoço se quebrou
a cabeça aberta exalava
o cérebro
jaz um
corpo sem formas
Nisso também
igual ao pai

[S 1110]
Sapiens

Neste ofício de arauto melhor seria


o homem sem compaixão
mais afeito à falta de pudor
diferente de mim

A morte próxima
derruba as maiores palavras

[T 786. S 575]
Puerilia

Não dá no mesmo, criança, ver e viver


Num o nada
noutro ao menos esperança

[T 630]
Temor/Tremor

Trêmulos trêmulos
membros
levem meus rastros
para ao servil
dia desta vida

[T 1330]
O bom soldado

Ao menos te poupei de uma aflição


ao cruzar as correntes do escamandro
lavei o cadáver
limpei ferimentos

Agora vou cavar a sua cova


para que juntos terminenos
o teu o meu interesse
e logo volte o barco para casa

[T 1155]
Temor/Tremor

Levanta desgraçado
tira a cabeça
o pescoço do chão
Não há mais reino nem rainha
Não tente opor a proa
contra o acaso das ondas

[T 98]
Puerilia

Nenhuma lei poupa o vencido


ou veta seu castigo

e agora você diz que nefasto


seria imolar as virgens?

[S 333, 331]
O bom soldado

Quando invadiam nossas margens


morriam sem a privação
das terras e torres da pátria

Quem a guerra aniquilou


não viu seus filhos
não recebeu o funeral nas mãos
da esposa
e agora deita exposto em terra estranha
repasto de aves rapaces

O grande estrategista
pelo que mais odeia
mata o mais amado

Em casa o mal não muda


pra quem fica
esposa sem marido
outra órfã de filho
na casa
pariu pra nada
na cova ninguém
vai sacrificar o sangue à terra

[T 370]
Puerilia

Morreu como morreu


porém melhor
do que eu que vivo

Sina abençoada

A morte é a primeira
a fugir dos desgraçados

[S 954]
Temor/Tremor

Ele tirou de mim o maior fruto dos males


nada temer
tudo tomou-se-me das alegrias
e o horror ainda tem por onde vir

Terrível é temer
quando nada mais se espera

[S 420]
A coisa mais bela

Pra que chamar os deuses


se nunca ouviram
quando chamados?
Vamos correr ao fogo
que hoje a coisa mais bela
é morrer na pátria incendiada

O sol breu sobre o céu gris


e a chama não impede
a cobiça nas mãos do vencedor

Vai pé caduco
como puder para saudar
tua cidade arruinada

[T 1280, 1275. S 17]


Cripta

Todo luto chorado será meu luto

[S 1060]
Tombeau

Um anjo
tenta se afastar daquilo que olha
esbulhado boquiaberto
e de amplas asas

encara no passado
nossa cadeia de acontecimentos
como a catástrofe inacabada
ruína em ruína
ante seus pés

Preferia pousar
acordar os mortos
remontar os fragmentos
porém do paraíso sopra
um vendaval
que enlaça suas asas
e ele não sabe mais fechá-las
arrastado ao futuro
ele vai de costas
e a pilha de ruínas à sua frente
alcança o céu

[W 9]
Cripta

Não há trincheira para o pranto

[S 812]
A coisa mais bela

Sequer nascer se iguala à morte


Ante a aflição da vida
melhor morrer
sem dor
ou estética dos males

Feliz de quem morre em guerra


e vê tudo consigo con
sumir-se

[T 636]
Temor/Tremor

Antes ter mais voz nos braços mãos


cabelos pés pra que em uníssono tudo
agarrasse em teus joelhos vertendo todos
os discursos

[H 835]
Puerilia

Sepultem o corpo
numa tumba
porque ele já ganhou
grinaldas fúnebres

Penso que para o morto


pouco importa
se recebeu exéquias

É tudo névoa-nada
a ostentação dos vivos

[T 1245]
O bom soldado

Estes acham que a morte redime o atraso


dos barcos Aqueles se alegram por ver
tombar um inimigo A maioria leviana
detesta todo crime e o contempla

[S 1126]
Puerilia

Mãe de uma cidade vazia


lágrima por lágrima
porém um morto esquece as dores

[T 603]
Temor/Tremor

Podem ameaçar com chamas chagas artes


do suplício fome sede pestes várias ferro
afundado nas vísceras queimadas flagelo
cárcere sem luz e todo o mais que ousar o
vencedor em fúria temeroso

[S 582]
O bom soldado

O homem que pilha cidades


navios sepulcros sacrários dos mortos
desolados
e ao fim também se enterra

[T 95]
Temor/Tremor

Nosso presente por você

arrancar os cabelos
um golpe sobre o peito

que resta

[T 792]
Puerilia

Errando sobre o mar dilacerou-lhe a pele

[H 782]
Sapiens

Não levo comigo o que trazem


os homens

esperança

Nem me iludo
que faço o bem

Doce seria crer

[T 681]
Lápide

Eis a criança que um dia


por medo mataram
os argivos

[T 1190]
Ainda não seremos só silêncio.

Não compreendemos as ruínas antes de nos tornarmos ruínas nós mesmos.

(Heinrich Heine, trad. André Vallias)

Ou ço o cho ro tris te da his tó ria que re tro ce de so bre sua tra je tó


ria pa ra bó li ca. Num da do mo men to, ve jo a bai xo um men di go pos
ta do ao la do do meu cha péu co mo um guar di ão de pe dra. A in da que
em bai xo o men di go es tá a ci ma de mim. Ou se rá a al ma ex â ni me do
so ma tó rio da his tó ria?

