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MAGAZINE DE FICÇÃO CIENTÍFICA
N0 5 AGOSTO DE 1970

Editorial

Contos Estrangeiros

Redução de Armamentos - Tom Purdom


A Bolha - J. W. Schutz
Experimente Uma Faca Cega - Harlan Ellison
Era Uma Vez... - Phyllis Murphy
Segregacionista - Isaac Asimov
A Casa do Mar - William M. Lee
Trinta Dias de Setembro - Robert Young

Conto Brasileiro

A Toca - Walmes Nogueira Galvão

Ciência

O Conflito dos Sexos - Isaav Asimov

Cartas

Capa de Mel Hunter


José Bertaso Filho, DIRETOR
Jeronymo Monteiro, DIRETOR DE REDAÇÃO
João Freire, GERENTE
Associação Brasileira de Ficção Cientifica, CONSULTOR CIENTÍFICO

Magazine de Ficção Científica é a edição brasileira de “The Magazine of Fantasy and Science
Fiction”’ — Copyright © Mercury Press, Inc., New York. É publicada mensalmente pela Re-
vista do Globo S.A.

osebodigital.blogspot.com
EDITORIAL

Os caminhos da FC tomaram hoje rumos tão diferentes daque-


les que o gênero trilhava há apenas 10 ou 15 anos que os que não vêm
acompanhando o desenrolar dos temas e dos recursos têm dificuldade
em identificar as modernas estórias com aquelas publicadas nos “velhos”
tempos.
Os autores partiram da viagem interplanetária, das estórias de
conquistas de planetas, de invasão da Terra, das batalhas espaciais para a
busca do mundo que há dentro do Homem, sempre usando o recurso da
extrapolação - para, partindo de possibilidades científicas, dar outra di-
mensão ao homem e a seus anseios na realização dos seus ideais. E nisto
não há campo que não possa ser explorado.
Percorram os volumes desta revista já publicados e contem os tra-
balhos que versam sobre lutas espaciais, viagens e coisas assim: Quan-
tos encontrarão? Em compensação, pensem um pouco nos temas varia-
díssimos explorados nas estórias que vimos apresentando. Têm, aí, um
panorama bem evidente na moderna FC. Mesmo os contos de autores
nacionais que estampamos aqui, são típicos. “A Invasão”, de Clovis Gar-
cia, publicado no n.° 4, aborda um assunto clássico, mas de maneira tão
moderna, que pode ser incluído entre o que há de mais novo no gênero.
E não podemos perder de vista a advertência de Charles-Noel Mar-
tin (citado por Rubens Teixeira Scavone, no Suplemento Literário de “O
Estado de São Paulo”, de 25/10/69): “A ciência não é apenas aquilo que a
tradição do século XIX estabeleceu, mas tudo aquilo que o nosso espírito
pode imaginar”.
A FC é o gênero literário mais válido da atualidade e, caminhando,
como caminha, ao lado das descobertas, do avanço científico, das pes-
quisas em todos os ramos da ciência, será, cada vez mais, a literatura do
futuro.
J. Monteiro

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REDUÇÃO DE ARMAMENTOS

Tom Purdom

Trad. de Noé Gertel

A informação secreta que nos tornou interessados no Dr. Lesechko,


foi enviada a Washington por um dos nossos inspetores voluntários secre-
tos, uma professora de matemática de Amarillo, que estava passando um
ano na União Soviética em programa de intercâmbio cultural em desen-
volvimento. Um dos nossos psicólogos inculcou um arquivo de mil nomes,
rostos e biografias no seu inconsciente, exatamente antes que ela saísse
dos Estados Unidos, em julho, e, numa noite de setembro passado, ela viu
o Dr. Lesechko farreando com uma garota num restaurante, a trinta quilô-
metros do hospital em que o mesmo Dr. Lesechko estaria supostamente
como paciente de séria doença mental. Um nome, uma fotografia e um
conjunto de instruções estouraram na cabeça da professora e ela passou
a informação ao cônsul norte-americano mais próximo e me deu o indício
que eu estava esperando desde que fui nomeado Chefe de Inspeção — a
primeira séria evidência de que o Tratado de Pequim constituía a trapaça
comunista que devia ser, conforme insistiam todos os nossos adversários.
Por si mesma, está claro, a observação não tinha significação. Nos-
sos inspetores secretos seriam inúteis sem a outra arma secreta do nosso
sistema de inspeção: um computador bioquímico — o maior do mundo
na época — em que vínhamos registrando tudo que sabíamos dos blocos
chinês e soviético e de outras potências nucleares. Não sabíamos que algo
de importante havia acontecido antes que a máquina de escrever retinis-
se no escritório do andar de cima do edifício do computador e um analista
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de informações descobrisse que tinha nova incoerência a verificar. O mais
promissor bioquímico graduado na turma de 1978, em Leningrado, não
se encontrava onde os registros oficiais do Ministério da Saúde da União
Soviética diziam que ele devia estar.
Cópias do relatório do analista chegaram às repartições competen-
tes da Agência Central de Inteligência (Central Intelligence Agency — CIA)
e da Agência de Controle de Armamentos e de Desarmamento (Arms Con-
trol and Disarmament Agency — ACDA), assinaladas com um URGENTE
em vermelho grosso. Na ACDA, não perderam tempo para me trazer o
relatório.
Li-o com o estômago perturbado. Os avanços, que a genética e a
bioquímica fizeram nos últimos quinze anos, representaram uma das prin-
cipais razões pelas quais tínhamos insistido para que os laboratórios de
conhecimento público fossem incluídos em qualquer tratado de redução
dos armamentos. Estávamos especialmente preocupados com um peque-
no item, que os analistas militares cognominaram o vírus “noventa e cinco
plus” — uma doença capaz de se difundir tão secreta e rapidamente que
a nação vitimada possivelmente não conseguiria desenvolver meios de
imunização (ou lançar um ataque nuclear de represália) antes que 95% de
sua população tivessem sido mortos. A natureza e a medicina moderna
fizeram desse vírus letal um problema difícil — por razões que encontra-
remos em qualquer manual de patologia — mas oito nações pelo menos
estiveram trabalhando com êle, quando ratificamos o tratado. Se se con-
tar com um pesquisador brilhante e com os novos animais experimentais
que Petroyev acabava de desenvolver na Universidade de Leningrado, o
Bureau de Táticas de Evasão da ACDA calculou que um laboratório secre-
to poderia desenvolver o vírus em dezoito meses, ou menos. O hospital
psiquiátrico, em que se supunha que Lesechko estivesse como paciente,
era bastante grande para abrigar o projeto em uns três andares — e êle
estava ali havia um ano.
Meu impulso, naturalmente, foi enviar uma equipe de inspeção de
laboratório diretamente ao hospital. Eu era responsável pela segurança
de duzentos milhões de pessoas e estive trabalhando para a Agência de
Controle de Armamentos e de Desarmamento durante quatorze longos
anos cheios de frustração. Se o povo, pelo qual era responsável, se en-
contrava em perigo e se o trabalho de toda minha vida representava um
fracasso, queria sabê-lo imediatamente. Se tivesse de escolher entre viver
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com uma verdade desagradável ou com um sinal de interrogação, preferi-
ria viver com a verdade desagradável.
Se, no entanto, tratássemos a inspeção como se fosse algo espe-
cial, os russos saberiam que estávamos suspeitosos e provavelmente des-
truiriam tudo que pudesse estar escondido. Teria de enviar uma equipe
bastante grande para inspecionar todos os vinte e dois andares simultane-
amente. E mesmo isto poderia não ser suficiente. Conforme o Bureau de
Evasão me recordara várias vezes, um burlador decidido poderia sempre
explodir um local e fazer com que parecesse acidente.
Ao invés disso, organizei uma equipe padronizada de inspeção de
laboratórios: um inspetor da ACDA, um agente da CIA e um bioquímico
tirado de nossa lista de consultores contratados a prazo. A embaixada de
Moscou deveria fornecer-lhes um carro de comando Classe A — o mesmo
tipo de carro planador que o Exército usava para um posto de comando
dos grupos móveis de combate — e eles como que fariam um giro rotinei-
ro e sem rumo certo por instalações declaradas. Quando chegassem ao
hospital, seria de esperar, pareceria uma parada rotineira na viagem que
não fora planejada antecipadamente.
Como inspetor da ACDA peguei um dos melhores homens do nosso
corpo de inspeção, um jovem Ph. D. em psicologia chamado Jerry Wein-
berg. Weinberg falava russo fluentemente — estudara a língua desde o
primeiro ano de escola — e fiquei impressionado com seus métodos de
pensamento, quando o entrevistei. Êle era também um dos nossos me-
lhores detectores humanos de mentiras. De acordo com os testes a que
submetíamos os nossos inspetores, êle acertava noventa por cento das
vezes em que supunha que um indivíduo mentia e setenta por cento das
vezes em que supunha que um indivíduo escondia algo. O departamento
do pessoal considerava isto fenomenal. Aparentemente, o treinamento
psicológico costuma embotar a intuição.
O Dr. Richard Shamlian, da Universidade de Boston, concordou em
preencher a brecha científica e a CIA nos disse que mandava um veterano
agente chamado Justo Prieto. Durante oito dias, vigiei a luz, que repre-
sentava o rastejamento da equipe de Weinberg em direção ao hospital,
no grande mapa que usávamos para assinalar a rota de nossos inspetores.

Os horários de trabalho de escritório na União Soviética decorrem


durante as horas em que a gente normal dos Estados Unidos está em casa,
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na cama ou se divertindo. Pensei nisto agora e durante a Conferência de
Pequim, mas, obviamente, não compreendi em sua plenitude o que sig-
nificava. Se o tivesse compreendido, teria sido tão obstinado quanto os
negociadores europeus e chineses reunidos. Quando Weinberg chamou
Washington do hospital psiquiátrico, eram duas horas da tarde, onde se
encontrava e eu estava numa cabina no compartimento de controle das
transmissões radiofônicas, olhando o relógio que insistia em me lembrar
que eram apenas cinco horas da manhã, na costa oriental dos Estados
Unidos.
Como de costume, dois carros repletos de polícias secretos russos
seguiram a equipe por todo o caminho. Weinberg fêz, porém, uma súbi-
ta volta acerca de oitenta quilômetros do hospital e conseguiu chegar à
entrada principal somente uma hora depois de os russos poderem vir a
saber que o hospital constituía seu objetivo. A equipe ficou esperando
na antecâmara durante cinco ou dez minutos até que Weinberg tivesse
mostrado suas credenciais à guarda de segurança de serviço, e, então, o
diretor assistente, Sr. Boris Grechko, veio do seu gabinete e os saudou com
grande entusiasmo.
Constituíam eles a primeira equipe de inspeção com que Grechko
se encontrava, ao que parece, e êle sentiu que o Tratado de Pequim era
um dos grandes acontecimentos na história da espécie humana. Era mui-
to de lamentar que o Dr. Rudnev, o Diretor, houvesse saído naquele dia. O
Dr. Rudnev rompera em lágrimas no dia em que o Tratado fora anunciado.
Grechko ficaria feliz, não obstante, em mostrar-lhes as coisas. Ele
poderia mostrar-lhes tudo, exceto os oito andares superiores. Todos os
pacientes desses andares, inclusive o Dr. Lesechko, estavam recebendo
terapia ambiente programada. Rudnev era o único homem que poderia
levar ali os inspetores sem causar dano ao progresso realizado pelos pa-
cientes. O Dr. Rudnev trabalhava até tarde na maioria das noites, pobre
homem, e, habitualmente, tirava uma tarde por semana para descansar.
Aconteceu que o seu repouso caíra precisamente naquela tarde.
Reclinei-me na minha cadeira giratória e estudei as garatujas que
ia fazendo enquanto Weinberg falava. Coloquei a imagem do carro de co-
mando na tela de vinte centímetros no meio do meu consolo e seria capaz
de sentir os olhos e o cérebro atrás dos óculos escuros de Weinberg me
avaliando, enquanto refletia. O seu QI era aproximadamente vinte pontos
mais alto do que o meu e eu sabia que êle gastara muito do seu tempo
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excedente estudando história militar e política internacional. Eu estava
bastante certo de que êle não iria fazer pesquisa psicológica quando ter-
minasse seus três anos conosco. Ele estava provavelmente encaminhan-
do-se para um emprego nalguma fundação ou corporação não-lucrativa,
onde lhe pagariam para ficar sentado e pensar acerca do que os homens
do governo deveriam estar fazendo. Era o tipo e a mosca azul eviden-
temente o picara. Algum dia, poderia até encontrar-se ao meu lado na
escrivaninha.
— Acha que Grechko está dizendo a verdade? — perguntei.
— Isto tem jeito esquisito — disse Weinberg. — Não jogaria minha
vida nisso, mas não me sinto convencido.
— Como pode Rudnev levá-lo por ali sem arruinar os ambientes
programados? Tinha a idéia de que, uma vez começado um ambiente pro-
gramado, não podemos interrompê-lo para nada.
— Compete a Rudnev decidir. Alguns psiquiatras não o farão em
nenhuma circunstância e alguns o farão ocasionalmente, com propósitos
de treinamento. Esta é uma questão traiçoeira. Ninguém sabe realmente
o que é correto, quando conseguimos uma técnica nova como esta.
Perguntei a Grechko se Rudnev já havia levado alguém lá antes. Êle
hesitou apenas uma fração de segundo e disse “não”...
— Onde se supõe que Rudnev está agora?
Weinberg sorriu e respondeu:
— Grechko disse que não sabe. Habitualmente, êle faz um longo
passeio de carro e depois pega sua mulher para sair à noite.
Resmunguei, replicando:
— Perguntou você a alguém mais ao hospital se o Dr. Rudnev faz
isto todas as semanas?
— Perguntei à guarda de segurança na sala de espera e Grechko
me cumprimentou pela minha eficiência.
Resmunguei de novo. Se eles estavam escondendo um laboratório
clandestino no hospital, alguém obviamente retirou um bom palpite do
Registro do Congresso. Parecia que ia dar-se exatamente a espécie de si-
tuação acerca da qual nos admoestava o Senador Moro, quando o Senado
esteve examinando o tratado.
Teoricamente, todas as instalações militares e científicas do mun-
do poderiam ser visitadas por nossos inspetores, em qualquer momento.
Oito vezes por ano, além disso, em qualquer época que escolhêssemos,
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poderíamos inspecionar qualquer local que despertasse nossas suspeitas.
Na prática, entretanto, havia inevitavelmente locais que não poderiam ser
inspecionados em circunstância alguma. Que faríamos, neste caso?
Nossa única resposta foi a cláusula escapatória. Ou negociaríamos
alguma resolução satisfatória, quando tais situações ocorressem, ou anu-
laríamos o tratado. Para manter o tratado tão flexível quanto possível,
nem sequer incluímos algum procedimento formal de negociação. Num
mundo em que a mudança técnica radical é a norma, havíamos sentido,
os procedimentos políticos rígidos constituem equívoco perigoso.
Mas isto significava que deveríamos descobrir nosso caminho, toda
vez que topássemos com um problema. Tínhamos de manter em equilí-
brio a segurança militar dos Estados Unidos em confronto com a mérito
da primeira redução inspecionada de armamentos na história do mundo.
Se eu dissesse a Weinberg para insistir na letra do tratado e inspe-
cionar o local imediatamente e a equipe viesse a descobrir que Grechko
estava falando a verdade ... Mesmo que a União Soviética não se retirasse,
indignada, do tratado, seria difícil ordenar uma inspeção da próxima vez
que um governo fizesse semelhante objeção ... e todos os governos do
mundo viriam a sabê-lo.
Havia uma possibilidade que eu devia sempre ter presente. Em
vez de uma conspiração para burlar o tratado, podíamos estar diante de
uma conspiração para pô-lo a pique ou debilitá-lo. Não pensávamos que
os russos tivessem conhecimento acerca dos nossos inspetores secretos,
mas coisas como essas acabam sendo descobertas cedo ou tarde. O Dr.
Lesechko poderia ter sido colocado no restaurante para despertar nos-
sas suspeitas — uma pessoa drogada, psiquicamente doente, poderia ser
provavelmente manejada para parecer embriagada e turbulenta — e al-
guém poderia confiar que eu enviaria nossos inspetores para tumultuar
os andares superiores e causar dano às vidas dos pacientes, que ali se
encontravam, a troco de nada.
Mesmo que os responsáveis pelo Kremlin quisessem o tratado tan-
to quanto eu, não poderiam exercer controle absoluto sobre seus subordi-
nados. Tivemos complicações com homens da CIA e do Pentágono e eles
também tinham seus linhas-duras. Mais cedo ou mais tarde, alguém nos
escalões inferiores inevitavelmente montaria uma armadilha. Se nõs dei-
xássemos atrair por eles para uma inspeção que terminasse em desastre,
seria muito fácil deixar-nos desconcertados, de maneira que a futura ins-
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peção acabaria sendo uma farsa e nós próprios, provavelmente, teríamos
de abrogar o tratado.
Por outro lado, certamente, se eles tinham algo escondido no hos-
pital e eu deixasse que nos enganassem, poderiam utilizar o tempo para
se livrar da prova. O Bureau de Evasão calculou que levaria cinco dias para
mudar um laboratório bastante grande para desenvolver o vírus noventa
e cinco plus e, no mínimo, um dia para destruí-lo sem deixar confusão
reveladora, mas esta é a espécie de cálculo que a gente sabida esquece
assim que ouve. Sempre que alguém do nosso lado prova que possivel-
mente o inimigo não pode fazer alguma coisa, há uma chance muito boa
de que o inimigo já esteja abrindo um caminho para ela.
— Diga-lhes que queremos vedar o hospital até que entremos em
contato com Rudnev — disse eu. — Pode-se entrar, mas ninguém sai sem
que um dos nossos homens o investigue. Envio-lhe imediatamente seis
homens de reforço. Você terá escassez de elementos, mas não quero bo-
tar gente em excesso nisto, por enquanto. Eles provavelmente ainda não
sabem que estamos especialmente desconfiados. Se estiverem burlando,
podem julgar que existe ainda uma oportunidade para nos convencerem
a ir embora.
Weinberg parecia pensativo. Daria muita coisa para saber se êle
aprovava ou desaprovava, mas não poderia consentir a mim mesmo que
perguntasse.
— Estou fazendo tudo que posso para dar aparência de que viemos
parar aqui por uma inspiração do momento — retrucou Weinberg. — Gre-
chko tinha jeito de estar realmente surpreso em ver-nos.
— Isto é ótimo — disse eu. — Não permita que ninguém saia do
lugar antes de ter a certeza de que não leva consigo alguma coisa — mi-
crofilmes, amostras, seja o que fôr. Se não quiserem ser revistados, devem
apenas ficar ali, até que tenhamos o assunto resolvido. Estamos assumin-
do um risco e conto com você para reduzí-lo ao mínimo.
— Não se preocupe — disse Weinberg. — Se eu deixar que alguém
escorregue por mim, Justo Prieto o agarrará.
— Como está você se arranjando com o Sr. Prieto?
Weinberg encolheu os ombros e respondeu:
— Êle odeia os russos e provavelmente também me odeia, mas,
até agora tem sido cortês. Seu russo é tão fraco que não creio que os
russos saibam como êle se sente, Êle só o aprendeu faz seis meses e creio
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que quebrou a cabeça para isto.
— Fique de olho nele, também — disse, por minha vez. — Ainda
não sabemos muito a seu respeito, mas êle parece ter o jeito de ser exa-
tamente o tipo de agente que o senador Moro esperava que a CIA nos
enviasse. Informe-me imediatamente, se tiver alguma complicação.
Anunciamos o fim da comunicação e eu caí sobre o consolo e re-
passei o assunto inteiro. Toda decisão que tomei encerrava implicações
que deveriam paralisar-me. Estávamos em movimento através de um país
inexplorado e tínhamos de descobrir nosso caminho passo a passo.
Liguei para a embaixada em Moscou e o Chefe de Inspeção para
a URSS deu ao ministério soviético das Relações Exteriores a boa nova. O
pessoal no ministério do Exterior, que era responsável pelas relações com
inspetores de controle de armamentos, era muito polido e compreensivo
e nos garantiu que faria tudo ao seu alcance para chegar ao Dr. Rudnev. No
entretempo, eles telefonariam ao hospital imediatamente e solicitariam
ao seu corpo de funcionários para proporcionar aos nossos inspetores
completa cooperação. Semyon Novikov, diplomata que foi um dos nossos
favoritos durante a Conferência de Pequim, estaria a caminho do hospital
para aplainar as coisas, tão logo tivesse suas maletas arrumadas.
Encarreguei meu chefe-assistente da cabina de controle, voltei ao
escritório e ditei um memorando a Ralph Burnham, o diretor da ACDA.
Burnham recebeu o tape numa reunião da ONU, que estava assistindo em
Nova York, e ligou para mim, enquanto eu lanchava no escritório. Apro-
vou minha decisão, porém teve contato com a Casa Branca antes de me
chamar e o presidente queria que qualquer perturbação no hospital fos-
se reduzida ao mínimo. Se entrássemos no local e descobríssemos uma
violação, deveríamos mantê-la em segredo e deixar que o Departamento
de Estado se encarregasse do assunto. O presidente esperava ganhar a
eleição, mas ia ficando assustado. A contínua pesquisa de opinião pública
em profundidade, que os dirigentes de sua campanha vinham aplicando,
indicava que doze por cento das pessoas que iriam votar nele, só estavam
fracamente comprometidas. Debandariam para a oposição de uma hora
para outra, se alguma coisa exacerbasse seus temores, mais do que já o
fazia o Senador Moro. Se descobríssemos uma violação antes do dia da
eleição e a notícia se espalhasse, o presidente e o tratado estariam ambos
liquidados.
Às 22 horas no hospital, sendo 13 horas em Washington, a turma
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do trabalho diurno no hospital foi para casa e os inspetores revistaram
todo mundo à procura de registros e equipamentos escondidos. Isto levou
três horas e houve muito resmungo.
Às 2 horas da madrugada no hospital, 17 horas em Washington,
Weinberg e seus homens se instalaram no Iúgubre ritmo do serviço de
guarda. O ministério soviético do Exterior ainda insistia que estava pro-
curando o Dr. Rudnev. Telefonaram para o seu apartamento e mandaram
um homem bater à sua porta, porém ninguém respondeu. Nas cidades ao
redor do hospital, a polícia estava investigando os restaurantes e teatros.
Liguei para minha mulher, disse-lhe que não iria para casa e me
estirei sobre a cama de lona para dormir.
Meu assistente me despertou à meia-noite. O Dr. Rudnev voltara
ao hospital às 8,30 horas, pelo tempo do hospital. Alegava que êle e sua
mulher tinham passado a noite numa hospedaria à margem de um lago
a sessenta quilômetros do hospital... e Weinberg e Novikov falaram com
êle durante meia hora. Recusou escoltar os inspetores através das enfer-
marias de ambiente programado. O tratado era importante para êle, afir-
mava, mas era um médico e o bem-estar dos seus pacientes se situava em
primeiro lugar. Outros psiquiatras poderiam admitir a interrupção de um
programa, porém êle se recusava a assumir o risco. Os documentos, que
leu, indicavam que diversos pacientes potencialmente curáveis haviam
sido permanentemente prejudicados por psiquiatras que interromperam
seus programas.
A maior parte dos funcionários mais responsáveis do meu bu­reau
se encontrava a postos nos seus escritórios. Convoquei todo mundo que
pudesse ser de importância e nos reunimos na sala de conferências, gas-
tando hora e meia à procura de uma saída. Chegamos mesmo a conside-
rar o transporte aéreo de número suficiente de psicólogos americanos
para colocar um desempenhador-de-papel americano em cada ambiente
programado no hospital. Isto custaria ao governo milhares de dólares,
mas sabíamos todos que o presidente nos arranjaria o dinheiro, se isto
salvasse o tratado.
Infelizmente, era impossível. Sempre voltávamos ao mesmo pro-
blema. Se nada fizéssemos de semelhante, os russos ficariam com o con-
trole da inspeção. Concebivelmente, poderiam até mudar o equipamento
do laboratório de quarto em quarto, à medida em que nossos inspetores
fossem passando pelos ambientes programados do Dr. Rudnev.
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Tínhamos também de pensar na margem de segurança. Para se-
rem bem sucedidas, as inspeções de laboratório precisavam ter o míni-
mo possível de espalhafato. Eles poderiam destruir o equipamento e os
registros do laboratório, porém, nós não seríamos capazes de destruir a
informação na cabeça de Lesechko. Eu teria insistido no acesso imediato,
de fato, se não estivéssemos certos de que eles não sabiam do nosso inte-
resse especial. Como se achavam as coisas, agora que ali estávamos, não
lhes poderíamos dar mais do que uns poucos dias para estudar a situação.
Quando nosso adversário se defronta com uma situação estática para ata-
car e tem à sua disposição todos os recursos de uma moderna sociedade,
podemos presumir que êle é capaz de derrubar qualquer barreira que
ergamos, se lhe concedermos bastante tempo.
Às 3 da madrugada, consegui uma tríplice conexão com o Dr. Rud-
nev e com um assistente altamente situado do ministério soviético do
Exterior e nós tentamos alguma persuasão de alto nível. Não acreditava
que isto produzisse bom resultado, mas desejava dar uma espiada nos
homens com os quais lidava, antes de ligar para Burnham e recomendar
que usássemos uma das nossas inspeções irrestritas.
O Dr. Rudnev era homem corpulento, de óculos, com aspecto pro-
vavelmente agradável e informal na maioria das vezes, mas a situação
tornara-o irritado e constrangido. Para um homem treinado em todo tipo
de verificação cruzada e ceticismo, que constituem parte necessária da
ciência, êle estava sendo irracional de maneira muito suspeita. Ficou in-
dignado porque duvidei de sua palavra. Nada do que eu dissesse poderia
convencê-lo de que não desconfiava dele mais do que um homem na mi-
nha posição precisa desconfiar de todo mundo.
— Não sentenciarei vinte e seis seres humanos a uma vida de insa-
nidade — começou a falar. — Se consentir que os seus inspetores façam
bagunça naqueles andares, danificando os programas, terei destruído a
última esperança que existe para alguns desses pacientes. Nada estamos
escondendo. Cremos no tratado tanto quanto os senhores. Por que iria eu
querer arruinar um tratado que deu ao governo bastante fundos extra, de
modo que pode acrescentar vinte por cento ao meu orçamento?
Passamos e repassamos pelos mesmos argumentos, no mínimo
durante meia hora, antes de ficarmos tão frustrados e impacientes, que
decidi ser melhor desistir, antes que alguém criasse um incidente inter-
nacional. O diplomata russo se desculpou comigo pela complicação que
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estávamos tendo e eu lhe disse que tudo estava bem e assegurei ao Dr.
Rudnev que compreendíamos sua posição.
— Estou certo de que existe uma solução para isto — disse. — La-
mento ter de aborrecê-lo, Dr. Rudnev. Falarei com meus superiores e ten-
taremos alcançar uma solução que nos satisfaça a todos.
Weinberg voltou ao carro de comando e conversei com êle por
meio de nossa arrastada conexão particular. Êle estivera observando en-
quanto eu falava com o Dr. Rudnev.
Perguntei:
— Qual a sua opinião? Estão eles dizendo a verdade?
— Há algo de errado com ambos — respondeu Weinberg. — Gre-
chko está muito delicado e Rudnev demasiado excitado.
— E com relação a Novikov?
— Parece correto. Creio que se preocupa com o tratado tanto
quanto nós.
Acrescentei mais alguns triângulos aos meus rabiscos. Já havia to-
mado uma decisão, mas ainda devia vacilar por um segundo.
— Vou recomendar investigação irrestrita — comuniquei. — Esteja
preparado para tomar parte.
— Que será se eles nos detiverem?
Tornei a vacilar e disse:
— Esteja preparado para forçar sua entrada. Não sei se o presiden-
te lhe dirá para fazê-lo, mas esteja preparado. Não permita que ninguém
saia do lugar para nada. Se algo deve acontecer, não queremos que ultra-
passe o hospital mais do que deve. Ninguém, que você tenha aí, tem o
direito de falar acerca disso com quem quer que seja de fora do local. Se
Prieto ou algum outro desobedecer, estarão violando a segurança. Ponha-
o em estado de detenção e mantenha-o sob guarda.
— Alguma coisa mais?
— Como está você arranjado para abastecimentos? Pode comer e
dormir aí por mais alguns dias?
— Novikov determinou-lhes que colocassem todas as instalações
do hospital à nossa disposição. Podem tentar envenenar-nos, porém não
irão esfomear-nos mortalmente.
Sorri e disse:
— Faça por estar seguro de que eles lhe servem do mesmo caldei-
rão de todo mundo.
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Liguei para a suíte do hotel de Burnham, em Nova York, e o presi-
dente falou conosco enquanto voava de volta para Washington, regres-
sando de um comício de campanha em Denver. Presumimos que os russos
nos negariam acesso e teríamos de negociar com eles. Antes que as nego-
ciações começassem, deveríamos fazê-los saber que nos retiraríamos do
tratado se destruíssem o laboratório enquanto estivéssemos negociando
e nos tapeassem quanto à inspeção de pacientes verdadeiros. Se quises-
sem manter o tratado, poderiam provar que nenhum laboratório jamais
esteve escondido no hospital — que o seu corpo técnico e o nosso imagi-
nassem como fazê-lo — ou então poderiam mostrar-nos o laboratório e
fornecer-nos toda a informação que Lesechko obteve.
O Dr. Rudnev ficou lívido quando Weinberg exigiu formalmente o
acesso conforme estatuía o Artigo VI. Êle tocou com fôrça um botão de
alarma e os guardas de segurança do hospital se precipitaram para todos
os elevadores e caminhos de passagem no local.
— Protegeremos nossos pacientes com as nossas vidas — rugiu
Rudnev. — Tente se aproximar desses andares e nós atiraremos para ma-
tar.
Imediatamente notificamos o ministério soviético do Exterior.
— Esta é a primeira vez que algum inspetor foi ameaçado — disse
Burnham ao vice-ministro do Exterior, encarregado das relações com os
inspetores do controle de armamentos. — Compreendo que o Dr. Rudnev
se encontra sob excepcional pressão emocional, mas isto é um desafio a
todo o conceito de inspeção. Deve dizer-lhe que o consideramos como o
mais sério desacordo desde a ratificação do tratado.
Os chamados telefônicos zumbiam entre Moscou e o Dr. Rudnev.
Weinberg informou que Novikov fazia tudo ao seu alcance para manter
todos em calma e assegurar que ninguém viesse a ficar perturbado e co-
meçasse a atirar. Olhei o quadro diagramado e mandei mais cinco inspe-
tores se dirigirem ao hospital.
Burnham chegou a Washington de helicóptero logo antes do ama-
nhecer, e eu fiquei atrás dele ouvindo, enquanto tinha outra conversa-
ção com o vice-ministro do Exterior. O ministério do Exterior queria saber
agora por que nós tínhamos de inspecionar os andares superiores. Suas
conversações com o Dr. Rudnev, segundo afirmavam, convenceram-no de
que suas objeções encerravam certa validade.
— Em casos como estes — disse o vice-ministro do Exterior — sen-
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timos que o país inspecionador precisa oferecer ao país anfitrião alguma
prova razoável de que uma instalação ilegal pode estar escondida no lo-
cal em disputa. Por que deveria ser colocado em perigo o bem-estar de
tantos pacientes por motivo de uma inspeção rotineira? O Ministro do
Exterior deseja salientar que a própria inspeção poderia ser usada como
arma para golpear o moral e a eficiência.
Voltei para meu gabinete e tirei uma soneca. A Casa Branca era
agora a responsável. Eles me chamariam se necessitassem de mim.
À meia-noite e meia da noite seguinte, tempo do hospital, um Car-
ro girou para fora da estrada e subiu pelo desvio em direção da estrada
principal. Os guardas russos, ao sopé do morro, vacilaram após anima-
da discussão com os dois passageiros do carro e o inspetor americano, a
meio caminho acima, deteve-o de novo e passou a responsabilidade aos
inspetores postados diante da entrada principal. O motorista afirmou que
estavam ali para ver um psiquiatra, velho amigo deles. Tinham percorrido
noventa quilômetros da estrada e, então, descobriram que o seu amigo
fazia parte do turno da noite.
Prieto verificou a relação do funcionalismo e se certificou de que
o médico, com quem queriam falar, se encontrava realmente de serviço.
Um servente do hospital subiu para lhe transmitir o recado, um inspetor
introduziu os dois homens na antecâmara e ficou de guarda, enquanto
eles esperavam. “Drujba i Mir”, gritou um dos homens para os inspetores
de mpé junto do carro de comando. ‘’Amizade e Paz. Viva o Tratado de
Pequim.”
Prieto aguardou um minuto, por alguma razão, e, então, entrou na
antecâmara e disse ao inspetor para revistar os dois homens, à procura de
armas. Weinberg estava dormindo e a maioria dos inspetores presentes
ficou considerando Prieto como o segundo no comando. A cooperação
com os homens da CIA, designados para zelar por nós, constituía um dos
Dez Mandamentos que eu transmiti aos nossos inspetores. Nao queria
que o Congresso julgasse que a CIA precisasse mais autoridade do que já
possuía.
Os visitantes arrancaram pistolas de seus paletós, assim que o ins-
petor se aproximou deles. O inspetor caiu ao chão com uma bala no peito
e Prieto se lançou para trás de uma cadeira e começou a atirar. Um dos
russos foi derrubado, mas o outro mergulhou para trás de um móvel e
encheu a sala com uma nuvem de gás.
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Prieto cutucou o apito de emergência do seu cinturão. Rastejou
para fora da antecâmara com um lenço sobre a face, exatamente quando
quatro carros planadores cruzaram pela neve em direção ao hospital.
Os carros planadores subiram o morro numa noite sem luar. Os
guardas mal tiveram tempo para dar o alarma. As campainhas tocaram
nos cinturões de todos os inspetores. Os homens, que se encontravam
diante da entrada principal, se dispersaram, procurando proteger-se.
Bombas de gás explodiram. Balas varreram a entrada para carros e o pór-
tico. Os carros pararam e homens com máscaras contra gás saltaram e
atacaram a entrada principal.
Prieto se retirou para a antecâmara. Os homens se lançaram no
seu encalço através do gás e Prieto atirou neles, enquanto rastejava para
baixo de um sofá. O gás era um sonífero, mas êle se arranjou para malhar
os controles do elevador com balas, ao tempo em que ligava seu microfo-
ne e comunicava a Weinberg o que estava acontecendo.
Weinberg apenas havia saído de serviço. Achava-se deitado com
roupas de baixo num dos quartos do segundo andar, que Novikov fize-
ra o hospital providenciar para os inspetores e comia um sanduíche de
manteiga de amendoim e geléia — sua mãe lhe enviara a manteiga de
amendoim e a geléia de Vermont —, enquanto se punha a dormir com
uma história da guerra da Criméia. O alarma o arrancou de sua letargia e
êle ligou sua unidade de intercomunkação, agarrando as calças.
Tiros e gritos confusos o excitaram, enquanto se vestia e corria
para o saguão. Ouviu Prieto chamá-lo através do estrondo no sistema de
intercomunkação e apreendeu o suficiente para saber que os elevadores
estavam provavelmente fora de funcionamento. Fora do hospital, os ins-
petores, postados em torno da entrada principal, estavam trocando tiros
com os quatro carros planadores, ao tempo em que os guardas russos
colocados no sopé do morro os ajudavam.
Weinberg organizou os outros três homens, que se encontravam
fora de serviço, e começou a descer, a escadaria central, justamente quan-
do os invasores abandonaram os elevadores e começaram a subir. Gás e
balas voadoras enchiam o vão da escadaria. O guarda de segurança do
hospital, postado ao sopé da escada, tentou intervir, mas uma bala vin-
da de baixo matou-o. Weinberg arrastou uma cama de um dos quartos e
com ela obstruiu a escadaria, enquanto dois dos seus homens saiam para
bloqueá-la na outra extremidade do saguão.
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Os inspetores, que se achavam de guarda nos fundos do hospital,
vieram para dentro através de uma entrada de serviço e trataram de man-
dar bala para dentro da antecâmara em mais uma direção. O gás estava
sendo expelido pelo sistema de ventilação e os assaltantes pareciam des-
providos de bombas. Nos primeiros minutos da batalha, haviam enchido a
antecâmara com uma quantidade de gás três vezes superior à necessária.
Os assaltantes recuaram para fora do hospital e correram para os
seus carros planadores. Escaparam morro abaixo com balas silvando em
torno, enquanto os guardas russos aceleravam seus veículos e se punham
a persegui-los.
Em Washington, todo mundo no quarto de controle das transmis-
sões estava de pé. Quando um inspetor apertou seu alarma, o carro de
comando automaticamente se ligou com todos os pontos que o sistema
local de intercomunicação alcançava. O controlador designado para o hos-
pital avisou Moscou e a turma da noite na embaixada estava registrando
tudo o que o quarto de controle recebia.
Fui para o quarto de controle precisamente quando os assaltantes
estavam saindo. Burnham entrou com aspecto severo e ouviu por sobre
meus ombros, enquanto o controlador me punha a par do acontecido. No
fundo, o barulho no hospital crepitava no alto-falante.
Weinberg fêz um informe, enquanto Prieto se recobrava do gás.
Três inspetores ficaram feridos e o inspetor atingido pelo tiro na antecâ-
mara estava morto.
— Encontramos dois deles mortos — disse Weinberg. — Estamos
examinando-os agora para ver se achamos alguma coisa. Novikov vem fa-
zendo tudo o que pode para nos ajudar.
O embaixador e o chefe de inspeção para a URSS apareceram na
tela da embaixada. O seu aspecto era tão ruim quanto o que sentíamos. O
chefe de inspeção usava um roupão de banho e o embaixador fora arran-
cado de um jantar com roupa a rigor.
— Creio que todos podemos ver quais são as alternativas — disse
Burnham. — Ou os linhas-duras tentaram dar um golpe ou o governo tem
algo escondido ali que cheira muito mal. De qualquer modo que nos fa-
lem, foi uma facção contrária ao tratado. Se realmente foi, então ficamos
com duas possibilidades — ou existe algo escondido ali ou o fizeram para
provocar um incidente e, dessa maneira, arrebentar o tratado. Sugiro que
digamos ao ministro do Exterior que queremos interrogar Rudnev e Gre-
19
chko. Se eles falarem, não iremos perturbar pacientes verdadeiros.
O embaixador saiu da tela para ligar para o ministério do Exterior.
Weinberg manteve seus homens organizados e o chefe de Inspeção e eu
enviamos mais homens para o hospital. Burnham mandou uma mensa-
gem urgente à Casa Branca e o presidente solicitou-nos transmitir a Prieto
seus agradecimentos pessoais.
Pouco a pouco, os homens no quarto de controle se puseram a si
mesmos sob controle. O ministério do Exterior disse ao embaixador que
eles estavam mortificados e outro telefonema da Casa Branca informou-
nos que o primeiro-ministro Kutzmanov já havia se desculpado com o pre-
sidente através da linha quente. Todas as tentativas seriam feitas para ir
no encalço dos desordeiros que se opunham ao tratado, afirmou Kutzma-
nov. Um batalhão de tropas russas de elite já se movimentava em direção
ao hospital.
A polícia secreta despertou Rudnev e Grechko e os levou precipi-
tadamente para o hospital numa limusine oficial. Weinberg e Prieto os
interrogaram, enquanto Novikov observava. Grechko permanecia afável
e sereno e o Dr. Rudnev se derramou em toda explicação para o assalto
que seria capaz de imaginar. Era tudo uma tramóia para sabotar o tratado,
gritava Rudnev. Alguém estava tentando deixá-lo e ao seu hospital em
má situação. Alguns dos seus pacientes eram muito importantes e tinham
inimigos e alguém poderia estar tentando verificar se algum deles se en-
contrava no hospital. Por que não acreditavam nele?
Weinberg e Prieto compunham uma boa equipe de interrogatório.
Weinberg estava calmo e racional, enquanto Prieto perseguiu os dois rus-
sos como um animal solto de sua jaula. No fundo, Novikov estava sentado
numa poltrona e ouvia sem interromper. Novikov era reservado na maior
parte do tempo e eu freqüentemente me perguntei acerca do que êle
pensaria quando estive lidando com êle em Pequim, mas todos, que já
tivessem trabalhado com êle, ficaram convictos de que desejava o tratado
tanto quanto qualquer outro na Agência de Controle de Armas e de De-
sarmamento. Reagiu ao assalto com uma fúria que pareceu a Weinberg
como se excedesse os limites do embuste por várias magnitudes e, agora,
estava sentado atrás e deixava Prieto ir tão longe quanto quisesse. Não
me agradam as explicações simplistas do comportamento humano, po-
rém, de acordo com a ficha que possuíamos a seu respeito, Novikov tinha
tanta razão para odiar a guerra quanto qualquer outra pessoa sobre a Ter-
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ra. Perdera ambos os progenitores na Segunda Guerra Mundial e seu filho
mais velho fora morto num incidente na fronteira siberiana.
Nada podia abalar Rudnev e Grechko, entretanto. As ameaças de
Prieto apenas os irritavam e, com todo o seu conhecimento da terapia de
ambiente programado, Weinberg não era capaz de pegá-los num erro téc-
nico, que indicasse que havia algo de errado nas enfermarias de ambiente
programado.
— Façam o que quiserem — disse Rudnev após uma hora e meia.
— Subam e vejam por si próprios. Fiz tudo o que pude. A responsabilidade
é agora dos senhores.
O próximo passo, logicamente, consistia em interrogar o restan-
te do corpo de funcionários e verificar se todas as suas estórias combi-
navam. Isto levaria tempo, no entanto, de modo que Weinberg decidiu
tentar, ao invés disso, a aplicação de um detector mecânico de mentiras.
Montou uma câmara de piscar de olhos — o detector de mentiras em
que tínhamos mais confiança — e fotografou Rudnev e Grechko, enquan-
to eles olhavam para um mapa dos andares do hospital e respondiam às
perguntas. Os resultados não seriam concludentes, mas, com um pouco
de sorte, uma análise das fotos poderia fornecer-nos a informação de que
carecíamos para decidir se deveríamos insistir ou não na inspeção.
A despeito do assalto e de todas as outras provas que tínhamos
acumulado, ainda hesitávamos. Precisávamos avaliar o peso da prova em
confronto com as conseqüências de um engano. Seria uma terrível tra-
gédia se deixássemos que sabotadores arruinassem o tratado antes de
termos terminado o primeiro ano de experiência.
Seria precisamente tão trágico, não obstante, se consentíssemos
que a União Soviética desenvolvesse um vírus noventa e cinco plus, em
segredo. Na Casa Branca, o presidente estava redigindo uma mensagem
que não nos deixava espaço para recuo, se a União Soviética não, quises-
se aquiescer. Se não encontrássemos uma solução satisfatória em tempo
muito breve, nós nos retiraríamos do tratado.
A situação não era desesperadora. Tínhamos as fotos de piscar de
olhos e estávamos explorando diversas outras direções que poderiam en-
cher as medidas, cedo ou tarde. Entretanto, talvez passassem vários dias,
antes que encontrássemos uma solução, e não dispúnhamos de garantia
de que iríamos ter êxito. Gostasse ou não, tinha de ficar sentado à minha
escrivaninha e fitar a possibilidade de que o tratado fora uma ilusão, ao
21
invés de uma vitória. Não me sentia seguro de que fosse algo com que
pudesse conviver. Estava ficando demasiado velho para encontrar uma
nova esperança.
Justo Prieto tinha dezessete anos, quando Fidel Castro entrou em
Havana, a 1.° de janeiro de 1959. Sua família começou pensando que Cas-
tro era o salvador de sua pátria, conforme a entrevista dele com os agen-
tes da CIA, que o recrutaram na Guatemala, mas, em certo momento dos
dezoito meses seguintes, decidiu que Castro os traía e começou a atuar
no movimento clandestino anti-Castro. O irmão de Prieto morreu numa
batida, que se seguiu ao fiasco da Baía dos Porcos, e sua irmã passou os
últimos doze anos de sua vida numa prisão cubana. E o próprio Prieto
escapou de Cuba a dois saltos à frente da polícia de Castro e começou
a trabalhar para a CIA antes dos seus vinte anos. A luta clandestina pela
América do Sul, foi provavelmente, o capítulo mais sangrento e sujo de
toda a Guerra Fria e Prieto gastou sua inteira vida adulta envolvido nela.
Passou cinco anos combatendo os terroristas comunistas na Co-
lômbia e, depois disso, a CIA lhe deu o mesmo tipo de trabalho em meia
dúzia de outros países. Fase após fase, mês após mês, durante vinte anos,
viu os homens com os quais colaborava, baleados e torturados pelos agen-
tes comunistas. Foi testemunha ocular quando comunistas, infiltrados de-
liberadamente, converteram uma revolução provinciana, no Chile, num
banho de sangue e viu os cadáveres de centenas de homens, mulheres
e crianças, assassinados por homens que se supunha serem comunistas.
E nunca esqueceu que sua família fora destruída pelos seguidores de um
homem, que também se proclamava comunista. Tinha sido rejeitado toda
vez que solicitava uma missão em Cuba, porque seus superiores sabiam
ter êle prometido que mataria o homem que havia traido sua irmã.
Para um homem como esse só poderia haver uma explicação para
um tratado de controle de armamentos: era uma trapaça comunista e os
homens que, nos Estados Unidos, o haviam elaborado, ou eram imbecis
ou traidores. Não podemos argumentar contra as lições ensinadas por
esse tipo de experiência. Eu nunca fui a uma conferência de desarmamen-
to, nos anos anteriores ao tratado, sem recordar que os homens do outro
lado da mesa de negociações eram odiados, com muito boa razão, pelos
povos de todo o mundo. Seríamos bastante rápidos se nos surpreendês-
semos quando começamos a encontrar dificuldades com os homens da
CIA, que possuíam tal tipo de formação.
22
Weinberg levou minhas ordens a sério e Prieto estivera sob vigi-
lância de alguém, quase minuto a minuto. Weinberg tinha perdido três
homens, no entanto, e a excitação e sua própria fadiga afrouxaram sua
vigilância. Quando sairam da sala de interrogatório para revelar os filmes
e Prieto disse que ia subir para descansar, Weinberg assentiu com a cabe-
ça e deixou-o ir sozinho. Prieto obviamente carecia de sono. Mantivera-se
desperto durante vinte horas em cada vinte e quatro e estava revelando
a tensão.
Era um momento infeliz para afrouxar. O hospital ainda se achava
em estado de confusão. Os guardas de segurança do hospital eram essen-
cialmente serventes treinados para atender a tarefas de guarda noturna e
emergências simples, tendo estado de guarda durante trinta e seis horas
por motivo de uma crise que poucos deles compreendiam. No segundo
andar, ninguém substituíra o guarda na escadaria central, que fora assassi-
nado durante a luta, e nos andares superiores os guardas evidentemente
andavam pelos corredores intercambiando boatos. Graças ao sentimento
popular em favor do tratado, os conspiradores recearam contar aos fun-
cionários do hospital a verdade a respeito de Lesechko.
Prieto matou o guarda na escadaria sul com um tiro de sua pistola
munida de silenciador. Matou outro guarda no oitavo andar e, com uma
cacetada, deixou inconsiente mais outro no décimo, porém não provocou
alarma geral antes de alcançar uma barricada de três homens no décimo-
segundo andar e acender as luzes antes de abrir fogo nos guardas. Ao
tempo em que Weinberg soube que êle se achava à solta, Prieto já estava
nos aposentos de Lesechko tirando fotografias com uma câmara miniatu-
rizada, numa mão, enquanto com a outra mão trocava tiros com os assis-
tentes de Lesechko.
Os assistentes também tinham ficado de guarda, mas eram ama-
dores em confronto com um profissional e só havia cinco deles. Toda a
muamba tinha sido acumulada em três quartos — um quarto para Le-
sechko, uma instalação de computador, no décimo-oitavo andar e uma
combinação de quarto de dormir e de laboratório no décimo-nono — por
meio do corte pela metade do número normal de assistentes e da obten-
ção de quarenta horas de trabalho de cada vinte e quatro homens-hora.
Jaulas com animais se alinhavam pelas paredes do chão ao teto e os três
quartos se encontravam tão abarrotados com equipamentos, que faziam
uma cápsula espacial parecer um bom lugar para esticar as pernas. Se
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tivéssemos inspecionado de modo formal, eles poderiam ter destruído os
registros e nos apresentado um arranjo que pareceria exatamente o que
pretendiam que fosse — um ambiente programado para um bioquími-
co psiquicamente doente. E, subseqüentemente, poderiam retirar-se por
uns poucos meses e começar de nôvo.
A luta, provavelmente, não foi prolongada. Não havia espaço para
manobra e os bancos de trabalho eram as únicas coisas atrás das quais
algum deles poderia esconder-se. Prieto aparentemente começou a ati-
rar tão logo entrou no laboratório — ou não se preocupou com isso ou
concluiu que se tratava de uma instalação ilegal, assim que percebeu sua
semelhança com um laboratório — e dois dos assistentes caíram imedia-
tamente. Outro assistente correu escada abaixo e se escondeu com o Dr.
Lesechko, mas os dois assistentes restantes conseguiram sacar suas armas
e trocaram uns poucos tiros, antes que Prieto também os pusesse fora de
ação. Tinham sido treinados no tiro ao alvo e no combate pessoal, mas
do que soubemos depois, deduzo que nenhum deles tinha participado de
uma luta real. Não eram páreo para um homem experimentado, compe-
lido por emoções tão fortes que, pelo visto, se converteu num implacável
fanático.
Agarrou uma gaiola vazia e começou a enchê-la com os fichários
e cadernos de anotações, que lhe pareceram interessantes. Os alarmas
soavam por toda parte, mas Prieto teve tempo para pegar uma pilha de
meio metro de altura, no mínimo.
Correu para o saguão com a gaiola debaixo do braço. Uma bom-
ba de psico-gás deteve os agentes do ministério do Exterior, que vinham
subindo as escadas, e êle cobriu sua retirada, irrompendo pelos ambien-
tes programados, enquanto berrava com toda a força de seus pulmões
e atirava com sua pistola. Pacientes e desempenhadores-de-papel, em
fantásticas variedades de roupas e sem roupa, se acotovelavam pelo hos-
pital e corriam de um ponto para outro. Os guardas do hospital tinham
de escolher entre uma perseguição, que não entendiam e os horrores de
um tumulto em grande escala, que podia estourar no resto do hospital.
Os agentes do governo, em perseguição a Prieto, subitamente se viram
atirando através de portas fechadas em transtornados elementos do cor-
po de funcionários. Com uma crise amontoada sobre outra, e o chefe dos
administradores da instituição enclausurado na sala de consultas, a estru-
tura administrativa do hospital entrou em colapso.
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Weinberg já havia informado a Washington que Prieto se encon-
trava à solta. Tentou falar com Novikov, mas o russo recusou-o. Agentes
russos se encerraram no carro de comando e nossos homens e os deles se
vigiavam uns aos outros atentamente. A situação se encaminhava, numa
escalada, para uma crise internacional de primeira grandeza. Encontrava-
me no departamento de controle das transmissões ouvindo Weinberg e
falando com a Casa Branca e com a embaixada de Moscou. Burnham es-
tava a caminho.
Weinberg parecia aborrecido. Não o dizia, mas obviamente censu-
rava a si próprio. Relaxara sua vigilância por cinco minutos e, agora, devia
ficar sentado no carro de comando e esperar que a situação se consumis-
se em chamas. Nada havia que pudéssemos fazer, exceto dizer aos russos
que lamentávamos e cruzar dedos.
— Não sei o que fazer — disse Weinberg. — Os russos nada nos
dirão e não podemos conseguir que Prieto responda ao sistema de inter-
comunicação. Não sei como êle espera sair dessa. Eles estão fazendo en-
trar todos os homens de que dispõem, exceto os que estão ao redor de
nós. Parece que colocaram um par de homens em cada saída.
— Como parecem? — perguntei. — Têm aspecto hostil?
— Parecem mais como se estivessem intrigados.
Burnham entrou e ficou de pé atrás de mim, dizendo:
— Que diabo aconteceu?
Weinberg parecia embaraçado. Respondi:
— Êle escapou antes que o pessoal se reorganizasse.
O presidente se fêz presente na tela da Casa Branca e Burnham e
eu nos sentamos em outra cabina e o informamos. O presidente se en-
contrava tão transtornado como nós, mas decidiu não cancelar um debate
pela televisão com o Senador Moro que devia ter lugar dentro de apenas
três horas — às 21,30 horas, tempo de Washington. Seria uma provação,
mas êle ainda não queria que a imprensa soubesse que algo de especial
ocorria.
Dentro do hospital, Prieto abria caminho para baixo, andar por
andar. Vestira um roupão e pusera uma máscara, que havia roubado de
um desempenhador-de-papel numa das enfermarias de ambiente pro-
gramado. Avançou através de uma enfermaria de máxima segurança e
aumentou o caos libertando alguns dos pacientes mais violentos. Trinta
minutos depois de ter deixado o laboratório de Lesechko, rastejava sobre
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uma sacada nos fundos do hospital.
Prieto provavelmente seria capaz de escapar se saltasse, mas,
para uma pessoa com sua visão das coisas, isto era impossível. Se o tives-
sem abatido enquanto corresse morro abaixo, os russos ainda ficariam
conhecendo a maior parte dos resultados das experiências de Lesechko,
enquanto nós não saberíamos o suficiente para desenvolver uma imu-
nização. Êle queria pôr o tratado a pique, porém não pretendia deixar o
mundo à mercê do Kremlin. Ao invés, chamou Weinberg pelo sistema de
intercomunicação e fêz uma proposta.
Weinberg ouviu com a face inexpressiva. Prieto queria que êle va-
rasse através dos guardas russos e dirigisse o carro para debaixo da saca-
da. Uma vez o carro estacionado, êle devia sair e correr até que ficasse a
cem metros, no mínimo, distante do carro — bastante longe para que não
pudesse chegar ao carro antes dos guardas russos; no caso em que fizesse
uma falseta e atirasse em Prieto. Além disso, quando Prieto entrasse no
carro, o Senador Moro ou um dos seus melhores conhecidos auxiliares
devia estar junto a uma conexão de rádio e telefone.
Weinberg girou dentro do carro, de modo que parecia estar con-
versando com os três homens sentados consigo. Era um momento amar-
go, porém conseguiu refletir.
— Muito bem, Justo — murmurou: — Teremos o carro debaixo
da sacada, assim que contarmos com o Senador Moro. Espero que você
sobreviva para ver os resultados.
— Diga-o à sua mãe — respondeu Prieto. — Vá andando.
Weinberg ligou o microfone de intercomunicação e chamou Wa-
shington.
— Esta é uma recomendação de campo de batalha. Não disponho
de tempo para explicar. Consigam que alguém do lado de Moro fique jun-
to a esta conexão. Não lhe digam do que se trata, mas tenham-no pronto.
Vocês dispõem de cerca de dez minutos para fazê-lo.
Olhei de relance para Burnham. Weinberg se achava exausto e co-
metera gravíssimo erro, mas continuava sendo um dos meus melhores
homens.
— Sugiro que façamos o que êle diz — pronunciei-me.
Burnham estudou a face redonda na tela. Por um instante, êle e
Weinberg fitaram-se reciprocamente através de oito mil quilômetros
e vinte anos de experiência. Éramos ambos capazes de conjecturar que
26
Weinberg fazia uma solicitação que poderia significar o fim de tudo em
favor do que havíamos trabalhado.
— É você capaz de salvar o tratado? — perguntou Burnham.
— Tentarei — foi a resposta de Weinberg.
— Siga adiante.
A tela de Weinberg ficou em branco. Burnham continuou ali com
expressão dura no rosto. Eu me sentei numa cabina vaga e comecei a cha-
mar o posto de comando do Senador Moro. Weinberg se assegurou de
que os três homens no carro de comando estavam adequadamente arma-
dos e, então, passou a sussurrar ordens. Deviam ficar onde estavam, até
que contássemos com alguém da equipe de Moro ao lado. Depois disso,
se êle ainda estivesse falando com os russos, deveriam conceder-lhe mais
dez minutos. Se fizesse sinal, ou se os russos o atacassem, deviam romper
adiante e chegar a Prieto.
— Se precisarem atirar — atirem — disse Weinberg. — Façam todo
o necessário para ajudar Justo a escapar. Se o tratado se perder, precisa-
remos ter conosco tudo o que êle conseguiu.
Os russos viram-no andando pela neve, em direção do seu carro de
comando. Um agente do ministério do Exterior se pôs à sua frente, assim
que êle se aproximou o suficiente para ouvir o rádio do carro dos russos.
— Preciso de uma conferência particular com o chefe dos senhores
— disse Weinberg. — Digam-lhe que é urgente.
O agente transmitiu a mensagem e Weinberg aguardou, enquanto
Novikov falava aos homens sentados com êle no carro: dois homens da
polícia secreta e um oficial do exército. O hospital estava iluminado de
cima abaixo e homens corriam ao redor como se o lugar estivesse debaixo
de raios. Dois dos pacientes violentos, que Prieto pusera em liberdade
corriam à solta pelos andares inferiores.
Novikov saiu do carro e se dirigiu gravemente para Weinberg. Fêz
um gesto e os russos, de pé, em torno do carro, recuaram para fora do
alcance da voz.
— Que é que o senhor deseja? — perguntou Novikov.
Weinberg explicou a situação tão rápida quanto podia.
— Não preciso decifrar o problema para o senhor — disse êle. —
Todos em Washington afirmam que o senhor trabalhou arduamente para
obter o tratado. Se deixarmos que Prieto escape daqui com o que alcan-
çou, o tratado ficará liquidado. Se êle não escapar com os registros, por
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outro lado — se permitirmos que os senhores conservem tudo o que Le-
sechko tem em sua cabeça —, então o seu país terá o meu à sua mercê. Há
uma única maneira pela qual podemos salvar o tratado — permitam que
nós fiquemos com os registros e nós manteremos a violação em segredo.
Se o senhor me ajudar a tirar os registros dele, é o que faremos.
Novikov olhava dos seus homens para nosso carro de comando.
No carro de comando russo, o oficial e os dois agentes da polícia secreta
observavam a conversação.
— Como é que o senhor sabe que era um laboratório ilegal? — in-
dagou Novikov. — O programa do Dr. Lesechko requeria um laboratório
simulado.
— Prieto leu-me alguma coisa do que está nos registros. Mesmo
que esteja enganado, a evidência é bastante boa para que presumamos
que êle está certo. Washington tem conhecimento de que um laborató-
rio pode ter estado aqui e que os senhores podem ter desenvolvido um
virus noventa e cinco plus. Creio que o senhor é capaz de imaginar o que
acontecerá se os homens de Washington julgarem que os senhores têm
condições de imediata produção em massa do virus, enquanto nós não
sabemos o suficiente a seu respeito para desenvolver uma cura. A corrida
de armamentos, que apenas acabamos, parecerá um jogo de xadrez.
— Que quer que eu faça?
— Deixe que eu chegue primeiro a êle. Diga aos seus homens para
não me atrapalharem. Diga-lhes para não atirar de longe. Não interfiram
com relação ao nosso carro, tampouco.
Novikov pôs suas mãos atrás das costas e fitou o hospital. Wein-
berg aguardou, enquanto êle refletia.
— Alguém em meu país montou este laboratório — disse Novikov.
— Crê o senhor que foi o meu governo que o fêz?
— Para os nossos fins, isto não importa.
— Prieto continuará com conhecimento do assunto. Pode êle reve-
lar ainda a informação, mais tarde?
— Não terá provas.
— Será que certa gente em seu país manterá sua palavra?
Weinberg engoliu. Contava não precisar comprometer-se a si pró-
prio. Não obstante, já havia tomado uma decisão, antes de deixar o carro.
Se Prieto chegasse a entrar em contato com alguém que trabalhasse para
o Senador Moro, com ou sem prova, isto poderia ser suficiente para in-
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fluenciar a eleição.
— Êle está desobedecendo ordens — respondeu Weinberg. — Se
eu o prender e êle tentar resistir...
Novikov balançou sua cabeça cansado.
— O senhor é um homem jovem. Tem certeza, agora, tem certeza
do que está dizendo?
Weinberg hesitou de novo. Apenas uns poucos dias antes, êle e
o Dr. Shamlian conversavam acerca de Guerra e Paz, enquanto viajavam
através do interior russo e êle mencionou a passagem, que se gravara em
sua mente desde que a lera pela primeira vez. Toda vez que os homens
falam sobre o bem da humanidade, afirmara Tolstoi, estão sempre se pre-
parando para cometer um crime.
— Posso fazer o que devo — respondeu Weinberg. — Não gosto
disso, mas é a única alternativa que nos resta.
Novikov balançou sua cabeça de novo.
— Quando quer entrar no edifício?
— Tão logo tenha falado com meus homens.
— Não desperdice um segundo. Farei o melhor ao meu alcance,
mas posso ter problemas.
Weinberg retornou ao seu carro, enquanto Novikov convocava al-
guns dos homens do ministério do Exterior e começava a transmitir-lhes
instruções. Novikov podia falar com a maioria dos seus elementos pelo
seu sistema de intercomunicação, mas os guardas do hospital precisavam
ser atingidos por um mensageiro.
Weinberg explicou a situação aos inspetores no carro. Deviam ir
em frente cinco minutos depois que êle entrasse no hospital. Se tudo cor-
resse bem, estaria sobre a sacada no momento em que eles chegassem
ali.
Quando se voltou, Novikov se encontrava falando com um dos
agentes da polícia secreta. O oficial do exército e o outro agente da polícia
secreta saíam do carro.
Weinberg se encaminhou para o hospital. Vários agentes do minis-
tério do Exterior entraram à sua frente e começaram a difundir a ordem.
Quando olhou para trás, Novikov sacudia sua unidade de intercomunica-
ção e discutia com o oficial do exército e com os policiais. Um dos agentes
da polícia arrancou a unidade de intercomunicação da mão de Novikov e
o oficial do exército gritou alguma coisa.
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Weinberg cruzou a antecâmara correndo. Um dos inspetores ame-
ricanos postados ali tomou posição atrás dele, quando lhe bradou uma or-
dem, e ambos subiram às pressas as escadas, com suas pistolas nas mãos.
— Ninguém ao alcance da pistola — gritavam os agentes do minis-
tério do Exterior. — Deixem passar os americanos. Fiquem fora do alcance
da arma.
Os russos sairam do caminho. Atrás deles, dois inspetores ocupa-
ram posições ao sopé da escada.
Atravessaram correndo o corredor de trás e pararam diante do es-
critório que abria para a sacada onde Prieto se escondia. Não havia russos
à vista. Se o carro chegasse no prazo marcado, eles estariam indo muito
bem.
Weinberg pegou uma faixa de explosivo da caixa de equipamentos,
que retirara do carro, e fixou-a na fechadura. O ruído indicaria a Prieto
que êle estava chegando, mas não dispunha de tempo para gastar com
alternativas. Do que percebera da discussão entre Novikov e os outros
três russos, devia provavelmente esperar visitantes a qualquer minuto.
Sua mão começou a tremer e êle parou e se pôs a si mesmo sob
controle. A despeito do que dissera a Novikov, não estava preparado para
isto. Gostava de Prieto — simpatizava com toda pessoa que julgasse com-
preender — e seu treinamento lhe ensinara quão pouco os homens são
responsáveis pelos seus atos. Tornara-se médico porque queria curar e
um inspetor de controle de armamentos porque queria ajudar a pôr um
fim aos massacres.
Estava assustado, também: Nunca fora baleado em sua vida, mas
Prieto era um combatente treinado, que acabava de provar sua excepcio-
nal competência.
Um russo surgiu no fim do corredor. O outro inspetor brandiu sua
arma e o russo sumiu.
Weinberg puxou a fita detonadora para fora do explosivo e recuou.
A explosão martelou as paredes do corredor. A porta ficou sem as dobra-
diças quebradas e êle caiu num joelho e escancarou-a.
Encontrava-se diante de um gabinete externo. À luz dos corredo-
res, pôde ver outra porta poucos passos à frente. Ao tentar girar a maça-
neta, verificou que também se encontrava fechada.
Vozes soavam alto no saguão. Um inspetor berrou uma advertên-
cia da escada. Armas deflagravam.
30
Êle pregou uma faixa de explosivo e sacou o detonador. De novo,
balançou a arma num escritório vazio, procurando um alvo. Poderia expe-
rimentar a porta do outro lado do quarto. A única janela no local era uma
vidraça estreita e vertical, longe, de um dos lados da sacada. Não era evi-
dente que estivesse aberta e êle só poderia atirar para a sacada se fosse
capaz de incliná-la para fora. Prieto escolhera seu buraco de rato com a
maestria de um artista.
O inspetor do saguão correu para dentro do escritório externo e
caiu pesadamente atrás de uma escrivaninha. Balas ricocheteavam pelas
paredes do corredor. Turbinas de carros planadores chiavam.
Weinberg pulou para dentro do escritório interno e bateu a porta
atrás de si. O inspetor, do lado de fora, gritou-lhe para se apressar.
Weinberg ficou de um lado da porta da sacada e varou a fechadura
com tiros. Duas balas atravessaram a madeira do outro lado. Prieto sibilou
qualquer coisa em espanhol.
Seus olhos caíram numa cadeira giratória. Puxou-a para si e er-
gueu-a enquanto abria a porta. Prieto grunhiu e êle se colocou de lado.
A arma de Prieto brilhou em seu rosto. Weinberg atirou e Prieto
atirou, respondendo. Uma bala bateu com violência no seu peito. Ouviu
Prieto ofegar e ambos atiraram de novo. Uma bala estrondou acima de
sua cabeça, enquanto delisava agachado pela porta.
Os inspetores no carro gritavam para êle. Estava cedendo, mas ti-
nha bastante consciência para compreender que Prieto fora abatido e que
a gaiola com os registros se encontrava no chão, diante dêle.
Caiu de joelhos e levantou-a. Antes que perdesse a consciência,
conseguiu empurrá-la por cima da borda da sacada. Os homens no carro
a agarraram e saíram com ela, tendo dois carros planadores russos no seu
encalço.
A caçada durou meia hora, no máximo. Assim que o Dr. Shamlian
esquadrinhou os registros e transmitiu os dados importantes a Washing-
ton, ficamos com a vantagem. Novikov reassumiu o comando e os médi-
cos russos levaram Weinberg às pressas para a sala de operação. Médicos
voaram de ambas as capitais para salvar sua vida. Acabou com um novo
pulmão e com uma injeção diária para corrigir a avaria cerebral, mas so-
breviveu.
Negociamos em segredo através de toda a campanha presidencial.
Durante semanas, examinamos a situação tão exaustivamente, quanto no
31
começo havíamos examinado o tratado. Defrontávamo-nos com o mesmo
mistério. Queria o governo soviético o tratado ou os homens do Kremlin
haviam planejado a violação desde o início? Num mundo em que a rápida
mudança tecnológica constituía a norma, seríamos nós capazes de poli-
ciar um acordo de controle de armamentos, se o nosso adversário estives-
se determinado a violá-lo?
Os acontecimentos no hospital nada provavam. A União Soviéti-
ca pretendia que a violação fora cometida por uma facção militarista, o
que se adequava aos fatos tão bem como a teoria de que a violação ha-
via sido dirigida pelo Kremlin. Mesmo a tentativa de último minuto para
deter Weinberg foi explicada como atitude espontânea de três homens
superzelosos, que pensaram haver Novikov se excedido em sua autori-
dade. Os três homens foram condenados à prisão, como sucedeu com
Lesechko, Rudnev e Grechko, mas que provava isto? Agentes clandestinos
freqüentemente aceitaram o perigo sabendo que seriam prodigamente
recompensados, se tivessem êxito e repudiados e severamente punidos,
se fracassassem.
Ainda que a violação tivesse sido planejada pelo governo soviéti-
co, Kutzmanov e os seus auxiliares poderiam tê-lo feito para acalmar os
linhas-duras e os militares, que estavam ficando nervosos com relação às
nossas vitórias na África e na América do Sul e queriam uma boa arma de
reserva, se nos deixássemos arrebatar e arremetêssemos em direção à
sua pátria. Paradoxalmente, uma violação poderia constituir prova de que
um governo pretendia preservar o tratado.
O presidente tomou sua decisão logo depois do Natal. Manterí-
amos a violação em segredo e nos aterraríamos ao tratado. Saímos das
negociações com mais três inspeções irrestritas por ano e um aumento
do numero dos inspetores que poderíamos colocar na União Soviética.
Os registros oficiais assinalam que Prieto morreu em acidente.
Burnham solicitou ao presidente conceder-lhe alguma espécie de honra-
ria póstuma, mas o presidente declinou. Sentiu que seria um gesto vazio,
uma vez que Prieto não possuía parente vivo e isto poderia atrair a aten-
ção, pondo em perigo tudo o que havíamos levado a efeito.
Não obstante, todos pensávamos que era estúpido odiar homens
que se nos opunham. Trabalhávamos com informação inadequada e sabí-
amos que se passariam anos ou mesmo décadas antes que estivéssemos
seguros de ter tomado as decisões corretas. Justo Prieto era um homem
32
valente. Fêz as escolhas, que lhe pareceram acertadas e se agarrou a elas
até o fim.
Em março passado, inspetores soviéticos entraram numa prisão
em Illinois e descobriram que o diretor e uma fundação isenta de impos-
tos estavam operando um laboratório clandestino e desenvolvendo uma
nova técnica de guerra psicológica. Nos anos que se seguiram...

UMA ESTRANHA ESTÓRIA


O conto de Ron Goulart “Operação Salvamento”, que leremos no n.° 8 do
“Magazine de Ficção Científica” é algo estranho. Bill Harriman, o detetive, não se
dava bem com máquinas e jamais poderia se safar de uma encrenca atirando um
aquecedor elétrico na banheira. Mas cada adversário só pode ser apanhado de
um certo modo...

A ESPOSA GOSTARIA DESSA. . .


Um marido apaixonado pela esposa doente pode encontrar empecilhos
intransponíveis para oferecer a ela a coisa mais simples e que mais lhe agrada. É o
que acontece no conto “A Notícia mais Maravilhosa”, de Len Guttridge que vocês
lerão emocionados no nosso próximo número.
33
A BOLHA

J. W. Schutz

Trad. de Noé Gertel

Às nove horas e três minutos da noite, tempo do Pacífico, um me-


teoro se chocou com a recém-concluída plataforma espacial americana,
exatamente quando passava por cima da costa da Califórnia. A platafor-
ma, com seu equipamento e pessoal, se converteu instantaneamente
numa enorme bola de fogo, que se expandia no espaço à medida que se
arremessava em direção a leste, produzindo a chuva de meteoritos mais
intensa do que jamais vira o homem durante séculos.
Jovens namorados se extasiaram diante da beleza do espetáculo,
porém, muitas daquelas riscas de fogo brilhante eram corpos vaporizados
de seres humanos. Havia cinqüenta e dois homens dentro e perto da pla-
taforma espacial, quando se deu o choque com o meteoro.
As primeiras informações, nas estações de TV e de rádio da Cali-
fórnia, chamaram a atenção para “uma incomum chuva de meteoritos”.
Depois veio a frase: “Algo aconteceu à plataforma espacial dos Estados
Unidos!”. E, quase antes de se ter extinguido a chuva de fragmentos lumi-
nosos, a rede nacional de rádio e telecomunicações bombardeava o país
com a notícia de que todo contato com a estação espacial se perdera e
que os funcionários governamentais temiam o pior.
Carecendo de informação no momento, as estações apresentaram-
filmes de lançamentos anteriores e estatísticas: quantos bilhões desapa-
receram com a estação destruída; quantos milhões de homens-hora havia
custado; os nomes dos três homens que morreram na fatídica tentativa
34
de alunissagem de 1971; o sempre crescente papel desempenhado pela
Deane Aircraft Corporation nos programas espaciais norte-americanos.
Em Lakeland, às quatro e quarenta da madrugada, o chamado te-
lefônico de um amigo despertou a bela morena Georgia Lighton, secre-
tária do presidente da Deane Aircraft. Sem esperar pela convocação do
seu patrão, ela se vestiu, pegou seu carro e correu, através da cálida noite
da Flórida, para o escritório. Não se surpreendeu ao encontrar Theodor
Deane já no local, mexendo numa pilha de papéis.
Êle ergueu a cabeça, quando ela entrou, e saudou-a: — Bom dia,
Georgia.
— Bom dia, senhor — ela notou as sombras escuras debaixo de
seus olhos. — Preparo-lhe uma xícara de café?
— Sim, obrigado. Boa idéia. Depois, veja-me todos os relatórios
sobre o andamento dos pássaros que temos em construção. Talvez tenha-
mos de mandar para cima um foguete. Não mais encontraremos corpos,
mas Washington certamente há de querer dar uma olhada.
Enquanto Deane sorvia seu café, Georgia o estudava. Vira-o em
todos os estados de espírito possíveis: alegremente aceitando imensos
riscos, trabalhando então, como um demônio, para realizar seus projetos
com segurança; em fúria violenta diante de algum caso de estupidez; ten-
samente concentrado numa análise matemática; estalando de excitação
ao descer com seu jato executivo num campo demasiado pequeno para
este. Nunca, porém, o vira como agora, cheio de preocupação e desalen-
to. Embora tivesse treze anos a menos do que seu patrão de quarenta e
oito, desejou aninhar em seu seio aquela cabeça de puro branco, com a
faixa isolada de negríssimos cabelos.
Êle convertera a maior parte de um grande império aeronáutico
para fins exclusivamente espaciais e apaixonadamente queria ver homens
botando o pé na Lua e nos planetas próximos.
De repente, Deane levantou os olhos, dizendo em voz baixa:
— Conheci todos os homens naquela plataforma. Dois deles saí-
ram da Deane Aircraft.
Os funcionários começaram a chegar com as últimas “extras” ou
com uma palavra ou outra de compaixão. Tranqüilamente, Deane pôs a
maioria deles a trabalhar. Às seis e trinta, o telefone soava quase continu-
amente e, às sete, o escritório inteiro se achava à disposição. Havia quase
um rádio em cada escrivaninha e grupinhos se aglomeravam em torno de
35
vários aparelhos de televisão.
Crescia uma forte reação pública ao desastre. Às dez daquela pri-
meira manhã, todos os comentaristas de rádio e TV eram mais ou menos
críticos com relação ao programa espacial do governo. Comentário típi-
co: o programa havia andado excessivamente depressa. Não se concedeu
tempo suficiente para estudar os perigos do espaço antes de invadí-lo em
tão grande escala. Uma estação espacial era como uma “pata choca” e
teria sido melhor tentar atingir a Lua e os planetas com pequenas naves
tripuladas (a despeito da tragédia lunar de 1971). O programa custou ao
contribuinte mais do que estava ao seu alcance, enquanto havia doença,
fome e ignorância no mundo!
Aparecia uma observação ocasional também — com menos lógica
do que nos outros comentários — acerca de excessivas encomendas e
dinheiro concedidos à Deane Aircraft e que, de algum modo, toda a estó-
ria era culpa da Deane, enquanto o povo americano acumulava contas a
pagar.
Conquanto Deane trabalhasse num ritmo de matar, naquele pri-
meiro dia, para, preparar um veículo para entrar em órbita, e tivesse via-
jado duas vezes de helicóptero a Cabo Kennedy, antes do anoitecer, en-
ganava-se quanto ao que supunha mais certo: Washington não solicitou
uma imediata missão de pesquisa no espaço. Deane finalmente ligou para
a NASA, querendo saber onde emperrava o assunto e soube que ninguém
autorizaria nada sem muita discussão anterior. Afinal de contas, disseram,
não havia possibilidade de salvar coisa alguma depois de tantas horas. Por
que não aguardar até que a matéria fosse completamente estudada nos
seus fundamentos, antes de assumir novos riscos fora da atmosfera?
Deane ligou, então, para Isador Bergenstein, velho amigo, de Wa-
shington, a fim de saber o que acontecia.
— Washington está sendo apedrejada — contou-lhe Izzy. — O povo
vem telefonando e telegrafando para os seus representantes no Congres-
so, de Ty-Ty, Georgia, Oriole, Nebraska, para lhes dizer que não gaste um
centavo a mais no espaço. Fala-se na organização de uma marcha em dire-
ção à Casa Branca. Alguns agitadores já apareceram com cartazes. Não há
ninguém, que tenha sido eleito em qualquer canto do país, que arrisque
um único voto antes que tenha as coisas esclarecidas.
— Compreendo. Então, Izzy, sua opinião é que não há possibilidade
de uma tentativa de salvação?
36
— Francamente, não. Além disso, diria que o espaço morreu. Me-
lhor passar para algum outro negócio.
Nas semanas seguintes, a oposição à atividade espacial do gover-
no cresceu, inevitavelmente, atingindo enormes proporções. Havia quem
dissesse que os esforços para invadir o espaço eram contra a Natureza ou
contra outras coisas, mas o que importava mais eram os dólares e os cen-
tavos. O povo, há muito livre de ameaças e não particularmente próspero,
cansou-se de pagar as contas e nada obter senão um ocasional jornal ci-
nematográfico.
Para Deane, a mais clara indicação foi o preço das ações da Deane
Aircraft na Bolsa de Nova Iorque. Desde o dia do desastre com o meteoro,
a cotação desceu ininterruptamente. Encontrava-se agora na metade do
seu valor precedente e bem abaixo da lucratividade dos acionistas.
Os trabalhadores da Deane se achavam completando contratos de
peças de equipamento espacial, porém, não chegaram pedidos de Cabo
Kennedy, nem qualquer palavra da NASA. Que aconteceria se o governo
saísse do espaço? A Deane Aircraft ficaria em dificuldades. Nos negócios
espaciais, o governo era o único cliente da companhia. A cinco de abril, a
coisa explodiu.
O presidente, pela televisão, comunicou ao público que uma “agô-
nica reavaliação” tornara claro que a conquista do espaço tinha, no mo-
mento, custo excessivo para o povo. O de que carecíamos, afirmou, era
reconhecer que as necessidades da defesa nacional já tinham sido ade-
quadamente preenchidas, o que não se dera com as necessidades de saú-
de pública, prevenção do crime, educação, habitação e outras igualmente
prementes. Em conseqüência, a administração decidiu voltar sua atenção
para tais problemas e, quanto ao presente, entregar aos programas dé
ciência pura a tarefa de fornecer meios para a solução dos problemas da
exploração interplanetária em uma fase posterior. Por isso, preparava-se
para enviar ao Congresso uma proposta, etc, etc.
Mal acabara a transmissão e Deane recebia uma comunicação do
estado-maior da NASA, dizendo-lhe que deveria considerar as “cláusulas
de ressalva” de todos os contratos relacionados com o espaço como ope-
rantes no momento. Nos próximos dias; uma equipe iria discutir com êle
o cancelamento dos acordos.
Quando desligou o telefone, Georgia perguntou:
— Complicações, Sr. Deane?
37
— Sim, Georgia. Grande complicação. Precisarei ir a Washington
para meter bom senso em certa gente.
Duas horas depois, encontrava-se em viagem.
E, dois dias mais tarde, voltava a Lakeland a tempo de se encontrar
com uma equipe de três especialistas do governo em negociações sobre
contratos cancelados.
Deane lutou para reter dos contratos o suficiente para manter seu
pessoal ocupado, mas a equipe governamental, embora escrupulosa-
mente leal e correta, era inexorável. Tempo e dinheiro foram concedidos
para concluir certas partes que já estavam “no cano”; somas específicas
foram concedidas para reconverter a indústria de Deane à produção de
aviões comerciais (conquanto Deane quase se recusasse a discutir esta
questão); e somas foram postas à parte para negociações similares entre
Deane e os seus subcontratantes.
O pessoal de produção ainda trabalhava numa jornada de oito
horas, em turnos de cinco dias por semana, mas os homens sabiam que
se tratava de produção já encaminhada e destinada a acabar a qualquer
momento. Alguns trabalhadores já falavam, com desalento, acerca de en-
contrar outros empregos, quando a Deane Aircraft começasse a despedir
empregados.
Ted Deane se preocupava com eles e por eles.
Certa vez, passando pela sua escrivaninha, viu a secretária curvada
sobre as cotações mercantis no Times.
— Tem alguma ação da Deane Aircraft, Georgia?
— Sim, senhor.
— Pensa vender alguma?
— Ficarei satisfeita se não precisar, Sr. Deane.
— Não é exatamente o que tenho em vista. Mas certa gente pode
supor que, com o governo abandonando os negócios espaciais, as ações
da Deane Aircraft não valeriam grande coisa.
— Quando uma ação está em baixa, diz meu irmão, é tempo de
comprar, não de vender. Na realidade, acabo de comprar mais algumas.
Foi o que fizeram quase todas as moças do departamento de estenografia.
— Hum... Teremos de recuperar estas ações agora. Será que posso
permitir que baixe?
Mesmo com as despedidas começando a ser necessárias, repug-
nava a Deane considerar a reconversão à produção aeronáutica comum.
38
Poderia fazê-lo e competir duramente neste terreno, porém, desistir do
espaço e se tornar de novo apenas outro fabricante de aviões — embora
dos melhores — significaria uma espécie de fracasso. Também significaria
produção reduzida durante anos, enquanto as vendas não se reestrutu-
rassem; significaria despedidas, programas de retreinamento, até mesmo
greves — coisas que a Deane Aircraft nunca precisou considerar seria-
mente.
Tampouco quis considerá-las agora. Preferia fazer outra tentativa
para trazer o governo de volta ao jogo, mesmo que fosse em escala re-
duzida. Mas os políticos não aceitariam o desafio que êle lhes lançava.
Deane chegou a dar um murro na sua escrivaninha diante de um VIPI
(Very Important Person Indeed — Pessoa Muito Importante Certamente)
e gritou para êle:
— Com os diabos, eu gostaria de lançar por minha conta uma pla-
taforma espacial e mandar vocês todos para os infernos!
O VIPI o encarou com calma porcina e disse:
— Muito bem. Por que não o faz?
A pergunta foi como um balde de água fria na cabeça de Deane,
mas refrescante, ao invés de paralisante. Deane apertou a mão do seu
visitante de modo absorto e saiu.
Em Lakeland, convocou uma reunião dos chefes de departamento.
Havia crepitação no ar, à qual eles reagiam indagando da surpresa que o
chefão tinha dentro da manga.
Deane não os decepcionou.
— Senhores — disse êle — somos nós que controlamos a Deane
Aircraft. Eu, em primeiro lugar, estou interessado em “botar para que-
brar”. A Companhia deveria ser rebatizada de Deane Spacecraft (Deane
Espaçonáutica). Duvido que ainda saibamos construir um pássaro com
asas. Até aqui, no entanto, estivemos trabalhando para o Grande-Irmão.
Aprendemos como cumprir a tarefa, mas era o governo que entrava com
o dinheiro. Agora, o governo não quer mais pagar os empreendimentos
espaciais.
Deane fêz uma pausa. Seu pessoal olhava intrigado.
— Haverá uma lei da natureza — resumiu êle — que afirme ser
somente o governo capaz de montar uma plataforma espacial? Por que
impedir que Deane Aircraft o faça?
Todo mundo tentou imediatamente usar da palavra. Foi Randolph
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Park, veterano chefe de produção, quem dominou a assembléia.
— Não creio que exista tal lei da natureza — disse êle com estron-
do — mas há certas leis de bom senso nos negócios, que são um bocado
difíceis de contornar. Não sei durante quanto tempo resistiremos. Isto exi-
ge mais dinheiro do que temos para montar alguma espécie de satélite.
Suponhamos, porém, que pudéssemos dar-nos a este luxo. Que sentido
tem que a companhia devore nosso próprio capital para comprar nossos
próprios produtos?
— Ora, que é que há? — interrompeu Deane. — A Comsat (Com-
panhia de Comunicação Via Satélite) dá lucro, não dá? Aí, exatamente, há
lugar para competição. Posso pensar numa dúzia de outras coisas. Você
também pode. Universidades bem equipadas com departamentos de as-
tronomia, por exemplo. Estações de TV cobrindo o país inteiro e metade
do mundo.
Jim Briggs, o jovem diretor da divisão jurídica, se manifestou:
— As leis da natureza não são da minha competência, mas o são as
leis produzidas pelo homem. Já posso imaginar os rapazes de Washington
arranjando às pressas uma interdição após outra contra nós por invadir-
mos sua jurisdição particular. O grande lobo mau da Segurança Nacional
não demoraria em uivar à nossa porta.
— Não poderá fazer nada contra nós, Jim, antes que realmente al-
cemos vôo. E depende de você manter essa gente longe de nós, até então.
Não. Creio que Randy pôs o dedo no lugar certo. Dinheiro. Isto custará um
dinheirão.
Voltando-se para os outros, Deane prosseguiu:
— Infelizmente, a maioria de nós está começando a dispor de mui-
to tempo excedente. Usemos parte dele para desenvolver a coisa até ver
se podemos levá-la para a frente. Se tentarmos e fracassarmos, desapa-
receremos de um só golpe, em vez de sangrar lentamente até morrer. Se
tivermos sucesso, Deane Aircraft se reerguerá. Do mesmo modo, a explo-
ração espacial. E talvez, também, a confiança americana. Ponhamo-nos
em ação.
Embora leais a Deane, quando a assembléia começou, a maioria
dos participantes tinha sérias reservas.
Imediatamente depois da reunião, Deane partiu num giro em
volta do mundo para se encontrar com administradores de aeroportos em
diferentes países. Sua companhia controlava, a Linhas Aéreas Deane, que
40
operava em todos eles. Sua idéia consistia em aumentar o equipamento
de controle das torres, de modo que uma rede de rastreamento de pouco
custo poderia entrar em operação imediatamente, quando a companhia
decidisse subir ao espaço.
Nuns poucos lugares, os funcionários se empertigaram e trouxe-
ram à baila as velhas frases acerca de “violação da soberania nacional”.
Quando se tornou claro que nenhum governo estrangeiro tinha algo a ver
com este esquema, que Deane estava botando dinheiro nos seus aeropor-
tos para jogar, que o assunto não lhes custaria concessões políticas, e que
não seriam divulgadas as vantagens que teriam, como novos veículos para
seus exércitos, eles capitularam.
Ao regressar da viagem, Deane encontrou prontos os planos e a
estimativa para o satélite comercial. O preço era astronômico. Utilizando
cada dólar dos ativos líquidos, hipotecando e fazendo pesados emprésti-
mos, seria possível cobrir o preço do próprio satélite, porém nada restaria
para lançá-lo, tripulá-lo ou mantê-lo.
Deane passou a vista em tudo, quando Georgia espalhou os de-
senhos e os cálculos de custo diante dele. Olhou-a e suspirou. O governo
gastara quatro e meio bilhões na plataforma que o meteoro demolira. Ain-
da que a Deane Aircraft contasse agora com a vantagem da dispendiosa
pesquisa, teste e reprojeção, que entraram nessa monstruosa despesa,
teria sido tolice esperar que êle pudesse pôr em órbita uma estação espa-
cial por uma ninharia. Durante longo tempo, fitou os desenhos.
O departamento de projetos havia realizado magnífico trabalho.
Pôs um guache, de “concepção artística”, sobre sua escrivaninha e se in-
clinou por cima. Mostrava a roda familiar, quase completada, como tinha
sido a plataforma do governo. Nenhuma das partes do desenho tinham
sido cortadas para mostrar interiores, mas bastante revestimento super-
ficial ainda faltava para deixar uma idéia dos arranjos. Minúsculas figuras
em roupas espaciais flutuavam em atitudes que não mostravam orienta-
ção devida à gravidade, dando a impressão de que o desenho ora estava
na posição correta, ora de cabeça para baixo. O fundo mostrava a imen-
sidão de estrelas numa profundidade levemente luminosa de azul-prêto.
Deane, por fim, botou o desenho de lado, depositou um maço de fotogra-
fias de palhoças africanas por cima dele e indicou a pilha com um gesto
de sua mão.
— Aqui, Georgia — disse êle — temos a estação espacial projeta-
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da e uma dessas fotografias africanas ampliadas para o mesmo tamanho,
como peça de confronto.
Extremidades opostas dos séculos e ambas circulares. Farão uma
bela lembrança.
Georgia folheou a pilha e indagou:
— Todas tiradas no mesmo lugar?
— Não — replicou Deane — esta é a parte curiosa da estória. Es-
sas cabanas foram construídas por diferentes tribos, que falam diferentes
línguas, vivem em diferentes partes da África e desconhecem a existência
umas das outras. Foi por isto que as fotografei. Parecem como se tivessem
sido construídas pelo mesmo homem e, no entanto, a única coisa que as
tribos possuem em comum é a miséria. Estranho, não é?
— Suponho que é. Porque são tão pobres que suas palhoças são
tão parecidas.
— Como?
— Bem... parece como se estivessem todas localizadas num país
quase deserto, onde o material de construção deve ser difícil de encon-
trar. Dai que suas cabanas sejam redondas. Não sei se eles realmente o
imaginaram matematicamente, mas um muro circular encerra a maior
quantidade de espaço com a menor quantidade de material. Não é ver-
dade?
— Sim, é verdade.
— Naturalmente, se, como nós, construíssem suas cabanas no es-
paço, pela mesma razão elas teriam de ser esféricas, não teriam? E com
paredes leves, porosas como a palha, inteiramente ao redor, ao invés de
apenas no topo, para se protegerem do sol.
Bruscamente, Deane pareceu que se preparava para atacar. Estava
olhando quase hipnotizado para Georgia.
— Como é isto? Repita-o, peço-lhe. Não! Não faz mal. Já o peguei.
— Por que, Sr. Deane? Qual é o problema?
— Nada. Nada, Georgia, belezoca. Só que você acaba de salvar a
plataforma espacial da Deane Aircraft Corporation!
Irrompeu dentro do escritório externo das espantadas estenógra-
fas, deu instruções à moça do quadro de comunicações para chamar à
reunião improvisada todos os chefes de departamentos e, depois, com
a sua espetacular cabeleira em preto e branco em selvagem desarranjo,
voltou correndo ao seu gabinete.
42
— Georgia, jogue fora toda esta droga:— disse êle, indicando os
cálculos de custo e os desenhos. — Tive uma tempestade cerebral. Vou
construir uma plataforma espacial esférica!
— Certamente, Sr. Deane, o senhor não vai desprezar todo este
difícil trabalho para começar tudo de novo... Julgava que a estação do tipo
roda funcionava como a mais prática.
— Sou obrigado a deixar isto de lado. Detesto. . . isto é magnífico
e a turma tem todo direito de se orgulhar. Mas custa muito. O jeito é
abandonar.
Enquanto Deane ajudava sua secretária a carregar as pilhas de de-
senhos e papéis para o escritório externo, o primeiro dos chefes de depar-
tamento, Randolph Parker, chegou. Os outros se seguiram logo e, dentro
de dez minutos, estavam todos reunidos.
Assim que se sentaram, Deane começou sem rodeios:
— Em primeiro lugar, desejo agradecer a vocês pela parte que tive-
ram na preparação das estimativas das dificuldades e dos custos do lança-
mento de nosso próprio satélite. Foi um trabalho bonito, porém não o po-
demos efetivar. O custo é demasiado alto, conforme conjecturei quando
começamos. A razão pela qual não podemos cobrir o custo reside em que
estamos utilizando idéias convencionais e ainda pensando em termos de
contratos governamentais; e em somas de dinheiro muito grandes. Tenho
outra idéia, no entanto, e quero discuti-la com vocês. Com a ferragem
que temos à mão, poderíamos lançar um balão tipo Eco nesta semana. A
ferragem pertence aos Estados Unidos, tecnicamente, mas o governo a
deixaria conosco por uma bagatela, se é que temos de abreviar os prazos
das tarefas que já estão “no cano”. Sei, evidentemente, que um balão tipo
Eco não é uma plataforma espacial. O primeiro micrometeoro o esvaziaria
do seu ar e deixaria sua tripulação em roupas espaciais e em dificuldade.
Para não falar da radiação. Mas dois balões, um dentro do outro, com uma
camada de espuma plástica entre ambos, seria uma plataforma espacial!
Se o plástico permanecesse semifluido, deteria a maioria dos meteoritos
e vedaria as perfurações dos poucos que atravessassem. Se a espuma con-
tivesse um pouco de chumbo em solução ou em suspensão, também fun-
cionaria como escudo protetor contra radiações. Ademais, esta seria uma
plataforma espacial em autoconstrução. Um telecomando inflaria o balão
externo. Outro estouraria cápsulas na superfície interna desse balão, dan-
do lugar a uma reação química para produzir ilhas de plástico espumante.
43
Não se preocupem com a substância qua passa por baixo das paredes do
balão. Em queda livre, onde fica o que chamamos em baixo? Um tercei-
ro telecomando liberaria uma atmosfera feita sob medida de cilindros de
compressão para encher o balão interno, o qual, ao se encher, estenderia
a espuma plástica numa espessura uniforme entre os revestimentos dos
dois balões. Eco Um, lançado em 1960, tinha trinta metros de diâmetro.
Isto significa bem mais do que uns quinze mil metros cúbicos de espaço
encerrado. Um pequeno escritório, 3,70 por 3,70 m com 2,70m de altura
contém cento e noventa metros cúbicos. Poderíamos colocar quatrocen-
tos escritórios numa bolha das dimensões do Eco. Uma esfera com diâ-
metro duas vezes maior do que o Eco Um contém oito vezes mais espaço.
Poderíamos dar um dormitório, um escritório particular a mil pessoas e
ainda ficaríamos com quinhentos laboratórios ou oficinas dentro da Bo-
lha. Sei que isto suscita um monte de problemas. Alguns são análogos aos
do plano de uma estação do tipo roda. Outros são diferentes. Chamei-os
para discutir tais problemas e para ver se podemos construir a Bolha, uma
vez que nos é impossível fazer a Roda.”
No momento em que Deane parou de falar, os presentes come-
çaram a levantar objeções. Deane respondeu a todos com o entusiasmo
alegre e áspero de que tinha fama.
O maior problema ainda era o financeiro. Admitindo que a esta-
ção-bôlha fosse prática — e alguns sentiam que era muito admití-lo —
poderia a Deane Aircraft construir, lançar e tripular a estação com os re-
cursos de que dispunha? Várias horas e maços de cigarros depois, ficou
decidido que, ao menos financeiramente, o esquema era plausível. A reu-
nião acabou com cada homem designado para alguma fase do trabalho de
produzir um simulacro de papel.
Enquanto Georgia trabalhava no escritório, Deane fazia cálculos no
mata-borrão da sua escrivaninha. Seriam necessários muitos cortes para
vencer esta parada. Apesar do entusiasmo com que tentara contagiar a
assembléia, Deane se achava preocupado. Já passara o tempo em que
podia arriscar seu império numa idéia não experimentada. Em primeiro
lugar, o império não era mais só dele. Havia crescido grandemente e, ao
fazê-lo, ligara-se a acionistas que tinham interesse nos seus dividendos
com vistas às despesas do seu sustento. Havia milhares de famílias de
operários, que dependiam da continuação nos empregos na Deane Air-
craft. Talvez êle não tivesse o direito de querer se fixar obstinadamente na
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espaçonáutica, quando o próprio governo claramente a abandonava e, ao
mesmo tempo, lhe dava a oportunidade de uma reconversão.
— Senhor.
Deane se sobressaltou:
— Sim, Georgia.
— Antes de sairmos, posso fazer uma sugestão?
— Sim, por Deus. Sua última sugestão foi como uma transfusão de
sangue para nosso programa espacial.
— Ah! não creio que fosse tão importante. Mas acaba de me o-
correr a idéia de que as cápsulas que temos usado para colocar homens
em órbita durante anos — desde as missões Gemini — são realmente
câmaras de compressão girando em órbita.
— Que é que você quer dizer ?
— Bem, quando elas se encontram pressurizadas, os homens po-
dem viver dentro delas sem roupas espaciais. Depois, quando querem
sair, bombeiam o ar para dentro dos cilindros e abrem as portas. Quando
terminam seu trabalho no espaço, voltam, fecham as portas e de novo.
enchem a cápsula com ar. Isto é uma câmara de compressão, não é?
Deane balançou a cabeça, sem interrompê-la.
— Neste caso, não necessitamos realmente de câmaras de com-
pressão para entrar e sair da Bolha, não é verdade? Assim que nos encon-
tramos com ela, atracamos nossa cápsula ao anel de atracação e, quando
a pressão fôr a mesma em ambos os lados do anel, abrimos uma escotilha
nele, entramos na Bolha, tiramos nossa roupa espacial e aí estamos. De-
pois, se quisermos sair da Bolha e voltar, ao espaço, basta-nos tomar a
cápsula atracada.
— Georgia, você acertou de novo! Você acaba de cortar outro naco
das despesas desta operação. Se tiver algumas outras idéias, pelo amor de
São Pedro, não deixe de comunicar-me.
— Bem, pensei em algo, enquanto estava falando acerca do núme-
ro de escritórios que poderia situar no espaço encerrado de uma bolha de
sessenta metros.
— Prossiga.
— Estou certa de que não pensa colocar mil pessoas na estação, de
modo que não precisaria de todos esses escritórios e... dormitórios. Mas
precisaria de alguma intimidade isolada ali e eu me perguntei a respei-
to das repartições e formatos dos quartos e coisas do gênero. Se não há
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peso, não precisamos, de móveis — camas, cadeiras, etc. — e nada carece
de ser muito forte, não é verdade?
— Bastante forte para suportar os impactos nessas determniadas
circunstâncias. Existe ainda inércia, como sabe. Mas, sem dúvida, uma vez
que se encontrem ali em cima, não precisam ser muito fortes.
— Então, escritórios e dormitórios e outros tipos de quartos pode-
riam ser quase tão frágeis como bolhas de sabão e poderiam ser fixados
à superfície do interior da Estação com fita adesiva, não é verdade? E as
paredes poderiam ser feitas de duas finas camadas de películas opacas,
quando necessário — forradas juntas e infladas como colchões de praia
com uma bomba manual ou mesmo simplesmente sopradas como balões
de brinquedo. Poderíamos até fabricar certo equipamento, que doutra
maneira seria muito mais pesado, pelo mesmo processo, com sanduíches
de película cheias de ar.
Deane assobiou com assombro.
— Prossiga, Georgia. Prossiga! A secretária deu uma risadinha e
prosseguiu:
— Todo o restante do espaço interior ficaria livre. Tudo o que qui-
séssemos colocar aí poderia ficar ancorado com fios não mais pesados do
que linhas para coser. Poderíamos ancorar-nos a nós próprios à parede
ou ao chão da mesma maneira como fazemos quando queremos dormir
ou trabalhar numa determinada peça de equipamento. E, para guardar as
coisas, teríamos sacos de plástico com um par de tiras de fita adesiva para
fixá-los onde precisarmos. Na maior parte do tempo, nós próprios estare-
mos flutuando como um pássaro ou como um peixe em água transparen-
te. Poderíamos voar ou nadar como o fazem eles também e não há perigo
de se ficar encalhado no meio do ar sem nada para se agarrar.
— Também isto? — Deane sorriu deliciado.. — Como soluciona tal
problema?
— Num lugar destituído de gravidade, como esse, um pequeno so-
prador centrífugo de plástico leve, com manivela, pegado à roupa como
um broche, com tubos de jato conduzindo aos nossos ombros ou cotove-
los, seria suficiente para nos dar locomoção. Os pequenos calamares al-
cançam no oceano uma surpreendente velocidade dessa maneira. Talvez
não fosse tão eficiente no, ar, está claro, mas funcionaria.
Georgia estava de pé, com jeito de que, a qualquer momento, po-
deria ilustrar o que queria dizer voando pelo escritório.
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— Quando ponho isto em palavras — disse ela — sôa como conto
de fadas. Faz-me desejar tomar parte na tripulação.
— Georgia — exultou Deane — seu conto de fadas está poupando
à firma sabe Deus quanto dinheiro. Você me faz sentir como se, a qual-
quer momento, fosse quebrar uma velha regra para beijar uma valiosa
secretária.
A esta altura, leve tosse feminina se fêz ouvir à porta do escritório.
Lillian Deane estava aí, acendendo um cigarro.
— Se é que o dinheiro economizado vai eqüivaler ao preço de uma
capa noturna de chinchiía realmente boa — falou a Sra. Deane, de modo
arrastado. — Não é que eu pense nisto, embora creia que não precise me
preocupar para esperar.
Para seu desgosto, Georgia sentiu o sangue subir da garganta à raiz
dos cabelos e, apressadamente, juntou os cadernos de notas e o conteú-
do de uma cesta, dando o fora.
— Que é que a trouxe por aqui, a esta hora, Lillian? — perguntou
Deane.
Ela se acomodou numa poltrona ao lado da escrivaninha e ajustou
o cigarro numa piteira, antes de responder. Deane considerou-a à distân-
cia. Seria difícil encontrar uma mulher mais bem feita do que Lillian De-
ane. Era o que, comumente, as autoridades da moda chamam de loura-
gêlo e, com a sua palidez e estudada impassibilidade, isto lhe caía quase
excessivamente bem. Suas roupas tinham aquela simplicidade das pro-
fundas correntes d’água, que só um couturier do primeiro time poderia
conseguir. Seus membros eram longos e finamente modelados. Sua figura
constituía algo de imaculadas proporções: nada tão vulgar como curvas.
Deane notou que ela usava, com o vestido de coquetel, um bracelete de
diamantes, que comprara contra o conselho dele e por dinheiro demais.
Ela o viu espiando o bracelete e teve um ligeiro sorriso.
— Vim para recordar-lhe, Ted, uma vez mais, que também possui
obrigações sociais. Nesta noite, por exemplo, dei a entender à anfitrioa
que apareceria e, como é um coquetel, você poderia aparecer, ao menos
durante uns poucos dos seus preciosos minutos... não importa que outros
planos você e sua secretária possam ter.
Ignorando a última frase, Deane disse:
— Sua anfitrioa, se bem me lembro, é a Sra. Kithering, que fala
continuamente sobre arte, embora analfabeta no assunto. O marido dela,
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um brilhante jogador de pólo, desistiu seriamente de tentar esbanjar o
dinheiro do avô de sua mulher, porque achou ser “esmagadoramente
cansativo”. Provavelmente nem estará presente à recepção. Eu tenho isto
muito em comum com êle. Nada tenho em comum com a maioria dos
convidados de sua mulher.
— Ted, não gostaria que você tentasse ridicularizar meus amigos.
— Lillian, você ficou inteiramente por fora. Não há humor suben-
tendido. Simplesmente não disponho de tempo para gente como os Ki-
thering e se tivesse de desperdiçar agora meu tempo com eles — espe-
cialmente agora, bom Deus! — poderíamos muito bem acabar abaixo do
mínimo de renda necessário para receber convites. E estou certo de que
você não se preocuparia por isso.
— Você usa seus pronomes de modo negligente, querido. Você
pode sofrer com uma renda evaporada, Ted, mas creio que eu estou bem
preparada para isto. Ao menos, é o que pensa Briggs. E isto nos traz à ou-
tra questão: minhas ações da Deane Àircraft.
— Que é que há a respeito?
— Jim Briggs me contou, outra noite, que caíram a pouco mais
do que um terço do seu valor. Disse que poderiam cair ainda tão baixo,
que eu deveria solicitar-lhe para arranjar um depósito em meu nome, pa-
gando cinqüenta ou sessenta mil por ano, se desejo uma velhice segura.
Detesto pensar na velhice, porém, me agrada ser capaz de comprar uns
bonitos balangandãs, quando quiser.
Ao pronunciar estas palavras, ela levantou o bracelete e o balançou
diante dos olhos do marido.
Deane se admirou de que o chefe do seu departamento jurídico
oferecesse conselho financeiro à sua mulher, porém, não suscitou a ques-
tão. Briggs era jovem e tinha pouca consistência, mas era um homem
capaz. Dificilmente teria saído dos seus cuidados para dizer a Lillian, de
modo exato, quão facilmente ela poderia forrar seu ninho com certos po-
dêres de procuração e certificados de propriedade conjunta. Lillian pro-
vavelmente fizera perguntas às quais Briggs não vira inconveniente em
responder. Apesar disso, quando se acham em jogo grandes somas de di-
nheiro, nunca se pode saber. Precisava ter uma conversinha com Briggs,
mais tarde. Encolheu os ombros.
— Dificilmente creio que careça de se preocupar com uma velhice
incômoda — disse à mulher. — De passagem, conforme concordam você
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e Briggs, você está bem provida.
— Com coisas que não posso facilmente converter em dinheiro
contado, se quiser.
— Não creio que venha a precisar, Lil. E, se estiver pensando em
dispor de algumas de suas ações, preferiria que não o fizesse agora, se é
que está com esta idéia.
— Tentarei não fazê-lo. No entanto, preciso de algumas coisas no-
vas para a noite.
— Quanto? — perguntou Deane, pegando na caderneta de che-
ques.
— Cinco bastam, creio.
— Cinco centenas?
— Não seja tolo, querido. Milhares.
Deane encheu um cheque e o entregou a ela. Era de mil dólares.
Ela passou-lhe a vista, com cara indiferente, e o meteu na bolsa.
— Desde que se encontra em dificuldade esta noite — disse ela —
suponho que não aparecerá sequer nos Kithering.
— Poderia em outra ocasião... não por amor dos Kithering,. mas
para dar prazer a você. Mas esta noite, lamento, querida, simplesmente
não tenho tempo.
Lillian Deane jogou as peles sobre os ombros, tirou o cigarro da
piteira e arranjou o rosto segundo sua habitual expressão de fria compos-
tura antes de sair do gabinete do marido. Deane não deixou de perceber
o duro brilho no seu olhar que, em outra mulher, poderia desencadear-se
numa fúria barulhenta.
No dia seguinte, Deane pegou Briggs para almoçar e, enquanto be-
bericavam aperitivos de martini, trouxe à baila a questão das finanças de
sua mulher.
— Jim — disse Deane — Lillian contou-me, ontem, que você lhe
deu conselhos acerca de seus bens. Segundo afirmou, a sua opinião é a de
que ela se acha bastante bem provida.
— Está, certamente. (A expressão de Briggs era aparentemente
franca, embora Deane o observasse de perto.) Com as grandes somas do
ativo da firma em nome dela, mais as ações conjuntamente em nome de
vocês e o que ela possui diretamente, se algo viesse a acontecer a você,
ela é que seria Deane Aircraft. Sei que lhe dá estas coisas tendo em vista
os impostos — em alguns casos, por sugestão minha — mas, está claro,
49
elas fortalecem sua posição num acordo sobre a propriedade.
— Ela também mencionou um depósito, que lhe daria uma renda
segura. Contou-me que a idéia era de você.
— Absolutamente certo, Ted. Ela está acostumada à riqueza e se
você tivesse de — digamos — deixar-nos, ela tomaria conta da compa-
nhia, mas ficaria sem dinheiro líquido por bastante tempo. A menos que
quisesse desfazer-se de algumas de suas ações. O que, conforme não ca-
reço de acentuar, seria ruim para a companhia logo depois de perder seu
espírito orientador.
— Hum... Sim, compreendo.
— Digo mais — continuou Briggs. — Com o governo abandonan-
do o espaço e com você tentando, por si próprio, lançar uma plataforma
espacial — ou, pelo menos, retardando a reconversão, se não se decidir
a fazê-lo — os lobos podem atacar a qualquer momento. Nestas circuns-
tâncias, seria bom para ambos dispor de algum capital investido em outra
fonte de renda. Também diria, considerando os seus interesses aparen-
temente quase iguais, que deveria obter aprovação da Sra. Deane para
registro com fins legais, antes que a companhia venha a dar certos passos
financeiramente perigosos.
Deane ficou impressionado com a franqueza de Briggs e concluiu
que havia sido irracionalmente desconfiado. Desviou a conversação para
outros assuntos, no transcurso da refeição.
Os planos e as estimativas de custo do satélite-Bôlha ficaram esbo-
çados e prontos para discussão, uns poucos dias depois. O grupo ao redor
da mesa de conferências era o mesmo da última reunião, exceto quanto
ao acréscimo do contabilista-chefe. Ao se acomodarem nos seus lugares,
Deane esquadrinhou seus rostos. A maioria era constituída de velhos ami-
gos e todos — exceto o contabilista — eram grandes acionistas. Contro-
lavam proporção tão grande do capital, de fato, que, ao chegarem a uma
decisão, a reunião subseqüente da diretoria, para efeitos de confirmação,
representava quase uma formalidade. Deane se perguntava a respeito da
decisão que ali tomariam. Não havia a mesma atmosfera de pessimismo
da reunião anterior, porém, tampouco se notava uma clara manifestação
de confiança. Quando a reunião foi aberta, foi Randolph Parker quem pri-