(Yi Sáng, trad. de Yu Jung Im)

este livro nascido do poema-site é inteiro colado entre vo-


zes dos derrotados, ainda que só possam surgir pela voz
dos vencedores, misturada e em parte indissociada dos
vencedores, como possibilidade da história. quando o der-
rotado fala, quem fala por ele, quem fala nele, quem po-
deria de fato ocupar esse lugar? cada encontro dos recortes
fragmentários sugere discurso, não voz clara, não um de
quem, ou um para quem — sem só dicotomia entre algoz
e vítima, mas ainda assim como um monumento ao mas-
sacre interminado da história: de Troia, arquétipo dos der-
rotados, até Canudos, essa espécie de mãe das favelas con-
temporâneas, onde os derrotados permanecem ao longo
dos seus dias; da escravidão imemorial e ubíqua ao índio
ainda silenciado em nosso discurso, os nomes não termi-
nariam, talvez sem um tikkun possível para os retalhos
da dor.

1. o textos foram recortados, traduzidos livremente e re-


manejados e remontados a partir de três tragédias antigas:
Hecuba, de Eurípides (424 a.C.) [H nas referências];
Troiades, de Eurípides (415 a.C.) [T];
Troades, de Sêneca (c. 54-64 d.C.) [S];
e do aforismo 9 tirado de “Über den Begriff der Geschichte”
(1940), de Walter Benjamin [W].

2. a música “Genocide — Symphonic Holocaust” é do


álbum Blut und Nebel (2005), de Maurizio Bianchi, tirado
dos Wikicommons; o leitor pode encontrá-la facilmente
na internet.

3. as fotografias, também recortadas e manipuladas, foram


escolhidas dos Wikicommons:
1. Gênio do luto, imagem do séc. II d.C., por anônimo;
2. Will Brown linchado e cremado, 1919, por anônimo;
3. Porušena, Borovnica, 1944, por anônimo;
4. Escrava presa na Tunísia, c. 1900, por Lehnert & Landrock;
5. Judeus mortos em Kiev, 1942, por anônimo;
6. Soldado confederado morto, 1864, por anônimo;
7. Soldados alemães mortos na batalha de Bastogne, 1944,
por anônimo;
8. Soldados russos na Guerra Russo-Japanesa, 1905, por
Victor Bulla;
9. Crianças enforcadas numa árvore, Itália, 1923, por anônimo;
10. Canibais, durante a fome na Rússia, 1921, por anônimo;
11. Índios escravizados, séc. XIX, por anônimo;
12. Jovem alemã diante de 800 escravos mortos pela SS,
1945, por anônimo;
13. Túmulo de Inês de Castro (1360), por André Luís;
14. Polônia, 1939, por Julien Bryan;
15. Guerra civil americana, 1865, por Thomas Roche;
16. Linchamento de Laura Nelson,1911, por G. H. Farnum,
cartão postal;
17. Operação Barbarossa, soldado russo morto, 1941,
por anônimo;
18. Soldados russos em trincheira de mortos, 1905, por
Underwood & Underwood;
19. Uma longa sombra geográfica, 2008, por Evelyn Simak;
20. Escravo do Mississipi, 1863, por MacPherson & Oliver;
21. Índios Crow mortos, 1874, por anônimo;
22. Delia, escrava em Columbia, 1850, por J. T. Zealy;
23. Dresden bombardeada, Alemanha, 1945, por Richard Peter;
24. Sobreviventes de Canudos, 1897, por Flávio de Barros; e
25. Tumbas de Palmira, Síria, 1935, por Pierre Antoine
Berrurier, foto aérea.
4. o site foi formulado numa plataforma pré-fabricada Wix
e reorganizado dentro dos limites do formato, como em to-
dos os casos anteriores.

5. um agradecimento imenso às leituras, reações e comen-


tários críticos de Adalberto Müller, Adriano Scandolara,
Bernardo Lins Brandão, Ernesto von Artixffski (Sergio
Maciel), Fernanda Baptista, Glaysson Zamt, Leandro Rafael
Perez, Mauricio Cardozo, Odete Cardoso Gontijo, Pádua
Fernandes, Ricardo Pozzo, Simone Petry, Tarso de Melo,
Vinicius Ferreira Barth & William Zeytounlian.

6. esta é a segunda parte da tetralogia Todos os nomes que


talvez tivéssemos, iniciada em 2013 com o livro brasa enganosa.

submergir na dor será talvez a imagem da redenção.


por isso, a cada morto inominado.

26 de setembro de 2014
guilherme gontijo flores
Esta obra foi composta em Garamond
em julho de 2015 para a Editora Patuá.

nos 3200 anos do incêndio de Troia;


2160 anos da aniquilação de Cartago;
805 anos do cerco de Béziers;
522 anos de extermínio indígena nas Américas;
369 anos da carnagem de Yangzhou;
117 anos da guerra de Canudos;
99 anos do genocídio armênio;
82 anos da grande fome da Ucrânia;
76 anos do estupro de Nanquim;
74 anos da fundação de Auschwitz-Birkenau;
69 anos de Hiroshima & Nakasaki;
32 anos do massacre de Hama;
20 anos de genocídio em Ruanda;
11 anos de conflito em Darfur;
o tempo indeterminado da escravização do homem pelo homem.

Tiragem de 100 exemplares

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