meiro falou, afirmando:
— Creio que é realizável, Ted.
Deane sentiu uma onda de excitação.
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— Mas — prosseguiu Parker — muitas outras coisas não o são.
Um olhar em torno da mesa mostrou que a opinião estava unifor-
memente dividida.
— O problema é dinheiro, Sr. Deane — disse o contabilista-chefe.
— Com a nova configuração — uma Bolha de plástico — a companhia tem
capacidade para construí-la. Além disso, ampliando nossos empréstimos
na base das perspectivas de futuros ganhos do tipo Comsat, podemos lan-
çá-la. Podemos mesmo, sangrando nossas reservas acima do ponto de pe-
rigo, tripulá-la. Porém, não existe absolutamente margem para erro. Todo
lançamento precisa ser perfeito e todo encontro deve ser bem sucedido
ou o projeto inteiro ficará em perigo. Mas, infelizmente, Sr. Deane (conti-
nuou o contabilista, limpando sua testa com um lenço branco), depois de
ter feito tudo isto, não seremos capazes, sem uma nova e grande injeção
de capital, de operar a plataforma, nem de mantê-la.
A discussão posterior tornou claro que, sem levar em conta as in-
clinações favoráveis ou desfavoráveis de cada orador, havia fatos indiscu-
tíveis. Deane lançou à discussão as idéias de Georgia Lighton e algumas
reservas de dinheiro, de que dispunha, mas isto só podia tornar possível
margem mínima de erro, sem mudar substancialmente a situação. Deane
pediu atenção, por último, dizendo:
— Amigos, o Sr. Clark mencionou uma grande injeção de novo ca-
pital e há um meio de obtê-la. Em dias passados, quando a companhia era
pequena, Deane Aircraft significava que eu a possuía. Desde, porém, que
os senhores e outros forneceram injeções de novo capital de tempos em
tempos, ela deixou de ser pequena. Poderia tornar-se maior ainda, se ven-
dêssemos ações adicionais ao público. Em primeiro lugar, creio que ain-
da existem bastante pessoas, que continuam a acreditar no espaço, para
fornecer esse novo capital... e creio que sou capaz de fazê-las fornecê-lo.
Uma vez que não posso mais tomar semelhante decisão unilateralmente,
a questão consiste em saber se os senhores querem se juntar a mim.
Jim Briggs se manifestou:
— Isto pode ser feito, perfeitamente. Mas seria uma jogada, dei-
xando-nos com outra jogada nas mãos — a da própria estação espacial.
Em acréscimo, nossa “propriedade” da firma ficaria diluída e para tornar
atrativa a venda de uma grande emissão pública de ações, teríamos de
oferecê-las abaixo da cotação do mercado e esta já é demasiado baixa.
Pronuncio-me pela imediata produção aeronáutica e pelo esquecimento
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do espaço interplanetário em favor do senso comum cá na Terra.
A voz de baixo profundo de Randolph Parker cortou o bate-boca,
que se seguiu:
— Esse seu senso comum, Jim, não é tão terrivelmente sensato. A
reconversão ainda nos tomará, no mínimo, três ou quatro anos, em cujo
decurso, com os custos, despedidas e tudo o mais crescendo, a Deane
Aircraft será de novo uma pequena empresa e o capital de vocês quase
não terá valor. Quanto a mim, prefiro quebrar tentanto algo de proveitoso
a ficar acocorado.
Imediatamente, a reunião se cindiu em duas facções e foi só me-
diante vigorosas batidas do martelo que Deane conseguiu impedir um
debate acalorado.
— Vamos votar — disse Deane.
— Voto secreto? — perguntou alguém.
— Se quiser.
— Somos em números iguais.
— Eu me absterei, para evitar compromissos — declarou Deane.
— Bastante correto.
O pessoal escreveu “reconversão” ou “plataforma espacial” em
tiras de papel e as passaram às mãos do contabilista-chefe. Deane aguar-
dava em silêncio, à medida que cresciam as duas pequenas pilhas de tiras.
Constatou que suas mãos realmente tremiam e apertou-as contra a mesa,
a fim de mantê-las calmas. O contabilista deu uma olhada para o par de
números em seu bloco de notas e anunciou:
— Dez para a reconversão, treze para a plataforma espacial.
Deane não perdeu tempo para fazer o lançamento de ações em
público. Dias mais tarde, comprou tempo de televisão em todas as gran-
des cadeias e se encontrava no ar com um bem planejado programa.
O programa se iniciava com a cabeça e os ombros de Deane em
contraste com um céu de meia-noite. Seu impacto de cabelos brancos
com uma larga faixa negra, impunha imediata atenção em confronto com
um fundo semelhante. Começava a falar com tranqüilidade, mas firme-
mente:
— Sou Theodor Deane...
O fundo estrelado se apagava e dava lugar a um fotomural, que
começava a deslizar lentamente, enquanto êle ia falando. Mostrava vastos
hangares com linhas de montagem aparentemente intermináveis, instala-
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ções de energia elétrica, laminações, imensos campos de trigo, florestas
de extração de madeira, tudo discretamente identificado como partes do
império Deane. Diante desta demonstração de força, só Deane teria capa-
cidade para manter a atenção da audiência.
Êle falava de batalhas e aventura, de amor e segurança, de ciência
e poder... e de dinheiro. Assim que as pessoas começavam a indagar “Qual
é o problema?”, êle dizia-lhes:
— Este panorama em movimento atrás de mim constitui meu ca-
pital. Controlo tudo isto. Tenho a intenção de colocá-lo na base de um
empreendimento que ajude os homens a dar um dos seus primeiros pas-
sos firmes em direção às estrelas. Pretendo construir e operar uma pla-
taforma espacial particular. Não o farei por medo de que alguém ameace
minha segurança. Nem serei extravagante com o dinheiro de gente, cujo
único proveito desse empreendimento será vago e ocasional. Irei fazê-lo
por princípios de negócios bem pensados e bem compreendidos, com o
propósito de ganhar dinheiro da venda de serviços úteis. Aqueles que qui-
serem compartilhar comigo o risco, compartilharão com os lucros. Ama-
nhã, verão um anúncio, no seu jornal local, da venda de ações de uma
companhia a ser conhecida como Spacecraft, Incorporated. Serei o dono
de tudo o que a Deane Aircraft representa. Eu e meus sócios reteremos
o controle dos interesses. Mas necessitamos do seu dinheiro e da sua
confiança. Em conseqüência, as ações de Spacecraft, Incorporated, serão
vendidas ao público por dois terços do valor da ação da Deane Aircraft. As
cotas serão vendidas unicamente a indivíduos e nenhum possuirá mais do
que dez. Por último, as vendas se iniciarão amanhã ao meio-dia e termina-
rão setenta e duas horas depois. Se quiserem comprar cotas desta empre-
sa mais tarde, poderão fazê-lo. . . porém, a preço mais alto. Poderão ler a
respeito do assunto nos seus jornais da manhã. Boa noite.
No dia seguinte, os jornais traziam um anúncio mais ou menos pa-
dronizado da formação da companhia, relacionando seus objetivos, sua
estrutura, capitalização inicial, etc.
Se os anúncios de página financeira eram rotineiros e secos, a co-
bertura noticiosa não era nada disso. Deane foi chamado de tudo: santo,
pecador, gênio, tolo, filântropo, trapaceiro. A maioria dos jornais, preven-
do um golpe do Governo Federal, era desfavorável. Afirmavam que De-
ane estava indissolüvelmente vinculado a contratos governamentais e a
regulamentos de segurança.. Afirmavam que nunca poderia fazer o que
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pretendia, pois só o governo dispunha da quantidade de dinheiro requeri-
da. Afirmavam que o povo já havia perdido demais no espaço. No entanto,
isto, bastante curiosamente, foi o que vendeu as ações. Antes disso, refle-
tiam as pessoas consigo mesmas, nunca tivemos a possibilidade de rece-
ber o dinheiro de volta, quer se tratasse de sucesso ou fracasso... Agora,
talvez, o consigamos.
Depois, assim que iam se escoando as setenta e duas horas, os
pedidos e as cartas começaram a chegar, conduzidos em sacos e carros
das firmas de corretagem que lidavam com vendas. Milhares, a seguir
centenas de milhares. Ao final das setenta e duas horas, a emissão estava
completamente vendida e a ação pulou cinco pontos para cima, no mer-
cado livre.
Pela manhã do quarto dia, uma delegação de funcionários gover-
namentais de alta hierarquia, incluindo um general de três estrelas do
Pentágono e um cavalheiro do gabinete presidencial, convocou Deane.
O cavalheiro foi breve e sem rodeios. Deane estava proibido de
assumir qualquer risco no espaço sem a permissão do Governo Federal.
Fazê-lo constituiria uma violação da segurança nacional equivalente à
traição. Interdições seriam publicadas imediatamente, se Deane apenas
levantasse um dedo para colocar em órbita um satélite não autorizado.
— Devo compreender — questionou Deane — que acaba de ser
aprovada uma lei para este caso específico ?
— Não diga tolices, homem — interrompeu o general. — Podemos
fazer com que as leis da segurança já existentes caibam em você como
uma camisa-de-fôrça. Provoque-nos e verá!
Deane falou de cara fechada: — Vá lá, mas, antes que comecem a
recortar esta camisa, irei informá-los de uns poucos fatos. Fatos políticos.
O grupo ficou ligeiramente tenso.
— Nos últimos três dias — continuou Deane — vendi vinte e cinco
milhões em ações de capital a cinco milhões de pessoas. Cinco milhões de
todos os Estados da União e cada uma delas na idade de votar. Distribuição
por partido político: quase igual. Não preciso recordar-lhes cavalheiros,
naturalmente, que este é um ano de eleições ou que uma complicação
política começada agora teria tempo para atingir suas proporções mais
amplas em novembro. Prossigamos. Se — eu disse se — alguém fosse tão
estúpido para se opor a um projeto tão popular como este provou ser...
(Deane brandiu uma pasta com a etiqueta Análise Estatística das Vendas
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da Spacecraft). Eu sei de uma maneira bastante boa para descobrir quem
possa e assegurar que muitíssimas outras pessoas o descubram também.
A esta altura, o cavalheiro do gabinete presidencial saltou com a
face rubra:
— Ousa ameaçar o Governo dos Estados Unidos com chantagem?
— gritou.
— Não estou ameaçando — disse Deane, glacialmente. — Estou
manifestando o que farei a qualquer um que, eleito pelo povo dos Estados
Unidos, se meta a opor-se aos seus interesses claramente expressos.
O general também estava quase para saltar, quando um membro
do grupo, até então silencioso, falou:
— Gus! Bill! Fiquem quietos. Isto é sério.
— Obrigado, Sr. Riccioli — disse Deane, a seguir pegando numa
segunda pasta. — Mais um item, cavalheiros. Esta é uma lista de certos
compradores seletos de ações da Spacecraft. Contém, entre outros, os
nomes de quase todos os membros da Câmara de Deputados e cerca de
dois terços do Senado!
O silêncio foi finalmente quebrado pelo Sr. Riccioli, o qual deu uma
risadinha à socapa.
— Creio que todos nós compreendemos seu argumento. (Êle se
ergueu e foi até a escrivaninha). Posso ser um dos primeiros a lhe dese-
jar sucesso no seu novo empreendimento? E, virando-se para os outros,
acrescentou: Vamos andando, cavalheiros?
Riccioli foi o último a deixar a sala. Quando o fêz, deteve-se por um
momento e perguntou:
— Incluiu meu nome nesta sua “lista seleta”?
— Ei-lo — respondeu Deane. — Foi o que me deu a idéia.
— Apenas uma pequena especulação, aqui entre nós — disse o
outro e saiu.
A convocação para audiência no Congresso demorou alguns dias
a chegar, porém, quando chegou, Deane compareceu prontamente e foi
tratado com cortesia e firmeza.
Deane foi informado, nos primeiros cinco minutos, que se o Con-
gresso verificasse que suas ações, ou projetadas ações eram sequer ligei-
ramente prejudiciais aos interesses dos Estados Unidos, passos imediatos
e vigorosos seriam dados para detê-lo. O restante da audiência foi dedica-
do a determinar se havia algum perigo de ser comprometida informação
55
classificada ou de ser propiciada “ajuda ou conforto” a um inimigo dos
Estados Unidos. Eram muito taxativos a este respeito.
A resposta de Deane recordou aos seus inquiridores que, não ten-
do sido empregado do governo, tivera acesso a informação apenas de
baixa classificação e isto somente numa base de “necessidade de conhe-
cimento”. Com o cancelamento dos seus contratos, mesmo este material
fora devolvido ao governo.
O comitê, após uma breve sessão privada, informou a Deane que,
tanto quanto dizia respeito ao Congresso, podia esbanjar sua fortuna da
maneira que melhor lhe aprouvesse. Acrescentou a advertência de que,
se algum governo estrangeiro fizesse objeção às suas atividades, os Esta-
dos Unidos fariam uma gestão conforme o exigisse a situação, porém, que
tal gestão não iria ao ponto de liberá-lo de responsabilidade.
A nova firma, Spacecraft, Incorporated, imediatamente entrou em
marcha acelerada. Simples como pudesse parecer um satélite-bôlha, ain-
da havia muita coisa a ser planejada. Assim, por exemplo, bolhas menores
sobre a parede interna do revestimento externo, ao impedir que a espu-
ma ocupasse seu lugar, proporcionariam portinholas, quando depois en-
chidas com líquidos amortecedores de radiações e não suscetíveis de con-
gelamento. Partes de um eventual cultivo de algas seriam incorporadas,
numa rede de fina tubulação plástica, ao revestimento externo. A idéia
de Georgia Lighton, de quartos interiores de sanduíches de película e ar,
foi aperfeiçoada para incluir matéria-prima adicional destinada a ulterio-
res construções, com suprimentos de adesivos de epoxi, finas cordas de
náilon, etc, tudo colocados antes do lançamento, dentro da bolha interna.
Deane exigia tão numerosos recursos da estação espacial para que esta
fosse autoconstrutiva que o seu estado-maior se recordou das flores com-
primidas feitas de essência absorvente de água e vendidas nas lojas de
lembranças orientais, flores que desabrochavam quando molhadas. Certo
dia, Randy Parker deixou um pacote delas, com um copo d’água, sobre a
escrivaninha de Deane. Este achou graça, mas também se recordou de ter
o satélite abastecido com um pequeno suprimento inicial de alimentos
desidratados.
Ficou decidido colocar a Bolha em órbita por meio de um propul-
sor do tipo Atlas-Agena, que vinha sendo o usual desde as primeiras ten-
tativas de colocação de homens em órbita. A decisão se baseou, em parte,
no fato de que um foguete quase concluído, cancelado pelo governo, já
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existia em estoque. Em acréscimo ao satélite, o foguete devia carregar
uma cápsula espacial contendo sistemas de recursos vitais suficientes
para manter um homem durante quarenta dias. Este equipamento pode-
ria ser transferido da cápsula à Bolha com as ferramentas mais simples. A
cápsula foi dotada de considerável capacidade de manobra, de modo que
um tripulante pudesse acompanhar a Bolha nas alturas, vê-la instalada
com segurança em órbita — até mesmo assisti-la, se necessário, nas suas
evoluções e estabilização — e, a seguir, como resolvesse na hora, retornar
à Terra ou se mudar para dentro da Bolha como seu primeiro ocupante.
Deane francamente teve inveja desse primeiro ocupante.
Pouco a pouco, o satélite ganhou forma: seu equipamento foi se-
lecionado; seus sistemas de apoio vital foram aperfeiçoados ao ponto de
que o mínimo do humanamente possível teria de ser fornecido “de fora”.
Depois, cada peça do equipamento foi submetida a um processo de eli-
minação, o qual ou a afastava por completo ou, se isto não pudesse ser
feito, a reduzia aos seus elementos mais simples e, depois, aparava os
elementos até que pouco mais restava do que uma película cheia de ar.
Os encarregados de trabalhar com semelhante equipamento ami-
úde se queixavam de que seria impossivelmente frágil. Se dissessem que
não suportaria seu próprio peso, Deane rapidamente frisava que, na oca-
sião de usar, nem o equipamento, nem o usuário teriam qualquer peso
para suportar. Outras objeções similares foram rejeitadas com a lembran-
ça da bola de futebol, que constituía uma peça bastante dura de ar com-
primido, ou os autores das objeções eram convidados a cortar uma meia
de seda pela metade.
Quando o horário foi estabelecido e a data do lançamento ficou
apenas por dias, cada passo da empresa havia tido ampla publicidade e,
à medida que o trabalho se processava com rapidez, a popularidade da
companhia se elevava. O mesmo sucedia, também, com a drenagem do
capital da companhia. Se o lançamento fracassasse ou fosse sequer adia-
do substancialmente, o dinheiro teria desaparecido por completo. Neste
caso, a plataforma espacial não poderia ser salva com um segundo apelo
ao dinheiro do público e a bancarrota financeira levaria à falência cente-
nas de outras indústrias e, possivelmente até, arrojaria o país numa de-
pressão.
Em certo momento, correu-se o risco, precisamente, de semelhan-
te adiamento. Depois da espetacular destruição da estação espacial cons-
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truída pelo governo, verificou-se ser muito difícil recrutar tripulantes e
cientistas, que desejassem arriscar suas vidas na “Bolha de Deane”. Foi,
então, que Carol Bryant, simultaneamente talentosa astrônoma e conhe-
cida beldade, candidatou-se a um posto na lista de tripulantes do satélite,
o que dissolveu subitamente a dificuldade de encontrar o pessoal ade-
quado.
Deane estava um demônio de atividade. Chegava antes de raiar o
dia e raramente deixava o escritório antes da meia-noite. Fazia suas refei-
ções, quando se lembrava de comer, no meio de uma bateria de telefones
na sua escrivaninha e sua mulher desistira de alcançá-lo.
Dois dias antes do Dia do Lançamento, no entanto, Lillian Deane
chegou ao escritório e exigiu que seu marido a visse. Achava-se acompa-
nhada por Jim Briggs, muito alinhado e um pouco tímido. Deane ordenou
à sua secretária que os introduzisse juntos.
A princípio, Deane tentou realizar a entrevista às pressas, a fim de
voltar o mais rápido possível ao lançamento da Bolha. Reparou, porém, no
rosto de Lillian e na formalidade de Briggs, que algo muito mais importan-
te para eles do que a Spacecraft, Incorporated os trouxera ali. Convidou-
os a sentar.
Quando Lillian se preparou para acender o cigarro em sua compri-
da piteira, Briggs saltou de pé, de nôvo, para lhe oferecer o isqueiro. Ainda
de pé, voltou-se para Deane, falando a seguir:
— Antes que eu diga qualquer outra coisa, Ted — bem, Sr. Deane
— quero deixar claro que, a partir deste momento, não mais me considero
no emprego de Deane Aircraft ou de qualquer de suas associadas ou do
senhor mesmo. Deixei uma nota para este efeito sobre a escrivaninha da
Srta. Lighton, quando entrei.
— Sente necessário dar um passo tão sério, Jim ?
— Sim, é o que sinto. É a única maneira de que sou capaz para re-
conciliar a ética profissional com meu desejo de ajudar Lillian.
De modo que Briggs já chamava Lillian pelo primeiro nome! Deane
tentou lembrar se era a primeira vez que isto ocorria. “Procurando não
manifestar seu desgosto, disse:
— Pergunto-me como se introduziu dentro da entrevista que pare-
ce decorrer entre a Sra. Deane e eu.
Constituía uma ironia que Briggs a chamasse de Lillian, enquanto
êle dizia “Sra. Deane”.
58
A própria Lillian interrompeu:
— Não ponhamos demasiada ênfase no aspecto pessoal. Estou
certa de que Jim não o deseja acentuar indevidamente. O que desejamos
ver com você é uma questão de negócios, apesar de tudo.
— Ótimo — disse Deane — passemos aos negócios, então. Tenho
muita coisa para dar atenção, conforme sabem.
— Muito bem — replicou Lillian. — Estou certa de que se recorda
da minha afirmação, outro dia, de que alguma espécie de renda pessoal
realmente séria é necessária para minha segurança. Ainda mais depois
que você decidiu jogar tudo que possui nesta ridícula tentativa de superar
o Governo dos Estados Unidos, inclusive nas despesas.
— Sim, recordo a discussão. Então ?
— Bem, pretende ou não fornecer-me esta renda?
— Já tocamos nesta questão, segundo creio, Lil. Se solicita outra
vez uma renda independente de sessenta mil por ano, lamento, mas ago-
ra, pelo menos, a resposta ainda terá de ser negativa.
— Também tratamos da questão de que, para os chamados fins de
impostos, eu possuo grande parte da Deane Aircraft, acima das minhas
ações, quero dizer.
A esta altura, Briggs pjgarreou e se moveu inquieto em sua cadeira.
— Não se preocupe, Jim — disse Lillian. — Não tentarei fazer
chantagem com meu marido. Conheço-o demasiado bem, quanto a isto.
— Neste caso, qual é precisamente o problema? — exigiu Deane.
— Simplesmente que, se não deseja colocar de lado sessenta mil
por ano, quero o controle efetivo da firma. Não apenas no papel. Controle
efetivo.
— Isto está fora de discussão — respondeu Deane.
— Compreendo. Nenhuma discussão, tampouco, acerca de uma
renda pessoal?
— Nenhuma. Depois que o satélite tiver subido, conversaremos
sobre...
— Não me acho inclinada para esperar.
— Não vejo que coisa mais possa fazer, Lillian.
— O que posso — e farei — é isto: notificarei o Diretor da Renda
Interna que, como um dos principais acionistas da Deane Aircraft e da
Spacecraft, Incorporated, minha opinião nunca foi solicitada, nem minhas
vontades tomadas em consideração em coisa alguma do que a firma fêz.
59
Salientarei que a presente grandiosa aventura no espaço é contra a minha
vontade e melhor julgamento e que, por conseguinte, considero as atuais
provisões para impostos destas firmas como pouco mais do que fraude
integral.
Deane sentiu suas mãos esfriarem.
— Sim, compreendo. Poderia fazê-lo, suponho. Porém, com que
propósito?
— Simplesmente para que a Renda Interna, que não existe prova-
velmente para ser blefada ou desviada do seu dever, impeça-o de gastar
o ativo da firma em estúpidos fogos de artifício, antes que possa receber
seus impostos. E quando se tornar óbvio que as empresas Deane se en-
contram de novo numa base de sadio senso comum, meu capital voltará a
subir até onde merece e pagar dividendos com os quais eu seja capaz de,
decentemente, conduzir minha vida.
— Só conseguirá arruinar a mim e a si própria, simultaneamente.
Os estúpidos fogos de artifício, como os denomina, estão prontos para
serem lançados em pouco mais do que quarenta e oito horas.
— E Jim pode obter interdições federais contra você ao meio-dia
de amanhã. Não é verdade, Jim?
— Ela está certa — murmurou Jim, tentando um sorriso.
— Ainda não entendo — enfureceu-se Deane — exatamente o que
você tem a fazer, em absoluto, nesta discussão.
Com um esforço, Briggs se agarrou à sua impertinência e disse:
— Simplesmente que penso, eu próprio, defender os direitos de
Lillian, se ela consentir.
— Compreendo. (Deane se voltou para Lillian.) Também isto, Lil?
— Esses sessenta mil evitariam tamanhas complicações, não é ver-
dade? — respondeu ela, levantando-se e fechando a bolsa.
— Isto é chantagem, Lil. A resposta é “não”, conforme sabia de
antemão.
Briggs pegou o chapéu e disse:
— Aguarde as interdições amanhã, pelo meio-dia.
Deane se ergueu e começou a rodear a escrivaninha, mas Briggs
não esperou para ver o que pretendia. Saiu do escritório, chapéu na mão,
antes que Lillian pudesse precedê-lo.
— Lillian, seria melhor que se juntasse ao seu futuro protetor —
disse Deane.
60
Quando Lillian Deane saiu do escritório, suas feições se encontra-
vam, desta vez, sem a costumeira compostura.
No escritório vazio, Deane deu um suspiro explosivo e deixou a
cabeça cair em suas mãos. Agora, precisava se concentrar — pensar.
O que Lillian dissera, e Briggs silenciosamente confirmara, era in-
teiramente verdadeiro. A Renda Interna questionaria essas transferências
para o nome de sua mulher. Êle próprio duvidara a respeito delas, mas os
assessores jurídicos, entre os quais Briggs, lhe garantiram que não eram
ilegais, nem isentas de ética. De modo que deixara tal questão entregue
aos especialistas e se metera com outros problemas.
O Serviço de Renda Interna iria querer ter certeza de que o em-
preendimento espacial não o levaria à bancarrota, se tivesse uma grande
conta de impostos a pagar. Com o fim de se assegurarem, examinariam,
cansativamente, todos os aspectos da operação, desde a concepção até a
conclusão, numa base de lucratividade. Para fazê-lo, precisariam de muito
mais do que as quarenta e oito horas, que restavam até a subida do sa-
télite. Mas, se a subida fosse adiada, os fundos rapidamente se extingui-
riam, os contratos expirariam, os custos cresceriam e, ainda que a Renda
Interna desse o sinal verde no final, seria demasiado tarde para salvar o
império financeiro, que era o único capaz de manter o satélite em órbita,
antes de começar a dar lucro.
Que poderiam pará-lo com interdições e o fariam — era certo. Ver-
dade, teriam de entregar-lhe os documentos pessoalmente. Mas êle teria
de estar em contato com a firma, a sede do lançamento, e com seus téc-
nicos para supervisionar e tomar as decisões finais acerca do lançamento.
Poderia estar ao alcance de tantos na companhia, sem também, inevita-
velmente, estar ao alcance dos oficiais de justiça?
Seria capaz de encontrar um talento jurídico que conseguisse der-
rotar Briggs e protelar a ação legal até depois que a plataforma estivesse
em órbita? Não no tempo disponível. Briggs possuía todos os trunfos. Um
novo advogado não teria tempo para apreender os elementos do proble-
ma, encontrar e examinar todos os documentos e chegar às autoridades
do Serviço da Renda Interna com argumentos convincentes antes da to-
mada de uma decisão irrevogável. Não, este caminho se achava obstruído.
Podia arranjar os sessenta mil que Lil exigia. Para este ano, pelo
menos. Mas uma doação, que proporcionasse tanto de renda, abalaria o
satélite, certamente, mais do que um míssil antimíssil. Convencê-la — e a
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Briggs, que o levasse o diabo — também demandaria tempo, que a em-
presa não estava em condições de agüentar. Ademais, ceder à chantagem
era tão repugnante como desistir do próprio empreendimento.
Ficou caminhando pelo escritório, considerando o fracasso e a
bancarrota da firma, a perda da fé de milhões de novos acionistas, re-
trocesso na exploração espacial que poderia durar um século, enquanto
fazia e punha de lado planos cada vez mais desesperados. A certa altura,
entrou Georgia Lighton silenciosamente, com uma bandeja de sanduíches
e um bule de café. Êle afundou na poltrona e , aceitou, agradecido, o ser-
viço silencioso da secretária: açúcar e creme na medida exata, um maço
novo de cigarros, o isqueiro de mesa à sua frente. Ela já se voltava para
sair, quando Deane falou:
— Estou numa embrulhada, Georgia.
— Estamos, senhor?
— Sim.
Deane passou a esboçar de modo breve e claro, porém sem amar-
gura, a natureza e as dimensões da embrulhada. No final, perguntou :
— Depois disso, Georgia, ainda compraria mais ações agora?
— Certamente.
— Pelo amor de Deus, por quê ?
— Porque ainda tem quarenta e oito horas, senhor. Já o vi resolver
dificuldades bem grandes num tempo menor do que este.
Bruscamente, Deane sentiu uma onda de energia e entusiasmo.
Aí tinha lealdade e confiança! Agarrou Georgia por ambos os cotovelos,
ergueu-a e plantou-lhe comovido beijo em ambas as faces do seu bronze-
ado rosto. Antes que ela pudesse recuperar o fôlego, Deane ligou o tele-
fone e passou a dar rápidas ordens a Millie, a encarregada do quadro de
transmissões.
— Arranje uma pilha de sanduíches com um metro de altura,
Millie, e um tambor de café. Diga a Parker e a todos os chefes de depar-
tamento — exceto o Jurídico — para virem aqui em um minuto. E diga a
um par de moças da seção de datilografia que se preparem para trabalhar
durante toda a noite. Voltando-se para Georgia, acrescentou: — Começou
a contagem regressiva das quarenta e oito horas!
A breve conferência, que se seguiu, foi tão explosiva como dinami-
te. Deane abriu-se não tanto com uma idéia, mas com uma declaração
de intenções. O grupo foi imediatamente ganho pela esfusiante excitação
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e pelo sentimento de certeza de Deane. Parker exclamou :
— Sinto como se fossem os velhos tempos!
A discussão passou, então, para os processos e meios. Trabalhando
febrilmente, Georgia registrou as questões principais no caderno de no-
tas. Foram trazidos arquivos, responsabilidades ficaram definidas e foram
tomadas precauções para que nada chegasse à imprensa antes do tempo
adequado.
Às quatro, o escritório de Deane estava vazio. O mesmo acontecia
com os da maioria dos chefes de departamento. Às quatro e cinqüenta,
três dos helicópteros da companhia decolavam para destino ignorado. Às
cinco, sentada sobre a escrivaninha de Deane, com dois telefones ligados
à tomada e a porta do escritório externo firmemente fechada, Georgia
transmitia ordens através do quadro de transmissões. À hora de encerrar
o expediente, a maior parte dos funcionários foi para casa. Aqui e ali, no
entanto, elementos-chave, tanto nos escritórios como nos edifícios fabris,
eram enviados para trazer refeições e garrafas térmicas com café. Às onze
da noite, Georgia estirou-se no sofá por uns poucos minutos, mas às onze
e trinta estava de novo de pé, ao chegarem dois técnicos para instalar um
circuito fechado de televisão. Às três horas e quatro minutos da manhã, o
aparelho entrou em atividade com estrondo. O rosto de Deane sorria na
tela e se ouviu sua voz:
— Aí está, Georgia. A verdadeira contagem regressiva começou!
Parker e um par dos outros se juntarão a você no escritório, dentro de
uma hora. Faça com que os guardas os deixem entrar e diga ao chefe da
guarda para que ninguém — mas NINGUÉM mesmo — entre ou saia, an-
tes da abertura habitual da manhã.
— Certo. E... senhor ?.
— O que, Georgia?
— Amanhã, pela manhã, vou dar por telefone uma ordem para a
compra de mais dez ações de capital.
O “par de outros”, que chegaram com Parker, eram dois dos che-
fes de departamento. Ao começar o expediente da manhã, nenhum deles
dormira ou se barbeara e o bule de café já descera quatro vezes à cantina,
onde uma arrumadeira substituía o homem do bar.
Também ao começar o expediente, correu por toda a parte que
algo de incomum acontecia no local do lançamento. Havia excessiva ati-
vidade, mesmo para o dia que se supunha preceder o lançamento. Não
63
demorou que alguém fizesse a conjectura — à boca pequena — de que
o lançamento havia sido antecipado de um dia e que, depois disso, não
levaria tempo para que os repórteres aparecessem. E com o primeiro dos
repórteres veio uma lúgubre e pequena equipe de oficiais do Departa-
mento da Justiça.
O trabalho dos oficiais de justiça era, ao mesmo tempo, mais sim-
ples e mais complicado do que o dos repórteres. Estes deviam conseguir
alguma espécie de estória e o máximo possível de detalhes da mesma.
Para fazê-lo, precisavam seguir todo tipo de boato. Uma vez feito isto, en-
tretanto, até uma estória negativa poderia ser transmitida e gozar, por um
momento, de atenção editorial. Os oficiais de justiça, por outro lado, care-
ciam apenas de seguir uma pista: onde estava Deane? Deveriam segui-lo
até o fim e encontrá-lo, efetivamente.
Sua pesquisa logo se concentrou no local de lançamento. Era óbvio
que Deane dirigia as operações de algum lugar muito próximo da paliçada.
Não demorou para que um deles descobrisse um jeito de entrar no
perímetro do lançamento. O trabalho foi facilitado pelo fato do perímetro
não se achar vigiado, como teria sido antes, por oficiais de segurança do
governo e por destacamentos do exército. O local era grande, no entanto,
e Deane não se encontrava em nenhum dos pontos óbvios. O esbirro da
lei foi, em conseqüência, obrigado a pesquisar a área metòdicamente e
tão depressa quanto possível. Enquanto o fazia, os preparativos para o
lançamento prosseguiam ao seu redor. Nada estava ao seu alcance para
impedir que isto acontecesse, a menos que e até que encontrasse Deane.
Os homens, que furiosamente trabalhavam no local, não sabiam quem
era o agente do Departamento da Justiça e o que tentava fazer. Quando
este último perguntava, geralmente obtinha respostas precisas. Não obs-
tante, nenhum dos inquiridos pelo oficial de justiça sabia se o chefão esta-
va ou não no local ou, caso estivesse, onde poderia ser localizado. Mas, o
oficial podia não demorar em encontrar alguém que soubesse. A coisa se
tornava uma espécie de jogo de cabra-cega... observado pelo aparelho de
circuito fechado na sala de conferências de Deane.
Parker, que conhecia o agente da Justiça, acompanhava-o pela tela
de tempos em tempos e, quando o fazia praguejava de tal maneira que
alguns dos outros se viam obrigados a protestar em nome de Georgia Li-
ghton. Sua atenção, entrementes, se concentrava cada vez mais nos pre-
parativos reais do lançamento, que estavam perto de conclusão.
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A contagem regressiva se desenvolveu sem uma única interrup-
ção. Instrumentos, linhas de comunicações, suprimentos de combustível,
tempo, rede de rastreamento de “fabricação caseira”, tudo trabalhava sin-
cronizado como as partes de uma bússola giratória. Só faltavam quinze
minutos para a detonação, quando o homem, que trouxe o último bule
de café à sala de conferências, se revelou como um membro do bando de
oficiais de justiça. Deu, aborrecido, uma olhada pela sala, e, ao perceber
que Deane não se achava no grupo em torno da tela de TV, deixou-se cair
numa cadeira, junto à mesa, sem ser convidado.
— Se Mike não o pegar no local de lançamento — rosnou êle, de-
sanimado — eu o agarrarei quando vier para cá.
Um dos homens junto ao aparelho de TV bufou, porém, ninguém
lhe falou coisa alguma.
— Não se preocupem — continuou o oficial de justiça — com a
subida ou não do foguete de vocês. Uma vez que agarremos Deane — e o
faremos! — as operações com o satélite e tudo o mais se paralisarão até
que o Serviço da Renda Interna endireite as coisas.
Puxou do bolso um amarrotado maço de cigarros e se acomodou
para observar a tela.
Neste momento, o rosto de Deane surgiu na tela. Estava em roupa
espacial e se encaminhava para o foguete. Quando se voltou para saudar
a câmara, o agente da Justiça saiu do escritório correndo e dizendo:
— Por Deus! Êle mesmo vai voar! Se apenas pudesse comunicar-
me com Mike!
Dez minutos depois, os espectadores em torno da tela instruíam
para que a câmara se deslocasse alternadamente entre o estrado de lan-
çamento e o agente da Justiça no campo. A câmara depressa distinguiu
este último a cem metros da porta principal, quando ali ocorreu uma per-
turbação.
Um desconhecido, troncudo, o tipo escarrado do policial, discutia
com o guarda junto à porta. Subitamente, abriu sua pasta e tirou dela um
gato raivoso, que passou às mãos do assombrado guarda! Na confusão,
que se seguiu, deslizou para dentro e se dirigiu rapidamente em direção
a “Mike”.
— Deve ser alguém que nosso recente visitante alcançou pelo tele-
fone — resmungou nervosamente Parker.
— Certo — disse uma voz atrás dele. Era o agente da Justiça que
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voltava a se afundar na poltrona.
— De certo modo, devemos atribuir-lhe grau dez pela imaginação
— admitiu Parker.
— Isto mesmo — replicou o agente. — Ainda não viram nada. Ago-
ra que Mike sabe que êle está aí, não deixará de agarrá-lo. Esperem e
verão!
Neste momento, uma voz saída da tela disse:
— Marcação menos dois minutos e prossegue a contagem.
Parker voltou-se para o intruso e disse:
— Aí estão vocês, Bichão. Seu amigo Mike se acha a três quilôme-
tros do estrado. A menos que seja capaz de voar, estará perdido.
Mike não era capaz de voar. Muito antes que tivesse coberto um
quarto da distância, uma nuvem de fogo alaranjado e côr-de-rosa explo-
diu do estrado e Deane já se achava a caminho do espaço.
Os ansiosos minutos antes que uma órbita perfeita fosse atingida
se passaram em silêncio tenso, respeitado até pelo vexado esbarro. Quan-
do a órbita foi atingida, êle aderiu aos aplausos.
A tela de TV mostrava a evolução do balão. Depois, deslocou-se
para mostrar Deane timidamente flutuando dentro dele. Peças de equi-
pamento finas como pano flutuavam ao seu redor como pedacinhos de
papel num aquário de peixes dourados. A voz de Deane podia ser ouvida
pela ligação radiofônica, informando todo movimento e ação à base. As
profundidades da Bolha sumiam atrás dele como uma vasta caverna, ilu-
minada com cálida luz solar refletida pelas paredes de plástico opostas a
uma das bôlhas-portinholas cheias de gás.
Ninguém soube quanto tempo passou enquanto espiavam Ted De-
ane desdobrando e inflando equipamento, instalando seções de parede
e jogando para baixo suprimentos com linhas de uma rede araneiforme.
Porém, quando, finalmente, tirou seu capacete espacial e levantou o po-
legar e o indicador no sinal circular de triunfo, a sala de conferências se
achava superlotada. Ali estavam todos os seis elementos da equipe de
oficiais de justiça.
A voz de Deane saiu da tela, cruzando o espaço:
— Randy! Agora, pode falar-lhes.
Virando de costas, Deane flutuou para fora do alcance da câmara.
Raldolph Parker se ergueu em meio de um silêncio expectante.
— E o que lhes direi é o seguinte : todos os principais acionistas
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da companhia transferiram os podêres a Theodor Deane, presidente da
firma. Ele pretende dirigir a Deane Aircraft — Spacecraft, Incorporated, do
próprio espaço, onde se encontra agora. Quem quiser entregar-lhe uma
interdição, que o impeça de fazê-lo, será bem-vindo ali. Terá de encontrar
um táxi por si mesmo, no entanto. A companhia não o fornecerá. Deane
não descerá antes que a projetada Plataforma Espacial seja bem sucedi-
da ou a companhia tenha decididamente falido. Se o Departamento de
Renda Interna pretende obter algo que considera ser-lhe devido, é preci-
so que membros da tripulação, cientistas, técnicos, suprimentos, equipa-
mento e ulteriores sistemas de recursos vitais sejam postos em órbita e
introduzidos na Bolha, porque a companhia falirá sem eles. Sendo assim,
sugiro que continuemos com o trabalho. É o que os acionistas esperam
de nós.
Um dos agentes da Justiça deu um passo à frente, dizendo:
— Sr. Parker, esta é a primeira vez que esta equipe falha em pegar o
seu homem. E, para ser honesto, estou quase contente com isto.
Ofereceu a mão a Parker e depois perguntou:
— Onde poderei comprar algumas ações da Spacecraft?

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EXPERIMENTE UMA FACA CEGA

Harlan Ellison

Trad. de Noé Gertel

Era uma noite de pachanga na Gruta. Três charangas estridentes


tocavam ao mesmo tempo, todas com uma gorda cantora balançando
suas carnes e gritando Vaya! O som era algo visível, uma agressão de lamé
prateado e megafone, que pendia denso como névoa de fumo, recenden-
te como odor de jaritacaca. A escuridão era fendida por cintilações mer-
curiais de bocas, que se abriam para mostrar obturações de ouro e soltar
palavras sujas. Eddie Burma entrou cambaleando, inclinou-se contra uma
parede e se sentiu tão mal como se tivesse a garganta entupida com al-
godão grosso.
A profunda ferida, queimando de dor, sangrava lentamente no seu
flanco direito. O sangue começou a coagular. A camisa agarrava-se-lhe ao
corpo, mas êle suportava: já não latejava. Encontrava-se, porém, numa
embrulhada, esta a pura verdade. Ninguém pode ser ferido como o fora
Eddie Burma e não se encontrar seriamente perturbado.
E de alguma parte lá fora, na noite, vinham chegando à sua procu-
ra. Precisava achar. . . quem? Alguém. Alguém que fosse capaz de ajudá-
lo, porque só agora, depois de quinze anos do que lhe acontecera, Eddie
Burma finalmente compreendia o que tinha sido, o que lhe fizeram... o
que lhe estavam fazendo... o que certamente lhe fariam.
Desceu trôpego o pequeno lance de degraus para dentro da Gruta
e instantaneamente se viu perdido em meio à fumaceira, os odores e as
sombras contorcidas. Fumaceira étnica, odores porto-riquenhos, sombras
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luxuriantes de outra terra. Conseguia senti-lo, embora suas forças dimi-
nuíssem.
Este constituía o problema de Eddie Burma. Era homem dotado de
empatia. Sentia. Profundamente dentro de si, num nível cuja existência a
maioria dos homens nem mesmo suspeitava, sofria pelo mundo. Motiva-
va-o o compromisso com os seres humanos. Mesmo aí, nesse sórdido clu-
be noturno, onde a intensidade do gozo substituía o encanto superficial e
a falta de gosto das boates de luxo, mesmo aí, onde ninguém o conhecia
e não poderia ofendê-lo, sentia o pulsar da vida do mundo perpassar atra-
vés do ser. E o sangue começou o latejar de novo.
Abriu caminho através da multidão, procurando uma cabina tele-
fônica, um toalete, um reservado vazio onde se pudesse esconder, procu-
rando a pessoa ou pessoas desconhecidas, que fossem capazes de salvá-lo
da noite escura da alma, que se lhe chegava inexoravelmente.
Agarrou um garção, com bigode à Pancho Villa, avental branco sujo
e uma bandeja de cervejas.
— Ei, você aí, onde é o gabinetto? — perguntou em linguagem
engrolada.
O garção porto-riquenho o fitou sem compreender:
— Perdon?
— O toalete, o míctório, o banheiro, a privada. Estou sangrando
mortalmente. Onde é?
— Ah! — o garção começou a compreender. — Excusado... atavio!
Mostrou onde ficava. Eddie Burma deu-lhe uma batidinha no bra-
ço e tropeçou, quase caindo dentro de um reservado onde um homem e
duas mulheres se bolinavam às escondidas.
Encontrou a porta do toalete e abriu-a. Um refugo de super-ho-
mem cubano de filme de cinema alisava os compridos cabelos cheios de
brilhantina, ajeitando-os diante do espelho embaçado. Deu uma olhadela
em Eddie Burma e logo retornou ao arranjo topográfico do penteado. Bur-
ma passou por êle no minúsculo aposento e se esgueirou para dentro do
primeiro quartinho.
Uma vez ali, trancou a porta e sentou pesadamente sobre o vaso
sem tampa. Puxou a camisa para fora das calças e a desabotoou. A camisa
estava colada à pele. Deslocou-a delicadamente e ela se afastou da pele
com ruído de barro pisado na caminhada. A facada ia desde o mamilo
direito até o meio da cintura. Era profunda. Situação difícil.
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Ergueu-se, dependurou a camisa no prego atrás da porta e tirou
algumas meadas de papel higiênico do rolo cinzento. Fêz um chumaço
com o papel, molhou-o na bacia do vaso do toalete e esfregou na ferida,
ó Deus, era realmente profunda.
Sentiu-se dominado pela náusea e voltou a sentar-se. Vieram-lhe
estranhos pensamentos, nos quais se deixou submergir:
Esta manhã, quando saí pela porta da frente, rosas amarelas flo-
riam nos arbustos. Isto me surpreendeu. Negligenciara de podá-los no
último outono e estava certo de que os botões nodosos e doentios nas
extremidades dos galhos — ainda ali, silenciosamente mortos como cen-
sura à minha negligência — frustariam o surgimento de qualquer beleza.
Quando, porém, saí para apanhar o jornal, ali estavam as rosas, em sua
plenitude de amarelo claro, quase amarelo canário, respirando úmida e
suavemente. Isto me fêz sorrir e desci os degraus para apanhar o jornal
à entrada. O lugar de estacionamento se enchera de novo de folhas de
eucalipto, mas de certo modo, particularmente nesta manhã, isto dava à
pequena área que circundava em baixo a minha casa isolada nos morros,
um aspecto mais vivaz e festivo. Pela segunda vez, sem qualquer razão
sensível, vi-me sorrindo. O dia iria ser bom e tive a sensação de que todos
os problemas de que me incumbira, todas as causas sociais de que me en-
carregara — Alice, Burt e Linda lá em baixo, todos os aleijões emocionais
que buscavam meu socorro — se resolveriam e todos estaríamos sorrindo
no fim do dia. E, se não hoje, segunda-feira. Sexta-feira, o mais tardar.
Apanhei o jornal e rompi o atilho de borracha, jogando-o na gran-
de lata de lixo ao pé da escada. Comecei a subir de volta à casa, sentindo
o cheiro de flores de laranjeira no ar da manhã, fino e gélido. Enquanto
subia, abri o jornal e, com a subitaneidade de um choque de trens, a calma
da manhã se esvaiu no meu redor. Detive-me entre um degrau e outro e
senti os olhos bruscamente esbugalhados, como se não houvesse dormido
bastante na noite anterior. Mas havia.
A manchete anunciava: EDWARD BURMA ENCONTRADO MORTO.
Mas. . . eu era Eddie Burma.
Voltou das lembranças de rosas amarelas e metal contorcido nas
ferrovias para descobrir que estava caído num canto do quartinho do toa-
lete, a cabeça premida contra a parede de madeira, os braços baixados, o
sangue correndo para a cintura de suas calças. A cabeça palpitava e a dor
no flanco mordia, martelando, esmurrando com uma regularidade que o
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fêz arrepiar-se de medo. Não podia continuar sentado ali a esperar.
Esperar que morresse ou esperar que o descobrissem.
Sabia que o descobririam. Sabia-o.
O telefone. Poderia chamar. . .
Não sabia a quem poderia chamar. Mas devia haver alguém. Al-
guém que compreendesse, que viesse rapidamente e o salvasse. Alguém
que não se aproveitaria do que restava dele do jeito que fariam os outros.
Eles não precisavam de facas.
Como era estranho que não o soubesse aquela lourinha de olhos
de menina pobre. Ou talvez o soubesse. Mas talvez também o frenesi do
momento a tivesse dominado e ela não pudesse simplesmente comer
devagar, como o faziam os outros. Ela o feriu. Fêz o mesmo que todos,
porém, diretamente, sem sutileza.
Sua lâmina era afiada. Os outros usavam armas muito mais tortu-
osas e capciosas. Quis dizer-lhe: “Experimente uma faca cega”. Mas ela
estava demasiado sôfrega e impulsiva. Não o teria ouvido.
Ergueu-se com esforço e vestiu a camisa. Sentiu dor ao fazê-lo. A
camisa estava manchada de sangue. Mal se mantinha de pé.
Passo a passo, vagarosamente, deixou o toalete e saiu para o re-
cinto da Gruta. O som de Mamacita Lisa golpeou-o como mãos cultiva-
das, batendo numa vidraça de janela. Inclinou-se contra a parede e só viu
formas em contínuo movimento no escuro. Será que estavam ali fora?
Não, ainda não. Nunca procurariam primeiro por aqui. Não era conhecido
por estas bandas. Sua essência se debilitava à medida em que morria, de
modo que ninguém viria a êle com uma necessidade fremente. Ninguém
consideraria possível beber deste homem fraco, apoiado contra uma pa-
rede.
Viu um telefone público, próximo à entrada da cozinha, e abriu ca-
minho para alcançá-lo. Uma jovem de cabelos compridos e olhos espan-
tados fitou-o quando passou, começou a dizer alguma coisa, mas êle con-
centrou suas forças para adiantar-se depressa, antes que a jovem pudesse
dizer-lhe que estava grávida e não sabia quem era o pai ou que sofria de
enfisema e não tinha dinheiro para o médico ou ainda que sentia falta da
mãe, que continuava em San Juan. Não era capaz de lidar com mais sofri-
mentos, de absorver mais angústias, de deixar que outros bebessem do
seu ser. Não lhe sobrava muito para sua própria sobrevivência.
As pontas dos meus dedos (refletiu, enquanto andava) estão cober-
71
tas com as feridas dos homens que toquei. A carne guarda a recordação
desses contatos. Às vezes, sinto como se usasse grossas luvas de lã, tão
espessas são as lembranças de todos esses contatos. Isto parece isolar-
me, separar-me da humanidade. Não separa a humanidade de mim. Deus
sabe, porque ela me penetra sem pausa e sem dificuldade, mas me sepa-
ra, a mim, da humanidade. Com freqüência, evitei de lavar as mãos duran-
te dias seguidos, apenas para preservar todas as camadas de toques, que
poderiam ser lavadas pelo sabão.
Rostos, vozes e odores de pessoas que conheci, se desvaneceram,
porém, minhas mãos ainda trazem sua recordação. Camada após camada
de contato de mãos. Será isto inteiramente são? Não sei. Terei de pensar a
respeito durante longo tempo, quando tiver tempo.
Se ainda tiver tempo.
Conseguiu chegar ao telefone público. Depois de muito tempo, foi
capaz de tirar uma moeda do bolso. Era um quarto dólar. Precisava de
uma moeda de dez centavos, mas não podia sair dali porque talvez não
tivesse forças para voItar. Usou um quarto de dólar e discou o número
de um homem em quem podia confiar, um homem que seria capaz de
ajudá-lo. Recordou o homem na hora, compreendeu que só este homem
representava sua salvação.
Recordou-se de vê-lo na Geórgia, numa assembléia de pregação da
fé, um circo rural de discurseira religiosa, cheio de gritos e aleluias, que
soavam como A!L!E!L!U!I!A! com rostos escuros e pescoços rubros, todos
se empenhando desesperadamente para chegar ao trono de Deus, na pla-
taforma. Lembrou-se do homem em mangas de camisa branca, exortando
a multidão, e mais uma vez ouviu a mensagem do espírito desse homem:
“Vinde ao Senhor antes que Êle venha direto a vós! Não continueis
a sofrer os vossos pecados em silêncio! Mostrai vossa verdade, trazei-a
em vossas mãos, dai-me, toda a fealdade e a sujeira de cloaca de vossas
almas! Irei lavar-vos no sangue do Cordeiro, no sangue do Senhor, no san-
gue da verdade da Palavra! Não há outro caminho. Não há grande dia que
chegue sem vossa purgação, sem que limpeis vosso espírito! Posso domi-
nar todo o sofrimento, que ferve na negra fossa sem luz de vossas almas!
Ouvi-me, querido Deus, ouvi-me. . . Sou vossa boca, vossa língua, vossa
garganta, a trompa que proclamará vossa entrega aos Céus! Mal e bem,
aflição e tormento, tudo isso é meu, posso carregá-lo, posso dominá-lo,
posso extraí-lo de vossa mente, de vossa alma, de vosso corpo! O lugar é
72
aqui, o lugar sou eu, dai-me vossa desdita! Cristo o soube, Deus o sabe, Eu
o sei e agora, vós deveis sabê-lo! Argamassa e espátula, tijolo e cimento
fazem o muro de vossa necessidade! Deixai que derrube esse muro, deixai
que ouça tudo, deixai que penetre em vossas mentes e receba vossas car-
gas! Sou a força, sou a estação de águas. . . vinde beber de minha força!”
E o público se precipitou para êle. Todos por cima do homem como
formigas devorando um animal morto. E, então, a recordação se dissol-
veu. A imagem da assembléia religiosa na tenda se diluiu em imagens de
animais selvagens dilacerando carne, de hordas de abutres descendo so-
bre carne podre, de peixinhos com dentes aguçados saltando sobre carne
desamparada, de mãos e mais mãos e dentes que afundavam em carne.
O número do telefone estava ocupado.
Outra vez ocupado.
Discou o mesmo número durante cerca de uma hora e o número
sempre ocupado. Dançarinos com rostos suados quiseram usar o telefo-
ne, mas Eddie Burma disse-lhes, com cara fechada, que aquela ligação era
para êle questão de vida ou morte. Os dançarinos voltavam aos parceiros,
rogando-lhe pragas. Mas a linha se achava ocupada. Olhou, então, o nú-
mero do telefone público e percebeu que, durante todo o tempo, esteve
discando para si próprio. Que a linha estaria sempre, sempre ocupada, e
que seu ódio furioso do homem na outra extremidade, que não respon-
deria, era ódio do homem que estava chamando. Chamava a si próprio e,
naquele instante, lembrou-se de quem era o homem na assembléia de
pregação da fé. Lembrou-se saltando da audiência para a plataforma e
pedindo a todos os sofredores que dessem fim à dor pela bebida de sua
essência. Recordou e o medo era maior do que poderia crer. Fugiu para o
toalete, afim de esperar que o descobrissem.

Eddie Burma, escondido no quarto de despejo de invisível casa es-


cura, no inferno de um universo que o distinguira para a realidade. Eddie
Burma era um indivíduo. Tinha substância. Tinha corporalidade. Num
mundo de sombras errantes, de almas penadas e de olhos parados como
a carne fria e morta da Lua, Eddie Burma era uma pessoa real. Nascera
com a aptidão de pertencer à sua época, com a eletricidade da natureza
que alguns chamam carisma e outros chamam afeição. Sentia profunda-
mente. Andou pelo mundo, tocou e foi tocado.
Tinha uma existência condenada, porque não só era extrovertido e
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sociável, mas verdadeiramente perspicaz, enormemente inventivo, inun-
dado de humor e dotado do poder de ouvir. Por essas razões, passou pe-
los estágios de exibicionismo e de conquista de louvores para um estado
em que sua realidade estava assegurada. Em que era muito sua própria.
Quando ingressava numa sala, as pessoas o sabiam. Tinha um rosto. Não
uma imagem ou uma vida sucedânea que pudesse botar por cima quando
na lida com os homens, mas uma realidade autêntica. Era Eddie Burma,
só Eddie Burma e não poderia ser confundido com ninguém mais. Seguia
seu caminho e era identificado como Eddie Burma aos olhos de todos que
o encontrassem. Era um desses homens memoráveis. Da espécie de que
falam aqueles, que não dispõem de existências próprias. Recolhia de con-
versas:
— Sabe o que disse Eddie Burma?
Ou:
— Adivinhe o que aconteceu a Eddie Burma. . .
E nunca houve confusão a respeito de quem se tratava.
Eddie Burma era uma figura não mais vasta do que a vida, porque
a vida mesma era bastante vasta, num mundo onde a maioria dos que
encontrava não possuía individualidade, nem personalidade, nem reali-
dade!, nem existência própria.
Mas o preço que pagou foi o preço da condenação. Porque os que
nada possuíam vinham a êle e, como criaturas das trevas, amoralmente
se alimentavam dele. Bebiam dele. Eram os súcubos drenando suas ener-
gias psíquicas. E Eddie Burma tinha sempre mais a dar. Aparentemente
um poço sem fundo, o fundo foi, no entanto, atingido. Afinal. Todos os
homens de cujas desgraças tratara, todos os vencidos cujas vidas tentara
restabelecer, todos os répteis rapinantes, que rastejavam através das cin-
zas da não existência para comer à sua mesa, para saciar a sede do vazio...
todos estes lhe cobraram um imposto.
Agora, Eddie Burma cambaleava nos últimos momentos de sua re-
alidade, com os mananciais do eu quase totalmente drenados. Esperando
por eles, por todas suas causas sociais, por todas suas crianças-proble-
mas, que viessem e o liquidassem.
Vivi num mundo faminto, compreendeu, enfim, Eddie Burma.
— Ei, homem, saia dessa latrina!
A voz estentórica e as batidas na porta do quartinho soaram simul-
taneamente.
74
Eddie tremeu dos pés à cabeça e destrancou a porta, esperando
que fosse um deles. Mas era apenas um dançarino da Gruta, querendo
livrar-se do vinho ou de cerveja barata. Eddie saiu trôpego do quartinho,
quase caindo nos braços do homem. Quando o troncudo porto-riquenho
viu o sangue e a lividez das carnes e dos olhos, abrandou as maneiras.
— Ei!. . . está bem, homem?
Eddie lhe sorriu, agradeceu de leve e saiu do toalete. O clube no-
turno ainda se agitava e gritava e Eddie, repentinamente, percebeu que
não poderia consentir que eles descobrissem este bom lugar, onde toda
esta boa gente mergulhava na vida e vivia. Porque, para eles, isto consti-
tuiria uma dádiva de Deus e esgotariam a Gruta como fizeram com Eddie.
Encontrou uma saída pelos fundos e emergiu na noite da cidade
sem lua, tão estranha como uma caverna a dez quilômetros abaixo da ter-
ra ou a curvatura fantástica de outra dimensão. Esta alameda, esta cidade,
esta noite poderiam facilmente estar na Transilvânia ou na face escura
da Lua ou no fundo sujo do mar. Caminhou aos tropeços pela alameda,
pensando. . .
Eles não possuem vidas que lhes sejam próprias.
Oh! este mundo envenenado, que agora vejo tão claramente.
Possuem somente as sombras de imagens de outras vidas e nem sequer
outras vidas reais — as vidas dos astros dos cinemas, dos heróis de fic-
ção, dos clichês culturais. Por isto, tomavam-me emprestado e nunca pre-
tenderam pagar. Tomavam emprestado à mais alta taxa de juros. Minha
vida. Sou o cogumelo, que Alice encontrou com as palavras COMA-ME no
vermelho-sangue do meu id. São duendes drenando-me, drenando minha
alma. Às vezes, sinto que deveria ir a certo poço místico e de novo me en-
cher de personalidade. Estou cansado. Tão cansado. . .
Existem homens andando por esta cidade, que se sustentam com
as energias extraídas de Eddie Burma, com a força vital de Eddie Burma.
Perambulam com sorrisos iguais ao meu, com pensamentos que lhes dei
como se dá roupas velhas a parentes pobres, com movimentos de mão,
expressões e ditos inteligentes que são meus, gravados por cima dos seus.
Sou um quebra-cabeça do qual roubam pecinhas. Agora, não sou mais
apresentável, estou incompleto, incapaz de manter o quadro coerente, já
tomaram excessivamente de mim.
Vieram à sua recepção todos que conheceu. Os que chamava de
amigos, os que o usavam como seu feiticeiro, mistagogo, psiquiatra, muro
75
de lamentações, repositório de males, desditas e inadequações pessoais.
Alice, que temia os homens e encontrou em Eddie Burma um derradeiro
vestígio de crença em que nem todos os machos seriam animais. Burt, o
caixa do supermercado, que gaguejava e se sentia rejeitado antes mesmo
da rejeição. Linda, moradora do sopé do morro, que viu em Eddie Burma
um intelectual a quem poderia relatar todas as suas teorias sobre o uni-
verso. Sid, um fracassado aos cinqüenta e três anos. Nancy, cujo o marido
a traía. John, que desejava ser advogado, porém, nunca o seria porque se
preocupava demasiado com seu pé torto. E todos os outros. E todos os
novatos, que parecia trazer consigo. Havia sempre tanta gente nova, que
nunca conhecera. Particularmente, a bonita lourinha com olhos de meni-
na pobre, que o fitava com o olhar faminto.
Desde o começo daquela noite compreendeu que algo ia mal. Ha-
via gente demais na recepção. Mais do que poderia dominar... e todos
ouvindo-o contar uma estória de certa coisa, que lhe acontecera quando
viajou para Nova Orleans, em 1960, com Tony na Corvette, tendo ambos
apanhado pleuresia, porque o teto não fora fechado de modo apropriado
e tiveram de atravessar uma tempestade de neve em Illinois.
Todos pendiam de suas palavras, como roupa secando numa cor-
da, como festões de hera. Sugavam cada palavra e cada expressão à seme-
lhança de animais esfomeados chupando o tutano de ossos de boi. Riam,
espreitavam e seus olhos ardiam...
Eddie Burma sentiu lentamente que se esvaía de suas forças. Foi
se entediando mesmo enquanto falava. Isto já lhe havia acontecido antes,
em outras recepções, em outras assembléias, quando concentrara a aten-
ção do grupo e voltara para casa mais tarde, sentindo-se esgotado. Nunca
soube o que era.
Naquela noite, contudo, o vigor não retornara. Ficaram observan-
do-o, pareciam alimentar-se dele e a coisa foi avançando pouco a pouco
até que finalmente, disse-lhes que precisava dormir e que deviam ir para
casa. Mas eles pediram mais uma anedota, mais uma piada contada em
dialeto perfeito e com gesticulação estudada. Eddie Burma começou a
chorar silenciosamente. Seu olhos estavam congestionados e seu corpo
sofria, como se os ossos e a musculatura tivessem sido removidos, dei-
xando apenas um mole revestimento de borracha sujeito a desmoronar a
qualquer momento.
Tentou retirar-se para ir dormir, mas eles tornaram mais insisten-
76
tes, exigiram, ordenaram, fizeram-se indecentes. E foi então que a loura
se lhe aproximou e o feriu, com os outros apenas um passo atrás. De al-
guma maneira ... na confusão sórdida que se seguiu, com os amigos e
conhecidos se empurrando mutuamente para chegar até Eddie, este fu-
giu. Escapou, sem saber como, a dor no flanco esfaqueado estalando por
dentro. Escapou por entre as árvores do pequeno vale onde se escondia
sua casa e, atravessando a floresta, chegou à estrada, onde tomou um
táxi. Depois, dirigiu-se à cidade. . .
Vejam-me! Vejam-me, por favor! Não venham sempre só para to-
mar. Não se banhem na minha realidade para depois irem embora com
o sentimento de limpeza. Fiquem um pouco da sua sujeira esfregada em
mim. Sinto-me como um homem invisível, como uma torneira de água,
como armário cheio de doces. . . Ó Deus, será isto uma peça de teatro,
sendo eu involuntariamente o autor principal? Com que diabos sairei do
palco quando abaixarem a cortina? Haverá aí, ó Deus, por favor, um ho-
mem com um gancho...?
Faço meus giros, como um curandeiro da fé. Cada dia, passo um
pouco de tempo com um deles. Com Alice, com Burt, com Linda no sopé
do morro, e todos tiram algo de mim. No entanto, nada deixam em troca.
Não é permuta, é roubo. E o pior é que sempre careço disso, sempre con-
sinto que me roubem. Que necessidade mórbida é esta que lhes abriu a
entrada da minha alma? Mesmo o malandro vulgar deixa um objeto sem
valor quando rouba um objeto sem valor. Nada tomo deles: a mais ínfima
anedota, o pensamento mais usado, o conceito mais estagnado, o trocadi-
lho mais barato, a revelação pessoal mais detestável. . . nada! Mas o que
todos fazem é sentar-se e fitar-me, as bocas abertas, os ouvidos absorven-
do tão completamente minhas palavras que chegam a esvaziá-las de côr
e aroma. . . Sinto como se rastejassem para dentro de mim. Não consigo
mais suportar. .. realmente não consigo.
A saída da alameda estava bloqueada.
Sombras moviam-se por ali.
Burt, o caixa. Nancy, Alice e Linda. Sid, o fracassado. John, que ca-
minhava coxeando. E o médico, o consertador de vitrolas automáticas, o
cozinheiro que fazia pizzas, o vendedor de carros usados, o casal rebolan-
te que trocava de parceiro, o dançarino de discoteca. . . todos. Vinham à
sua procura.
Pela primeira vez, notou seus dentes.
77
O momento, antes que êle fosse alcançado, dilatou-se tão silencio-
so e fora do tempo como a decadência que lhe devorava o mundo. Não
teve tempo para autocompaixão. Não se tratava simplesmente de que
Eddie Burma tinha sido vítima de canibais a cada dia do ano, a cada hora
do dia, a cada minuto de todas as horas de todos os dias de todos os anos.
Despontou nele a consciência infeliz — naquele momento do tem-
po sem tempo — de que consentira no que tinham feito consigo. De que
não era melhor do que os outros, apenas diferente. Eles eram comen-
sais... e êle era o alimento. Necessitava de ter quem o cultuasse e admi-
rasse. Necessitava do amor e da atenção das massas, do culto de símios.
E para Eddie Burma isto significou uma espécie de começo da morte. Era
a morte de sua falta de autoconsciência, o assassínio de sua inocência.
Tornou-se doravante, consciente das coisas inteligentes que disse e fêz,
em nível celular abaixo da consciência. Estava consciente. Consciente,
consciente, consciente!
E a consciência o conduziu a eles, os que se alimentavam de seu
ser. Conduziu-o à autoconsciência, à mesquinhas pretensões, à ostenta-
ção. E isto era algo destituído de substância, de realidade. Se nada existia
aí de quem não pudessem nutrir-se seus acólitos, era no entanto, um ser
humano falso, espúrio, vazio.
Eles o esgotariam.
O momento atingiu um climax intemporal. Eles sobrecarregaram-
no com seu peso e começaram a comer.
Quando tudo acabou, abandonaram-no na alameda. Foram caçar
em qualquer outra parte.
Tendo chupado todo sangue, os vampiros correram em busca de
outras artérias pulsantes.

OBRIGADA, OBRIGADA
E a estranha jovem tinha mesmo o que agradecer. O confiante Jim, no
calor de sua conquista, aliás fácil, nunca poderia prever um fim tão extraordinário
para a aventura. . . se é que pôde perceber tal fim, em qualquer tempo. O conto
“... Se não fosse a graça de Deus”, de Gilbert Thomas, que aparecerá no próximo
número é arrojado e perturbador.

78
ERA UMA VEZ...

Phyllis Murphy

Trad. de Noé Gertel

Barney era bonito. Ainda lhe sinto a falta. Não creio, tampouco,
que os garotos o tenham esquecido.
Agora que tenho a oportunidade de examinar o passado, posso
verificar que não era a paixão que tornava nosso namoro tão delirante.
Barney simplesmente estava com pressa. Sempre foi apressado. Parece
que é isto o que mais recordo a seu respeito.
Antes que viesse a sabê-lo, já estávamos casados, a lua-de-mel se
fora e tínhamos uma casa na Ilha, um segundo carro, enquanto um bebê
se achava a caminho. “Não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar o
tempo” — costumava Barney dizer, sobretudo quando saía para o traba-
lho. Não lhe agradava o bate-papo.
Se dispusesse de cinco minutos para poupar, Barney faria alguma
coisa com eles. Arranjaria suas roupas para a semana, separaria os papéis
em sua pasta, tomaria notas no bloco de apontamentos ou engraxaria os
sapatos. Em dez minutos, poderia lavar o carro ou descer ao porão e cons-
truir metade de uma estante para livros. Era estupendo. Sempre se lem-
brava de nunca subir ou descer desnecessariamente pela escada. Durante
o dia, passaria por ela uma ou duas vezes, afora a descida pela manhã e
a subida à noite, e sempre com as mãos carregadas de coisas, que queria
recolocar nos seus lugares.
Fazia-me sentir como se fosse uma vadia. Não sei quantas vezes
me doutrinou acerca da importância de economizar o tempo. Dizia: “Isto
79
só acontece uma vez na vida”. Ou então: “Faça a conta”. Receio ter sido
decepcionante para êle, mas, na verdade, fiz força. Creio que não tinha
talento para essa coisa. Imaginar como economizar o tempo sempre me
tomava tanto tempo, que não sobrava nenhum para economizar.
Recordo quando Barney leu um livro sobre o sono. O autor deve
ter sido sua alma irmã, porque afirmava constituir o sono um esbanja-
mento de tempo e sugeria processos de treinamento para dispensar a
necessidade de dormir.
Barney decidiu que reduziria o sono a quatro horas por noite e logo
começou a treinar. Eu tinha de admirá-lo. Chegaria para o café da manhã
com os olhos turvos e aturdido, mas quem é que diz que daria o braço a
torcer? Bastava perguntar-lhe:
— Barney não está cansado?
— Claro que não. Por que diz isso?
— Ora, não sei. Creio que é porque você não conseguiu me encon-
trar, quando me procurou para o beijo da manhã.
— Sinto-me bem, perfeitamente bem.
E sempre foi assim.
Passei a treinar junto com Barney, porém não porque o quisesse.
Êle dava um jeito de fazer um mundo de coisas nas horas que tirava do
sono, mantendo-me de vigília na maior parte da noite, martelando, pin-
tando e ouvindo discos, esquanto eu lia ou assistia à televisão. Depois de
certo tempo, comecei a adoecer e meu médico me disse que carecia de
um bom repouso. Pensei que isto levaria Barney a mudar de idéia, mas
êle apareceu com uma solução diferente. Passou algumas de suas horas
poupadas ao sono arranjando nosso dormitório, a fim de colocá-lo à prova
de som, de modo que eu pudesse dormir, qualquer que fosse o barulho
que êle fizesse.
Devo admitir que o treinamento deu resultado, embora tivesse uns
poucos efeitos colaterais. Barney passava com apenas quatro horas de
sono e já não ficava atordoado pela manhã. Mas envelhecia muito depres-
sa e começou e apresentar um olhar estranho, parado.
Não suspeitei de nada desastroso, quando Barney chegou em casa,
uma noite, agitando um folheto e subindo às pressas para seu pequeno
gabinete de trabalho. Fazia, então as refeições na escrivaninha, para eco-
nomizar tempo, e eu já havia aprontado sua bandeja. Quando a levei para
cima, deixou que lesse o folheto por cima do seu ombro. Era propaganda
80
de um curso de leitura dinâmica e nunca vi Barney tão excitado.
— Já pensou? — disse êle — podemos aprender a ler seis jornais
em meia hora!
Fiquei preocupada com a despesa. Comprávamos um jornal e me
parecia que o gasto subia num lapso de poucos meses. Revoltei-me ao
pensar no que nos custariam seis jornais. E como nos desfaríamos deles?
Barney, porém, não concordou. Afirmou que eu raciocinava negativamen-
te. Naquela mesma noite, preencheu um formulário de assinatura e assi-
nou um cheque, para acompanhá-lo.
Barney lançou-se, de fato na leitura dinâmica. Exercitava-se duran-
te várias horas por noite e fazia tudo o que lhe ensinavam os professores.
Às vezes, quando escorava um livro sobre sua cômoda e se exercitava para
correr os dedos pela página, da maneira como lhe ensinaram, parecia re-
produzir um dos velhos filmes de Chaplin. Não se aborrecia, porém, com
a minha importunação.
Creio que o curso foi eficaz, uma vez que Barney lia um monte de
coisas.
Recebíamos seis jornais, já que Barney não poderia carregá-los no
trem. Toda noite, chegava em casa com os bolsos cheios de livrinhos. Cer-
ta noite, vi-o tentando algo novo. Disse que era uma invenção sua. Lia um
livro de bolso e, toda vez-que concluía uma página, rasgava-a, em vez de
virá-la. Havia, aos seus pés, uma pilha de páginas rasgadas.
— Não será isto terrivelmente dispendioso? — perguntei.
— Na verdade, não — respondeu, sem perder tempo para olhar.
Sabe que tempo também é dinheiro e que um minuto poupado pode ser
um dólar ganho.
Levou-me algum tempo tentar compreendê-lo e, afinal, desisti.
Barney gostava de reservar vinte minutos completos para ler os
jornais. Certa manhã, durante os cinco minutos que se concedia a si mes-
mo para o café, perguntei-lhe:
— Será que isto dá resultado?
— O quê?
— A leitura dinâmica. É realmente capaz de ler todas as palavras
tão depressa?
Confesso que estava ligeiramente ciumenta. Leio devagar e, com
freqüência, retorno aos trechos que agradam.
— Claro — respondeu. — Não lemos exatamente todas as pala-
81
vras, mas apenas as importantes.
— Neste caso como pode entender o que estiver lendo?
— A maioria das pessoas desperdiça palavras — disse Barney, dan-
do um olhar de relance no seu relógio apoiado contra o saleiro. — Na
leitura dinâmica, lemos o que faz sentido e pulamos o que não faz.
Já começava a pensar que tinha razão, quando algo estranho pas-
sou a acontecer. Barney nunca foi de muita falação, mas, ultimamente,
vinha reduzindo suas manifestações verbais até o osso. Em vez de me di-
zer “boa noite”, dizia algo que soava como “noit” e nem isto, quando se
tratava dos filhos. A esta altura, tínhamos três filhos e Barney sempre dera
“boa noite” especial a cada um deles. Agora, apenas botava a cabeça no
quarto das crianças e fazia um gesto, quando passava. Nossa menina mais
velha afirmou estar certa de que ouvira o som de sua voz, quando fazia o
gesto, porém era incapaz de distinguir alguma palavra.
Uma ocasião liguei o telefone para o seu escritório, a fim de lem-
brar-lhe de trazer para casa um fio elétrico para meu ferro de passar rou-
pa. Ao pegar no telefone, Barney limitou-se a dizer: “Alô, até logo”. Foi
tudo. E desligou.
Chamei-o de novo e sua secretária me informou que havia saído,
de modo que deixei o recado com ela. Barney trouxe o fio e não mencio-
nou o incidente ao telefone. Pensei que estivesse mais apressado do que
costume. Nada mais do que isso.
No entanto na semana seguinte, no sábado, tivemos conosco al-
guns amigos e estes notaram o que se passava. Barney indagou de cada
um o que desejava beber. As pessoas que êle omitiu, ficaram inicialmente
um pouco ofendidas, mas eu tentei dar à coisa aspecto de brincadeira. De-
pois passamos à sala de jantar e Barney só havia arrumada três cadeiras à
mesa. Éramos oito para jantar.
Também estava quase desconexo, o que me fêz pensar que tivesse
tomado uns tragos na cozinha. Compreendo, agora, que não era a bebi-
da que o fazia falar de modo tão estranho. Após o jantar, conversávamos
acerca da eleição do conselho escolar e êle disse algo como: “Malditos
idiotas!”. Ninguém conseguiu entender, de modo que sorrimos agradàvel-
mente e nos esforçamos para não fazer caso.
Depois de todos sairem, Barney me ajudava a arrumar a sala de
visitas, quando me aconteceu mencionar que um de nossos amigos per-
dera muito peso. Mencionei, de fato, Tim Hart, um dos melhores amigos
82
de Barney.
— Quem? — perguntou Barney.
— Tim.
— Quando viu?
Tanto quanto pude entender, Barney me perguntava quando vira
Tim. Indaguei-lhe se era isto e êle concordou com a cabeça.
— Justamente em nossa casa. Hoje à noite.
Ao dizê-lo, comecei a ter horrível pressentimento.
Tudo o que êle disse a seguir era completamente adulterado. Esta-
va furioso e só pude pegar as palavras “brincando por aí”.
— Barney, não está ouvindo o que digo.
— Estou.
— Não, não está! Não percebe o sentido de minhas palavras, quan-
do nem mesmo sabe que Tim esteve aqui à noite e lhe falou. Como pode-
ria eu estar brincando por aí com êle?
Barney encheu os braços de coisas do andar superior e se dirigiu
para o gabinete. Tentei ficar desperta até que viesse dormir, porém, não
agüentei. Sentia-me exausta.
Também me encontrava preocupada. Não sabia ainda que Barney
tinha igualmente problemas no escritório, mas já não conseguíamos co-
municar-nos reciprocamente. Talvez êle fosse capaz de me compreender,
mas eu ficava feliz se compreendesse duas de suas palavras num dia.
Foi o patrão de Barney quem me falou acerca do que acontecia.
Também se preocupava com Barney e, certo dia, chamou-me e sugeriu
que o levasse a um médico, preferivelmente a um psiquiatra. Não que
duvidasse da honestidade de Barney, fique claro, mas era preciso verificar
as causas dos erros de contabilidade que meu marido cometia.
— Pula colunas inteiras de algarismos! — informou-me o patrão.
— Seus totais são ridículos!
Disse que faria o melhor ao meu alcance, porém, não pensei real-
mente em levar Barney a um médico. Na verdade, Barney era a única pes-
soa que não se achava transtornada com o que lhe acontecia. Até nossos
filhos se encolhiam de medo, quando êle corria pela casa, fazendo seus
misteriosos ruídos. Mas êle estava feliz. Economizava muito tempo e era
o que queria.
Nada poderia fazer, exceto aguardar pelo fim da coisa. E este veio
depressa, como tudo o que se referisse a Barney.
83
Morávamos num conjunto residencial onde existem mil outras ca-
sas parecidas com a nossa, o que, de fato, nunca incomodou a ninguém
que morasse por ali. Costumávamos contar piadas sobre pessoas que,
no escuro, entravam na casa errada, porém, tanto quanto soubesse, nin-
guém o havia feito. Mas notei que Barney vinha tendo dificuldade em
identificar sua própria casa. Vinha correndo pela rua, olhando de soslaio
para os números das casas e, uma vez ou duas, recuava um pouco e dava
uma olhadela para a casa vizinha. Por prevenção comecei a esperar na
janela da frente, na hora de sua chegada.
Era uma noite de sexta-feira, quando aconteceu. Eu me achava à
janela e Barney chegou correndo pela rua, um pouco mais rápido do que
de costume. Uma estranha espécie de terror se passou de mim e me pre-
cipitei para abrir a porta. Gritei:
— Barney!
Ele nem se voltou. Continuou correndo, sem sequer olhar os nú-
meros das casas. Iria percorrer toda a rua, talvez o conjunto residencial in-
teiro! Corri atrás dele enquanto pude, mas, por fim, tive de parar, porque
não tinha mais fôlego.
Esperei que desaparecesse de minha vista e pensei no que diria às
crianças. E os vizinhos? E o patrão de Barney?
Nunca mais vi Barney, nem ninguém que o houvesse conhecido.
Pulou por cima de todos nós. Senti-me magoada por não ser bastante
importante para que êle me retivesse na memória, mas acabei superando
a crise. Vez por outra sinto sua falta, principalmente quando penso nele. E
continuo a pensar nele. Esquisito.

84
SEGREGAGIONISTA

Isaac Asimov

Trad. de Noé Gertel

O cirurgião ergueu o rosto inexpressivo e perguntou:


— Êle está pronto?
— Pronto é um termo relativo — respondeu o médico-engenheiro.
— Nós estamos prontos. Êle continua inquieto.
— Sempre estão... A operação é séria.
— Séria ou não, deveria ser grato. Foi selecionado em meio a enor-
me número de candidatos possíveis e, francamente, não sei...
— Não diga isto. A decisão não é de nossa competência.
— Nós a aceitamos. Será, porém, que devemos concordar?
— Sim — afirmou o cirurgião com aspereza. — Concordamos.
Completa e sinceramente. A operação é complicada em excesso para ser
abordada com reservas mentais. Este homem demonstrou seu mérito de
numerosas maneiras e sua biografia é adequada, na opinião do Conselho
de Mortalidade.
— Que assim seja.
— Creio que logo o verei aqui. Isto é suficientemente pequeno e
pessoal para ter um ar confortante.
— Não vai adiantar. Êle está nervoso e já tomou uma decisão.
— Tem certeza?
— Sim. Quer metal. É o que sempre querem.
O rosto do cirurgião não mudou de expressão. Fitou suas mãos e
falou:
85
— Às vezes, é possível dissuadi-los.
— Para que esta preocupação? — disse o médico-engenheiro com
indiferença. — Se deseja metal, deixa ser metal.
— A você não importa?
— Por que deveria importar-me? — replicou o médico-engenheiro
quase brutalmente. — Seja como fôr, é um problema de engenharia mé-
dica e sou engenheiro-médico. De qualquer modo, sou capaz de enfrentar
o problema. Por que, então, devo preocupar-me com outra coisa?
O cirurgião interveio de modo fleumático:
— Para mim, trata-se da adequação das coisas.
— Adequação! Não pode usá-lo como argumento. Por que vai o
paciente se preocupar com a adequação das coisas?
— Eu me preocupo.
— Está em minoria. A tendência é contrária. Você não dispõe de
possibilidade.
— Preciso tentar.
O cirurgião deixou o médico-engenheiro em silêncio com um rápi-
do gesto da mão, um gesto meramente vivaz, sem impaciência. Já infor-
mara à enfermeira e já recebera a comunicação de que ela vinha. Apertou
um pequeno botão e a porta dupla se abriu depressa. O paciente entrou
na cadeira de rodas, com a enfermeira agilmente ao seu lado.
— Pode ir, enfermeira — disse o cirurgião — mas espere aí fora. Eu
a chamarei.
Fêz um sinal com a cabeça ao médico-engenheiro, que saiu com a
enfermeira. A porta se fechou atrás deles.
O homem que vinha na cadeira olhou por cima dos ombros e es-
perou que se fossem. Tinha o pescoço esquálido e havia finas rugas em
torno dos seus olhos. Estava recém-barbeado e os dedos das mãos, ao
agarrarem, com uma crispação, os braços da cadeira, mostraram unhas
tratadas pela manicura. Era um paciente de alta prioridade e estava sendo
preparado para ... Mas havia expressão de firme obstinação em seu rosto.
— Começaremos hoje? — perguntou o paciente.
O cirurgião assentiu com a cabeça e disse:
— Hoje à tarde, senhor.
— Compreendo que levará semanas.
— Não a operação propriamente dita, senador. Mas há certo nú-
mero de problemas acessórios que devem ser considerados. Precisam ser
86
realizadas renovações circulatórias e ajustamentos hormonais. São pro-
blemas traiçoeiros.
— Serão perigosos ... (A esta altura, como se sentisse a necessida-
de de estabelecer um relacionamento amistoso, porem, claramente con-
tra sua vontade, acrescentou) doutor?
O cirurgião não prestou atenção às nuanças de expressão, afirman-
do taxativamente:
— Tudo é perigoso. Agimos no sentido da diminuição do perigo. O
que torna tais operações acessíveis a tão poucos é o tempo que exigem,
a qualificação de muitas pessoas reunidas em equipe, o equipamento ...
— Sei disso — interrompeu o paciente agitado. — Recuso-me a
admitir um sentimento de culpa por este motivo. Ou subentende o senhor
a existência de pressão imprópria?
— Em absoluto, senador. As decisões do Conselho nunca foram
discutidas. Menciono a dificuldade e a complexidade da operação ape-
nas para expressar meu desejo de que se desenvolva da melhor maneira
possível.
— Realize-a, então. Também é meu desejo.
— Neste caso, devo solicitar-lhe para tomar uma decisão. É possí-
vel suprí-lo com dois tipos de coração cibernético, metálico ou ...
— Plástico! — interveio o paciente, irritado. — Será essa a alter-
nativa que vai me oferecer, doutor? Plástico barato. Não o quero. Já fiz
minha escolha. Quero o metal.
— Mas ...
— Ouça. Disseram-me que me cabe fazer a escolha. Não é verda-
de?
O cirurgião concordou e acrescentou:
— Quando dois procedimentos alternativos são de igual valor do
ponto de vista médico, a escolha pertence ao paciente. Na prática efetiva,
a escolha pertence ao paciente, mesmo quando os procedimentos alter-
nativos não são de igual valor, como neste caso.
Os olhos do paciente se estreitaram, quando falou:
— Pretende o sr. convencer-me de que o coração de plástico é su-
perior?
— Depende do paciente. Em minha opinião, é superior, no seu
caso individual. Além disso, preferimos não usar o termo plástico. É um
coração cibernético fibroso.
87
— Tanto quanto saiba, é plástico.
— Senador — o cirurgião falava com infinita paciência — o mate-
rial não é plástico no sentido ordinário da palavra. É um material polimé-
rico, sem dúvida, porém, muito mais complexo do que o plástico comum.
É uma fibra complexa semelhante à proteína, projetada para imitar, da
maneira mais aproximada possível, a estrutura natural do coração huma-
no, que o senhor tem agora dentro do peito.
— Exatamente. O coração humano, que agora tenho dentro do pei-
to, já se desgastou, apesar de que ainda não cheguei aos sessenta. Muito
obrigado, não quero outro semelhante a êle. Quero algo melhor.
— Todos nós queremos algo melhor para o senhor, senador. O co-
ração cibernético fibroso será melhor. Tem uma vida potencial de séculos.
É absolutamente não alergênico ...
— Não se dá o mesmo com o coração metálico?
— Sim, é verdade. O coração metálico é de liga de titânio, que . . .
— Não se gasta e é mais forte do que o plástico? Ou do que a fibra
ou qualquer nome que lhe dê?
— Sim, o metal é fisicamente mais forte, porém a força mecânica
não se acha em causa. Sua força mecânica não lhe fará bem especial, des-
de que o coração esteja suficientemente protegido. Alguma coisa capaz
de chegar ao coração matará o senhor, por outras razões, mesmo que o
coração resista a um esforço excessivo.
O paciente encolheu os ombros e disse:
— Se alguma vez quebrar uma costela, quero que também seja
substituída por titânio. Substituir ossos é fácil. É possível fazê-lo a qual-
quer momento. Terá de ser tão metálico como eu quiser doutor.
— Está no seu direito, se assim decide. No entanto, trata-se ape-
nas de uma questão de lealdade dizer-lhe que, embora nenhum coração
cibernético de metal tenha jamais sofrido desarranjo mecânico, certo nú-
mero deles já sofreu colapso eletrônico.
— Que significa isto?
— Significa que todo coração cibernético contém um regulador de
ritmo como parte de sua estrutura. No caso da variedade metálica, trata-
-se de um dispositivo eletrônico que mantém o aparelho cibernético no
devido ritmo. Significa que uma completa bateria de equipamento minia-
turizado precisa ser incluída a fim de alterar o ritmo do coração, de modo
a que se adapte ao estado emocional e físico do indivíduo. Ocasionalmen-
88
te, algo anda errado aí dentro e já houve pessoas que morreram, antes
que se pudesse corrigir o defeito.
— Nunca ouvi falar nisso.
— Asseguro-lhe que isto acontece.
— O senhor quer dizer que acontece com freqüência?
— Em absoluto. Acontece muito raramente.
— Bem, neste caso, jogarei com a sorte. E o coração de plástico?
Não contém um regulador de ritmo?
— Está claro que contém, senador. Mas a estrutura química de um
coração cibernético fibroso é inteiramente aproximada à do tecido hu-
mano. É capaz de reagir ao controle iônico e hormonal do próprio corpo.
O conjunto total, que deve ser inserido, é muito mais simples do que no
caso do aparelho cibernético de metal.
— Mas o coração plástico nunca escapou do controle hormonal?
— Por enquanto, isto não aconteceu com nenhum.
— É porque o senhor ainda não trabalha com eles há muito tempo.
Não é verdade?
O cirurgião hesitou e admitiu:
— É verdade que os cibernéticos fibrosos não estão em uso há tan-
to tempo quanto os metálicos.
— Aí está, o senhor mesmo o diz. Afinal, que é que há, doutor?
Receia, porventura, que eu esteja fazendo de mim um robô ... um Metalô,
como passaram a ser chamados, desde que foi aprovada sua cidadania?
— Nada há de errado no caso do Metalô, enquanto o considera-
mos Metalô. Conforme diz, são cidadãos. O senhor, porém, é que não é
um Metalô. O senhor é um ser humano. Por que não continuar ser hu-
mano?
— Porque quero o melhor e o melhor é um coração metálico. Pode
providenciá-lo.
— Muito bem — concordou o cirurgião. Deverá assinar as necessá-
rias permissões e munido com um coração metálico.
— E o senhor será o cirurgião responsável? Disseram-me que é o
melhor.
— Farei o que estiver ao meu alcance para facilitar a substituição.
A porta se abriu e a cadeira conduziu o paciente para fora, ficando
entregue à enfermeira.
O médico-engenheiro entrou, olhando, por sobre o ombro, para o
89
paciente que desaparecia, até que a porta se fechou de novo. “Voltou-se
para o cirurgião e falou:
— Bem, não posso dizer o que aconteceu, apenas olhando para
você. Qual foi a decisão?
O cirurgião se curvou sobre sua escrivaninha, preenchendo os
itens finais para os seus registros. Afinal, respondeu:
— A que você predisse. Insiste no coração cibernético de metal.
— Apesar de tudo são melhores.
— Não de modo significativo. Estão em uso há mais tempo. Não
mais do que isto. É esta mania que vem flagelando a humanidade desde
que os Metalôs se tornaram cidadãos. Os homens possuem o singular de-
sejo de se converter em Metalôs. Anseiam pela força física e pela resistên-
cia associadas com eles.
— A coisa não é unilateral, doutor. Você não trabalha com Metalôs,
mas eu sim. De modo que estou a par. Os dois últimos, que vieram para
conserto, pediram elementos fibrosos.
— E o conseguiram?
— Num dos casos, tratava-se apenas do fornecimento de tendões.
Não fazia muita diferença se fosse metal ou fibra. O outro queria um sis-
tema sangüíneo ou o equivalente. Disse-lhe que não podia, pelo menos
sem uma completa recomposição da estrutura do seu corpo com material
fibroso ... Creio que as coisas chegarão a isto, algum dia. Metalôs que não
serão realmente de todo Metalôs, mas uma espécie de carne e sangue.
— É mesmo o que pensa?
— Por que não? E também penso nos seres humanos metalizados.
Agora temos duas variedades de inteligência sobre a Terra e não há por-
que preocupar-se com que sejam duas. Deixemos que se aproximem uma
da outra e, finalmente, ficaremos incapazes de definir a diferença. Por que
não? Teríamos o melhor de ambos os mundos: as vantagens do homem
combinadas com as do robô.
— Teríamos um híbrido — interveio o cirurgião, quase furioso. —
Teríamos algo que não é uma coisa, nem outra. Não será lógico supor
que um indivíduo seja demasiado orgulhoso de sua estrutura e identidade
para desejar diluí-la em algo estranho? Desejaria a hibridez?
— É uma manifestação segregacionista.
— Pois seja — afirmou o cirurgião com tranqüila ênfase. — Creio
em ser o que se é. Por motivo algum, desejaria mudar uma parte da mi-
90
nha estrutura. Se certa parte exigisse imperiosa substituição, faria com
que fosse o máximo possível aproximada da natureza do original. Sou eu
mesmo. Tenho muito prazer em sê-lo e não quero ser nada de diferente.
Concluíra e devia preparar-se para a operação. Colocou suas vigo-
rosas mãos no forno aquecido e deixou que atingissem o vermelho incan-
descente, que as esterilizaria por completo. Apesar das palavras apaixo-
nadas, sua voz nunca se elevara e na sua brunida face metálica não havia
(como sempre) qualquer indício de expressão.

91
A CASA DO MAR

William M. Lee

Trad. de Talma M. Pena

O almirante havia dito que se tratava de uma designação para uma


base de praia e os almirantes sempre estão certos, especialmente quando
se dirigindo a seus comandados. Contudo, ao completar a quadragésima
volta na coberta, sentia-me em alto mar. Num dia claro poderia ter visto
as colinas verdes de Santa Carlotta, mas durante toda a manhã uma névoa
brilhante obscurecia o horizonte. Santa Carlotta ficava oito milhas ao sul.
A coberta era uma calçada cercada que se estendia pelos quatro
lados da estrutura que chamávamos quartel, porque fora esse nome que
o construtor colocara nas portas. O quartel e a coberta constituíam a mais
alta de quatro plataformas que cortavam a torre, sendo três perto do
topo e uma junto à linha d’água. A parte visível da torre media mais de 30
metros, havendo mais de noventa em direção à rocha dura do fundo do
oceano, tudo apoiado em seis pernas tubulares de aço. (Nesta base não
se usa medir em braças.)
Não tenho idéia de quanto esta monstruosidade custara aos con-
tribuintes. Muito, certamente, mas nada em comparação com o custo
final da Casa do Mar que deveria, no futuro, se tudo corresse bem, trans-
formar-se numa pequena cidade submarina.
Fiz a quadragésima primeira volta desejando que a entrevista à im-
prensa houvesse terminado. No passado nossas conferências desse tipo
eram dirigidas por oficiais de relações públicas e assistida por almirantes
e capitães, de acordo com a ocasião. Mas agora estávamos jogando sujo, e
92
a imprensa estava magoada com isso, e ainda por cima a coisa viera parar
nas minhas mãos. A recomendação de Washington era: “seja objetivo, tire
tudo por menos”.
Dei uma volta pelo quartel para ver se alguma coisa de interesse
estava ocorrendo lá em baixo. O consolo mostrava apenas suas luzes ver-
des de circuito e os teletipos estavam silenciosos. Tim Saybolt e eu havía-
mos decidido suspender as verificações até o o fim da entrevista.
O quartel era construído por uma sala de instrumentos, escritórios
e alojamento. Havia ainda duas cabines isoladas, despensa e comando. O
nível seguinte proporcionava espaço e rancho para dezesseis homens. No
momento havia apenas seis a bordo, incluindo eu, e tudo estava quase
que opressivamente quieto.
Algum tempo depois ouviram-se vozes lá em baixo. Atracar a lan-
cha pareceu requerer tantos gritos como se se tratasse de um destróier.
Então o elevador subiu gemendo e Pete Swain desembarcou com os con-
vidados na pequena entrada junto ao alojamento. Eu disse “alô”.
Si Vogel havia voado desde Washington até Eglin, onde fora apa-
nhado, juntamente com George Birtt, por um avião da Força Aérea. Fiquei
contente por serem apenas dois. Ambos já haviam visitado a torre quan-
do em construção e eu me lembrava de que Vogel tinha mau gênio. Êle
ocupou a cadeira mais confortável, apesar de Birtt ser gordo e merecê-la.
Swain, meu assistente, serviu café.
— Vocês fizeram alguns progressos, — disse Vogel. — As instala-
ções estão terminadas?
— A torre está, — respondi. — Mas ainda vamos aumentar a Casa
do Mar durante vários anos. Agora ela tem apenas seis aposentos. Tripu-
lação inicial.
Demorou alguns segundos para a frase ser entendida e então a
face de Si Vogel escureceu. — O senhor quer dizer, Comandante, ah, Che-
ney, que há gente lá em baixo agora?
— Sim, — falei displicentemente. — Há vários trabalhos a comple-
tar antes que a Casa do Mar possa ser realmente ocupada. Aparafusar os
móveis, instalar a iluminação, e coisas assim.
Vogel estava desconfiado, beligerante mesmo. — Se é apenas isso,
por que o Departamento Médico da Marinha anunciou que amanhã dis-
tribuirá notícias à imprensa? Por que nessa data, particularmente?
Procurei uma expressão que desarmasse. — Não há nada especial
93
em relação à data. Este grupo vai ficar lá em baixo, naturalmente, até que
o outro chegue.
— Estou farejando alguma coisa. Quantos estão lá em baixo? —
perguntou Britt.
— Cinco. Um médico, um técnico de laboratório, um técnico em
eletrônica e dois mergulhadores profissionais.
— Sr. Cheney, — Vogel fêz o nome soar o mais desagradável possí-
vel — apesar da garantia do Alm. Minter de que teríamos cobertura com-
pleta, entrevistas, fotografias, televisão, aparentemente você se adiantou
e começou a operação.
Encolhi os ombros. — De certo modo, sim. Vocês terão muitas
oportunidades depois.
Olharam um para o outro. Britt tirou seu caderninho. — Os nomes?
— Gerd Carlsen, mergulhador; Walter Pope, mergulhador; Jacob
Kepper, técnico em eletrônica; Susan Craig, laboratorista; Dr. Timothy Say-
bolt, médico, no momento em comando.
— Puxa! — disse Britt.
— Cachorros! — disse Vogel.
— Há uma moça lá em baixo.
— Que tem isso de extraordinário ? Ela está lá porque seu cartão
foi sorteado. Técnica de laboratório, Reserva Naval, nadadora.
Vogel levantou-se e começou a passear pelo alojamento, manten-
do a carranca virada para meu lado, parecendo uma coruja má de cara
vermelha. — Você sabe muito bem que isso é extraordinário. Mais ainda,
é notícia. Se eu conheço a Marinha, você vai me dizer agora que foi ordem
de Washington, e eles vão dizer que a hora foi decidida por você.
Eu já estava cheio de Si Vogel. — Na verdade eu tinha autorização
para convidar a imprensa para a descida, mas fui contra. (Nada como uma
boa mentira para baixar a pressão.)
— Puxa, — repetiu Britt. — Tem fotografias ?
— Naturalmente. — Abri a gaveta da escrivaninha e tirei os dois
conjuntos: cinco fotos individuais e dois grupos em traje de mergulho,
sendo um com máscara e outro não. — E vocês podem falar com eles pelo
telefone.
Vogel uivou: — Ela é bonita! Diabo, é bonita mesmo! E você foi
contra! Teve o desplante de nos afastar.
— Esta foi uma das causas da minha decisão. Não é necessário
94
romantizar.
— Quantos anos ela tem? Dezoito ?
— Vinte e um.
— Está lá para quê? Para a cama?
— Vogel, não posso fazer uma limpeza em seus pensamentos, mas
se repetir algo assim sua entrevista está encerrada.
— O.K. Deixe-me falar com ela.
— Vou deixá-lo falar com o Com. Saybolt. Êle decidirá quem mais
ocupará o fone.
— Marinha!
Pete Swain foi até o consolo, ligou os interruptores e tocou uma
vez chamando Tim Saybolt, cuja voz encheu a sala. Pete baixou o volume.
— Cheney
— Sim. Nossos visitantes estão aqui, Tim, Sr. Britt e Sr. Vogel. Con-
tinue.
— O.K. O que querem saber?
— Resolveram o problema da voz, — disse Britt.
— Sim, como podem notar. É o ar que estamos respirando. Já con-
tou a eles, Cheney?
— Não. Conte você.
— Certo. Quando disse que estamos respirando ar não estava sen-
do exato. Estamos respirando uma mistura artificial. Vocês conhecem o
problema das combinações?
— Sim. Nitrogênio faz bolhas no sangue, — disse Britt.
— Chegou perto. Quando se respira uma mistura de nitrogênio
e oxigênio, ela demora a subir. Por isso, para mergulhos mais profundos
substitui-se parte do nitrogênio por hélio, que é menos solúvel no soro
sangüíneo. Certo? E há algo mais a respeito do nitrogênio: logo a pequena
profundidade começa a mostrar efeitos narcóticos, que se tornam pro-
nunciados à medida que se desce mais. A pessoa se sente como se hou-
vesse tomado três ou quatro martinis.
— Ótimo, disse Vogel.
— Sim, mas não podemos ter idéias irresponsáveis ao trabalhar
em baixo d’água. Hélio não produz esse efeito, pelo menos até grande
profundidade. Na profundidade em que estamos, mais de cem metros,
poderíamos respirar satisfatoriamente uma mistura de oxigênio e hélio.
Mas há o efeito Mickey Mouse. O hélio é um gás leve e eleva a voz até a
95
fala tornar-se incompreensível. Isto pode parecer trivial, mas acreditem:
há momentos em que é muito importante uma comunicação clara. Por-
tanto estamos usando uma mistura tríplice: oxigênio, hélio e hexafluori-
do-sulfúrico. O último é um gás pesado. Contrabalança a leveza do hélio.
A atmosfera que estamos respirando tem a mesma densidade que a sua.
Resultado: não há distorção de voz.
Contudo, pensei, há qualquer coisa estranha na voz de Tim, que
antes não havia notado. Ou talvez viesse notando subconscientemente
por vários dias sem dar atenção ao fato.
— Hexa o que? — perguntou Britt.
— Hexafluorido-sulfúrico.
— Parece venenoso.
— Não é. Incolor, inodoro, biologicamente inerte. Praticamente in-
solúvel no sangue.
— Parece, Com. Saybolt, Dr. Saybolt, seja quem fôr, que um impor-
tante trabalho experimental está sendo realizado. — Vogel disse isso com
pesado sarcasmo.
Tim ignorou a provocação. — O trabalho experimental está termi-
nado. Primeiro animais, depois voluntários nas câmaras de pressão. Não
há novas variáveis. Depende agora dos engenheiros lá em cima conservar
nossa mistura constante para respirarmos.
Britt perguntou: — Vocês têm portinholas, não? Não estão confi-
nados nesses cilindros?
— Não; estamos a quase, 2 metros do fundo e há escotilhas no so-
alho, algumas conservadas abertas. Podemos passar por elas sempre que
queremos nadar. Portinholas, sim, mas nada para ver. Nesta profundidade
reina escuridão. Nossos mergulhadores estão lá fora instalando postes de
iluminação. Temos boa luz aqui dentro, naturalmente. Numa semana a
paisagem lá fora também estará clara.
Descobri o que havia de estranho na fala de Tim Saybolt. Não era
o tom e sim a velocidade. Ele estava falando mais rápido que o usual.
Interrompi:
— Como está seu oxigênio, Saybolt?
— Um momento, vou ver. O.K., está normal. Por quê?
— Nada especial. Não verificamos a dosagem aqui às dez horas.
— Há tubarões? — perguntou Britt.
Tim riu. — Não. Todos parercem querer tubarões, menos nós, é
96
claro. Antes das luzes, lá fora, instalaremos algumas barreiras.
— Deixe-me falar com Susan Craig, — pediu Vogel.
— Se ela não estiver ocupada. Está fazendo análises de sangue.
Houve uma longa pausa antes de Susan vir.
— Alô?
— Alô, — disse Si, parecendo menos rude. — Como é aí em baixo?
— Muito interessante.
— Assustador?
— Não.
— É úmido?
— Sim, saturado.
— Frio?
— Não muito.
— O que você usa?
— Maiô, quase sempre.
— Quase sempre?
— Sim.
— O que acha de estar aí em baixo com quatro homens?
— Eles são muito competentes. Estou feliz por fazer parte da equi-
pe.
Eu disse nesse momento: — Sinto muito, Susan, vou interromper.
— Pete, sentado ao consolo, desligou os interruptores.
— Você não está colaborando, — disse Vogel. — Vou informar isso.
— Informe, — disse eu. — Aqui estão várias cópias do relatório a
que se referiu o Departamento Médico. Contém o material necessário às
suas estórias. Por que não os folheiam agora e fazem perguntas? Nós nos
esforçaremos para respondê-las.
Ficaram mal-humorados por mais uma hora, mas no fim fizeram
perguntas sensatas. Perto do meio-dia declarei que deveríamos voltar ao
trabalho.
— Uma viagem infernal, — comentou Vogel. — Você poderia ter
enviado o relatório pelo correio.
— É mesmo, — concordou Britt,
— Vocês foram avisados de que os relatórios seriam enviados hoje
de Washington. Decidiram fazer a visita. Sinto que tenham ficado desa-
pontados.
— Você é um inferno, — disse Vogel, e dirigiu-se para o elevador.
97
Bem, eu não havia me comportado como um homem de relações
públicas. Vogel certamente escreveria uma carta queixosa, a qual poderia
ser anexada à minha ficha 201. Mas não estava com disposição para me
importar.
Depois que eles saíram chamei o Cap. Wythe em Washington e
contei a êle que havia deixado passar uma boa oportunidade de convidar
Si Vogel para almoçar, e também que podiam esperar que êle ampliasse
suas insinuações. Êle concordou que era uma vergonha, mas disse que
haviam previsto a situação quando Susan Craig fôra sorteada.
Desci ao segundo nível e conferi com o sargento-chefe Paillard, (o
único homem do Exército a bordo), a composição do gás de respiração
para saber se houvera modificação no fornecimento ou no retorno. Am-
bos eram verificados continuamente, mas no quartel só computávamos
os dados de hora em hora. Tudo estava em ordem. Não houvera excesso
de oxigênio para estimular a fala de Tim Saybolt.
No almoço levei um sanduíche para o quartel, escrevi o diário e en-
tão me dediquei ao trabalho quase constante de requisitar suprimentos.
A Casa do Mar compunha-se então de seis câmaras, cada uma de-
las constituída por um cilindro de cerca de 20 metros de comprimento
por 10 de largura. Ficavam lado a lado, sobre estacas, e comunicavam-se
por passagens. As paredes eram de aço inoxidável leve. Não era necessá-
rio que fossem muito espessas porque a pressão era igual dentro e fora.
Como eu dissera a Vogel com substancial verdade, nosso trabalho atual
era principalmente completar o aparelhamento das três câmaras com as
mais importantes amenidades da vida. O trabalho experimental era re-
almente incidental, apesar de nenhuma operação submarina, poder ser
realizada sem que se coloquem, e haja tentativa de responder experimen-
talmente, muitas perguntas. Nesse ponto o trabalho de Tim Saybolt era
de mais responsabilidade que o meu, pois êle não só comandava a Casa
do Mar, como, sendo oficial-médico e pesquisador fisiologista, estudaria
as reações a longo prazo que seus companheiros e êle mesmo teriam em
relação ao meio. Longo prazo, no caso, significava quarenta dias, dos quais
dez já haviam passado.
Durante a descida tivéramos uma tripulação alta, com muitas es-
trelas. Os poucos dias seguintes foram ocupados com testes de todas as
linhas de comunicação e suprimento; eletricidade, corrente contínua e
alternada; água fresca, quente e fria; gás para respirar. Agora estávamos
98
empenhados no trabalho de as equipar para A’inte e quatro pessoas, que
seria o número máximo até que novas câmaras fossem acrescentadas.
Havia sempre uma pilha de notas e mensagens de teletipo lá de
baixo esperando para serem convertidas em requisições aceitáveis por
Washington. A maior parte referia-se a equipamentos de laboratório, ma-
terial eletrônico e livros. Livros! Eles tinham dois milhares de volumes lá
em baixo, quilômetros de microfilme, e mais ainda esperando no terceiro
nível. Mas apesar de todo planejamento, Saybolt e Kepper continuavam a
pensar em itens indispensáveis.
Às dezesseis horas já havia sido transmitido tudo. Swain não vol-
tara de Santa Carlotta. Tomei o elevador até o terceiro nível e voltei a pé
fazendo inspeção. O último carregamento do dia já descera para a Casa do
Mar. Os homens estavam descansando e tinham aberto algumas cervejas.
Não havia problema quanto a isso: era um grupo responsável. Verifiquei
o vento mas não me preocupei em olhar o barômetro. Era apenas há-
bito. Nosso monstro de seis pernas poderia enfrentar qualquer furacão
em completa segurança. E lá em baixo não existia mau tempo: pequenas
mudanças de pressão que refletiam alguma alteração na superfície e uma
corrente fraquíssima.
O ritmo da fala de Saybolt continuava me preocupando. Voltei a
fita e escutei. Êle estava falando mais rapidamente que o normal. Para
êle, é claro. Sua conversação sempre fora um tanto staccato, mas normal-
mente não se notava. Pete Swain entrou enquanto eu estava remoendo o
assunto. Ouviu a fita e disse:
— Com. Cheney, o senhor se preocupa sem motivo.
Durante a tarde telefonei lá para baixo (três toques eram atendidos
por qualquer pessoa), falei com Susan e disse a ela, como desculpa por ter
chamado, que enviaríamos leite fresco logo pela manhã.
O dia seguinte foi de pura rotina, isto é, ocupado em transportar os
suprimentos para baixo, fazer mais requisições e conversar pelo telefone
com o Laboratório de Pesquisa Naval e Bethesda. No transporte de supri-
mentos estávamos cada vez mais adiantados e melhorando sempre. Em
cima, quatro ou cinco pessoas passavam grande parte do dia enchendo
o elevador de carga, de acordo com os planos existentes ou atendendo a
pedidos especiais. A cápsula era baixada rapidamente até um comparti-
mento cheio d’água no topo de uma das câmaras da Casa do Mar, onde o
cabo, magneticamente controlado, se desligava, fechava-se a comporta e
99
a água era bombeada para fora. Então o fundo da comporta, com a cáp-
sula, podia ser baixado até o convés por meio de um macaco pneumático.
Era uma boa peça de engenharia e funcionava sem dificuldades. Os passa-
geiros desciam do mesmo modo, mas numa cápsula diferente.
Era impressionante que o trabalho da tripulação da Casa do Mar
acompanhasse o do pessoal da base, pois eles tinham de retirar e armaze-
nar cada coisa, o que muitas vezes também envolvia montagem. Mas eles
conseguiam, e freqüentemente nos pressionavam.
Eu sentia inveja do grupo lá em baixo. Meu trabalho na torre não
era muito diferente de outros que eu executara no mar. E pensava que
mais cedo ou mais tarde seria substituído e faria um turno com a equipe
em baixo d’á-gua.
Não falei novamente com Saybolt até quinta-feira, dia 13. Depois
de acertar alguns detalhes pedi para falar com todos os outros. Não havia
mais dúvida. Todos estavam falando mais rápido. Ainda assim me dei ao
trabalho de cortar a fita e comparar cada pedaço com um do segundo dia.
Então chamei Swain.
Êle ficou de cara comprida.
— O senhor estava certo. Nunca ouvi falar de coisa tão maluca. O
senhor conferiu o ar?
— Tudo normal. Oxigênio, hexafluorido-sulfúrico, hélio, dióxido de
carbono, tudo normal. O nitrogênio está tão perto do zero quanto possí-
vel.
— E o que acha Tim?
— Ainda não falei com êle. Tenho uma coisa a fazer antes.
Não sou médico, mas já trabalhei com eles e aprendi que um leigo
nunca, mas nunca mesmo, deve pisar em calos de médicos. Escrevi uma
mensagem, depois abri a linha telefônica e dei um toque. Tim veio um
minuto depois.
— Sim?
— Uma mensagem do Departamento Médico. Vou ler. “Saybolt,
Casa do Mar. Pavor transmitir constantes fisiológicas atuais todos ocupan-
tes Casa do Mar. Assinado: J. G. por Minter”.
— Quem é J. G.?
— Não sei. Pensei que você soubesse. Assistente de Minter, talvez.
— Ora, danem-se.
— Por quê?
100
— Porque a hora não é boa. Segure-os por alguns dias, Cheney,
por favor.
— Não se pode segurar uma coisa dessas.
— Segure por um dia, dois, o que você puder.
— Vou tentar ignorá-la por vinte e quatro horas, se você me der
uma boa razão.
— O.K. Estou recolhendo dados. Não há nada desfavorável, portan-
to resolvi esperar até chegar a algumas conclusões.
— Não me parece muito convincente, mas como não sou do tipo
científico deixo você responder, amanhã às onze. Minter deverá manter-
-se quieto até lá.
Pouco antes do meio-dia do dia seguinte chamei J. G., Jim Gates,
que é realmente assistente de Minter e meu amigo.
— Jim, falsifiquei um requerimento de seu escritório. Você vai me
cobrir, naturalmente.
— Vou mesmo?
— Acho que sim. Comece a anotar. Os cinco ocupantes da Casa do
Mar ganharam um quilo em média.
— Isso não é relevante.
— Não. A média de respiração baixou para nove. A média do pulso
é 104. A pressão é oito por seis, todos bem perto dessa média. Tempera-
tura, 35,1 graus. E ainda por cima estão falando 30% mais rápido que o
normal.
— E o que Saybolt pensa disso ?
— Êle não relatou. Tive de arrancar-lhe a informação dizendo que
seu escritório havia pedido.
— Não parece coisa de Saybolt, É bem estranho. Você tem os da-
dos individuais! Leia para anotação. Peça a interpretação de Saybolt e
mande, seja o que forque êle diga, O chefe está aqui. Vou passar isso a êle
imediatamente. Considere-se coberto.
Pete e eu trocamos olhares de alívio e chamei Tim outra vez para
dizer-lhe que Washington desejava seus comentários.
— Não tenho. — E após uma pausa: — Nenhum comentário além
do óbvio. Nosso meio está causando mudanças metabólicas. Não é alar-
mante. As mudanças são progressivas por isso não me importei em relatá-
-las. Melhor esperar até se equilibrarem. O.K.?
Isto, como dissera Jim Gates, não parecia coisa de Tim Saybolt, Êle
101
sempre me parecera um cientista competente mas ultra-conservador.
Desde que evidentemente êle hão tinha nada a acrescentar, perguntei:
— Alguma outra mudança além dos dados que enviou ?
— Nada importante. Estamos comendo mais.
— É? E quanto?
— O dobro.
— Não diga, E que mais ?
— Dormimos menos. Três horas.
Três horas em vinte e quatro?
— Sim.
— Suponho que vocês sabem que estão todos falando mais rápido.
— Não tinha notado, por isso suponho que estamos ouvindo mais
rápido também. Era de esperar. Estamos trabalhando mais rápido.
— Já sei. Algo mais a acrescentar ?
— Luz. Não necessitamos muita.
— Muito interessante.
— É mesmo.
— Vou enviar isto a Minter.
— Já imaginava. Não se pode evitar.
— Você nos manterá informados?
— O.K.
A resposta de Washington à transmissão destas informações foi
um longo silêncio. Por fim, às 20 horas, o próprio Alm. Minter telefonou.
— Cheney.
— Sim, senhor.
— Abel Stokes vai para aí.
— Stokes?
— Dr. Abel Stokes. Especialista em metabolismo do oxigênio. Ten-
taremos levá-lo a Santa Carlotta amanhã, mas poderá ser depois de ama-
nhã. Eglin lhe dará o horário. E Cheney...
— Sim, senhor.
— Ainda bem que você agiu. Saybolt parece um tanto incomuni-
cativo.
— Obrigado.
Abel Stokes chegou domingo pela manhã. Tinha mais de setenta
anos e pensei que pesava mais do que aprovaria como médico. Além disso
tinha uma perna defeituosa, mas era bem ativo. Antes de discutir o assun-
102
to quis ver tudo. Percorremos os três níveis superiores, concluindo com
umas voltas na coberta. Êle encheu o peito, murchou a barriga, e sorriu
com a imensidade de água em torno de nós.
— E pensar, — gritou acima do barulho do vento, — que eu estudei
respiração a vida inteira e nunca pude aproveitá-la. Bem, vamos ao traba-
lho. Que diabo está pretendendo o jovem Timothy?
Instalei-o em minha mesa e fiquei no consolo para passar as fitas.
— O senhor conhece Tim Saybolt?
— Um pouco. Rapaz inteligente. — Estou interessado na sua rea-
ção quando o ouvir. Não é só...
— Chega de me dar noções preconcebidas. Deixe-me ver as análi-
ses de gás, suprimento e retorno.
Passou alguns minutos percorrendo os gráficos.
— Na minha mente simples imaginava que respiração mais lenta
significava utilização reduzida de oxigênio e reduzida produção de dióxido
de carbono. Mas se as suas amostras indicam alguma coisa, o dióxido de
carbono aumentou. Não venha com detalhes de engenharia, filho. Vamos
ao telefone.
Não vou reproduzir, nem mesmo sumarizar esta conversa entre
Stokes e Saybolt e outras subseqüentes. É suficiente dizer que em um
dia e meio Stokes descobriu fatos que julgou pertinentes. As mudanças
metabólicas, como Saybolt dissera, continuavam. A temperatura de seus
corpos era agora de 34,6 e a freqüência de respiração, sete. Além dis-
so Stokes conseguiu contagem de glóbulos brancos e vermelhos, teor de
açúcar no sangue e temperatura da pele. Todos os dados, disse-me êle,
eram anormais.
Saybolt não ofereceu resistência em responder a qualquer pergun-
ta direta, e se não tivesse a informação na hora, providenciava para mais
tarde. Mas não informava espontaneamente, e parecia tratar a inquirição
como um fato sem importância. Estava pondo em prática uma ação de
retardamento.
Perto da meia-noite de segunda, Stokes parecia tão cansado que
insisti para que parássemos. Depois que êle se deitou, Pete e eu saímos
para ver o tempo. O barômetro estava baixando e o vento tinha levanta-
do. Havia fiapos de nuvens no alto que sugeriam vento forte pela manhã.
Sintonizei a estação metereológica de San Juan e fiquei sabendo que um
centro de tempestade tropical estava perto da Martinica. Fomos dormir.
103
No dia seguinte, na hora do café, o tempo estava pior. Pingos de
chuva batiam nas largas janelas do quartel. Abel Stokes tinha ido dar um
passeio na coberta, e ao voltar, pingando água da capa para baixo, parecia
tão satisfeito consigo mesmo como se tivesse enfrentado perigo de mor-
te. Desejou falar com Washington.
Aconteceu que Minter tinha ido cedo ao Pentágono, mas deixa-
ra uma coleção de cérebros médicos disponíveis. Jim encarregou-se de
avisá-los; eles deveriam telefonar mais ou menos às onze horas. Fizemos
mais café e chamei Saybolt.
Houve uma longa espera e então Walter Pope, um dos mergulha-
dores, atendeu e disse que Tim estava fora, nadando. Perguntei se êle
levara um tanque ou estava respirando por um tubo.
Se usar um tubo, um homem pode ficar na água indefinidamente,
no que se refere à respiração, Mas há outro fator de limitação: o frio. O
acondicionamento de isótopos que fazia circular água morna pelos trajes
só resolvia o problema parcialmente. Quando estavam testando os trajes
para a Casa do Mar, os mergulhadores, depois de algumas horas na água,
ficavam felizes de poder subir e se esquentar. Usando um tanque, porém,
o tempo de permanência na água é de uma hora.
Pope disse que Tim levava um tanque e estava fora já há 55 minu-
tos. Pope era da Geórgia, e era interessante ver como o fato de falar mais
depressa anulara o seu sotaque. Stokes interrogou-o por algum tempo
a respeito de suas reações pessoais ao ambiente, e outra vez fiquei sur-
preendido. Walter era muito bom em seu trabalho, mas nunca havia sido
brilhante. Agora estava demonstrando uma agudeza que não lhe era pe-
culiar. Perguntei por Gerd Carlsen, o outro mergulhador, que estava num
degrau mais alto, intelectualmente falando.
— Êle poderá chamá-lo depois ? — perguntou Pope. — Está tra-
balhando para Jake num problema no laboratório, e sei que êle quer ficar
lá. E eu tenho de voltar a descarregar o material. — E desligou sem pedir
permissão. Que modo de chefiar uma unidade da Marinha!
Chamamos Susan. Ela estava disposta a falar, mas era evidente que
estava deplorando o tempo que perdia e desejava voltar ao laboratório.
Por isso, perguntei por Saybolt. Ela disse que êle estava nadando.
— Mas êle Já saiu há noventa minutos e levava um tanque.
— Sim, mas aprendemos a respirar levemente. Um tanque dura
várias horas, — respondeu ela com naturalidade.
104
Mantive a ligação e olhei para o maior especialista americano em
metabolismo de oxigênio. Êle pegou o microfone.
— Susie.
— Sim, Dr. Stokes.
— Responda cuidadosamente. Com que freqüência vocês vão na-
dar?
— Quatro a cinco vezes ao dia. — Quer dizer, em vinte e quatro
horas?
— Sim.
— Mais ou menos por uma hora, de cada vez?
— Uma ou duas horas.
— Muito bem. E sua pele, como está? Alguma diferença?
— Sim. Estamos bastante bronzeados.
— Santo Deus! Está começando a se acumular.
— Claro que está, doutor. — Susan disse isso e desligou.
Mais uma vez não vou tentar descrever a conferência telefônica
que se realizou, e que foi animada, na minha opinião, pelo fato de Abel
Stokes dirigir-se ao Almirante invariavelmente chamando-o Peewee.
Discutiram, de maneira acadêmica, por duas horas. Desde o início dois
dos participantes queriam suspender a operação, e ninguém, incluindo
Stokes, apoiava a tese de não haver perigo fisiológico.
A tempestade estava piorando, e a estática estava muito forte
quando, o Almirante resolveu encerrar.
— Traga-os para cima. Embora eu deteste fazer isso, é uma ordem.
Está ouvindo? Traga-os para cima. Confirme.
— Sim, senhor. Nós os traremos para cima, — disse eu.
Era tudo. Chamei Saybolt e falei com êle.
— O Alm. Minter suspendeu a operação. Todo mundo vai subir.
Começaremos a preparar a sala de aclimatação agora, e deveremos estar
prontos para recebê-los às 16 horas.
A sala de aclimatação no terceiro nível era o meio mais seguro
de pressurizaçao e despressurização. Do tamanho de alguns quartos de
hotel onde estive, tinha vidraças em todos os lados, telefones, cadeiras,
beliches, banheiro. Suportava uma pressão de dez atmosferas. As pesso-
as que estavam na Casa do Mar poderiam subir juntas numa cápsula de
passageiros, fazendo os cem metros em oito minutos. Passariam para a
sala por meio de um acoplamento hermético e ficariam lá durante um dia
105
quase inteiro, enquanto a pressão se reduzia gradualmente e o conteúdo
de oxigênio se normalizava.
Minha declaração a Tim foi recebida em silêncio, mas pude ouvir
conversa em voz baixa perto do telefone.
Finalmente perguntei. — Está me ouvindo?
— Sim, ouvi. Sinto muito.
— Que quer dizer?
— Não vamos subir.
— Espere. É ordem de Minter.
— Nem que fosse do Presidente. Vamos ficar.
— Você não sabe o que está dizendo. Pegará Corte Marcial.
Tim riu. — Primeiro vocês teriam de nos tirar daqui.
— Você está louco.
— Errado. Estamos sadios pela primeira vez na vida.
— Podemos forçá-los a subir.
— Como?
— Cortando sua comida e sua água.
— Não seria fácil. Fizemos algumas coisas que não relatamos. No
momento somos quase auto-suficientes. Mas pode fazer isso e veja o que
tem a dizer seu amigo Vogel.
— Isso é um absurdo. Vou descer.
— Ótimo. Teremos prazer em vê-lo.
Desliguei os interruptores e descobri que Abel Stokes estava ver-
melho de tanto rir.
— Vá lá, filho. Desça e veja você mesmo. É o que resta a fazer. Sabe,
quando Peewee Minter baixou a ordem eu estava quase esperando uma
coisa assim.
— O senhor não acha, então, que eles estão em perigo?
— Não sei. Estão acontecendo a seus corpos coisas que antes não
aconteceram a um ser humano. Acredito em Tim quando diz que no mo-
mento eles estão saudáveis e nós doentes. O que me preocupa é o que
acontecerá quando eles subirem. As mudanças serão reversíveis? Bem,
você ouviu minha opinião na conferência, e saberá mais quando os visitar.
Como eu estava prevendo, Pete interrompeu com uma forte su-
gestão de que êle é que deveria visitar a Casa do Mar. Argumentou lon-
gamente, com maior ou menor sutileza, os seguintes pontos: eu estava
em comando na torre e não deveria deixar meu posto; minha experiência
106
como mergulhador datava de alguns anos atrás; e, com os maiores ro-
deios, êle era mais jovem e mais apto a enfrentar os rigores da descida.
Agradeci e exerci autoridade. Faltava a Pete uma qualidade que eu julgava
necessária: imaginação.
Compusemos uma cuidadosa mensagem para ser radiografada
para Minter (nada de telefone) quando eu começasse a descer. Dizia:
“Saybolt e seu grupo relutam em subir temendo reações desfavoráveis.
Cheney desceu para conferenciar, com ajuda de Stokes. Assinado: Swain”.
Eu me esquecera de almoçar, por isso pude ir para a sala de aclima-
tação imediatamente. Deixei minhas roupas no chuveiro externo, esfre-
guei-me bem com um antisséptico, depois atravessei a comporta. Swain,
vestido com um encerado e batido pela tempestade, me olhava por uma
portinhola. Tanto êle como Stokes conservavam seus intercomunicadores
abertos, para podermos conversar. Em profundidades moderadas eu já
havia trabalhado muitas vezes, e já havia estado duas vezes a cerca de 60
metros. Além disso, em Bethesda havia estado numa sala pressurizada
semelhante, respirando oxigênio, hélio e hexafluorido-sulfúrico, à profun-
didade simulada de cem metros. Em uma hora estava pronto para descer
(sem esforço), mas Swain, agora no comando, vetou, e me conservou em
observação por mais uma hora. Só então subi para a cápsula de passagei-
ros e me fechei.
Nossos cabos não balançavam, nem mesmo com o vento agora
muito forte mas houve algumas pancadas até a cápsula entrar na água.
Daí em diante nenhuma sensação, apenas o solavanco e o barulho de
aterrisar no dique inferior. Outro som indicou que êle estava se fechando
acima de mim, e uma luz vermelha mostrava que a água estava sendo
bombeada para fora. Alguém abriu a porta, e, pela primeira vez, vi a Casa
do Mar.
Ou teria visto, se não estivesse tão escuro.
A pessoa pegou meu braço e me segurou até que eu conseguisse
ficar de pé e tivesse certeza de que meus joelhos não se dobrariam. É,
havia reação.
— Carlsen?
— Sim, senhor. Vou acender a luz. Nós não necessitamos dela mas
não nos incomoda.
Carlsen mexeu nos interruptores e pude ver em meu redor. Vinte
metros por dez é surpreendentemente espaçoso quando se está lá den-
107
tro. Mesmo que o piso, para ser plano, precise ser dividido. Esta câmara,
primariamente destinada ao desembarque e armazenagem temporária
de material, praticamente não era usada e estava quase vazia. Carlsen en-
caminhou-se para uma passagem lateral, acendendo luzes pelo caminho.
Segui-o até a primeira das três câmaras destinadas a trabalhar e viver.
Carlsen começou uma descrição cortês, mas lacônica,
— Laboratório de física, laboratório de biologia, metabolismo, sín-
tese orgânica, armazenamento de espécimes marinhos, sala de comuni-
cações e alojamento, laboratório de eletrônica, sala de eletrônica, cozinha
e rancho, biblioteca, sala de conferências, sala de leitura. Dormitórios e
banheiros ficam adiante, quer vê-los?
— Agora não. Onde estão os outros ?
— Nadando. Posso chamá-los se o senhor tiver perguntas a que
eu não possa responder, mas eles voltarão logo. Sabíamos que o senhor
estava para vir.
— As ordens eram para que nunca saíssem mais do que dois ao
mesmo tempo da Casa do Mar.
— Sim, senhor, — disse Carlsen gentilmente. — Parece que fize-
mos tudo diferente, não?
Eu estava começando a tremer. O oceano lá fora estava quase con-
gelado e a atmosfera comprimida retirava calor do corpo rapidamente.
A Casa do Mar originalmente havia sido aquecida a 32,5 graus, mas sa-
bíamos que eles haviam regulado o termostato para esfriar a câmara à
medida que a temperatura de sua pele fora baixando. Eu estava usando
roupa forrada e Carlsen um calção de banho. Nas circunstâncias, eu hão
podia pedir mais aquecimento.
A aparência de Gerd mudara muito. Êle era um loiro alto, de om-
bros largos, um dos indivíduos mais cabeludos que eu conhecera, com
uma mancha de pêlos loiros no peito, barriga e antebraço. Havia sumido
tudo. Tinha sobrancelhas e cabelo na cabeça, e só.
Susan dissera que eles estavam bronzeados, mas esta não era a
palavra certa para descrever a cor de Gerd, um marrom dourado como o
de certos tipos de crioulos das Índias Orientais.
— Fale-me a respeito de sua pele, Gerd. Não, vamos para o aloja-
mento que é mais confortável. — Para falar francamente eu queria ir para
o alojamento porque lá a umidade fora suprimida e pareceria menos frio.
— O.K., senhor. Vou só dar um mergulho de passagem. — E êle
108
abriu uma das escotilhas do solo, passando através dela com os pés para
a frente. Nem traje especial, nem máscara, nada mesmo entre Carlsen
e aquela água gelada. Voltou em menos de um minuto, completamente
molhado.
— Assim é melhor. Ficando seco muito tempo a gente sente co-
-ceira. Os outros estão perto. Vêm vindo para bordo.
Como um boneco de mola saindo da caixa, Tim Saybolt subiu pela
escotilha. Usava calções minúsculos, como Gerd, e nadadeiras. Nem más-
cara, nem tanque.
Eu disse: — Santo Deus! — ou outras palavras com o mesmo sen-
tido. Depois veio Susan, usando calções e nadadeiras. Nada mais, literal-
mente. Ao me ver, ela se lembrou de bater continência, o que teria sido
muito original, mas parou a tempo.
Fui para a sala de conferências seguido por cinco focas molhadas.
Sua pele estava brilhante e bonita. Espalharam-se pela sala e Carlsen pa-
rou à porta para elevar o termostato, não muito, mas alguma coisa.
— Você está sentindo frio. É natural, — disse Tim. — Mas se aque-
cêssemos a sala acima de 16 graus C. ficaríamos pulando na água cada
quinze minutos para refrescar. Quer outro cobertor?
— Não, obrigado.
— O.K., você não ficará aqui por muito tempo. Isto é, não deve-
rá ficar. Mas estamos contentes de que tenha vindo ver por si mesmo.
Desculpe-nos por conferenciar como estamos. É que as roupas se torna-
ram desconfortáveis, quase intoleráveis. Espero que amanhã vençamos a
reticência humana e tiremos tudo. Não é importante. Estamos mais civili-
zados depois que viemos para cá.
Sendo apenas medianamente civilizado estava tentando não olhar
para Susan.
— Você tem alguma sugestão sobre o que devo dizer ao Departa-
mento Médico?
— Pode dizer-lhes a verdade. Como médico considero desvanta-
gem subir agora. Aqui entre nós, não tenho dúvidas de que sobrevive-
ríamos, mas não creio que algum de nós volte a ser feliz em terra firme.
Descobrimos o que significa estar vivo.
— Mas isso implica em não subir nunca mais.
— Certo.
— Você sabe o que o Departamento Médico dirá. A taxa pode ter
109
diminuído mas as mudanças continuam: temperatura do corpo, freqüên-
cia de respiração, etc. Vamos transportá-los enquanto podemos, enquan-
to as mudanças ainda são reversíveis.
— Sim, é o que eles dirão. Por isso ficamos quietos e não comuni-
camos a história completa.
— Deixando de lado pequenos detalhes como sua habilidade para
nadar sem máscara. Quanto tempo vocês ficam sem respirar?
— Indefinidamente. Estamos sendo cautelosos, porém.
— Não gostaria de vê-los descuidados. Como fazem?
— Respiramos fundo e seguramos. Mas vamos ao principal.
— Fale.
— Nosso problema foi o nitrogênio.
— Não sabia que tiveram problema.
— Não tivemos nenhum desde que viemos para a Casa do Mar.
Estou colocando assim para ter um ponto de partida. Veja, sabíamos que
o nitrogênio é narcótico a mais de 60 metros. O que os fisiologistas nunca
descobriram é que êle age como estupefaciente ao nível do mar e em
terra firme. Era um fato da vida e o esquecíamos.
— Mas o nitrogênio... — comecei.
— Tim está falando de nitrogênio dissolvido nos tecidos e fluidos
do corpo, — disse Gerd. — Nitrogênio em combinação é essencial a nosso
tipo de vida.
— Todos nós vivíamos dopados do berço ao túmulo, — disse Tim,
— e nós, Cheney, somos as cinco primeiras pessoas que desceram ao ní-
vel de nitrogênio onde se começa a acordar. Por falar nisso você está nos
envenenando um pouco. Obviamente você passou algum tempo na sala
de aclimatação, mas ainda está exalando um pouco de nitrogênio e todos
nós podemos senti-lo. Você, por outro lado, deve estar se sentindo muito
bem.
— Sim. Esperava sentir-me mal no meu primeiro mergulho a esta
profundidade, mas isso não aconteceu. E tenho a impressão de estar pen-
sando muito claramente.
Kepper levantou os olhos do papel que estava ocupando parte de
sua atenção.
— Isto é uma fórmula para calcular números-primos. Vai até cem
milhões e não sei para que serve. Não, comandante, seu processo mental
não melhorou nada. O senhor tem boa imaginação e está muito alerta.
110
Em vinte e quatro horas sua memória iria começar a funcionar bem. Em
setenta e duas horas o senhor teria recordação total.
— Ouçam bem. Animais têm respirado esta atmosfera tripla por
longos períodos. Eu a respirei em Bethesda. Vocês também.
Nas câmaras de teste de Bethesda havia alguns por cento de ni-
trogênio, o que era muito, e ficamos lá pouco tempo. Não conheço as
experiências com animais, mas acho que ninguém perguntou a eles como
se sentiam.
— O que os faz pensar que estão pensando melhor? Não estou
duvidando, compreendam, mas que evidência vocês têm?
— A lembrança completa é uma delas, — disse Tim. — Faz a gente
se sentir uma pessoa inteira. E também as realizações. Walter Pope tem
uma queda natural para matemática mas nunca soube disso. Na sema-
na passada êle galopou pelos cálculos diferencial e integral. Gerd está se
tornando especialista em enzimas e Susan provavelmente está entre os
melhores bioquímicos do país. Jake, por sua vez, inventou um aparelho
puramente matemático que retira energia termal da água do mar e é ca-
paz de nos dar toda energia elétrica de que necessitamos. Parecia entro-
pia reversa mas êle garante que não é.
— Primeiro você aprende a pensar, — disse Susan, — depois seu
corpo começa a trabalhar. As células aprendem a se diferenciar de nova
maneira. Apesar dos esforços feitos para nos enviar para aqui o mais lim-
pos possível em termos de patógenos, trouxemos conosco uma boa cole-
ção de vírus. Normalmente eles estariam atacando as células para produ-
zir mais vírus. Mas o que está acontecendo é que as células estão usando
os vírus para ajudá-las em sua adaptação a condições novas. Nunca ima-
ginamos do quanto as células são capazes. Pense no que pode acontecer
quando a primeira criança nascer aqui.
— Susan e eu vamos nos casar, — disse Gerd.
— Realmente? E quem vai fazer o casamento?
— Você se-refere à cerimônia? Bem, em consideração às pessoas lá
de cima espero que Tim ouça algumas promessas que faremos. Seremos
monógamos até nosso primeiro filho estar criado. Sabe, isto faz sentido.
Acho que nossa primeira comunidade praticará a monogamia temporária.
— Sua primeira comunidade? Você acha que a Marinha vai conti-
nuar a mandar gente para cá sabendo que não poderão ou não quererão
voltar?
111
Sem nenhuma incerteza Tim respondeu afirmativamente.
— Depois de um período de confusão e de muitas considerações,
sim. No início, poucos, depois mais e mais, quando se tornar evidente o
compensador resultado em novos conhecimentos.
Balancei a cabeça duvidando.
— Mas onde vocês vão encontrar voluntários? Vocês gostam da-
qui, é óbvio, mas um homem que nunca experimentou poderá relutar em
dizer adeus a tudo que conhece e mudar-se para um mundo frio e sem luz.
— Os ratos, — disse Tim. — Quando soubermos o suficiente para
atingir as estrelas o homem irá, acredite, sem a menor esperança de volta,
— Você pode estar certo. Mas, e as suas famílias?
— Minha mulher se reunirá a mim, — disse Walter Pope. — Espero
que dentro de um ano ela obtenha licença.
— A minha não. — Jalte Kepper encolheu os ombros. — Ela pedirá
o divórcio. Ótimo.
Mudei de assunto. — E a pele de vocês? Abel Stokes parece ter
pensado em alguma coisa mas não quis falar.
— Acho que sim, — disse Susan.
— Mas não em detalhe. — disse Tim. — Olhe minha mão.
A palma e a parte inferior dos dedos pareciam normais. As costas
da mão e o braço haviam perdido aquela aparência lustrosa que lembrava
as focas. A pele estava agora seca e empoeirada, como se estivesse cober-
ta com pó de arroz.
— Com um microscópio potente, (vou lhe mostrar mais tarde),
você poderá ver que desenvolvi bilhões de minúsculas escamas. Elas têm
o poder de ampliar muitas vezes a área do meu corpo. Muitas destas es-
camas operam como absorventes de oxigênio, mas, uma em cem, talvez,
tem uma função diferente. Ela elimina bióxido de carbono, e, incidental-
-mente, outros produtos metábólicos de que não necessito na corrente
sangüínea. Você se surpreendeu quando entramos sem máscara. O fato
é que não estamos respirando. No ar, isto é, nesta atmosfera, respiramos
ocasionalmente para não esquecer. Mas nos últimos dias não precisamos.
A mudança foi explosiva,
— Você está me dizendo que agora vocês têm guelras microscópi-
cas por todo o corpo?
— Não são guelras. É um mecanismo respiratório bem mais efi-
ciente.
112
Tentei ordenar meus pensamentos. — Você está querendo dizer
que condensou uma adaptação evolucionária de milhares de anos em...
menos de três semanas ?
— Não. Adaptação evolucionária implica no afastamento gradual
dos fatores letais e conservação dos fatores de sobrevivência. Nem se tra-
ta de mutação genética, embora possa envolver isso também. Chame de
mutação celular num sentido lato, se quiser colocar uma etiqueta.
— Não acredito.
— Você viu quando entramos sem máscara. Tem uma explicação
melhor ?
Soou uma sirena. Jake ligou o interruptor e ouvi a voz de Pete
Swain, amplificada.
— Cheney?
— Sim.
— Temos dificuldades.
— Que aconteceu?
— Primeiro: temos aqui uma tempestade. A turbulência tropical
transformou-se num furacão que está agora a oeste de Porto Rico.
— Vai atingir-nos?
— De frente não. Mas a força do vento é onze e está aumentando.
— Não faz mal, pois você não estava planejando sair. E em segundo
lugar ?
— Dr. Stokes teve um ataque. Êle deve ter ido sozinho à coberta,
e caiu. Tem um corte na cabeça, de lado, e eu fiz um curativo para parar
de sangrar. Voltou ao quartel sozinho. Parece que se arrastou até aqui e
então desmaiou. Não podemos acordá-lo. Acho que é o coração. Sua res-
piração tem um som horrível, como um ronco.
Tim inclinou-se para o microfone. Não havia nada errado com a
transmissão, mas do outro lado havia muito barulho.
— Pode me ouvir, Pete ? Coloque-o de bruços, com cuidado, para
que êle não se engasgue com a língua.
— Já fiz isso.
— O.K. Não faça nada. Não tire a roupa, mesmo que êle esteja
molhado. Conserve-o coberto. Vou subir.
— Também vou. Tim vai levar muito tempo na sala de aclimatação
mas eu posso ir mais depressa.
— Vocês não podem vir. É outro dos problemas.
113
— Por quê?
— Quando puxamos os cabos o vigamento das comportas não foi
suficientemente pesado para sustentá-los. O vento os enrolou numa es-
cora. Não se pode atingi-los, e além disso, uma ponta do vigamento se
quebrou.
— Temos dificuldades mesmo.
Tim, diga a êle o que deve fazer por Stokes até à chegada de um
médico.
A lancha e o bote de serviço em Santa Carlotta e eu esperava que
estivessem bem amarrados. Só havia um clínico geral, aposentado, e po-
deriam passar dois ou três dias até que conseguíssemos levá-lo à torre.
— O elevador está funcionando? — perguntou Tim.
— Estava, até alguns minutos.
— Traga-o até o nível do mar e espere por mim. Estarei aí em meia
hora aproximadamente.
— Tem certeza de que pode ir?
— Sim. Uma das torres de suporte tem ganchos para subir. Eles vão
até em cima, não vão?
— Vão, mas não dará certo. Mesmo que você ache que pode subir
por aqueles ganchos com uma rapidez de 3 metros por minuto, a escora
em que eles estão fica a uns 13 metros da plataforma de carregamento e
do elevador.
— E não há vigas em zigue-zague, por cima até à plataforma?
— Não diretamente.
— Desenhe um diagrama.
— Fiz um esboço rápido. — As vigas ficam bem abaixo d’água, na-
turalmente, mas com as ondas que deve haver lá em cima agora, devem
estar batidas pelas cristas.
— Nada bom.
— Não. Você hão pode fazer isso, Tim. Não importa quão adaptado
você esteja, não pode prender a respiração e fazer essa subida, Você teria
de usar um tanque, o que também não resolveria porque você iria neces-
sitar mais e mais oxigênio, à medida que a pressão diminuísse.
— Dane-se tudo, não vou prender a respiração. Vou encher os pul-
mões de água. Susan, traga uma máscara, daquelas com filtro, por favor. É
preciso coar parte dos detritos sólidos da água do mar antes de respirá-la.
— Pegue duas máscaras. Susan, — disse Walter Pope. — Também
114
vou. Não levante objeções, Tim. Passar por aquelas vigas vai ser difícil.
Deveremos ser dois, amarrados.
— O.K. Não há objeções. — Tim olhou o esboço. — Viramos na
segunda viga à nossa direita. E como subimos na plataforma?
— Vocês encontrarão outro conjunto de ganchos. Como sabem
que podem encher os pulmões?
— O que você acha? Estivemos treinando, intermitentemente, nos
últimos três dias. Das primeiras vezes não é fácil.
Eu já havia lido a respeito de ratos e cães com pulmões cheios de
água oxigenada, mas que seres humanos pudessem fazer o mesmo, ainda
que fossem aqueles humanos, era forçar os limites da credulidade.
Susan voltou com os filtros: círculos de tecido adaptados máscaras
de borracha.
— Ainda está aí, Pete ? — perguntou Tim.
— Sim, ouvindo.
— Procure um estôjo médico de emergência.
— Já está pronto.
— E como está êle?
— No mesmo.
— O.K. Você pode nos encontrar na plataforma?
— Posso. Iremos dois. A plataforma estará debaixo de água a maior
parte do tempo, por isso estaremos em traje de mergulho.
— Certo. Conte trinta minutos a partir de agora, mas com tolerân-
cia de vinte e cinco a quarenta e cinco. Depois disso, se alguma coisa não
tiver saído certa, você terá de fazer o possível por Stokes. Susan o aconse-
lhará por telefone.
Colocaram uma cinta de lona e amarraram a corda. Tim disse até
breve e eles saíram por uma comporta.
Sentamos todos, olhando solenemente uns para os outros. Estava
claro que na opinião deles, como na minha, Tim e Walter corriam grande
perigo. Jake Kepper trouxe um cobertor para mim e café para todos. Ainda
conservavam um dos vícios da Marinha. Susan disse que queria ler um li-
vro de cardiologia, para o caso de seu conselho ser necessário mais tarde,
e nos deixou. Depois disso ficou claro que Jake e Gerd estavam comigo
apenas por uma questão de cortesia. Sugeri então que gostaria de dormir
um pouco, o que, incidentalmente, era verdade.
Seis horas depois Jake foi à minha cabine e me acordou.
115
— Já é manhã?
— O que passa por manhã. Quase cinco e o café está pronto. Wal-
ter voltou.
— Conseguiram? Que inferno eu dormir assim, sem ter um relató-
rio antes.
— Teria sido notável se o senhor não tivesse dormido no primeiro
dia aqui em baixo. Eles conseguiram, mas foi uma sorte estarem amarra-
dos. Walter lhe dirá. As vigas tinham uma camada de lodo.
Walter nunca me disse muita coisa, apenas o suficiente para eu
saber que tiveram muita sorte na última parte. Êle havia ficado com Tim
até tornar-se claro que não havia muito para êle fazer. Tomou então o ele-
vador até o nível do mar, encheu os pulmões na primeira onda, e pulou da
borda carregando um pedaço de corrente para fazer peso.
Isto foi há quatro dias atrás. O furacão Beryl foi arrasar navios no
Atlântico Norte, mas ainda há muita agitação no mar e só depois de uns
dias Abel Stokes poderá ser levado à terra com segurança. Falei com Tim
algumas vezes. Stokes sofreu uma cóncussão, procedida ou seguida de
leve ataque cardíaco, mas já está sentado, e mesmo andando. Está con-
vencendo Tim a fazer uma viagem a Bethesda. Ficarei surpreso, contudo,
se Tim não aparecer amanhã, pelo método de descida rápida.
Já não sinto o frio, e hoje, pela primeira vez, não precisei fazer a
barba. Só daqui a vários dias a cápsula de passageiros ficará pronta. En-
tão... não sei o que acontecerá, Mas como não tenho família muito chega-
da, não tenho com que me preocupar.

VOLTA À IDADE MÉDIA


Com a noveleta “Operação inferno”, que começa no próximo número desta revista
e concluirá no número 7, Poul Anderson nos leva de volta aos tempos da feitiçaria, da má-
gica, da alquimia. Um conto extraordinário, em que os personagens, em lugar de viajar de
automóvel ou avião, viajam de vassoura (naturalmente vassoura-a-jato. . .)

116
TRINTA DIAS DE SETEMBRO

Robert Young

Trad. de Talma M. Pena

Na vitrina havia uma placa: “PROFESSORA À VENDA — PREÇO BAI-


XO”, e em letras menores, “Cozinha, costura, e ajuda nos trabalhos casei-
ros”. Ao vê-la, Danby pensou em carteiras, borrachas e folhas de outono;
em livros, sonhos e risos.
O proprietário da loja de artigos usados a enfeitara com um ves-
tido alegre e colorido e com sandálias vermelhas, e ela ficara de pé em
sua grande caixa, como uma boneca. Uma boneca em tamanho natural à
espera de alguém para trazê-la à vida.
Danby tentou continuar seu caminho para o estacionamento onde
deixara seu Baby Buick. Laura provavelmente já tinha o jantar servido e
ficaria furiosa se êle se atrasasse. Mas continuou de pé onde estava, figura
alta e magra, com um resto de juventude nos pensativos olhos castanhos
e no rosto delicado.
Estava aborrecido com sua inércia, ainda mais porque já havia
passado por aquela loja um milhão de vezes em seu caminho do esta-
cionamento para o escritório e do escritório para o estacionamento. Pela
primeira vez havia parado a fim de olhar a vitrina. Mas também, era a
primeira vez que ela mostrava algo que êle queria.
Danby tentou analisar a questão. Êle desejava mesmo uma pro-
fessora? Dificilmente. Mas Laura certamente precisava de alguém para
ajudá-la no trabalho de casa, e eles não podiam comprar uma criada auto-
mática. E Billy precisava ser melhor acompanhado nos estudos agora que
117
se aproximavam os exames “tampa de caixa”, e. . .
E o cabelo dela lembrava o sol de setembro; o rosto, um dia de
setembro. Uma névoa de setembro o envolveu e a inércia subitamente o
abandonou. Começou a andar, mas não na direção que pretendia. . .
— Quanto custa a professora da vitrina?
Antiguidades de todo tipo estavam espalhadas pelo interior da
loja. O proprietário era um velhinho de cabelo branco e arrepiado, que
também parecia uma antiguidade.
A pergunta de Danby deixou-o radiante. — Gosta dela? Ela é ado-
rável.
Danby sentia a face quente. — Quanto? — repetiu.
— Quarenta e nove dólares e noventa e cinco centavos, e mais
cinco pela caixa.
Danby mal podia acreditar. Os professores estavam ficando raros,
portanto o preço deveria subir e não baixar. E no entanto, menos de um
ano atrás quand’ tentara comprar uma professora de 3.° ano, retificada,
para ajudar Billy no trabalho da teleescola, a mais barata que consegui-
ra encontrar custava mais de cem dólares. Êle a teria comprado, mesmo
por esse preço, mas Laura não concordara. Laura não compreendia, pois
nunca havia freqüentado a escola verdadeira. Mas por $49,95! E sabendo
cozinhar e costurar! Certamente Laura não iria fazê-lo desistir dessa. . .
Certamente que não, se êle não lhe desse oportunidade.
— Ela está em boas condições?
— Foi completamente inspecionada. Novas baterias, novos mo-
tores. Suas fitas irão durar mais dez anos e seu banco de memória prova-
velmente durará para sempre. Espere, vou buscá-la para mostrar.
A caixa estava montada sobre rodas mas era difícil de manejar.
Danby ajudou o velho a tirá-la da vitrina. Colocaram-na perto da porta,
onde a luz era melhor.
O velho deu alguns passos para trás, admirando:
— Talvez eu seja antiquado, mas ainda acho que as teleinstrutoras
não se comparam com as professoras de verdade. Você freqüentou escola
verdadeira, não? — Danby assentiu com a cabeça. — Como eu imaginei. É
engraçado, a gente sempre descobre isso.
— Ligue-a, por favor — disse Danby.
O pequeno botão ativador ficava escondido atrás da orelha es-
querda. O proprietário levou alguns momentos para encontrá-lo e então
118
ouviu-se o pequeno “clique”, seguido de um som quase inaudível, como
um sussurro. Logo depois as faces ficaram coloridas, o busto começou a
subir e descer, os olhos azuis se abriram.
As unhas de Danby enterraram-se na palma das mãos.
— Faça-a dizer alguma coisa.
— Ela corresponde a quase tudo — disse o velho. — Palavras, ce-
nas, situações. . . Se decidir ficar com ela e não ficar satisfeito traga-a de
volta e terei prazer em devolver seu dinheiro.
Danby olhou a caixa. — Qual é seu nome?
— Miss Jones. — Sua voz era como o vento de setembro.
— Sua ocupação?
— Especificamente sou professora de quarto ano, mas posso subs-
tituir no primeiro, segundo, terceiro, quinto, sexto, sétimo e oitavo anos,
e tenho boa base em humanidades. Também sou eficiente em serviços
domésticos, cozinho e posso fazer tarefas simples como pregar botões,
cerzir meias e remendar roupas.
— Eles punham muitos extras nos modelos antigos, — disse o ve-
lho voltando-se para Danby. — Quando perceberam que a teleescola era
definitiva começaram a fazer o possível para vencer as companhias de
cereais. Mas não adiantou.
Depois disse: — Saia da caixa, Miss Jones. Mostre como seu andar
é bonito.
Ela deu volta pela sala, as sandálias cantando no chão poeirento,
seu vestido uma chuva de côr. Parou na porta e esperou.
Danby achou difícil falar. — Muito bem, — disse finalmente. — Co-
loque-a na caixa. Eu fico com ela.

— É alguma coisa para mim, papai? — gritou Billy. — Alguma coisa


para mim?
— Claro, — disse Danby puxando a caixa pela calçada e passando-a
pelo portãozinho. — Para sua mãe também.
— Seja o que fôr, é bom que preste, — disse Laura de braços cruza-
dos na porta. — O jantar está gelado.
— Você pode esquentá-lo, — disse Danby. — Cuidado, Billy.
Respirando com dificuldade levantou a caixa na soleira da porta.
Passou com ela pelo pequeno corredor e entrou na sala. Esta havia sido
ocupada por um sujeito de casaco côr-de-rosa que se havia convidado a si
119
próprio através da tela de 120 polegadas e estava proclamando em altos
brados a superioridade do Lincolnette 2061.
— Cuidado com o tapete, — disse Laura.
— Não se preocupe, não vou estragar seu tapete. E alguém desli-
gue a televisão para que possamos ouvir nossa voz.
— Eu vou, papai. — Billy atravessou a sala aos pulos de menino de
nove anos e liquidou o sujeito, com casaco rosado e tudo.
Danby mexeu na tampa da caixa consciente da respiração de Laura
em seu pescoço. — Uma professora! — exclamou ela quando finalmente
a caixa se abriu. — Bela coisa para um homem adulto trazer para a esposa.
Uma professora!
— Ela não é uma professora comum. Cozinha, costura, faz tudo.
Você vive dizendo que precisa de uma empregada. Pois agora já tem. E
Billy tem alguém para ajudá-lo com as telelições.
— Quanto custou? — Pela primeira vez Danby notou como era
comprido o rosto de sua esposa.
— $49,95.
— $49,95? George, você ficou louco? Eu economizando para po-
dermos trocar o Baby B. por um Cadillette novo e você jogando o dinheiro
fora com uma professora velha e quebrada. O que sabe ela de teleeduca-
ção? Ela está cinqüenta anos atrasada.
— Ela não vai me ajudar nas minhas telelições! — disse Billy olhan-
do a caixa. — Minha teleinstrutora disse que os velhos andróides não
prestam. Eles. . . eles batiam nas crianças!
— Não é verdade! — disse Danby. — E eu sei porque, freqüentei
oito anos a escola verdadeira. — Vírou-se para Laura. — E ela não está
quebrada nem atrasada cinquenta anos, e sabe mais sobre educação de
verdade do que suas teleinstrutoras jamais irão saber! E como eu disse,
ela costura, cozinha. . .
— Bem, nesse caso mande-a esquentar o jantar!
— É o que vou fazer! Dirigindo-se à caixa apertou o pequeno bo-
tão, e quando os olhos azuis se abriram disse: — Venha comigo, Miss Jo-
nes, — e guiou-a até à cozinha. Ficou satisfeito quando ela respondeu a
suas instruções sobre os botões que, devia apertar, as alavancas que devia
levantar e baixar, os indicadores que deviam apontar e para os números.
Num instante o jantar foi tirado da mesa e trazido de volta quente, fume-
gante e delicioso.
120
Até mesmo Laura ficou impressionada. — Muito bem. — disse ela.
— Muito bem o quê? — respondeu Danby. — Eu disse que ela co-
zinhava, não disse? — Agora você não tem mais que reclamar de botões
emperrados, unhas quebradas e. . .
— Está bem, George. Não insista.
O rosto dela estava normal agora, ainda magro mas do modo que
o tornava atraente em circunstâncias comuns, com os olhos escuros e ar-
dentes e a boca exótica. Tendo feito recentemente plástica no busto ficava
sensacional com sua nova lingerie escarlate e dourada. Danby decidiu que
poderia ter sido pior. Levantou-lhe o queixo com um dedo, beijou-a e dis-
se: — Vamos comer.
Por alguma razão êle se esqueceu de Billy. Erguendo os olhos viu
seu filho no portal olhando maldosamente Miss Jones que fazia café.
— Ela não vai me bater, — disse Billy em resposta ao olhar de
Danby.
Danby riu. Sentia-se melhor agora que metade da batalha estava
ganha. Da outra metade cuidaria depois. — Claro que não lhe vai bater, —
disse. — Agora venha comer, como um bom menino.
— Sim, — disse Laura, — e depressa. Hoje vamos ter Romeu e Ju-
lieta na Hora do Oeste, e não quero perder nem um minuto.
Billy acalmou-se. — Está bem. — Mas passou bem longe de Miss
Jones quando entrou na cozinha e tomou seu lugar à mesa.

Romeu Montague enrolou um cigarro com dedos ágeis, colocou-o


entre os lábios cobertos pelo sombrero, acendendo-o com um fósforo.
Desceu a colina montado em seu palomino à luz do luar, em direção ao
rancho dos Capuletos, dizendo:
— Acho bom tomar tento. Esses Capuletos são criadores de carnei-
ros e tão de rixa faz tempo com minha famia, que são nobres criadores de
gado. Se desse certo pr’êles, eles me acertavam antes qu’eu desse acordo.
Mas pela dona que conheci hoje no arraiá não me importa correr um pe-
riguinho à-toa .
Danby franziu a testa. Êle não era contra reescrever os clássicos
mas tinha impressão de que os reescritores estavam se excedendo na
exploração da disputa entre criadores de gado e de carneiros. Contudo
Laura e Billy pareciam não se importar. Estavam curvados para a frente em
suas cadeiras, olhando extasiados a tela de 120 polegadas. Parecia que os
121
reescritores sabiam o que estavam fazendo.
Mesmo Miss Jones parecia interessada ... o que era impossível.
Danby corrigiu-se rapidamente. Não importava quão inteligentemente
seus olhos azuis estivessem fitando a tela, a única coisa que ela estava fa-
zendo era gastar suas baterias. Êle deveria ter ouvido o conselho de Laura
e desligado Miss Jones. . .
Mas por algum motivo não tivera coragem. Havia um elemento de
crueldade no ato de privá-la de vida, mesmo temporariamente.
Esta agora foi uma das noções mais ridículas já concebidas por um
homem, pensou Danby movendo-se irritado na cadeira. Sua irritação se
intensificou quando percebeu que havia perdido a seqüência da peça.
Quando a retomou, Romeu havia escalado a parede do rancho Capuleto,
havia se esgueirado através do pomar e estava num lindo jardim debaixo
do balcão. Julieta Capuleto entrou no balcão passando por anacrônicas
portas-janelas, vestida com roupa branca de vaqueira, ou carneireira: a
saia batia nos tornozelos e usava um chapéu de abas largas sobre as tran-
cas tingidas de louro. Debruçou-se na grade do balcão e olhou o jardim,
dizendo: — Onde mecê tá, Romeuzinho?
— Ora, isto é ridículo, — disse Miss Jones abruptamente. — As
palavras, as roupas, a ação, o lugar. . . Está tudo errado.
Danby olhou-a lembrando-se de que o proprietário da loja tinha
dito que ela respondia tão bem a cenas e situações como a palavras. Pen-
sara que o velho se referia a cenas e situações ligadas a seus deveres de
professora, não a todas as cenas e proporções.
Uma desagradável premonição atravessou-lhe a mente. Laura e
Billy, voltando as costas a seu repasto visual fitavam-na com incredulida-
de. O momento era crítico. Limpou o pigarro e disse:
— Não é que a peça esteja errada, Miss Jones. Ela foi reescríta.
Sabe, ninguém iria vê-la no original e sendo assim não faria sentido pa-
trociná-la.
— Mas eles tinham que transferi-la para o Oeste?
Danby olhou a esposa com apreensão. A incredulidade dos olhos
dela havia sido substituída por violento ressentimento. Voltou rapidamen-
te a atenção para Miss Jones.
— O Oeste está na moda, Miss Jones. É uma espécie de revives-
cêncía dos primeiros anos da televisão. As pessoas gostam, por isso os
patrocinadores patrocinam e os escritores procuram novo material para
122
estórias ambientadas lá.
— Mas Julíeta vestida de vaqueira! Está abaixo do nível dos mais
baixos meios de entretenimento.
— Muito bem, George, chega. — A voz de Laura era fria: — Eu lhe
disse que ela estava cinqüenta anos atrasada. Se ela não fôr desligada eu
vou para a cama.
Danby suspirou e levantou-se. Sentia-se algo envergonhado en-
quanto se dirigia para Miss Jones e apertava o botão atrás de sua orelha
esquerda. Ela o fitava calmamente, as mãos no colo, a respiração saindo
ritmada de suas narinas sintéticas.
Era como cometer assassinato.
Danby tremia ao voltar para sua poltrona.
— Você e suas professoras! — disse Laura.
— Cale-se! — Danby tentou interessar-se pela peça mas não con-
seguiu. O programa seguinte, um mistério chamado Macbeth, também
o deixou frio. Continuou a olhar disfarçadamente Miss Jones. Seu corpo
estava parado, seus olhos fechados. A sala parecia horrivelmente vazia.
Depois não aguentou mais. Levantou-se e saiu dizendo a Laura:
— Vou dar uma volta.
Tirando o Baby B. do abrigo e dirigindo pela rua do subúrbio em
direção à grande avenida, Danby perguntava incessantemente a si mes-
mo por que uma antiga professora o afetava tanto. Sabia que não era só
nostalgia, embora nostalgia fizesse parte de seus sentimentos: nostalgia
de setembro e da escola, de entrar na classe nas manhãs de setembro e
ver a professora sair de seu pequeno armário ao lado do quadro-negro no
momento exato em que o sino tocava, e de ouvi-la dizer:
— Bom dia, classe. Não está um dia lindo para estudar nossas li-
ções?
Contudo, êle não gostara mais da escola que o comum das crian-
ças. Sabia que setembro representava alguma coisa mais que livros e so-
nhos de outono. Representava algo indefínível, intangível, que êle havia
perdido e de que necessitava desesperadamente agora.
Guiava o Baby B. pela grande avenida, deslizando ao lado dos ou-
tros compactos. Quando dobrou na rua transversal que ia dar no Ami-
go Fred viu que estavam construindo uma nova casa na esquina, onde
um grande cartaz dizia: SALSICHA NA BRASA — COMA UM VERDADEIRO
CACHORRO-QUENTE AO FOGO — BREVEMENTE NESTE LOCAL. Passou por
123
ela e entrou no estacionamento junto ao Amigo Fred. Descendo do carro
atravessou a noite estrelada e entrou no bar pela porta lateral. O lugar
estava cheio mas êle conseguiu um compartimento vazio. Lá dentro, colo-
cou a moeda na máquina e programou uma cerveja.
Quando ela apareceu no copo de papel porejado, bebeu-a dis-
traidamente. O compartimento estava abafado e cheirava a seu último
ocupante: um alcoólatra, deduziu êle. Pensou por um instante no tempo
em que não havia isolamento nos bares e a pessoa tinha de ficar lado a
lado com os outros fregueses. Então todos ficavam sabendo quanto cada
um havia bebido e a bebedeira em que havia ficado. Nesse momento sua
mente voltou a Miss Jones.
Havia uma pequena tela de TV acima do distribuidor de bebidas e
em baixo dela as palavras: “Está com problemas? Sintonize o Amigo Fred,
o dono do bar, e êle ouvirá suas queixas. (Apenas 25 cents cada três minu-
tos)”. Danby colocou 50 cents na abertura para moedas. Ouviu um peque-
no “clique” e a moeda foi devolvida enquanto a voz de Fred dizia em gra-
vação: “Ocupado agora, companheiro. Estarei com você em um minuto”.
Depois de um minuto e outra cerveja, Danby tentou outra vez.
Logo a tela do duplo circuito iluminou-se e a face rosada e jovial do Amigo
Fred entrou em foco. — Oi, George, como vai?
— Não muito mal, Fred, não muito mal.
— Mas poderia estar melhor, hem?
— Você adivinhou, Fred, você adivinhou. — Danby balançou a ca-
beça. Depois olhou o pequeno balcão onde estava sua cerveja solitária.
— Eu. . . comprei uma professora, Fred.
— Uma professora!
— Bem, concordo que é coisa fora do comum, mas pensei que o
menino precisava de ajuda com as telelições. Os exames “tampa de caixa”
estão próximos e você sabe como as crianças se sentem quando não po-
dem enviar as respostas certas e ganhar um prêmio. E também pensei que
ela. . . esta professora, é especial, Fred, você compreende, pensei que ela
poderia ajudar Laura em casa. Fazer coisas como. . .
Sua voz fraqueou quando êle olhou a tela. O Amigo Fred estava ba-
lançando solenemente sua face amiga. As bochechas rosadas tremiam. —
Escute aqui, George. Livre-se dessa professora. Tá me ouvindo, George?
Livre-se dela. Essas professoras andróides são tão más quanto as antigas:
estou falando das que respiravam de verdade. Sabe de uma coisa, Geor-
124
ge? Você não vai acreditar, mas estou falando a verdade. Elas costumam
bater nas crianças. Isso mesmo, bater nelas. — Ouviu-se um ruído e a tela
começou a piscar. — Acabou o tempo, George. Deseja comprar mais?
— Não, obrigado — disse Danby. Bebeu sua cerveja e saiu.

Todos odiavam as professoras? Nesse caso, por que não odiavam


também as teleinstrutoras? Danby considerou o paradoxo durante o dia
seguinte inteiro no trabalho. Cinquenta anos atrás parecera que os pro-
fessores, andróides resolveriam o problema educacional tão efetivamente
quanto a redução de preços e tamanho dos carros de prestígio havia re-
solvido o problema econômico. Mas, solucionando o caso específico da
carência de professores, os andróides revelaram a existência de outro as-
pecto do problema: a carência de escolas. De que servia dispor de muitos
professores se não havia salas de aula em número suficiente para eles
ensinarem? E como destinar verbas para a construção de novas escolas,
quando o país tinha constante necessidade de novas e melhores superes-
tradas?
Era tolice dizer que a construção de escolas deveria ter prioridade
sobre a de estradas, porque negligenciando as estradas públicas, automa-
ticamente enfraquecia-se a tendência do cidadão médio a comprar carros
novos, solapando assim a economia, precipitando uma depressão e desta
maneira tornando a construção de novas escolas ainda mais impraticável
que antes.
Pensando bem, não se podia deixar de tirar o chapéu às compa-
nhias de cereais em flocos. Introduzindo teleeducação e teleinstrutoras
salvaram a pátria. Uma só professora em sua sala, tendo de um lado um
quadro-negro e de outro uma tela de TV, podia ensinar a cinqüenta mi-
lhões de alunos. E se algum deles não gostasse de sua maneira de ensinar,
tudo o que tinha a fazer era mudar de canal sintonizando outro programa,
patrocinado por outra companhia de cereais. (Era dever dos país dos alu-
nos impedi-los de faltar às aulas e de assistir aos graus mais adiantados
antes de passar nos exames de “tampa de caixa”.)
Mas a melhor parte do engenhoso sistema era a feliz idéia de ser
tudo pago pelas companhias de cereais, livrando assim o contribuinte de
uma de suas obrigações mais onerosas e deixando seu livro de cheques
disponível para despesas com gasolina, pedágio, pagamento de carros e
impostos sobre a venda. E tudo que as companhias pediam em troca é
125
que os alunos, e de preferência também os pais, comessem seu cereal.
Portanto, o paradoxo não existia. Uma professora era anátema
porque simbolizava despesa; a teleinstrutora era servidora pública respei-
tada porque simbolizava poupança em tamanho família. Mas Danby sabia
que a diferença era ainda mais profunda.
Em parte, o ódio às professoras era atávico, mas era principalmente
o resultado de uma campanha de propaganda feita pelas companhias de
cereais ao lançarem sua idéia. Estas eram responsáveis pelo mito corren-
te de que as professoras andróides batiam nas crianças. Ocasionalmente
reviviam este mito, para o caso de existir alguém que ainda duvidasse.
O problema da maior parte das pessoas é que sendo teleeducadas
não tinham oportunidade de saber a verdade. Danby era uma exceção.
Tendo nascido numa pequena cidade cuja localização montanhosa não
permitia a recepção de TV, havia freqüentado a escola verdadeira antes
que sua família emigrasse para a cidade grande. Por isso, êle sabia que as
professoras não batiam em seus alunos.
A não ser que, por engano, “Andróides, Inc.” houvesse distribuído
alguns modelos deficientes. Mas isso não era plausível. “Andróides, Inc.”
era uma companhia muito eficiente. Fazia ótimos atendentes de postos,
colocava no mercado boas estenógrafas, garçonetes e empregadas.
Naturalmente, nem o homem que se iniciava nos negócios, nem a
dona de casa média, podiam comprá-los. Por isso (aqui os pensamentos
de Danby percorreram um labirinto intrincado) havia mais uma razão para
que Laura ficasse satisfeita com uma empregada improvisada.
Mas Laura não estava satisfeita. Bastou olhá-la ao voltar para casa
naquela noite para ver que ela não estava satisfeita. Sua face estava mais
encovada do que nunca; os lábios, muito apertados. Danby perguntou: —
Onde está Miss Jones?
— Está em sua caixa. E amanhã você vai devolvê-la e receber nos-
sos $49,95! — respondeu Laura.
— Ela não vai me bater outra vez! — gritou Billy de sua posição
índia em frente à TV.
Danby ficou branco. — Ela bateu nele?
— Bem, não exatamente, — disse Laura.
— Ou bateu, ou não bateu, — disse Danby.
— Diga a êle o que ela disse de minha teleinstrutora! — gritou Billy.
— Ela disse que a instrutora de Billy não estava qualificada para
126
ensinar cavalos.
— E diga o que ela disse de Heitor e Aquiles!
— Ela disse que era uma vergonha fazer uma estória de índio e
vaqueiro de um clássico como a Ilíada e chamar a isso educação.
A história foi contada gradualmente. Aparentemente Miss Jones fi-
zera um protesto intelectual desde o momento em que Laura a ligara pela
manhã até ser desligada. De acordo com Miss Jones tudo estava errado no
lar dos Danby, a partir dos programas de teleeducação a que Billy assitía
no pequeno receptor vemelho de seu quarto e dos programas da manhã
e da tarde a que Laura assistia no receptor grande da sala, ao padrão do
papel de parede do corredor (Cadillettes vermelhos deslizando pelas fitas
entrelaçadas das auto-estradas), ao pára-brisa na janela da cozinha e à
ausência de livros.
— Imagine, — disse Laura, — ela pensa que ainda se publicam li-
vros.
— Tudo o que quero saber, — disse Danby, — é se ela bateu no
menino.
— Chegarei lá.
Pelas três horas Miss Jones estava tirando o pó do quarto de Billy.
Êle estava sentado à carteira, assistindo à aula, muito quieto e bem com-
portado, absorto nos esforços dos vaqueiros para tomar a aldeia índia de
Tróia. Subitamente Miss Jones atravessou o quarto como uma louca, fêz a
sacrílega declaração sobre a Ilíada e desligou o receptor no meio da lição.
Foi então que Billy começou a gritar, e quando Laura entrou no quarto
encontrou Miss Jones segurando o braço dele com uma mão e levantando
a outra para bater.
— Cheguei no momento exato, — disse Laura. — Não sei o que ela
poderia ter feito. Poderia matar o menino.
— Duvido muito, — disse Danby. — E o que aconteceu depois?
— Tirei Billy dela e mandei-a voltar para a caixa. Então desliguei-a
e cobri a caixa. E acredite, George Danby, ela vai ficar fechada. E como eu
disse, amanhã de manhã você vai levá-la, se quiser que eu e Billy conti-
nuemos morando aqui.
Danby sentiu-se mal a noite toda. Comeu pouco, bocejou durante
parte da Hora do Oeste olhando várias vezes a caixa muda e quieta ao
lado da porta (quando estava certo de que Laura não estava olhando). A
heroína da Hora do Oeste era uma corista loura chamada Antígona, cujas
127
medidas eram 99/61/97. Seus dois irmãos haviam se abatido a tiros, e o
xerife, um sujeito chamado Creon, permitira somente a um deles um en-
terro decente na colina da Bota, insistindo ilogicamente em que o outro
fosse deixado no deserto para os abutres. Antígona não se conformou
com isso e disse à sua irmã Ismênia que se um irmão merecia sepultura
respeitável, o outro também merecia, e ela, Antígona, iria providenciar
isso. Ismênía gostaria de ajudar? Ismênia era covarde e Antígona resolveu
cuidar de tudo sozinha. Chegou, então, à cidade um velho vidente chama-
do Tiresias, e. . .
Danby levantou-se, passou pela cozinha e saiu calmamente pela
porta dos fundos. Entrou no carro e foi para a avenida, onde dirigiu com
as janelas abertas, deixando entrar o vento morno.
A barraca de cachorro-quente da esquina estava quase pronta.
Olhou-a sem interesse enquanto entrava na rua ao lado. Havia vários
compartimentos vazios no Amigo Fred e êle escolheu um ao acaso. Tomou
algumas cervejas de pé no pequeno bar solitário e pensou um bocado.
Quando teve certeza de que sua esposa e filho estavam dormindo voltou
para casa, abriu a caixa e ligou Miss Jones.
— Você ia bater em Billy esta tarde? — perguntou.
Os olhos azuis fitaram-no com firmeza, os cílios batendo em in-
tervalos rítmicos, as pupilas ajustando-se gradualmente à luz que Laura
deixara acesa na sala. — Sou incapaz de bater num humano, senhor. A
cláusula está na minha garantia.
— Sua garantia acabou faz algum tempo. Não que isso tenha im-
portância. Mas você segurou o braço dele, não? — Sua voz estava espessa
e as palavras atropeladas.
— Tive de fazer isso, senhor.
Danby franziu a testa. Andou com passos incertos pela sala.
— Venha sentar-se e contar-me tudo. Miss. . . Miss Jones.
Observou-a sair da caixa e andar pela sala. Havia algo estranho na
sua maneira de andar. Seu passo não mais era leve, e sim pesado; seu
corpo não estava delicadamente equilibrado, mas oblíquo, inclinado. Com
um sobressalto, compreendeu que ela estava mancando. Sentou-se no
sofá e ela sentou-se a seu lado. — Êle lhe deu um pontapé, não foi?
— Sim, senhor. Tive de segurá-lo ou êle me daria outro.
Danby via tudo vermelho diante dos olhos. Subitamente esta ver-
melhidão se dissipou diante de sua convicção de ter nas mãos a arma, a
128
clava psicológica para afastar toda objeção futura a Miss Jones. A verme-
lhidão ficou apenas um pouco, combinada com pesar. — Sinto muitíssimo,
Miss Jones. Billy é agressivo demais.
— Êle não poderia evitar. Fiquei surpreendida ao saber que aque-
les horríveis programas a que assiste constituem sua única educação. Sua
teleinstrutora é semicivilizada e seu principal objetivo é vender os cereais
de sua companhia. Agora entendo por que os escritores têm que reverter
aos clássicos em busca de idéias. Sua criatividade é apagada por clichês
quando ainda em formação.
Danby estava encantado. Nunca ouvira alguém falar assim. Não era
tanto pelas palavras mas pela maneira como ela dizia, a convicção de sua
voz, embora essa “voz” não fosse mais que um dispositivo sonoro ligado
a fitas, que por sua vez eram ligadas a bancos de memória inimaginàvel-
mente intrincados.
Entretanto, sentado ao lado dela, vendo moverem-se seus lábios e
seus cílios descerem tão freqüentemente sobre os olhos azuis, era como
se na sala tivesse se instalado setembro. Foi envolvido por um sentimento
de paz infinita. Contemplou os dias frutíferos e ricos de setembro e viu por
que eles eram diferentes. Viu que eles continham profundidade, beleza
e quietude, e seus céus azuis guardavam promessas de dias ainda mais
ricos.
Eram diferentes porque tinham um significado. . .
Aquele momento era tão comovente que Danby desejou que não
acabasse nunca. O simples pensamento de que êle passaria trazia-lhe in-
suportável agonia. Para impedir isso, fêz o único gesto que podia conser-
vá-lo.
Abraçou Miss Jones.
Ela não se moveu. Continuou respirando compassadamente, os
longos cílios baixando a intervalos como pássaros escuros e delicados voe­
jando sobre límpidas águas azuis. . .
— Aquela peça a que assistimos ontem à noite — disse Danby —
Romeu e Julieta. Por que você não gostou dela?
— Foi horrível, senhor. Era uma farsa barata, sem valor real, a bele-
za dos versos corrompida e obscurecida.
— Você sabe os versos?
— Alguns.
— Diga-os, por favor.
129
— Sim, senhor. Na cena do balcão quando os amantes se separam,
Julieta diz: “Boa noite, boa noite! Separar-nos é tão doce sofrer, que eu
direi boa noite até o amanhecer”. E Romeu responde: “Fique o sono em
teus olhos, paz em teu peito! Fosse eu sono e paz, para dormir desse jei-
to!”. Por que eliminaram isto, senhor?
— Porque estamos vivendo num mundo sem grandeza e, sendo as-
sim, as coisas preciosas não têm valor. — Dandy ficou surpreendido com
sua própria compreensão das coisas. — Fale. . . diga os versos outra vez,
Miss Jones. .
— “Boa noite, boa noite! Separar-nos é tão doce sofrer, que eu
direi boa noite até o amanhecer”.
— Deixe-me terminar. — Danby concentrou-se: “Fique o sono em
teus olhos, paz. . .”
— “em teu peito!”
— “Fosse eu sono e paz para. . .”
— “dormir”
— “para dormir desse jeito!”.
Miss Jones levantou-se repentinamente dizendo: — Boa noite, se-
nhor.
Danby nem se importou em levantar-se. Não teria adiantado. Além
disso êle podia ver Laura de onde estava. Laura de pé no portal da sala,
com seu pijama Cadillette novo e de pés descalços, para não fazer ruído
ao descer disfarçadamente a escada. Os automóveis em alto-relêvo, que
constituíam o estampado do pijama, destacavam-se em vermelho vivo e
era como se estivessem correndo sobre seu corpo.
Êle viu sua face estreita, seus olhos frios e sem piedade e compre-
endeu que não adiantaria tentar explicar. Que ela não iria nem poderia
compreender. E viu com clareza chocante que no mundo em que êle vivia,
setembro havia morrido há décadas. Viu a si mesmo na manhã seguinte
colocando a caixa no Baby B., dirigindo pelas ruas brilhantes da cidade até
à loja de segunda mão e pedindo seu dinheiro ao proprietário. E se viu
depois disso. Teve de olhar para outra coisa e então viu Miss Jones de pé
no meio da sala e ouviu-a dizer repetidas vezes, como um disco quebrado
e atrapalhado : — Alguma coisa errada, senhor? Alguma coisa errada?

Passaram-se várias semanas até que Danby se sentisse com cora-


gem e suficientemente bem para ir tomar uma cerveja no Amigo Fred. A
130
essa altura Laura já estava falando com êle outra vez, e o mundo, embora
não exatamente o mesmo, havia recuperado alguns de seus antigos as-
pectos. Êle tirou o Baby B. do abrigo, dirigiu por sua rua e entrou no tráfe-
go multicolorido da grande avenida. Era uma noite de junho muito clara,
e as estrelas eram como pontos de cristal acima do fogo fluorescente da
cidade. A barraca de cachorro-quente da esquina estava terminada. Uma
garçonete estava virando salsichas num braseiro cromado. Havia algo fa-
miliar na alegre chuva de cores de seu vestido, no seu modo de mover-se
e no modo pelo qual o gentil nascer do sol de seus cabelos emoldurava-
-lhe o rosto. O proprietário estava encostado no balcão a alguma distân-
cia, conversando com um freguês.
Com um aperto no coração Danby encostou o Baby B., saiu e foi até
o balcão. Um aperto no coração e uma pulsação nas têmporas. Há coisas
que não se podem permitir sem tentar evitar, não importa a que preço.
Estava para debruçar-se no balcão e bater na cara do proprietário
quando viu um cartaz encostado ao jarro de mostarda que dizia: “Precisa-
-se de Empregado”.
Uma barraca estava longe de ser uma sala de aula em setembro, e
uma professora distribuindo cachorro-quente não poderia ser comparada
a outra distribuindo sonhos. Mas se alguém deseja muito uma coisa, agar-
ra o que puder obter dela, e fica agradecido mesmo por esse pouco. . .
— Só poderei trabalhar à noite, — disse Danby ao proprietário. —
Das seis às doze.
— Isto seria ótimo. Mas não vou pagar muito no início. Como vê,
estou começando.
— Não importa. Quando começo?
— Quanto antes melhor.
Danby contornou,o balcão até ao tampo que se erguia, com do-
-bradíças escondidas, entrou na barraca e tirou o paletó. Se Laura não
gostasse da idéia poderia ir para o inferno, mas sabia que ela não faria
objeção. O dinheiro que iria ganhar tornaria o sonho dela, o Cadillette,
realidade.
Colocou o avental que o proprietário lhe deu e foi para o lado de
Miss Jones em frente ao brasileiro dizendo: — Boa noite, Miss Jones.
Ela voltou a cabeça e os olhos azuis pareceram iluminar-se; seu
cabelo ficou como o sol surgindo numa nevoenta manhã de setembro.
— Boa noite, senhor, — disse ela. Um vento de setembro soprou pela
131
barraca e foi como voltar para a escola, depois de um verão interminável
e vazio.

Nota da Trad. — Nos Estados Unidos, cenário deste conto, o ano


letivo começa em setembro, e as férias mais longas são reservadas aos
meses de verão: junho, julho e agosto.

132
A TOCA

Walmes Nogueira Galvão

Sentiu, mais do que ouviu, os pingos de chuva. Ainda se revolvia


dentro do sonho, um sonho brilhante e ensolarado, com um mundo todo
iluminado por cores nos mais diversos matizes, como somente em sonho
agora êle poderia ver. Ficou meio confuso com a chuva, pois ela represen-
tava a realidade, se bem que um tanto fantástica, e o sol era puramen-
te um sonho, embora também fantástico. Mas quase tudo era fantástico
para êle, hoje em dia.
Sentiu um arrepio. Distendeu o corpo e encolheu-o outra vez. Não
estava se espreguiçando. Eram apenas contrações gostosas, em virtude
da chuva. O barulho dos pingos no telhado e na vidraça sempre lhe lem-
brava o frio contato da água e isso o deixava arrepiado, com vontade de
se enrodilhar, esperando sempre que a mãe lhe fosse achegar mais as
cobertas, como quando era pequenino.
Não sabia há quanto tempo — e isso não lhe importava — estava
brincando de sonhar, de forçar um estado sonolento próprio para criar so-
nhos, naquela madorna que o calor da cama lhe produzia, em oposição ao
friozinho que o barulho da chuva trazia. Era gostoso. Sonhando, conseguia
ver claramente o mundo lá de fora, com as pessoas, os carros, os edifícios;
conseguia até ouvir rumor de conversas, o barulho das freadas e os pés
batendo nas calçadas. O cheiro das descargas dos motores, as cores das
roupas e os semblantes das pessoas eram mais claros nos sonhos. Quan-
do acordado, essas coisas pareciam-lhe meio embaralhadas, embaciadas.
Andava muito confuso ultimamente.
Agora, estava completamente desperto. Bastou começar a lem-
133
brar-se do mundo real para acordar de vez. Era melhor levantar-se para
afastar as idéias que vinha tendo já há algum tempo.
Jogou as cobertas para o lado, espreguiçou-se e foi abrir a janela. O
cheiro da chuva devolveu-lhe a alegria, o frio contato no rosto e nas mãos
fêz com que começasse a rir. Brincou um pouco com a água do peitoril e
foi trocar de roupa.
Preparou leite, comeu umas bolachas e sentiu vontade de ir passe-
ar na chuva. Precisava não pensar em coisas do passado, era muito confu-
so e triste, mas aquelas bolachas fizeram-no ficar preocupado. Não gosta-
va muito delas, mas eram de um tipo especial, que seu pai escolhera por
ser muito nutritivo. Numa das fitas, o pai explicava que com elas estava
resolvido o problema de armazenamento de alimentos para muitos anos.
Tocou a poeira em cima da mesa e lembrou-se de que era preciso
fazer uma limpeza. Tinha sido escoteiro e se orgulhava disso, pois havia
adquirido noções de higiene, de ordem e de obrigações a cumprir. Aquela
casa, ganhara-a do pai, para aprender a ser independente.
Tudo começara com a Toca. A Toca era um grande buraco que o
pai abrira no quintal; tinham vindo pedreiros e haviam feito uma casa no
buraco, que ficara em nível abaixo do chão. Era muito divertido. Brinca-
ra bastante enquanto os homens trabalhavam. Depois, tinham vindo ho-
mens que haviam colocado máquinas e fios. Quilômetros e quilômetros
de fios havia lá dentro. O pai cocava a cabeça, dizia que estava ficando
caro, mas a mãe sempre repetia que era necessário fazê-lo, pois um dia
talvez aquela casa subterrânea tivesse que ser utilizada. Essa última parte
da frase ela costumava dizer com os olhos bem abertos, voltados para
cima, depois suspirava e ficava sempre pensativa, abanando a cabeça. Fa-
lava em um grande mal que poderia vir do alto.
Os pais diziam que a Toca era um presente para êle. Não era ape-
nas para brincar, como também para estudar, pois êle era um bom me-
nino e precisava estar preparado para tudo que pudesse acontecer. Não
entendera isso muito bem, mas achara a Toca divertida.
Havia muito com que brincar. Seu pai o ensinava a mexer nas má-
quinas, dizia que não funcionavam com energia comum, mas sim com
pilhas e baterias que jamais descarregavam. Até o fogão era a pilha; tam-
bém.
Seus amigos iam sempre brincar com êle. Então, mostrava-lhes o
gravador, o rádio, dizia quantos metros (hoje não se lembrava) tinha o
134
poço que alimentava a Toca de água. Dentre os escoteiros, era quem me-
lhor sabia cozinhar, pois sua mãe o ensinara a abrir latas, a esquentá-las, a
preparar refeições sadias, com bastante vitaminas, que papai dizia serem
necessárias para que ficasse bem forte. Sabia, também, fazer saladas, se
bem que desde que ficara só não mais havia provado verduras.
Lembrou-se da chuva.
Abriu a janela da sala e ficou ouvindo o barulho. Sentiu vontade de
beber um pouquinho da água da chuva, mas o pai sempre lhe dizia que
isso não era bom, que só tomasse água de dentro da Toca, pois só lá a
água era pura, destilada e filtrada. Nem a água da casa era boa.
O pai mandara construir em cima da Toca uma casinha para êle
brincar. Lá estavam todos os seus brinquedos. Tinha um quarto e uma
sala. No quarto, a cama era grande e gostosa (na Toca tinha outra, mas
era menor, pois quase todo espaço estava tomado por máquinas e armá-
rios), havia estante de livros, guarda-roupa e brinquedos. Na sala tinha
gravador, rádio, geladeira, mesa, cadeiras. Era mesmo uma casa de ver-
dade. Como prêmio, quando se comportava bem, o pai o deixava passar
o fim-de-semana sozinho na Toca. No domingo, êle mesmo preparava o
almoço e, só por brincadeira, convidava os pais para almoçar com êle.
Era muito divertido. Pena que sua mãe sempre ficasse quieta e como que
tristonha, quando entrava na Toca. Jamais conseguira saber porque. Para
compensar, o pai sempre fazia testes para ver se êle conseguia mexer em
tudo direitinho, lembrava-lhe detalhes. Dizia-lhe para nunca se esquecer
de, na hora de ir dormir, ligar aquela máquina que não servia para nada.
Não gostava dela porque era uma máquina muito sem graça. A gente liga-
va e nada acontecia. Até já esquecera o nome da máquina, que o pai lhe
dissera. Devia ser desligada de manhã e, então, devia ligar o rádio. Se al-
gum dia o rádio emitisse algum sinal especial (isso o pai nunca conseguira
explicar; só dizia “você saberá quando fôr o sinal”) a máquina deveria ser
novamente ligada e nunca mais desligada.
Bem, achava que não adiantara nada o pai falar tanto do rádio, pois
êle só fazia aquele barulho de estática. Talvez estivesse estragado, mas o
pai dissera que ia ser assim mesmo, até que ouvisse o sinal..
Ligou o rádio e ficou mexendo com o dial de um lado para outro. Às
vezes havia um barulho no aparelho e logo depois se ouvia um trovão. O
barulho era divertido: aquele zumbido contínuo e depois o barulhão. Mas
cansou-se logo. Era melhor brincar com o gravador, ouvir as vozes da ma-
135
mãe e do papai. Será que eles nunca mais voltariam daquela viagem? Não
entendia direito aquilo. No gravador, a mãe dizia que fora viajar com o pai
e que iria demorar bastante, mas não a vira preparar as malas, quando
saíra para ir buscar o pai na cidade. Fora de avental e tudo. Saíra chorando
muito. Talvez não se tivesse despedido para não chorar mais ainda.
Na última semana antes da viagem, os pais estavam muito nervo-
sos, a mãe sempre com os olhos avermelhados, como quando preparava
tempero na cozinha. Já, então, êle dormia todas as noites na Toca e brin-
cava durante o dia na casinha da Toca ou na Toca, mesmo. Não ia mais à
escola, como se estivesse de férias.
Só faltava uma noite o pai dizer:
— Arrumem as malas amanhã, pois dentro de dois dias iremos
para a praia.
Que delícia imaginar isso. Mas os semblantes dos pais afastavam
totalmente a idéia.
Nunca entendera o que houve. Uma tarde, mamãe atendera ao
telefone e dissera:
— Oh, não! Vou já para aí, apanhar você — e começara a chorar. —
Não! Não! Vou, de qualquer jeito! Você deixou o carro aqui. Quero vê-lo,
para que partamos juntos.
Ele achara que era a viagem, mas ela não precisava chorar daque-
le modo. Se fosse êle, ficaria contente. Voltara-se para êle, dera-lhe um
abraço que quase o sufocara, beijara-o muito, entre lágrimas, e dissera:
— Filhinho, vá para a Toca, brincar um pouco. Mamãe vai buscar o
papai na cidade e voltará já — dera um suspiro. — Entre lá dentro, feche a
porta, tranque a fechadura do centro, a grandona, e gire todo o dial para
a esquerda. Não se preocupe: quando a mamãe voltar, abrirá a porta para
você.
Dera-lhe mais um beijo e fora, de avental mesmo, buscar papai.
Não os vira mais.
Quando será que voltariam? Não sabia, não entendia...
Lembrava-se de que antes de entrar na Toca, mal a mãe acabara de
sair com o carro, vira um clarão imenso. Seus olhos ,tinham doído, ardido
muito. Assustado, entrara rapidamente e fechara a porta. Sua vista lacri-
mejava e ardia, como sempre acontecia quando êle olhava diretamente
para o sol. Mal conseguia abrir os olhos.
Ouvira, então, a voz da mãe dizendo :
136
“Meu filho, isto é uma fita do gravador. É apenas a minha voz. Ago-
ra, estou viajando com papai e não sei quando voltaremos. Durma um
pouquinho e se ao acordar eu ainda não tiver voltado, vá à prateleira das
fitas e ponha no gravador a que estiver em cima, na primeira pilha, e es-
cute.
Continuara falando, dizendo o quanto papai e mamãe gostavam
dele, que fosse bonzinho, que se tudo corresse bem eles voltariam logo.
Isso bastara para acalmá-lo. Deitara-se e dormira.
Acordara. Era noite e os pais ainda não haviam - voltado. Que es-
curidão. Era melhor acender a... Lembrara-se de que estava na Toca, do
clarão, da mãe chorando. Tinha corrido a acender a luz, mas nada aconte-
cera. Ficara com medo. Jamais se queimara uma lâmpada na Toca. Estava
ficando deveras assustado quando se lembrara do gravador. Tendo acha-
do com que se distrair, o medo acabou por passar.
A fita (nessa e em todas as outras papai e mamãe se intercalavam,
falando) recordava mais uma vez a viagem, dizia que ouvisse as instruções
das outras fitas, que ouvisse música, indicava onde havia comida, roupas
(isso tudo êle já sabia!) e programava dia a dia o que êle devia fazer. Não
se lembrava de ter visto aquelas fitas serem gravadas:
No fim, dizia que se eles demorassem muito, dentro de um certo
tempo a porta se abriria sozinha. Êle, então, poderia sair e morar na sua
casinha, mas só deveria comer e beber dos alimentos que houvesse den-
tro da Toca. Também, não deveria entrar logo na casa grande.
A chuva aumentou. Nervoso que ficara com tantas lembranças, re-
solveu ir passear.
Abriu a porta e sentiu a chuva. Que delícia! Era uma festa tão gran-
de quando chovia! Tanta coisa bonita acontecia! Podiam-se ouvir os dife-
rentes sons dos pingos, ora no chão, ora no telhado da casinha, no alpen-
dre da casa grande, na grama, nas árvores. E a sensação gostosa da água
ao se entranhar nos fios do cabelo, ir aos poucos molhando a cabeça, ao
se sentir distintamente os pingos a cair, bate-escorre, bate-escorre. Passar
a língua nos lábios e lamber um pouco da água (só um pouco e já é estar
desobedecendo a papai).
Puxa vida! Já lembrei outra vez de papai. Que saudade estou sen-
tindo deles! Será que ainda vão demorar muito? Meus brinquedos já estão
velhos. Não gosto dessas bolachas. As outras, mais gostosas, já acaba-
ram. Já não há mais nenhuma lataria. Eu juro que vou ficar de mal com
137
eles! Depois, eu faço as pazes e peço para a mamãe fazer aquele doce.
Acho que eles não gostam mais de mim. Será que me abandonaram? Não.
Mamãezinha sabe que eu devo voltar para a escola. Ela volta logo.
Bem, já desobedeci, lambendo água da chuva. Será que eles... Vou
desobedecer mamãe, tirar os sapatos e correr no gramado. Se chegarem,
vou ficar tão contente que não ligarei para a bronca. Se não chegarem, eu
me enxugo, depois me deito, e eles não vão saber de nada.
Tirou os sapatos e saiu a correr.
Êle sempre achara que a sensação da grama molhada é conhecida
apenas pelas crianças e pelos que gostam de andar na chuva. As folhinhas
de grama entre os dedos, os pés que escorregam um pouquinho, mas
logo se firmam. Pode-se segurar grama e terra com os dedos dos pés.
Que contato gostoso! Parece que a gente se integra mais com a natureza,
sente-se mais o contato com o solo. Em meio ao barulho das gotas, sente-
-se o sangue correr livremente.
A água vindo do alto, escorrendo, ensopando a roupa. Os pingos
riscando a pele, como se fossem veias correndo também por fora do cor-
po, trazendo mais vida para a gente. Pula-se, brinca-se, há mais vivacida-
de, vitalidade. Tudo isso a gente encontra quando a chuva cai do alto para
nos alegrar.
Isso lembra, também, a sensação gostosa dos dias em que o sol
está quentinho.
Êle gostava de se deitar no jardim, sentir o sol esquentando a pele,
ouvir a grama estalando. Ficava imaginando como devia ser quente aque-
la enorme bola de fogo, que mandava calor e saúde lá do alto. Como se
sentia bem tomando um pouquinho de sol!
Mas, agora, o que havia era chuva.
Saiu correndo até a única árvore que havia no jardim, tocou-lhe
o tronco rugoso, sentiu-o molhado, abraçou-se a êle e ficou sentindo os
pingos mais grossos que se acumulavam de folha em folha. Sabia direiti-
nho, não precisava ver para saber; seria melhor dizer que sentia a chuva
na árvore. Quando as folhas que estavam mais em cima ficavam pesadas
de água, inclinavam-se e o fiozinho de chuva despencava para as de baixo.
Que lindo era uma árvore tomando chuva; as ramas pareciam miríades de
homenzinhos brincando de se curvar e despejar baldes de água nas costas
dos outros. Era como se dissessem:
— Já bebi e já me banhei. Você também quer um pouco?
138
E plinc para o de baixo, e plonc para o mais debaixo, e plinc pára o
outro, até que o pingo, grosso, cai por fim na terra. Que bonito!
E as cores? Todos os tons de verde se alegravam com a chuva. Os
jardins, as matas lavavam suas vestes rapidamente. Logo poderiam ser
vistos, um por um, os matizes exatos. Um verde mais claro, outro mais
escuro, mas todos, depois da chuva, são verdes sorridentes.
Cansado de brincar com sua árvore e achando que já desobedece-
ra muito aos pais, dirigiu-se, embora relutante, para a última cerimônia do
ritual da chuva: a calha de esquina da casa grande. Só faltava isso e era o
encerramento perfeito para toda aquela alegria.
Quem sabe andar na chuva, quem gosta de andar, brincar, pular,
correr na chuva, sabe e gosta de passar por baixo de uma calha. É o mo-
mento do banho total. Aquele jorro de água, pesado e forte, batendo nos
braços, nas costas, ressoando na cabeça é o gozo final da chuva.
Ficou ali durante bastante tempo. Era tamanha a força da água que
mal podia respirar. Inclinava o corpo, virava-se de lado, abaixava-se, para
depois erguer-se de um salto, batia com as mãos na água. Pulou e brincou
até cansar. Voltou, então, para sua casinha, sentindo-se quente, feliz, vivo.
Ao se enxugar, lembrou-se dos pais com um complexo de culpa.
Realmente, estava ficando cada vez mais desobediente, mas pretendia se
regenerar. Precisava ir mais uma vez à casa grande buscar roupa pois as
últimas já estavam bem gastas. Já as sentia puirem-se. Depois, sempre
precisava ter consigo uma roupa nova e limpinha, para a chegada dos pais.
A chuva diminuiu. Já não se ouviam mais trovões. No rádio, sempre
a mesma estática. De súbito:

“Alô! Alô! Lua 1 chamando Terra.


Lua 1 chamando Terra.
Aqui é o primeiro socorro da colônia lunar.
Alô, alô, chamando Terra! Por favor, estávamos captando seus si-
nais, mas desapareceram durante a tempestade. Por favor, para encontrá-
-lo, é preciso que ligue o transmissor. Ligue o transmissor!”

Trans-mis-sor. . . Trans-mis-sor! É isso! É o sinal. É a máquina-que-


-não-faz-nada! Era assim que o pai a chamava: transmissor!
Corre, liga o aparelho, mas na sua pressa não o consegue, quase.
Parece que tem onze dedos em cada mão. O que antes ligava num piparo-
139
te, agora exige o uso das duas mãos.
Que excitação, que alegria! São eles, estão chegando!
Corre à casa grande, pega a roupa de que precisa, veste-se, volta
correndo, penteia-se cantarolando. Está feliz. Até que enfim. Voltaram.
Puxa! Que saudade estou sentindo! Atho que vou chorar quando
os vir. Não, é melhor não. Papai não vai gostar. Mas mamãe... Mamãe já
deve estar chorando. Vou chorar, também!
E as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Já está chorando. Quan-
to tempo, que saudade, que bonito o dia de hoje!
Corre a buscar o último boneco que a mãe lhe dera, quer mostrar
que o guardara com carinho. Penteia-o, arruma-lhe também a roupa.
Tem fome, está cansado, mas tão forte é a alegria e a emoção que
sente que não vai ser possível dormir, nem comer. Anda, vai à janela, ouve
lá fora... Nada!
Como demoram!
Senta-se no peitoril da janela, como se estivesse olhando para
longe. Agora, sente com mais força o problema ao qual pensara já estar
acostumado. No começo fora difícil, chorara muito, mas acabara conside-
rando como mais uma diversão o ter que andar no escuro, como quando
pensava que as lâmpadas da Toca haviam queimado. Como lhe fazia falta,
agora! Não. As luzes não se haviam queimado, mas êle só descobrira isso
na primeira vez que saíra da Toca: não pudera ver o sol. Aquele clarão o
havia cegado e, agora, queria ver os pais chegarem. Que raiva-tristeza-dor.
Sentiu, pela primeira vez, ao chegar o tão esperado momento, dó de si
mesmo. Mas não. Tinha que se alegrar, mostrar aos pais que fora inde-
pendente, obediente, que tudo estava em ordem. Iria abraçá-los sorrindo.
Sim, isso! Iria correndo e cantando, com o seu boneco.
Um barulho enorme. Chegaram. Pararam no campo, lá atrás. Vou
encontrá-los. Papai... Mamãe...

***

A jovem equipagem da astronave, a primeira que chegava ao Pla-


neta depois da guerra total de extermínio, estava orgulhosa. Assim que a
guerra estourara, um grupo de astronautas fugira para a Lua, onde havia
um início de colonização. A nave ficara danificada na alunissagem e, com
muito sacrifício, quase sem meios, fora reconstruída. Agora, estava em
140
viagem para buscar meios técnicos que, porventura, houvessem sobrado.
Não tinham ido em busca de sobreviventes. Seria impossível havê-los.
Realmente, foi um choque para todos ver o único sobrevivente cor-
rendo pelo campo, tropeçando e caindo, para tornar a levantar, correr e
cair, sempre agarrado a um boneco.
Com os longos cabelos e barbas brancos, soluçando, êle balbucia-
-va:
— Papai... mamãe... aqui... venham...

141
O CONFLITO DOS SEXOS

Issac Asimov

Trad. de Nilson Martello

Entre umas e outras coisas, tenho lido ultimamente um bocado


de Shakespeare (não se espante; é porque estou escrevendo um livro a
respeito), e percebi uma série de coisas, inclusive o seguinte: as heroínas
românticas de Shakespeare são usualmente muito superiores aos heróis
em inteligência, caráter e fibra moral.
Enquanto as ações de Julieta são perseverantes e perigosas, Ro-
meu meramente atira-se ao chão, soluçando (“Romeu e Julieta”); Portia
desempenha difícil e ativo papel, enquanto Bassanio permanece em li-
nha secundária, apertando as mãos (“Mercador de Veneza”). Da mesma
forma Berowne não é parelha para Rosalina (Love’s Labor’s Lost’); nem
Orlando parelha para Rosalinda (“As you like it”). Em alguns casos o de-
sempenho do herói não chega nem mesmo aos pés do da heroína. Julia é
infinitamente superior a Proteus (“Dois senhores de Verona”) e Helena, a
Bertram (“Tudo está bem, quando termina bem”).
A única peça na qual Shakespeare parece cair presa de um chau-
vinismo masculinista é em “The taming of the shrew”. E, apesar de tudo
isso, jamais ouvi alguém acusar Shakespeare de apresentar a figura fe-
minina inadequadamente. Jamais ouvi alguém afirmar: “Shakespeare é
bom, mas não compreende as mulheres. Ao contrário, nunca ouvi senão
elogios às suas heroínas.
Shakespeare — que, no consenso geral, apanhou o gênero huma-
no em sua nudez e autenticidade, visto sob a luz impessoal de sua análise
142
genial — afirma-nos que as mulheres são, de qualquer forma, superiores
aos homens em tudo que importa. Como é então que tantos de nós con-
tinuamos certos de que as mulheres são inferiores aos homens? Eu disse
“nós”, sem qualificação pois as próprias mulheres, em grande número,
aceitam sua própria inferioridade.
Você pode estar perguntando que tem este problema a ver comigo
ou com esta revista. Bem, tem a ver comigo (para simplificar a resposta)
porque tudo tem a ver comigo. Tem a ver com esta revista porque a FC
envolve sociedades futuras, e estas, espero eu, serão racionais no trata-
mento de 51% da raça humana, do que nossa sociedade atual o é.
Acredito que as sociedade futuras serão mais racionais a este res-
peito, e quero expor minhas razões para semelhante crença. Gostaria de
especular sobre a Mulher do futuro, em vista do que ocorreu com a Mu-
lher no passado e o que está ocorrendo com a Mulher no presente.

Para começar, admitamos que existam diferenças fisiológicas irre-


movíveis entre homens e mulheres, (o primeiro a gritar “Vive la différen-
ce!” sai da classe).
Mas existem diferenças que sejam primariamente não-fisiológicas?
Existem diferenças emocionais, temperamentais, intelectuais e que você
possa estar seguro de que servirão para diferenciar homens e mulheres
num sentido lato, genérico? Quero dizer diferenças válidas para todas as
culturas, tal como as fisiológicas, e diferenças que não sejam resultado de
um treinamento anterior?
Por exemplo, não me impressiona o “As mulheres são mais refi-
nadas”, pois sabemos muito bem que as mães entram precocemente no
jogo de bater em delicadas mãozinhas, dizendo “Não-não-não! Menini-
nhas não fazem isso!”
Eu mesmo tomo uma posição radical ao afirmar que nunca podere-
mos estar seguros sobre as influências culturais e que as únicas distinções
válidas são as fisiológicas. Destas, reconheço duas:
1 — A maioria dos homens é fisicamente maior e fisicamente mais
forte que a maioria das mulheres.
2 — As mulheres engravidam, dão à luz, amamentam bebês. Os
homens, não.
O que poderemos deduzir apenas dessas duas diferenças? Pare-
cem-me ser o suficiente para colocar a Mulher em posição de clara des-
143
vantagem com respeito ao Homem, numa sociedade primitiva de caça,
que era tudo que existia, digamos, antes de 10.000 a.C.
Afinal de contas as mulheres não seriam tão capazes de enfrentar
os aspectos rudes da caça, e seriam ainda mais prejudicadas por uma “fal-
ta de graça” durante a gravidez, tanto quanto alheias quando cuidando
das crianças. Num acotovelar-se do tipo catch-as-catch-can pela comida,
todas as vezes elas acabariam por último.
Seria muito conveniente que uma mulher tivesse um homem que
se preocupasse em jogar-lhe um quadril após a caçada, e cuidar mais ain-
da, que outro homem não lho roubasse. Um caçador primitivo dificilmen-
te faria tudo isso em prol de uma filosofia humanitária; êle teria de ser
subornado. Suponho que você deva estar um passo adiante de mim e já
ter adivinhado, a estas alturas, que o suborno utilizado foi o sexo.
Visualizo um tratado de assistência mútua na Idade da Pedra entre
Homem e Mulher; — sexo-por-comida — e como resultado dessa aproxi-
mação, o aparecimento de crianças e a continuação das gerações.
Não vejo como possam ter existido paixões mais nobres naquele
tratado. Duvido que qualquer coisa reconhecível como “amor” estivesse
presente na Idade da Pedra, pois o amor romântico parece ter sido uma
invenção bem posterior e ser qualquer coisa, menos divulgado ampla-
mente, mesmo hoje em dia. (Certa feita li que a noção hollywoodiana de
amor foi inventada pelos árabes medievais e espraiada em nossa cultura
pelos Trovadores Provençais.)
Quanto à preocupação dos pais pelos filhos, esqueça-a. Parecem
existir indicações definidas de que os homens não compreenderam a co-
nexão entre a relação sexual e as crianças até quase os tempos históricos.
O amor materno pode ter suas bases na fisiologia (o prazer da amamenta-
ção, por exemplo) mas suspeito intensamente que o amor paterno, con-
quanto possa ser muito real, é de origem cultural.
Embora o arranjo de sexo-por-comida pareça ser um muito razo-
ável quid-pro-quod, não o é. Trata-se de uma combinação terrivelmente
injusta, pois um dos lados pode quebrar o acordo com impunidade, en-
quanto o outro não. Se uma mulher tenta punir suprimindo o sexo, e o
homem suprimindo a comida, que lado ganhará? “Lisístrata” às avessas,
uma semana sem sexo é muito mais facilmente suportável que uma se-
mana sem comida. Mais ainda, um homem que se cansasse dessa greve
mútua poderia alcançar seus objetivos pela força; a mulher, não.
144
Parece-me, portanto, que por razões definidamente fisiológicas, a
associação original de homens e mulheres foi estritamente desigual, com
o homem no papel de senhor e a mulher no papel de serva.
Isto não quer dizer que uma mulher, mesmo da Idade da Pedra,
não se utilizasse da lisonja e da bajulação para conduzir o homem. E to-
dos nós sabemos que isso é verdade ainda hoje em dia. Mas a bajulação
e a lisonja são armas de escravos. Se você, Orgulhoso Leitor, é homem e
não percebe isso, sugeriria que tentasse bajular e lisonjear seu chefe para
conseguir um aumento de ordenado, ou bajular e lisonjear um amigo para
conseguir seu próprio objetivo e ver o que acontece a seu amor-próprio!

Em qualquer relacionamento senhor/escravo, o senhor faz aquela


porção do trabalho de que gosta, ou que o escravo não possa fazer; todo
resto é reservado ao escravo. Está mesmo cristalizado entre os deveres
de um escravo, não apenas pelos costumes mas ainda por severas leis so-
ciais, a definição do trabalho escravo como aquele indigno de um homem
livre realizar.
Suponha que dividamos o trabalho entre “muscular-pesado” e
“muscular-leve”. Os homens teriam de fazer o “pesado”, sendo os mais
fortes, e às mulheres restaria todos os demais trabalhos ditos “leves”. Va-
mos encarar o problema: isto é usualmente (nem sempre) um bom acor-
do para os homens, pois existe muito maior número de trabalhos “leves”.
(Os homens trabalham de sol a sol; as mulheres nunca terminam o seu
trabalho”, diz velho ditado).
Por vezes, de fato, nem chega a existir trabalho algum pesado. Nes-
te caso, o bravo índio senta-se por perto para olhar as índias trabalharem
— uma situação que é semelhante para outros bravos, não-índios, que se
sentam e apreciam suas companheiras no trabalho. É claro, se forem mui-
to cavalheiros para olharem uma mulher no trabalho, sempre lhes restará
a alternativa de fecharem os olhos. Isso até lhes daria uma chance adicio-
nal de “puxar um ronco”. A desculpa óbvia é a de que não se pode esperar
que um orgulhoso e magnificente macho faça “trabalho-de-mulher”!
O aparato social do homem/senhor e da mulher/serva foi absor-
vido pelas mais admiradas culturas da antigüidade e então nunca contes-
tadas. Para os atenienses da Idade de Ouro, as mulheres eram criaturas
inferiores, apenas duvidosamente superiores aos animais domésticos, e
com nenhum direito humano. Ao ateniense culto parecia quase um truís-
145
mo que o amor homossexual masculino fosse a mais alta forma de amor,
desde que era a única maneira de um ser humano (macho, quer dizer)
amar a um igual. É claro que, se êle queria filhos buscava uma mulher, mas
e daí? Se êle queria transporte buscava um cavalo...
Quanto à outra grande cultura do passado, a Hebraica, é quase ób-
vio que a Bíblia aceita a superioridade masculina como fato natural. Nem
é sujeita a discussão em nenhum ponto.
De fato, ao introduzir a estória de Adão e Eva, fêz mais pela miséria
da mulher que qualquer outro livro na História. A fábula propiciou que de-
zenas de gerações de homens censurassem a Mulher a respeito de tudo.
Tornou possível que muitos Homens Sagrados do passado falassem das
mulheres em termos que um mísero pecador como eu mesmo, hesitaria
em empregar ao me referir a um cão raivoso.
Mesmo nos dez mandamentos, as mulheres são casualmente en-
globadas com outras formas de propriedade, animadas ou inanimadas.
Diz o Êxodus, 20:17: “Não cobiçarás a casa de teu próximo; não desejarás
a sua mulher, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu
jumento, nem coisa alguma que lhe pertença”.
O Novo Testamento não melhora as coisas. Existe uma série de ci-
tações que eu poderia fazer, mas darei esta da Epístola aos Efésios, 5:22-
24: “As mulheres sejam sujeitas a seus maridos, como ao Senhor; porque
o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é cabeça da Igreja, seu corpo,
do qual êle é o Salvador. Ora, assim como a Igreja está sujeita a Cristo,
assim também as mulheres aos seus maridos, em tudo”.
Isto me parece uma aspiração de modificação do arranjo social, de
uma relação Senhor/escrava, para Deus/criatura.
Não nego que existam muitas passagens, tanto no Velho quanto
no Novo Testamento, que louvem e dignifiquem a espécie feminina (por
exemplo, o Livro de Rute). O problema é, entretanto, que na história social
de nossa espécie, aquelas passagens bíblicas que ensinam a perversidade
e inferioridade femininas foram muito mais efetivas em sua influência. A
par do próprio interesse do homem em apertar as cadeias sobre as mu-
lheres, juntou-se-lhe a mais formidável injunção religiosa.

A situação não se modificou totalmente em sua essência, mesmo


hoje. As mulheres atingiram uma certa igualdade perante a Lei — mas só
em nosso século, mesmo aqui nos Estados Unidos. Pense como era vergo-
146
nhoso que nenhuma mulher — não importa quão inteligente e educada
— pudesse votar em eleições nacionais até 1920, apesar do fato de o voto
ser livremente assegurado a qualquer débil mental ou bêbedo, desde que
fosse macho.
Ainda assim — embora as mulheres possam votar, possuir proprie-
dades, e até mesmo seus próprios corpos — todo aparato social de infe-
rioridade permanece.
Qualquer homem poderá repetir a você que a mulher é intuitiva,
mais que lógica; emocional, mais que razoável; melindrosa, mais que cria-
tiva; refinada, mais que vigorosa. Não entendem de política, não conse-
guem somar corretamente uma coluna de números, guiam passavelmen-
te mal, gritam de terror diante de um ratinho, e assim por diante.
Porque as mulheres são assim, como se lhes poderia dar igualdade
aos homens nas importantes tarefas de dirigir uma indústria, um governo,
uma sociedade?
Esta também é uma atitude auto-realizadora.
Começamos por ensinar ao jovem que êle é superior à jovem, e
isto o reconforta. Êle é colocado automaticamente no cimo de metade da
espécie humana, não importam suas próprias limitações. Qualquer coisa
que tenda a perturbar esta noção ameaça não apenas seu auto-respeito
mas ainda sua própria virilidade.
Isto significa que se uma mulher acontece ser mais inteligente que
um homem em particular, pelo qual ela está (por alguma razão arcaica)
interessada, ela nunca deverá, pelo resto da vida, revelar o fato. Nenhuma
atração sexual consegue sobrepujar a injúria mortal que o orgulho mascu-
lino recebe no próprio traseiro e âmago, e ela o perderá.
Por outro lado existe algo infinitamente consolador para um ho-
mem diante de uma mulher manifestamente inferior a êle. É por essa
razão que uma mulher atoleimada parece “delicada”. Quanto mais chau-
vinistamente-masculinista um grupo social, mais altamente valorizada a
estupidez em uma mulher.
Através de longos séculos, as mulheres tinham de interessar ao ho-
mem se desejavam atingir segurança econômica e status social, e aquelas
que não eram estúpidas ou atoleimadas de natureza, tinham de cultivar
cuidadosamente tal estupidez até que se tornasse natural e elas esque-
cessem que tinham sido inteligentes.
É crença minha que toda distinção emocional e temperamental en-
147
tre homens e mulheres tem origem cultural e servem à importante função
de manter o arranjo homem/mulher, senhor/serva.
Parece-me que uma olhada clara à história social demonstra isto e,
mais ainda, que o “temperamento” feminino salta obstáculos sempre que
necessário, para acomodar-se às conveniências masculinas.
Que era mais feminino senão a mulher Vitoriana, com sua delica-
deza e modéstia, seus enrubecimentos e perda de respiração, seu incrível
refinamento e sua necessidade constante de sais-de-cheíro para sobrevi-
ver a uma deplorável tendência ao desmaio? Jamais existiu brinquedo tão
tolo que o estereótipo da mulher Vitoriana; jamais existiu maior insulto à
dignidade do Homo Sapiens.
Mas você pode compreender por que a mulher Vitoriana (ou uma
aproximação do que ela deve ter sido) tinha de existir em fins do século
XIX. Era uma época na qual, nas classes superiores, não existia trabalho
“leve” para que ela o fizesse, desde que as empregadas o realizavam. A
alternativa era deixá-las juntarem-se a seus maridos no trabalho ou nada
fazerem. Firmemente os homens fizeram-nas nada fazer (exceto aquelas
terríveis trabalheiras como tocar piano). As mulheres eram mesmo enco-
rajadas a usar roupas que impediam os movimentos físicos a ponto de mal
conseguirem andar e respirar!
Que lhes foi deixado então, senão um tédio feroz que fêz vir à tona
os piores aspectos do temperamento humano, e tornou-as objeto tão inú-
til, mesmo para o sexo, que foram cuidadosamente doutrinadas que sexo
era coisa suja e má, de maneira que seus maridos podiam sair sossegados
em busca de seus prazeres.
Mas nessa mesma época ninguém jamais pensou em aplicar o con-
ceito de “cãezinhos de estimação” às mulheres das classes mais baixas.
Existia um bocado de trabalho “leve” a ser feito por elas, e desde que não
tinham tempo para desmaios e refinamentos, o temperamento feminino
fêz os ajustamentos necessários, e fê-los também sem desmaios ou refi-
namentos!
A mulher pioneira do oeste norte-americano não apenas limpava
a casa, cozinhava, tinha um filho atrás do outro, mas também empunhava
um rifle para lutar contra os índios, sempre que necessário. Chego mesmo
a suspeitar que eram atreladas aos varais do arado quando o cavalo pre-
cisava descansar, ou o trator ser polido. E isto, também na mesma época
Vitoriana!
148
Vemos tudo isso entre nós, ainda agora. É artigo de fé que as mu-
lheres não são boas nem mesmo na mais simples aritmética. Você sabe
como aquelas graciosas queridinhas não acertam nem um talão de che-
ques do marido! Quando eu era garoto todos os bancários eram homens
exatamente por esse motivo. Mas então ficou difícil empregar bancários.
Agora 90% deles são. . . mulheres nos E.U.A. e, aparentemente, são ca-
pazes de somar números e cuidar de talões de cheques, apesar de tudo.
Em certa época a enfermagem era toda feita por homens, pois
qualquer indivíduo medianamente civilizado sabia que as mulheres eram
muito delicadas e refinadas para tal serviço. Quando as necessidades eco-
nômicas tornaram importante empregar mulheres como enfermeiras, fi-
cou patente que elas nem eram tão delicadas, nem tão refinadas. (Agora,
enfermagem é “trabalho de mulher”, que um homem orgulhoso não faz.)
Médicos e engenheiros são quase todos homens — até que algu-
ma espécie de necessidade social ou econômica sobrevenha — e então o
temperamento feminino fará os ajustes necessários — tal como, na União
Soviética, onde mulheres diplomam-se em engenharia e medicina em
grande número.
Ao que leva tudo isso?

Mas não caiamos no outro extremo. Durante a luta das mulheres


pelo voto, os chauvinistas do masculinismo afirmaram que isso arruina-
ria a nação, desde que as mulheres não tinham sensibilidade política e
seriam meramente manipuladas por sua parentela masculina (ou pelos
ministros religiosos, ou por qualquer político charlatão que trouxesse o
escalpo cheio de anéis encaracolados e a boca cheia de alvos dentes).
Feministas, por outro lado, afirmavam que quando a mulher trou-
xesse para a cabina indevassável a sua gentileza, seu refinamento e hones-
tidade, todo privilégio, corrupção e guerra seriam banidos.
Você sabe o que aconteceu quando as mulheres, por fim, votaram?
Nada! Verificou-se que as mulheres não eram mais estúpidas que os ho-
mens — nem mais sábias, também.

E no futuro? As mulheres alcançarão a verdadeira igualdade?


Não, se as condições básicas continuarem a ser o que sempre fo-
ram desde que o Homo Sapiens tornou-se espécie. Os homens não deixa-
rão voluntariamente as suas vantagens. Os senhores nunca o fazem. Por
149
vezes são forçados a fazê-lo por uma revolução violenta de uma espécie
ou de outra. Outras vezes são forçados a fazê-lo por terem uma sábia an-
tevisão da violência que se aproxima.
Um indivíduo poderá abrir mão de suas vantagens por mero sen-
tido de decência, porém estes são sempre minoria e um grupo, como um
todo, jamais o faz.
Sem dúvida, no caso presente, as mais fortes proponentes do Sta-
tus quo são as próprias mulheres (ao menos a maioria). Elas desempe-
nharam o papel por tão longo tempo que sentiriam arrepios nos punhos
e nos tornozelos se as cadeias fossem quebradas. Acostumaram-se tanto
às retribuições mesquinhas (o tirar o chapéu, o oferecer o braço, o sorriso
afetado, o olhar malicioso é, mais que tudo, a permissão para serem es-
túpidas) que não trocarão nada pela liberdade. Quem é mais “durão” nas
críticas às mulheres de mente independente, que desafiam as convenções
da escravatura? Outras mulheres, é claro, fazendo às vezes de melindra-
das em lugar dos homens.
Ainda assim as coisas vão mudar, pois as condições básicas que
assoalham as posições históricas da mulher, estão mudando.
Qual era a primeira diferença essencial entre homem e mulher?
1 — A maioria dos homens é fisicamente maior e fisicamente mais
forte que a maioria das mulheres.
E daí? O que importa, num sentido econômico, que os homens
sejam mais fortes e maiores? A mulher é muito pequena ou fraca para
ganhar sua própria vida? Ela tem necessidade de rastejar até ao ninho
protetor de um macho, conquanto estúpido e desagradável possa ser,
pelo equivalente a um quadril de caça?
Insensatez! Os empregos de trabalho muscular pesado estão fir-
memente desaparecendo, e apenas restam trabalhos de pouco esforço.
Não mais cavamos fossos; apertamos botões, puxamos alavancas e as má-
quinas é que abrem os fossos. O mundo está se computadorizando e nada
há que um homem possa fazer ao colocar fichas, escolher papéis, manejar
contatos, que uma mulher não faça com a mesma eficiência.
De fato, ser menor pode tornar-se vantagem. Dedos menores e
mais delgados podem se tornar precisamente futura necessidade.
Cada vez mais as mulheres aprenderão que precisam apenas ofe-
recer sexo/sexo; amor/amor; e nunca mais sexo/comida. Não sou capaz
de imaginar nada que dignifique mais ao sexo do que esta modificação,
150
ou acabar mais rápido com a degradante existência de senhor/escravo.
Mas, e a segunda diferença?
2 — As mulheres engravidam, dão à luz e amamentam crianças. Os
homens, não.
Sempre ouvi dizer que as mulheres possuem um instinto em criar
um ninho, que realmente desejam, cuidar de um homem e imolar-se por
êle. Talvez seja verdade... diante das condições como eram. E de agora
em diante?
Com a explosão demográfica tornando-se a cada dia mais uma dor
de cabeça para a espécie humana, teremos evolvido, até o final do século,
para novas atitudes com respeito aos filhos, ou nossa cultura morrerá.
Tornar-se-á perfeitamente admissível que uma mulher não tenha
nenhum filho. A sufocante pressão social para tornar-se “mãe e esposa”
deixará de existir, e isto terá mais significado ainda que a pressão eco-
nômica. Graças às pílulas, o problema dos bebês será afastado sem nos
afastar concomitantemente do sexo.
Isto não quer dizer que as mulheres não terão bebês; significa ape-
nas que não serão obrigadas a tê-los.
De fato, creio que a escravidão feminina e a explosão demográfica
andam de mãos dadas. Conserve a mulher em sujeição e a única forma do
homem sentir-se seguro será “mantê-la descalça e grávida”. Se ela nada
tem a fazer senão um trabalho repetitivo e indigno, desejará um filho após
outro, quando menos para fugir para algo novo.
Por outro lado, torne a mulher realmente livre e a explosão popula-
cional se interromperá. Poucas mulheres gostariam de sacrificar sua liber-
dade por causa de inúmeros filhos, E não diga “não” com rapidez exces-
siva; jamais se tentou a real libertação da mulher, mas deve haver algum
significado no fato da taxa de nascimento ser maior quando a posição
feminina é mais baixa.

Então no século XXI predigo a completa libertação feminina pela


primeira vez na história da Humanidade.
Nem estou preocupado com a contrapredição de que as coisas se­
guem em ciclos, e que a hoje clara tendência a uma emancipação femi-
nina dará lugar a um Neo-vitorianismo.
Os efeitos podem ser cíclicos, sim — mas somente se suas causas
também o forem e as causas aqui envolvidas não são cíclicas, exceto com
151
a advento de uma guerra termonuclear em escala planetária.
Para haver uma volta do pêndulo a uma escravatura feminina, seria
necessário um aumento do trabalho “muscular-pesado” que apenas os
homens pudessem executar. As mulheres voltariam a temer a fome, sem
um homem que trabalhasse por elas. Bem, você acredita que as atuais
tendências de computadorização e segurança social darão lugar a uma
volta, arriscando mesmo uma catástrofe global? Honestamente?
Para que o pêndulo voltasse em sua oscilação, seria preciso uma
continuação do desejo de grandes famílias com numerosos filhos. Não
existe, em larga escala, outra maneira de conservar as mulheres felizes
em sua escravidão (ou ocupadas demais para pensar nela, o que dá no
mesmo). Dada nossa explosão populacional presente, e a situação como
será no ano 2.000, você espera sinceramente que as mulheres voltarão a
engravidar, uma vez atrás da outra?
Portanto, a tendência à liberdade feminina é irreversível.

Já existe um começo dela, e está bem estabelecido. Você crê que


a era presente de certa liberdade sexual (em quase todas as partes do
mundo) seja apenas uma quebra temporária de nossa fibra moral, e que
um pouco de ação governamental restaurará as virtudes austeras de nos-
sos ancestrais?
Não acredite. O sexo foi divorciado dos bebês, e assim continuará
a ser, desde que sexo não pode ser suprimido e os bebês não podem ser
encorajados. Vote em quem quiser, mas a “revolução sexual” continuará
a se processar.
Ou tome mesmo alguma coisa tão trivial quanto a “novidade” do
homem cabeludo (eu mesmo deixei crescer um par de suíças absoluta-
mente magníficas). Seguramente haverá modificações em detalhes, mas
o que resta é a quebra de distinções triviais entre os sexos.
Sem dúvida é isso que perturba o convencional. Vezes sem conta
ouço-os queixarem-se de que um rapaz em particular, com enormes cabe-
los, parece até uma garota. E então continuam dizendo: “Você não pode
nem diferençá-los!”.
Isso sempre me fêz pensar em qual a importância de distinguir um
rapaz de uma garota numa simples olhada, a menos que se tenha algum
interesse pessoal em vista do qual a diferença de sexo seja relevante. Você
não pode, com uma simples olhada, dizer se uma pessoa em particular é
152
católica, judia ou protestante; se êle/ela é pianista, engenheiro, artista,
inteligente ou estúpido.
Afinal de contas, se fosse realmente importante distinguir os sexos
a uma distância de alguns quarteirões, com uma simples olhada, por que
não fazer uso das próprias distinções criadas pela Natureza? E isso não é
dado por cabelos longos, por certo, pois ambos os sexos deixam crescer o
cabelo, aproximadamente o mesmo comprimento, em todas as culturas.
Por outro lado, os homens têm mais cabelo facial que as mulheres; as
diferenças são, por vezes, extremas (minha mulher, pobre coisinha, não
poderia deixar crescer suíças ainda que o desejasse!).
Bem, então todos os homens deveriam deixar crescer barba? En-
tretanto os mesmos convencionais que objetam contra os cabelos lon-
gos, também objetam aos barbados. Qualquer modificação os perturba;
portanto, quando as mudanças se tornam necessárias, os convencionais
devem ser ignorados.
Mas por que esse fetiche de cabelos curtos para homens, e longos
para mulheres? Ou, já que estamos no assunto, calças longas para homens
e saias para mulheres? Camisas para homens, blusas para mulheres? Por
que um grupo de distinções artificiais para exagerar as próprias, naturais?
Por que se perturbam as pessoas quando as distinções são apagadas?
Será que a distinção gritante no vestir e no cabelo, entre os dois
sexos, seria mais um sinal da relação senhor/escravo? Nenhum senhor
quer ser confundido com um escravo em nenhuma distância, ou confun-
dir um escravo com um senhor, também. Nas sociedades de escravos,
estes são sempre cuidadosamente distinguidos (por um rabo quando os
mandarins reinavam na China, por uma estrela de David amarela, quando
os nazistas dominaram a Alemanha, e assim por diante). Nós mesmos ten-
demos a nos esquecer disso, pois nossos escravos mais conspícuos pos-
suíam uma côr de pele distinguível, e pouco mais seria necessário para
marcá-los.
Na sociedade de igualdade sexual que está por vir, haverá um cres-
cente apagar das distinções entre os sexos, apagar que já se encontra em
processo. Um dado rapaz saberá exatamente quem é sua garota em par-
ticular, e vice-versa, e se ninguém mais é parte daquela relação, o que é
que tem com isso?
Digo que não podemos nadar contra a maré; nademos a favor.
Chego mesmo a afirmar que será a mais linda coisa ocorrida à espécie
153
humana.
Creio que os Gregos estavam certos, ao menos num ponto: é muito
melhor amar a um igual. E, se fôr verdade, por que não ansiar pelo tempo
quando nós, heterosexuais, poderemos amar no mais alto nível?

154
CARTAS

A partir deste número, passamos a responder às cartas enviadas por nossos


leitores. Naturalmente, por economia de espaço, não publicaremos o texto integral de cada
correspondência, fixando-nos apenas no tema ou assunto de importância maior.
Vamos às cartas:
Afonso Martins Filho (Belo Horizonte-MG) — Ficaria muito grato se me informas-
sem toda a bibliografia de Isaac Asimov.
* Infelizmente (e felizmente), não podemos atendê-lo, pois a obra de Asimov é
vastíssima e o nosso espaço é pequeno. Para V. ter uma idéia da extensão da obra de Asimov,
basta atentar para o lançamento, em 1969, de Opus 100, ou seja, exatamente seu centésimo
livro de ciência e ficção científica. Prometemos que, num dos próximos números, a seção
Ciência será aberta com a relação completa das obras desse grande autor americano.
Pedro L. Schmidt (Campinas-SP) — Gostei do MFC. Mas, como também sou entu­
siasta de literatura policial, peço que me indiquem uma boa revista do gênero.
* Nossa sugestão é a leitura do Mistério Magazine de Ellery Queen, publicação
mensal também da Revista do Globo S. A. e à venda em todas as bancas.
Domingos Rossetti (Rio-GB) — Quando aparecerá um daqueles contos fantásticos
de Jorge Luis Borges?
* É possível que incluamos um conto de Borges num dos próximos números do
MFC. Mas aproveitamos para comunicar que a Editora Globo estará lançando, muito breve-
mente, a obra-prima de Borges — Ficciones, livro que o Time considerou entre os dez me­
lhores da década de 60. Aguarde.
Vercingetórix Blauth (Blumenau-SC) — De Asimov só têm aparecido artigos de ciên-
cia. São muito bons, é claro, mas eu pergunto se não pretendem publicar também a ficção
dele?
* Neste mesmo número V. encontra o excelente conto Segregacionista.
Pedro L. Manica (Curitiba-PR), Jorge Lopes (Rio-GB), Paulo Manso de Oliveira (Rio-
GB), Suely Schultz (Pelotas-RS), Moacir dos Santos (São Paulo-SP), Lúcio Morais Couto (San-
tos-SP), Claro Gomes (Juiz de Fora-MG)
* Gratos pelos cumprimentos e informamos que os contos enviados serão submeti-
dos a exame.

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